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SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. Abuso de direito processual: uma teoria
pragmática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 429 p.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
EDITORA AFILIADA
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OBRAS DO AUTOR
O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no Direito.2. ed., ver. E atual.
São Paulo: RT, 2005.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Souza, Luiz Sergio Fernandes de
Abuso de direito processual: uma teoria pragmática / Luiz Sergio Fernandes de
Souza. — São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
Bibliografia.
ISBN 85-203-2739-7
1. Abuso de direito 2. Brasil - Processo civil I. Título.
05-3679 CDU-347. 124:347.9
Índices para catálogo sistemático: 1. Abuso do direito processual: Direito civil
347.124:347.9 2. Direito processual: Abuso: Direito civil 347.124:347.9
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LUIZ SERGIO FERNANDES DE SOUZA
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Uma teoria pragmática
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Uma teoria pragmática
LUIZ SERGIO FERNANDES DE SOUZA
0707
© desta edição: 2005
EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.
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da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).
Impresso no Brasil (06 - 2005)
ISBN 85-203-2739-7
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Ao Professor
Alaôr Caffé Alves
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Agradecimentos
Este livro é o resultado de alguns anos de pesquisa, também consumidos na
criteriosa seleção e organização da literatura e jurisprudência existentes sobre o
tema do abuso do direito. Agradeço a inestimável colaboração de Patrícia, que me
auxiliou na localização dos textos previamente identificados no projeto. Sou grato, do
mesmo modo, à prestimosa colaboração de Márcia Cristina, que desenvolveu
pesquisas na Biblioteca Nacional da França, em bus- ca dos escritos de Saleilles,
Charmont e Porcherot, publicados no início do século passado e não acessíveis por
meio eletrônico. Meus agradecimentos, igualmente, ao Professor Paulo Cintra
Damião, cujo apoio não me faltou na pesquisa e conferência dos textos em latim. Ao
saudoso magistrado João Roberto Bueno de Souza, antes de tudo um grande
amigo, deixo também aqui o meu reconhecimento. Foi em sua acolhedora biblioteca
que desenvolvi parte das pesquisas, não raras vezes, noite adentro, animado pela
prosa envolvente desse grande homem, que é para mim fonte perene de inspiração.
Ao companheiro do Colégio de Aplicação, hoje diplomata e pesquisador do Cebrap,
Geraldo Miniuci Ferreira Jr., que reencontrei no curso de pós-graduação da USP,
por um desses felizes acasos, e com quem tive oportunidade de discutir a teoria da
ação comunicativa de Habermas, fio condutor das minhas elaborações. Por fim,
deixo o registro da minha gratidão à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e
à Universidade de São Paulo, instituições nas quais encontrei o necessário estímulo
para o desenvolvimento dos meus estudos e da minha carreira acadêmica.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................1
1. A CONSTRUÇÃO DA TEORIA DO ABUSO DO DIREITO NA DOGMÁTICA
JURÍDICA.......................................................................................................... 17
1.1 Os antecedentes históricos e a jurisprudência francesa.............................. 17
1 .2 A doutrina brasileira.................................................................................... 35
1.3 A construção do significado do abuso do direito na base do caso concreto 48
1 .4 Para uma revisão crítica da teoria do abuso do direito............................... 72
2. O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES NO PROCESSO JUDICIAL............. 85
2.1 Delimitações do tema na dogmática jurídica................................................ 85
2.2 As dificuldades do subjetivismo de base psicológica................................. 108
2.3 As práticas judiciárias e os modelos de verdade........................................ 132
2.4 A verdade no senso comum dos processualistas....................................... 146
3. A TEORIA DO SIGNIFICADO...................................................................... 171
3. 1 A cosmovisão da Antiguidade................................................................... 171
3.2 A teoria representativa............................................................................... 179
3.3 A superação da dicotomia idealismo e realismo......................................... 194
3.4 A consciência reflexiva e a razão alargada................................................ 208
4. AS TEORIAS PRAGMÁTICAS.................................................................... 229
4. 1 O paradoxo de Wittgenstein...................................................................... 229
4.2 A superação da teoria representativa......................................................... 252
4.3 Razão teórica versus razão prática............................................................ 268
4.4 A Iinguagem e a construção da realidade.................................................. 283
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
5. A RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA DO ABUSO DOS DIREITOS
PROCESSUAIS ..............................................................................................303
5.1 A razão instrumental e os direitos absolutos.............................................. 303
5.2 A racionalidade instrumental e as novas demandas sociais ..................... 318
5.3 A retórica no campo da ação estratégica e da ação comunicativa............ 331
5.4 A possibilidade do agir comunicativo no processo judicial .........................352
CONCLUSÃO................................................................................................. 379
REFERÊNCIAS............................................................................................... 387
1. Bibliografia................................................................................................... 387
2. Jurisprudência............................................................................................. 421
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INTRODUÇAO
“Há uma medida em todas as coisas: existem, afinal, Iimites”
(Horacio, Satiras, 1, 1.)
O problema central que orienta a pesquisa sobre o abuso dos direitos processuais
diz respeito à existência de limites à atuação daqueles que, em tese, agem em
conformidade com a norma legal. Na perspectiva do formalismo jurídico, ou se
exerce um direito, pelo que não se pode cogitar de abuso, ou então se está
praticando um ilícito, razão pela qual também não há de se falar em abuso. A
discussão, posta nestes termos, aponta para a dificuldade em separar o direito e a
moral, a norma e a aplicação do direito, distinções que surgem somente quando o
pensamento jurídico se dá conta do contraste entre o ordenamento normativo e os
fatos, esferas que aparecem imbricadas na elaboração dos romanos. O primeiro e
segundo capítulos refletem, precisamente, as pesquisas desenvolvidas no campo da
dogmática jurídica, na tentativa de surpreender o significado do abuso do direito
desde os antigos à modernidade. Há todo um refinamento de conceitos que não se
pode desconsiderar, nem mesmo numa investigação zetética, cuja perspectiva
crítica pressupõe o conhecimento da maneira como se dá a elaboração prática do
direito ao longo dos séculos. Não bastasse, a distinção entre questões dogmáticas e
questões zetéticas é relativa, pois o discurso jurídico acaba suscitando um problema
de justificação, o que sugere algumas dificuldades quando se trata de desenvolver
uma teoria do abuso dos direitos processuais.
A separação entre norma e realidade dá lugar, outrossim, a uma reflexão
epistemológica do direito, que se desenvolve num movimento pendular, oscilando
entre o jusnaturalismo (como imanência ou transcendência do justo) e o formalismo
jurídico, em seus diversos
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
matizes. As elaborações dogmáticas e as justificações no plano da teoria do direito
refletem, alternativamente, a metafísica raciona- lista e o cientificismo do positivismo
francês, como será visto no terceiro capítulo. Toda essa controvérsia se move no
plano da distinção entre uma razão prática e uma razão teórica, incapaz de
apreender o significado social do abuso do direito, conceito que se vai delineando
com o desenvolvimento da sociedade industrial. Nesse contexto, as práticas
jurídicas orientadas por valores acabam cedendo espaço para um direito que busca
sua legitimidade na norma posta, expressão de determinados interesses sociais.
Significativa se mostra, dentro desse quadro, a jurisprudência francesa, inspirada
nas elaborações inovadoras da doutrina da época, que suplantaram a teoria da
emulação, como desenvolvida desde o direito romano. Segundo a intuição romana,
que deitou raízes na Idade Média, o abuso do direito caracterizava-se pelo exercício
imoderado de um direito, sem nenhum proveito próprio e em prejuízo alheio.
Sensível às mudanças implementadas pela sociedade de massas, que coloca em
pauta interesses transindividuais, jurisprudência e dou- trina do início do século XX
deixam-se orientar por um novo paradigma do direito subjetivo. A figura do abuso do
direito, que havia surgido como forma de mitigar o individualismo liberal-burguês,
contornando a estrita legalidade, passa a reivindicar autonomia nos quadros da
teoria geral do direito, com o que se afasta das elaborações relativas aos atos
ilícitos. No Brasil, as discussões acerca do abuso do direito desenvolvem-se
inicialmente na linha da elaboração dos romanos, presa à noção da aemulatio. Esta
é a inspiração do Código Civil de Clóvis Beviláqua, reflexo de uma sociedade
patriarcal e agrária, que acaba ganhando novos contornos a partir da década de 50,
com o processo de industrialização e urbanização crescente.
O surgimento do Estado Social não alterou, entretanto, de maneira significativa, o
rumo das elaborações processuais. A autonomia do direito de ação reproduz, no
campo da dogmática processual, a tendência formalista do direito, conduzindo a
decisões que não se identificam com as práticas sociais. Esse descompasso entre
as demandas da sociedade de massa e a capacidade de solução judicial dos
conflitos leva à formulação de categorias binárias do tipo princípio dispositivo-
princípio inquisitivo, verdade formal-verdade
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INTRODUÇÃO
material, topoi que servem para garantir as expectativas em torno do papel
hegemônico do direito na solução dos conflitos. Como observa Horkheimer, a
formalização dos valores e a instrumentalização crescente do conhecimento não
podem prescindir de uma certa ontologia. Por isso, o recurso às categorias da
filosofia do absoluto, que fundamentam as chamadas teorias do abuso processual,
revela-se, de um ponto de vista crítico, como simples expediente retórico, que
incorpora o discurso zetético para legitimar determinada solução do caso concreto.
De uma tal perspectiva, que lança um novo olhar sobre a dogmática processual, faz-
se necessária a compreensão de outros jogos de racionalidade, diferentes daqueles
elabora- dos pela filosofia da consciência.
Como se terá oportunidade de ver no quarto capítulo, o positivismo lógico, ao afastar
a possibilidade da elaboração de proposições científicas acerca de juízos
metafísicos, acaba abrindo espaço para uma reflexão pragmática em torno do abuso
do direito, que se inaugura na senda aberta pela filosofia analítica, mais especifica-
mente com a reviravolta de Wittgenstein. Em suas Investigações Filosóficas,
Wittgenstein põe em xeque as elaborações do Círculo de Viena, ao mostrar o
significado das categorias culturais, que revelam diversas formas de vida. As
palavras não são apenas representativas, cumprindo, outrossim, determinadas
funções. Seu significado não pode ser reduzido ao modelo triádico signficante-
significado-coisa. Com isto, a epistemologia jurídica, até então presa a uma filosofia
da consciência, ao mentalismo dos racionalistas e empiristas, passa a conhecer a
maneira como os operadores do direito elaboram categorias ricas de significado,
entre as quais está a noção de abuso do direito, que surge da trama das relações
intersubjetivas.
Com a pragmática, o conceito de representação, preso à relação sujeito-objeto, dá
lugar a uma investigação voltada para o uso da linguagem, perspectiva na qual os
sujeitos processuais constroem intersubjetivamente o significado das suas ações. O
ato de fala, na expressão de J.L. Austin, não só descreve fatos, como também
realiza ações. Ao falar, as partes estão praticando atos processuais cujo significado
não pode ser compreendido na base das categorias verdadeiro-falso, mas sim no
plano dos proferimentos performativos, que dizem com a efetividade social do
direito, noção que se desenvolve
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
na esfera das condições de felicidade dos atos de fala. Esse novo enfoque, que
supera a semântica clássica, oferece um instrumental teórico adequado para a
compreensão da racionalidade instrumental. How to do things whith words teve
grande repercussão não só nos domínios da filosofia como também no campo de
outras diversas disciplinas. No caso do direito, cujas elaborações teóricas guardam
estreitas relações com a praxis jurídica — ambas com pretensões descritivas e
prescritivas — as reflexões de Austin revelam a dificuldade no desenvolvimento de
uma teoria crítica que se utiliza das mesmas categorias que estão no campo
dogmático. E precisa- mente esta dificuldade que se encontra na elaboração de um
discurso crítico do abuso dos direitos processuais, como já se adiantou.
Abre-se então para o discurso jurídico, no último capítulo, a perspectiva de uma
justificação do ângulo de uma razão comunicativa, tanto no nível da prática quanto
no plano da teoria processual. Partindo do mesmo pressuposto pragmático de
Austin, Habermas vislumbra a possibilidade de uma fundamentação dialógica em
diversas setores da vida social, ainda não capturados pela racionalidade sistêmica.
Fugindo ao pessimismo que se pode entrever na idéia de um Eclipse da Razão,
como concebida por Horkheimer, a teoria da ação comunicativa de Habermas
permite resgatar a dimensão ética do direito, que está nas regras de fundamentação
discursiva. Sucede que as relações de poder se encontram na própria gênese do
direito. A decisão, no limite, aponta sempre para a possibilidade do exercício da
força. Isto sugere que o discurso jurídico se constitui no campo da ação estratégica,
no qual a idéia de consenso não passa de eufemismo. Afinal, as teorias dogmáticas,
nas quais se inclui a teoria do abuso dos direitos processuais, guardam a marca
impressiva do utilitarismo, próprio do tipo de pensamento que se desenvolve na
sociedade de massa. Caberia indagar, então, sobre a possibilidade de um discurso
racional no campo do direito, e mais, sobre o significado de uma teoria do abuso dos
direitos processuais no âmbito das pretensões de racionalidade levantadas pela
teoria da ação comunicativa.
Essa tentativa de reatar teoria e praxis, no contexto das sociedades pós-tradicionais,
em que os valores são substituídos por interesses, nos quais as preferências
pessoais passam a ocupar o
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INTRODUÇÃO
espaço antes reservado à virtude da ética aristotélica, revela-se como expressão da
angústia do homem contemporâneo diante de um saber tecnológico que também
pede limites. A teoria pragmática, ao mesmo tempo em que mostra a maneira como
a razão forma- lizada opera no contexto da sociedade de massa, busca o retorno a
uma ética capaz de gerar acordos amplamente partilhados, na pretensão de
completar o trabalho do iluminismo. Mas a voracidade com que os mundos da vida
vão sendo rapidamente anexados pela racionalidade instrumental mostra também a
dificuldade em conceber o processo judicial como agir comunicativo. Nele, os
sujeitos processuais, que desenvolvem relações assimétricas, estão sub- metidos a
injunções e motivações estranhas à busca cooperativa da verdade. Por isso,
subsiste, de maneira instigante e desafiadora, a questão dos limites da atuação das
partes no processo, ou seja, a pergunta acerca do sentido do abuso do direito
processual, e mais, do significado de uma teoria do abuso.
A contribuição pragmática não interfere com o senso comum dos processualistas.
Não se está buscando aqui um novo enfoque dogmático, uma nova operabilidade, à
maneira como se encontra na doutrina jurídica, mas apenas o desenvolvimento de
uma reflexão crítica sobre o processo judicial. Procura-se conhecer o significado
intersubjetivo das formas e fórmulas desenvolvidas pelos operadores do direito, para
entender o sentido do abuso dos direitos processuais, particularmente numa
sociedade onde os valores foram substituídos pelos interesses, onde as teorias
transformam-se em tendências, enfim, um mundo no qual não se concebe mais a
existência de normas universais, quer de natureza intelectual, quer de natureza
moral. Pode impressionar a densidade da pesquisa dogmática, sobre- tudo no
primeiro e segundo capítulos, em um trabalho de viés filosófico. Tem-se de admitir,
porém, que as elaborações jurídicas são mesmo envolventes. Entendê-las é quase
sempre mergulhar num mundo repleto de teias significativas, de estereótipos
culturais entretecidos pela linguagem. Conquanto a compreensão crítica exija um
certo distanciamento, não é fácil lançar um olhar distante sobre um objeto que é
precisamente o resultado da contínua interação de práticas culturais. Essa
dificuldade acompanha, a cada passo, a elaboração de uma teoria do abuso dos
direitos processuais.
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A CONSTRUÇÃO DA TEORIA DO ABUSO DO DIREITO NA DOGMÁTICA
JURÍDICA
SUMÁRIO: 1.1 Os antecedentes hist6ricos e a jurisprudência francesa— 1 .2A
doutrina brasileira— 1 .3 A construção do significado do abuso do direito na base do
caso concreto — 1 .4 Para uma revisão crítica da teoria do abuso do direito.
1.1 Os antecedentes históricos e a jurisprudência francesa
É bastante discutível a posição daqueles que buscam no direito romano a origem,
ainda que remota, da noção de abuso do direito. Alexandre Corrêa, em trabalho
apresentado no Seminário Internacional de Direito Romano (Perugia, 1971), embora
criticando a tese dos que se negam a ver aquela origem, admite que não há
propriamente entre os romanos uma formulação de princípios, uma dou- trina, mas
apenas um sentimento, uma intuição, que se pode recolher em Cícero e nas regras
particulares dos jurisconsultos.
Em Max Kaser também é possível encontrar referência ao direito romano. A exceptio
dolis é o meio processual que garante a efe
Início de nota de rodapé
(1) Alexandre Corrêa, Notas sobre o abuso dos direitos em Direito Roma- no
Clássico, in Justitia, Ano XXXVI, 4. ° Trimestre de 1974, vol. 87, p. 2 1 1 -220.
Admite Alexandre Corrêa, citando Scialoja e Bonfante — contrários à tese da origem
romana do instituto — que não se trata propriamente de regras gerais de direito.
Todavia, na solução dos casos particulares, o romanista brasileiro reconhece a
existência de princípios implícitos.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
tividade do preceito que proíbe, caso a caso, o exercício prejudicial dos direitos sem
utilidade própria. 2 Enneccerus, igualmente, sus- tenta que já no direito romano se
entendia que o exercício de um direito, contrário aos preceitos de equidade ou sem
interesse do titular, é inadmissível. Aquele que se sentisse prejudicado, poderia
valer-se da exceptio doli generali que, em sua formulação definitiva, passou a
prescindir da intenção de prejudicar, bastando que o exercício da pretensão fosse
contrário ao sentimentojurídico.3
Josserand, Cornil e Charles Appleton reconhecem a existência de vários traços da
teoria do abuso nas fontes do direito romano. Josserand, citando Cornil, diz que o
romanista francês encontrou em Gaio a formulação de uma teoria geral do abuso do
direito quando, para justificar a interdição dos pródigos e a proibição de maltratar os
escravos, dizia male enim nostrojure uti non debemus. Invo- ca ainda a lição de
Appleton, para quem a teoria tanto não é moder- na que sobre ela repousa toda a
evolução do direito romano, ca- minhando para a eqüidade a partir do direito estrito.
Por fim — acres- centa Josserand — é bem de ver a afirmação de Celso, jus est ars
boni et aequi, bem como a máxima de Paulo, non omne quod licet honestum est.4
A jurisprudência em Roma, assim como os editos, faz parte das fontes do direito e
os magistrados — no dizer de Alexandre Corrêa — não se sujeitavam à lei de
maneira tão rigorosa quanto hoje.5 Neste sentido, colhe a máxima scire leges non
est, verba earum, tenere, sed vim ac protestam. Com efeito, vê-se no ius civile como
os romanos evitavam a positivação, do que são mostra a escassa edição de leis
durante um considerável período de tempo e a elástica e notabilíssima lex annua do
pretor, que só se cristalizou de maneira
Início de nota de rodapé
(2) Max Kaser, Derecho Romano Privado, Madrid, Reus S.A., 1968, p. 37.
(3) Enneccerus, Tratado de Derecho Civil, 3. ed., vol. 2, 2a Parte, Barcelona, Bosch,
1970, p. 1076.
(4) Josserand, De lesprit des droits et de leur relativité — Théorie dite de lAbus des
Droits, Paris, 1939, p. 3 e 4, apud Alexandre Corrêa, op. cit.,p. 214.
(5) Alexandre Corrêa, op. cd., p. 213.
Fim da nota de rodapé
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
definitiva no Edito de Adriano.6 Esta vocação tópica, no sentido aristotélico e
ciceriano, bem explica como o pretor, auxiliado pelos jurisconsultos, adequava o
direito às exigências do caso concreto.7
Na base da prudentia romana fez-se possível a proteção do escravo contra o dono
(male enim nostro jure uti non debemus), do filho contra o pai (si pater filium ter
venum duit filius a patre liber esto), a repressão da fraude (manumissiones in
fraudem creditorum), a introdução da actio Pauliana, o direito de uso das águas
(haec aequitas suggerit etsi jure deficiamur qui factus mihi quidem prodesse protest:
ipsi vero nihil nocitttrus est; aquam enim arcere hoc esse curare ne inflttet), a
proibição dos atos emulativos do proprietário (est same non debet habere: si non
animo vicino nocendi, sed suum agrum meliorem faciendi idfecit) e da emulação
entre marido e mulher (de lo quod uxoris in aedficium viu ita conjunctum est, ut
detractum alicujus usus esse possit, dicendurn est agi posse; posse eum haec
detrahere qitae ttsiti ejitsfutttra sint, sine mulieris tamen damno).8
De fato, os autores que buscam no direito romano a origem da teoria do abuso do
direito costumam selecionar alguns textos significativos: summum jus, summa
injuria; non omne quod licet honestum
Início da nota de rodapé
(6) Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, Brasilia, Ministério da Justiça, 1 979,
p. 5 1.
(7) Sobre a p1icação da ars boni et aequi do direito romano, inspirada em
Aristóteles, v. Etica Nicomaquea, Aristóteles — Obras, 2. ed., Madrid, Aguiiar, S.A., 1
967, Livro V, cap. X, 1 1 37b/1 1 38a, p. 1 .237 e 1 .238.
(8) Alexandre Corrêa, op. cit., p. 2 1 3-2 1 9; Pedro Baptista Martins, O abu- so do
direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 12, 26, 42, 103 e 155;
Alvino Lima, Abuso do Direito, in J.M. de Carvalho Santos (org.), Repertório
Enciclopédico do Direito Brasileiro, vol. 1, Rio de Janeiro, Borsoi, 1947, p. 325-327;
Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo LIII, Rio de
Janeiro, Borsoi, 1 966, p. 64-66; Charmont, LAbus dtt Droit, in Revtte Trimestrielle de
Droit Cjvjl, tomo I, Librairie de la Société du Recueil Général des Lois & des Arréts, 1
902, p. 1 19; Giuseppe Grosso, Abuso del diritto (diritto ro- inano) in Enciclopedia del
Diritto, vol. 1, Varese, Giuffrè Editore, 1 958, p. 1 6 1 - 1 63; Rodolfo Sohm,
Instituiciones de Derecho Privado Romano — História y Sistema, México, Nacional,
1 975, p. 1 0; Fernando Augusto Cunha de Sá, Abuso do Direito, Coimbra, Almedina,
1997, p. 47-49.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
est; malitiis non est indulgendum; male enim nostro jure uti non debemus; quod tibi
non nocet et alteri prodest,facile est concedendum. Entretanto, não é difícil localizar
preceitos de sentido oposto, tais como dura lex sed lex, feci sed jure feci; nemo
damnun facit, nisi qui id fecit quod facere jus non habent; jure suo qui utitui nemini
injuriamfaci; qui jure suo utitui neminem Iaedit,9 numa indicação de que o jus
abutendi seria mesmo o princípio geral em vigor.
Para Contardo Ferrini, a regra da máxima autonomia da propriedade, no direito
antigo e clássico, não foi formalmente renegada pelo direito justiniano, que apenas a
suavizou com um princípio de sociabilidade. ° E certo, como diz Alexandre Corrêa,
que o método dedutivo não é próprio do Direito Romano Clássico, com o que o
romanista procura justificar a inexistência de uma máxima geral que pudesse servir
de aplicação aos casos concretos. Mas ainda assim, vê-se que a proibição dos atos
emulativos, vale dizer, daqueles praticados com intenção de prejudicai sem utilidade
ou com utilidade mínima, longe de constituir um axioma ou aforismo, mostra-se
como simples expressão fragmentária de afirmações feitas por antigos autores, de
decisões judiciais ou de formulações doutrinárias, com as quais se buscava mitigar o
jus abutendi. 12
Início da nota de rodapé
(9) Alvino Lima, idem, ibidein; Cunha de Sá, idem, ibidem.
(10) Contardo Ferrini, Manuale di Pandette, 3. ed., ns. 35 1 e ss., apud Alvino Lima,
op. cit., p. 327; no mesmo sentido, Jose Manuel Martín Bemal, El abuso del derecho,
Madrid, Ed. Montecorvo S.A., p. 26 e 27; Pedro Baptista Martins, entretanto,
discorda dessa posição. É que, por ser excessivamente limitado o campo de
incidência da regra proibitiva da emulação, ela não prevalecia como princípio geral,
até porque os romanos eram infensos a generalizações. Mas foi o gérmen da fase
justiniânea (neque malitiis indulgendum est) que, mais tarde, veio a florescer e
frutificar na doutrina da emulação (op. cit., p. 16).
(11) Alexandre Corrêa, op. cit., p. 216; a propósito, v. a distinção feita por Viehweg
(op. cit., p. 3.344), entre demonstração (conceito ligado às noções de sistema,juízos
apodícticos, evidência) e argumentação (conceito relacionado às noções de
sistemas, juízos dialéticos e problemas).
(12) Carlos Fernández Sessarego, Abuso del derecho, Buenos Aires, Edito- rial
Astrea, 1992, p. 96 (no que invoca, igualmente, a posição de Díez-
Fim ne nota de rodapé
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
Salvador Riccobono apresenta uma explicação histórica para a aparente contradição
dos textos romanos. O individualismo e o absolutismo das concepções são próprios
do sistema do ius civile, do direito quiritário, ao passo que os textos que consagram
a proibição dos atos emulativos surgem a partir do séc. 11 do Império, com Iastro
em considerações éticas e humanitárias.3 Segundo Alvino Lima,4 esta é a
explicação que tem sido acolhida pela maio- ria dos autores, a exemplo de Cornil,5
Campion,6 Mazeaud,7 Josserand8 e de Butera.9 Também em Ennecerus,2°
Giuseppe Grosso, 2 Pedro Baptista Martins 22 e Martín Bernal23 é possível
encontrar esta interpretação.
De todo o exposto, pode-se retirar a conclusão de que as máximas e aforismos
extraídos do direito romano não são o bastante para fundar um princípio de ordem
geral. A doutrina mesma do abuso do direito não encontra fundamento no direito
romano, na aemulatio,
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Picazo e Gullón Ballesteros, Sistema de derecho civil, vol. 1, Madrid, Tecnos, 1984,
p. 442).
(13) Riccobono, Aemulatio, Nuovo Digesto Italiano, vol. 1, Torino, Unione
Tipografico-Editríce Torinese, 1937-XVI, p. 210.
(14) Alvino Lima, op. cit., p. 327.
(15) Cornil, Le droitprivé, Paris, 1924, p. 102, apudAlvino Lima, op. cit, p. 327.
Campion, La théorie de labus des droits, Paris-Bruxellas, 1 935, ns. 8 e ss.
apudAlvino Lima, op. cit., p. 327.
(17) Léon e Henry Mazeaud, Traitéthéorique etpratique de la responsabilité civile,
délictuelle et contractuelle, 2. ed., Paris, 1 934, vol. 1, n. 555, apud Alvino Lima,
idem, ibidem.
(18) Josserand, Évolutions etActualités — Conferences de droit civil, Paris, 1936, p.
74, apudAlvino Lima, idem, ibidem.
(19) Butera, Codjce civile italiano, p. 38, apud Alvino Lima, idem, ibidem.
(20) Enneccerus, Tratado de Derecho Civil, Tomo I, vol. 1, Parte Geral, 1a Parte, §
65, p. 285, e Tratado de Derecho Civil, Tomo I, vol 11, Parte Geral, 2.a parte, § 239,
p. 1 .076.
(21) Giuseppe Grosso, op. cit., p. 162.
(22) Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 17 a 19.
(23) Martín Bernal, op. cit., p. 26 e 27.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
embora existam ali alguns casos de vedação da prática de atos lesivos sem utilidade
própria, mas antes com interesse de lesar.24 Não obstante, interessa pôr em relevo
a elaboração prudencial daquela época, a riqueza do direito pretoriano na tutela de
novas pretensões, o trabalho de adequação das velhas fórmulas às exigências
históricas,25 numa atitude tópica que, sem dúvida, acabou influenciando o
desenvolvimento da teoria da aemulatio no direito medieval.
Com efeito, alguns autores vêem na Idade Média a origem mais remota da doutrina
do abuso do direito, lastreada na aemulatio. Luis Alberto Warat, entretanto, identifica
na idéia da separação de poderes o pressuposto para o florescimento da teoria do
abuso do direito, condição esta que não havia no direito romano e tampouco no
direito medieval, e que somente irá surgir com a Revolução France- sa.26 Fernando
Augusto Cunha de Sá, por sua vez, entende que somente se pode falar de uma
teoria do abuso do direito no contexto histórico-social do liberalismo capitalista da
segunda metade do séc. XX, que coincide com a derrocada do formalismo
jurídico.27
De qualquer forma, não há negar que a proibição dos atos de emulação, fruto da
influência da moral cristã, que reprovava o
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(24) Idem, p. 19 e 27; igualmente, Mario Rotondi, Instituiciones de Dere- cho
Privado, Barcelona, Labor S.A., 1953, p. 99; Fernández Sessarego (op. cit., p. 97) e
Pontes de Miranda, Tratado, Tomo LIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1966, p. 66.
(25) Giuseppe Grosso, op. cit., p. 1 6 l; ver, igualmente, Fernández Sessarego (op.
cit., p. 98) e Luis Alberto Warat, Abuso del derecho y lagunas de Ia Iey, Buenos
Aires, Abeledo-Perrot, 1969, p. 41 e 42.
(26) Warat, op. cit., p.43.
(27) Cunha de Sá, op. cit., p. 49 e 50; Jorge Manuel Coutinho de Abreu, reportando-
se a Cunha de Sá, depois de fazer ligeira referência a uma hipotética presença do
abuso do direito entre os romanos, diz, citando Pietro Rescigno (Labuso del diritto, in
Rivista di Diritto Civile, Parte 1,1965. p. 218), que a doutrina só ganhou consistência
no final do séc. XIX, com o crescimento das contradições da sociedade capitalista e
com a derrocada do positivismo jurídico (Do abuso do Direito, Coimbra, Livraria
Almedina, 1983, p. 13); no mesmo sentido, Fernández Sessarego, que também
invoca a lição do jurista italiano (op. cit., p. 1 1 8 e ss.).
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
exercício dos direitos de maneira prejudicial ao interesse dos outros, alcançou
grande desenvolvimento não só no campo dos direitos reais como também na esfera
das obrigações, convertendo-se em verdadeira regra ou princípio, do que é prova a
existência de diversas presunções — que recorrem às noções de uso extraordinário
e de utilidade do exercício do direito — relativas ao animus nocendi ou ao animus
vexandi.28
A proibição dos atos emulativos foi consagrada na Lei de Parti- das (1256), que tem
influência dos direitos romano e canônico, particularmente na Lei XIX, Título XXXII
da Partida XXI, relativa ao uso da água entre vizinhos, e na Lei XIX, Título XXXII, da
Partida 111, que veda a escavação de um poço sem utilidade e com o único
propósito de molestar o vizinho.29 No Código Civil da Prússia (1794), Primeira
Parte, Título VI, § 36 e 37, também é possível encontrar dispositivo genérico acerca
dos atos emulativos: o que exerce seu direito dentro dos limites próprios, não é
obrigado a reparar o dano que causa a outrem, mas deve repará-lo, quando resulta
claramente das circunstâncias que, entre algumas maneiras possíveis de exercício
de seu direito, foi escolhida a que é prejudicial a outrem, com intenção de lhe
acarretar dano.30
Mas sobreleva, no campo da construção do conceito de abuso do direito, a
percepção, ainda na Idade Média, da existência de
Início de nota de rodapé
(28) Luís Alberto Warat (op. cit., p. 44), Fernández Sessarego (op. cit., p. 1 0 1) e
Martín Bernal (op. cit., p. 30), os dois primeiros reportando-se a Henoch Aguiar,
Hechos y actosjurídicos, Buenos Aires, Tea, 1950, tomo 11, p. 83.
(29) Esta referência à Lei das Sete Partidas do Rei de Castela, Afonso X, que
influenciou as primeiras Ordenações, encontra-se, dentre vários auto- res, em Luís
Alberto Warat (op. cit., p. 44 e 45) e Alvino Lima (op. cit., p. 328), ambos reportando-
se, tanto quanto os demais, a Henoch Aguiar, que escreve sobre o assunto em dois
textos distintos, Las Siete Parti- das del Rey don Afonso el Sabio tomo 11, p. 776, e
Actos ilicitos — Responsabilidad civil en la doctrina y en Codigo Civil, p. 83.
(30) Planiol, Traité Élémentajre de Droit Civil, tome I, cinquième édition, Paris,
Librairie Générale de Droit et de Jurisprndence, 1950, n 170, p. 76 e 77, e Aivino
Lima (op. cit., p. 328).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
limites no exercício dos direitos, que é consequência das novas relações de
vizinhança, superada a fase de uma economia primitiva e de uma indústria
embrionária. Assim, ao lado da teoria da emulação, de viés subjetivista, surge uma
outra concepção, de natureza objetivista, que não leva em conta a intenção de lesar,
mas sim o efetivo resultado lesivo. Trata-se da teoria das imissões, entendida esta
última expressão como penetração de ruídos, calor, fumaça, odores, enfim, de toda
sorte de incômodos que extrapolem o limite da normalidade e da utilidade. Com isto,
a idéia de ilicitude vai-se alargando e a noção de responsabilidade também.31
É interessante perceber como essa concepção mais elástica da figura do abuso do
direito foi, pouco a pouco, ganhando corpo, a despeito mesmo da concepção
individualista e idealista do Código Civil napoleônico, que supunha não deixar nada
ao arbítrio do intérprete, na expressão de Laurent. O Código de 1804 considerou
que a única maneira de evitar que o espírito reacionário dos juízes pudesse se
confrontar com as liberdades individuais era a interpretação literal dos seus
dispositivos, como se isto fosse possível.
No dizer de Pontes de Miranda, com o movimento de codificação, que ossifica o
direito, dando-lhe rigeza oficial, assiste-se ao ocaso dos direitos resistentes. A
renovação jurídica, que se operava no terreno político, precisava da noção
absolutista dos direitos subjetivos para se erguer contra o absolutismo do antigo
regime. Os códigos do séc. XIX, segundo o jurista brasileiro, são frutos imediatos ou
retardados da época revolucionária ou do seu individualismo pontiagudo. Nesse
contexto, inexiste lugar para a noção de abuso do direito.32
Início de nota de rodapé
(31) Rotondi, op. cit., p 99. Martín Bernal, op. cit., p. 31 e verso; Fernández
Sessarego, op. cit., p. 103 e 104; Ugo Gualazzini, Abuso del diritto (Diritto
Intermedio) in Enciclopedia del Diritto, vol. 1, Giuffrè Editore, p. 163-165.
(32) Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo LIII, Rio
de Janeiro, Borsoi, 1 966, p. 70. Alvino Lima também registra um eclipse do princípio
proibitivo dos atos emulativos a partir do movi- mento de codificação (op. cit., p.
328). A propósito da evolução histórica da noção de codificação, v. François Geny,
Méthode dinterprétation
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
Mas, por mais paradoxal que possa parecer, foi exatamente esse espírito
individualista que gestou a concepção moderna do abuso do direito, como forma de
temperar, mantida a aparência de legalidade, o excessivo egoísmo liberal-burguês.
A idéia da tripartição dos poderes, legada de Aristóteles e de John Locke, também
participa deste processo de emancipação do abuso do direito em relação às suas
bases morais, pois a norma escrita, a ser observada pelos juízes, passa a
estabelecer limites que separam o direito dos fatos sociais. Assim, não tardou a
jurisprudência francesa em demonstrar o idealismo contido no brocardo in claris
cessat interpretatio, na base da interpretação dos arts. 1382 e 1383 do Código Civil.
No final do século XIX, também os autores franceses travaram acesa controvérsia
acerca do abuso do direito.
A partir do processo de urbanização e industrialização, os tribunais franceses
passaram a se ocupar não só de situações em que o direito era exercido com o
manifesto propósito de prejudicar, sem utilidade própria, como também das
hipóteses de exercício antissocial do direito previsto em lei. Tanto a vertente
subjetivista, caudatária da teoria da aemulatio, desenvolvida no direito romano e no
direito medieval, como a vertente objetivista, inspirada nas concepções de
solidariedade social, vigentes no século XIX,33 buscam no artigo 1382 do Código
Civil francês o seu fundamento legal.34
São conhecidas as decisões dos tribunais franceses no campo do direito de
propriedade. Cita-se, por exemplo, o julgado da Corte de Cassação, de 1826, a
propósito da emissão de fumaça, nociva aos vizinhos, proveniente de uma indústria
química. Igualmente, a Corte
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et sources en droit privé positif tomo I, Paris, Librairie Générale de Droit etde
Jurisprudence, 1919, p. 73-84; v., igualmente, Planiol, op. cit., ns. 56 e 1 13, p. 24,
49 e 50, e Jean Carbonnier, Droit Civil, Tomo I, Paris, Presses Universitaires de
France, 1955, p. 146.
(33) Charmont, LAbus du Droit, in Revue Trimestrielle de Droit Civil, tomo I, Paris,
Librairie de Ia Société du Recueil Général des Lois & des Arréts, 1902, p. 121.
(34) Diz o artigo 1 382 do Código Civil francês: “qualquer ato do homem que cause
prejuízo a outrem obriga aquele que tenha concorrido com culpa a repará-lo”.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
de Douai, em 1 854, decidiu que a fumaça das chaminés da fábrica, se excessiva,
dá Iugar à legítima pretensão do vizinho, consistente em impedir o uso imoderado de
um direito. A Corte de Colmar, por sua vez, ordenou a demolição de uma falsa
chaminé, construída com o único objetivo de retirar a iluminação natural do prédio
vizinho. E assim decidiu sob fundamento de que a construção fora feita somente
para satisfazer sentimento de rancor e não interesse de ordem econômica ou
moral.35
A doutrina costuma referir-se a condutas que, consideradas em si mesmas, são
Iícitas, irreprováveis, mas que do ponto de vista da intenção e finalidade mostram-se
abusivas. Aqui, o espírito de emulação transparece claramente no resultado da
conduta: se o titular do direito causa prejuízo a outrem, sem nenhuma utilidade,
configurado está, salvo erro de cálculo, o exercício doloso. E o caso da execução de
música que espanta a caça ou da instalação de enormes lanças de ferro em uma
propriedade, que acabam por rasgar balões ou dirigíveis em manobra.36 Somam-se
a estes casos judiciais, que j á se tornaram célebres na doutrina, a conduta do
proprietário que coloca tapumes de altura desproporcional na divisa de sua
propriedade, lançando permanente sombra sobre o imóvel vizinho, bem como a
obstrução de um veio de água. São atos lícitos, em si mesmos, mas que se tornam
reprováveis quando são feitos com intenção de prejudicar o vizinho, sem utilidade
própria.37
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(35) Saleilles, De l´abus de droit — rapport présenté a la première sous- commission
de la comission de revision du Code Civil, in Bulletin de la Société D
ÉtudesLégislatives, Paris,ArthurRousseau, Editeur, quatrième anée, 1 905, p. 330-33
1; paradigmática é a decisão da corte de Colmar, também citada por Ripert (La régle
morale dans les obligations civiles, quatrième édition, Paris, Librairie Générale de
Droitet delurisprudence, I 949, p. 1 7 1), por Colin e Capitant (Traité de Droit Civil,
tomo 11, Paris, Librairie Dalloz, 1 959, p. 624), por Aubry et Rau (Cours de Droit Civil
Français, cinquième édition, tome sixième, Paris, Imprimierie et Librairie Générale de
Jurisprudence Marchal et Billard, 1920, p. 342) e por Enneccerus, op. cit., tomo I, 2.
parte, p. 1 .076.
(36) Ripert, op. cit., p. 171.
(37) Idem, ibidem; veja-se que a tese do abuso do direito, de matiz subjetivista,
longe de negar a existência de direitos subjetivos, reafirma-os,
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
Abuso do direito, no dizer de Charmont, é uma velha idéia, que encontra origem
remota entre os romanos, retomada em pleno século XIX, como marco de uma
etapa na evolução da consciência jurídica dos franceses, fruto dos sentimentos e
das necessidades de uma época, como bem o disse, igualmente, Porcherot.38
Neste passo, Charmont faz um breve balanço das transformações em curso naquela
época. Escrevendo em 1 902, o civilista diz que o interesse pela doutrina do abuso
do direito ressurgira, havia então quinze anos, na base do caso concreto. Ela é o
repositório das expectativas de uma sociedade em ebulição, de mudanças que
interferem na maneira de ser e de viver dos povos, influenciando o campo das
ciências culturais, particularmente a concepção do direito. Na Alemanha, são o
imperativo e a ação coercitiva que asseguram o respeito à norma. A força e o direito
acabam por se confundir. A Inglaterra dá maior importância ao aspecto utilitário.
Para a Escola de Bentham e de James Mill, o direito não é mais do que um meio de
legitimar e satisfazer interesses. Na França, sob a influência da filosofia do século
XVIII, procurou-se o fundamento do direito na idéia de liberdade; o direito é, ao
mesmo tempo, a consequência e a condição da liberdade; é uma faculdade de agir,
uma garantia contra o Estado, inerente à natureza humana. Não importam os
resultados da conduta, limitando-se a lei a dispor sobre o dever de reparar o dano no
caso de prejuízo.39
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
colocando acento na noção de interesse. Destarte, se é certo que o direito subjetivo
consiste no interesse juridicamente protegido, no dizer de lhering, não menos certo é
também que, inexistindo interesse (sério e legítimo), não se pode falarem direito
(Mario Rotondi, Le rolede la notion de labus du droit, in Revue de Droit Civil, Paris,
Sirey, 1980, p. 66).
(38) Porcherot, apud Charmont, op. cit., p. 1 19; Saleilles, tomando de empréstimo a
referência feita por Virgile Rossel, a propósito do Projeto do Código Civil suíço, diz
que a previsão normativa do abuso do direito deveria ser expressão da razão e da
consciência do povo francês (op. cit., p. 349 e 350).
(39) Charmont, idem, ibidem; Everardo da Cunha Luna, ao lado da referência ao
Iiberalismo econômico inglês e ao idealismo alemão, campo fértil para o absolutismo
dos direitos individuais, também faz alusão ao individualismo dos anglo-saxônicos.
Diz, entretanto que, para Luis
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Mas com a crise do Iiberalismo, percebeu-se a quantas injustiças uma tal idéia de
liberdade, de expressão absoluta, rendia ensejo. A jurisprudência tentou corrigir
estas injustiças. A par dela, a doutrina colocou ênfase na precariedade dos limites
que se buscava estabelecer entre Direito e Moral, desguarnecendo a posição
daqueles que sustentavam que um ato não pode ser ao mesmo tempo conforme e
contrário ao direito. 40 E o caso de Planiol, para quem
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Legaz y Lacambra, a noção de abuso do direito é devida ao utilitarismo de Bentham
(Everardo da Cunha Luna, Abuso do Direito, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 980,
p. 44 e 90). Em outra passagem, considera que o equilíbrio britânico não poderia
deixar-se esvair por um individuaIismo feroz, a ponto de prejudicar as boas relações
dos indivíduos em sociedade, porque, apesar de individualistas típicos, ninguém
melhor que ingleses têm a consciência do social. O social, entre britânicos, é uma
extensão do individual, e, não como entre latinos, uma pedra no meio do caminho.
Para uma análise crítica do utilitarismo de Bentham (filosofia fundada na ética do
prazer de Aristipo e Epicuro), que se tornou o ancestral mais próximo do Estado de
Bem-Estar Social, v. Giorgio DeI Vecchio, Lições de Filosofia do Direito, Coimbra,
Arménio Ama- do, 1 95 1 , p. 402-405; John Rawls, Uma Teoria da Justiça, Brasília,
UnB, Coleção Pensamento Político, vol. 50, p. 40-48 e 398-406; David Lyons, As
regras morais e a ética, Campinas, Papirus Editora, 1990, p. 11- 1 42, 1 54 e 1 67, e
Alf Ross, Sobre el Derecho y la Justicia, Buenos Aires, Editorial Universitaria de
Buenos Aires, 1997, p. 357-364).
(40) A propósito do conteúdo moral do conceito de abuso do direito e do papel
dajurisprudência na elaboração desta categoria, ver Mario Rotondi, Le role de la
notion de labus du droit, in Revue de Droit Civil, Paris, Sirey, 1 980; Ripert observa
que, a rigor, a simples intenção de prejudicar não implica necessariamente o
reconhecimento do abuso. EIa está presente, por exemplo, na greve ou no lock-out.
Nestes casos, entretanto, crê- se que se trata de uma estratégia Iegítima para
alcançar objetivos que se reputa igualmente legítimos. Vê-se — diz Ripert — a
satisfação do dever moral dominar o exercício dos direitos, e, se o juiz não tem uma
clara concepção de dever moral, ele será incapaz de julgar se há abuso do direito
(op. cit., p. 178 e 179). Planiol, a propósito, pensa de maneira diversa. É inegável —
diz ele — que toda ação, todo trabalho, é um fato de concorrência econômica e
social. Todo homem que adquire uma superioridade em um ramo qualquer de
atividade prejudica outros e é seu direito prejudicar. A intenção de prejudicar é outra
coisa. Ela reside no
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
a expressão abuso do direito é uma logomaquia. O homem abusa das coisas e não
dos direitos. Quando saímos dos limites estabelecidos pela norma — diz ele —
agimos sem direito.41 Mas tem-se de reconhecer que é precisamente na noção de
limites do direito que reside toda a controvérsia da teoria, diante da concepção
absoluta vigente entre os franceses, do que é mostra a posição dos irmãos
Mazeaud.42
Com o tempo, até mesmo a tese subjetivista da noção de abuso do direito,
verdadeiro desdobramento da teoria dos atos ilícitos, mostrou-se insuficiente para
atender a prodigalidade e profusão das novas situações engendradas pela
sociedade industrial. Mais que isto, à falta de um rigoroso sistema de presunções,
torna-se árdua a tarefa de perquirir o móvel e a intenção do agente.43 E a crítica de
Saleilles e de Geny,45 por exemplo. Bem por isso, jurisprudência e
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ato que não representa nenhuma utilidade para o agente e que está inspirado no
único objetivo de prejudicar (Planiol, Traité Élémentaire de Droit Civil, tome I,
troisième édition, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1949, p.
337).
(41) Planiol, op. cit., tomo 11, p. 336 e 337; tomo I, p. 160. Nesse mesmo sentido,
Lodovico Barassi, lnstituciones de Derecho Civil, vol. 1, Barcelona, José M. Bosch, 1
955, p. 2 1 9 e 220. Para Léon Duguit, a doutrina do abuso do direito não passa de
um expediente inventado pelos juristas, em um certo momento histórico, para
atenuar os efeitos da comcepção absoluta do direito subjetivo de propriedade (Las
transformaciones del Derecho privado desde el código Napoleón, Madrid, F. Beltran,
1921, p. 124). Como observa Cunha de Sá, Duguit é coerente, pois negando a
existência de direitos subjetivos, não poderia mesmo aceitar a ocorrência de abuso
(op. cit., p. 293).
(42) Mazeaud & Mazeaud, Traité théorique et pratique de la responsabilité civile —
déllictuelle et contractuelle, tomo I, Paris, Librairie Générale de Droit et de
Jurisprudence, 1947, p. 520 e 521.
(43) Aubry et Rau, op. cit., p. 340 e 342.
(44) Como diz Saleilles, criticando o recurso à psicologia individual, não se pode
supor que alguém fosse tão ingênuo a ponto de confessar que não tinha outro
objetivo senão o de prejudicar. Sempre restaria a alegação de um interesse
individual (Étude surlobligation, 2. ed., p. 371, apud Charmont, op. cit., p. 123).
(45) François Geny, Méthode d’ interprétation et sources en droit privé positif p. 544,
apud Charmont, op. cit., p. 123.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
doutrina evoluíram para a concepção do uso anormal do direito. Segundo Saleilles, é
o exercício contrário ao destino econômico ou social do direito subjetivo, aquele
reprovado pela consciência pública, que caracteriza o abuso, já que todo direito, do
ponto de vista social, é relativo.46 Para Geny, igualmente, só será dado descobrir a
medida justa dos direitos individuais à vista do seu objetivo econômico e social. 47
Charmont, por sua vez, reconhece que a intenção de prejudicar não é o único
critério para o reconhecimento do abuso do direito; o objetivo social e econômico
parece ser um critério mais adequado.48
Josserand, a princípio, também sustenta uma posição objetivista, filiando-se ao
ponto de vista da finalidade social do direito subjetivo. Assim, abusa do seu direito
aquele que o exerce em desrespeito à sua finalidade e espírito próprios, em
contrariedade às regras sociais. Ao lado dos direitos altruístas, concedidos ao titular
para satisfação de interesses que lhe são exteriores, vislumbra a existência de
outros tantos. Classifica-os como direitos não causados, prer-rogativas de fronteiras
bem estreitas e demarcadas, relativas a direitos abstratos e peremptórios, que
poderiam ser exercidos de modo absoluto, e direitos de espírito egoísta, categoria
composta por prerrogativas cuja finalidade social seria mesmo a satisfação dos
interesses pessoais do titular do direito. Quanto a estes últimos, cabe citar o
exemplo do pátrio poder. Veja-se que ainda aqui se está na esfera de produtos
sociais, razão pela qual seu exercício, mesmo voltado ao interesse individual, não
pode se confrontar com as finalidades da comunidade que os concedeu. Até os
egoísmos individuais são postos a serviço da sociedade, pelo que — conclui
Josserand — a concepção de direitos subjetivos integralmente egoístas, artificial e
metafísica, não mais se justifica.49 Mais tarde, por
Início de nota de rodapé
(46) Saleilles, op. cit., apud Charmont, op. cit., idem, ibidem.
(47) Geny, op. cit., p. 544, apudCharmont, op. cit., p. 123.
(48) Charmont, op. cit., p. 124.
(49) Josserand, De l’esprit des droits et de leur relativité — Théorie dite de l’ Abus
des Droits, Paris, 1927, p. 388 e ss., apud Cunha de Sá, op. cit., p. 405 e 406;
igualmente, Josserand, De labus des droits, 1905, apud Planiol, op. cit., tomo II,
p.338 e 339, e tomo I, p. 160 e 1 6 1. Para Ripert,
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
reconhecer a fragilidade do critério finalista, que considera abstrato e fugidio, acabou
recorrendo à noção de motivo legítimo, com o que deu particular relevo ao elemento
subjetivo.50
Partindo da mesma classificação tricotômica, acima apontada, Jean Dabin sustenta
que os direitos altruístas são, em verdade, direitos-função, destinados ao
desenvolvimento de certas atividades de interesse comum (a família, a empresa, o
Estado, os agrupamentos políticos etc.). Neste sentido, o direito subjetivo tomaria a
feição de uma competência. Tanto os direitos egoístas quanto os direitos-função são
dados pelo legislador em vista de certas finalida- des e sob condição de que sejam
usados de modo determinado. O mau uso dos direitos-função configuraria explícita
ilegalidade, na medida em que contraria a própria norma, subvertendo a natureza
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
o campo de aplicação da teoria do abuso do direito estaria restrito aos atos que,
irreprováveis na aparência, tenham sido inspirados pela in- tenção de prejudicar o
outro. Mas o jurista da Faculdade de Paris também vislumbra uma categoria
semelhante a dos direitos egoístas. Trata-se dos direitos arbitrários, aos quais,
entretanto, diferentemente do que ocorre a Josserand, não se aplica a idéia de
abuso. Esse arbítrio é necessário, porquanto o titular é o único juiz do dever que lhe
incumbe, o que se toma ainda mais claro quando se faz repousar a teoria do abuso
sobre o fundamento moral. Isto porque há motivos tão pessoais que nenhuma
apreciação valorativa é possível. Exemplifica com a oposição dos pais ao casamento
dos filhos, domínio em que a apreciação das razões da conduta escapa à
apreciação do juiz, que somente poderá se ocupar desta questão quando houver
expressa previsão Iegal (Ripert, op. cit., p. 174 e 175; no mesmo sentido, Planiol, op.
cit., tomo 11, p. 341, citando decisão da Corte de Lyon, e também Colin e Capitant,
op. cit., p. 630 e 631).
(50) Josserand, De l’ esprit des droits et de leur relativité — Théorie dite de l’Abus
des Droits, Paris, 1950, p. 375, apud Everardo da Cunha Luna, op. cit., p. 101 e 102.
Ripert, criticando o critério de motivo legítimo, teme o arbítrio judicial, pois caberia ao
juiz uma delicada apreciação, que supõe um nível superior da moralidade pública.
Pelas mesmas razões, Ripert também discorda do finalismo sociológico defendido
por Josserand, nele reconhecendo uma tendência de colocar todas as ações
humanas sob o controle judicial, do que resultaria o fim da idéia de direito subjetivo,
ameaçado pelo estatismo e pelo comunismo (Ripert, op. cit., p. 180 a 183).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
específica do direito, não só no aspecto da realidade social e moral, como também
no plano do direito positivo. De outra forma, o mau uso dos direitos egoístas
(exceção feita aos estáticos, que não pressupõem a idéia de uso, pois o titular deles
retiraria proveito pelo só fato de existirem) configura simples transposição de limites
morais, já que seu titular pode fazer deles o que bem entenda. Daí porque, para
Dabin, a teoria do abuso do direito representa o corretivo que a legalidade
postula.51
A posição objetivista de Saleilles, que se pode encontrar na segunda edição de sua
Teoria Geral das Obrigações,52 parece ter sido revista, entretanto, por ocasião das
discussões na comissão de revisão do Código Civil.53 Tratava-se de saber se a
construção pretoria- na e doutrinária do abuso do direito, feita na base do artigo
1382, que se ocupa das obrigações por atos ilícitos, estaria a merecer expressa
previsão normativa, em dispositivo próprio, quer como des- dobramento do próprio
artigo, quer na parte geral, no título preliminar do Código, ou, quando menos, em um
parágrafo inserido no artigo
De início, Saleilles observa que, em se concebendo o abuso como ato contrário ao
direito, não basta cogitar de simples reparação, matéria que está no domínio do
artigo 1382 do Código Civil. Necessário prevenir o dano, impedir o ato abusivo.
Neste aspecto, Saleilles chama a atenção para uma particular evolução da teoria da
responsabilidade civil, delineada pela jurisprudência francesa no
Início da nota de rodapé
(51) Cunha de Sá, op. cit., p. 380 a 387.
(52) Saleilles, Étude sur la théorie générale de l’obligation, daprès le premier projet
de Code Civil pour l’ empire allemand, apud Carlos Fernández Sessarego (Abuso del
Derecho, Buenos Aires, Astrea, 1992, p. 1 98 e 1 99), na primeira edição dessa
obra, a posição de Saleilles, segundo observa Carlos Fernández Sessarego, ainda é
subjetivista.
(53) Saleilles, De l’abus de droit — Rapport présenté a la première sous-
commission de la commission de revision du Code Civil, in Bulletin de la SociétéD
Etudes Législatives, Paris, Arthur Rousseau, Editeur, 1 905.
(54) Diz o artigo 6 do Código Civil francês: não se pode derrogar, por convenções
particulares, as Ieis que interessam a ordem pública e aos bons costumes.
Fim da nota de rodapé
Página 33
TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
terreno dos fatos industriais e no domínio do direito administrativo. Trata-se da teoria
do risco, segundo a qual a responsabilidade não está fundada na noção de culpa,
derivando do simples exercício de atividades que, pela sua própria natureza, são
potencialmente ofensivas, conquanto lícitas.55 Saleilles não vislumbra na teoria do
risco uma derivação ou uma nuança da teoria do abuso, porquanto o caráter
antissocial do fato não está na intenção do agente, diversamente do que ocorre na
hipótese do ato abusivo. Neste último caso, a conduta implica não só o dever de
reparar como também o dever de abstenção da prática anormal do direito, o que
refoge ao âmbito do artigo 1382, encontrando previsão mais adequada na parte
geral do Código Civil, como complemento do artigo 6. Admite, entretanto, que a
jurisprudência francesa, aplicando o artigo 1382, tem-se posicionado em favor da
simples reparação do ato abusivo e não no sentido de obstá-lo, com o que os
tribunais atribuem as mesmas consequências jurídicas aos casos intencionais e não-
intencionais de uso antissocial do direito.56 A partir dessa exposição, Saleilles,
depois de discorrer sobre o abuso do direito na esfera trabalhista e no campo do
processo civil, deixa claro que a configuração desta prática pressupõe a intenção de
prejudicar: um ato cujo efeito só pode ser o de prejudicar o outro, sem interesse
apreciável e legítimo, não pode nunca constituir exercício lícito de um direito. 57 O
conceito, assim delimitado, impediria o arbítrio judicial, configurado no apelo às
exigências da equidade e às conveniências sociais. 58
Início da nota de rodapé
(55) Saleilles, op. cit., p. 328-337; Ripert observa que a teoria do risco representou o
primeiro abalo às sólidas bases da concepção absolutista de direito subjetivo,
vigente no séc. XIX (op. cit., p. 159).
(56) Idem, op. cit., p. 338-341.
(57) Ideni, p. 348.
(56) Idem, p. 345; reforçando a tese subjetivista de Saleilles, Ripert diz que
eventuais dificuldades que o juiz possa ter na análise da intenção do titular do direito
não serão muito diferentes daquelas que comumente enfrenta ao apreciar a fraude e
a boa-fé; E ilusório pensar, é ilusório querer criar um direito civil puramente objetivo
e julgar os fatos sem se ocupar das intenções (op. cit., p. 167).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
O que se vê é que a doutrina foi levada a enfrentar temas suscitados pela
jurisprudência, consagrando várias aplicações daquilo que ficou mais tarde
conhecido como teoria do abuso do direito. Os julgados das cortes francesas não se
limitam às hipóteses em que esteja provada a intenção de prejudicar, reconhecendo
a prática de abuso também nos casos de conduta culposa (quase-delito). Está- se
aqui, tanto no que diz respeito ao dolo quanto no que concerne à culpa, no campo
da responsabilidade civil, velha conhecida dos franceses. O critério dos motivos
ilegítimos, da finalidade antissocial do ato ou do uso anormal do direito oferece,
entretanto, algumas dificuldades, como já foi visto. Não obstante, encontram-se
diversos julgados que também o consagram.59 Igualmente, as restrições à
aplicação da noção de abuso aos chamados direitos arbitrários, que se pode
encontrar na doutrina, têm em conta construções pretorianas.60
As consequências práticas dependem do critério adotado. Colin e Capitant registram
que alguns códigos modernos, a exemplo do soviético e do suíço, reservam o
tratamento da questão do abuso do direito para a parte geral, diferentemente do que
ocorre com a lei e a jurisprudência francesa, as quais trabalham no campo da culpa
delitual. Com isso, aqueles códigos equiparam o exercício abusivo à prática de um
ato sem direito, que implica não só o dever de indenizar, como também o dever de
abstenção (sanction en nature). Entretanto, na lição desses civilistas franceses, quer
se reconheça a proibição do abuso do direito como princípio geral, quer se enquadre
o abuso no domínio da culpa, certo é que se estará tratando de um ato ilícito, que
não deveria ter sido praticado. Diversamente da interpretação feita por Saleilles,
Colin e Capitant observam que a jurisprudência francesa nunca hesitou em ordenar
a cessação do prejuízo e nem mesmo em impedir que a ação lesiva fosse
praticada.61
Início de nota de rodapé
(59) Colin e Capitant, op. cit., p. 629 e 630; igualmente, Planiol, op. cit., tomo 1,p.
1.027.
(60) Idem, ibidem, p. 55.
(61) Registre-se, entretanto, como já fazia Charmont, citando Saleilles (op. cit., p. 1 1
6 e 1 1 7), que, em certos casos, a sanction en nature não é aplicável: o patrão não
pode ser obrigado a contratar novamente no caso de
Fim da nota de rodapé
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
1.2 A doutrina brasileira
Até 1822, o Brasil, primeiramente na condição de colônia e, depois (com a Carta de
Lei de 1815), elevado a Reino Unido de Portugal, obedecia às leis Iusitanas, mais
particularmente, a par da profusa legislação extravagante, às Ordenações Filipinas.
Nelas não se encontra preceito específico acerca do abuso do direito que, em
Portugal, é teoria desenvolvida em grande parte pela doutrina e, de outra, pelos
tribunais.62 Bem por isso, nas leis que passaram a viger no Brasil, por força da
recepção do direito português, não havia particular referência ao abuso do direito. O
Código Comercial (1 850) tem uma norma (artigo 84, n. 3) reservada ao abuso de
confiança, questão distinta. Também omissos eram os Regulamentos 737 e 738,
expedidos em cumprimento àquele Código, e o Código Criminal de 1830, que
substituiu o Capítulo V das Ordenações Filipinas.
Em matéria penal, a referência ao tema do ato abusivo surgiu com o Código de 1890
que, no artigo 338, n. 7, incluía entre as for- mas de estelionato o fato de abusar, em
próprio ou alheio proveito,
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
despedida injusta, pois isto violaria a liberdade individual; da mesma forma, o
industrial cuja fábrica polui não pode ser obrigado a demolí-la, pois o ilícito não é a
existência da indústria, mas a emissão abusiva de fumaça (Colin e Capitant, op. cit.,
p. 634).
(62) É certo que, no Livro V § § 42 e 1 1 8, das Ordenações Filipinas, já havia
sanções para a prática de ofensas irrogadas em juízo e para a repressão da
demanda maliciosa, que também encontra previsão no Livro 111, Título LXVII,
inspirado nas Ordenações Manuelinas (Livro 111, Título 5 1, § 54), segundo registro
de Cândido Mendes de Almeida (C6digoFilipino, ed. 1 870, 14. ed., p. 67 1, citado
por José Olímpio de Castro Filho, Abuso do Direito no Processo Civil, Rio de
Janeiro, Forense, 1960, p. 74). Outras tantas disposições processuais, que
acabaram, inclusive, por influenciar o Código de Processo Civil português de 1 876,
também têm lugar nas Ordenações Filipinas (Castro Filho, op. cit., p. 58-60; 76-79).
Todavia, como será visto mais adiante, falta uma consagração expressa daquilo que
mais tarde se convencionou chamar de abuso do direito. Nem mesmo no Código
Civil de 1867 é possível encontrá-la, conquanto reconheça a doutrina portuguesa,
invocando o testemunho de Tito Arantes, que, no art. 13. ° do diploma de Seabra,
houvesse referência indireta à questão (Cunha de Sá, op. cit., p. 1 12 e 1 13).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
das paixões ou inexperiência de menor, interdito ou incapaz, e fazê-lo subscrever
ato que importe efeito jurídico em dano dele ou de outrem....63 No Decreto-Lei
3.688, de 03 de outubro de 1941, há duas referências ao tema, relativas ao abuso
de profissão ou atividade (arts. 12, alínea a, e 35).
Como aponta Walter Vieira do Nascimento, a codificação das leis brasileiras, a
contar de 1822, processou-se gradativamente nos vários ramos do direito, exceção
feita às leis civis, que somente em 1 857 foram consolidadas por Teixeira de Freitas.
Mais tarde, esse trabalho do renomado civilista brasileiro serviu a uma codificação
civil, escrito que se tornou célebre como Esboço. A obra mereceu o elogio de Clóvis
Beviláqua e do autor do Código Civil Argentino de 1869, Vélez Sársfield, que se
disse nela inspirado.64
No Esboço de Teixeira de Freitas, tanto quanto no Código Civil argentino de 1869,
inexiste qualquer referência à questão do abuso do direito. Fernández Sessarego,
comentando o fato, diz que não se poderia esperar que o extraordinário Código Civil
de Vélez reconhecesse, de modo expresso e claro, uma teoria contrária aos
princípios individualistas que impregnavam as disposições dos códigos herdeiros da
codificação francesa de 1 804. Mas, por certo, Vélez não ignorava os princípios
relativos à proibição dos atos abusivos, do que são prova as fontes consultadas para
a elaboração do Código, a exemplo da jurisprudência francesa e do Código Civil da
Prússia, datado de 1 794. Certamente, o mesmo se passa com Teixeira de Freitas,
autêntico gênio, na expressão de Vieira do Nascimento. Nem mesmo em seu
Vocabulário Jurídico fez o autor do Esboço qualquer referência ao tema.65
Início de nota de rodapé
(63) Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, vol. 7, Rio de Janeiro, Forense,
1958, p. 265.
(64) Walter Vieira do Nascimento, Lições de História do Direito, Rio de Janeiro,
Zahar, 1979, p. 145 e 146.
(65) Na parte relativa aos fatos em geral (fatos voluntários, atos jurídicos e atos
ilícitos — arts. 43 1 -445 e arts. 822 e ss.), inexiste referência ao tema do abuso, que
aí encontraria sua adequada localização (Esboço Teixeira de Freitas, Rio de Janeiro,
Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Serviço de Documentação, 1 952, vol. 1;
Teixeira de Freitas, Vocabulário
Fim da nota de rodapé
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
Outras tantas foram as tentativas de elaborar um Projeto do Código Civil, a exemplo
daquelas encetadas por José Nabuco de Araújo, Joaquim Felício dos Santos e
Antonio Coelho Rodrigues. Como anota Haroldo Valladão, Carlos de Carvalho, no
artigo 1029 de sua Consolidação, datada de 1 899, mandava indenizar no caso de
excesso no exercício do direito, fundando-se na ordem L. 4, título 2, que deixava o
juiz decidir, consideradas as circunstâncias, se o esforço fora ou não incontinente.66
Todavia, coube ao Ministro Alfredo Valladão, a propósito do Projeto de Clóvis
Beviláqua, que se discutia no Senado, levantar o problema do abuso do direito. Em
artigo publicado no Jornal do Commercio, de 04 de fevereiro de 1912, o Ministro
chamava a atenção para o tema, que já se inscrevera nos códigos da Alemanha e
da Suíça. Noticiando a viva polêmica travada entre Sailelles e Josserand, de um
lado, Planiol e Esmein de outro, Alfredo Valladão sustentava que não existem
direitos absolutos, concepção que deveria orientar o Código brasileiro, sob pena de
a legislação já nascer ultrapassada. A nosso ver — dizia no artigo — o abuso do
direito caracteriza-se pela anormalidade de seu exercício, pelo seu exercício
antissocial. Esta há de ser apreciada objetivamente, embora, em muitos casos, a
apreciação objetiva envolva a necessidade de se conhecer o elemento
psicológico.67
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Jurídico, tomo I, São Paulo, Saraiva, 1983; WalterVieira do Nascimento, op. cit., p.
146; Fernández Sessarego, op. cit., 255); a confirmar a ausência do tratamento da
questão nos projetos anteriores ao de Clóvis Beviláqua, v. Haroldo Valladão, op. cit.,
p. 12.
(66) Haroldo Valladão, Condenação do abuso do direito, in Arquivos do Ministério da
Justiça, Ano XXVI, n. 1 07, set/1 968, p. 1 2; a respeito dos anteprojetos
mencionados, v. Vieira do Nascimento, op. cit, p. 146, Pontes de Miranda, Fontes e
Evolução do Direito Civil Brasileiro, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 79-96, e
Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, 1 3. ed., vol. 1, São Paulo,
Saraiva, 1975, p. 48).
(67) — Alfredo Valladao, O abuso do direito, RT, São Paulo, p. 330-338, apud
Haroldo Valladão, op. cit., p. 12. No campo do processo civil, José Olfmpio de Castro
Filho aponta disposições esparsas do Decreto 3.084, de 1 .898, que de maneira
precursora reprimiam e preveniam o abuso do direito, seguindo a tradição das
Ordenações (op. cit., p. 80 e 81).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Clóvis Beviláqua, convidado que fora pelo então Presidente Campos Salles, colega
de congregação da Faculdade de Direito do Recife, aceitou o desafio de redigir um
Projeto de lei, que ficou pronto em seis meses. Das diversas polêmicas que ensejou,
particularmente conhecido ficou o debate suscitado por Ruy Barbosa.68 Diga- se
ainda que o Projeto, em sua redação original, não fazia referência ao exercício
regular de um direito reconhecido, mas apenas à legítima defesa, prevista no artigo
172. Como observa Haroldo Valladão, na •a reunião da Comissão Revisora, Lacerda
de Almeida sugeriu que o dispositivo fosse deslocado para o capítulo dos Atos
Ilícitos. Na 41a reunião, alterou-se a redação do artigo só para melhor caracterizar a
legítima defesa. Entretanto, na redação final do Projeto, o art. 172 passou a figurar
como artigo 181, com o acréscimo ou no exercício regular de um direito
reconhecido. Esta a redação que, sem qualquer notificação, justificativa, emenda ou
de- bate, prevaleceu na Comissão Especial da Câmara ou do Senado.69
Foi assim que se inseriu, clandestinamente, na expressão de Haroldo Valladão, 70
de maneira indireta e singular, no dizer de Alvino Lima,7 essa fórmula um tanto
misteriosa, como admite Pontes de Miranda,72 tímida e obscura, na palavra de
Pedro Baptista Martins,73 que outros tantos preferem tratar por forma
Início da nota de rodapé
(68) Ernesto Carneiro Ribeiro, A redação do Projeto do Código Civil e a réplica do Dr
Ruy Barbosa — Tréplica, 3. ed., Bahia, Livraria Progresso Editora, 1 95 I.
(69) Haroldo Valladão, op. cit., p. 13.
(70) Idem, ibidem.
(71) Alvino Lima, op. cit., p. 345; no mesmo sentido, José Olimpio de Castro Filho,
1960, op. cit., p. 84.
(72) Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Especial, tomo LI1I, Rio
de Janeiro, Borsoi 1966, p. 73.
(73) Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 92; para Roberto Goldschmidt o Anteprojeto
do Código das Obrigações, de 1941, expressa-se de maneira muito mais clara (A
Teoria do Abuso de Direito e o Anteprojeto Brasileiro de um Código das Obrigações,
Revista Forense, Rio de Janeiro, volume XCVII, Ano XLI, fasc. 487, janeiro de 1944,
p. 30.
Fim da nota de rodapé
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
negativa,74 forma oblíqua,75 fórmula a contrário sensu76 ou fórmula implícita.77
Entre os autores que admitem a consagração da teoria do abuso do direito pelo
legislador pátrio, é consenso que ela surge mesmo de uma interpretação em sentido
contrário. Partindo da regra segundo a qual o exercício regular de um direito
reconhecido não configura ato ilícito (art. 1 60, I, do Código Civil de 1 9 1 6), trata-se
de saber qual a natureza jurídica do exercício irregular A lógica deôntica não
autoriza a concluir, necessariamente, pela ilicitude (proibição), como fazem os
civilistas pátrios. O assunto será melhor desenvolvido no segundo capítulo. De
qualquer forma, já se pode adiantar que se está diante de uma solução retórica, que
se bem encontra fundamento em argumento indutivo, a contrário senso,
desconsidera, por certo, a existência de uma terceira categoria deôntica (além do
obrigatório e do proibido), que é a permissão.
Início da nota de rodapé
(74) Pontes de Miranda, Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro,
Forense, 1981, p. 162 e 163.
(75) Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro, Livraria Freitas
Bastos, 1960, p. 548.
(76) Edmundo Lins Neto, Abuso do direito — Qual o conceito que melhor se ajusta
ao direito positivo brasileiro, in Revista de Crítica Judiciária, Rio de Janeiro, Ano XX,
vol. 37, ns. 1 e 2, jan/fev de 1943, p. 27; Eduardo Espinola Filhn, Tratado de Direito
Civil Brasileiro, vol. 1, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, p. 1.939, p. 617; Carvalho
Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, 7. ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos,
vol. 3, p. 338; Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 92; Barros Monteiro, op. cit., p.28 I;
Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, l I. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995;
Claudio Antonio Soares Levada, Responsabilidade CivilporAbuso de Direito, São
Paulo, RT, nov./1990, Ano 79, p. 39. Antunes Varela considera que não há, no
Código Civil brasileiro, senão vestígios inequívocos da reação da lei contra o
exercício anormal de certos direitos. Assim é que a Ieitura do Código Civil leva à
conclusão, por argumento a contrário, de que constituem atos ilícitos os praticados
no exercício irregular de qualquer direito (O abuso do direito no sistema jurídico
brasileiro, in Revista de Direito Comparado LusoBrasileiro, ano I, n. 1, Rio de
Janeiro, Forense julho de 1982, p. 42 e 43).
(77) Sessarego, op. cit., p. 272; Cunha de Sá, op. cit., p. 89.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Na base desta construção doutrinária, os autores são levados a concluir, então, que
o exercício irregular de um direito é ato ilícito. Mais que isto, interpretando o artigo
100 do Código Civil de 1 9 1 6 também a contrário senso, concluem que a ameaça
do exercício anormal (diga-se irregular) de um direito constitui coação, violência,
ilicitude que obriga o autor a indenizar, caso haja prejuízo.78 A esta altura, surgem
algumas polêmicas, que dizem res- peito não só ao critério eleito pelo legislador,
quando reconheceu a tese do abuso do direito, como também à autonomia teórica
desta elaboração.
Clóvis Beviláqua, ao comentar o Código Civil, acabou acompanhando o Deputado
Mello Franco, que via na interpretação a contrário senso do disposto no artigo 160, I,
do Código Civil de 1916 a condenação do abuso do direito. Mais que isto, consignou
que o Código aceitou a doutrina de Saleilles.79 Plinio Barreto, em parecer publicado
em 1931, aponta a ambiguidade do registro feito por Beviláqua, porquanto, como já
foi visto, é polêmica, quando me- nos, a filiação de Saleilles à corrente objetivista.
Para o autor, há duas fases distintas no pensamento do doutrinador francês: a
primeira, de vertente objetivista e a segunda, a definitiva, de viés subjetivista. A ser
correto que o Código Civil brasileiro adotou a posição de Saleilles — conclui Plinio
Barreto — somente se poderia cogitar de sua expressão definitiva.80
Carvalho Santos, em longo e proveitoso comentário ao artigo 160, I, do Código Civil
de 1916, concorda com Plínio Barreto, dizendo que, em sendo assim, tem-se de
reconhecer que a doutrina
Início de nota de rodapé
(78) Orosimbo Nonato, Da coação como defeito do ato jurídico (ensaio) Rio de
Janeiro, Forense, 1957, p. 172 e 273; no mesmo sentido, Edmundo Lins Neto (op.
cit., p. 27) e Everardo da Cunha Luna (Abuso de Direito, 2. ed. Rio de Janeiro,
Forense, 1 988, p. 1 1 9 e 1 24). A norma do Código Civil de 1 9 1 6 corresponde à
regra do artigo 1 53 do Código Civil vigente.
(79) Clóvis Beviláqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, Rio de
Janeiro, vol. 1, Francisco Alves, 1959, p. 348.
(80) Plinio Barreto, parecer publicado na RT, São Paulo, Ano XX, vol. 79, fasc. n.
378, ago./1931, p. 51 1 e 512. A norma do Código Civil de 1916 corresponde à regra
do artigo 188, I, do Código Civil vigente.
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
do abuso do direito pertence ao campo da teoria geral do ato ilícito, o que se deduz
da própria referência ao assunto, feita pelo Código englobadamente com o ato
ilícito.8 Ocorre que, sob este ponto de vista, a doutrina subjetivista de Saleilles —
que tem por abusivo o ato cujo único efeito é o prejuízo de outrem, sem interesse
apreciável e legítimo daquele que o pratica — mostra-se limitada, porquanto leva em
conta apenas o dolo (ou o erro grosseiro, a este equiparado).82
A partir destas considerações, Carvalho Santos conclui que a referência feita por
Clóvis diz respeito à primeira fase do pensamento de Saleilles, à sua posição
primitiva, que pode ser resumida nos seguintes termos: o dano, quando resulta de
procedimento conde- nado pelos costumes, não tem de ser necessariamente doloso.
Basta o simples exercício anormal, ainda quando não o fosse senão imprudente, o
que lhe dá feição de fenômeno anti-social.83 Mesmo assim — acrescenta Carvalho
Santos — é preciso convir que o Código brasileiro não seguiu à risca a doutrina de
Saleilles, pois repele o objetivismo preconizado em sua doutrina. DeIa recolhe
apenas a anormalidade condenável em razão do dolo ou da culpa, que venha a
ofender o destino econômico e social do direito.84
Este, portanto, o sentido que Plinio Barreto e Carvalho Santos emprestam à
expressão exercício irregular ou anormal de um direito, não obstante reconheça o
mestre paulista que a jurisprudência não tem dado ao Código brasileiro essa
interpretação lata, limitando-se ao exame da intencionalidade e, quando muito, do
erro grosseiro, equiparado ao dolo.85 E possível encontrar, na jurisprudência
brasileira das décadas de 30, 40 e 50, alguns acórdãos que se
Início da nota de rodapé
(81) Carvalho Santos, op. cit., p. 350.
(82) Idem, ibidem.
(83) Idem, p. 354.
(84) Iden3, p. 354 e 355; para João Fronzen de Lima, o Código Civil brasileiro teria
adotado a teoria de Saleilles na sua versão subjetiva, o que muitas vezes dificulta a
aplicação da teoria do abuso do direito (Curso de Direito Civil Brasileiro, 4. ed., vol.
1, Rio de Janeiro, Forense, 1960, p. 374).
(85) Plinio Barreto, op. cit., p. 512.
Fim de nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
socorrem da noção de culpa stricto sensu.86 Poucos, entretanto, são os julgados
que recorrem ao critério objetivo ou finalista, como bem demonstram Aguiar Dias,
Edmundo Lins Neto e Pedro Baptista Martins, autores que, juntamente com Alvino
Lima, compartilham desta mesma orientação.87
Início da nota de rodapé
(86) A pesquisa dos acórdãos citados por Plinio Barreto (op. cit., p. 512), Edmundo
Lins Neto (op. cit., p. 36-38), Pedro Baptista Martins (op. cit., p. 92, § 77) e Assad
Amadeo Yassim (Considerações sobre abuso de direito, São Paulo, RT, ago./198O,
vol. 538, p. 21-24) permite afirmar que a jurisprudência brasileira, pelo menos até a
década de 70, tinha nítida influência subjetivista. E o que se pode ver a partir do
exame de outros tantos julgados, a exemplo daqueles que versam sobre protesto
abusivo (sentença do Juízo da Comarca do Rio de Janeiro, proferida pelo Juiz José
Antonio Nogueira, em 15 de janeiro de 1926, publicada na Revista Forense, vol. 44,
fascs. 271-276, Belo Horizonte, 1926, p. 280 e 28 l ; Supremo Tribunal Federal,
Apelação Cfvel n. 5.537, ReI. Edmundo Lins, publicada no Archivo Judiciário, vol.
28, out./nov./dez. de 1933, Rio de Janeiro, 1 934, p. 79-83) e concorrência desleal
(Corte de Apela- ção Civil do Rio de Janeiro, Apelação Cível n. 4.469, ReI. Collares
Moreira, publicada no Archivo Judiciário, vol. 39, fasc. n. 1, 05 de julho de 1933, p.
296 e 297). Passando revista a jurisprudência das últimas décadas, foi possível
encontrar alguns poucos acórdãos de orientação objetivista. Decidiu a Segunda
Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo que comete abuso do direito o
contraente que, com grave prejuízo ao outro, exercita de forma irregular o poder de
desconstituição unilateral do contrato por prazo indeterminado. De modo que o
comete o cedente que, sem provar necessidade inadiável, denuncia con- trato
atípico de cessão de águas, ao término do plantio da cessionária, comprometendo
toda a safra com a falta de irrigação (Ap. Civ. n. 1 82.997-— Guaratinguetá, v.u.,
Rel. Cezar Peluso, 1 .° de junho de 1993, in Re- vista de Jurisprudência do Tribunal
de Justiça, São Paulo, Lex Editora, vol. 148, p. 81-83).
(87) Aguiar Dias (op. cit., p. 545-551) depois de invocar a posição de Pedro Baptista
Martins, critica a interpretação subjetivista que se dava à regra do art. 160, I, do
Código Civil 1916, transcrevendo fragmentos de acórdãos insertos na Revista
Forense 83/529 e 91/441 e na RT 129/198 (voto do Desembargador Teodomiro
Dias); Edmundo Lins Neto (op. cit., p. 37) cita acórdão transcrito na Revista Forense
46/280, que se refere ao exercício anormal e antissocial do direito, como requisito
único para configuração do abuso do direito; em Pedro Baptista Martins (op. cit. p. 1
03- 1 06;
Fim da nota de rodapé
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
Entre os civilistas pátrios mais modernos, afora Caio Mario da Silva Pereira,88
inexiste controvérsia sobre o fato de o Código Civil brasileiro ter consagrado a
doutrina do abuso do direito. Há aqueles que sustentam expressamente o critério
finalista 89 ou o objetivista. 90 Exceções feita a Everardo da Cunha Luna, não se
logrou encontrar
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108- 110) é possível encontrar acórdão inserto no Arquivo Judiciário 17/28 e outro,
em que há declaração de voto de Orozimbo Nonato, cuja fonte não vem referida,
ambos perfilhados à teoria objetivista, que é também a orientação de Alvino Lima
(op. cit., p. 346 a 348).
(88) Para Caio Mario, não existe, no Código brasileiro e nem nas leis posteriores,
uma regra consagradora da teoria do abuso do direito, tal como vem enunciada no
art. 226 do BGB. Não faltou quem a visse no artigo 1 60 do Código Civil. Reconhece,
contudo, o autor mineiro que é possível vislumbrar em algumas regras do Código
Civil, a exemplo daquela inscrita no art. 5 1 4, uma aplicação da teoria (Instituições
de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1 998, p. 43 1). No mesmo sentido
são as considerações do civilista português, Antunes Varela, ao examinar o
ordenamento jurídico brasileiro (op. cit., p. 42-49). Em parecer sobre o abuso na
demanda, lastreado nas disposições do CPC de 39 e do art. 20 da Lei de Falências,
Caio Mario reconhece a possibilidade de abuso flagrante das vias do direito, no qual
se pode incorrer, segundo Iição dos irmãos Mazeaud, que transcreve, até mesmo
por imprudência (Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano 52, fascs. 623 e 624, maio-
junho de 1 955, vol. 159, p. 106 e 107).
(89) Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 960, p. 1
96- 1 97; Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, 1 1. ed., Rio de Janeiro,
Forense, 1995, p. 132; Silvio Rodrigues, Direito Civil, Parte Geral, vol. 1, São Paulo,
Max Limonad, 1 962, p. 340; Arnold WaId, Curso de Direito Civil Brasileiro, 5. ed.,
vol. 1 , Rio e Janeiro, Lux Ltda., 1987, p. 190e 191; CarlosAlbertoBittar,
CursodeDireito Civil, vol. 1, São Paulo, Forense Universitária, 1994, p. 186.
(90) Guilherme Fernandes Neto, C1fíusu1asAbusivas, in Carlos Alberto Bittar
(coordenador), Os contratos de adesão e o controle das cláusulas abusivas, São
Paulo, Saraiva, 1 99 1, p. 79 e 80. Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade
Civil, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1988, p. 43. Para San Tiago Dantas, o animus
nocendi pode configurar-se ou não. O que vale considerar é o aspecto objetivo do
ato. Se configurada a antisociabilidade, existe abuso e cabe repressão (San Tiago
Dantas, O conflito de vizinhança e sua composição, 1939, p. 126, apud Diogo de
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
uma defesa explícita do critério subjetivista, que em alguns casos apenas
transparece.91 Singular é a posição de Serpa Lopes que, sem negar a importância
da vertente objetivista, diz que o legislador pátrio, ao traçar as regras dos artigos 100
e 160, I, do Código Civil de 19 1 6, apenas fixou um critério geral; caberá à
jurisprudência dele extrair o sentido mais apropriado à espécie sob julgamento.92
Mas a inserção do abuso do direito nos limites da teoria geral dos atos ilícitos
também é objeto de muita controvérsia, como á se teve oportunidade de ver na
seção anterior. Há aqueles que consideram o ato abusivo um simples ilícito,
categoria não autônoma, com repercussões no campo da responsabilidade civil.
Outros tantos
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Figueiredo, O abuso do direito na retomada de imóveis por livre conveniência do
locador, in Revista de Direito da Procuradoria Geral, Estado da Guanabara, 1 966,
vol. 1 5, p. 256). Este último autor vislumbra aqui uma teoria monista, uma tentativa
de unificar a concepção subjetivista e a concepção objetivista. O que San Tiago
Dantas sustenta é que a teoria cloabuso envolve inclusive a aemulatio, mas não só.
Aplica-se também a todos os casos de violação da destinação econômica e social
do direito (San Tiago Dantas, op. cit., p. 126 e 127, apud Diogo de Figueiredo, op.
cit., p. 256 e 257).
(91) Everardo da Cunha Luna é enfático ao defender a necessidade da configuração
de dolo ou culpa para que se possa falar em abuso do direito (op. cit., p. 1 19);
Limongi França, em breve exposição, cita dispositivo do Código Civil mexicano, que
tem orientação subjetivista (Manual de Direito Civil, 2. ed. vol. 4- 1, São Paulo, RT, 1
976, p. 412; vol. 1 , 1980, p. 319; vol. 4-2,1969, p. 294); Washington de Barros
Monteiro, depois de dar notícia das diversas teorias, parece inclinar-se pelo critério
subjetivista (op. cit., p. 281 e 282) Maria Helena Diniz não se ocupa da diversidade
de critérios (Curso de Direito Civil Brasileiro, 1 1. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva,
1995, p. 295 e 296).
(92) Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1 960, VoI.
I, p. 548; no mesmo sentido, Martín Bernal (op. cit., p. 42). Pedro Baptista Martins
(op. cit., p. 76) e Edmundo Lins (op. cit., p. 37) destacam sentença da lavra de Serpa
Lopes, que acolhe o critério objetivista, com ressalva, entretanto, das hipóteses de
abuso no exercício da demanda, nas quais há de se exigir a configuração da culpa.
Para Demogue, igualmente, o direito de estar em juízo tem de ser analisado de
maneira ampla (Traítédes obligations en genéral, vol. 4, p. 307, 308 e 315,
apudAlvino Lima, op. cit, p. 335).
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
consideram-no, ainda que sob denominações diversas, uma ilicitude de lato sensu,
que implica inclusive o dever de abstenção.
Seguindo a posição dos irmãos Mazeaud, de Bartin e de Demogue, autores como
Clóvis Beviláqua, Plinio Barreto e Carvalho Santos praticamente identificam os
conceitos de abuso do direito e ilícito. Não há negar que esta posição guarda
coerência com o critério subjetivista, que, segundo interpretação dos dois últimos, o
autor do Código Civil também teria adotado. Contudo, isto implicaria praticamente a
negação do abuso do direito como conceito ou doutrina autônoma, segundo
reconhece Alvino Lima.93
Pontes de Miranda, inspirando-se em Charmont, diz que o direito não cessa onde o
abuso começa; o que dá ensejo à reparação é a existência de dano. Se alguém age,
no exercício irregular de um direito, mas mesmo assim sem causar dano, não
comete ato ilícito absoluto.94 Mas, em outra passagem, a propósito do disposto no
art. 160, I, do Código Civil de 19 1 6, diz: pré-excluem-se dos atos ilícitos os atos
que constituem exercício regular. O irregular é, pois, ilícito.95
Pedro Baptista Martins, comentando o artigo 100 do Código Civil de 1 9 1 6, diz que
muitos têm visto neste dispositivo outra fonte legal de obrigações por atos abusivos.
Entretanto, trata-se de simples modalidade especializada de abuso do direito.96
Mais adiante, diz que o ato abusivo, considerado em si mesmo, é perfeitamente
legal; por si só não basta para gerar responsabilidade do autor; necessário que o
agente tenha causado prejuízo apreciável.97 Ocorre que a doutrina considera a
coação ato ilícito (a propósito, ver a nota 78). Mais que isto, Pedro Baptista não faz
depender a noção de abuso do direito do conceito de culpa lato sensu. Tais
circunstâncias
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(93) Segundo Alvino Lima, não fossem distintos os campos do abuso do direito e da
responsabilidade civil, bastaria o preceito do artigo 159 do Código de 1 9 1 6 (op.
cit., p. 346). Veja-se, com redação um pouco diversa, o artigo 1 86 do Código Civil
vigente.
(94) Pontes, Tratado, tomo LII1, Rio de Janeiro. Borsoi, 1966, p. 73-75.
(95) Ideni, p. 62.
(96) Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 93.
(97) Idein, p. 145.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
poderiam gerar perplexidade. Entretanto, em outra passagem, o civilista assim se
manifesta: o ato que é lícito ante o direito positivo em vigor, torna-se ilícito quando
apreciado à luz dos princípios gerais, em constante e permanente mutação.98
Roberto Goldschmidt, analisando o Anteprojeto do Código das Obrigações de
1941,99 cuja redação coube aos Ministros Filadelfo Azevedo, Orozimbo Nonato e ao
Professor Hahnemann Guimarães, diz que não obstante a técnica legislativa
adotada, houve o reconhecimento da autonomia da doutrina do abuso do direito, que
não está inserida na esfera da responsabilidade civil por culpa, mas sim no campo
dos princípios gerais do direito. Esta exatamente a crítica que faz à redação do
Anteprojeto, porquanto o artigo 156, cuja norma tem matiz nitidamente objetivista, foi
colocado no capítulo da responsabilidade civil.100
Sustenta Goldschmidt que todo o equívoco da cultura jurídica latina consiste em não
distinguir antijuridicidade e culpabilidade. A primeira noção diz com a contrariedade
aos bons costumes, à boa- fé, vale dizer, àqueles preceitos que são extraídos das
opiniões culturais dominantes, ao passo que o segundo conceito faz referência à
vontade livre e consciente de agir (dolo) ou à voluntária omissão de diligência
(consciente ou inconsciente) em calcular as consequências possíveis e previsíveis
do próprio fato. Por isso, o abuso do direito é antijurídico e encontra lugar entre os
princípios gerais do direito, obrigando à reparação, no caso de responsabilidade,
aqui sim, segundo os princípios da culpa.101
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(90) Idem, p. 140.
(99) Como anota Luis Recaséns Siches, o artigo foi originariamente escrito em
espanhol e publicado na Argentina, ao tempo em que o jurista alemão, refugiado da
guerra, Iecionou em Córdoba (DelVecchio e Recaséns Siches, Filosofía del
Derecho, tomo 11, México, Union Tipografica Editorial Hispano Americana, 1946, p.
728).
(100) Roberto Goldschmidt, op. cit., p. 22, 28, 29 e 30; diz o artigo 156 do
Anteprojeto que está obrigado a indenizar todo aquele que cause dano, por exceder,
no exercício do direito, os limites do interesse por este protegido ou os limites
resultantes da boa-fé.
(101) Idem, ibidem.
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
Alvino Lima e Aguiar Dias, analisando o ponto de vista de Goldschmidt embora lhe
façam algumas objeções, entendem que realmente não se pode inserir a noção do
abuso do direito nos quadrantes da responsabilidade civil. Diz Alvino Lima — em
longo e erudito artigo — que não é possível, no estado atual da ciência do direito,
quando a teoria da responsabilidade objetiva se expande, a mais e mais, se restrinja
ao mínimo, quase inútil, a aplicação da doutrina do abuso do direito. E acrescenta:
Em face destes novos preceitos, a jurisprudência dos nossos tribunais não se
limitará a condenar os que exercem abusivamente os seus direitos, rebuscando, na
intenção de lesar, o único fundamento da teoria do abuso do direito. 102
Mutatis mutandis, valem em relação ao direito pátrio as considerações feitas por
Fernando Augusto Cunha de Sá acerca da pequena receptividade, no âmbito do
direito português, dos critérios objetivista e finalista que informam a teoria do abuso
do direito:
A situação explica-se, numa parte, pelo relativo atraso do desenvolvimento
econômico e social do nosso país, noutra parte pelo excessivo apego de nossa
magistratura ao formalismo, à letra da lei, a um certo entendimento de valores tais
como os da justiça, da certeza e da segurança, ou do papel da jurisprudência na
aplicação do direito, noutra parte ainda, talvez, pela mansidão ou doçura de
costumes de nossa gente, sempre ciosa dos seus direitos mas inca- paz por vezes
de reagir a formas mais nuancées da ilegitimidade do exercício dos mesmos ou até
de formar uma consciência social do que é admissível e do que o não é. Mas não se
esqueça que, lá fora, foram sobretudo os problemas decorrentes do
desenvolvimento industrial e, nomeadamente, os conflitos propriedade agrícola /
propriedade industrial, a formação de grandes empresas capitalistas e de fortes
sindicatos operários, ou de amplas concessões no que respeita às Iiberdades
cívicas, a par de um arejamento cultural e da formação de correntes de pensamento
profundamente dominadas pela preocupação social (muitas delas, até, de raízes
tomistas), que
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(102) Alvjno Lima, op. cit., p. 346 e 347; José de Aguiar Dias, Da responsabilidade
civil, 8. ed., vol. 2, Rio de Janeiro, Forense, 1 987, p. 533 a 535.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
estiveram na base da lata aplicação da figura à vida jurídica de todos os dias e a
todos os actos e manifestações dessa mesma vida.103
1.3 A construção do significado do abuso do direito na base do caso concreto
A despeito das dificuldades em estabelecer um conceito claro e preciso acerca do
abuso do direito, a experiência jurídica mostra, através dos séculos, a importância
das elaborações dogmáticas em torno do tema, a começar pelo direito de
vizinhança, onde a teoria do abuso ganhou seus primeiros contornos. Assim é que o
princípio qui suo iure utitur neminem laedit (D. 50, 17, 55, Gaio), resquício da justiça
de mão própria, vai aos poucos cedendo lugar a uma visão mais humanista, que se
insere, como já visto, no contexto de certos preceitos cristãos. Em Ulpiano é
possível encontrar a origem da regra do art. 587 do Código Civil de 1 9 1 6, segundo
a qual a cada um é dado reparar sua própria casa, contanto que não prejudique,
sem permissão, o direito do vizinho (D, 50, 17; UIp. 3 opin.), disposição esta que
corresponde ao artigo 1 3 1 3 do Código Civil vigente. Viu-se que o individualismo
exacerbado do direito romano, a princípio, passou a fazer certas concessões no que
diz respeito ao dano intencional. Quanto ao uso das águas, entendia-se, com base
em Ulpiano, que ao proprietário é dado abrir sulcos no seu prédio, ainda que em
prejuízo das fontes do vizinho, para melhorar o seu,
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(103) Cunha de Sá, op. cit., p. 279 e 280; interessantes, a propósito do espírito da
gente portuguesa, o realismo satírico das obras de Eça de Queirós (1845-1900) e o
ensaísmo crítico de António Sérgio (1883- 1969). Conquanto polêmica a Teoria do
Homem Cordial (a propósito, v. Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Rio de
Janeiro, José Olímpio Editora, 1963, e Cassiano Ricardo, O Homem Cordiale outros
pequenos estudos brasileiros, Rio de Janeiro, INLIMEC, 1 959), certo é que os
comentários do autor português guardam estreita relação com o cenário socio-
econômico-cuIturaI existente no Brasil até o final da década de 50, que se inscreve
nos quadros de uma economia agrária exportadora e de uma sociedade rural e
patriarcal. Quanto à orientação dos juízes, o tema será melhor desenvolvido a partir
do quinto capítulo.
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
sob condição de que não o faça com ânimo de prejudicar.104 Sucederam-se, então,
com fundamento na distinção entre uso normal e uso anormal da propriedade, da
qual foi precursor Quintus Mucius Scaevola,105 diversas regras, que regulam os
direitos de vizinhança até nossos dias, as quais visam a coibir o uso nocivo da
propriedade, mais especificamente o direito de construir, o direito de tapagem e o
direito de servidão. Com a modernidade, surgiu a questão dos condomínios,
mormente dos condomínios em edifícios, a desafiar a inventiva dos homens na
solução dos conflitos.
Jurisprudência e doutrina são pródigas em exemplos, numa demonstração da
importância do tema, mormente nas chamadas sociedades de massa,
caracterizadas por mobilidade crescente e diferenciação social. Nelas afloram, no
dizer de Mannheim, todas as irracionalidades e explosões emocionais
características de aglomerações humanas amorfas.106 Na tentativa de acomodar os
interesses e pretensões desse turbilhão de pessoas, deserdadas do capitalismo
industrial (gerador de expectativas e demandas que o sistema não conseguiu
absorver), esquadrinharam-se ainda mais as regras normativas, num crescente
processo de codificação, que já se iniciara no começo do séc. XXI. Aqui, no dizer de
Pontes de Miranda, exercendo o meu direito, posso lesar a outro, ainda se não saio
do meu direito, isto é, da linha imaginária que é o meu direito. Por isso, o estudo do
abuso do direito é a pesquisa dos encontros, dos ferimentos que os direitos
fazem.107 O condomínio em edifícios é a expressão estética que melhor retrata as
sociedades de massa, com o seu amontoado de apartamentos e conjuntos
comerciais.108 Transpostos
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(104) Pontes de Miranda, Tratado, tomo LIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1966, p.64e65.
(105) ldem, p. 66.
(106) Mannheim, Homem e sociedade em um período de reconstrução, apud
Benedicto Silva (org.), Dicionário de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, FGV, verbete
sociedades de massa, p. 1 . 143.
(107) Pontes de Miranda, idem, p. 67 e 68.
(100) Para uma análise antropoiógica do fenômeno da urbanização, v. Nels
Anderson, Sociologia de la comunidad urbana, México, Fondo de Cultura
Económica, 1 965, p. 587-589, e Lewis Mumford, A cultura das
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
estes limites, os ocupantes dividem o mesmo espaço em escadas, corredores,
elevadores, play-grounds e em outras partes comuns do edifício, nas quais não lhes
cabem mais que frações ideais.
É fora de dúvida que esta ambiência torna-se fonte inesgotável de litígio, porquanto
a insuficiência dos códigos e das leis logo se mostra, diante da gama de
possibilidades que a nova situação engendra. Conquanto as normas jurídicas, aos
poucos, houvessem se ocupado dos limites e da relatividade dos direitos entre os
condôminos em edifício,109 certo é que subsiste a importância das construções
doutrinárias, mormente sob o influxo das idéias socialistas do início do século, que
colocam a tônica na igualdade, em detrimento da liberdade. Deste ponto de vista, é
possível afirmar que a grande contribuição de uma teoria do abuso do direito está
em oferecer solução para os casos que não foram previstos pela legislação. Nesse
sentido é o reconhecimento da doutrina. 110
O proprietário de um apartamento de veraneio pode alugá-Io para temporada.
Todavia, se o excesso no número de ocupantes, com certa frequência, onera o
serviço de elevadores, sobrecarrega e encarece o fomecimento de água (com
repercussão no rateio), concorrendo, outrossim, para o desgaste paulatino das
partes comuns, configurado estará o abuso do direito de propriedade. Inútil se
mostra a
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cidades, São Paulo, Ed. Itatiaia, 1961, p. 96, 254, 238 e 263; quanto às
repercussões do fenômeno no campo do direito brasileiro, v. Orlando Gomes e
Antunes Varela, Direito Econômico, São Paulo, Saraiva, 1 977, p.43 ess.
(109) É o caso da utilização do teto do edifício, por parte do proprietário da unidade
situada no último andar. A respeito, era omisso o Decreto 5.481/28. Aos poucos,
com lastro na teoria do abuso do direito, juris- prudência e doutrina foram se
delineando, no que deram lugar à regra do art. 3.° da Lei 4.591/64 (cfr. Caio Mario
da Silva Pereira, Condomínio e Incorporações, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense,
1988, p. 157-159).
(110) Pedro Batista Martins, op cit., p. 81 e 82; Pontes de Miranda, Tratado de
Direito Privado, tomo XI, Rio de Janeiro, Borsoi, 2. ed., p. 26, e tomo LIII, Rio de
Janeiro, Borsoi, 1 966, p. 70; Coutinho de Abreu, op. cit., p. 49; Warat, op. cit., p. 76,
77, 85 e 85.l ) A ilustração inspirou-se no exemplo de Pontes de Miranda (Tratado de
Direito Privado, tomo XII, Rio de Janeiro, Borsoi, 2. ed., p. 258).
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
consulta aos códigos e às leis, em busca de questões particulariza- das, que
somente a casuística jurisprudencial, inspirada em boa parte na ilustração e nos
standards da doutrina, poderá fornecer. E o caso das dimensões e do conteúdo das
propagandas ou anúncios veiculados por Ietreiros, placas ou tabuletas, fixados na
parte comum do edifício. E também a hipótese da existência de animais domésticos
no interior dos apartamentos, mesmo quando regulada pela convenção de
condomínio. De um Iado, o apartamento é unidade autônoma, mas por outro, é certo
que o animal, ainda que conduzido pelo dono, terá de circular eventualmente pelas
partes comuns do edifício. Ademais, o conceito de animal doméstico é muito
elástico, a consentir certas excentricidades.
Veja-se que em todas estas situações o intérprete é levado a guiar- se por uma certa
tipologia, por uma certa dicotomia, tal como normalidade-anormalidade; função-
disfunção; proveito-prejuízo; má- fé e boa-fé. Assim é o caso da construção da
quadra de esportes, em área comum, cujas luzes venham a se projetar, e o barulho
repercutir, com intensidade, no apartamento do primeiro piso. O mesmo se passa
com a construção de uma churrasqueira. O desfrute da paisagem, igualmente, pode
ver-se ameaçado pela construção de deter- minado equipamento do condomínio,
aprovada pela maioria dos condôminos, que não se vê prejudicada com a inovação,
mas que, antes, dela retire grande proveito.
Trata-se de situações em que se confrontam, de um lado, o direito de uso, gozo e
fruição da coisa por parte do proprietário, e de outro, o dever de não impor
embaraço ou obstáculo ao bom uso da propriedade por parte de todos. Como as
relações jurídicas, no mais das vezes, são bilaterais, é possível identificar em cada
uma das pontas da relação condomínio-condômino um feixe de direitos e deveres,
de sorte que, se o condômino tem direito ao sossego e ao descortino de uma
paisagem que lhe conforte o espírito, de outro lado também tem o dever de não
interferir no uso das partes comuns, no que toca aos demais condôminos. Quanto a
estes, se é certo que Ihes cabe o direito de não ver embaraçado o uso da coisa
comum, certo também é que têm o dever de não excluir a posse de qualquer dos
comunheiros.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
O aumento crescente da complexidade nas relações sociais, criando um nível de
demanda que o modelo liberal (político e econômico) não estava em condições de
atender, também acabou por interferir na esfera da regulação de outros direitos, a
exemplo do contrato civil, do contrato de trabalho, das relações de comércio, das
relações de consumo e do direito de família. Já na década de 30, Enneccerus
reconhecia que a proibição do abuso de direito diz res- peito a toda classe de
direitos, incluindo aqueles que não são regulados pelo Código Civil, pois não cabe
supor que essas leis pretendem excluir um princípio geral que tem fundamento
moral.2 Essa evolução, desde uma posição subjetivista, baseada na
intencionalidade, no animus nocendi, até a teoria objetiva, que se aplica hoje a
algumas esferas do direito civil, é trajetória que também se inscreve nos quadros de
um processo de socialização do direito, fruto das contradições surgidas com a
revolução industrial.
A princípio, as legislações recepcionaram as construções subjetivistas da doutrina e
da jurisprudência, do que é exemplo a noção de exercício anormal do direito, que já
se encontrava entre os romanos. Além da regra do artigo 160, I, do Código Civil
brasileiro de 1916, na qual se reconhece a ilicitude do abuso do direito, os civilistas
identificam em outras normas (a exemplo daquelas inscritas nos arts. 15, 100, 115,
155, 526, 1.297, 1.313 e 1.531 desse mesmo Código, que encontram
correspondência, quanto ao que interessa, na regra dos artigos 43, 153, 122, 180,
1.229, 665, 679 e 940 do Código Civil vigente) a mesma inclinação doutrinária, fruto
das elaborações dogmáticas do início do século XX, ainda impregnadas por uma
certa concepção romanista (aemulatio). A propósito, registra Everardo da Cunha
Luna que, não obstante a afirmação de Clóvis Beviláqua, no sentido de que a regra
do art. 160, I, do Código Civil de 1916 teria acolhido a doutrina de Saleilles, certo é
que a inclinação da Iegislação brasileira, até então, era mesmo subjetiva.113 E, à
primeira vista, o argumento convence, porquanto,
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(112) Enneccerus, op. cit., tomo I, vol. 2, § 239, p. 1.082 e 1.083.
(113) Everardo da Cunha Luna, Abuso de Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1 988, p.
I 19; Clóvis Beviláqua, op. cit, p. 344-348. Esse contexto, como será possível ver a
seu tempo, alterou-se com a edição do Código Civil vigente.
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
como já se viu, a regra legal insere o exercício abusivo (ou irregular) do direito, a
contrário senso, na categoria dos atos ilícitos, que pressupõem o conceito de culpa
lato sensu.
Ocorre que doutrina e jurisprudência brasileiras evoluíram, na base da casuística,
induzindo, por conseguinte, alterações na legis- lação e, o que é mais importante, na
forma de interpretá-la, tal qual sucedeu em outros países. Daí porque autores da
envergadura de Pedro Baptista Martins e Alvino Limajá identificavam uma tendência
objetivista na aplicação da teoria do abuso do direito. Mas para que se possa melhor
entender essa polêmica, convém o exame da legislação estrangeira. Longe da
pretensão de desenvolver um es- tudo do Direito Comparado, afigura-se importante
cotejá-la com a legislação brasileira do início do séc. XX, na tentativa de identificar o
critério adotado quanto à aplicação da teoria do abuso do direito.114
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(114) A exposição que segue tem em conta comentários e resenhas feitos por
Planiol (Traité Élémentaíre de Droit Civil, troisième édition, tome II, Paris, Librairie
Générale de Droit et de Jurisprudence, 1949, p. 339, e Traité Elémentaire de Droit
Civil, cinquième édition, tome I, Paris, Librairie Générale de Droit et de
Jurisprudence, 1950, p. 161); Colin e Capitant, Traité de Droit Civil, tomo 11, Paris,
Librairie Dalloz, 1 959, p. 625-626; Enneccerus, Tratado de Derecho Civil, 1 .° e 2.°
tomos, 2. parte, Barcelona, Bosch, Casa Editorial S.A., 1 970, p. 621 -639 e 1 .073- 1
.087; Georges Ripert, La règle morale dans les obligations civiles, Librairie Générale
de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1949, p. 164 e 165; Charmont, Labus du droit, in
Revue Trimestrielle de Droit Civil, tomo primeiro, Paris, 1902, p. 122; Saleilles, De
labus de droit— rapport présenté a la première sous-commission de la commission
de revision du Code Civil, in Bulletin de la Société dEtudes Législatives, Paris, Arthur
Rousseau, Editeur, quatrième anée, 1905, p. 348; Jorge Manuel Coutinho de Abreu,
Do abuso de Direito, Coimbra, Almedina, 1 983, p. 50-55; Fernando Augusto Cunha
de Sá, Abuso do Direito, Coimbra, Almedina, 1 997, p. 57-89; Carlos Fernández
Sessarego, Abuso del derecho, Buenos Aires, Astrea, 1992, p. 217-285; Jose
Manuel Martín Bernal, E1 abuso del derecho, Madrid, Ed. Montecorvo, S.A., 1982, p.
65-100; José da Silva Pacheco, Prefácio à 3.edição da obra de Pedro Baptista
Martins Abuso do Direito e o Ato ilícito, Rio de Janeiro, Forense, 1 997, p. 1 8-23;
Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 82-85; Alvino Lima, Abuso do direito, in J.M. de
Carvalho Santos (org.), Repertório
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Na Alemanha, é possível colher a regra do artigo 226 do Código Civil (1 896),
segundo a qual o exercício de um direito é inadmissível se tiver por fim, apenas,
causar dano a outrem. Igualmente, o artigo 826 do mesmo Código dispõe que todo
aquele que, de um modo contrário aos bons costumes, causar voluntariamente
danos a outrem, fica obrigado a indenizar. O Código Austríaco (1906, com a revisão
de 1916), por sua vez, também dispõe que é vedado o exercício de um direito com
menosprezo aos bons costumes e com evidente intenção de lesar. O Código Civil
chinês, de 1929, já estabelecia que não pode o exercício de um direito ter por fim
principal prejudicar outrem. A intenção de lesar também é critério adotado pelo
Código polonês, de 1934, e pelo Código mexicano (1928).
Até aqui, vê-se que a legislação tem um feitio nitidamente subjetivista, pois as
previsões acerca do abuso do direito levam em conta o elemento intencional de
causar dano.115 Mas o BGB, em alguns
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Enciclopédico do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro, Borsoi, 1947, vol. l; Pontes de
Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Geral, tomo 11, Rio de Janeiro, Borsoi,
1954, p. 292-293, e Parte Especial, Tomo LIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1960, p. 76 e
77; Luis O. Andorno, Abuso del Derecho, Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário
e Empresarial, Ano 6,janlmar/1982, vol. 19, p. 15-37; AssadAmadeoYassim,
Considerações sobre o abuso do Direito, RT, São Paulo, Ano 69, agosto de 1980,
vol. 538, p. 1 8-25; Plinio Barreto, parecer publicado na RT, Ano XX, agosto de 1931,
vol.79, fasc. 378, p. 507-519; José Olimpio de Castro Filho, Abuso de Direito no
Processo Civil, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1960, p. 26 a 27, René David, Os
grandes sistemas do direito contelnporâneo, São Paulo, Martins Fontes, 1993;
Haroldo Valladão, Condenação do abuso do Direito, in Arquivos do Ministério da
Justiça, Ano XXVI, setembro de 1 968, n 1 07, p. 1 0- 14; Roberto Goldschmidt, A
Teoria do Abu.so do Direito e o Anteprojeto brasileiro de um Código das Obrigações,
Revista Forense, Ano XLI, vol. 97, fasc. 487, janeiro de 1 944; Antunes Varela, O
abuso do direito no sistema jurídico brasileiro, in Revista de Direito Comparado
Luso- Brasileiro, Ano 1, n. 1, Rio de Janeiro, Forense, julho de 1982, p. 37-59; José
Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro,
Forense, 2000.
(115) Registre-se, porém, certa dissensão quanto ao Código de Obrigações polonês,
pois há quem entenda que nele existe também uma referência ao fim
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
de seus dispositivos, já consagrava expressamente a vedação ao exercício
antifinalístico do direito. Vale citar a regra do § 242: o devedor é obrigado a efetuar a
prestação como exige a lealdade e a confiança recíproca, em correspondência com
os usos socialmente admitidos. Como aponta Cunha de Sá, é possível encontrar em
outros tantos dispositivos do Código Civil alemão os reflexos da orientação
objetivista, nas suas diversas vertentes. Assim é que o Código exclui o direito (ou o
seu exercício) por falta de interesse ou pela pequena importância de interesse do
respectivo titular (§§320, alínea 2; 459, alínea 1; 498, alínea 2; 542, alínea 2; 634,
alínea 3; 905, 2a parte), o que leva a doutrina a apontar o engano da interpretação
de Josserand, no que toca a uma suposta orientação estrita- mente intencional do
Código alemão.116
O Código suíço (1907) prevê, em seu artigo 2.°, que cada um deve exercer seus
direitos e cumprir suas obrigações de acordo com as regras da boa-fé; o abuso
manifesto de um direito não está protegido pela lei. A redação do dispositivo poderia
dar a entender que o legislador helvécio teria se filiado à teoria subjetivista. Mas,
como observa Luis O. Andorno, “trata-se de um princípio geral que outorga uma
ampla margem de apreciação ao órgão jurisdicional, que terá de decidir, em um
caso particular, se houve violação da regra moral ou desvio das finalidades
perseguidas pela lei”.117 Também
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social (Henri Mazeaud, Traité théorique etpratique de la responsabilité civile, Paris,
Libr. en Rec. Sirey, 1931, n. 1, p. 559, apud Martín Bernal, op. cit., p. 90 e 9 1; neste
sentido são os comentários de Alvino Lima (op. cit., p. 344 e 345) e de Roberto
Goldschmidt (op. cit., p. 29).
(116) Cunha de Sá, op. cit., p. 60; igualmente, Charmont (op. cit., p. 122) e Martín
Bernal (op. cit., p. 84) reconhecem no sistema alemão uma conjugação dos critérios
intencional e objetivista.
(117) Luis O. Andorno, op. cit., p. 1 8; no mesmo sentido são as considerações de
Carlos Fernández Sessarego, para quem No Código Civil suíço, a proibição do
abuso de direito assume a forma de uma cláusula geral, cuja ampla redação permite
ao juiz apreciar cada caso e cada circunstância a fim de que, com a ajuda da
doutrina, dos antecedentes jurisprudenciais e de sua sensibilidade valorativa, possa
determinar se está diante, segundo o texto da lei, de um abuso manifesto de um
direito (op. cit., p. 214 e 215).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
de molde objetivista é o Código Civil vigente na China (1999), no qual o legislador,
inspirando-se no direito português, dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito,
quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons
costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito. A feição objetivista, bem
assim, está impressa no atual Código Civil da Polônia (1964), cujo artigo 5.°
estabelece: não se pode usar um direito em proveito pessoal, se isto não estiver de
acordo com as finalidades sociais e econômicas desse direito ou em conformidade
com o bem comum.
Conquanto se reúnam na França as maiores contribuições para a elaboração de
uma teoria do abuso do direito, fato é que inexiste na legislação francesa disposição
específica a respeito. Doutrina e jurisprudência, na proteção contra os excessos, têm
invocado, como já foi visto, a regra do art. 1.383 do Código Civil (Toda pessoa é
responsável pelo dano que causar, não somente por ato seu, mas ainda por
negligência ou por sua imprudência). E possível dizer, na lição de Spota, que a
dogmática e a jurisprudência francesa constituem magnífico exemplo do
desenvolvimento de uma doutrina que parte da idéia da relatividade dos direitos, de
acordo com o plano de cada instituição, segundo suas características e espírito, e a
despeito mesmo da ausência de lei. Com ela, elaborou-se um princípio geral de
direito que fez evoluir uma legislação que já conta com século e meio de
existência.118
Reafirmando o reconhecimento da destinação social do direito, o anteprojeto do
novo Código Civil francês, no seu art. 147, considera abusivo todo ato ou fato que
exceda manifestamente, pela intenção do seu sujeito, pelo seu objeto ou pelas
circunstâncias em que é realizado, o exercício normal de um direito. O parágrafo
segundo ressalva, entretanto, os direitos que, pela sua natureza ou em virtude de lei,
possam ser exercidos de modo discricionário,119 no
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(118) Alberto G. Spota, Tratado de Derecho Civil, Buenos Aires, Ed. Depalma, 1
947, tomo I, parte geral, p. 474, apud Martín Bernal, op. cit., p. 78; a propósito da
importância da jurisprudência francesa na recepção da dou- trina finalista, v.
bibliografia mencionada na primeira seção deste capitulo.
(119) Cunha de Sá, op. cit, p. 54; também o Código Civil do Paraguai (1 988), no seu
artigo 372, estabelece a ressalva, fiel à doutrina de Josserand.
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
que se reporta à classificação tricotômica de Josserand, como já vista. Perfilando-se
entre os países cuja legislação também seguiu o critério objetivista encontra-se
ainda a Espanha. Na Exposição de Motivos da lei que, em 1 974, alterou o Código
Civil espanhol (1 888), com acréscimo de uma alínea ao artigo 7.°, consignou-se a
importância de alguns antecedentes legislativos, como interpretados pelos tribunais,
e do direito comparado. Inspirou-se o legislador no movimento da doutrina e
jurisprudência contemporâneas.120 Também de orientação objetivista são os
códigos de Portugal (1966), da Grécia (1940) e da Bolívia (1976).121
Importante lembrar que a orientação objetivista não se esgota na conformidade do
exercício do direito à sua finalidade econômica. Também na elaboração de Saleilles
encontra-se outro critério, de inspiração finalista, que tem em conta a conformidade
do exercício do direito aos fins para os quais ele foi conferido ao seu titular. Abusa
do direito quem o exerce com escopo diverso daquele previsto em lei, ainda que
inexista o ânimo de prejudicar. Esta formulação é geralmente identificada, como
visto, em fórmulas tais como, uso ou exercício anormal, limites normais do exercício,
uso social ou interesse social, uso contrário aos fins para os quais a lei foi instituída
etc.
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(120) Assim dispõe o art. 7.°, alínea 2, do Código Civil espanhol: A Iei não ampara o
abuso do direito ou o seu exercício antissocial. Todo ato ou omissão que, pela
intenção do seu autor, por seu objeto ou pelas circunstâncias em que se realize,
ultrapasse manifestamente os Iimites normais do exercício de um direito, com dano
para terceiro, dará lugar à correspondente indenização e à adoção das medidas
judiciais ou administrativas que impeçam a persistência do abuso.
(121) O Código Civil da Bolívia tem pelo menos dois dispositivos de inspiração
nitidamente objetivista: Art. 107. O proprietário não pode realizar atos com o único
propósito de prejudicar ou de molestar outros, e, em geral, não Ihe é permitido
exercer seu direito de forma contrária ao fim econômico ou social em razão do qual
foi conferido; art. 1279. Os direitos se exercem e os deveres se cumprem conforme
a sua natureza e conteúdo específico, que resultam das disposições do
ordenamento jurídico, das regras de boa-fé e do seu destino econômico-social (a
propósito, ver igualmente a norma do artigo 1 17, inciso I e 11). Também o
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
O Código Civil argentino, por exemplo, anteriormente à reforma de 1 968, dispunha
que o exercício de um direito próprio, ou em cumprimento de uma obrigação legal,
não constitui ilicitude de nenhum ato. Antes mesmo das mudanças que se seguiram
à reforma, reconhecia-se, na doutrina e na jurisprudência, uma alteração de rumos,
a apontar não só para a aplicação da teoria do abuso, como também para a
orientação objetivista. Assim, entendeu-se abusiva a resolução de um contrato pelo
simples descumprimento de obrigação acessória, que não interferia com a obrigação
principal; injurídica também se entendeu avença que estipulava o uso da habitação
como contraprestação do trabalho doméstico; também abusiva se considerou a
recusa do proprietário de uma colônia em autorizar a instalação de escola pública,
pelo só fato de existir outro colégio, a distância menor do que a prevista em lei, já
que a negativa obrigaria as crianças que moram longe do centro a percorrer trajeto
bem maior.22
Com a alteração promovida pela Lei 17.7 1 1, de 1968, fez-se ao artigo 1 .07 1 do
Código Civil, há pouco transcrito, o seguinte acréscimo: A lei não ampara o exercício
abusivo dos direitos. Como tal será considerado o que contrarie os fins que aquela
teve em vista ao reconhecê-los ou o que exceda os limites impostos pela boa-fé,
moral e bons costumes. A inovação, que além dos fundamentos da dou- trina e da
jurisprudência, inspirou-se no artigo 2.° do Código suíço, tem matriz objetivista, a
exemplo do que também se vê nos códigos da Venezuela (1942, com a reforma de
1982) e do Paraguai (1987).
O Código Civil do Peru (1984) refere-se à questão do abuso do direito em onze dos
seus dispositivos. No artigo 924, reúne as expressões abuso e excesso, mas com a
disjuntiva ou.23 Entendem os
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Código Civil português (art. 334), tanto quanto o grego (art. 281), condiciona o
exercício dos direitos à sua finalidade social e econômica, para além da observância
da boa-fé e dos bons costumes. No Código português há ainda mais cinco artigos
específicos (arts. 152, 155, 269, 1482 e 1 470), que tratam do abuso do direito nas
questões de família, obrigações e propriedade.
(122) Cunha de Sá, op. cit, p. 83 a 85.
(123) Art. 924: aquele que sofre ou está ameaçado porque outro se excede ou
abusa no exercício de seu direito pode exigir a restituição ao estado
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
doutrinadores que participaram da comissão de reforma que se trata de expressões
sinônimas, porquanto idênticas as consequências advindas de uma e de outra
conduta.124 Antes, contudo, logo no Título Preliminar (artigo 11), fiel ao texto de
1936, o Código já dispõe acerca do tema: A Iei não ampara o abuso do direito. O
interessado pode exigir a adoção das medidas necessárias para evitar e suprimir o
abuso e, se for o caso, a correspondente indenização. O legislador peruano também
dispõe acerca do abuso de direito ao tratar da representação conjugal (art. 292), do
regime patrimonial do casamento (art. 329), do usufruto (art. 1.021), do depósito (art.
1.079), do penhor (art. 1.076), do comodato (art. 1.738), das relações internacionais
privadas (arts. 2.060 e 2.064) e, de maneira mais ampla, no art. 1.971, 1, seguindo a
redação do artigo 160, 1, do Código Civil brasileiro de 1916, na qual já se inspirara
na edição do Código de 1936.
No Código Civil da Colômbia (1873) não há dispositivo específico para regular o
abuso do direito. Apenas o Projeto, que está em tramitação desde 1980, disciplina a
questão, dispondo que o exercício dos direitos não pode ser contrário a sua função
social e econômica (art. 33, § 1 .°). Por enquanto, os juízes seguem aplicando o art.
2.341, que versa sobre o ato ilícito. Na doutrina, dividem-se as opiniões a respeito
da autonomia da figura do abuso do direito.125 Omissos também é o Código Civil de
Cuba (1988). Não obstante, o artigo 4.°, inserido nas disposições preliminares,
preceitua que os direitos devem ser exercidos de acordo com sua finalidade e
conteúdo social, não sendo lícito seu exercício quando o fim perseguido seja causar
dano a outrem. Malgrado a referência subjetivista que se pode encontrar na parte
final do artigo (que Femández Sessarego
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
anterior ou a adoção das medidas cabíveis, sem prejuízo da indenização pelos
danos causados.
(124) Fernández Sessarego, op. cit., p. 316-318.
(125) Idem, p. 281 a 284. A respeito, Hernán Fabio López Blanco, Informe cerca dei
abuso de los derechos procesales en Colombia, in José Carlos Barbosa Moreira,
Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
atribui a um certo vezo ideológico),126 entende-se que, diante do primeiro período
do artigo 4.° do Código Civil cubano, haver-se-á de interpretá-lo de acordo com os
contornos delineados pela Constituição, que, é claro, não se compadecem com a
noção individualista contida no subjetivismo legado dos romanos.
O Código Civil da antiga Rússia disciplinava o abuso do direito de maneira
nitidamente subjetivista. Outro, entretanto, foi o tratamento dado à questão pela
República Socialista Federativa Soviética da Rússia, uma das quinze repúblicas da
recém-extinta União Soviética. Os direitos subjetivos, no ordenamento jurídico
soviético, devem ser exercidos com observância das finalidades do Estado e não
podem se contrapor aos objetivos perseguidos por uma sociedade socialista, em
estágio de edificação do comunismo, pelo que haverão de ter sempre em conta o
desenvolvimento das forças produtivas. Esta é a interpretação que se retira do artigo
1.0 do Código Civil de 1922, que serviu de modelo à codificação civilista das demais
repúblicas socialistas soviéticas: Os direitos civis são tutelados pela lei, salvo nos
casos em que sejam exercidos em oposição à sua destinação econômica e social.
Apesar de redigido na fase da Nova Política Econômica (NEP), que se seguiu a um
período de certa abertura à iniciativa econômica privada. a revolução deu ao
dispositivo legal um significado marcadamente socialista, a ponto tal que a regra foi
praticamente reproduzida no art. 5•0 dos Fundamentos da legislação civil da URSS
e das repúblicasfederadas.127 Trata-se, no dizer de Josserand, de uma
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(126) Idem, p. 284. Fica clara a influência do marxismo-Ieninismo no Código Civil
cubano, como, de resto, em todo o ordenamento jurídico. Assim é que a
Constituição da República de Cuba, logo em seu preâmbulo, faz referência ao apoio,
ajuda, colaboração e à amizade fraterna que une o povo cubano à antiga União
Soviética.
(127) Coutinho de Abreu. op. cit, p. 51 a 54; acerca da origem do dispositivo legal e
da acentuada diferença de tratamento em comparação à legislação burguesa, ver
também Pedro Baptista, op. cit., p. 85 e 89-92; Cunha de Sá, entretanto, escrevendo
antes do fim do império soviético (a primeira edição de sua obra data de 1 973 e a
segunda, de 1 997, não foi atualizada), chama a atenção para o fato de que, hoje, o
dispositivo acha-se
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
das fórmulas mais avançadas na recepção da doutrina do abuso do direito.128 Esta
orientação finalista foi praticamente mantida nos Fundamentos da Legislação Civil
da URSS e das repúblicas federadas. promulgados em 1961, bem como nos
Fundamentos que entraram em vigor em 1 .° de Agosto de l 964, em disposições
que são basicamente reproduzidas, sob reserva de indispensáveis adaptações, nos
códigos das repúblicas federadas.129
É relativamente recente a desintegração da União Soviética. Com a criação da
Comunidade dos Estados Independentes (CEI), alterou-se bastante a configuração
política, econômica, étnica e cultural do antigo império. Mas, novamente, dentre
todas as repúblicas, a Rússia tornou-se a mais poderosa, recepcionando as leis
anteriores, que, portanto, ainda estão de acordo com os Fundamentos da legislação
civil da URSS e das repúblicas federadas. E difícil dizer, a esta altura, diante da
alteração de rumos na política econômica daquele país — mormente depois do
programa de privatização em massa, desenvolvido em 1994 — acerca de um novo
significado dos direitos civis. E possível que a teoria do abuso do direito, que Cunha
de Sá revelara ter caído em desuso (diante do caráter provisório do direito na
construção de uma sociedade socialista) renasça, ainda que sobre outras bases.130
Início de nota de rodapé
praticamente em desuso, por reconhecer-se que o caráter provisório do direito na
construção de uma sociedade socialista tornaria a proibição supérflua (op. cit., p.
70); no mesmo sentido René David, Le Droit Sovietique, I, I 954, p. 1 33- 1 35 e 25 1
apud Haroldo Valladão, op. cit., p. 11.
(128) Josserand, De l esprit des droits et de leur relativité, 1 927, p. 275 e 276, apud
Pedro Baptista Martins, p. 92; no mesmo sentido os comentários de Campion (La
théorie de Iabus des droits, Bruxelles, 1925, apud Coutinho de Abreu, op. cit., p. 5
1); ver também as observações de Martín Bernal (op. cit., p. 88), Cunha de Sá (op.
cit., p. 68) e Alvino Lima (op. cit., p. 343 e 344).
(129) Cunha de Sá, op. cit, p.7O-72; Coutinho de Abreu, op. cit., p. 54; René David,
op. cit., 1.993, p. 21 I e 212;Antunes Varela, op. cit, p. 42.
(130) Martín Bernal diz que o totalitarismo de base econômica acaba repercutindo
na superestrutura jurídica, o que estabelece a diferença entre a teoria do abuso do
direito dos países soviéticos e a doutrina dos siste-
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Na Itália, como foi visto, a questão do abuso do direito sempre provocou viva
polêmica. Conquanto o projeto ministerial do Código houvesse previsto, no seu art.
7.°, a vedação do exercício contrário ao escopo da norma, certo é que o Código Civil
(1942) não adotou essa posição. Há apenas alguns artigos, um deles relativo ao
usufruto (art. 1.015) e outros concernentes aos direitos reais (art. 1.175) e aos
contratos (arts. 1.337, 1.366, 1.375 e 1.438), que contêm fórmula genérica, alusiva à
boa-fé, incapaz de convencer os adversários da doutrina do abuso de direito.
Scialoja, Fadda, Bensa e Coviello, escrevendo antes do Código, mas a propósito de
regras semelhantes, contidas nos artigos 545, 559, 592 e 593 da legislação anterior,
diziam tratar-se de mera limitação ao exercício do direito de propriedade, da qual
não se pode extrair um princípio geral.131
De fato, a teoria da emulação foi muito desenvolvida no direito italiano. O atual art.
833 é expressão disto: O proprietário não pode exercer atos que não tenham outro
fim senão causar dano ou
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mas ocidentais. A propósito das relações entre a estrutura social e a super estrutura
jurídica, v. Alan Stone, The Place of law in the marxian structure-superstructure
archeiype, in Law & Society Review, Colorado, vol. 19, n. 1, 1985, p. 39 a 67. Nesse
artigo, Stone discorre sobre o significado impreciso daquelas expressões, como
empregadas nas obras de Marx e Engels, circunstância que tem gerado
interpretações economicistas. Chama a atenção, no entanto, para o fato de que, em
muitas passagens do Prefácio da Crítica à Economia Política, lê-se que os ele-
mentos da superestrutura estão separados da estrutura econômica.
(131) Scialoja, Enciclopedia Giuridica Italiana, verb. Aemulatio, § 1 3, p. 439; Fadda
e Bensa, notas retiradas da obra de Windscheid, Diritto delle Pandette, Torino, 1925,
vol. 1, p. 413; Coviello, Manuale de Diritto Civile Italiano, p. 484 e ss., todos citados
por Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 1 8 e 1 9. Como registra Antunes Varela, à
semelhança do que ocorre no Código Alemão de 1 896, também no Código italiano
de 1 942 não se encontra nenhuma norma de caráter geral, que diretamente
contemple o abuso do direito. Chegou a ser projetada, mas não vingou na redação
definitiva do diploma, uma disposição desse teor: ninguém pode exercer o próprio
direito em contraste com o fim para o qual esse direito é conferido (op. cit., p. 40).
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
incômodo a outrem. Spota, todavia, pensa que este preceito, somado a outras
normas do Código, permite dizer que a legislação italiana acolheu o princípio do
abuso do direito não só no que diz respeito à emulação, como também à prática de
atos incompatíveis com os fins sociais e econômicos do direito.132 Tal qual sucedeu
no regime do Código Civil de 1865, quando a jurisprudência foi adaptando a teoria
geral dos atos emulatórios à realidade da época, também coube aos tribunais, na
vigência do novo Código, premidos pela necessidade de dar solução aos novos
conflitos da sociedade de massa, reorientar a aplicação da tese do abuso do direito,
para nela inserir a vedação da prática de atos antieconômicos e antissociais, sem
que se tivesse de indagar da intenção do titular do direito. No dizer de Martín Bernal,
trata-se, como ocorre com o direito francês, de uma legislação que adota
implicitamente um critério lato.133
Exemplo desta adaptação da teoria do abuso do direito aos conflitos coletivos,
próprios das sociedades de massa, foi colhido por Rescigno.134 O caso, submetido
ao Tribunal de Messina, ocorreu logo depois da 11 Guerra Mundial. Um grupo de
famílias sem-teto ocupa certas áreas de um conjunto habitacional construído por
uma entidade que desenvolvia um programa de construção de casas po- pulares. A
entidade, por razões de ordem social, tolera o ato. Mais que isto, permite-o,
provendo aquelas áreas de alguns serviços básicos. Inconformados, os proprietários
de áreas vizinhas, integrantes do mesmo conjunto de casas populares, promove
ação contra a entidade, argumentando que, ao se omitir na expulsão dos invasores,
teria abusado de um direito, praticando ilícito civil. Tanto o Tribunal de Messina
como a Suprema Corte entenderam que, malgrado a abstenção pudesse configurar
abuso, apreciáveis razões de conveniência e oportunidade, que não podiam ser
superadas no
Início de nota de rodapé
(132) Spota, Tratado de Derecho Civil, Buenos Aires, Depalma, 1947, tomo I, parte
geral, voi. 2, 1 967, p. 530, apud Luis O. Andorno, op. cit., p. 18; no mesmo sentido,
Antunes Varela, op. cit., p. 40 e 41.
(133) Martín Bernal, op. cit., p. 77 a 82.
(134) Rescigno, Labuso del diritto, in Rivista di Diritto Civile, 1965, apud Fernández
Sessarego, op. cit., p. 221-224.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
plano social e político, justificavam a omissão no exercício da defesa
possessória.135
Como observa Fernández Sessarego, o julgado permite entender a maneira como a
jurisprudência, na Itália dos anos 60, construiu, sobre a base dos princípios gerais
de direito, uma cláusula bastante ampla acerca do abuso do direito.136 E assim foi
em toda parte do mundo, a começar pela França. AIém da jurisprudência fundada na
emulação, à qual já se fez menção anteriormente, há julgados que representaram
verdadeiros marcos para a adoção do critério objetivista, a exemplo daqueles
relativos ao direito de vizinhança (casos Lingard, Mercy, Lecante e Grosheintz), os
quais influencjaram o anteprojeto do novo Código Civil francês (no qual a tese do
abuso do direito é consagrada sob a rubrica do exercício normal). A teoria do abuso
também encontrou campo fértil na interpretação judicial dos contratos, das
liberdades individuais e corporativas (liberdade de pensamento, liberdade de
comércio, greve, lock-out, inise à lindex, direito de associação etc.).137
Na órbita dos contratos, vê-se que a industrialização e a sociedade de massas
impõem novos paradigmas para as relações de troca, que deixam de ser individuais
para se tornarem coletivas, com prejuízo para a chamada autonomia da vontade. Se
de um lado houve simplificação dos negócios, de outro aumentou o espaço da
liberdade negativa, em prejuízo da liberdade positiva.138 Mas, como
Início da nota de rodapé
(135) A Guatemala é o único país latino-americano a inscrever em seu ordenamento
jurídico a omissão como forma de abuso, conforme registra Fernández Sessarego
(op. cit., p. 285 e 286). Rotondi, já na década de 40, sustentava o abuso na omissão
do exercício de um direito, que é, no fundo, a justificativa para o instituto da
prescrição aquisitiva da propriedade (op. cit., p. 99 e 100).
(136) Fernández Sessarego, op. cit., p. 224.
(137) Cunha de Sá, op. cit., p. 5 1 e 52.
(138) Para melhor compreensão dos conceitos de liberdade negativa (liberdade
desfazer) e liberdade positiva (liberdade para fazer), v. Hans Kelsen, A justiça e o
direito natural, 2. ed., Coimbra Arménio Ama- do, 1979, p. 62-66, Isaiah Berlin,
Quatro Ensaios sobre a Liberdade,
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
observa Tercio Sampaio Ferraz Jr.,139 esta ampliação é ilusória, diante do
crescente processo de massificação das pessoas. Há apenas uma falsa impressão
de igualdade, igualdade esta que é o pressuposto ideológico do conceito de
liberdade desenvolvido pelos revolucionários burgueses. Contudo, a partir do séc.
XX, à medida que as contradições do capitalismo industrial se agravaram, a
sociedade também foi- se conscientizando da necessidade de prover meios de
equalização dos direitos. Buscou-se, assim, a ampliação do espaço da liberdade
positiva, num reconhecimento de que os homens não nasceram iguais na sorte e na
fortuna. Nessa medida, o individualismo burguês, aos poucos, foi cedendo espaço
para outros padrões de comportamento, que passaram a compor a trama das novas
relações sociais.
A jurisprudência não é propriamente um indutor dessas transformações sociais, que
apenas são recolhidas pelos tribunais. Como será possível analisar no quarto e
quinto capítulos, as construções pretorianas são um dos sinais aparentes da crise da
concepção formalista do direito. A par da tradicional concepção de direito subjetivo,
fundada na noção de propriedade, surgem os chamados direitos subjetivos de
terceira e quarta gerações, que dizem respeito às reivindicações coletivas e à
resistência oposta às manipulações tecnológicas e científicas.140 O Estado, que até
então fora visto como um inimigo, passa a intervir de maneira crescente, sobretudo
nos chamados países do capitalismo tardio, gerando investimentos na área da
previdência social, desenvolvendo políticas públicas de erradicação das doenças
carências e elaborando projetos de distribuição de renda. Esta intervenção do poder
público, que busca novas bases para o contrato social, tem importantes implicações
na esfera da racionalidade jurídica.141
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Brasília, Ed. UnB, 1 98 1, p. 1 33 a 144 (Coleção Pensamento Político) e Joel
Feinberg, Filosofia Social, Rio de Janeiro, Zahar, 1974, p. 29 e 30.
(139) Ferraz Jr., Destino dos contratos, in Estudos e Conferências, Revista dos
Advogados, São Paulo, Ano 111 n. 9, AASP, p. 50 a 54.
(140) Bobbjo, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1 992, p. 5- 10.
(141) Particularmente interessante, a respeito dessa nova ótica contratualista, é a
visão neoliberal de John Rawls (Uma teoria da justiça, Brasília,
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
No campo das Iiberdades individuais e corporativas são conhecidas, na Itália, as
sentenças sobre despedida abusiva, com prejuízo para o empregado (sentença da
Corte di Appello de Gênova, de 26 de abril de 1954, citada no Massimario di
giurisprudenza del lavoro, 1954, p. 201) e também aquelas que declaram abusivas
lutas sindicais que ultrapassam os limites da reivindicação legítima, tais como a não
colaboração, a sabotagem ou a greve a scacchiera, movimentos que consistem
numa prestação irregular por parte do emprega- do, em prejuízo do empregador e
do destinatário do produto ou do serviço (sentença do Tribunal de Chiavari, de 09 de
fevereiro de 1953, citada no Massimario, 1953, p. 7). Na esfera da liberdade de
expressão, o Tribunal de Veneza, em sentença proferida em 1.0 de agosto de 195 l,
declarou abusivo o direito de crítica exercido por certo cornentarista, ao rotular de
pintura metafísica as obras de determinado artista, sem levar em conta a sua
produção como um todo, ou as suas obras de outro gênero e estilo (Giurisprudenza
italiana, 1952, 1, 2, 306). Por último, no que concerne à liberdade de comércio,
entendeu-se abusiva a crítica feita em um periódico, a propósito de determinado
produto que acabara de ingressar no mercado. Isto porque o comentário, longe de
informar o leitor, tinha a finalidade deliberada de denegrir a imagem do produto,
criando, assim, concorrência comercial desvirtuada, com agressão aos direitos ou
interesses alheios (sentença da Corte di Appello de Roma, 21 de maio de 1956,
citada na Giustizia civile, rep. 1956, voc. stampa, n. 3 — bis).142
No direito português, onde a doutrina teve papel decisivo na elaboração da teoria do
abuso do direito (importante é o Anteprojeto
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
UnB, Coleção Pensamento Político, vol. 50), pautada na conjugação de dois
princípios de justiça: a) princípio da igual liberdade máxima, segundo o qual deve
existir igualdade na distribuição de direitos e deve- res básicos; b) princípio da
diferença, segundo o qual as desigualdades somente se justificam quando
representarem benefícios para todos, especialmente para os menos privilegiados.
Sobre o tema, v. também Joel Feinberg, op. cit., p. 146-174.
(142) A referência a todos estes julgados foi retirada da obra de Cunha de Sá, já
citada, a páginas 57 e 58; especificamente, no que concerne às liberdades
corporativas, aí incluído o direito de coalizão, v, Pedro Baptista Martins, op. cit., p.
49-61.
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
do Código Civil de Vaz Serra, que menciona a prática de atos manifestamente
contrários à consciência jurídica dominante na coletividade social), o atual art. 334,
de orientação objetivista, têm aplicações bastante amplas. Aliás, a vivência
jurisprudência, na expressão de Cunha de Sá, mesmo à época do Código anterior
(1867), sinalizava no sentido de um reconhecimento da doutrina, ainda que em
bases subjetivistas.143 Assim, no campo das relações comerciais, decidiu-se acerca
da responsabilidade, perante terceiros, de uma sociedade em nome coletivo que se
obrigou em razão de uso abusivo da firma social por parte do sócio-gerente (Tribunal
da Relação do Porto, 04 de março de 1 970, Jurisprudência das Relações, 16.°, p.
312).144
Na Grécia, é larga a aplicação do disposto no art. 281 do Código Civil, que veda o
exercício do direito de modo contrário às finalidades econômicas e sociais previstas
na lei. Na esfera contratual, são diversos os acórdãos relativos a cláusulas abusivas,
que se configuram no nexo entre a exploração da necessidade, leviandade ou
inexperiência de uma das partes e a manifesta desproporção das prestações, a ser
aferida no momento mesmo da celebração do contrato.145 Na Espanha, os autores
costumam referir-se a duas paradigmáticas
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(143) o autor português faz referência a uma decisão, proferida pelo Tribunal da
Relação de Coimbra, em 26 de Maio de 1 988, na qual se considerou abusiva, tal
como no precedente francês, já mencionado nesse trabalho, a construção de uma
chaminé, intencionalmente dirigida a prejudicar OS vizinhos de um prédio contíguo
(Cunha de Sá, op. cit., p. 245). E clara, ainda aqui, a influência da aemulatio.
(144) ldem, p 257. Antunes Varela registra que, diferentemente do que ocorria com o
Anteprojeto de Vaz Serra, onde o abuso do direito era tratado no capítulo relativo à
responsabilidade civil, o código português de 1 966 inseriu o tema nas disposições
gerais relativas ao exercício e tutela dos direitos (op. cit., p. 41).
(145) Idem, p. 82; em um sentido mais amplo, o conselho de Estado francês, já no
início do século, por força das repercussões da 1 Grande Guerra na economia
contratual, havia disposto sobre a possibilidade de revisão Judicial dos contratos que
viessem a se tornar excessivamente onero- SOS para uma das partes, em razão de
novas circunstâncias, fora de toda previsão. Sobreveio, em 1 91 8, a Lei Failliot, que
consagrou o princípio
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
sentenças da década de 40, que acabaram por influenciar a Reforma de 1974.
Assim é que o Tribunal Supremo, em decisão proferida aos 14 de fevereiro de 1944,
ocupando-se dos estragos provocados na praia de San Adrián de Besós, bem como
na central elétrica ali instalada, danos estes que tinham origem na extração de areia
no litoral de Barcelona por parte de um consórcio, decidiu que, a par dos limites
legais, com frequência defeituosamente estabelecidos, existem outros, de ordem
moral, teleológica e social, cuja inobservância pode dar lugar à responsabilidade
daquele que, atuando sob o amparo de uma legalidade aparente, ultrapassa a
fronteira imposta pela equidade e pela boa-fé, causando danos para terceiros e para
a sociedade.146
No Brasil, desde o início do século XX, também se fizeram sentir as consequências
da tensão entre a sociedade individualista e a sociedade de massas, que
repercutiram sobretudo nas relações contratuais.147 Atualmente, a Lei 8.078, de 11
de setembro de 1990, ao
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
da revisão. Pedro Baptista Martins sustenta que a teoria da imprevisão, como ficou
conhecida, tem fundamento na noção de abuso na execução do contrato, conforme
desenvolvida pela jurisprudência (op. cit., p. 43). Daí a observação de Charmont (op.
cit., p. 125) e de Rotondi (Le role de la notion de labus du droit, in Revue de Droit
Civil, Paris, Sirey, 1980, p. 66 e 67) acerca do papel precursor dajurisprudência
francesa, que se antecipou às elaborações da doutrina e às alterações legislativas.
(146) Fernández Sessarego, op. cit., p. 226 a 229; este acórdão é igualmente
mencionado por Martín Bernal (op. cit., p. 102, 127, 145,155, 228, 248, 258, 274 e
354).
(147) Pedro Baptista Martins, a propósito das disposições do Decreto 22.626, de 7
de abril de 1 933, assim se pronunciou: A história das transformações do direito
privado nos mostra que nessa contradição é que consiste o abuso. Os códigos civis,
por exemplo, firmam, em regra, o princípio da Iiberdade convencional. E à sombra
desse princípio prosperam a usura e o anatocismo. As condições econômicas atuais
já não toleram, entretanto, as taxas postas em curso pela usura. Por isso, era
sempre com a consciência de que estava sendo vítima de um abuso que o
prestamista se submetia às extorsões da agiotagem. Praticando a usura, o mutuante
abusava de sua liberdade contratual, porque procurava auferir do seu capital
rendimentos que as novas condições econômicas não comportavam. E só o
retardamento Iegislativo é que gerava a possibilidade de
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
tratar das cláusulas abusivas (art. 52, § 1 .°), reconhecendo a hipossuficiência do
consumidor, limitou o valor da multa nos contratos de crédito e financiamento,
fixando-a em dois por cento daquele relativo à prestação (conforme alteração feita
pelo art. 1 .° da Lei Federal 9.298, de 01.08.1996). O rol de cláusulas abusivas,
exemplificativo (art. 7.°), foi delineado na base da construção pretoria- na, que é
registro histórico da passagem das manifestações de vontade individuais para as
manifestações de vontade coletivas, próprias da contratação em massa.148
O movimento das associações de consumidores — que teve origem nos EUA,
durante o período da Grande Depressão — acabou induzindo construções
pretorianas que são precursoras de certas previsões hoje inseridas em lei. A
desconsideração da pessoa jurídica, prevista no artigo 28 da Lei Federal 8.078/90,
que visa a reprimir os abusos de direito cometidos através de uma sociedade
comercial, encontra seu nascedouro nos julgados dos tribunais ingleses (case
Salomon vs. Salomon & Co, 1897), que repercutiram, tempos depois, nos EUA, país
onde se formou larga jurisprudência. Rubens Requião, escrevendo na década de 60,
diz que a jurisprudência brasileira, desde algum tempo, já vinha delineando os
primeiros
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
semelhantes abusos (Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 141). Com a edição da Lei
4.595/64, as empresas do sistema bancário foram excluídas do regime da Lei de
Usura, submetendo-se aos parâmetros fixados pelo Conselho Monetário Nacional.
Vedada, entretanto, ainda é a prática do anatocismo, exceção feita às cédulas
industriais e comerciais, desde que haja cláusula expressa, que têm regulação
própria (art. 5.° do Decreto-Lei. 1 67/67, art. 5 .° do Decreto-Lei 4 I 3/69 e art. 5 .° da
Lei 6.840/80). A polêmica acerca do tema reacendeu com a Constituição Federal de
1 988, que, no artigo 192, § 3.°, fixou a taxa de juros em doze por cento ao ano.
(148) Ainda que se possa reconhecer a lentidão da Justiça, como apontada por um
dos autores do Código de Defesa do Consumidor (Antonio Herman V. Benjamin,
Apresentação da obra de Alberto Amaral Jr., Proteção do consumidor no contrato de
compra e venda, São Paulo, RT, 1993, sem paginação), é certo, como diz Ripert,
que a evolução Ienta e gradual do direito é própria de seu papel moderador (Les
forces creatices du droit, Paris, Librairie Générale de Droit et Jurisprudence, 1 955
apud Martín Bernal, op. cit., p. 170).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
contornos da aplicação da disregard doctrine, fundada na noção de abuso do direito
(RT 238/394, 343/181 e 387/138). 149 A facilitação dos meios de defesa dos direitos
do contratante (art. 6.°, VIII, da Lei 8.078/90), questão que encontra lastro na teoria
do abuso do direito, é tese também recolhida nos tribunais.
São muitos os exemplos de proteção judicial contra o uso abusivo do direito: a) no
Brasil, a jurisprudência se adiantou, seguindo a doutrina e legislação italianas, em
matéria de sustação de protestos;150 b) anteriormente à previsão do artigo 20 do
Decreto-Lei 7 .66 1, de 2 1 de junho de 1945, já se delineava uma tendência
jurisprudencial, na base da noção do uso abusivo do direito de demanda, no sentido
de punir aquele que requer a falência com manifesta intenção de prejudicar o
comerciante;151 c) a edição do Decreto 24.150, de 20 de abril de 1934, veio
resguardar a função econômica dos contratos, colocando o locatário comercial a
salvo das exigências abusivas do senhorio, que, sob ameaça de apropriar-se do
valor do ponto comercial, exigia luvas para a renovação do contrato. O Decreto, que
partiu do Anteprojeto de Ribas Carneiro, contratado que fora pelo Sindicato dos
Lojistas do Rio de Janeiro, encontrou inspiração na lei francesa de 1926, que é fruto
da influência da doutrina e dajurisprudência;152 d) também quanto ao abuso do
direito de
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(149) Rubens Requião, Abuso do direito e fraude através da personalidade jurídica
(disregard doctrine), in RT, São Paulo, Ano 58, dez. de 1969, vol.410,p. l2 e ss.
(150) RT 109/172, 148/686, 150/246, 162/21 1, 172/667, 176/69, 178/669, 179/789,
1 88/295, 252/588 e 227/445, citadas por Pedro Vieira Mota, Sucedâneos da
sustação do protesto, São Paulo, edição do autor, sld., p. 7; também a propósito,
Jorge Americano (Comentários ao Código do Processo Civil do Brasil, vol. l, São
Paulo, Livraria Acadêmica Saraiva & Cia, 1940, p. 27).
(151) Tribunal do Distrito Federal, 4/12/1909, in O Direito, vol. 3, p. 399; Câmaras
Reunidas do Tribunal do Distrito Federal, 20/6/1912, in Revistado Direito, p. 26, vol.
143; Tribunal de São Paulo, in RT, vol. 1 12, p. 660, todos citados por José Olímpio
de Castro Filho, op. cit., p. 185 e 186.
(152) Ladislau Karpat, A locação no Direito Brasileiro, São Paulo, Hemus, s.d., p. 69
e 70; Carios B. Valente & Carlyle Popp, Ação Renovatória de Locação, Curitiba,
Juruá Ed., 1992, p. 33 e 34.
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
purgação de mora no pagamento do aluguel, cobrado em ação de despejo, foi
precursora a orientação do Tribunal de Justiça de São Paulo.153
Na seara das relações trabalhistas, onde mais se fez sentir a transposição de uma
de economia agrária, ainda vigente na década de 40, para um modelo de economia
comercial e industrial, que marcou o início dos anos 60, é fértil o campo para a
aplicação da teoria do abuso, a começar pela chamada despedida obstativa, cujo fim
é impedir a aquisição da estabilidade no emprego. A construção des- te conceito é
eminentemente pretoriana (Súmula 26 do TST). Mais amplo é o significado da
dispensa abusiva, conceito que tem em conta a prática de ato contrário aos fins
sociais do direito, ultrapassando o campo da simples despedida arbitrária.154
No que toca à defesa dos interesses difusos, a exemplo do meio ambiente, dos
direitos humanos, da etnia, das minorias sociais etc., que se contrastam muitas
vezes com o abuso do poder econômico, tecnológico e científico, a jurisprudência
brasileira começou a de linear-se discretamente, diante da inexistência de lei
específica, exigência dos arts. 3.° e 6.° do Código de Processo Civil. Em países
como a Áustria, Itália, França e EUA, as construções, muitas vezes contra legem,
ganharam relevo a partir do início do século XX. A princípio, os tribunais
consagraram a garantia da defesa dos
Início de nota de rodapé
(153) OscarTenório, Outras considerações a respeito do abuso de direito na
purgação da mora, in Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Rio de
Janeiro, Ano XIV, março de 1956, n.57, p. 11 a 14.
(154) Amauri Mascaro Nascimento, Iniciação ao Direito do Trabalho, São Paulo, LTr,
5. ed., 1980, p. 21 8 e 219; Sergio Torres Teixeira, Proteção à relação de emprego,
São Paulo, LTr, 1998, p. 162. Este último autor, em dissertação de mestrado
apresentada à Universidade Federal de Pernambuco, sustenta que a Lei 9.029, de 1
3 de abril de 1995, veda toda e qualquer forma de discriminação patronal hostilizada
na legislação pátria, não sendo exaustivo o elenco apresentado nas suas letras (op.
cit., p. 393). A propósito da aplicação da teoria do abuso do direito as relações
trabalhistas da sociedade industrial do séc. XIX, v. Saleilles, op. cit., p. 343 e 344,
Planiol, ob cit., tomo 11, p. 905 e 906, Colin e Capitant, op. cit., p. 634, e Charmont,
op. cit., p. 1 16.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
interesses coletivos, o que permitiu a proteção de abusos pratica- dos através da
chamada contratação em massa. A propósito, tornaram-se famosas as decisões da
Courde Cassation que, em 1913 e em 1 9 1 8, reconheceu, respectivamente, a
legitimidade dos syndicats professionnels e a legitimidade das associationes de
défense, corpos intermediários da sociedade, para a defesa de interesses de seus
associados.155
1.4 Para uma revisão crítica da teoria do abuso do direito
Apesar do emprego de expressões genéricas, tais como exercício irregular, abuso,
excesso, é de se entender que o direito exercido abusivamente, por definição,
pressupõe que o agente atue dentro dos limites objetivos da norma, porém,
desviando-se dos fins econômicos e sociais perseguidos pela regra legal. E neste
sentido que a teoria do abuso do direito ganha autonomia, buscando um nicho
próprio, distinto daquele reservado à teoria dos atos ilícitos. 156
Alguns autores, entretanto, sustentam que qualquer desvio do direito em relação às
finalidades para as quais foi instituído configura ilícito. Fernández Sessarego,
resumindo a posição dos que se perfilham a esta corrente doutrinária, sustenta que
o ato abusivo é uma conduta que transpõe a fronteira que separa um
comportamento
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(155) Mauro Cappelletti, Formações Sociais e interesses coletivos diante da justiça
civil, Revista de Processo, São Paulo, Ano II, jan-março de 1 977, n. 5, p. 149. A
proteção dos interesses difusos inaugura uma nova fase metodológica na teoria do
processo, com importantes repercussões no campo do chamado abuso dos direitos
processuais, como será visto mais adiante. Assim, se é certo que a universalização
da justiça implica um aumento da participação do juiz na instrução da causa — o
que se revela na mitigação do ônus da prova, na alteração dos limites da coisa
julgada— não menos certo é também que isto não se pode fazer sem que se tenha
em conta o caráter intersubjetivo da argumentação jurídica. A questão consiste em
saber de que tipo de racionalidade o processo judicial se vale no desenvolvimento
desse novo modelo processual.
(156) Martín Bernal, op. cit., p. 247; Warat também entende que o abuso do direito
pressupõe a licitude da conduta (op. cit, p. 69).
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
lícito de um ilícito, qualquer que seja a intensidade, o matiz ou a gravidade que a
ilicitude comporte.157
É consabido que os conceitos não têm uma referência direta à realidade. Definem-
se palavras e não coisas. Estas considerações serão melhor desenvolvidas no
terceiro capítulo. Por ora, servem apenas para dizer que o conceito de ilícito tem em
conta, como visto, alguns critérios identificados pela doutrina. Fossem outros os
critérios, diferente seria o conceito. Fora daí, mergulha-se numa concepção
platônica, numa visão realista acerca da Iinguagem.
Desta forma, a fim de não incorrer no erro de confundir o conceito com a própria
realidade, esquecendo-se de que as palavras são simples convenções, é necessário
estar atento para as armadilhas semânticas, que mal escondem uma simples
disputa verbal. Acerca das classificações não se pode dizer que sejam certas ou
erradas, mas apenas úteis ou inúteis. A importância da autonomia do conceito de
abuso do direito, como categoria distinta do ilícito, reside precisamente em saber se
é possível acontecer de alguém colocar-se à margem do direito, na dependência da
maneira como exerce uma faculdade que por ele lhe é assegurada.
Essa discussão remete, em outras palavras, ao paradoxo apontado por Planiol: ou
bem se exerce um direito, pelo que não se pode cogitar de abuso, ou bem se está
praticando um ilícito, pelo que não há razão para falar em abuso. Tertiuni non datur
A posição dos objetivistas que, como Sessarego, reduzem o abuso do direito ao
ilícito, tem de ser entendida, 110 entanto, como uma terceira opção dentro deste
aparente dilema. É que a ilicitude, aqui, tem uma conotação mais ampla, a incluir
outras propriedades que, historicamente, o conceito não comporta.
Com efeito, a teoria geral do ato ilícito, como visto, é fruto de uma concepção
individualista, que não tem em conta a alteridade, a solidariedade e a coexistência
das potencialidades humanas. Bem mais feliz, neste sentido, a redação do atual
Código Civil brasileiro,
Início de nota de rodapé
(157) Fernández Sessarego, op. cit., p. 312 e 313.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
que tem feição nitidamente objetivista, a destrinçar o abuso do ilícito (stricto sensu),
como categorias autônomas.158
Não há negar, pois, que, dentro de uma concepção mais abrangente, o direito
exercido abusivamente é mesmo um ilícito (lato sensu), porque antissocial, contrário
às finalidades para as quais foi instituído. Necessário é, para que se possa entender
esta ampliação do conceito de ilícito, acompanhar as mudanças que se
processaram, no campo da dogmática jurídica, a partir do final do século XIX.
Paulo Dourado de Gusmão, escrevendo no final da década de 40, já reconhecia, na
indevida identificação entre o direito e o Esta- do, toda a origem da controvérsia
acerca do abuso do direito. Não se pode desconhecer que o direito é o resultado de
uma pluralidade de fontes, que corresponde às exigências dos diversos grupos
sociais. Direito positivo é aquele que a consciência coletiva, num dado momento
histórico, admite como válido e obrigatório.159 Não se pode deixar de reconhecer
aqui — embora Dourado de Gusmão não faça explícita referência — a posição
defendida por Mario Rotondi, como se terá oportunidade de ver.160
Início de nota de rodapé
(158) O artigo 1 88 do Anteprojeto elaborado pela comissão presidida pelo Professor
Miguel Reale foi praticamente reproduzido no artigo 1 87 do Código Civil em vigor
(Lei Federal 10.406, de 10 de Janeiro de 2.002): ...também comete ato ilícito o titular
de um direito que, ao exercê-Io, excede manifestamente os limites impostos pelo
seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes. Aliás, o art. 986 do
Anteprojeto (artigo 927 do Código Civil vigente) dispunha que o ilícito estava previsto
não só no art. 187 como também no art. 188 (artigos 186 e 187 do Código Civil
vigente). Equivocada, assim, sob o ponto vista desenvolvido nos parágrafos
anteriores, a crítica de Guilherme Fernandes Neto, segundo a qual o Anteprojeto,
nos dispositivos há pouco mencionados, teria abraçado a teoria subjetivista,
reduzindo a figura do abuso do direito à categoria do ilícito (O abuso de direito no
Projeto 634-B, Revista de Informação Legislativa, ano 27, n. 1 06, abr./jun./90). A
tanto convir, basta ver que o Anteprojeto se inspirou no artigo 334 do Código Civil
português, como reconhece a doutrina (Antunes Varela, op. cit., p. 42, nota 2).
(159) Dourado de Gusmão, Pressupostos filosóficos da noção de abuso do direito, in
RT, São Paulo, Ano XLV, fasc. 545, vol. 120, p. 50-56,
(160) Rotondi, Intituiciones de Derecho Privado, Barcelona, Ed. Labor S.A., 1953, p.
99-100; uma exposição mais ampla do pensamento desse autor
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
A consciência jurídica coletiva surge, assim, como fonte constitutiva do direito, que
não se esgota nas fontes formais, nas normas postas. Daí a pluralidade de
princípios gerais, que estruturam o direito no tempo e no espaço. Esta consciência
está longe da Volksgeist do historicismo jurídico de Savigny, porquanto é sempre
contrastável com as consciências singulares. Tanto uma como outras, em suas
camadas mais profundas, são depositárias de valores arcaicos, avessos a
mudanças. A justiça consiste exatamente no equilíbrio entre acomodação e
mudança, competindo às fontes Constitutivas promovê-la. Dentre os valores sociais
estão o individualismo e o estatisrno, que o solidarismo procura conciliar, como
solução de justiça. E dentro desse nesse quadro que se tem de considerar a
questão do abuso do direito, no entendimento de Dourado de Gusmão.
Com efeito, se o direito busca a justiça, e se esta varia em função dos valores
espirituais coletivos, a tipicidade normativa, que é a regulamentação abstrata de
uma dada relação, também varia, mas não com a mesma velocidade. Cabe, assim,
aos princípios gerais do direito recolher as fontes constitutivas não absorvidas pela
norma. Daí em diante, Dourado de Gusmão insere a questão do abuso no desvio do
exercício do direito por parte do titular que, preferindo as finalidades individuais às
finalidades sociais do direito, excede os limites latentes na consciência coletiva,
invocando a norma retrógrada, desconforme ao direito atual, ao sentimento histórico
da justiça.
Da doutrina exposta, que busca fundamentos em Gurvitch, Durkheim e Geny,
importa considerar a questão da consciência jurídica coletiva e a noção de princípios
gerais de direito, ambas inseridas no quadro do descompasso entre as expectativas
sociais e a
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italiano, discípulo de Barassi, encontra-se em sua tese de doutorado, O abuso do
Direito, Pádua, 1 922. Antunes Varela identifica na crise do conceitualismo legal-
formal da pandectística o momento em que a concepção axiológica do direito
subjetivo ganha expressão. Não se trata, como quer Rotondj, de reconhecer na tese
do abuso do direito um momento estritamente sociológico. Essa posição ignora a
dimensão jurídica do conceito (Antunes Varela, op, cit,, p. 50 e 5 1; 55-59). Paulo
Dourado de Gusmão também se afasta do legalismo de Rotondi.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
norma. Genaro Carrió aponta sete focos de significação para a palavra princípios: a)
propriedade fundamental ou parte integrante de alguma coisa; b) regra, guia ou
orientação; c) causa, origem; d) finalidade, propósito; e) premissa, axioma, essência;
f) regra prática de conteúdo; g) máxima, aforismo. Os princípios gerais do direito,
segundo Carrió, fazem referência a todas estas idéias.161
Com frequência, fala-se em certos princípios legais, tais como o da separação dos
poderes (primeiro significado), ou na essência dos conceitos jurídicos, considerados
como entidades, nos moldes da jurisprudência dos conceitos (quinto significado).
Fala-se também no princípio da bagatela ou no princípio da insignificância, que
expressam generalizações ilustrativas, obtidas com o recurso à estrutura do sistema,
já que não previstas normativamente (primeiro e segundo significados). E comum
também a referência a ratio legis ou a mens legis, que expressam a idéia de
finalidade, objeto do quarto significado e que, da mesma forma, não têm previsão
normativa. Os princípios também fazem referência aos juízos de valor, tal como a
idéia de consciência jurídica popular (segundo e terceiro significados) ou às
máximas que provêm da tradição jurídica (sétimo significado).
São, pois, diversas as teorias acerca da natureza dos princípios, como diversas
também são as teses acerca de seus fundamentos (direito natural, direito
comparado, direito posto etc.).162 Bobbio,
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(161) Genaro Carrió, Princípios juridícos y positivismo jurídico» Buenos Aires,
Abeledo Perrot, s.d., p. 33-38.
(162) Del Vecchio (Lições de Filosofia do Direito, Coimbra, Arménio Amado, Ed., 1
95 1, p. 4 1 5-42 1) constrói o conceito de princípios gerais do direito na base
metafísica do jusnaturalismo; a partir do positivismo jurídico, a referência aos
princípios gerais do direito passou a ser feita pela própria norma, com o que
ganharam uma natureza supletiva, ainda que sob fundamentos diversos (Emílio
Betti, Interpretación de Ia Iey y de los actos jurídicos, Madrid, Editoriales de Derecho
Reunidas, s.d., p. 281-288; Larenz, Metodologia de Ia ciencia del derecho, Bacelona,
Anel, 1994, p.148-150, 172, 173, 185, 368-385 e465-483 ; Esser, Einfiihrung in die
Grundbegrffe, p. 183 e Grundsatz undNorm in der richterlichen Fortbildung des
Privatrechts, p. 5, apud Larenz, op. cit., p. 146 e 471). A partir de Crisafulli (Per la
determinazione del concetto deiprincipi generali del Diritto, en Studi sui Principi
generali
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
por exemplo, sustenta que os princípios são obtidos através de uma analogia juris,
fundada no emprego de um argumento indutivo (relação de semelhança), cuja
conclusão resulta na segunda premissa integrante de um silogismo dedutivo.163 No
mesmo sentido é a posição de Enneccerus, para quem a analogia juris parte de uma
pluralidade de disposições jurídicas particulares, extraindo delas, por indução,
princípios mais gerais, que se aplicam a casos que não se ajustam a nenhuma das
disposições da lei. 164
No caso dos princípios gerais que informam a noção de abuso do direito no
ordenamento jurídico brasileiro, surgem eles de vá- rias disposições particulares,
existentes em diversas codificações. São standards que orientam o intérprete na
compreensão do sentido dell ordinamento giuridico, Pisa, 1 94 1, p. 240 e ss., apud
Betti, op. cit., p. 282), os princípios gerais de direito ganham status normativo.
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(163) Bobbio, Teoria dellordinamento giuridico, Turim, Copisteria Giappichelli,
LitografiaDiritto, l96O,p. 173-175; I81e182.Ojusfilósofo italiano parte da construção
de Crisafulli.
(164) Enneccerus, op. cit., Tomo I, Parte Geral, volume 1, § 53, p.212; para Mario
Rotondi, o discurso sobre o abuso do direito avança sobre uma problemática mais
ampla, e chega a compreender os problemas mais gerais dos Iimites da ordem
jurídica, da interpretação e aplicação da norma (Le role de la notion de l abus du
droit, in Revue de Droit Civil, Sirey, I 980, p. 68); para Martín Bernal, não se trata de
argumentar, na aplicação de um princípio geral do direito, com a existência de uma
lacuna, senão com um caso de atipicidade normativa; para Warat, igualmente, a
noção de abuso do direito não tem referência à inexistência de norma, já que existe
uma conduta deonticamente permitida, ainda que tal previsão possa resultar
inapropriada para regular as atuais formas de convivência social. O autor argentino
não deixa de admitir que este, entretanto, é o sentido contra- intuitivo de lacuna em
Kelsen (op. cit., p. 98). Entende-se, todavia, que a questão do abuso do direito pode
interferir com o problema das lacunas desde que se tenha em conta a permissão
negativa como categoria deôntica (tudo que não está proibido está permitido), o que
afasta a tese da existência de um espaço jurídico inqualificado, vale dizer, sem
significação jurídica. Coljn e Capitant entendem que é precisamente no uso destas
faculdades, pertencentes ao campo da permissão negativa, que mais se come- tem
atos prejudiciais aos outros (op. cit., p. 626 e 627). A respeito desta discussão, v.
Amedeo Conte, Saggio sulla completezza degli ordinamenti giurjdjcj Turim,
Giappichelli Ed., 1962.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
histórico e social de justiça, extraídos do texto da norma.165 Expressões tais como
moralidade, utilidade, finalidade, adequação, limite ou limitação, moderação, motivo
justo, motivo legítimo, prática equitativa, função social; excesso, desnecessidade,
exercício irregular exercício anormal, mau uso, uso abusivo, são indicativas de
condutas que, na dependência das circunstâncias sociais, econômicas e sociais,
ingressam na esfera da iliceidade (expressão que ora se passa a adotar como
referência a um conceito mais amplo de ilicitude, ainda que de origem normativa,
segundo alguns, porque fundado nos princípios gerais de direito).166
Hoje, muitos são os dispositivos na legislação brasileira que encamparam a noção
de abuso do direito, como espécie do ilícito. Poder-se-ia citar, sem qualquer
pretensão sistematizadora, a Constituição Federal, o Código de Aguas (Decr.
24.643/34), o Código Penal (D.L 2.848/40, com as alterações que se seguiram), a
Lei das Contravenções Penais (D.L. 3.688/41), a Lei de Falência e de Recuperação
de Empresas (1 1.101/05), a Lei de Imprensa (5.750/67), a Lei de Proteção à Fauna
(5.197/67), o Código de Processo Civil (Lei 5.869/73, com as alterações que se
seguiram), a Lei das Sociedades Anônimas (6.404/76), a Lei de Greve (7.783/89), a
Lei que
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(165) A propósito, escreve Fernández Sessarego: o direito, corno a vida, é temporal
e histórico e, por conseguinte, lábil e fluido. As condutas humanas, inseridas na
temporalidade, portanto, reflexos fenomênicos da Iiberdade, podem ser ou deixar de
ser valiosas de um momento para outro, sem solução de continuidade. Podem ser
justas até certo momento para, logo depois, transformar-se em injustas. Podem ser
solidárias durante um lapso, para, no átimo seguinte, converter-se em antissociais.
Não vemos, pois, inconveniente para que uma conduta potencialmente lícita ou
ilícita, no momento inicial, transforme-se, em certo instante, em ilícita, ao transgredir
algum dever imposto pelo ordenamento jurídico. É indiferente que o dever imposto
seja especifico ou genérico, como seria aquele previsto em um princípio ou cláusula
geral do direito (op. cit., p. 313); no mesmo sentido, Goldschmidt (op. cit., p. 26 e
27).
(166) Josserand propõe a denominação atos ilícitos em contraposição a atos ilegais
(ilicitude stricto sensu) (De Iesprit des droit et de leur relativitè, n. 261, apud Alvino
Lima, op. cit., p. 329). Trata-se, de qualquer forma, de uma tentativa de definição
teórica.
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
disciplina a ação de indenização dos prejuízos causados por investi- dores
mobiliários (7.913/89), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), o
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), a Lei dos Crimes Contra a Ordem
Tributária (8. 137/90). a Lei de Locação (8.245/9 1), a Lei de Abuso do Poder
Econômico (8.884/94), o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), a Lei que veda a
dispensa abusiva (Lei 9.029/95), a Lei de Propriedade Industrial (9.274/96) e a Lei
que pune as atividades lesivas ao meio ambiente (9.605/98). 167
Pedro Baptista Martins, já na década de 30, registra esse movi- mento legiferante,
através do qual as hipóteses de limitação ao direito vão assumindo o caráter de
ilegalidade normativa expressa.168 Mas é claro que a própria expressão abuso,
quer na interpretação do direito como um todo (onde o conceito surge como
antônimo de liceidade), quer no exame da norma específica (onde o conceito
aparece como antônimo de licitude) suscita um sem número de significados, na
dependência do caso concreto. O importante, ainda nas palavras do autor, é que se
entenda que o reconhecimento de uma situação abusiva não depende de expressa
previsão legal.169 E nem
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(167) Registre-se que a doutrina controverte sobre o enquadramento do abuso do
poder (excesso de poder e desvio definalidade) na categoria do abuso do direito.
Dabin diz que em nada se diferenciam (cfr. Cunha de Sá, op. cit, p. 390). Todavia,
Eisenmann (Une nouvelle conception du drojt subjetctif. la théorje de M.Dabin,
Revue de Droit Public, 1954, p. 767, apud Cunha de Sá, op. cit., p. 383), partindo da
noção de direito subjetivo como interesse, defendida por Dabin, diz que o direito
subjetivo não pode ser entendido como competência, uma vez que o titular carece
de um interesse particular e o exercício da competência mais não é senão um dever.
Igualmente, Planiol sustenta que não se pode confundir o abuso do direito com o
desvio do poder. Diz que o direito subjtivo é um poder egoísta. A autoridade pública,
ao contrário, exerce o poder em nome de todos, cometendo excesso de poderes
quando age em um interesse privado (Pianiol, op. cit., tomoll, p. 340, nota 1). Bem
por isso, não foram incluídas no rol das leis que consagraram o abuso do direito
aqueles referentes aos agentes públicos.
(168) Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 48.
(169) Ide,n, p. 8 l e 82; o autor, em certa passagem, citando Josserand e Rotondi,
lnvoca a importância dos princípiosjurídicos (op. cit., p. 138-140).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
se argumente com o princípio da reserva legal (art. 50 da Constituição da
República), porquanto, como vjsto, as limitações do uso, abusivo resultam de outros
princípios também extraídos do sistema jurídico.170
Com maior razão —respondendo à crítica de Roberto Goldschmidt ao Anteprojeto
do Código de Obrigações de 1941 — entende-se que o só fato de o artigo de lei,
relativo ao abuso do direito, encontrar-se deslocado de sua adequada ubiquação
não é suficiente para com- prometer a autonomia da teoria, que tem de ser
distinguida do regramento dos atos ilícitos (stricto sensu). Ideal mesmo seria, como
aponta Haroldo Valladão, que a questão do abuso do direito fosse tratada na Lei
Preliminar, na Lei Introdutória, na Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas.171
Todavia, cuidando-se de princípio
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(170) A propósito, Pedro Baptista Martins, escrevendo no regime da Constituição de
1937, extrai das normas dos artigos 122 e 123, relativas aos direitos e garantias
individuais, fundamento constitucional para a repressão do abuso do direito (op. cit.,
p. 1 16 e 1 17). Hoje, tais garantias assumiram um caráter social (arts 50 a 17 da
Constituição Federal de 1988). Haroldo Valladão já reclamava um tratamento
constitucional acerca da matéria do abuso do direito, no seu dizer, principio supremo
de justiça social (op. cit., p. 14). Martín Bernal, a propósito da Constituição da
Espanha, diz que é na passagem do Estado de Direito para um Estado Social do
Direito que se pode identificar a consagração, ainda que implícita, da doutrina do
abuso do direito (op. cit., p. 283 a 287). Interessante, aliás, a relação entre o critério
finalista, defendido por Josserand e Campion — no sentido de que o exercício do
direito deve conformar-se à finalidade para a qual foi instituído ou à natureza mesma
de determinada instituição jurídica — e a teoria constitucional das garantias
institucionais. Escrevendo sobre essas garantias, na base de princípios que são
normas-chave de todo o sistema jurídico, Paulo Bonavides observa que o Estado
Social alterou o perfil individualista das antigas disposições constitucionais, que
tinham fundamento na noção de direito subjetivo, com o que ganhou relevo a idéia
de dar amparo a certas instituições (sindicato, família, maternidade, ensino etc.), de
fundamental importância para a sociedade (Curso de Direito Constitucional, São
Paulo, Malheiros, 6. ed., 1996, pp 492 e 498).
(171) Haroldo Valladão, idern, ibidem (nesse sentido, o autor carioca retoma a
questão já discutida por Saleilles, no relatório apresentado à comissão de
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
geral do direito, pouco importa que esteja ou não reduzido à norma escrita.
Em suma, para uma teoria crítica do abuso do direito, o conceito tem de ser
encontrado no descompasso entre a realidade e a norma, entre a consciência
jurídica coletiva e o ordenamento jurídico vigente, entre a legalidade e aquilo que
Hauriou chamou de superlegalidade.172 Daí a advertência de Goldschmidt, no
sentido de que à idéia de abuso basta o conceito de antijuridicidade, vale dizer, um
juízo de valor, uma estimativa ético-social da conduta humana, que está no campo
metajurídico.173
Luís Alberto Warat, compartilhando dessa perspectiva, também recorre à noção de
uma consciência jurídica coletiva, ou seja, de uma normatividade meta jurídica que
se orienta sempre por critérios de justiça e que busca reconhecimento pela ordem
legal. A figura retórica do abuso do direito é uma forma de Iegitimação destas
expectativas, uma máscara de legalidade, na expressão do professor argentino, hoje
radicado no Brasil. Isto dissolve o paradoxo aponta- do por Planiol, porquanto há de
se reconhecer que a expressão abuso não é unívoca, comportando um campo
intensional (conotação) e extensional (denotação) bastante amplo.174 Como já se
teve oportunidade de dizer, é exatamente o reconhecimento da diversidade do
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revisão do Código Civil francês); todavia, como já advertia Carlos Maximiliano,
escrevendo na década de 20, a lei não se equipara a um manual teórico. Assim, os
títulos, as epígrafes, não são critério seguro para definir a natureza jurídica de um
instituto, pois a disposição das matérias de uma codificação não é feita com o rigor
escolar (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p. 266
e 267).
(172) Maurice Hauriou, Evolutions et actualités de droit civil, Paris, 1936, p 89, apud
Alvino Lima, op. cit., p. 338.
(173) Roberto Goldschmidt, op. cit, p. 27-30; Enneccerus também busca nos
princípios jurídicos o fundamento da noção de abuso do direito (op. cit., Tomo I,
Parte Geral, vol. 2, 2.a parte, p. 1.083 e 1.085); ver, igualmente, Fernández
Sessarego (op. cit., p. 3 14), Luis O. Andorno (op. cit., p. 33), Martín Bernal (op. cit.,
p. 63), Luís Alberto Warat (op. cit., p. 60, 65, 66, 72 e 80) e Haroldo Valladão (op.
cit., p. 12 e 14).
(174) Warat, op. cit. p. 60, 66 e 83.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
sentido da expressão direito (jurídico e metajurídico) que denuncia a falácia do
argumento de Planiol, porque, sendo diversos os senti- dos, não se pode cogitar do
princípio da contradição.175
Está claro, a esta altura, que a importância do conceito de abuso do direito no
campo da dogmática jurídica depende da concepção que se possa ter acerca do
próprio Direito. Para Mario Rotondi, que recorre, igualmente, à idéia de uma
consciência jurídica coletiva, não se pode negar a importância da noção de abuso do
direito como categoria metajurídica, bandeira de vanguarda das transformações do
direito posto.176 O autor, contudo, coloca a tônica nas reformas legislativas, sem
dar muita importância às expressões do pluralismo jurídico, já reconhecidas desde
Geny e Ehrlich, no final do séc. XIX.
Luís Alberto Warat dissente da opinião de alguns juristas, no sentido de que a
consagração legislativa do abuso do direito possa banalizar o conceito, que é regra
tópica.177 Sustenta, entretanto, que a alteração do campo de significação do direito
não reside no simples fato de ter-se alterado a letra da lei. A positivação permite
apenas que o juiz tenha o respaldo legal necessário para desenvolver plenamente o
momento intuitivo do ato de decisão,178 que assim se verá legitimado, sob o ponto
de vista da racionalidade formal. Desde que a noção de abuso do direito caiba numa
fórmula bastante ampla, como é aquela do Código suíço, estará desta forma
garantido o exercício da prudentiajuris.179
Início de nota de rodapé
(175) Como observa Alaôr Caffé Alves, o princípio do terceiro excluído não pode ser
aplicado às palavras ambíguas ou indeterminadas, pois estas não comportam o
corte preciso do sim ou não, do verdadeiro ou falso (Alaôr Caffé Alves, Lógica —
Pensamento formal e argumentação — Elementos para o discurso jurídico, São
Paulo, Edipro, 2000, p. 351).
(176) Rotondi, lnstituiciones de Derecho Privado, México, Editorial Labor S.A., 1953,
p. 99-101.
(177) Esta banalização é apontada por Pedro León, para quem a previsão le- gal
implicaria a inserção do conceito na vala comum dos atos ilícitos (Pedro León, apud
Warat, op.cit., p. 84 e 85 — não consta referência ao titulo da obra do autor citado).
(178) Warat, op. cit., p. 85 e 86.
(179) Idem, p. 86 e 87.
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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO
Na fórmula utilizada pelo legislador suíço, a expressão boa-fé (que também aparece
nos Códigos da Polônia, Grécia, Portugal, Bolívia, Argentina, Venezuela, Paraguai e,
de certa forma, no Código Civil italiano, em dispositivos esparsos) tem um
significado objetivo. Trata-se de uma forma tópica, de um princípio geral de direito
que se reporta aos padrões sociais e morais vigentes, às expectativas do cidadão
comum.180 Esta orientação, entretanto, ao contrário do que supõem os opositores
da teoria do abuso do direto, não é arbitrária, movendo-se dentro de uma esfera
pragmática. É o que se pretende demonstrar no quarto e quinto capítulos. Por ora,
trata-se de saber como o conceito é elaborado no campo do pro- cesso judicial.
Início de nota de rodapé
(180) Neste sentido, v. Carlos de La Vega Benayas, Teoría, Aplicación y Eficacia en
las Normas del Código Civil, Madrid, Ed. Civitas, S.A., 1 976, p. 249 e ss., apud
Martín Bernal (op. cit., p. 1 93 e 1 94), cujo conceito ora se adota por ser o que mais
se aproxima da linha pragmática que orienta o presente trabalho.
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Página 84 Em branco
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES NO PROCESSO JUDICIAL
SUMÁRIO: 2.1 Delimitação do tema na dogmática jurídica— 2.2 As dificuldades do
subjetivismo de base psicológica — 2.3 As práticas judiciárias e os modelos de
verdade — 2.4 A verdade no senso comum dos processualistas.
2.1 Delimitação do tema na dogmática jurídica
Como foi visto no capítulo anterior, não havia no direito brasileiro, até a edição do
Código Civil, norma específica sobre o abuso do direito. E certo que já as
Ordenações Filipinas, ou Ordenações do Reino, como ficaram conhecidas,
reprimiam certas condutas processuais. Mas, conforme registro de José Olímpio de
Castro Filho e de Pedro Baptista Martins, trata-se ainda de uma perspectiva do
direito romano, porquanto as sanções limitavam-se a agravar as custas, em certos
casos de lide temerária.1 Como será visto adiante, esta orientação persiste no
direito brasileiro até a chamada unificação do processo civil.
Início de nota de rodapé
(1) José Olímpio de Castro Filho, Abuso do Direito no Processo Civil, Rio de Janeiro,
Forense, 1 960, p. 73; Pedro Baptista Martins, Comentários ao Código de Processo
Civil — Decreto-Lei 1. 608, de 18 de setembro de 1939, vol. I, Rio de Janeiro,
Revista Forense, 1940, p. 35. Como registra este último processualista mineiro, no
direito romano havia um sistema de litis crecencia, de sorte que as sanções
pecuniárias iam-se tornando mais severas, na medida da gravidade da infração.
Fala-se, assim, na condenação in duplum e in triplum, (Pedro Baptista Martins, o
abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 997, p. 67 e 68).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Assim, se a parte vencida tivesse agido sem malícia, seria condenada apenas nas
custas singelas. Agindo de maneira maliciosa, responderia por custas em dobro ou
tresdobro, na dependência da gravidade de sua conduta, podendo até ser presa,
caso não lhe fossem achados bens (Livro 111, Título LXVII). Quando o autor
demandasse pagamento de quantia a maior, sujeitava-se também à condenação de
custas em dobro ou tresdobro. Era-lhe permitido, no entanto, antes da contestação,
descer de demandar em relação à parte que sobejasse, hipótese na qual
responderia apenas por custas singelas. Se o autor tivesse agido por ignorância ou
simpleza, seria condenado em custas singelas ou em dobro, segundo o grau de
culpa (Livro 111, Título XXXIV). No Título seguinte, havia previsão de pagamento de
custas em dobro, quando o autor exigisse cumpri- mento de obrigação, pendente
condição suspensiva.2
Ainda no Livro III das Ordenações do Reino, existiam dispositivos que obrigavam a
devolução em dobro, caso o autor demandasse para receber dívida já satisfeita, sem
prejuízo do pagamento de custas, na mesma expressão. Aqui, igualmente,
facultava-se ao autor descer da demanda na parte que sobejasse daquilo que lhe
era de- vido, subsistindo condenação nas custas em dobro (Título XXXVI). Na
hipótese de chamamento à autoria, caso o terceiro comparecesse para dizer da
legitimidade de sua intervenção, o réu era absolvido da demanda e o autor
condenado nas custas em dobro ou tresdobro, segundo o grau de malícia
empregada (Título XLIV). Nos parágrafos seguintes, encontrava-se também previsão
de custas em dobro para hipótese de indevida nomeação à autoria. Punido com
multa era aquele que, incumbindo-se de apresentar determinada pessoa em juízo,
não o fizesse (Título XLVI). Aquele que desviasse bens, fraudando a execução, ou
que retardasse, com oposição de embargos, o fim da demanda, estava reservada a
pena de prisão (Título LXXXVI, 13, 16,17 e 18). O vencido nos embargos à
execução era condenado ao pagamento de custas em dobro (Título LXXXVII, 8).
Caso a culpa fosse atribuída ao advogado, ficaria
Início de nota de rodapé
(2) Cândido Mendes, Código Filipino, 1 4. ed., 1 870, p.61 8, 6 1 9 e 67 1 , apud
José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 73-75.
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
suspenso, por algum tempo, do exercício da função, tendo de recolher multa ao
tribunal.3
A Disposição provisória acerca da administração da justiça civil, anexa ao Código de
Processo Criminal do Império, de 29 de novembro de 1832, em parte alterada pela
Lei de 3 de dezembro de 1841 e pelo Decreto 143, de 15 de março de 1842,
manteve-se fiel à inspiração das Ordenações do Reino e, portanto, à inspiração
romano-canônica. Nela se obscureceu, todavia, tanto quanto no Regula- mento 737,
de 25 de novembro de 1850 (que se aplicava às causas comerciais), a repressão ao
abuso do direito no processo, do que é prova a existência de pouquíssimos
dispositivos relativos ao tema. Punia-se o excipiente, com condenação de custas em
tresdobro e pagamento de multa, quando arguisse maliciosamente a suspeição do
juiz. O pedido de arresto, feito de má-fé, dava lugar à condenação em perdas e
danos. 4 Seguiu-se a Lei 2.033, de 20 de setembro
Início de nota de rodapé
(3) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 76-78. Anota ainda o autor, citando
Cândido Mendes (op. cit., p. 88 e 727), que, segundo a Lei da Boa Razão, datada de
1 8 de agosto de 1 769, o advogado que praticasse chicana, retardando o desfecho
da causa, ou que desenvolvesse argumentação falaciosa, seria multado. Persistindo
na prática, perderia os graus universitários e, caso, pela terceira vez, incidisse na
falta, valendo- se de interposta pessoa que lhe assinasse os arrazoados, haveria de
ser degredado para Angola (op. cit., p. 78 e 79). Registre-se que esta Lei, de
concepção jusnaturalista moderna, também foi aplicada no Brasil mesmo depois da
independência, por força do Decreto de 20 de outubro de 1 823, editado pela
Assembléia Geral Constituinte. No caso de cobrança de dívida já paga, cabe citar
acórdão do Tribunal de São Paulo, de 05/08/1919, proferido nos autos da Apelação
Civil 9.373, em que se invoca, a par do disposto no Livro 111, Título XXXIV das
Ordenações, o artigo 1 .53 1 do Código Civil de 1 9 1 6, então, recém editado (RT,
São Paulo, Ano VIII, vol. XXXI, fasc. 167, setembro de 1919, p. 40 e 41).
(4) Idem, p. 80. Pontes de Miranda, a propósito do Regulamento 737, registra a
existência também da chamada ação de dolo, em que se buscava ver reconhecida a
responsabilidade do vencido que agisse com temeridade ou malícia (art. 337).
Reconhece, todavia, que a ação por sim- ples abuso do direito processual (como
trata) só veio com o Código de Processo Civil de 39, muito embora por ela
propugnasse desde 1 929, na obra História e Prática do Arresto, a págs. 95 e
seguintes (Tratado
Fim de nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
de 1 87 1, aprovada pela Resolução Imperial de 28 de dezembro de 1 876, que,
como Consolidação das Leis do Processo Civil — denominação pela qual se tornou
conhecida — Iimitava-se a reunir a legislação até então existente.
A Constituição do Império criou ajustiça federal, a par da justiça dos Estados, com o
que se seguiu a Consolidação das leis referentes à justiça federal, aprovada pelo
Decreto 3.084, de 5 de novembro de 1 898. Nela havia também algumas
disposições esparsas que reprimiam o abuso do direito de demanda. O arresto
pleiteado de má-fé dava lugar à ação de perdas e danos. Estava prevista imposição
de custas em tresdobro, para a hipótese em que a exceção de suspeição fosse
rejeitada, e em dobro, quando se estivesse tratando de oposição. O senhorio que
demandasse aluguel já pago, no todo ou em parte, também era condenado nas
custas em tresdobro. Ha- via custas de retardamento e imposição de pena de prisão
àquele que escondesse bens passíveis de penhora. Aquele que pedisse mais do
que lhe era devido, ou que exigisse obrigação, conditio pendet, era condenado,
respectivamente, às custas em tresdobro e em dobro. Se o autor demandasse por
dívida já paga, obrigava-se à restituição em dobro. Em qualquer caso, surpreendido
em malícia, poderia ser condenado nas custas, em dobro ou tresdobro, conforme o
arbítrio do julgador.5
Nos Códigos Estaduais é possível encontrar, igualmente, alguns dispositivos
relativos ao abuso do direito de demanda, mas ainda de matiz nitidamente
romanista. Mesmo nos Códigos da Bahia (1915), do Distrito Federal (1924) e de São
Paulo (1930), que traduzem o pensamento renovador da doutrina alemã do final do
século XIX, a repressão à lide temerária ainda estava baseada na imposição
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
das ações, tomo VI, São Paulo, RT, 1 976, p. 540). A propósito da aplicação do
mencionado artigo, v. sentença do Juízo de Belo Horizonte, datada de 04/1 1/1 9 1
3, que se encontra na Revista Forense, vol. XX, fascs. I 1 5- l 20, julho-dezembro de
1 9 1 3, Belo Horizonte, 19 13, p. 440-44 l, bem como acórdão do Tribunal da
Relação de Minas Gerais, datado 02/12/1914, publicado na Revista Forense, vol.
XXIII, fascs. 133-138, BeIo Horizonte, janeiro-junho de 1915, p. 216-220. José
Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 80 e 81.
Fim de nota de rodapé
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
de multas e no agravamento das custas. Punia-se com multa a arguição infundada
da suspeição do juiz (Distrito Federal e Minas Gerais), impondo-se custas em dobro
na hipótese de rejeição liminar (Distrito Federal) ou perda da caução prestada (Rio
Grande do SuI); quando a nomeação à autoria fosse feita em nome de quem não
tinha a coisa, aquele que a fizesse era condenado a pagar custas em dobro (Minas
Gerais e Pernambuco) ou em tresdobro (Distrito Federal e São Paulo); aquele que
decaísse da oposição respondia por custas em dobro (Distrito Federal e Minas
Gerais); o litigante de má-fé havia de pagar multa (Distrito Federal) e, sendo
vencido, custas em dobro ou tresdobro; ao advogado que interpusesse agravo fora
dos casos previstos em lei era imposta multa (Distrito Federal e Minas Gerais); quem
provocasse incidente de falsidade, agindo de má-fé, pagaria custas em tresdobro
(Distrito Federal) ou em décuplo (Rio Grande do Sul), mesmo na hipótese de culpa
(Minas Gerais); o arresto pleiteado de má-fé dava lugar a perdas e danos (Distrito
Federal, Minas Gerais, São Paulo Pernambuco e Bahia), o mesmo sucedendo no
caso de embargos (Bahia); pelo pagamento de multa diária (São Paulo) ou custas
(Rio Grande do Sul), respondia aquele que retardasse o processo. Por último, ao
advogado que retivesse os autos além do prazo seria imposta multa (São Paulo e
Rio Grande do Sul) ou suspensão do exercício da pro- fissão (Pernambuco).6
Início de nota de rodapé
(6) Oscar da Cunha, O dolo e o direito judiciário, p. 145, apud J. O. de Castro Filho,
op. cit., p. 80-83. Diversos julgados da época registram a aplicação desses
dispositivos Iegais. E o caso da sentença proferida pelo Juiz Olavo EIoy de Andrade,
da Comarca de BeIo Horizonte, em 04 de novembro de 1913, inserta na Revista
Forense, vol. XX, fascs. 1 15-120, julho-dezembro de 1913, Belo Horizonte,
Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, p. 41 1-414. Kaethe Grossmann, em
estudo de direito comparado (O dever de veracidade no Processo Civil — Exposição
de Direito Comparado, in Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano XLII, vol. 101, fasc.
409,janeiro de 1945, p. 282-286), mostra que os deveres éticos relacionados à
lealdade processual já haviam sido incorporados, então, pela legislação de grande
parte dos países da Europa, do que é exemplo o disposto no § 1 38, I, do Código
Alemão (já antes do Terceiro Reich o dever de Iealdade estava previsto em
numerosos projetos de reforma) e no art. 178 do Código Austríaco, que influenciou o
Código
Fim de nota de rodapé
Página 90
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A partir do Código de Processo Civil de 1939, além da previsão de multas e custas
diferenciadas, o legislador passou a dar especial
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Iugoslavo ( 170 e 242). No Código de Processo russo também havia a proibição da
mentira (art. 6). A má-fé processual era punida com multa pelos códigos da Suécia
( 8.° do cap. 1 4), da Dinamarca ( 325) e da Hungria (art. 222, inc. 2). Nos códigos
de alguns cantões suíços também é possível encontrar regras sobre o, dever de
verdade, sem que houvesse, entretanto, previsão de sanção. E o caso do Código de
Processo da Basiléia ( 32) e do Código de Processo de Uri (art. 96). Regra geral,
entretanto, a legislação dos cantões reprimia a prática com imposição de multa, a
exemplo do que sucedia em Zurique ( 90), Berna ( 42), Genebra ( 432) e Soloturno
(art. 1 8). No direito latino, não obstante a ausência de preceito específico, Kaethe
Grossmann identifica algumas regras precursoras, a exemplo do art. 1 2 1 do Código
de Seabra, em Portugal. Na Itália, a autora reconhece a consagração da tese do
abuso do direito de demanda nas regras dos arts. 30, 33, 36 e 193 (CPC de 1926) e,
na França, nos artigos 3 1 3 e 246 do antigo Código. No Código de Processo Civil de
2003, ora vigente, o legislador francês dispõe sobre o dever que as partes têm de
colaborar na produção das provas (art. 1 1), estabelecendo ainda que a testemunha
está sujeita ao pagamento de multa e à pena de prisão caso venha a faltar com a
verdade (art. 21 1). Nos países Iatino-americanos, alguns códigos, já ao tempo em
que Kaethe Grossmann escrevia, também previam a imposição de multa para
aquele que faltasse com o dever de veracidade. E o caso do CPC mexi- cano (art.
140), do Código Judiciário colombiano (art. 575) do Código da Costa Rica (art.
1 .074), de Honduras (art. 1 92), da Nicarágua (art. 2. 1 09), da Guatemala (art. 608),
do Paraguai (art. 222) e do CPC da Argentina (art. 221). Atualmente, a matéria está
regulada no artigo 90 do Código de Processo Civil mexicano (1 943, com a Reforma
de 2002); no artigo 72 do CPC da Colômbia (1970, com a relação que lhe deu a
Decreto 2.282, de 1989); no artigo 323 do CPC da Costa Rica (1990); no artigo 396
do CPC de Honduras (1906); no artigo 157 do CPC da Guatemala (1964); no artigo
56 de CPC do Paraguai (1988); na Argentina, a questão é tratada pelos códigos
processuais das diversas províncias e também pelo Código Processual Civil e
Comercial da Nação, aqui especiticamente no artigo 45, com a redação que lhe foi
dada pelo arti- go 2.° da Lei 25.488, de 22/1 1/01. Acerca do Direito Processual
Com- parado, numa perspectiva mais moderna, ver Alfredo Buzaid, Processo e
verdade no direito brasileiro, in Revista de Processo, São Paulo, Ano XII, 47,julho-
setembro de 1987, p. 94-96; Alcides de Mendonça Lima,
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Página 91
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
relevo à condenação em perdas e danos, também conhecida desde os romanos.7
No direito clássico, havia a chamada iudicium calumnia, remédio repressivo para os
casos em que, improcedente a demanda, ficasse caracterizada a ilicitude ou a falta
de fundamento da pretensão deduzida em juízo, o que rendia ensejo a indenização.
8 No Código de 39, a parte que intentasse demanda por espirito de emulação, mero
capricho, ou erro grosseiro, respondia por perdas e da- nos (art. 3.°, caput). O abuso
do direito também estava configurado — por expressa disposição — no uso
malicioso dos meios de defesa, o que compreendia a resistência injustificada ao
andamento do pro- cesso (art. 3.°, parágrafo único). A par destes dispositivos, o
Código de 39 manteve a previsão do pagamento de custas e despesas, para as
hipóteses de Iide temerária, que se revelavam, por exemplo, na provocação de
incidentes manifestamente infundados (artigo 63, caput). E a condenação era devida
ainda que a parte saísse vencedora (art. 63, § 2.° e 3.o). 9
Abuso do direito de deinandar in Revjsta de Processo, São Paulo, Ano V, 1 9, julho-
setembro de 1 980, p. 57-58; José Carlos Barbosa Moreira, Responsabilidade das
partes por dano processual, Revista de Processo, São Paulo, Ano 111, 1 0, abril-
junho de 1 978, p. 1 8-20; Antunes Varela, O abuso do direito no sistema jurídico
brasileiro, in Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro, Rio de Janeiro, Ano 1,
ed. 1, julho de 1 982, p. 38-42, bem como os artigos reunidos por José Carlos
Barbosa Moreira, em Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000.
Início de nota de rodapé
(7) Kaethe Grossmann (op. cit., p. 286) anota que em várias Iegislações da época a
mentira processual conferia à parte contrária direito à indenização por eventuais
danos sofridos. É o caso do Código de Genebra (art.432), do Código da França (em
decorrência do célebre preceito do art. 1 .382), bem como do Código da Austria
(408), da Itália (art. 370) e da Guatemala (art. 608).
(8) Gino Zani, La Mala Fede nel Processo Civile, Roma, 193 1, p. 3 1 e 32,apud
Pedro Baptista Martins, O Abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro,
Forense, 1997, p. 67. A respeito, v. também Kaethe Grossmann, O dever de
veracidade no Processo Civil, in Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 101, Ano XLII,
fasc. 409,janeiro de 1945, p.280 e 281.
(9) Alcides de Mendonça Lima sustenta que o abuso do direito de demanda é
espécie do gênero improbidade processual. O artigo 63 e parágrafos
Fim de nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A esta altura, é importante suscitar um aspecto que interfere com a chamada teoria
da ação. A condenação em custas e despesas processuais, quer fundamentada no
fato objetivo da derrota (teoria da sucumbência)10 quer no só fato de a parte ter
dado causa ao processo ou incidente (teoria da causalidade),11 tem como
pressuposto um conceito de risco. E certo, sob o primeiro enfoque, que a atuação da
lei não pode representar uma diminuição patrimonial em prejuízo de quem ganha a
demanda. Sob o segundo enfoque, nada mais justo que o pagamento de custas e
despesas fique a encargo daquele que poderia ter evitado a controvérsia judicial. No
entanto, não se pode perder de vista que o recurso à justiça é uma das
manifestações da liberdade civil. Antes da sentença não há como dizer quem tem
razão. Bem por isso, a obrigação de pagar custas e despesas, a princípio, não é
uma sanção, exatamente porque não se está tratando de um ilícito.12
Com efeito, a partir do século XIX, operou-se uma autêntica revolução de conceitos
na esfera do direito processual, visto até então
resguardam o dever de lealdade no curso do processo, quer vencedora, quer
vencida a parte, ao passo que o artigo 3.° e seu parágrafo dizem respeito ao exato
momento da propositura da ação e àquele em que o réu se defende. Assim, o abuso
do direito de demandar seria — na expressão do jurista — um pecado original,
porque a idéia já nasce com o próprio exercício do direito, ainda que possa se
apresentar com outros matizes ao Iongo do processo (Abuso do direito de
demandar, in Revista de Processo, Ano V, 19, julho-setembro de 1980, p. 57 a 66).
No presente trabalho — como será visto ao seu tempo — adota-se critério diverso,
tratando por abuso do direito de demanda, ou abuso do direito no processo judicial,
as diversas formas de uso anormal do processo, que incluem a improbidade
processual.
Início de nota de rodapé
(10) Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 111, São
Paulo, Saraiva, 1965, p. 207.> Francesco Carnelutti, Sistema di Diritto Processuale
Civile, vol. 111, Pádua. CEDAM, 1936, XIV, p. 436 e 437.
(12) Salvatore Satta, Direito Processual Civil, 7. ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1973, p.
151 e 152; nesse exato sentido ver também Josserand (De l esprit de droit et de Ieur
relativité — Théorie dite de LAbus de Droit, Paris, 1939, p. 59) apud J.M. de
Carvalho Santos, Código de Processo Civillnterpretado, vol. 1, Rio de janeiro, Freitas
Bastos, 1 940, p.99 e 100).
Fim de nota de rodapé
Página 93
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
como um compartimento do direito civil. Ao lado da ação de direito material, passou-
se a conceber a existência de uma ação de direito processual. Frustrada a prestação
espontânea, o titular da pretensão de direito material pode invocar a intervenção do
Estado, visando à realização do seu direito. Esta nova perspectiva tem origem na
viva polêmica travada entre Windscheid (1856) e Muther (1857), cuios
desdobramentos se fizeram sentir na concepção publicista do direito de ação, que
se pode ver em Plosz (1876) e Degenkolb (1877). Com Bülow, em 1868, abre-se
caminho, de outra parte, para a chamada teoria abstracionista, segundo a qual o
direito de ação independe da existência de uma sentença favorável, assistindo a
quem creia, de boa-fé, ser titular da pretensão de direito material.13
Modernamente, em uma posição intermediária, está Liebman (1949), para quem a
ação consiste no direito a um provimento sobre o mérito. Trata-se de um direito
abstrato, exercido contra o Estado, mas ao mesmo tempo relacionado à pretensão
de direito material (causa petendi) e sujeito ao preenchimento de certos requisitos,
conhecidos como condições da ação. O processualista italiano reconheceu uma
certa ironia na expressão daqueles que definiam o tal direito abstrato como direito de
não ter razão, pois, sob essa ótica, igualmente absurdo seria falar em um direito de
ter razão. Certa- mente — prossegue Liebman — um dos momentos mais difíceis e
dramáticos da profissão do advogado, no qual se põe à prova tanto o seu dom de
jurista quanto a sua qualidade de homem probo, é aquele em que tem de aconselhar
o cliente a propor ou não uma demanda de êxito particularmente incerto. Mas esta
circunstância não pode ser um obstáculo ao reconhecimento do direito de ação.14
Início de nota de rodapé
(13) Celso Neves, Estrutura Fundamental do Processo Civil — tutela jurídica
processual, ação, processo e procedimento, Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 76,
90, 91, 92, 93 e 102; também para Degenkolb, abstracionista, a ação é um direito
público subjetivo, que compete a qualquer uin que creia, de boa-fé, ter razão para
ingressar emjuízo (Chiovenda, Principii di diritto processuale civile—Le azione.
Ilprocesso di cognizione, Napoli, Casa Editríce Dott Eugenio Jovene, 1965, p. 56 e
57).
(14) Liebman, Institutjj del diritto comune nel processo civile brasiliano, in Studi in
Onore di Redenti, 1 950, título VI, § 1 .°, apud Celso Neves,
Fim de nota de rodapé
Página 94
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Quando se cogita da existência de um abuso do direito de demanda, há de se ter em
conta a autonomia do direito de ação, circunstância que torna ainda mais polêmica a
dissensão reinante entre subjetivistas e objetivistas. Preenchidos os requisitos de
admissibilidade do julgamento de mérito (condições da ação e pressupostos
processuais), o processo terá de receber uma sentença. O simples exercício deste
direito, portanto, não pode configurar abuso. Todavia, procedendo a parte com dolo
ou culpa, estará sujeita a sanções processuais, como já era da tradição dos
romanos, respondendo ainda por eventuais perdas e danos. Nestas hipóteses, a
conde- nação em custas e despesas, prevista no Código de 39 (art. 63, § 1 .° e 2.°),
assume o caráter de verdadeira reprimenda. Até aqui, está- se na esfera da
concepção subjetivista da teoria do abuso do direito. Resta saber, de outra forma,
acerca da configuração do uso anormal do processo nos casos em que não se
cogita de malícia ou culpa.
A doutrina e a jurisprudência brasileiras inclinaram-se sempre pela solução
subjetivista, fiéis à orientação dos juristas e tribunais franceses.15 Assim é que, para
Aguiar Dias, o simples fato de propor
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
op. cit., p. 1 08- 1 1 3; a propósito, Piero Calamandrei diz que, entre admitir toda e
qualquer demanda, por mais incabível que, prima facie, possa parecer, correndo o
risco de sobrecarregar os tribunais e, de outro lado, subordinar o exercício da ação à
prévia autorização do juízo, é preferível assumir os inconvenientes da primeira
solução (Derecho Procesal Civil, vol. 111 — Estudios sobre el proceso civil, Buenos
Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 352 e 353).
(15) A propósito, v. Charmont, que cogita exclusivamente das hipóteses de ações
propostas de má-fé, ou mal fundamentadas, o que revela imprudência (op. cit., p. 1
14 e 123); igualmente, Saleilles delimita o campo de aplicação da teoria do abuso do
direito de demanda à malícia e ao objetivo perverso, torpe, citando farta
jurisprudência. Diz que alguns cogitam de indenização decorrente da simples
sucumbência, já que a perda da ação seria mostra de que a parte foi obrigada a
enfrentar a lentidão e as despesas de um processo, sem que, afinal, a parte adversa
ti- vesse razão. Registra que, todavia, há sérias objeções a este ponto de vista (De l’
abus de droit — rapport présenté a la première souscommission de la commission
de revision du code civil, in Bulletin de La Société D Études Législatives, quatrième
année, 1 905, Paris, Arthur
Fim de nota de rodapé
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
ou de prosseguir em ação judicial não constitui, em si, abuso do direito ou ato ilícito.
Necessária a configuração de dolo ou culpa.6Esta também é a posição de Serpa
Lopes,17 Carvalho Santos,8 Oscar Tenório, Luiz Antonio da Costa Carvalho20e
Gabriel Rezende Fitho.2
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Rousseau, Éditeur, p. 340-342); Ripert também limita a responsabilidade das partes
aos casos de culpa ou dolo, configurados na ação mal formulada, na defesa
infundada, no retardamento malicioso do pro- cesso (o que inclui a interposição de
recurso sem legítimo interesse), na execução sem título, na ação proposta fora do
domicilio do réu, com objetivo de dificultar a defesa, no pedido de anulação dos atos
aos quais o próprio requerente deu causa etc.(op.cit.,p. 167, 169, 170e 172);no
mesmo sentido, Colin e Capitant, (op. cit., tomo 11, p. 630), Planiol (tomo 11, p.
338), Mazeaud & Mazeaud, op. cit., p. 453 e ss.
(16) José de Aguiar Dias, Da responsabilidade civil, vol. 2, 8. ed. Rio de Janeiro,
Forense, 1987, p. 55. O autor ressalva, entretanto, a hipótese de execução
provisória, pendente recurso recebido apenas no efeito devolutivo. No caso, a
responsabilidade é objetiva (idem, p. 555). Esta questão será rnelhor examinada na
seção seguinte.
(17) Serpa Lopes, sem deixar de tecer elogios à concepção objetivista da teoria do
abuso do direito, diz que à jurisprudência caberá dar à norma do Código Civil o
sentido mais adequado à espécie em julgamento (op. cit, p. 548). Pedro Baptista
Martins (O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p.
76) e Edmundo Lins Neto (op. cit., p. 37) destacam sentença da lavra de Serpa
Lopes, na qual está consignado que, em se tratando de exercício do direito de ação,
exige- se ao menos a demonstração de culpa para que se possa cogitar de abuso
da demanda.
(18) J.M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil interpretado, vol. 1, Rio de
Janeiro, Freitas Bastos, 1940, p. 99-103, e Código Civil Brasileiro Interpretado, 7.
ed., vol. 111, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1958, p. 357-368. U
(19) Oscar Tenório, Outras considerações a respeito do abuso de direito na
purgação da mora, in Arquivos do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores,
Rio de Janeiro, Ano XIV, março de 1956, 57, p. 11-14.
(20) Luiz Antonio da Costa Carvalho, Curso Teórico-Prático de Direito Judicicjrj0
Civil, vol. 1, Rio de Janeiro, A. Coelho Branco Filho (Edi- tor), l 949, p. 302- 306.
(21) Gabriel Rezende Filho, Direito Processual Civil, 3. ed., vol. 3, São Paulo,
Saraiva, i p. 45 e 46.
Fim da nota e rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A orientação da jurisprudência brasileira, mesmo depois do Código de 39, é
nitidamente subjetivista. 22 São raros os julgados que se
Início de nota de rodapé
(22) A propósito, ver TA São Paulo, Ap. 17.097 — Capital, Re I. Affonso de
Carvalho, 07.08.1931, in RT, São Paulo, Ano XX, novembro de 1931, vol. LXXX,
fasc. 381, p. 167 e 168; TA São Paulo, Ap. 897 — Santos, Rel. Meirelles dos Santos,
09.03.1938, citando os irmãos Mazeaud, in RT, São Paulo, Ano XXVII, maio de 1
938, vol. CXIII, fasc. 456, p. 7 17- 724; TA São Paulo, Ap. 2.121 — Piratininga, rel.
Paulo Passalaqua, 1 .°.02. 1 939, na qual foi confirmada erudita sentença do juízo
monocrático, com farta citação doutrinária, nacional e estrangeira, da lavra do Juiz
Adolpho Pires Galvão, in RT, São Paulo, Ano XXVIII, maio de 1 939, vol. CXIX, fasc.
468, p. 572-577; outra sentença, com inúmeras citações doutrinárias e
jurisprudenciais, da lavra do Juiz Augusto Saboia da Silva Lima, Titular da Terceira
Vara Cível do Rio de Janeiro, datada de 1 .° de setembro de 1 928, encontra-se
reproduzida, na íntegra, na Revista de Direito Civil, Comercial e Criminal, Rio de
Janeiro, vol. 90, Livraria Cruz Coutinho — Jacintho Ribeiro dos Santos, Editor,
outubro de 1928, p. 161-168; este mesmo juiz, quando promovido ao Tribunal de
Apelação do Rio de Janeiro, proferiu acórdão em que registra, já na vigência do
Código de 39, a clara orientação subjetivista de nossas cortes, objeto de dezena de
julgados; sentença da Quinta Vara Cível do Rio de Janeiro, de 05/06/28, publicada
no Arquivo Judiciário, Rio de Janeiro, vol. 7, julh./agos./set. de 1928, p. 70-72; o
acórdão proferido na Apelação Civil 14.566, do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, datado de 07/6/1 927, após tecer considerações sobre a responsabilidade
objetiva, consigna que, em se tratando do exercício de ação, faz-se mister pesquisar
todas as circunstâncias, inclusive as de caráter subjetivo (Archivojudiciário, Rio de
Janeiro, vol. XVI, out./nov./dez. de 1 930, p. 1 60 e 1 6 1); colhem ainda decisões de
viés subjetivista em matéria de abuso do direito na ação de usucapião (Revista
Forense, Rio de Janeiro, Ano XVIII, vol. 57, fasc. 437, BeIo Horizonte, 1 93 1, 1 24 e
125), na ação pauliana (Revista Forense, Ano XXV, vol. 75, fasc. 424, julho de 1
938, p. 1 84- 1 87), no atentado (Archivo Judiciário, Rio de Janeiro, vol. 40, fasc. 1,
outubro de 1936, p. 444 e 445) e na execução (Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano
XXXV, outubro de 1938, vol. 76, fasc. 424, p. 79- 8 l); J.M. de Carvalho Santos
também faz menção a diversas acórdãos do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal
de São Paulo e da Bahia, tanto no seu Código de Processo Civil Interpretado (op.
cit., p. 100-103), como no Código Civil Brasileiro Interpretado (op. cit., p. 361-366),
todos de viés subjetivista; mais recentemente, colhe aresto do Min.
Fim de nota de rodapé
Página 97
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
orientam pela concepção objetivista. Merece especial citação a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, em matéria de purgação da mora pelo locatário, porque
acabou influenciando o trabalho do legislador, duas décadas depois.23 Entrementes,
a doutrina, à vista das inovações trazidas pelo Código de 39, que rompia com o
sistema romano-canônico, inserindo o processo 110 campo publicista, soube
valorizar os importantes instrumentos que o legislador colocou nas mãos do juiz, a
quem não pode ser indiferente a maneira como atuam as partes na persecução de
seu direito.24
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Amaral Santos (STF-RE 69.439, in Revista Trimestral de Jurisprudência, vai. 56, p.
¡ 29, apud Roberto Rosas, Abuso de direito e dano processual, in Revista Brasileira
de Direito Processual, Uberaba, vol. 39, 3.° trimestre de 1983, p. 1 15-130). Esse
autor, a despeito de filiar-se à concepção objetivista, reconhece que diversa é a
orientação jurisprudencial, citando vários exemplos disso. Pedro Baptista Martins,
igual- mente, apesar de defender a concepção objetivista, reconhece que os
tribunais brasileiros não se animaram a abandonar a doutrina da emulação. Cita,
particularmente, acórdão de 07 de junho de 1927, transcrito no volume 1 6, página 1
60 do Arquivo Judiciário (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, Rio de
Janeiro, Revista Forense,1 940, p. 48 e 49).
(23) O registro desta orientação da suprema corte é feito por Oscar Tenório (op. cit.,
p. 1 2 e 1 3). A Lei 1 .300, de 28. 1 2. 1950, referindo-se ao direito de purgação de
mora pelo locatário, não impunha limites. Porém, a justiça paulista, responsável pela
elaboração da doutrina do abuso no exercício deste direito, vislumbrou a hipótese de
intenção maliciosa. A propósito, colhe a Apelação Cível66.591, São Paulo, da 1.a
Câmara Civil do Tribunal de Justiça, rel. David Filho,j. 08.03.1955, in RT, São Paulo,
Ano 44, junho de 1 955, vol. 236, p. 92-94. Sobreveio a Lei Federal 3.085, de
29/12/56, em cujo artigo 1 1 estava consignado que o exercício da faculdade era
regular e não abusiva (art. 1 1). Todavia, a partir da Lei 6.649, de 16/05/79, o
Iegislador limitou o número de oportunidades para a emenda da mora, dando um
tratamento objetivo à questão.
(24) Não faltou quem visse no processo inquisitivo a expressão mesma de um
determinado momento político, pois o País enfrentava um regime autoritário na
época em que o Código de 39 foi promulgado. Moacyr Amarai Santos ensaia esta
relação entre o aspecto político e o aspecto cientifico, findando por concluir que
prevaleceu, entretanto, a disciplina Jurídica (Contra o processo autoritário, in Revista
da Faculdade de
Fim da nota de rodapé
Página 98
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
O Código de 39 reúne uma série de dispositivos nos quais o senso comum dos
juristas reconhece uma referência ao abuso do direito. 25 Há hipóteses em que se
exige a configuração do dolo ou da culpa. Assim sucede nos casos de processo
fraudulento (art. 1 15) ou naqueles em que a parte, falseando a verdade, afirma
encontrar-se o réu em lugar incerto, não sabido ou de difícil acesso, a fim de que a
citação se faça por edital (art. 179). O mesmo se passa no caso de perempção (art.
204) ou quando o exequente indica à penhora bens
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Direito, São Paulo, vol. LIV, fasc. 1, 1959, p. 212-229). Não se pode perder de vista,
porém, que o processo é sempre uma mescla do princípio dispositivo e do princípio
inquisitivo, em proporção que varia conforme o tempo e o lugar (Giuseppe
Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 2, São Paulo, Saraiva,
1965, p. 345).
(25) Pedro Baptista Martins, Comentários ao Código de Processo Civil — Decreto-
Lei 1.608, de 18 de setembro de 1939, vol 1, Rio de Janeiro, Forense, 1 940, p. 35-
49; 1 95-21 2; 346-35 1 , e O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., 1997, p. 66-82; J.
M. de Carvalho Santos, Código de Pro- cesso Civil Interpretado, vol. 2, 2. ed., Rio de
Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, p. 1 32 e 1 33; Jorge Americano,
Comentários ao Código de Processo Civil do Brasil, vol. 1, São Paulo, Saraiva & Cia
— Livraria Acadêmica, 1 940, p. 1 8-3 1; 1 1 0- 1 1 3; Herotides da Silva Lima,
Código de Processo Civil Brasileiro, vol. 1, São Paulo, Saraiva & Cia — Livraria
Acadêmica, 1940, p. 22 e 223; João Bonumá, Direito Processual Civil, vol. 1, São
Paulo, Saraiva & Cia — Livraria Acadêmica, 1946, p. 373- 383; Luiz Antônio da
Costa Carvalho, Curso Teórico-Prático de Direito Judiciário Civil, vol. 1, Rio de
Janeiro, Coelho Branco Filho Editor, 1949, p. 301-306; José Olímpio de Castro Filho,
op. cit., p. 122, 123, 164, 165, 172-183; José Frederico Marques, Instituições de
Direito Processual Civil, vol. 2, Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 131-137; Pontes de
Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 2. ed., tomo I, Rio de Janeiro,
Forense, p. 130-154 e 407-424; tomo 11, 2. ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1
958, p. 21 8-221; tomo 111, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 212-214; tomo VIII, 2.
ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 959, p. 439-443; tomo xIII, 2. ed., Rio de Janeiro,
Forense, 1961, p. 396-403; Pontes de Miranda, Tratado das Ações, tomo 1!, São
Paulo, RT, 1971, p. 1 85-187; tomo Vl, 2. ed., São Paulo, RT, 1976, p. 539-541; José
da Silva Pacheco, Curso Teórico-Prático do Processo Civil, tomo I, 2. ed., Rio de
Janeiro, Borsoi, 1 962, p. 1 4 e 1 5; Arruda Alvim, Curso de Direito Processual Civil,
vol. 1, São Paulo, RT, 1971, p. 9,10 e 539.
Fim da nota de rodapé
Página 99
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
que não são passíveis de constrição (art. 942). Igualmente, a parte que age com
dolo ou temeridade na propositura de ação cautelar, responde por perdas e danos
(art. 688, parágrafo único).
A doutrina, de modo geral, reconhece abuso do direito de demanda nos casos de
absolvição de instância (atualmente conheci- dos como causa de extinção do
processo sem julgamento do mérito), mas desde que configurado o dolo ou a culpa.
E certo que a parte tem direito ao processo. Mas ele não lhe foi dado para realização
de objetivos outros, diversos da atuação da vontade da lei (Chiovenda)26 ou da
justa composição da lide (Carnelutti). 27 Assim, a ausência de condições da ação,
dos pressupostos processuais, da outorga uxória (nos casos em que a lei exige) e
da caução às custas, tanto quanto o abandono da causa, a inépcia da inicial e a
inércia na citação de terceiros (arts. 91, 179 e 201), são circunstâncias que, na
dependência da maneira como procede o autor, podem levar à configuração do
abuso. 28 Da mesma forma, quando o réu argúi preliminares manifestamente
infundadas, com o claro objetivo de ludibriar ou procrastinar o feito, ou quando
ardilosamente nega o fato, configura-se o desvio do processo de sua destinação
normal. Pode ocorrer também que o réu, reconhecendo o fato alegado na inicial,
venha a apresentar exceções ou interpretações da lei manifestamente descabidas,
com o que, quando menos, estar configurado o erro grosseiro, equivalente ao
dolo.29
Início de nota de rodapé
(26) Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. I,
Edição Saraiva, 1965, p. 37.
(27) Idem, p. 46.
(28) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 1 18-139; no dizer de Luiz Antônio da
Costa Carvalho, quando o proponente da ação, dispondo apenas de um simulacro
de direito, é portador de uma pretensão aparentemente justa, mas não tem o direito
e socorre-se de um interesse legitimo a sua atividade processual será
indiscutivelmente ilícita, por que antissocial e injusta. E essa atividade ilícita, cuio fim
intencional será o prejuízo de outrem, pode ser culposa ou dolosa, conforme a forma
de manifestação do abuso do direito seja resultante de simples culpa ou de má-fé do
agente (op. cit., p. 303).
(29) Jose Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 139-142.
Fim da nota de rodapé
Página 100
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Em segundo lugar, estão as hipóteses de responsabilidade objetiva. E o caso da
execução provisória, pendente apelação recebida apenas no efeito devolutivo, que
corre por conta e risco de quem a promove (arts. 882, 11 e 883, II).° José Olímpio de
Castro Filho entende que, por igual razão, a prática de qualquer ato de força, initio
litis, quer no processo de execução, quer em qualquer dos processos especiais,
impõe o dever de indenizar, desde que, a final, o direito invocado não seja
reconhecido pela sentença. Assim sucede com o ato de penhora do qual advenha
comprovado prejuízo,31 bem como nas hipóteses de medida liminar, concedida,
inauditur altera pars, em ações possessórias (arts. 371 a 378), cominatórias (arts.
304 a 305) e na ação de nunciação de obra nova (art. 384).32 Em se tratando de
ação cautelar, há responsabilidade objetiva, por expressa disposição legal, nos
casos em que a parte deixa de propor a ação principal no prazo de trinta dias, com o
que se opera a perda da eficácia da medida liminar (art. 677). Fora daí, não se pode
cogitar de responsabilidade senão a título de dolo ou culpa (art. 688, parágrafo
único).33 O arrematante, ou o fiador, que não pagar o preço da
Início de nota de rodapé
(30) Os irmãos Mazeaud, reconhecendo a responsabilidade daquele que promove a
execução provisória, entendem que estaria ela fundada na imprudência de executar-
se uma sentença ainda não definitiva (Traité de la responsabilité Civile, Delictuelle et
Contractuelle, Paris, 1 93 1, vol. 1, p. 294-297, apud Pedro Baptista Martins, O
abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., 1997, p. 79, e Comentários ao Código de
Processo Civil, vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1940, p.44 e 45). Todavia, na
doutrina, é pacífico o entendimento de que não se trata de ilícito, porquanto o próprio
ordenamento jurídico confere ao titular da ação o direito de fazer valer a sentença
ainda não transitada em julgado, ainda que com algumas Iimitações.
(31) Idem, op. cit., p. 172-176; nesse particular, José Olímpio de Castro Filho afasta-
se dos autores que fundam a responsabilidade por excesso de penhora no erro
grosseiro, equivalente ao dolo, ou na culpa (idem, p. 171), como é o caso de Jorge
Americano (op. cit., p. 24).
(32) Idem, p. 172-177.
(33) Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII, Rio de
Janeiro, Revista Forense, 1959, p.439 a 443), tanto quanto José Olímpio de Castro
Filho (op. cit., p. 176-182), consigna que, nesta
Fim da nota de rodapé
Página 101
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
arrematação em três dias, independentemente de culpa ou dolo, está obrigado ao
pagamento de multa (art. 978).
Importante dizer que, qualquer que seja o fundamento da responsabilidade pelo
dano causado à parte, e independentemente da previsão de multa, custas
agravadas etc., haverá sempre o dever de indenizar, quando for reconhecido o
abuso do direito de demanda.34 E, nisto, o Código de 39 representa um verdadeiro
marco, no qual avultam, a um só tempo, a concepção publicista do processo e um
sentido finalístico, 110 dizer de MoacyrAmaral Santos.35 Essa orientação teleológica
inspirou, recentemente, uma terceira fase metodológica da teoria do processo, que
segue na senda aberta por Liebman, enfatizando a instrumentalidade do processo,
que não pode mais ser visto como resultado de um direito de ação puramente
abstrato. Sobreleva uma análise mais pontual da pertinência subjetiva do processo
(legitimaçäo para agir). A máquina judiciária, cujo custo social tem de ser
considerado, não pode, ademais, ser movi- mentada sem que haja um resultado
socialmente útil (interesse de agir). Assim, não se cogita mais de uma absoluta
independência do processo em relação ao direito material, que se realiza através da
prestação da tutela do Estado.36
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
questão, viu-se afastada a tese de Calamandrei, que propugnava pela
responsabilidade objetiva daquele que, provocando danos à parte adversa, ficasse
vencido em ação cautelar. Para o processualista italiano, essa responsabilidade
buscava fundamento no fato de que a medida preventiva tem a mesma natureza
jurídica da execução provisória.
(34) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 200.
(35) MoacyrAmaral Santos, op. cit, p. 215 e 216.
(36) A respeito da terceira fase metodológica do processo, ver, no Brasil, Cândido
Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, 2. ed., São Paulo, RT, 1 990;
José Roberto dos Santos Bedaque, Pressupostos processuais e condições da ação,
in Justitia, São Paulo, Ano 53, out./ dez. 1 99 i, vol. 1 56, p. 48-66. Essa visão é
caudatária de um movimento pela universalização da justiça, iniciado com
Cappelletti, a partir do qual se passou a fazer uma releitura do caráter publicístico da
ação, para nele reconhecer também um instrumento eficaz de acesso à ordem
jurídica Justa, fruto das necessidades do Estado democrático de direito (Mauro
Fim de nota de rodapé
Página 102
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A dogmática processual penal também não ficou indiferente à discussão travada
entre concretistas e abstracionistas, que surge, dentre outras, na referência feita por
Giovanni Leone. Depois de traçar um breve panorama de cada uma destas
correntes, o processualista italiano invoca a solução intermediária de Giuseppe
Sabatini, para quem titular da ação não é quem tenha razão, nem quem não a tenha,
senão somente aquele que tem interesse na eficiência do mandato jurídico.37 Esta
posição é muito próxima daquela sustentada por Liebman, que também se encontra
a meio caminho, entre concretistas e abstracionistas. Para Enrico Tullio Liebman, o
interesse de agir, uma das condições da ação, diz com a idéia de necessidade do
recurso às vias judiciais e adequação do meio utilizado.38 Para Tullio Delogu, por
sua vez, o interesse de agir é a causa do pedido, pelo que — conclui José Frederico
Marques — ausente o interesse de agir, falta justa causa para a propositura da ação
penal.39 Assim, tal como ocorre no processo civil, a ação penal, conquanto seja um
direito abstrato, está relacionada à pretensão de direito material (causa petendi),
que, neste caso, é o fato criminoso contido na imputação. Quando a acusação é
manifestamente infundada, falta justa causa para o processo penal.40
Coube a Ada Pellegrini Grinover, no Brasil, o mérito de rever essa perspectiva
teórica. A processualista de São Paulo sustenta que
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Cappelietti e Bryant Garth, Acesso à justiça, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris
Editor, 1 .988.
(37) Giuseppe Sabatini, Il publico ministero nel diritto processuale penale, vol. 11,
Torino, 1 948, p. 1 1 0, apud Giovanni Leone, Tratado de derecho procesal penal,
vol. 1, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa America, 1961,p. 116-118.
(38) Enrico TulIio Liebman, L’azione nella teoria del processo civile in Problemi del
Processo Civile, Napole, 1 962, p. 22 e ss.
(39) Tullio Delogu, Contributo alla Teoria della lnammissibilità nel Diritto Processuale
Penale, 1 938, p. 82, apud José Frederico Marques, Elementos de Direito
Processual Penal, vol. l, Campinas, Bookseller Editora e Distribuidora, 1997, p. 294.
(40) José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, vol. 11,
Campinas, Bookseller, Editora e Distribuidora, 1997, p. 155, 156, 360e361.
Fim da nota de rodapé
Página 103
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
o interesse de agir não tem nenhuma relação com a pretensão de direito material,
pois é condição de admissibilidade da ação e não de procedência do pedido,
conceitos que, sob a ótica abstracionalista, não podem ser confundidos. Ajusta
causa, de outra forma, assim como a fumaça do bom direito no processo cautelar, é
conceito que implica uma cognição provisória sobre o mérito, o que se explica pela
própria natureza do processo penal, que interfere com direitos da personalidade,
espoliando o indivíduo da intimidade e, frequentemente, da dignidade mesma. Daí
porque, para evitar a lide temerária, necessária a demonstração da plausibilidade do
direito invocado.41
De qualquer forma, quer se identifique justa causa e interesse de agir quer se
sustente que o conceito implica antecipação do juízo de mérito, certo é que o
processo penal se apresenta como campo fértil para o desenvolvimento da teoria do
abuso do direito de demanda, quanto mais quando se considera que aqui vige o
princípio inquisitivo, orientando-se a cognição na busca da chamada verdade real.
No entanto, por paradoxal que possa parecer, são poucas as contribuições da
doutrina e da jurisprudência nessa área dogmática.
Início da nota de rodapé
(41) Ada Pellegrini Grinover, As condições da ação penal— uma tentativa de
revisão, São Paulo, José Bushatsky, Editor, 1977, p. 103-129. Piero Calamandrei
entende que a questão do fumus boni iuris está relacionada com a verossimilhança
do direito e dos fatos alegados. O exame cumpre, assim, urna função eliminatória e
seletiva, permitindo ao juiz, já no nascedouro, prima facie, afastar as demandas
infundadas, as lides temerárias, que representam pesada carga para os tribunais.
Diz que, para a moderna teoria processual, na qual a ação aparece como direito
cívico Constitucionalmente garantido, este exame não pode ser admitido como regra
geral. Todavia, em certos casos, considerado o caráter escandaloso da questão
discutida, o legislador italiano previu um juízo sumário acerca da pretensão
deduzida, a exemplo do que ocorre nas ações de investigação de paternidade ou de
maternidade e nos processos de interdição, pelo qual a demanda pode ser desde
logo rechaçada (Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol. 111, Buenos Aires,
Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 326, 327 e 340-345). Estas idéias,
segundo o processualista italiano, estão fundadas em Wilhelm Sauer, cuja obra,
Allgemeine Prozessrechtslehre (Heymanns, V. 1 95 1), eleva o princípio da
verossimilhança (Wahrscheinlichkeitsprinzip) à condição de uma das categorias
básicas da teoria geral do processo (op. cit., 350).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Isto se explica por duas razões. Em primeiro lugar, o abuso do direito de demanda é
quase sempre confundido com a denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal
brasileiro). Trata-se de conceitos diversos, porquanto, como foi visto no primeiro
capítulo, há de distinguir-se entre licitude e liceidade. No abuso do direito de
demanda está configurado uso anormal de uma faculdade prevista em lei, o que não
se confunde com prática criminosa. Em segundo lugar, é forçoso reconhecer que,
desde o chamado Período Humanitário do Direito Penal, fruto do jusnaturalismo
moderno, o homem tornou-se muito cioso das garantias fundamentais do processo.
Mas há de se convir em que o processo penal pode servir a práticas abusivas, tanto
por parte do autor como do réu. Doutrina e jurisprudência têm exigido, para a
configuração do abuso do direito de ação, a prova do dolo ou, quando menos, da
culpa.42 Se alguém
Início da nota de rodapé
(42) A propósito, no caso em que companhia de seguro, fiando-se na palavra da ex-
mulher do segurado, requereu instauração de inquérito policial, para apurar incêndio
criminoso no estabelecimento comercial objeto da apólice de seguro, e mais que
isto, ingressou em juízo contra o suposto criminoso, provocando sua derrocada
moral e econômica, decidiu-se que somente intuitos inconfessáveis ou, quando
menos, culpa, poderiam justificar a reparação do dano. O fato de o inquérito ter sido
arquivado, de a seguradora ter decaído da ação criminal e de ter desisti- do da ação
para reaver o valor da indenização, não implica que se reconheça a existência de
abuso no direito de demanda. De outra forma — no dizer do acórdão — melhor seria
que se fechassem os pretórios (Corte de Apelação do Rio de Janeiro, Terceira
Câmara, acórdão de 21/1 1/1930, proferido nos autos da Apelação Civel 790, e
publicado no Archivo Judiciário, vol. XVII, jan./fev./mar de 1931, Rio de Janeiro,
1931, p. 28- 33). Em outro repositório de jurisprudência, encontra-se comentário de
Estevam Pinto, em que o autor critica a solução dada pelo tribunal. Ainda aqui, o
reparo tem matiz nitidamente subjetivista (Revista Forense, vol. LVI, fasc. 327, BeIo
Horizonte, janeiro de 1931, p. 275-278. Também de orientação subjetivista, exigindo
prova de má-fé ou malícia daquele que dá Iugar à instauração de inquérito policial, é
a jurisprudência mais recente, conforme registra Yussef Said Cahali (Dano e
indenização, São Paulo, RT, 1 980, p. 1 26 e 1 27). A propósito dessa orientação
mais recente ver também Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, São
Paulo, Lex, Ano 27, setembro de 1993, vol. 148, São Paulo, p. 85-89.
Fim da nota de rodapé
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
notícia à polícia a prática de um crime, agindo com leviandade e induzindo a
autoridade em erro, ainda que falte algum requisito para a configuração do crime de
denunciação caluniosa, responderá pelos danos causados.43 Mas na hipótese de
notitia criminis que venha a se mostrar depois, no momento da sentença, infundada,
dando lugar à absolvição por insuficiência de provas, desde há muito se entende
que não cabe cogitar de abuso, a menos que induzido em erro o Ministério Público,
porque é ele o titular da ação penal pública.44
Não se afasta também a hipótese de uso abusivo do poder de denúncia. O exercício
da ação penal, já se disse, não existe para atormentar as pessoas, criar embaraços
e dificuldades, mas sim para a defesa social. Se o resultado da denúncia é a
sujeição de inocente à ação penal, em princípio está caracterizado o abuso.45 E
certo que
Início da nota de rodapé
(43) J.M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. l, Rio de
Janeiro, Livraria e Editora Freitas Bastos, 1940, p. 103 e 104. O autor, passando
revista na jurisprudência, diz que os julgados têm-se orientado no sentido de que a
lei concede a qualquer cidadão o direito de denunciar os crimes e, para evitar
abusos, pune a denúncia calumniosa. E o caso daquele que provoca a prisão de
uma pessoa, induzindo em erro o magistrado, para o que lança mão de demarches
temerárias e indicações pérfidas.... O mesmo acontece si o denunciante, embora
sem agir com má-fé, procedeu com imprudência, acusando com Ieviandade. Cita
precedente do Tribunal de Paris, datado de 26 de janeiro de 1 884. Claro está —
acrescenta o autor — que do simples fato de a ação ser julgada improcedente não
advém a responsabilidade do denunciante. De outra forma, se a ação é julgada
procedente, ainda que a denúncia tenha sido feita de má-fé, não haverá lugar para
indenização. Por último, desaparece de todo a possibilidade de se julgar temerária a
lide criminal se na decisão da causa houve votos vencidos, dando razão ao
queixoso, prova de que a iniciativa do denunciante não era desarrazoada.
(44) A respeito, ver parecer da Iavra de Pedro Baptista Martins, datado de 1 936 e
publicado na Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano XXXIII, vol. LXVIII, fasc. 599, p.
744-747.
(45) Voto proferido pelo Ministro Victor Nunes Leal em ação de Habeas Corpus
impetrada pelo advogado Heleno Cláudio Fragoso, transcrito na Revista Trimestral
de Jurisprudência, vol. 35, p. 53 1 apud Raimundo Pascoal Barbosa, Abuso de
poder no oferecimento da denúncia, RT, São Paulo, Ano 58, agosto de 1969, vol.
406, p. 357-360. Veja-
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Página 106
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
não se pode exigir do promotor de justiça prova pré-constituída. A instrução criminal
serve exatamente para que a acusação possa pro- var o fato. Impedir o Ministério
Público de fazê-lo, com rejeição da denúncia que aponta conduta típica e
antijurídica, implica cerceamento do exercício do direito de ação, do qual aquele
órgão é titular. 46 Importante, todavia, a noção de justa causa, há pouco
desenvolvida.47 A questão extrapola os limites da teoria do abuso do direito, em
sentido estrito, para encontrar deslinde, mormente nas hipóteses de recebimento da
denúncia, no abuso de poder, tema que transcende os limites do presente trabalho,
justificando, de per si, monografia específica, tamanhas suas implicações e
desdobramentos, inclusive no que concerne à responsabilidade do Estado e de seus
agentes. Quanto mais não fosse, aquilo que o senso comum reconhece como abuso
do direito não tem necessariamente essa extensão.
No que concerne ao abuso na utilização dos meios de defesa, não há como
imaginar possa o réu responder objetivamente pelos seus excessos, exatamente
porque a defesa, por imperativo constitucional, é ampla. Dentro de um viés
subjetivista, caberia indagar dos limites da versão apresentada pelo réu, em seu
interrogatório, naquilo que possa interferir, de forma leviana, com bens jurídicos de
terceiros. Também exigiria exame a fronteira que divide o ânimo de injuriar e o
exercício do poder de convencimento por parte do advogado. Interessa também o
questionamento acerca da conduta daquele que favorece a ocorrência de nulidades
processuais para não ter de enfrentar o mérito, ou mesmo do advogado que
sustenta, na base do princípio da eventualidade, dezenas de teses a fim de colher
indevido proveito da omissão no exame de uma delas, com a anulação da sentença.
Seria de se indagar, igualmente, da existência
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
se, mais recentemente, Miguel Reale Jr., Denúncia abusiva e crime de calúnia, in
RT, Ano 87, abril de 1998, vol. 750, p. 467-473.
(46) Neste sentido é farta a jurisprudência (RT 237/120; 277/182; 297/166;
Jurisprudência Mineira, 2/355, apud Raimundo Pascoal Barbosa, op. cit. p. 357).
(47) A respeito do trancamento da ação penal por falta de justa causa, ver
jurisprudência citada por Raimundo Pascoal Barbosa (op. cit., p. 358-360).
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
de prática abusiva na argumentação capciosa, dirigida ao tribunal do júri, em nome
da amplitude da defesa do réu. O mau vezo de instruir as testemunhas antes do
depoimento é questão que também desafia exame. Sem dúvida, age de maneira
abusiva aquele que pra- tica atos protelatórios visando, exclusivamente, à
prescrição, com o que o processo se desvia de sua finalidade.
O abuso do direito de defesa também guarda estreita relação com as questões da
dogmática penal. O princípio da ultra-atividade da lei temporária ou excepcional
permite que, mesmo cessada a vigência da norma, sejam os fatos praticados ao
tempo de sua incidência julgados de acordo com a norma temporária ou excepcional
que, assim, continua a regê-los, mesmo quando revogada. Isto impede que a lei
mais benéfica (em tese, retroativa) venha a ser aplicada na fase de julgamento, pois,
de outra forma, ver-se-ia comprometida a finalidade repressiva e preventiva do
Direito Penal. Bastaria que a defesa, através de expedientes astuciosos,
conseguisse procrastinar o feito. 48
Na jurisprudência, há julgados que reconhecem como abusiva a indicação de
testemunhas fictícias ou a substituição do rol com o intuito de procrastinar o
desfecho do processo. A faculdade de produzir a prova é, a princípio, garantida pela
norma (arts. 397 e 405 do CPP), desde que não configure deslealdade processual
(TRF — 4.a Região, 1.a Turma, Autos n. 1998.04.01.031223-0-PR, rel.juiz Vladimjr
passos de Freitas,j. 27. 10.98, v.u., DJU de 25. 1 1 .98, p. 349), pois a defesa não se
confunde com o abuso do direito (STJ, 6a Turma, RHC 94.0004187-8-BA, rel. Min.
Luiz Vicente Cernicchiario, v.u., DJU de 6. l 1 .95, p. 37.594). Atos ou omissões que
buscam dificultar a administração da justiça, interferindo na sua autoridade e
dignidade, são conhecidos pela justiça norte-americana como contempt
Início da nota de rodapé
(48) Cfr. Exposição de Motivos do Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 07/12/40),
item 8. A propósito, v. AníbaI Bruno, Direito Penal, 1, Parte Geral, tomo 1 .°,
Introdução — Norma penal. Fato punível, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 959, p.
257 e 258. Tercio Sampaio Ferraz Jr. entende que se está tratando de norma cujos
efeitos (eficácia) se projetam para além do período de vigência (Introdução ao
Estudo do Direito — Técnica Decisão, Dominação, São Paulo, Atlas, 1 988, p. 1 79-
1 8 1 e 225-228).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
ofcourt.49 Embora a prática processual, nos sistemas de origem romano-germano-
canônica, seja pródiga em exemplos, falta ainda uma elaboração teórica, em matéria
de abuso do direito de demanda no processo penal.
2.2 As dificuldades do subjetivismo de base psicológica
A capacidade de desvelar a face obscura da natureza humana não é tarefa que se
possa exigir do comum dos homens. Penetrar o recôndito do espírito e da mente,
vasculhando escondedouros e desvãos, é trabalho que se pode esperar do cientista,
mas não do juiz. E certo, como bem o disse Ripert, que o jurista desde há muito
opera com a noção de dolo, componente do ilícito e pressuposto da
responsabilidade, pelo que o juiz não teria maiores dificuldades em identificar a
malícia da parte. Ilusória se mostra — nas palavras do civilista francês — a tentativa
de criar um direito puramente objetivo, que pudesse prescindir do exame das
intenções na análise dos fatos.5° A noção de culpa, em sentido estrito, também é
velha conhecida dos juristas. Ocorre que o conceito de abuso do direito pressupõe,
diferentemente, a prática de ato lícito, com desvio da finalidade para o qual foi
concebido. Mais que isto, não basta a simples intenção de prejudicar, presente em
muitos campos da atividade humana que envolvem concorrência econômica e
social, como lembra Pianiol.51 Faz-se necessário saber — sob a ótica subjetivista —
da
Início da nota de rodapé
(49) Douglas Fischer, O princípio da ampla defesa e as condutas com intuito
meramente protelatório no procedimento processual penal, in RT, São Paulo, Ano
88, vol. 761, março de 1999, p. 509-512. Como anota Kaethe Grossmann (op. cit., p.
283), o contempt of court (falta de res- peito aos tribunais), na base do dever de
dizer a verdade, foi sempre uma característica do processo inglês, pautado na
sinceridade e Iealdade processual, sem que houvesse necessidade de um preceito
categórico. O direito americano, nas unidades da Federação que adotaram o
contempt of court, a exemplo do Estado de NovaYork, reconhece, sob o mesmo
aspecto, um dever de veracidade.
(50) Ripert, op. cit., p. 167.
(51) Planiol, op. cit., tomo II, p. 337. Assim, segundo a jurisprudência do Tribunal do
Reich, fartamente citada por Ennecerus, a greve, o lock-out
Fim da nota de rodapé
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
intenção única e exclusiva de prejudicar, sem nenhum proveito pró- prio.52 Haveria
aqui um misto de investigação e prudência.
Ulderico Pires dos Santos, escrevendo no ano em que o Código de Processo Civil
de 1973 entrou em vigor, assume posição nitidamente objetivista. Para ele, o novo
Código proscreveu a prática da ação antijurídica no exercício do direito subjetivo,
contrária às normas do convívio social. Diz que a questão do abuso do direito na
demanda deve ser resolvida na esfera dos princípios gerais do direito e não no
campo da responsabilidade civil. Perfilhando-se à tese sustentada por Roberto
Goldschmidt (vista no capítulo anterior), Ulderico Pires entende que o ponto central
de uma teoria do abuso do direito reside no conceito de antijuridicidade e não de
culpabilidade. Reconhece, entretanto, que à falta de uma orientação unívoca, viriam
à baila novamente discussões acerca da teoria a ser aplicada no caso de
infringência da regra dos arts. 14,16,17 e E a doutrina, a propósito, tomou orientação
subjetivista.54
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
e o boycott, principais armas na luta de classes e salários, não são imorais pelo
simples fato de exercer pressão econômica e provocar danos para o empregador,
pois, se assim fosse, ter-se-ia de proscrever toda luta dos trabalhadores. Somente o
emprego de meios imorais, com a divulgação de informações falsas e provocativas,
ou mesmo a persecução de finalidades reprováveis, tais como a vingança e a
aniquilação econômica do empregador, configurariam o abuso do direito (Tratado de
Derecho Civil, vol. 2, 2a Parte, 3. ed., Barcelona, Bosch, Casa Editorial, 1970, p.
1.085).
(52) Nesse sentido, ver Ripert (op. cit., p. 178) e Planiol (op. cit., p. 337).
(53) Ulderico Pires dos Santos, Ligeiros traços sobre o dano processual no novo
Código de Processo Civil, in Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano 70, abril, maio e
junho de 1974, vol. 246, fascs. 850-852, p. 316-319.
(54) Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil (adaptadas
ao novo Código de Processo Civil), 3. ed., vol. 2, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 277-
281; Hélio Tornaghi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, São Paulo,
RT, 1974, p. 150-155; Caio Mario da Silva Pereira, instituições de Direito Civil, vol. 1,
1 9. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 998, p. 429-43 1; Arruda Alvim, Resistência
injustificada ao andamento do processo, in Julgados dos Tribunais de Alçada Civil
de São Paulo, São Paulo, Ano 1 5, vol. 66, Lex, 2.° bimestre, março
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A exposição de motivos do Projeto de Lei que se transformou no Código de 73, ao
tratar das inovações relativas ao deveres e responsabilidades das partes e de seus
procuradores, deixou de tomar posição a respeito da polêmica entre subjetivistas e
objetivistas.55 De qualquer forma, a intenção, como elemento conotativo e
denotativo da má-fé processual, aparece, textualmente, nos incisos 11, 111 e IV do
artigo 17 do Código de 73. Nos incisos I, V, VI e VII, vislumbra-se alusão genérica à
culpa grave ou ao erro grosseiro, equiparado ao dolo, que surge, respectivamente,
nas expressões cuja falta de fundamento não possa razoavelmente desconhecer; 56
resistência injustificada; proceder de modo temerário e provocar incidentes
manifestamente infundados.57
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
e abril, 1981, p. 13-22. Para Celso Agrícola Barbi, mesmo nas hipóteses em que a
lei deixa de fazer referência à intencionalidade, está implícita a noção de culpa grave
(Comentários ao Código de Processo Civil, 6. ed., vol. I, Rio de Janeiro, Forense,
1991, p. 102). No mesmo sentido alinha-se Yussef Said Cahali (Honorários
Advocatícios, São Paulo, RT, 1978, p. 43). Em verdade, os processualistas, tanto
quanto os civilistas, inspiraram-se na tradição do direito francês (a propósito, vide
nota 15 da seção anterior).
(55) A respeito, v. o Capítulo IV, item 111, alínea a, 1 7, da Mensagem 2 1 0, de 02
de agosto de 1972, encaminhada ao Congresso Nacional.
(56) Entende-se que a expressão fundamento, utilizada pelo Iegislador, faz
referência às questões de fato e também às questões de direito, de onde se conclui
que o erro de direito, se inescusável, é incompatível com a boa-fé.
(57) Hélio Tornaghi (op. cit., p. 152) diz que o Iegislador de 1973 evitou a expressão
lide temerária, porquanto esta não é compreensiva do dolo, preferindo, em seu
lugar, o termo litigância de má-fé. O texto original do Código de 73 (Lei Federal
5.869, de 1 1 de janeiro de 1973), é o seguinte: Art. 16. Responde por perdas e
danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente. Art. ¡ 7.
Reputa-se Iitigante de má-fé aquele que: T — deduzir pretensão ou defesa, cuja
falta de funda- mento não possa razoavelmente desconhecer; 11 — alterar
intencional- mente a verdade dos fatos; 111 — omitir intencionalmente fatos
essenciais ao julgamento da causa; IV — usar do processo com o intuito de
conseguir objetivo ilegal; V — opuser resistência injustificada ao anda- mento do
processo; V1 — proceder de modo temerário em qualquer inci-
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
Aliás, como observa Alexandre de Paula, as disposições dos artigos 16 e 17 do
Código de 73, somadas àquela do artigo 18 (que prevê o dever de pagar honorários
advocatícios, além de custas e despesas processuais à parte lesada pela litigância
de má-fé), nada mais fazem do que repetir os preceitos do art. 3.° e parágrafo único,
bem como do artigo 63, § 1 .°, ambos do Código de 3958 Na orientação do
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
dente ou ato do processo; VII — provocar incidentes manifestamente infundados.
Como registra Alcides de Mendonça Lima (op. cit., p. 60 e 6 1), estes artigos não
podem ser dissociados dos preceitos dos arts. 14 e 15. Diz o art. ]4 que Compete às
partes e aos seus procuradores: I— expor os fatos em juízo conforme a verdade; 11-
proceder com lealdade e boa-fé; 111- não formular pretensões, nem alegar defesa,
cientes de que são destituídas de fundamento; IV- não produzir provas, nem praticar
atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito. O artigo 15, por
sua vez, dispõe: E defeso às partes e a seus advogados empregar expressões
injuriosas nos escritos apresentados no processo, cabendo ao iuiz, de oficio ou a
requerimento do ofendido, mandar riscá-las. Segue o parágrafo único: Quando as
expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado
que não as use, sob pena de lhe ser cassada a palavra. Como será possível ver
mais adiante, o texto dos artigos 17 e 18 sofreu algumas modificações,
respectivamente, com o advento da Lei Federal 6.771, de 27 de março de 1980, e
da Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994. Diga-se ainda que a lei Federal 10.358,
de 27/12/01, inseriu mais um inciso, além de um parágrafo único no artigo 14, no
qual o legislador dispôs sobre a aplicação da multa dc 20% à parte que deixar de
cumprir com exatidão os provimentos mandamentais, criando obstáculo à
antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional. Na época da tramitação do
Anteprojeto, a doutrina já assinalava uma tendência de recrudescimento da
repressão ao abuso do processo (Sidnei Agostinho Beneti, A segunda fase da
reforma processual civil, in Caderno de Doutrina, julho-agosto de 1999 — encarte da
Tribuna da Magistratura, órgão de imprensa da Associação Paulista dos
Magistrados, São Paulo, p. 139-143).
(58) Alexandre de Paula, Código de Processo Civil Anotado, 4. ed., São Paulo, RT,
vol. 1,1988, p. 96-99. No mesmo sentido, v. Alcides de Mendonça Lima, (op. cit., p.
60 e 61 ), Yussef Said Cahali (op. cit., 37) e José Carlos Barbosa Moreira
(Responsabilidade das partes por dano processual, in Revista de Processo, São
Paulo, Ano 111, abril-junho de 1978, ed. 10, p. 21 e 22). Os autores citados
registram que o legislador brasileiro se inspirou no art. 456 do Código de Processo
Civil português. Assinala
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Código atual59 também prevalece a diversidade de fundamento, quanto à
condenação ao pagamento das despesas e dos honorários advocatícios, no caso de
sucumbência e litigância de má-fé. Como diz a Exposição de Motivo, lembrando
Chiovenda, o princípio do sucumbimento é o fato objetivo da derrota,6° ao passo
que a litigância de má-fé implica a imposição de sanções processuais.
Subsiste, portanto, a orientação da doutrina ao tempo do Código de 39,61 mormente
à vista do disposto no artigo 14, 11, do Código
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
Alexandre de Paula que o Código de 73 não reproduziu a sanção prevista no artigo
63, § 2.° (condenação no décuplo das custas), e nem a previsão contida no § 3.°
(comunicação à autarquia corporativa), muito embora, quanto a esta última,
houvesse previsão no art. 24 do Projeto enviado ao Congresso Nacional. Arruda
Alvim, bem por isso, sustenta que o artigo 1 6 não se aplica ao procurador das
partes, mas somente aos sujeitos do processo. Se a parte tiver sido lesada pelo
advogado, haverá de voltar-se contra ele em ação própria (Código de Processo Civil
Comentado, São Paulo, RT, vol. 11, p. 147, e Resistência injustificada ao
andamento do processo, in Julgados dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo,
São Paulo, Ano 15, vol. 66, 2.° bimestre, março e abril de 1981, São Paulo, Lex, p.
18 e 19). A atuação abusiva do advogado está disciplinada no Estatuto da
Advocacia (art. 34, incisos VI, IX, X e XIV). Em alguns casos, a conduta abusiva do
advogado dá lugar à responsabilidade civil (art. 32, parágrafo único, da Lei
8.906/94). Por isso, o Código de Ética dispõe que o advogado não deve fazer
alegação grave, quer implique juízo de fato ou juízo de valor, sem autorização, por
escrito, do cliente, sob pena de responsabilidade solidária (Código de Etica
Profissional, Seção IV, inciso 11, alínea c). A propósito destas questões, colhe a
atual redação do art. 14, parágrafo único, do CPC.
(59) O atual art. 1 8 prevê o pagamento de multa e indenização, além do valor dos
honorários e das despesas processuais, no caso de Iitigância de má-fé.
(60) Capitulo IV, item 111, alínea a, 17, da Mensagem 210, de 02 de agosto de
1972, encaminhada ao Congresso Nacional. O registro quanto à unidade da
orientação, entre os Códigos de 39 e 73, naquilo que diz respeito à diversidade de
fundamentos da condenação com base na sucumbência e na Iitigância de má-fé,
também é feito por Helio Tornaghi (op. cit. p. 1 52) e por Alcides de Mendonça Lima
(op. cit., p. 59).
(61) J. M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1, Rio de
Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 85-1 13
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
de 73. Sucede apenas que este Código foi mais explícito quanto às condutas
abusivas do réu ou interveniente. Tanto quanto o autor, responderão por perdas e
danos nas hipóteses de emulação, mero capricho ou erro grosseiro. Age por espírito
de emulação aquele que, malgrado a convicção do próprio direito, conduz-se no
processo apenas com o objetivo de prejudicar o outro, sem nenhum proveito próprio.
Limítrofe é a noção de mero capricho. Aqui, a caracterização do uso anormal do
processo independe da existência do real proveito que a parte possa retirar de sua
conduta processual. A par- te que desenvolve estratégias de coação, infundindo
temor no espírito do adversário, tanto poderá estar agindo por emulação como por
simples capricho. Pontes de Miranda admite que a noção de mero capricho alude a
estado psíquico que a própria psicologia dificilmente fixaria. Vai da puerilidade à
teimosia, da teimosia à maldade insistente, à crueldade.62 Por último, o erro é ato
involuntário. Quando grosseiro, a doutrina costuma equipará-lo ao dolo. A Iitigância
de má-fé compreenderia, então, as condutas dolosas, acima descritas, e também a
lide temerária, que diz com a conduta culposa.
Assim, a despeito das dificuldades em estabelecer a intenção abusiva e conquanto o
Código de 73 houvesse sublinhado o caráter publicístico do processo, 63 certo é que
o exame do exercício anormal
Início de nota de rodapé
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e 268-27 1; Pontes de Miranda, Comentárjos ao Código de Processo Civil, tomo I, 2.
ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1 958, p. 145- 154; Pedro Baptista Martins,
Comentárjos ao Código de Processo Civil — Decreto-Lej 1.608, de 18 de Setembro
de 1939, vol. 1, Rio de Janeiro, Revista Forense, p. 34-49 e I 94-2 1 1.
(62) Pontes de Miranda, Comentárjos ao Código de Processo Civil, tomo I, 2. ed.,
Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 146.
(63) Como diz a exposição de motivos do Projeto, O processo civil é um instrumento
que o Estado põe à disposição dos litigantes, a fim de ad- ministrar ajustiça. Não se
destina a simples definição de direitos na luta privada entre os contendores. Atua,
como já observava Betti (Diritto Processuale Civile, pág. 5), não no interesse de uma
ou de outra parte, mas por meio do interesse de ambos. O interesse das partes não
é senão um meio, que serve para conseguir a finalidade do processo na medida em
que dá lugar àquele impulso destinado a satisfazer o interesse pú- blico da atuação
da Iei na composição dos conflitos. A aspiração de cada
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Página 114
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
do direito de demanda, no sentido lato, pressupõe, no mais das vezes, a
investigação do dolo ou da culpa. O legislador, quiçá impressionado com a acirrada
controvérsia em torno do conceito de boa- fé e de bons costumes, preferiu
estabelecer limites ao poder do órgão jurisdicional que, em tese, somente está
autorizado a ultrapassá-los nas hipóteses expressamente previstas em lei. 64 A
propósito da conduta das partes, é possível falar em abuso processual tanto no que
concerne ao conteúdo das alegações, quanto naquilo que diz respeito à forma por
que as partes atuam no processo.65 Trata-se, respectivamente, do dever de
veracidade e da obediência às chama- das regras do jogo.
A distinção proposta cumpre apenas função metodológica, por- quanto há de se
reconhecer pontos de interseção entre o dever de dizer a verdade e o dever de
respeitar as regras do processo. E certo
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
uma das partes é a de ter razão; a finalidade do processo é a de dar razão a quem
efetivamente a tem. Ora, dar razão a quem a tem é, na realidade, não um interesse
privado das partes, mas um interesse público de toda a sociedade (Cap. 111, item 1,
5, da Mensagem 210, de 02 de agosto de 1972).
(64) Diz-se em tese porque à questão do abuso processual interessa muito mais o
aspecto valorativo do que o psicológico. Esta percepção vê-se confirmada em
alguns trabalhos doutrinários e julgados. José Carlos Pestana de Aguiar Silva, na
base de sua experiência como Titular da 5 a Vara Cível da Comarca do Rio de
Janeiro, diz que age com abuso do direito previsto no art. 3.° do Decreto-Lei 9 1 1/69
o credor fiduciário que apreende o bem extrajudicialmente, cuidando depois para
que o oficial de justiça, através de certidão, em cômoda diligência, ratifique o ato
clandestino. Ainda que não configurado o objetivo ilegal ou a intenção maliciosa, é
certo que esta convalidação, de duvidosa validade, poderá trazer prejuízos ao
fiduciante, no momento da apuração do saldo deve- dor, por exemplo (Do abuso de
direito do credor na alienação fiduciária, Revista Jurídica, Porto Alegre, 92, 1979, p.
89-91).
(65) A tipologia adotada tem como base, com algumas modificações, a classificação
proposta por José Carlos Barbosa Moreira, a quem cabe, na doutrina brasileira, o
mérito de ter desenvolvido um tratamento sistemático da questão relativa ao abuso
do direito no processo civil, como posta pelo Código de 73 (Responsabilidade das
partes por dano processual, in Revista de Processo, São Paulo, Ano 111, abril-junho
de 1 978, ed.l0,p. 15-31).
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
que vige, a partir do Código de 73, o princípio dispositivo, reflexo do direito material
das partes, de natureza privada, no andamento do processo. Levado às últimas
consequências, implicaria a impossibilidade de o juiz ocupar-se de fatos que a parte
não quer lhe sub- meter. Todavia, como observa Chiovenda, é impróprio cogitar de
limites estanques entre o princípio dispositivo e o princípio inquisitório, que se
temperam, em proporção diversa, conforme os tempos e os lugares.66
As regras do processo servem, segundo orientação declarada na Exposição de
Motivos, à atuação da lei na composição dos conflitos. Trata-se de concepção
disposta a conciliar as diversas teorias que buscam explicar a finalidade do
processo. Para alguns, o pro- cesso visa à tutela dos direitos subjetivos ameaçados
ou violados. Outros, sustentam que se destina à atuação do direito subjetivo. O
legislador, de forma eclética, adotou posição segundo a qual o pro- cesso procura a
satisfação do interesse social da paz jurídica, através da aplicação da lei ao caso
concreto; não basta a composição, qualquer que seja, contanto que ponha termo à
lide, como sucedia nos tempos primitivos, na fase embrionária do processo; não se
quer a paz a qualquer custo, mas sim dar razão a quem efetivamente a tem,
segundo os ideais de justiça reconhecidos pela norma.67 As regras processuais,
orientadas à consecução destes objetivos, têm de se guiar pelo dever da verdade.
Os princípios éticos inscritos na norma do artigo 14 e incisos do CPC de 73 são
regras orientadas, precisamente, pelo dever da
Início de nota de rodapé
(66) Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 11, São Paulo, Saraiva,
1965, p. 345. Como registra AIcaIá-Zamora y Castilho, será muito difícil, senão
impossível, encontrar códigos que correspondam única e exclusivamente a um
destes rótulos (Estudios de Teoria General e Historia del Proceso, tomo 11, números
1 2-30, México, Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de
Investigaciones Jurídicas, 1974, p. 261 e 262). No mesmo sentido, v. Eduardo J.
Couture, Estudjos de Derecho Procesal Civil, 2. ed., tomo 111, Buenos Aires,
Ediciones Depalma, 1978, p. 246.
(67) Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1, São Paulo, Saraiva,
1965, p. 37-46.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
verdade. Falta com este dever a parte que declara alguma coisa diversa daquilo que
está no seu pensamento, consciente de que assim o faz. Na tradição dos latinos,
importa considerar não só a conformidade de um relato com os fatos, mas a
vontade, o querer. O mentiroso é aquele que burla o intelecto, comunicando algo
diferente daquilo que está em sua mente. Daí o substrato ético das disposições
contidas no art. 17, incisos I, 11, 111, IV, V e VII, do Código de 73, que se orientam
pela veritas dos latinos.68 Neste termos, o que se tem aqui não é propriamente uma
disputa entre realismo (uma coisa é verdadeira porque corresponde à realidade
extema) e idealismo (uma coisa corresponde à realidade externa porque é
verdadeira), mas sim a dimensão da vontade que deseja a verdade ou a mentira, o
que coloca o direito no campo de uma razão prática. Essa orientação viu-se um
tanto alterada pelas modificações que a Lei 6.771, de 27 de março de 1980, operou
em algumas regras contidas naquele artigo.
Assim é que o atual inciso I do artigo 17, no Iugar de fixar-se em um aspecto
subjetivo de difícil apreensão (deduzir pretensão ou defesa, cuja falta de fundamento
não possa razoavelmente desconhecer) coloca a questão da verdade em bases
mais objetivas (deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato
incontroverso). Suprimiu-se o advérbio intencionalmente do texto do inciso 11, com o
que o legislador abandonou o psicologismo contido na fórmula anterior. A regra do
inciso 111 desapareceu, o que implicou a reordenação dos subsequentes. Esta
supressão tem importantes desdobramentos, que serão analisados na última seção
do
Início da nota de rodapé
(68) Registre-se que o autor do Anteprojeto do Código de 73, citando, en ¡)assant, a
concepção dos gregos (a verdade é a relação entre aquilo que se afirma e o que
está na própria coisa e que assim se apresenta à razão — aletheia) bem como a
concepção dos Iatinos (a verdade não se refere às coisas, mas à conformidade do
relato com os fatos acontecidos, o que também se insere no campo da vontade, do
querer — veritas), consigna que a alteração da verdade, segundo o Iegislador
brasileiro, consiste na inadequação entre a afirmação e a realidade. Sustenta,
entretanto, em diversas passagens, uma concepção subjetivista de verdade (Alfredo
Buzaid, Processo e verdade no direito brasileiro, in Revista de Processo, Ano XII,
47,julho a setembro de 1987, p. 92-99).
Fim da nota de rodapé
Página 117
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
presente capítulo. Por ora, importante é o registro de que a lei processual, pouco a
pouco, foi-se afastando da prova subjetiva referente ao ânimo emulativo do litigante
(muito embora se tenha de reconhecer que essa orientação ainda subsiste em
alguns dispositivos, do que é exemplo a regra do art. 17, inciso VII, do CPC).
Mas a apreciação da forma pela qual as partes atuam no processo nem sempre está
relacionada ao conteúdo das alegações. Muitas vezes o legislador mostra-se mais
preocupado com a correção for- mal, com a obediência a regras ad hoc — que têm
por escopo a garantia da decisão — do que propriamente com a realidade objetiva.
Trata-se de normas de correção interna do sistema processual, que desenvolve uma
lógica particular, como acontece nos jogos, que necessariamente têm de ter um
desfecho, por maior que seja o número de Iances ou partidas. Assim sucede nos
casos em que a lei, no lugar de aplicar uma sanção processual, elimina ou
simplesmente desconsidera os efeitos produzidos pela conduta processual incorreta
(arts. 181, 243, 245 e 808, 11, todos do CPC de 73).69 Aqui, não tem sentido cogitar
de responsabilidade. Trata-se de simples ônus processual.70
Início da nota de rodapé
(69) Não se há de perder de vista, entretanto, que, se em qualquer dos casos
enumerados, ficar configurada litigância de má-fé, conforme definida no artigo 17 do
CPC, a parte responderá por perdas e danos (art. 16).
(70) José Olímpio de Castro Filho pensa de forma diversa, classificando a nulidade
como uma das formas de sanção (op. cit., p. 193 e 209). Diz o mesmo, quanto à
inexistência dos efeitos da interrupção da prescrição, nos casos em que a citação
deixa de ser feita a certo prazo. O instituto da preclusão, na ótica do processualista
mineiro, também é pena. Parte o autor do pressuposto (diga-se, nem sempre
verificado) de que a parte teria agido com malícia, obstando à celeridade do
processo, pelo que caberia condenação nas penas de litigância de má-fé (op. cit., p.
154). A posição do processualista mineiro, todavia, não está orientada pela moderna
doutrina, que distingue claramente ônus e dever processual. Assim é que o dever
como obrigação que é, limita o livre-querer da parte. Por contrapor-se à noção de
conduta processual antijurídica, o conceito de dever processual está de certa forma
ligado à idéia de sanção (mas não necessariamente). Neste ponto, aliás, reside a
dificuldade de extremar o campo jurídico e o campo moral). De outra parte, o ônus
processual não implica a idéia de obrigação. Trata-se de um encargo,
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Há outras regras processuais — relativas à conduta das partes e cuja infringência
implica sanções de variada natureza— que não estão necessariamente ligadas ao
conteúdo das alegações (arts. 1 13, § 1.0, 161, 268, parágrafo único, e 695, todos
do CPC de 73). Outras existem cuja transgressão, conquanto interfira com o dever
da verdade, implica apenas a incidência de ônus processual (arts. 129, 340, incisos I
e 11, 343, § 2.°, 359, I e 11, todos do CPC de 73).71 A maioria delas, entretanto, diz
com a litigância de má-fé, conceito que traz ínsita a idéia de logro, trapaça, e implica
sanção processual (arts. 14, parágrafo único, 69, incisos I e 11, 233 e parágrafo
único, 529,72 538,
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de um gravame, cuja inobservância traz consequências jurídicas prejudiciais, mas
não impõe a reparação do dano. A propósito do tema, sobre o qual controverteram
Wieczorek, Rosemberg e Lent, consultar o ver- bete dever de veracidade (processo
civil), elaborado por Elicio de Cresci Sobrinho (Enciclopédia Saraiva do Direito, São
Paulo, Saraiva, 1979, vol. 24, p. 387-4 12), e Alfredo Buzaid (op. cit., p. 95 e 96).
Sob o ponto de vista da teoria geral do direito, ver Carlos Santiago Nino,
lntroducción al análisis del derecho, 2. ed., Buenos Aires, 1 984, mais
particularmente a página 172. Há quem sustente, modernamente, que bastaria o
sistema de ônus processuais para reprimir a má-fé. Qualquer outra disciplina haveria
de ser muito objetiva (Francisco Ramos Méndez, ¿Abuso del derecho en el
proceso?, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais,
Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 2, 4 e 6).
(71) A indicar o campo cultural em que se move a definição de verdade, vale, com
relação às presunções legais, nos diversos casos de inércia ou omissão da parte,
previstos no Código de 73, a máxima de Paulo, segundo a qual quem cala não
confessa, apenas não nega (D. reg. iuris, XVII, L. 142, apud Roberto Rosas, op. cit.,
p. 1 26).
(72) A regra, conforme redação que Ihe fora dada pela Lei 5.925, de 1 .° de outubro
de 1 973 (Se o agravo de instrumento não for conhecido, por- que interposto fora de
prazo, o tribunal imporá ao agravante a condenação, em benefício do agravado, do
pagamento do décuplo do valor das custas respectivas), não mais subsiste, em face
das alterações feitas pela Lei 9.139, de 30 de novembro de 1995, que modificou, em
vários pontos, o sistema de recursos, atendendo, assim, a antiga aspiração dos
doutrinadores, juízes e advogados, no sentido de tornar mais ágil a prestação
jurisdicional. Para uma crítica a esta alteração, que implicaria o retardamento do
curso do processo, criando novos embaraços, novas tentações e meios de
procrastiná-lo, ver J.J. Calmon de Passos, Direito,
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
parágrafo único, 592, V, 599, 11, 600, I, 111 e 1V, 73 601, caput,74 881, caput, e
parágrafo único,75 todos do CPC de 73). A distinção que aqui se faz é diversa
daquela fundada na dicotomia responsabilidade subjetiva-responsabilidade objetiva.
Com efeito, quem executa uma sentença pendente de recurso (execução provisória)
age em conformidade com o direito. Todavia, suportará os riscos de eventual
inversão no julgamento da demanda, indenizando a parte vencedora de eventuais
prejuízos. O mesmo se passa com aquele que obtém liminar, ao depois afastada,
em face do insucesso na ação principal (art. 811). Não se está tratando, em
qualquer destes dois casos, de litigância de má-fé.76
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poder justiça e processo: julgando os que nos julgam, Rio de Janeiro, Forense,
2000, p. l 12).
(73) Entende-se que a fraude à execução, prevista no art. 600, I, do CPC, não
caracteriza propriamente abuso do direito. Configura, sim, um ilícito, previsto como
crime (artigo l 79 do Código Penal), tanto quanto a fraude processual (artigo 347 do
Código Penal). A propósito, vide considerações feitas abaixo, na nota 75. Para Celso
Agrícola Barbi, nos incisos 111 e IV do art. 600 do CPC, o Iegislador não supõe
malícia da parte. O caso de resistência injustificada às ordens judiciais (inciso 111),
é hipótese diversa daquela prevista no art. 17, V do Código (atual inciso IV), na qual
está presente a má-fé (op. cit., p. 316 e 317). Entretanto, para Arruda Alvim, o juiz
haverá de pautar-se por um critério objetivo, consistente este em que, diante de
certa conduta, deva ela, objetivamente, ser tida corno caracterizadora de má-fé, por
infração ao artigo 17, 1V,, (Resistência injustificada ao andamento do processo, in
Julgados dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo, São Paulo, Ano 1 5, vol. 66,
2.° bimestre, março e abril de 1981, p. 17). Esta interpretação, como já foi visto,
rompe com a tradição medieval da aemulatio.
(74) Com a redação que lhe foi dada pela Lei 8.953, de 1 3 de dezembro de 1994.
(75) O atentado (ilícito civjl) e a fraude processual (ilícito penal) não são figuras
necessariamente coincidentes. Basta ver que o delito somente se configura na
dependência da idoneidade da inovação e do emprego de astúcia, capaz de influir
no espírito do julgador. E o que resulta do em- prego da expressão artificiosamente
(art. 347 do Código Penal), que não se encontra na norma processual civil.
(76) A propósito da responsabilidade objetiva, dizia-se que ela somente pode ser
aplicada pelo juiz quando houver expressa previsão legal, a exemplo
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
O excesso de penhora ou arresto, por si só, não implica reconhecimento de abuso
do direito, a menos que comprovados a intenção de prejudicar e o efetivo prejuízo,
pois o Código de 73 (art. 685, I), tanto quanto o Código de 39 (art. 1.015), prevê a
possibilidade de redução, avaliados que forem os bens. No regime anterior, a
redução era imperativa, ao passo que, a partir do Código de 73, passou a depender
do prudente arbítrio do magistrado. De qualquer forma, se o legislador condicionou a
possibilidade de reexame dos limites da constrição à avaliação dos bens, isto indica
que não se pode punir o executado, a menos que tenha agido com dolo ou culpa.77
Diversa é a hipótese em que a sentença proferida nos embargos
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das hipóteses dos arts. 588, 1, e 81 1, ambos do Código de 73. Bem por isso,
polêmico o ponto de vista sustentado por José Olímpio de Castro Filho, na vigência
do Código de 39, no que concerne à responsabilidade que pesa sobre aquele que
obtém Iiminar em ação possessória, ao depois revogada por força de provimento
definitivo, nas hipóteses em que a parte contrária tiver experimentado danos. O
processualista mineiro argumenta com a natureza jurídica da Iirninar, que nada mais
se- ria senão uma execução provisória (José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 1
74 e 175). Quer parecer, entretanto, que se está recorrendo à analogia, vedada
quando se trata de normas que estabelecem exceção ou aplicam sanções. Com
efeito, Pontes de Miranda, a propósito de posição inversa (tomar a execução
provisória como medida cautelar), adverte que não se pode confundir provisoriedade
e cautelaridade (Comentários ao Código de Processo Civil, tomo XII, Rio de Janeiro,
Forense, 1976, p. 99 e 100), pelo que só mesmo a título de argumento a simili é que
se pode cogitar desta aproximação de conceitos. Aliás, há autores que sustentam
que as hipóteses previstas nos arts. 588, I (tanto na redação primitiva quanto
naquela atual, prevista na Lei 10.444/02), e 8 I I, ambos do CPC de 73, não são
propriamente de abuso do direito (Pontes de Miranda, Comentários ao Código de
Processo Civil, tomo IX, Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 428 e 429, e tomo XII, Rio
de Janeiro, Forense, p. 99).
(77) Nesse sentido é a posição de J.M. de Carvalho Santos (Código de Pro- cesso
Civil Interpretado, vol. I, Rio de Janeiro, Livraria e Editora Freitas Bastos, 1 940, p.
97 e 98), que, no concernente à penhora, invoca o entendimento de Jorge
Americano (Do abuso do direito, 2. ed., São Pau- lo, 1932, p. 86), que se reproduz,
também na obra deste último autor, nos Comentários ao Código de Processo Civil
do Brasil, vol 1., São
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
de devedor dá por inexistente a obrigação que funda a execução (art. 574). Neste
caso, a doutrina vislumbra mais uma hipótese de responsabilidade objetiva,
porquanto incumbirá ao exequente indenizar os prejuízos experimentados pelo
executado, ainda que não tenha agido com culpa.78
Insta dizer também que o só fato de o processo ter sido extinto sem julgamento do
mérito não implica reconhecer abuso do direito de demanda, porquanto a ação, no
dizer de Degenkolb, é um direito público subjetivo, reconhecido a quem creia, de
boa-fé, ter razão.79 Importa saber se houve dolo, culpa ou, em outras palavras,
intenção de prejudicar, descaso, temeridade no momento de considerar a
propositura da ação.8° Entrementes, José Olímpio de Castro
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Paulo, Livraria Acadêmica, Saraiva & Cia — Editores, 1940, p. 24 e 25. No mesmo
sentido é a posição de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo
Civil, torno IX, Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 425 e 426). Para José Olímpio de
Castro Filho, diversamente, aplica-se o princípio da responsabilidade objetiva aos
casos de penhora e arresto, pois tais atos implicam uma antecipação da execução,
que corre por conta e risco do exequente (op. cit., p. 170-172).
(78) Celso Agrícola Barbi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. l, Rio de
Janeiro, Forense, 1991, p. 77; Pontes de Miranda, Comentários ao Código de
Processo Civil, tomo IX, Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 145. Para Amílcar de
Castro, o fundamento do ressarcimento, na hipótese do art. 574 do CPC, é o mesmo
da condenação em custas, vale dizer, o fato objetivo da derrota (Comentários ao
Código de Pro- cesso Civil, vol. VIII, São Paulo, RT, 1974, p. 28).
(79) Degenkolb, Principii di diritto processuale civile — Le azioni — il pro- cesso di
cognizione, Napoli, Casa Editríce Dott, Eugenio Jovene, 1 965, p. 56 e 57, apud
Chiovenda, Principii de diritto processuale civile. La azione. 11 proceso di
cognizione, Napoli, Casa Editríce Dott, Eugenio Jovene, 1965, p. 56.
(80) J.M. de Carvalho Mendonça, Código de Processo Civil Interpretado, vol. l, Rio
de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 98-100; Eliezer Rosa, Dicionário
de Processo Civil, Rio de Janeiro, Editora de Direito Angelo de Oliveira Ltda., 1957,
p. 305 e 306; Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 2. ed.,
tomo vI1I, Rio de Janeiro, Forense, 1 959, p. 442 e 443; Arruda Alvim, Código de
Processo Civil Comentado, vol. V, São Paulo, RT, 1979, p. 195.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Filho, escrevendo na vigência do Código de 39, assinala que, em alguns casos, a
inobservância de certas prescrições legais, que rendia ensejo à então chamada
absolvição de instância, é clara manifestação de abuso processual, não se havendo
de cogitar de prova da intenção de prejudicar. Importa aqui considerar apenas as
hipóteses normativas que encontram correspondência no Código de 73. E o caso da
petição inepta (arts. 267, I, e 295, I) ou da parte que deixa de instruir a inicial com os
documentos indispensáveis (arts. 267, I, e 284, parágrafo único), bem como da
existência de defeito na representação, ausente outorga uxória (arts. 10, caput, e
267, IV) ou instrumento de mandato judicial (art. 13, I, e 267, IV). Assim sucede
também quando a parte se omite em dar regular andamento ao feito (art. 267, 11 e
III).81
As sanções por abuso processual agrupam-se em duas classes que não se excluem
(podendo ocorrer imposição cumulativa), a saber, multas processuais e reparação
dos prejuízos.82 A responsabilidade
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(81) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 120-122. Alcides de Mendonça Lima
entende que a orientação do processualista mineiro tem inteira aplicação ao Código
de 73, máxime no que concerne aos incisos 11, 111, IV,V e VI do artigo 267 (op. cit.,
p. 63).
(82) Neste aspecto, a classificação se afasta daquela proposta por José Carlos
Barbosa Moreira (op. cit., p. 17 e 1 8), que agrupa as sanções em quatro categorias.
Além daquelas ora mencionadas, o processualista carioca vislumbra a restrição ou a
perda de direitos ou faculdades processuais, bem como a punição criminal, no caso
de fraude processual. Diga-se, por primeiro, que o abuso do direito não é crime e
que o crime não é abuso do direito. Trata-se de noções antitéticas, porquanto se há
direito (do qual se possa abusar) não se pode falar em crime. Quem pratica crime
age sem direito. Como bem o diz Jorge Americano, o abuso do direito acoberta-se
formalmente no exercício de um direito do agente (Comentários ao Código do
Processo Civil do Brasil, vol 1, São Paulo, Livraria Acadêmica — Saraiva & Cia —
Editores, 1940, p. 18). Nas palavras do processualista português, João de Castro
Mendes, o conceito de ação abusiva, em rigor, diz respeito ao autor que tem razão,
e no entanto, age, não para a ver reconhecida, mas fazendo a ação desempenhar
uma função diversa, designadamente a de prejudicar ou incomodar o réu (Direito
Processual Civil, apontamentos de aulas ministradas por João de Castro Mendes,
entre 1973 e 1974, vol. 2, Faculdade de Direito de Lisboa,
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
por dano processual, como definida pelo Código de 73, implica a condenação em
perdas e danos e também, como já era da tradição do direito romano, a imposição
de multas e custas agravadas.83
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1 974, p. 203). A fraude à execução e a fraude processual caracterizam litigância de
má-fé que, nestes casos, não se ajusta à noção de abuso do direito. Quanto à
primeira classificação acima enunciada, já se consignou que a nulidade, a perda de
faculdades ou de direitos, tanto quanto a desconsideração dos efeitos produzidos
pelo ato, são ônus processuais e não penas. Não se pode cogitar também de
sanções cautelares, como quer Carlos Aurélio Mota de Souza (Poderes éticos do
juiz — a igualdade das partes no processo e a repressão ao abuso processual, in
Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano 82, vol. 296, out.-nov.-dez. de 1986, p. 161-
168). A caução ou depósito, como condição da prática de determinados atos, visam
a garantir o juízo, como é da índole mesma destes institutos, prevenindo a prática de
abuso. Ao mesmo tempo, têm um caráter punitivo (Yussef Said Cahali, op. cit., p.
55). Tem-se entendido que mesmo nas hipóteses de custas agravadas, ou multas
que revertam em favor da parte contrária (art. 488, 11, 494, 538, parágrafo único,
601, 695, caput etc), não se está tratando de indenização, mas sim de sanção penal
prevista na lei processual civil, de caráter punitivo, cuja imposição independe da
ocorrência de dano. De outra natureza é o de- ver de reparar o dano fundado na
responsabilidade aquiliana, como está na regra do art. 35 do CPC, apesar de sua
ambígua redação (Yussef Said Cahali, op. cit., p. 58 e 64).
(83) José Carlos Barbosa Moreira, op. cit., p. 1 8. No mesmo sentido, Yussef Said
Cahali (op. cit., p. 55-58). O processualista carioca também observa que a
indenização, nos casos de execução provisória (art. 588, I) e do requerente de
medida cautelar (art. 81 1), inspira-se em outros princípios e não no propósito de
reprimir a má-fé no comportamento dos litigantes (idem, p.22). De outra forma, José
Olímpio de Castro Filho, escrevendo na vigência do Código de 39, sustenta que a
legislação processual prevê reparação sem dano, diferentemente do que ocorre no
Direito Civil. Invoca a condenação em custas agravadas, prevista no artigo 63, § 2.°
(op. cit., p. 1 91). Importante consignar também que, se a conduta Iesiva couber em
qualquer dos tipos descritos no CPC, a indenização terá natureza processual. De
outra forma, regular-se-á pela lei civil (artigo 159 do Código Civil de 1916; atual
artigo 186), o que pressupõe análise da ocorrência de dolo ou culpa (Yussef Said
Cahali, op. cit., p. 61 e 62). Acerca das discussões, na doutrina estrangeira, sobre o
fundamento e a natureza da responsabilidade reparatória, v. Yussef
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A reforma que se seguiu, nos anos de 1994 e 1995, trouxe importantes inovações
processuais. A um tempo, simplificou os procedimentos e o sistema de recursos,
agilizando a prestação o jurisdicional. Como registra a doutrina, a demora no
andamento do pro- cesso é tanto mais insuportável quanto menor forem as
condições econômicas da parte, o que vem agravar a quase que insuperável
desigualdade substancial no procedimento.84 Inspirado nestas idéias, o legislador
criou dispositivo apto a neutralizar, o quanto possível, a conduta abusiva do réu (aí
compreendidos todos aqueles que podem figurar no pólo passivo da ação, incluindo
o autor- reconvindo e o demandado na ação declaratória incidental). Trata a regra do
artigo 273, 11, do CPC do adiantamento, no todo ou em parte, da tutela demandada,
desde que, diante da prova, convença-se o juiz da verossimilhança das alegações
de abuso do direito de defesa ou
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Said Cahali (op. cit., p. 38-40). Registre-se, ainda a propósito da condenação em
perdas e danos que, para parcela da doutrina, ela dependia de pedido da parte
lesada, diferentemente do que ocorre com o reconheci- mento da má-fé, que não
necessariamente se faz acompanhar de prejuízos (ver a respeito, com farta citação
doutrinária, Alfredo Buzaid, op. cit., p. 97 e 98, Arruda Alvim, op. cit., p. 19, e Yussef
Said Cahali, op. cit., p. 63 e 64). Diversamente (e também com ampla citação
doutrinária), Alcides de Mendonça Lima (op. cit., p. 62) e Hélio Tornaghi, (op. cit., p.
157). A discussão encontra-se superada, à vista da atual regra do artigo 1 8 do CPC,
com a redação que lhe foi dada pela Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1 994, que
adotou a segunda posição. O legislador, outrossim, contornando a dificuldade da
prova do dano, optou pela condenação tarifada. A hipótese de arbitramento,
segundo a doutrina, estará reservada apenas para o caso de prejuízos de grande
monta (Humberto Theodoro Jr., Curso de Direito Processual Civil, vol. l, 19. ed., Rio
de Janeiro, Forense, 1997, p. 87). Importante que se diga que o fato de o juiz estar
autorizado, independentemente de pedido da parte lesada, a condenar o Iitigante de
má-fé não implica dizer que poderá fazê-lo sem que esteja configurado o dano. O an
debeatur é pressuposto da condenação (Arruda Alvim, Tratado de Direito Processual
Civil, 1.° vol., 2. ed., 1996, p. 476 e 477). Neste sentido, o Iegislador afastou-se da
tese defendida por José Olímpio de Castro Filho.
(84) Luiz Guilherme Marinoni, Efetividade do processo e tutela antecipatória, in RT,
São Paulo, Ano 83, agosto de 1994, vol. 706, p. 56.
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
do propósito protelatório do réu.85 Com a inovação consagrada no artigo 273, 11, do
CPC, o legislador obtemperou à crítica que Pontes de Miranda já fazia no regime do
Código anterior, segundo a qual não há no direito brasileiro — afora a possibilidade
de propor ação declaratória para obter pronunciamento judicial quanto à existência
ou inexistência de relação jurídica, autenticidade ou falsidade de documento —
nenhuma regra para prevenir abuso de direito material ou processual.86 Outrossim,
no caso das ações declaratórias — às quais, em tese, a regra do artigo 273, 11, do
CPc também se aplica87 — remanescem algumas dificuldades, porquanto é difícil
cogitar da
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(85) João Batista Lopes vislumbra a existência, no ordenamento jurídico brasileiro,
de algumas previsões legais de antecipação da tutela jurisdicional, precursoras da
atual previsão do Código de Processo Civil, a exemplo da concessão de liminar nas
ações possessórias, da fixação de alimentos provisórios e de aluguel provisório, do
despejo liminar, da busca e apreensão realizada com fundamento do Decreto-Lei 91
1, de l .° de outubro de 1969, e da tutela liminar prevista no artigo 84, § 3.°, da Lei
8.078, de 1 1 de setembro de 1 990 (Antecipação da tutela e o artigo 273 do CPC, in
RT, Ano 85, vol. 729, p. 66). Todavia, registre-se que tais previsões não tinham em
mira, especificamente, o combate ao abuso do direito de defesa, como sucede
agora, com a reforma operada pela Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994.
(86) Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 2. ed., tomo l,
Rio de Janeiro, Forense, 1 958, p. 1 38. A doutrina admite a possibilidade de tutela
antecipada, no momento anterior à contestação, nos casos em que ficar
comprovado, por exemplo, que o réu, a des- peito de diversas notificações, deixou
de honrar a dívida (Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, Código de
Processo Civil Comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 4.
ed., São Paulo, RT, 1998, p. 752 e 753). Entende-se que a apreciação, na hipótese,
não Ievará em conta o conteúdo da lide propriamente dito. Caso a tutela antecipada
viesse a considerar eventual falta de fundamento para a resistência à pretensão do
autor, estar-se-ia não mais cogitando de apreciação de abuso do direito de defesa
(ao qual a lei circunscreve a atuação do julgador), mas sim de abuso do direito
material, que constitui a causa de pedir.
(87) Idem, p. 750. A tutela antecipada é admitida em toda ação de conhecimento.
Não se aplica ao processo de execução e nem tampouco ao processo cautelar
(João Batista Lopes, op. cit., p. 67).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
antecipação no pronunciamento acerca da existência ou inexistência de relação
jurídica. A regra Iegal não se harmoniza com a finalidade da ação declaratória.88
Aplica-se à antecipação da tutela jurisdicional a norma do artigo 588 do Código de
Processo Civil, por força de remissão expressa (art. 273, § 3.°). Neste aspecto,
confirma-se a orientação de José Olímpio de Castro Filho, ao tempo do Código de
39, para quem as medidas liminares, de maneira geral, têm natureza jurídica de
execução provisória. Afastando-se da tese defendida pelo processual lista mineiro,
entendia o legislador que se a decisão fosse revogada ou modificada, o autor nem
por isso estaria obrigado a indenizar eventual prejuízo sofrido pelo réu, ressalvada a
hipótese de má-fé (arts. 14 e 17 do CPC). Esta orientação, que resultava da omissão
à referência ao inciso 1 do artigo 588, na regra do artigo 273, § 3.°, do Código de
Processo Civil, viu-se alterada a partir da Lei 10.444/02, que faz menção ao artigo
588, sem especificar incisos.
A exposição feita neste tópico, longe da pretensão de esquadrinhar o texto
normativo vigente — o que seria dado esperar de um estudo propriamente
dogmático — serviu apenas para demonstrar as dificuldades que permeiam a
doutrina, quando se trata de estabelecer critérios para a identificação do abuso
processual, expressão sintética que, no senso comum dos processualistas,
compreende não só a litigância de má-fé (como definida nos arts. 14 a 18 do Código
de 73) e as hipóteses de responsabilidade objetiva, mas também o chamado
processo fraudulento (art. 129), cuja
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(88) João Batista Lopes (op. cit., p. 68 e 69), tanto quanto Nelson Nery e Rosa Nery
(op. cit., p. 750), procura, com certa dificuldade, estabelecer hipóteses de cabimento
da antecipação da tutela declaratória. Os autores terminam por concluir que se trata,
em verdade, de adianta- mento dos efeitos de uma sentença de carga declaratória,
como se dá no caso da sustação Iiminar do protesto de cambial já paga. A
dificuldade, conforme apontada pela doutrina, também ocorre quando se cuida de
ação constitutiva. A respeito dessas dificuldades, ver também Luiz Guilherme
Marinoni, A tutela antecipatória nas ações declaratória e constitutiva, RT, São Paulo,
Ano 86,julho de 1 997, vol. 74 1, p. 77-87.
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
análise interfere com a questão da verdade processual, objeto da próxima seção.89
A apreciação do abuso do direito no processo
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(89) A propósito do conceito de colusão v. Gian Antonio Micheli, Corso di
dirittoprocessuale civile, vol. 1, Milano, Dott. A. Giuffrè-Editore, 1959, p. 260;
Francesco Carnelutti, Estudjos de Derecho Procesal, vol. 11, Buenos Aires,
Ediciones Jurídicas Europa-América, 1952 (Coleccjón Ciencia del Proceso), p. 67-
79; Francesco Carnelutti, Estudios de De- recho Procesal, vol. 1, Buenos Aires,
Ediciones Jurídicas Europa-Amé- rica, 1 952 (Coleccjón Ciencja del Proceso), p. 97;
Francesco Carnelutti, Nullitá della sentenza derivata da processofraudolento, in
Rivista di dirittoprocessuale civile, Anno 1 934, xII, vol. xI, Parte 11, Padova, Casa
Editríce Dott, Antonio Milani, p. 46-48; Francesco Carnelutti, Proces- so infrode alla
lege, in Rivista di diritto processuale civile, Anno 1 949, vol. IV, Parte 11, Padova,
Casa Editríce Dott, Antonio Milani, p. 32-44; F.G. Lipari, Appunti sul doloprocessuale
bilaterale, in Rivista di diritto processuale civile, Anno 1 928, vol. V, Parte l, Padova,
Casa Editríce Dott, Antonio Milani, p. 285-304; Guido Calogero, op. cit., p. 129-153;
Chiovenda, instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva,
1 965, 49 e 50; Salvatore Satta, op. cit., p. 1 99 e 200; Adolf Wach, op. cit, p. 89;
ArthurAnselmo de Castro, op. cit., p. 5 1 -67; Eliezer Rosa, op. cit, p. 303 e 304; J.
M. de Carvalho Santos, Código de Proces- so Civil Interpretado, 2. ed., Rio de
Janeiro, Freitas Bastos, vol. 11, 1 940, p. 132 e 1 33; Herotides da Silva Lima, op.
cit., p. 222 e 223; Pedro Baptista Martins, Comentários ao Código de Processo Civil,
vol. 1, Rio de Janeiro, Revista Forense, 1940, p. 346-350; Luiz Antonio da Costa
Carvalho, op. cit., p. 301-306; Celso Agrícola Barbi, Comentárjos ao Cócligo de
Processo Civil, 6. ed., vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1991, p. 3 1 3-3 1 6; Aílton
Stropa Garcia, A colusão, in RT, São Paulo, Ano 82, setembro de 1 993, vol. 695,
p.225 e 226; Hélio Tornaghi, op. cit., p. 153- 200; José Raimundo Gomes da Cruz,
op. cit., p. 33 a 45; Arruda Alvim, Código de Processo Civil Comentado, vol. 5, São
Paulo, RT, 1979, p. 200-203. A respeito da interpretação do tema najurisprudência,
ver Darcy Arruda Miranda Junior et alli, CPC nos tribunais, vol. 111, São Paulo,
Jurídica Brasileira, 1985, p. 2.000-2.002; Arruda Alvim, Juris- prudência do CPC, vol.
XII, São Paulo, RT, 1985, p. 104-112; Arruda Alvim, Jurisprudência do CPC, vol. VIII,
São Paulo, RT, 1984, p. 146- 149; TJSão Paulo, 2. Câm. Civ., Ap. 79.967, rel. A. de
Oliveira Lima, Capital, 1 3.08.57, in RT, São Paulo, Ano 47, março de 1 958, vol.
269, p. 239-244; 1 .° TAC/São Paulo, 2.a Câm., Ap. 362.3 14, Civ., Santo André, rel.
Sena Rebouças, 01.10.86, in RT, São Paulo, Ano 75, novembro de
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Página 128
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
judicial, como diz Pedro Baptista Martins,9° exige diferentes atitudes de espírito do
julgador, pois em muitos pontos, como já demonstrado, nem mesmo a doutrina se
entende. Há quem sustente que é abusiva a conduta do autor que, podendo
escolher entre duas ações, acaba optando, sem nenhum proveito objetivo, pela mais
ofensiva e prejudicial à situação da parte contrária, ainda que a opção tenha sido
involuntária, resultante de negligência ou imprudência.9 Outros sustentam que
somente na hipótese de má-fé é que se pode cogitar de abuso. Assim, age
amparado pela lei o autor que, tendo a seu dispor duas ações ou duas vias para
tornar efetivo seu direito, escolhe circunstancialmente a mais gravosa.92 Diferentes
Início da nota de rodapé
1986, vol. 61 3, p. 121 e 122; 1 .°TAC/São Paulo, 2. Câm., Ap. 362.314, rel. Sena
Rebouças, j. 0 1 . 1 0.96, in RT, São Paulo, Ano 75, novembro de 1986,vol.613,fasc.
1,p. 121 e 122;TJSC, 1.aCâm.Civ.,Ap.Civ. 10.714, Seara, rel. Rid Silva, 17.07.75, in
RT, São Paulo, Ano 65, dezembro de 1 976, vol. 494, p. 1 76- 1 79; TAC/São Paulo,
5.° Câm. Esp., Ap. 509.967- 6, Araçatuba, rel. Caio Graccho, in Julgados dos
Tribunais de Alçada Civilde São Paulo, São Paulo, Lex, Ano 27,julho-agosto de
1993, vol. 140, p. 147- 149; TJSão Paulo, 2. Câm. Civ., Ap. Civ. 21 8.053-1, Matão,
rel. Vaconcellos Pereira, 07.02.95, v.u., in Revista de Jurisprudência do Tribunal de
Justiça, São Paulo, Lex, Ano 29, setembro de 1 995, vol. 172, p. 16 1- 1 64;
1 .°TAC/São Paulo,Ap. 367. 1 62, 6.°Câm., Jacareí, rel. Ernani de Paiva, in RT, São
Paulo, Ano 76, maio de 1987, vol. 619, p. 129- 13 1.
(90) Pedro Baptista Martins, O abuso do Direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro,
Forense, 1997, p. 75.
(91) Noé Azevedo, Abuso do direito no exercício da demanda, p. 1 1, apudJ. M. de
Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1, Rio de Janeiro,
Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 95 e 96. Neste mesmo sentido, ainda que
partindo de outros fundamentos, é a orienta- ção de Pedro Baptista Martins (O
abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., 1 997, p.76 a 78), de Jorge Americano (Abuso
do direito no exercício da demanda, 2. ed, São Paulo, 1932, apud Pedro Baptista
Martins, O abu- so do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 997, p.
76 e 77) e de Oscar da Cunha (O dolo e o direitojudiciário civil, Rio de Ja- neiro,
1936, apud Pedro Baptista Martins, O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de
Janeiro, Forense, 1997, p. 77).
(92) J.M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1, Rio de
Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 96 e 97. Esta
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Página 129
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
situações permitem ver que a apreciação do abuso do direito no processo judicial
pressupõe, antes mesmo da análise de questões de foro íntimo, valorações de
ordem social.93
É indiscutível que o exercício inconsiderado do direito de ação pode trazer
consequências tão graves que nem mesmo a aplicação dos princípios de
responsabilidade terá condições de recompor. Daí a importância da atuação
preventiva do juiz. Sem ela, no dizer de Pedro Baptista Martins, indivíduos
economicamente irresponsáveis, pela ameaça e pela intimidação, poderão
impunemente frustrar
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
também é a posição de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo
Civil, tomo I, 2. ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1958, p. 146). O Código de
Processo Civil vigente traz, no seu artigo 620, importante inovação. Assim é que, se
o credor puder promover a execução por vários meios, o juiz mandará que se faça
pelo modo menos gravoso para o devedor (favor debitoris). No caso, está-se
tratando não da escolha entre as diversas espécies de execução, mas da escolha de
atos de execução. A propósito deste dispositivo, José Frederico Marques arrola uma
série de situações, que encontram previsão em outras normas do Código, nas quais
a questão da escolha menos gravosa pode surgir (Instituições de Direito Processual
Civil, vol. 5, Rio de Janeiro, 1958, p. 139, 186, 222, 371 ep assim). Encontram-se
alguns exemplos também em Pontes de Miranda (Comentários ao Código de
Processo Civil, tomo X, Rio de Janeiro. Forense, 1976, p. 41 e 42).
(93) o Código d 73 — como já dispunha o anterior — considera temerária a conduta
daquele que opõe resistência injustificada ao andamento do processo (art. 1 7, IV).
Há quem sustente que certos meios protelatórios muitas vezes se justificam para
evitar mal maior. É o caso daquele que, na esperança de receber numerário,
procrastina, com os expedientes dos quais dispõe, a arrematação em execução
judicial (J. M. Carvalho de Mendonça, Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1,
Rio de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 112 e 113). Interessante
também é a hipótese daquele que desiste da apelação somente para ver
prejudicado o recurso adesivo. Para Arruda Alvim, a apreciação do ato
procrastinatório tem de ser feita de maneira objetiva, independentemente da real
intenção que teria movido o litigante (Resistência injustificada ao andamento do
processo in Julgados dos Tribunais de Alçada CI- vil de São Paulo, Ano 15, vol. 66,
2.° bimestre, março e abril de 1981, So Paulo, Lex, p. 17).
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Página 130
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
operações de crédito, interromper a formação de certos contratos, afastar, nas
hastas públicas, a concorrência.94 Todavia, o controle dos limites éticos da conduta
processual das partes não pode ser visto como simples exercício de uma vontade
íntima do julgador. Averiguar a intenção do agente, verificar se o dano teria resultado
de culpa sua, é tarefa que deve ser relegada à psicologia. O que, em consonância
com o código, importa examinar é se o indivíduo, ao desencadear o seu poder
jurídico, com o fim de satisfazer um interesse puramente egoístico, deixou de ter em
conta os interesses antagônicos, mas hierarquizados, da coletividade, desvirtuando,
por esta forma, o elemento social que, na formação da regra jurídica, predomina
sobre o elemento individual.95 A questão, como já ad- vertia Jorge Americano, não
se confina no âmbito da psicologia individual, pois que no foro íntimo não é lícito
penetrar, nem é mesmo possível fazê-lo. Incide, porém, no estudo da psicologia das
médias humanas para propor-se de forma a indagar se o ato realizado está em
conformidade com o modo pelo qual os homens costumam
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(94) Pedro Baptista Martins, O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro,
Forense, 1997, p. 74, e Comentários ao Código de Processo Civil (Decreto-Lei
1.608, de 18 de Setembro de 1939), vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1 940, p. 4 1.
Gabriel Rezende Filho, referindo-se à necessidade de cautela na propositura da
ação, diz que a demanda representa muitas vezes a ruína de famílias. Fonte de
amarguras e inquietações, faz lembrar a maldição dos ciganos, na expressão de
Salvador de La Colina: Deus te dê demandas, ainda que as venças (Direito
Processual Civil, 3. ed., vol. 11, São Paulo, Saraiva, p. 45 e 46). Caio Mario da Silva
Pereira, em parecer sobre pedido abusivo de falência, citando Savatier, registra que
muitas vezes, é a natureza do processo, pela desonra que causa, pelo abalo que
provoca, pelas consequências sobre o bom nome do réu, que aconselha o autor a
ser mais discreto, a não ir ajuízo senão após maduramente pesar o seu próprio
direito, e não se afoitar, para não provocar a desmoralização do contendor, o seu
des- prestígio público. o abalo no seu crédito. Se assim não age, assume o risco do
desfecho (Revista Forense, Ano 52, vol. 159, fascs. 623 e 624, maio-junho de 1955,
p. 107).
(95) Pedro Baptista Martins, O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed, Rio de Janeiro,
Forense, 1997, p. 96 e 102.
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Página 131
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
proceder.96 O direito não pode desconhecer a variabilidade do meio onde deve ser
aplicado.97
Início da nota de rodapé
(96) Jorge Americano, Do abuso do direito no exercício da demanda, 2. ed., São
Paulo, 1 932, p. 34, apud Carvalho Santos, Código de Processo Civil interpretado,
vol. 1, São Paulo, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 94.
(97) Jorge Americano, Comentários ao Código de Processo Civil do Brasil, vol. 1,
São Paulo, Livraria Acadêmica — Saraiva & Cia — Editores, 1 940, p. 3 1. Neste
sentido, a teoria do abuso do direito ganha dimensão nova, diversa da doutrina
medieval dos atos de emulação, pois ao magistrado não cabe verificar o animus, a
consciência da má-fé. Sob este aspecto, significativa a atual redação do artigo 1 7,
inciso I, do CPC. Na doutrina haurida no Código de 39, a alteração da verdade
haveria de ser intencional. A propósito, v. Lopes da Costa, numa referência à regra
do artigo 63 (Direito Processual Civil Brasileiro, 2. ed., vol. 11, Rio de Janeiro,
Forense, 1959, p. 124). Para Arruda Alvim,já a redação anterior à alteração
promovida pela Lei 6.771, de 27 de março de 1980 (deduzir pretensão ou defesa,
cuja falta de fundamento não possa razoavelmente desconhecer), apontava para o
critério objetivo (Resistência injustificada ao andamento do processo, in Julgados
dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo, São Paulo, Ano 15, vol. 66, 2.° bimestre,
março e abril de 1981, São Paulo, Lex, p. 17 e 18). Elicio de Cresci Sobrinho,
escrevendo antes da Lei 6.77 1/80, sustenta que o dever de veracidade disciplinado
pelo CPC é dever de veracidade subjetivo (op. cit., p. 400 e 401). Alfredo Buzaid,
escrevendo depois da edição da Lei, defende a mesma posição (op. cit., p. 93 e 96).
Na doutrina estrangeira, Guido Calogero (Probità, lealtà, veridicitànelproceso civile,
in Rivista diDiritto Processuale Civile, voj. xvI — Parte 1 , Ano 1 939 — XVII-XVIii,
Padova, Casa Editríce Dott, Antonio Milani, p. 129-153) e Leo Rosemberg (La carga
de la prueba, Colección Ciencia del Proceso, 30, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas
Europa-America, 1956, p. 59, e Tratado de Dere- cho Procesal Civil, Colección
Ciencia del Processo, 27, tomo I, Libro primero, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas
Europa-America, 1955, p. 382 e 383) foram uns dos primeiros a suscitar a polêmica,
filiando-se à tese da verdade subjetiva. Também de viés subjetivista é a posição de
Cappelletti (Processo, ldeologia, Sociedad, Colección Ciencia del Proceso, ed. 64,
Buenos Aires, Ediciones Juridicas Europa-America, 1974, p. 54 e 55) e de Kaethe
Grossmann (op. cit., p. 289 e 290). Luis Recaséns Siches, a propósito de um
conceito universal de Justiça, diz que um dos seus postulados é a existência de uma
verdade objetiva, vale
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Página 132
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
2.3 As práticas judiciárias e os modelos de verdade
Como foi visto, a noção de abuso do direito no processo judicial está ordinariamente
relacionada ao dever da verdade. Ainda que se possa cogitar de conduta culposa ou
simplesmente de conduta desconforme à finalidade do processo, justifica-se o
enfoque, como ora proposto, senão porque a responsabilidade objetiva depende
sempre de expressa previsão normativa, o que se resolve nos estreitos limites da
tipicidade (fattispecie), pelo só fato de que interessa também o exame da dimensão
social da verdade, da qual se aproxima o conceito de antijuridicidade, desenvolvido
pela dogmática jurídica.
Os estudiosos do direito sempre tiveram muita dificuldade em estremar os diversos
níveis do conhecimento jurídico. Fala-se, com frequência, de uma ciência descritiva,
que se limita à elaboração e sistematização de conceitos, em plano distinto da
atividade prática e política do direito, esta sim voltada à produção de resultados. Em
uma terceira dimensão encontra-se a reflexão filosófica do direito, que se ocupa não
só da descrição da Iinguagem científica, mas também da revisão lógica,
metodológica e epistemológica do trabalho do cientista do direito.98 De pronto, é
possível ver, porém, o quão equivocado seria a concepção de uma ciência alheia
aos pressupostos filosóficos. A simples circunstância de a filosofia ocupar-se de
categorias universais não é empecilho para o exame dos fatos que compõem a
tessitura social, objeto do trabalho do cientista.
Com efeito, o filósofo, através do emprego de categorias lógico- transcendentais,
examina a gênese, a estrutura e a finalidade da experiência jurídica, indagando
sobre a fundação cognoscitiva do
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
dizer, todas as afirmações sobre fatos e relações devem ser objetivamente
verdadeiras, assim como devem sê-lo também as declarações que fazem as
pessoas implicadas com o direito (lntroducción al Estudio del Derecho, 6. ed..
México, Editorial Porrúa S/A, 1981, p. 320).
(98) Ernesto Grtin e Martin Diego Farrel, Problemas de verijìcación en el de- recho,
in Genaro Carrió et alli, Derecho, Filosofia y lenguaje (homenaje a Ambrosio L.
Giojia), Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, Buenos Aires, 1976, p. 69-73.
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Página 133
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
Direito (estrutura ôntica e lógica). Esta questão ontognoseológica, por seus
desdobramentos no campo da epistemologia, implica o exame de disputas acerca
da natureza do saber jurídico (ciência, arte ou tecnologia). A par dessas
investigações, busca-se conhecer o fundamento ético do direito o que é objeto da
deontologia — e o sentido da experiência jurídica através dos tempos, indagação
esta que se encontra nos domínios da culturologia. Este modelo,99 que se está
tomando provisoriamente de empréstimo, por tratar-se de importante paradigma,
permite entender que o direito se move num campo cultural e que, bem por isso, as
categorias jurídicas elaboradas pelo estudioso haverão de ter em conta a realização
social de valores.
A experiência jurídica tanto interessa ao jurista como ao sociólogo, ao historiador
etc. O teórico do direito — conforme observa Miguel Reale — por seu apego à
norma posta, faz abstrações das fontes últimas condicionadoras da experiência
jurídica, para recebê-la com um dado, algo existente e válido em si e por si. Cabe ao
filósofo buscar os fundamentos transcendentais daquela experiência, iluminando o
significado histórico que a dogmática jurídica (como teoria geral do direito aplicada)
recolhe nos diversos estágios da trajetória humana.100 O problema da verdade
judicial, sob este ângulo, insere-se numa dimensão fenomênica que ultrapassa o
mundo platônico das idéias, assim como a concepção de uma inteligência divina,
presente na elaboração da Grécia arcaica e na Alta Ida- de Média,101 procurando
conciliar o idealismo absoluto e o realismo.
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(99) Trata-se da teoria tridimensional do direito, como desenvolvida por Miguel Reale
(op. cit., p. 84-91).
(100) Miguel Reale, op. cit., p. 89-91.
(101) Veja-se o que sucede na Ilíada, onde controvertem Menelau e Antíloco a
respeito da ocorrência de determinado fato, consistindo a prova da verdade no
desafio do juramento diante de Zeus. No texto, Homero conta que Antíloco, diante
de tal desafio, renunciou à prova, reconhecendo o fato que o desfavorecia. Se
realmente tivesse aceitado o risco, se tivesse realmente jurado, imediatamente a
responsabilidade da verdade seria transposta aos deuses. E seria Zeus, punindo o
falso juramento, que teria manifestado a verdade (Michel Foucault, A verdade e as
formas jurídicas, Rio de Janeiro, Nau, 1996, p. 32 e 33.
Fim da nota de rodapé
Página 134
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A superação desta dicotomia também se faz presente, de uma outra perspectiva, na
filosofia analftica, onde o significado da verdade se desloca do plano da consciência
para o plano da linguagem.
Enfim, quando os conceitos dogmáticos correm o risco de perder sua
operacionalidade, é preciso buscar formas de legitimação do significado que
transcendam o ordenamento jurídico. É o que ocorre mormente com certos
conceitos vagos, cuja extensão (denotação) é ampla, exatamente porque a intensão
(conotação) é Iimitada. Em outras palavras, quanto menor for o número de
propriedades atribuídas a um objeto, que integram o campo intensional do
significado (conotação), maior será o conjunto de objetos que constituem a extensão
do significado, donde se vê que a conotação (conjunto de propriedades que o termo
designa) é condição necessária para estabelecer a denotação (conjunto de objetos
designados pelo termo). 102
Costuma-se dizer que um termo (ou conceito) é vago quando não se consegue
estabelecer, de maneira precisa, os objetos por ele denotados; a inclusão ou
exclusão de um determinado objeto no
Início da nota de rodapé
(102) A análise que segue pertencente ao campo da lógica e da linguagem. A
respeito, vide Leonidas Hegenberg, Definições — termos teóricos e signijìcados,
São Paulo, Cultrix, 1974, p. 15-34; Irving M. Copi, Introdução à Lógica, 2. ed., São
Paulo, Mestre Jou, p. 123-134, 39-62 e 95-99; Wesley C. Salmon, Lógica, 6. ed., Rio
de Janeiro, Zahar Editores, p. 121 a 130; Ferdinand de Saussure, Curso de
Lingüística Geral, São Paulo, Cultrix, 3. ed., 1 995, p. 1 9, 80, 8 1, 1 1 9 e 1 32-141 ;
RolandBarthes, Elementos de Semiologia, 4. ed., 1975; William P. Alston, Filosofla
del lenguaje, Madrid, Alianza Editorial Ltda., 1974, especialmente p. 34, 56, 57, 98,
101 e 102; Marilena Chauí, Convite à Filosofia, p. 136-150 Gofredo Telles Jr., Curso
de Lógica Formal — Tratado da conseqüên- cia, 3. ed., São Paulo, José Bushatsky,
Editor, 1973, p. 323-341; Luis Alberto Warat, A definiçãojurídica e suas técnicas —
texto programa- do, Porto Alegre, Atrium, 1 977; Decio Pignatari, Inforrnação.
Lingua- gem. Comunicação, 48. ed. São Paulo, Perspectiva, 1970, p. 25 a 37;
Edward Lopes, Fundamentos da Lingüística Contemporânea, São Pau- lo, Cultrix,
s/d, p. 234 a 336, e Alaôr Caffé Alves, Lógica — Pensamento e argumentação —
Elementos para o discurso jurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 168-170, 203-210 e
223-228.
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Página 135
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
campo extensional do termo não fica suficientemente clara. E o caso das noções de
bem comum, boa-fé, interesse público, urgência, honestidade, intimidade, igualdade
e abuso, sobre as quais tanto controvertem os juristas. No campo das ciências
matemáticas, físicas e naturais, os significados são muito mais precisos, porquanto
os símbolos são arbitrários. Todavia, como os conceitos jurídicos são elaborados
através de palavras, que integram a Iinguagem natural, com diversas conotações e
denotações, o jurista muitas vezes defronta-se com ambiguidade e vagueza. A
ambiguidade, que pertence à esfera da conotação, quase sempre se resolve como
problema de polissemia. De fato, uma única palavra pode ter diversos sentidos e a
compreensão depende de certas técnicas de definição.
Assim, palavras que encontram referência na realidade, tais como manga e cabo,
conquanto tenham diversas conotações, podem ter seu sentido aclarado por meio
de definições ostensivas (explicação do significado por meio da exibição), que
recorre à denotação, vale dizer, à extensão do termo. Outra técnica extensional ou
denotativa é a definição contextual, em que a explicação do significado surge a partir
da menção a exemplos de diversas situações em que a palavra possa ser
empregada. A sinonímia também ajuda a eliminar ambiguidades. Trata-se de técnica
intensional, relaciona- da ao campo da conotação. As maiores dificuldades
encontram-se, todavia, entre as palavras que não têm referência ao real. Sincate
goremas, como preposições ou conjunções, somente ganham sentido dentro de um
determinado contexto. São termos que relacionam sintaticamente verbos e
advérbios com substantivos, orações ou outros termos da mesma oração, cujo
significado depende exclusivamente destas relações, só com o que passam a ter
importância semântica. Substantivos como sereia e minotauro também não têm
referente na realidade. Por isso, é preciso buscar o sentido em outro plano, no mais
das vezes contextual.
É difícil estabelecer o significado de determinados termos por meio da definição
denotativa, a exemplo do que ocorre com os substantivos abstratos (justiça, verdade
etc), com certos adjetivos (abusivo, mau etc) e com certos advérbios (abusivamente,
erradamente etc). Com efeito, considerando que tais termos não tratam de
realidades
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
sensíveis, é impossível buscar o sentido apontando ou exibindo. A exemplificação,
outrossim, pode confundir, haja vista que se corre o risco de o interlocutor considerar
propriedades (conotação) que não se teve a intenção de destacar. Se, ao tentar
definir humano, aponta-se para a propriedade racional, muitos poderão excluir as
crianças de colo e os deficientes mentais da extensão do termo. Ao mesmo tempo,
há certos macacos que parecem inteligentes, capazes de completar alguns
raciocínios elementares. Essas criaturas, que estão excluídas da denotação do
termo humano, tal como se o entende, ficariam absorvidas pela definição
proposta.103
Por detrás das questões de definição residem problemas centrais da filosofia. A
maneira como se concebe a relação pensamento- signo-referente pressupõe uma
tomada de posição acerca da essência do conhecimento, questão que divide
idealistas e realistas. Intrinsecamente ligada a estas reflexões está a indagação
acerca do sentido da vida, da justiça, da verdade etc. Já se disse que a experiência
jurídica, longe de constituir monopólio do jurista, interessa também a outros
estudiosos, que vão buscar nas reflexões filosóficas o ponto de apoio para a
elaboração de seus conceitos regionais. Com o jurista não se passa diferente.
Embora a dogmática jurídica desenvolva um estilo de argumentação infenso à
problematização, na busca de soluções para o caso concreto, certo é que, no limite,
diante da multiplicidade de significados da norma, o operador do Direito, esgotados
os recursos de legitimação formal existentes dentro do próprio sistema jurídico
(norma, doutrina, jurísprudência), haverá de recorrer às categorias universais da
filosofia.
O exame da questão da verdade, que guarda estreita relação com a teoria do abuso
do direito processual, não se faz aqui do ponto de vista da tradição filosófica. O que
interessa é surpreender o uso da palavra na prática dos processualistas. Importa
saber como a dogmática processual elabora o conceito de verdade e como os
sujeitos processuais o utilizam, na tentativa de reconhecer significados que indicam
determinadas atitudes culturais. E o processo judicial é campo fértil para toda esta
reflexão, porque nele estão registradas
Início da nota de rodapé
(103) o exemplo é de Wesley C. Salmon (op. cit., p. 127).
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
formas particulares de compreensão das coisas, que se revelam no julgamento do
produto cultural de cada época. O processo é, assim, fato social, flagrante de um
determinado momento histórico. Nele, fórmulas e regras ricas de sentido
singularizam o modo de ser e de sentir de um determinado povo. A expressão do
indivíduo na sociedade, o papel do Estado na vida das pessoas, tudo isto está
refletido em dicotomias que, pelo uso corrente, já se tornaram clássicas na doutrina
processual. Fala-se, assim, em concepção individual e social do processo; privada e
pública; em princípio inquisitivo e dispositivo etc.104
A verdade, como fórmula metafísica, como um ideal de justiça, conspira contra a
exigência social da rápida solução dos litígios. Daí porque os processualistas
entendem que a verdade, dentro de uma perspectiva social do processo, é sempre
relativa e não absoluta. 105
Início da nota de rodapé
(104) A propósito da implicação entre a poiítica e as diversas concepções do
processo, v. Piero Calamandrei, Estudios sobre elproceso civil, Buenos Aires,
Editorial Bibliografica Argentina, 1961, p. 122-130; Eduardo J. Couture, Estudios de
Derecho Procesal Civil, tomo 1, 2. ed., Buenos Aires, Ediciones Depaima, 1978, p.
93- 95 e 169-175; NicetoAlcalá- Zamorra y Castilho, Estudios de Teoria General e
Historia del Proceso, tomo 11, Mexico, Universidad Nacional Autónoma de México
— Insti- tuto de lnvestigaciones Jurídicas, México, 1974, p. 1 15-128, 245, 249, 255-
259, 264, 265 e 279; Mauro Cappelletti, Proceso, Ideologia, Sociedad, Buenos Aires,
Ediciones Jurídicas Europa-America, 1974, p. 33- 1 27; Erich Döhring, La
investigación del estado de los fatos en el proceso. La Prueba, supráctica y
apreciación, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1 972 (Colleción
Ciencia del Proceso, 61), p. 6-9 e 452-453.
(105) Giuseppe Chiovenda (Instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 1,
São Paulo, Saraiva, 1965, p. 43 e 44; na literatura jurídica nacional, veja-se Moacyr
Amaral Santos (Limites às atividades das partes no processo, in RT, São Paulo, Ano
46, outubro de 1 957, vol. 264, p. 22 e 23), Arruda Alvim (Curso de Direito
Processual Civil, vol. 11, São Paulo, RT, 1 972, p. 204-208), João Carlos Pestana de
Aguiar (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. Iv, São Paulo, RT, 1974, p.
51 e 52) e Celso Agrícola Barbi (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Rio
de Janeiro, Forense, I 99 1, p. 1 74). Para J.M. de Carvalho Mendonça não se há de
distinguir entre uma verdade processual
Fim da nota de rodapé
Página 138
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Há muito mais um juízo de aparência de verdade, de verossimilhança, que se
exaure na obediência à forma e ao rito. E o caso do procedimento das legis actiones
e do formalismo germânico primitivo. Bastava que o litigante deixasse de reproduzir
com absoluta fidelidade as palavras da Iei, ou que deixasse de praticar o ato na
forma prescrita, para que perdesse a A verdade como conceito ideal está presente
na concepção processual individualista. Aqui, age o juiz como se fosse possível
conhecer o exato sentido dos fatos, livre das paixões e dos interesses em jogo. E o
exemplo do pro- cesso formulário, de onde brotaram as grandes codificações de
Teodosiano e Justiniano, as quais operam classificações na base da definição por
gênero e diferença, conforme a lógica apodítica de Aristóteles. Pouco importam os
ritos e fórmulas, como ponto terminal dos questionamentos. Interessa o
conhecimento da verdade mesma, como categoria transcendental aos fatos
sociais.107
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
(pseudo-verdade) e uma verdade real (Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1,
Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1940, p. 108). Este tema será retomado na
última seção do presente capítulo.
(106) A respeito, Michel Foucault registra que um erro de gramática, uma troca de
palavras invalidava a fórmula e não a verdade do que se pretendia provar. A
confirmação de que a prova, sob esta perspectiva, era uma espécie de jogo verbal,
vem com o fato de que, no caso de um menor, de um padre ou de uma mulher, o
acusado poderia ser substituído por outra pessoa que, mais tarde, como mostra a
História do Direito, tomou- se o advogado, vale dizer, aquele que deveria pronunciar
as fórmulas no Iugar do acusado. Se o terceiro errasse, o réu perdia o processo (op.
cit., p. 59 e 60).
(107) A exposição que segue se inspirou no excelente ensaio de Galeno Lacerda
(Processo e Cultura, in Revista de Direito Processual Civil, São Paulo, Saraiva
Editores, Ano II,janeiro-junho de 1961, vol. 3, p. 74-86). Registre-se, todavia, o
idealismo contido na noção de uma verdade absoluta, acessível somente ao
cientista (em contraponto ao magistrado), que se pode colher naquele artigo (op. cit.,
p. 75 e 81). Em reforço à crítica que ora se apresenta, v. Thomas Kuhn, A estrutura
das revoluções cientificas, São Paulo, Perspectiva, vol. 1 15,1982 (Coleção
Debates); AIan Chalmers, O que é ciência, afinal?, São Paulo, Brasiliense, 1993;
Hilton Japiassu, Introdução ao pensamento epistemológico, 3. ed., São Paulo,
Livraria Francisco Alves Editora S/A, 1979, e
Fim da nota de rodapé
Página 139
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
No direito comum da Idade Média, o processo mostra-se como imperfeita simbiose
entre a concepção social contida na formalidade dos ritos, que coloca a tônica na
verdade relativa, e a concepção individualista, que coloca a tônica na verdade
absoluta. A noção romana da res judicata, mal compreendida, estendeu-se indevida-
mente a toda e qualquer interlocutória. Isto deu lugar a um grande número de
recursos, com pluralidades de instância, tornando as questões infindáveis. Ademais,
qualquer infração formal implicava nulidade insanável. Assim, o processo, que
deveria ser meio, tor- nou-sefim em si mesmo, situação que perdurou na Europa até
o século XIX e que, no Brasil, até hoje tem repercussões. Explica-se concepção tão
persistente e duradoura porque a noção deforma, a partir da ideologia individualista
do iluminismo burguês, projetou- se sobre o processo de maneira equivocada.108
Com efeito, os revolucionários burgueses pensavam na garantia dos direitos dos
cidadãos. Impressionados com o texto de Montesquieu, que abre o livro 29 do
Espírito das Leis dizendo que As formalidades da Justiça são essenciais para a
liberdade,
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
O mito da neutralidade cientifica, 2. ed., Rio de Janeiro, Imago Editora, 1 98 1 ;
Rubem Alves, Filosofia da Ciência — introdução ao jogo e suas regras, 17. ed., São
Paulo, Brasiliense; Marilena Chauí, Cultura e Democracia (o discurso competente e
outras falas), 3. ed., São Paulo, Moderna, 1982, e Convite à Filosofia, 2. ed., São
Paulo, Atica, 1995, p. 252-262 e 278-285; Regina Lúcia de Moraes Morel, A
pesquisa científica e seus condicionamentos sociais, Rio de Janeiro, Achiamé, 1979;
István Meszáros, Filosofia, Ideologia e Ciência Social: ensaios de negação e
afirmação, São Paulo, Ensaio, 1993; Alvin Gouldner, De los ideólogos a los
tecnólogos, in La dialetica de la ideologia y la tecnologia, Madrid, Alianza, 1978;
Maria José Faria Coracini, Um fazer persuasivo: o discurso subjetivo da ciência,
PontesfEduc, 1991; Pedro Demo, Introdução à Metodologia da Ciência, São Paulo,
Atlas, 1 994; Carlos Lungarzo, O que é ciência, São Paulo, Brasiliense, 1 989, p. 80
a 84 (Coleção Primeiros Passos, 220).
(108) Galeno Lacerda, op. cit., p. 82 a 84. Para uma crítica à recorribilidade das
interlocutórias no Código de Processo Civil atual, que leva ao abuso do direito de
recorrer, v. J. J. Calmon de Passos, Direito, poder justiça e processo: julgando os
que nos julgam, Rio de Janeiro, Forense, 2000,p. 112.
Fim da nota de rodapé
Página 140
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
esqueceram-se da segunda advertência, contida em outro período, segundo a qual
as formalidades não poderiam ser tantas a ponto de colocar em crise a segurança e
certeza das relações jurídicas. O apego à forma, que lhering tratava por palladium
da liberdade, invadiu o século seguinte, repercutindo no processo judicial brasileiro.
Se esse formalismo bem pode servir a uma racionalidade funcional, voltada às
finalidades sociais da jurisdição, também se presta à chicana e à má-fé processual,
que são a mais egoísta expressão do individualismo.109
É bem de ver que a Reforma de 1994 e 1995, seguindo, neste particular, a
orientação das alterações introduzidas pela Lei 6.771, de 27 de março de 1980,
tratou de sublinhar a concepção social do processo, que tem em conta um modelo
de justiça distributiva. O paradigma do individualismo liberal-burguês, que se inspira
no modelo da justiça comutativa, preso a uma noção idealista de verdade, que não
se confronta com as práticas sociais, foi aos poucos cedendo espaço para um
significado mais compreensivo da realidade social.° Esta orientação se faz sentir no
realismo da civil-law com seus diversos matizes, a exemplo do realismo Linguístico
de Perelman, da pragmática deviehweg e do culturalismo de Recaséns Siches,
Cóssio e Miguel Reale. O processo, como instrumento de
Início da nota de rodapé
(109) Idem, p. 84.
(110) Acerca da distinção entrejustiça comutativa ejustiça distributiva, v. Ética
Nicomaquea, Livro V, cap. 2 e ss., in Aristóteles-Obras, Madrid, Aguilar S.A de
Ediciones, 1967, p. 1226-1239; J.J Calmon de Passos, processualista de formação
chiovendiana, criticando o apego da dogmática processual civil a fórmulas
engessadas, que se definiram no início do século XX, no contexto da incipiente
sociedade de massas, chama a atenção para o surgimento de uma nova
racionalidade. Citando Habermas e Foucault, dentre outros filósofos
contemporâneos, sustenta que o Direito está situado no universo do discurso e da
ação. Somente existe como discurso e comunicação, Iinguagem, processo, fazer,
operar... (Direito, poder justiça e processo: julgando os que nos julgam, Revista
Forense, 2000, p. 7 a 25; 41-52 e 67-80). A análise pragmática do discurso jurídico
inaugura-se, no Brasil, no início dos anos 70, com a obra de Tercio Sampaio Ferraz
Jr. (Direito, Retórica e Comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso
jurídico, São Paulo, Sarai- va, 1973).
Fim da nota de rodapé
Página 141
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
composição dos conflitos, terá de realizar, a um só tempo, a pacificação social e
ajustiça. Longe do valor mágico da palavra, do simbolismo da forma, o processo
desenvolve-se no terreno da discussão, do debate e da controvérsia, que encontram
limite na regra, posta por convenção. Daí porque a verdade é sempre um construído,
parcial, relativa e limitada à perspectiva das partes.
A epistemologia de Michel Foucault, que mostra como o pensamento se forma a
partir de uma prática do discurso e de uma prática social, permite entender, a partir
da tensão entre prova e inquérito, como tais práticas engendram novos conceitos e
novas técnicas, o que interfere com o sujeito e com o objeto do conhecimento.
Dentre as novas formas de subjetividade, a praxis judiciária — na linha de análise do
filósofo francês — está entre as mais importantes. O inquérito (enquête), na forma
como foi praticado a partir do século XII, difundiu-se, após o Renascimento, em
muitos domínios do saber. Trata-se de um instrumento de recuperação dos fatos,
sempre fugidios na memória, que tem base no testemunho, diferente da prova.
Com efeito, a verdade, como aparece em Édipo, é o resultado da reunião, do
encaixe, da imbricação de testemunhos diversos e fragmentários. Na obra de
Sófocles, o testemunho de Jocasta e dos escravos, somado às lembranças de
Edipo, é capaz de trazer a verdade não mais em termos de predição ou de
prescrição profética, a exemplo daquela apresentada pelo deus Apolo, mas como
reconstituição de uma história. O processo, na democracia grega, nada mais é do
que a apropriação da verdade pelo povo, que passa a ter o direito de testemunhar.
Não obstante, o método grego do inquérito não chegou à fundação de um
conhecimento racional. Com a invasão
Início da nota de rodapé
(111) Esta análise foi desenvolvida por Michel Foucault, num ciclo de palestras
promovido em maio de 1 973 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. As reflexões do filósofo francês, que serviram como exercício para a
elaboração de Vigiar e Punir, obra editada dois anos depois, foram inicialmente
publicadas nos Cadernos da PUC e depois reunidas em único volume (A verdade e
as formas jurídicas, Rio de Janeiro, Nau Editora, 1 996). As idéias que seguem estão
expostas nas páginas 8, 1 1, 74,75 e 88 desse Iivro.
Fim da nota de rodapé
Página 142
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
dos povos bárbaros, obscureceu-se, ressurgindo depois, com grande vigor, na AIta
Idade Média.
No período do velho direito germânico os Iitígios, tal qual sucedia no direito grego
arcaico, eram regulamentados pelo jogo da prova.112 A ação, entre os germanos,
não era pública.113 Tratava-se de um duelo, de uma oposição entre indivíduos,
famílias ou grupos. Destarte, a noção de justiça e paz, que se encontra entre os
processualistas modernos, era estranha àquela forma judiciária. No lugar dela, o
processo era uma espécie de ritualização da luta, uma extensão dela, uma
regulamentação dos gestos de vingança. Não havia aqui uma preocupação com a
verdade. Entre os séculos V e X, o direito romano começa a se revitalizar. Sobre as
ruínas do Império Romano, surge o Império Carolíngeo. Entretanto, o direito feudal
ainda é essencialmente de tipo germânico. Subsistem as formas judiciárias arcaicas,
o jogo da prova, o juízo das ordálias, o juramento, que assumia duas configurações,
a mítico-religiosa e a social. Na primeira delas, tal como sucedia na Ilíada de
Homero, pedia-se ao acusado que prestasse um juramento e, caso não ousasse ou
he- sitasse, perdia o processo.4 Na segunda, pessoas vinham ajuízo para jurar que
o acusado não praticara a conduta que lhe era atribuí- da. A despeito de não terem
assistido aos fatos, vinham para dizer da idoneidade do acusado, palavra que
poderia pesar ou não, na dependência da importância social, da influência da
pessoa que tes- temunhava sob juramento.5 Havia também provas do tipo verbal,
Início da nota de rodapé
(112) Neste sentido também a exposição feita por Giuseppe Chiovenda (lnstituições
de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva, I965,p. I34ess).
(113) Exceção feita aos casos em que a pessoa era acusada de traição ou de
homossexualismo (cf. Foucault, op. cit., p. 56).
(114) A propósito, v. Piero Calamandrei, para quem o juramento implica um exame
preliminar de credibilidade, uma espécie de seleção prévia, com a qual se cerravam
as portas do processo para a lide temerária. Este juízo de verossimilhança encontra,
no processo moderno, outras formas de atuação (Derecho Procesal Civil, vol. 111,
Buenos Aires, Ediciones Juridicas Europa-America, 1973, p. 341 e 342).
(115) Foucault, op. cit., p. 58 e 59.
Fim da nota de rodapé
Página 143
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
baseadas em fórmulas, em um jogo de palavras que, se pronuncia- das
corretamente, funcionavam como indicativo de inocência.
Vê-se, assim, que nesse jogo binário (culpado ou inocente) era a sorte, a destreza, o
vigor, a resistência física ou a agilidade intelectual que decidiam o processo. Não
havia propriamente a figura do julgador, pois estes mecanismos desenvolviam-se
automaticamente. A noção de processo, como persecução da verdade, surge
apenas — como já se adiantou — no final do séc. XII e no transcorrer do séc. XIII.
As repercussões, no campo científico, dessa nova forma de investigação judicial
refletem a importância do Renascimento, como movimento de retomada dos valores
da cultura greco-romana. Porém, o inquérito dos fins da Idade Média tem traços que
o di- ferenciam da forma que se encontra em Édipo. Subsiste na prática judiciária da
Idade Média a monopolização do processo, como instrumento dos poderosos, tal
qual ocorria no período bárbaro. Entra em cena, então, a figura do procurador do
Rei, que se impõe como poder político e como poder judiciário.
Essa nova figura interfere na forma de solução dos litígios. Surge a sentença, que
tem base no flagrante delito ou na inquisitio. E que, quando a apuração do fato se
dava tempos depois, era preciso reconstituir as coisas. E isto se fazia reunindo
pessoas (sob juramento de dizer a verdade) que tinham visto o fato ou que sabiam
por ouvir dizer. Era através de perguntas, Ionge do espectro da violência, da pressão
ou da tortura, que se buscava a verdade.6 Esse sistema racional de cognição é fruto
de toda uma transformação política, que se reflete em outras instâncias do
conhecimento, a exemplo da Geografia, da Astrologia, da Medicina, da Botânica e
da Zoologia. Dele se valeram ciências novas, tais como a Economia e a Estatística,
entre os séculos XVII e XVIII. Todo o grande movimento cultural que começa a
preparar o Renascimento, a partir do século XI, pode ser definido, em parte, como
desenvolvimento do inquérito, forma geral de saber. Significativa, neste
Início da nota de rodapé
(116) Segundo Foucault, a origem da inquisitio, do saber por inquérito, remonta às
chamadas visitas eclesiásticas que se faziam nas paróquias, dioceses e
comunidades (op. cit., p. 71).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
sentido, a substituição da Alquimia, baseada no modelo da prova (afrontamento de
forças do bem e do mal) pelas modernas ciências, que buscam a verdade.117 Note-
se que mesmo as formas de tortura, que subsistem até o chamado Período
Humanitário do Direito, do qual Beccaria foi o grande expoente, têm uma
preocupação com a confissão, com a busca da verdade.
A partir deste ponto, Foucault desenvolve reflexões sobre as formas de vigilância e
controle social, estranhas ao campo temático que se pretende aqui desenvolver.
Importa considerar, todavia, a orientação do texto do filósofo francês, que se move
no terreno do discurso e da ação. Discurso não mais como busca da verdade, mas
como exercício do poder. Como diz Foucault, a grande oposição entre o retórico e o
filósofo, como se colhe na tradição platônica, está no desprezo que o filósofo, o
homem da verdade, o homem do saber, sempre teve por aquele que não passava
de orador, o retórico, o homem de discurso, de opinião, aquele que procura efeitos,
aquele que procura conseguir vitórias.118 Se para os sofistas falar, discutir, é
procurar a vitória a qualquer preço, mesmo ao preço das mais grosseiras astúcias, é
porque, para eles, a prática do discurso não é dissociável do exercício do poder.119
Trata-se agora de saber como a dogmática processual constrói o conceito normativo
de verdade. Em que pesem as estreitas relações estabelecidas, no curso de toda a
história do pensamento ocidental, entre a filosofia e a teoria geral do direito, é certo,
como diz Foucault, que o filósofo sempre foi muito refratário à consideração
Início da nota de rodapé
(117) A disputatio, método marcante da filosofia escolástica, consistente na
apresentação de uma tese que deveria ser refutada ou defendida na base de
argumentos retirados da Bíblia, de Aristóteies, de Platão ou de padres da Igreja
Católica, segue o esquema geral da prova, segundo o entendimento de Foucault, no
que vai se confrontar com o saber enciclopédico do Renascimento, do tipo de Pico
de Mirandola. Não se trata mais de utilizar os autores como autoridade, mas como
testemunho; não interessa citá-los, mas sim tê-los lido, alcançando-Ihes o espírito e
o sentido (op. cit., p. 77).
(118) Idem, p. 142.
(119) Idem, p. 140.
Fim da nota de rodapé
Página 145
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
da prática do direito, das formasjudiciárias.120 A estas observações deve-se
acrescentar que, de sua parte, também o estudioso do direito, impressionado por
uma formação legalista, muitas vezes procura manter-se a distância segura do
filósofo, isto para não ver abalada sua crença numa suposta verdade objetiva da
ciência do direito.121
Início da nota de rodapé
(120) Idem, p. 142.
(121) o pandectismo, levando às últimas consequências a formalização do
historicismo da Ciência do Direito, acabou por identificar a dogmática jurídica como
teoria do direito vigente. Esta teoria vale-se de algumas regras cuja operação, à
vista do rigor técnico, somente se presta aos iniciados. A primeira regra do jogo
dogmático é a aceitação acrítica do ordenamento vigente. O pressuposto teórico
desta aceitação é a crença num princípio de autoridade. Isto conduz a uma segunda
regra, da qual advêm importantes consequências, qual seja, a crença na
racionalidade do legislador. Em nome desta premissa, o estudioso do direito
abandona a simples descrição do ordenamento e passa a justificar o ponto de
partida dogmático. Como atributos desta racionalidade é possível citar a
singularidade do legislador a sua imortalidade, consciência, onisciência, coerência,
onicompreensão, economia, operatividade e precisão. Imortalidade no sentido de
que as leis continuam válidas mesmo que os legisladores, responsáveis por sua
edição, tenham morrido há muito tempo; singularidade como expressão do fato de
que, apesar de muitas normas serem sancionadas por órgãos colegiados, formados
por uma pluralidade de pessoas, são elas havidas como emanação de uma única
vontade; consciência no sentido de que o legislador racional tem conhecimento de
todas as normas que edita, ainda que, em realidade, isto seja impossível;
onisciência e onipotência para indicar que o legislador conhece todas as
circunstâncias fáticas abarcadas pela lei. A sua vontade, manifestada na edição da
norma, permanece vigente indefinidamente, a menos que o próprio Iegislador
estabeleça um Iimite; coerência na medida em que sua vontade não pode se
contradizer por si própria; onicompreensão no sentido de que nenhuma situação
jurídica deixa de ser regulada; economia como indicativo da ausência de
redundância entre normas; operativídade numa clara referência ao fato de que as
normas expressas pelo legislador são sempre auto-aplicáveis; e, por fim, precisão,
para indicar que a vontade do Iegislador tem uma direção unívoca, expurgada de
imperfeições linguísticas. Em função destes atributos, surgem algumas
consequências de ordem hermenêutica, que serão aqui apenas enunciadas: a) o
ordenamento jurídico não tem contradições, lacunas ou equívocos; b) o
ordenamento jurídico é operativo,
Fim da nota de rodapé
Página 146
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
2.4 A verdade no senso comum dos processualistas
Segundo João Mendes Jr., para fazer justiça é preciso aplicar a lei ao fato. A
verdade do fato e o conhecimento da lei são, pois, os elementos primordiais da
administração da Justiça.22 O Código de Processo Civil faz menção à verdade em
diversos de seus dispositivos. Além daqueles já vistos por ocasião do exame das
dificuldades do subjetivismo psicológico, poderiam ser citados os artigos 129, 1 3 1,
273, caput, 282, VI, 302 e incisos, 3 19, 320 e incisos, 332, 334, IV, 339, 343, § 1.°,
348, 357, 359 e incisos, 368 e parágrafo único, 372 e parágrafo único, 404 e inciso I,
415, 469, 485, 111, e 672, § 3•0•123
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
dinâmico e finalista. À vista de tais circunstâncias, o jurista dogmático opera uma
ciência consistente na descrição objetiva das normas jurídicas. A dogmática tem-no,
pois, como transmissor de um corpo de regras onde não é dado inovar; a lei é a
fonte última do direito, pelo que tudo deve se subsumir a ela. Assim, a tarefa do
jurista, na apreensão do significado da Iei, deve limitar-se a um processo lógico-
formal; nem à jurisprudência nem aos juristas se reconhece uma função criadora do
direito; o aplicador da norma é, como consequência do princípio da racionalidade do
legislador, politicamente neutro, não expressando as suas opiniões pessoais, no ato
de decidir (Carlos Santiago Nino, Consideraciones sobre Ia Dogmática Jurídica —
com referência particular a la dogmática penal, México, UNAM — Instituto de
lnvestigaciones Jurídicas, 1 974, p. 86 e 87). A respeito das regras do jogo
dogmático, ver também Alberto Calsamiglia, Sobre Ia dogmática jurídica:
presupuestos y funciones del saber jurídico, in Anales de la Cátedra Francisco
Suarez, ed. 22-23, Granada, Universidade de Granada, Departamento de Filosofía,
1983.
(122) João Mendes de Almeida Jr., Direito Judiciário Brasileiro, 4. ed., Rio de
Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1954, p. 155.
(123) Artigo 129. Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e
réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por
Iei, o juiz proferirá sentença que obste aos objetivos das partes; Artigo 131. O juiz
apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos
autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os
motivos que lhe for- maram o convencimento; Artigo 273. O juiz poderá, a
requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela
pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença
Fim da nota de rodapé
Página 147
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
O Código de Processo Penal também se ocupa da questão da verdade, em diversas
passagens (artigos 66,147, 148, 186 e parágrafo
Início da nota de rodapé
da verossimilhança da alegação; Artigo 282. A petição inicial indicará: inciso VI — as
provas com que o autor pretender demonstrar a verdade dos fatos alegados; Artigo
302. Cabe também ao réu manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na
petição inicial. Presumem-se verdadeiros os fatos não impugnados, salvo: inciso I —
se não for admissível, a seu respeito, a confissão; inciso 11 — se a petição inicial
não estiver acompanhada do instrumento público que a Iei considerar da substância
do ato; inciso 111 — se estiverem em contradição com a defesa, considerada em
seu conjunto. Parágrafo único. Esta regra, quanto ao ônus da impugnação
especificada dos fatos, não se aplica ao advogado dativo, ao curador especial e ao
órgão do Ministério Público; Artigo 319. Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão
verdadeiros os fatos afirmados pelo autor (no mesmo sentido, art. 803). Artigo 320.
A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: inciso I —
se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; inciso 11 — se o
Iitígio versar sobre direitos indisponíveis; inciso 111 — se a petição inicial não estiver
acompanhada do instrumento público, que a Iei considere indispensável à prova do
ato; Artigo 332. Todos 05 meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda
que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos,
em que se funda a ação ou a defesa; Artigo 334. Não dependem de prova os fatos:
inciso IV — em cujo favor milita presunção de veracidade; Artigo 339. Ninguém se
exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobri- mento da
verdade; Artigo 342. O juiz pode, de ofício, em qualquer estado do processo,
determinar o comparecimento pessoal das partes, a fim de interrogá-las sobre os
fatos da causa (no mesmo sentido, art. 599, I); Artigo 343. Quando o juiz não o
determinar de ofício, compete a cada parte requerer o depoimento pessoal da outra,
a fim de interrogá-la na audiência de instrução e julgamento. § 1 .° A parte será
intimada pessoalmente, constando do mandado que se presumirão confessados os
fatos contra ela afirmados, caso não compareça ou, comparecendo, se recuse a
depor; Artigo 357. O requerido dará sua resposta nos cinco dias subsequentes à sua
intimação. Se afirmar que não possui o documento ou a coisa, o juiz permitirá que o
requerente prove, por qualquer meio, que a declaração não corresponde à verdade;
Artigo 359. Ao decidir o pedido, o iuiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por
meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar: inciso I — se o requerido
não efetuar a exibição, nem fizer qualquer declaração no prazo do
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
único, 187, § 2.0,I,203,206,211,386,I,523,593,IIJ,alíflead, 621, I e JJ).124 Nestas
referências não estão incluídos os dispositivos que
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artigo 357; inciso 11 — se a recusa for havida por ilegítima; Artigo 368. As
declarações constantes do documento particular, escrito e assinado, ou somente
assinado, presumem-se verdadeiras em relação ao signatário. Parágrafo único.
Quando, todavia, contiver declaração de ciência, relativa a determinado fato, o
documento particular prova a declaração, mas não o fato declarado, competindo ao
interessado em sua veracidade o ônus de provar o fato; Artigo 372. Compete à
parte, contra quem foi produzido documento particular, alegar, no prazo estabelecido
no art. 390, se lhe admite ou não a autenticidade da assinatura e a veracidade do
contexto; presumindo-se, com o silêncio, que o tem por verdadeiro. Parágrafo único.
Cessa, todavia, a eficácia da admissão, expressa ou tácita, se o documento houver
sido admitido por erro, dolo ou coação. Artigo 404. E lícito à parte inocente provar
com testemunhas: inciso I — nos contratos simulados, a divergência entre a vontade
real e a vontade declarada; Artigo 415. Ao início da inquirição, a testemunha
prestará o compromisso de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado (vide
exceções no artigo 405 e parágrafos); Artigo 469. Não fazem coisa julgada: inciso 11
— a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença. Artigo 485. A
sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: inciso 111
— resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da vencida, ou de colusão
entre as partes, a fim de fraudar a lei. Artigo 672. A penhora de crédito, representada
por letra de câmbio, nota promissória, duplicata, cheque ou outros títulos, far-se-á
pela apreensão do documento, esteja ou não em poder do devedor. § 3.° Se o
terceiro negar o débito em conluio com o devedor, a quitação, se este lhe der,
considerar-se-á em fraude de execução.
(124) Artigo 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil
poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a
inexistência material do fato; Artigo 147. O juiz poderá, de ofício, proceder à
verificação da falsidade; Artigo 148. Qualquer que seja a decisão, não fará coisa
julgada em prejuízo de ulterior processo penal ou civil; Artigo 186. Depois de
devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será
informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer
calado e de não responder perguntas que Ihe forem formuladas. Parágrafo único. O
silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo
da defesa (observe-se que o artigo 5.°, inciso LXIII, da Constituição Federal de
1 .988 garante ao réu o direito de permanecer calado);
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
disciplinam a autenticidade material dos documentos, questão alheia ao campo de
investigação do presente trabalho.
A relação entre as noções de justiça e verdade, que já se encontra nas civilizações
antigas, tem importantes repercussões no campo processual, como visto com Michel
Foucault, na seção anterior.25 A finalidade das práticas judiciárias era a descoberta
da verdade. Disto não difere o processo da Idade Moderna, como afirmam Kant 126
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Artigo 187. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do
acusado e sobre os fatos. § 2.° Na segunda parte será perguntado sobre: I- ser
verdadeira a acusação que lhe é feita; Artigo 203. A testemunha fará, sob palavra de
honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado, ...
explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa
avaliar-se de sua credibilidade; Artigo 206. A testemunha não poderá eximir-se da
obrigação de depor. Poderão, entretanto, recusar-se a fazê-lo o ascendente ou
descendente, o afim em Iinha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai,
a mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro
modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias; Art. 211. Se
o juiz, ao pronunciar sentença final, reconhecer que alguma testemunha fez
afirmação falsa, calou ou negou a verdade, remeterá cópia do depoimento à
autoridade policial para a instauração de inquérito; Artigo 386. O juiz absolverá o
réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: inciso I —
estar provada a inexistência do fato; Artigo 523. Quando for oferecida a exceção da
verdade ou da notoriedade do fato imputado, o querelado poderá contestar a
exceção no prazo de dois dias, podendo ser inquiridas as testemunhas arroladas na
queixa, ou outras indicadas naquele prazo, em substituição às primeiras, ou para
completar o máximo legal; Artigo 593. Caberá apelação, no prazo de cinco dias:
inciso 111 — das decisões do tribunal do júri, quando: alínea d: for a decisão dos
jurados manifestamente contrária à prova dos autos; Artigo 621. A revisão dos
processos findos será admitida: inciso I — quando a sentença condenatória for
contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; inciso 11 —
quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou
documentos comprovadamente falsos.
(125) A propósito da influência da noção de verdade no processo civil grego e no
processo civil romano, ver, igualmente, Kaethe Grossmann, op. cit., p. 379-281.
(126) Kant, Metaphysische Anfangsgruende der Rechtslehre, in Obras de Kant, t.
111, § 40, Knaur Nachf, apud Kaethe Grossmann, op. cit., p. 287.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
e Kohler.127 É certo que o processo tem por objetivo a manutenção da paz legal.
Mas isto só pode ser garantido quando o Estado-jurisdição fortalece a confiança dos
jurisdicionados na vitória da causa. o Judiciário, portanto, deve ter em conta não só
a necessidade de colocar fim ao litígio, mas também a necessidade de uma solução
justa,128 que depende do descobrimento da verdade.129
Como reconhece Kaethe Grossmann, os códigos, via de regra, não incluem, dentre
as finalidades do processo, a persecução da verdade.3° Todavia, não há como
negar que, em numerosos institutos processuais, a preocupação com a verdade
surge na própria letra da regra legal, a confirmar que a racionalidade do processo
moderno está impregnada dessa noção. E o que se pode ver — diz a au- tora — na
possibilidade de o juiz determinar produção de provas de ofício (art. 130 do CPC),
na importância atribuída pelo legislador ao interrogatório das partes (artigo 342 do
CPC) e ao depoimento pessoal (artigo 343 e parágrafos do CPC). Observe-se,
ainda, que a testemunha depõe sob compromisso (arts. 415 do CPC e 203 do CPP)
e que todo o sistema de prova está orientado ao conhecimento da verdade dos fatos
(arts. 282, VI, e 332, ambos do CPC). A preocupação com a verdade também se
reflete na possibilidade de recurso fundado em error injudicando, a exemplo das
hipóteses de julgamento manifestamente contrário à prova dos autos (art. 593, 111,
d, do CPP). Aliás, trata-se de curiosa situação em que a sentença é anulada não por
error in procedendo (como se passa ordinariamente), mas por erro no exame do
mérito.131
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(127) Kohler, Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3. ed, 1923, § 164, 1, p. 245, apud
Kaethe Grossmann, op. cit., p. 287.
(128) Esta — como visto — também é a posição de Chiovenda (Instituições de
Direito Processual Civil, vol. 1, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 37-46).
(129) Segundo Jorge A. Clariá Olmedo, todo processo judicial persegue como
finalidade específica imediata a fixação dos fatos fundamentais das pretensões das
partes, mediante a busca e aquisição da verdade (Derecho Procesal, vol. 2, Buenos
Aires, Ediciones Depalma, 1983, p. 48).
(130) Kaethe Grossmann, op. cit., p. 287.
(131) O exame partiu das elaborações da jurista alemã (op. cit., p. 287-289), mas a
referência à legislação brasileira, como exemplo das categorias
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
Há, nas mencionadas disposições legais, uma preocupação com a racionalidade do
jogo processual, com a garantia da solução da disputa, sem que a qualquer das
partes, com o seu silêncio, por exemplo, seja dado decidir sobre a sorte do
processo. Ao mesmo tempo, revela-se também um senso comum de justiça,
orientado pela expectativa da descoberta da verdade e do direito que nela se funda
(artigo 339 do CPC). A presunção que decorre da revelia, por exemplo (arts. 302 e 3
19 do CPC), inspira-se numa regra de prudência segundo a qual quem cala não
necessariamente admite, mas pelo menos não nega.32 Este é o espírito prudencial
que orienta também as regras relativas ao interrogatório das partes (art. 342 e 599, I,
do CPC), ao depoimento pessoal (art. 343, § 1.0 e 2.°, do CPC), sujeito ao ônus da
confissão (art. 348 do CPC)33 e a todos os casos de presunção Iegal de veracidade
(art. 334, IV, do CPC), na base do silêncio ou da omissão da parte (arts. 357, 359, I,
e 372, do CPC).
Essa tensão dialética entre a verdade como ideal de justiça e a verdade como
imperativo de ordem prática (necessidade de colocar termo à disputa judicial,
evitando que a parte, com sua omissão, impeça a prestação jurisdicional) sugere, à
primeira vista, uma cor- respondente distinção entre verdade material e verdade
formal. Entretanto, como reconhecem os modernos processualistas, o problema da
prova, no direito processual civil, não se apresenta sob o prisma teórico de
indagação exaustiva da verdade, colocando-se como problema prático, conducente
a se conseguir o que, dentro da teoria da prova, seja definido e havido juridicamente
como verdade...
processuais mencionadas por Kaethe Grossmann, foi feita apenas para que se
pudesse melhor avaliar a pertinência das suas considerações naquilo que diz
respeito ao senso comum teórico dos processualistas.
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(132) Qui tacet non utiquefatetur sed tamen verum est non negare (Paulo, D. reg.
iuris, XVII, L. 1 42, apud Roberto Rosas, Abuso de direito e dano processual, in
Revista Brasileira de Direito Processual, Uberaba, 3.° trimestre de 1983, vol. 39, p.
126).
(133) A propósito do instituto da confissão, v. o ensaio de Moacyr Lobo da Costa,
Confissão e Reconhecimento do Pedido, in Separata da Revista da Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, Ano LXII, fasc. 11, p.l67-212.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A inteligência, quando não comprometida com interesses ou apetites, tende sempre
a considerar a verdade como um fim em si. No entanto, não é esta a posição que
sempre convém ao direito processual, que é, antes de tudo, uma ciência
eminentemente prática.134 Admite-se que a ordem jurídica procura a solução dos
conflitos dentro da justiça e da verdade. Mas, pelas contingências da falibilidade
humana, é possível que a solução judicial não corresponda, na realidade, nem à
justiça e nem à verdade... A sentença injusta é uma fatalidade na vida processual,
mas que, mesmo assim, surte efeitos, não permitindo nem mesmo a ação rescisória,
que é restrita à sentença ilegal.135
Início da nota de rodapé
(134) Arruda Alvim, Curso de Direito Processual Civil, vol. 2, RT, São Paulo, 1972, p.
205; no mesmo sentido, Carlo Furno, Teoria de la Prueba Legal, I 954, p. 42 (Série B
— Monografias de Derecho Privado y Publico, Madrid Editorial Revista de Derecho
Privado), apud Gian Antonio Micheli, La carga de Ia prueba, Buenos Aires, 1 96 1
(Colección Ciencia del Proceso, p. 39), nota 50, p. l 93. Quanto ao caráter prático da
ciência jurídica, v. Theodor Viehweg, Tópica y filosofia del derecho, Barcelona,
Gedisa, 1 997, Colección Estudios Alemanes, pfll -85, e Rodolfo Sohm, op. cit., p. 13
e 14; Cândido Rangel Dinamarco, citando Calamandrei (Veritá e verosimiglianza nel
processo civile, in Rivista di Diritto Pro- cessuale, ed. 3, p. 1 67), observa que o
processualista moderno sabe que a verdade não constitui escopo processual... O
processualista moderno sabe também que a coisa julgada... não se define como
ficção ou presunção da verdade, mas somente cria a irrevocabilidade jurídica do
comando, sem se preocupar em estabelecer se as premissas psicológicas das quais
esse comando nasceu são premissas de verdade ou de verossimilhança (Cândido
R. Dinamarco, A instrumentalidade doprocesso, 2. ed., São Paulo, 1 990, p. 326 e
327). Igualmente, sustenta Tercio Sampaio Ferraz Jr. que a decidibilidade dos
conflitos é o problema cen- tral da ciência dogmática do direito (Introdução ao
Estudo do Direito — Técnica, Decisão, Dominação, São Paulo, Atlas, 1988, p. 88-91;
A ciência do Direito, São Paulo, Atlas, 1980, p. 42-47; Prefácio à tradução brasileira
da obra de Theodor Viehweg, Tópica e jurisprudência, Brasília, Ministério da
Justiça, 1 979 (Coleção Pensamento Jurídico Contemporôneo);
(135) Celso Agrícola Barbi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. l, Rio de
Janeiro, Forense, 1 973, p.174 e 1 75. Como registra João Carlos Pestana de
Aguiar, citando Carnelutti (La Prueba Civil, Buenos Aires,
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Página 153
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
Com efeito, o instituto da coisa julgada não interfere necessariamente com a
questão da verdade fática, a despeito daquilo que consta do art. 485, incisos III, VI,
VII e IX, do Código de Processo Civil e do artigo 62 1, I, 11 e 111, primeira parte, do
Código de Processo Penal.136 E que o exercício da ação rescisória está
condicionado
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1955, p. 25), quando a busca da verdade material está limitada de tal modo que esta
não possa ser conhecida em todo caso e com qualquer meio, o resultado, seja mais
ou menos rigoroso o limite, é sempre o de que não se trata já de uma busca da
verdade material, senão de um processo de fixação formal dos fatos (João Carlos
Pestana de Aguiar, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 4, São Paulo, RT,
1974, p. 51).
(136) A propósito, assim escreve Chiovenda: Nem sempre são verdadeiros os fatos
que o juiz reputa como tais. A convicção do juiz pode ser efeito de erro, dolo, provas
insuficientes; por vezes, a lei pode, sem mais, prescrever ao juiz que considere
como existentes determinados fatos (fatos não contestados, confessados, jurados),
dispensando-o de pesquisar se são verdadeiros. Nem só: no interesse da paz social,
a lei traça limites à pesquisa da verdade; esgotadas algumas reclamações ou
decorridos certos termos, a sentença passa em julgado, tornando-se resjudicata, isto
é, o bem reconhecido ou negado pela sentença se torna indiscutível, não obstante
erro de fato e de direito que viciaram o raciocínio do juiz (Instituições de Direito
Processual Civil, 2. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva, 1 965, p. 43). Como adverte
Wilson de Souza Campos Batalha, o erro dos que defendem o princípio da coisa
julgada com as teorias deficção da verdade ou presunção de verdade, a exemplo de
Ugo Rocco (Corso di Teoria e Pratica Del Processo Civile, vol. 1, 1 95 1, p.573 e
ss.), está em que a norma individualizada, como toda norma jurídica, não é
verdadeira ou falsa, mas é válida ou inválida. Inclusive os juízos referi- dos a fatos e
que, portanto, são suscetíveis de ser — sob o ponto de vista da teoria do
conhecimento — falsos ou verdadeiros, adverte Maynez (Lógica del Juício, p. 138)
adquirem outra significação quando declaram legalmente provados tais fatos, o que
permite predicar de tais iuízos a validade ou invalidade em sentido normativo. Assim,
a coisa julgada não se estriba numa suposta presunção de verdade, mas na pura e
simples validade da sentença, escoadas que sejam todas as possibilidades de sua
reforma (Introdução ao Direito — Filosofia, História e Ciência do Direito, vol. 1, São
Paulo, RT, 1967, p. 276 e 277). Neste sentido também é a lição de Jorge A. Clariá
Olmedo (op. cit., p.152e 153). Daí porque sem razão aqueles que comparam o
trabalho do juiz à missão do historiador, a exemplo de Antônio Dellepiane (Nova
Teoria
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
à inexistência de controvérsia ou de pronunciamento judicial acerca do fato (art. 485,
§ 2.°, do CPC). Além disto, a ação sujeita-se a prazo decadencial (art. 495). Quanto
ao processo crime, embora o reexame do caso julgado não esteja sujeito a prazo,
certo é que se mostra inconcebível, de acordo com a jurisprudência, revisão de
revisão.37 Também não se cogita da ação revisional (ou recurso, segundo alguns)
quando a prova do fato já tiver sido analisada, limitando-se o pedido a novo exame
da interpretação do fato.138 Algumas Iegislações admitem a revisão de sentenças
absolutórias. No Brasil, entretanto, é vedada a revisão pro societate, circunstância
que vem em detrimento da persecução da verdade fática, à qual preferem razões de
política criminal.139
Observe-se ainda que a verdade dos fatos, estabelecida como funda- mento da
sentença civil, não faz coisa julgada (art. 469, 11, do CPC).140
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
da Prova, Livraria jacintho, 1 942, p. 24), citado por ArrudaAlvim (Curso de Direito
Processual Civil, vol. 2, São Paulo, RT, 1972, p. 206). A pro- pósito ainda desta
comparação, v. notas 159 e 160. A respeito das implicações — do ponto de vista
interno e externo do sistema jurídico — do caráter constitutivo da sentença, v.
Ricardo A. Guibourg, Derecho, sistema y realidad, Buenos Aires, Astrea, 1986, p.
50-55 e 73-77.
(137) TJSP, 2.° Grupo de Câmaras Criminais, Rev. 1 09.4 1 3-3/0, Santo André, rel.
Silva Leme, j. 3/2/92, in RT, São Paulo, Ano 82,junho de 1993, vol. 692, p. 249-253.
(138) TACrim/São Paulo, 1.° Grupo de Câmaras Criminais, Rev. 271.150/3, Santo
André, rel. Rulli Jr.,j. 23/3/95, in RT, São Paulo, Ano 84,julho de 1995, vol. 717, p.
401.
(139)Apartam-se aqui as noções de justiça e verdade, a demonstrar o idealismo
contido na máxima de Dellepiane, segundo a qual Toda sentença, para ser tida por
justa, deve sem expressão fiel da verdade... verdade e justiça se confundem nas
sentenças (Antônio Dellepiane, Nova Teoria da Prova, trad. Erico Maciel, Livraria
Jacintho, 1942, p. 42, apud José Luiz Vicente de Azevedo Franceschini, Da atuação
dos juízes penais, de ambas as instâncias, na pesquisa da verdade real, in RT, São
Paulo, Ano 58, novembro de 1969, vol. 409, p. 24).
(140) Embora a sentença, sob o aspecto formal, recorra a um silogismo, que tem em
conta o diálogo entre as partes (Francesco Carnelutti, Diritto e Processo, Morano
Editore, 1958, p. 188), mais propriamente a um
Fim da nota de nota de rodapé
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
No campo processual civil, em decorrência do princípio dispositivo, é vedado ao
tribunal, em regra, agravar a situação da parte recorrente quando o recurso for
exclusivamente dela, porque, do contrário, estar- se-ia julgando extrapetita. Trata-se
de limite objetivo da apelação. No processo penal também é vedada a reformatio
inpejus, ainda que sob fundamento diverso, e isto por razões de política processual
penal.141
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entimema, onde una das premissas está oculta (ou a um polissilogismo, onde a
conclusão do primeiro silogismo funciona como premissa maior de um segundo
silogismo), certo é que a sua elaboração não se dá, as- sim, de forma tão elementar.
Não se nega a existência do recurso a argumentos dedutivos, como ocorre, por
exemplo, no caso da aplicação das presunções, ou mesmo do recurso aos
argumentos indutivos, a exemplo do que ocorre com o exame da prova indiciária
(quase-silogismo) ou com o emprego da analogia. Entretanto, é necessário
considerar que a redução da sentença a um silogismo (em qualquer de suas formas)
implicaria admitir que as categorias jurídicas estão reduzidas a conceitos analíticos,
o que não procede. Já na escolha da premissa maior, vaie dizer, da rotina aplicável
ao caso concreto, é possível identificar um momento valorativo da sentença. Engisch
diz que na argumentação jurídica não há conclusões puramente cognitivas. A
premissa menor é que define a premissa maior, na base de uma orientação
valorativa. Mas também não bastam, por outro Iado, considerações puramente
emocionais. O juiz somente se sentirá justificado quando sua decisão fundar- se na
lei. A subsunção, todavia, não é simples adequação do conceito concreto ao
conceito abstrato. O silogismo jurídico envolve uma razão prática (Karl Engisch,
Introdução ao Pensamento Jurídico, 7. ed., Lis- boa, Fundação Calouste
Gulbenkian, p. 90 e 91). Kelsen, que reduz o direito à norma, sustenta que à ciência
jurídica não interessa a maneira pela qual o juiz decide. Entretanto, não pode deixar
de reconhecer que a sentença não é um ato de conhecimento (diferentemente do
que ocorre com a atividade do cientista), mas sim um ato de vontade, de querer
(Kelsen, 09.06.1965 — Manuscrito Direito e Lógica, in Kelsen-Klug, Normas jurídicas
e análise lógica — correspondência 1959-1965, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p.
60-84). No mesmo sentido é a lição de Chiovenda: a sentença vale como expressão
de uma vontade do Esta- do, e não por suas premissas lógicas. (lnstituições de
Direito Processual Civil, vol. 1, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1965, p. 44). Estas
questões serão retomadas no último capítulo (seção 5.4).
(141) Mesmo entre aqueles que defendem o maior empenho possível do julgador no
conhecimento da verdade real, admite-se que o limite objetivo da
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Vê-se, assim, que não há necessária correspondência entre verdade material e ideal
de justiça. Por outro lado, a verdade formal compreende a noção de justiça como
imperativo de ordem prática, mas não se esgota neste conceito. De acordo com o
senso comum dos processualistas, a verdade material é aquela correspondente ao
que efetivamente ocorre. A verdade formal, por sua vez, é aquela que vale no
processo, retrato mais ou menos perfeito da verdade material.142Francesco
Carnelutti pondera, entretanto, que a finalidade do processo é sempre o
conhecimento do fato; outra é a questão relativa aos meios. Há meios que parecem
mais aptos ao conhecimento da verdade. O resultado contrário à verdade é o custo
do sistema processual, ocorrência que se tolera em atenção aos casos em que a
verdade, na base das mesmas regras processuais, é alcançada. O formalismo é um
guia seguro para os juizes, protegendo-os, na base de determinadas proibições, da
falácia de certas provas.143
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apelação do réu, se, de um lado, não constitui óbice à absolvição, impe- de a
reforma em desfavor daquele que recorre (v. José Luiz Vicente de Azevedo
Franceschini, op. cit., p. 26). Em outras palavras, entende-se que, no campo do
processo penal, não se aplica o princípio tantum devolutum quantum appellatum,
pois aqui se busca a verdade real. Este desprendimento em relação à forma não
chega, entretanto, ao ponto de admitir a reformatio in pejus. Novamente aqui se
apartam as noções de justiça e verdade.
(142) Carlo Furno, Teoría de la Prueba Legal, Revista de Derecho Privado, Madrid, 1
954, p. 1 6, apud Arruda Alvim, Curso de Direito Processual Civil, vol. 11, São Paulo,
RT, 1972, p. 206; o processualista italiano, cuja obra é igualmente citada por Gian
Antonio Micheli (op. cit, p. 193), diz que a verdade processual é uma verdade
suficiente, expressão com a qual pretende indicar que, para a realização da
finalidade do processo, basta um grau de aproximação do fato histórico, que é
substituído pela reconstrução legal. João Carlos Pestana de Aguiar fala em uma
fixa- ção formal dos fatos (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. IV, São
Paulo, RT, 1974, p. 51).
(143) Francesco Camnelutti, Estudios de Derecho Procesal, vol. 11, Buenos Aires,
Ediciones Jurídicas Europa-América, 1952 (Colección Ciencia del Proceso, ed. 20),
p.1 14 e 115. Veja-se que, no direito processual
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
Conforme distinção corrente, a verdade formal é perfei- tamente adequada ao
princípio dispositivo. Vale dizer, se é certo que a verdade é premissa necessária da
aplicação dajustiça, cer- to também é que ao demandante, segundo o princípio
dispositi- vo, compete dar ao juiz o conhecimento dos fatos (Da mihi factum, dabo
tibijus).144 Daí porque muitos entendem que não se pode negar à parte,
naturalmente parcial, o direito de apresentar os fatos conforme sua ótica e interesse,
diferentemente do que ocorre quando se aplica o princípio inquisitivo, apropriado ao
tratamento das matérias de ordem pública (questões de estado da pessoa, pátrio
poder, tutela e curatela, declaração de ausên- cia, disposições de última vontade
etc),45 em que se procura a
Início da nota de rodapé
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brasileiro, determinadas normas realmente restringem a cogniçãojudi- cial; há uma
certa reserva ou prevenção em desfavor de certos tipos de prova. É o caso da
restrição à prova testemunhal (arts. 400, 11, 40 1, do CPC e art. 1 55 do CPP).
Jorge A. Clariá Olmedo sustenta que a verdade é única. Sua busca estará limitada,
contudo, na dependência da adoção do princípio inquisitivo ou dispositivo (op. cit.,
p.152-157). Santiago Sentis Melendo, citando Montesquieu, diz que as formas são o
preço da liberdade (La prueba — los grandes temas del derecho probatorio, Buenos
Aires, Ediciones Juridicas Europa-America, 1978 Colección Ciencia del Processo,
ed. 65), p. 37. Estas limitações se inscrevem no sistema da apreciação livre e
racional da prova, tendência das legisla- ções contemporâneas (Antonio Dellepiane,
op. cit., p.46 e 46, apud Arruda Alvim, Curso de Direito Processual Civil, vol. 2, São
Paulo, RT, 1972, p. 207).
(144) Moacyr Amaral Santos, Contra o processo autoritário, in Revista da Faculdade
de Direito, São Paulo, 1959, vol. 54, fasc. 1, p. 226.
(145) Moacyr Amaral Santos, Limites às atividades das partes no processo civil, in
RT, São Paulo, Ano 46, outubro de 1957, vol. 264, p. 23; Leo Rosenberg, op. cit., p.
391 e 392. Na base dessa distinção entre verdade material e verdade formal, às
quais corresponderiam, respectivamente, o princípio inquisitivo e o princípio
dispositivo, houve quem sustentasse que a obtenção da verdade, no processo civil,
é um resultado puramente fortuito (Alberto Domenico Tolomei, iprincipiifondamentali
del Processo Penale, 1931, p. 89 apud José Luiz Vicente de Azevedo Franceschini,
op. cit., p. 24).
Fim da nota de rodapé
Página 158
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
verdade material.46 Assim, sob este ponto de vista, nos proces- sos regidos pelo
princípio dispositivo não se pode cogitar do deverde completude, ou seja, da
obrigação de apresentar emjuízo fatos francamente desfavoráveis à parte.147
Início da nota de rodapé
(146) Salvatore Satta, Direito Processual Civil, 7. ed., vol. 1, Rio de Janeiro, Borsoi,
1 973, p.198 e 199; JorgeA. Clariá Olmedo (op. cit., p. 155-157); Gian Antonio
Micheti, op. cit., p. 265-268; Leo Rosenberg, op. cit., p.386-393. Para esse último
autor, a distinção que se faz entre verdade material, adequada ao principio
inquisitivo, e verdadeformal, adequa- da ao princípio dispositivo, é só aparente,
porque não há oposição entre estas idéias. Não existe mais do que uma noção de
verdade, como já registrava JorgeA. Clariá Olmedo (op. cit., p.152 e 153). O
princípio dispositivo não é um dogma inviolável, senão o resultado de uma con-
sideração de conveniência. Foi introduzido porque se supôs que a ver- dade será
melhor conhecida na versão das partes do que através de uma investigação judicial
(op. cit., p. 386). Note-se que mesmo no campo do processo penal, houve quem
fizesse a distinção entre sistema acusa- tório, que atribui às partes o monopólio da
escolha e oferecimento dos elementos de convicção, e sistema inquisitório, que
atribui ao juiz papel decisivo na colheita da prova (a propósito, com ampla citação
bibliográ- fica, José Luiz Vicente de Azevedo Franceschini, op. cit., p. 33 e 34). Mas
claro está que a distinção entre princípio dispositivo e verdade for- mal, de um lado,
e princípio inquisitivo e verdade material, de outro, revela sérias dificuldades no
campo do processo penal, mormente quanto ao dever de completude, haja vista que
o réu não está obrigado a dizer a verdade e tem inclusive o direito de calar.
(147) A doutrina, de maneira geral, entende que a parte tem de apresen- tar os fatos
como são, porquanto não existe meia verdade (neste sentido, Kaethe Gmossmann,
op. cit,. p. 287; J. M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol.
1, Rio de Ja- neiro, Livraria Freitas Bastos, 1 940, p. 1 08 e 1 09; José Luiz Vicente
de Azevedo Franceschini, op. cit., p. 26; Pontes de Miranda, repor- tando-se à
doutrina alemã, fala em dever de completude — Pflicht Vollständigkeit (Comentários
ao Código de Processo Civil, 2. ed., tomo I, Rio de Janeiro, Forense, 1 958, p. 41 1).
O CPC de 73, antes da Lei 6.771, de 27.03.80, reputava litigante de má-fé aquele
que omitis- se intencionalmente fatos essenciais aojulgamento da causa (art. 17,
111). Essa regra foi suprimida, pelo que nisto alguns poderiam ver hi- pótese de
revogação implícita.
Fim da página de rodapé
Página 159
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
Alguns autores, entretanto, procuram conciliar a exigência da verdade, como
condição de justiça, e o princípio dispositivo. Pontes de Miranda, sem descer a
maiores considerações, diz que o dever de veracidade não derrogou, como alguns
pretendem, o princípio dis- positivo. É precisamente a coexistência destes dois
institutos proces- suais que dá ao princípio dispositivo contactuação (sic) que não
existiria se não existisse o dever de verdade.48 Menos hermética, mas também
insuficiente, é a explicação de Moacyr Amaral Santos. Para o processualista de São
Paulo, verdade formal é aquela que se obtém através de um procedimento
condicionado a formas, que não podem ser relegadas. Findo o processo, na ordem
do procedimento prede- terminado pelo código, chega-se à verdade jurídica, contra
a qual seriam inúteis as investidas da verdade material. Bem por isso, maior é a
responsabilidade das partes na produção da verdade formal.149
Essas soluções conciliadoras não esclarecem, todavia, qual o sentido de uma tal
prescrição da verdade num sistema em que o espectro de cognição judicial está
limitado por balizas que não po- dem ser ultrapassadas. A posição de Moacyr
Amaral Santos retira o dever de veracidade do campojurídico para colocá-Io numa
arena moral, ainda que o autor não admita isto. Nesse ponto, procede a crítica de
Chiovenda. O juiz não pode ser considerado como figu- ra passiva, quer na
afirmação dos fatos quer na escolha das pro- vas, ressaibo do processo escrito. Daí
se compreende que, nas leis modernas, vá avultando a reação ao princípio
dispositivo, a favor da iniciativa do juiz.150 O interesse que se discute no processo
civil, pelo só fato de ser eventualmente patrimonial, não autoriza a distinção,
ordinariamente feita em relação ao processo penal,151
Início da nota de rodapé
(148) Pontes de Miranda, Comentdrio ao Código de Processo Civil, 2. ed., tomo I,
Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 409.
(159) Moacyr Amaral Santos, Limites às atividades das Partes no Processo Civil, in
RT, Ano 46, outubro de 1957, voi. 264, p.23 e 24.
(170) Giuseppe Chiovenda, instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 2, São
Paulo, Saraiva, 1965, p. 351.
(151) Salvatore Satta chega a afirmar que, contrariamente ao processo penal, em
que o juiz é interessado no acertamento da verdade, para o fim de
Fim da nota de rodapé
Página 160
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
porquanto sobreleva a natureza pública do processo judicial, seja ele qual for.152
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
firmar a inocência ou a culpabilidade do imputado, no processo civil, a prova reflete a
contrariedade existente entre os lancesjurídicos.... Daí a regra fundamental
disciplinadora da chamada distribuição do ônus da prova, a sujeição do juízo ao
alvitre da prova produzida pelas partes ou às confissões expressas ou manifestas,
com a coerente restrição de li- berdade de apreço.... (Direito Processual Civil, 7. ed.,
vol. 1, Rio de Ja- neiro, Borsoi, 1973, p. 198 e 199.
(152) Chiovenda, a respeito, diz que a distinção entre o principio inquisitivo e o
princípio dispositivo é abstrata, porquanto, na prática, nenhum deIes se pode
encontrar aplicado na concepção idealizada. Temperam-se, em proporções
diversas, conforme os tempos e os lugares (Instituições de Direito Processual Civil,
2. ed., vol. 2, São Paulo. Saraiva, 1965, p. 345). Nas notas à tradução brasileira,
elaboradas por Liebmann, este processualista destaca que, malgrado o Código de
39 tivesse adotado o princípio dispositivo, é de destacar-se que aumentou os
poderes dojuiz, no confronto com as atividades e as iniciativas atribuídas às partes,
em conformidade, aliás, com a concepção publicística do processo, que presidiu a
elaboração do Código (idem, notas 8 e 9, pp. 345-347). No mesmo sentido são as
considerações de Eduardo J. Couture (Estudios de Derecho Procesal Civil, tomo 11,
2. ed., Buenos Aires, Depalma, 1 .978, p.245 e 246). Jorge A. Clariá Olmedo
observa que se vem dando, no processo civil moderno, tanto sob o enfoque
doutrinário como legis- Iativo, maior extensão aos poderes dojuiz no que concerne à
produção da prova. Trata-se de imperativo da verdade jurídica, que não pode ser
abertamente destruída em nome do formalismo (op. cit., p. 347). L. Pietro-Castro
Fernandiz, por sua vez, registra que o processualista civil já se convenceu de que
sua disciplina ganha prestígio a medida que vai incorporando muitas das velhas
idéias do processo penal, a exemplo da noção de verdade material, que permite a
ampliação dos poderes do juiz, assegurando a seriedade da sentença civil,
escassamente garantida em um procedimento no qual só a atividade das partes,
egoisticamente interessadas, constitui a base do julgado. (Trabajos y orientaciones
de Derecho Procesal, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1 .983, p. 606 e
607. Como registra Amilcar de Castro, claro está que, se a administração dajustiça é
uma função pública, ojuiz deve estarprovi- do de poderes indispensáveis para bem
administrá-la, de modo ativo, rápido e seguro, senão com prevalência do princípio
inquisitório, com
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Página 161
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
Pode-se verificar, a partir das considerações de MoacyrAmaral Santos, o quanto
impressionaram o processualista de São Paulo as relações entre o processo
inquisitivo (ou autoritário) e os regimes de imposição (autocracia, ditadura e
totalitarismo), o que de certa forma se explica pelo fato de que seus escritos,
relativos a um Códi- go gestado na Ditadura Vargas, são de um período de
redemocrati- zação do Estado brasileiro.53 De qualquer forma, Moacyr Amaral
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
atenuação do princípio dispositivo. Entende-se modernamente que ainda quando
seja o litígio um negócio privado, o processo é sempre de interesse eminentemente
público. E sem desrespeito à vontade honesta das partes, pode-se inserir no
processo um mínimo de inquisição (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 8,
São Paulo, RT, 1974, p.lO6 e 107).
(153) É interessante observar, dentre os autores infensos à teoria do abuso do
direito, que as críticas formuladas geralmente se inscrevem num quadro ideológico
de oposição a ideias. socializantes, que são identificadas com as concepções
totalitárias, o que é mostra da arraigada formação individualista nos nossosjuristas,
pelo menos até metade do séc. xx. A propósito da crítica a este espírito
individualista, ver Pedro Baptista Martins, O abuso do Direito e o ato ilícito, 3. ed.,
Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 3, 6, 9,10, 13, 34, 1 14 e 137; mais
especificamente no campo processual, v. Alfredo Buzaid, op. cit., p. 95, e Enrico
Tulio Liebmann, nas anotações que fez à tradução brasileira de Chiovenda
(Instituições de Direito Processual Civil, vol. 11, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 370,
nota 10). Alfredo Balthazar da Silveira, criticando o Decreto 24. 1 50, de 20.04.34,
que visava a tutelar o fundo comercial ou industrial criado peio locatário, diz que,
apadrinhados por esta lei de feição comunista, muitos Iocatários gananciosos, es-
quecidos da parábola de Lázaro — o mau rico — extorquem dos Iocado- res
quantias fabulosas para lhes entregar o imóvel alugado (A lei moral é a ba.se do
direito processual, i n Revista de Direito Processual Civil, Ano 1,janeiro ajunho de
1960, vol. 1, São Paulo, Saraiva S.A. Livrei- ros, p. 1 29). Também entre os
franceses impressiona a marca do indi- vidualismo, como se colhe em Ripert, que
não vê nada de mau no absolutismo dos direitos. Pretender um controle, exercido
pelojuiz, sobre valores econômicos e sociais, equivaleria, sob a ótica do civilista, a
colocar a sociedade sob a ameaça do estatismo ou do comunismo (op. cit., p. 1 82 e
l 83).
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Página 162
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Santos acaba por admitir que apesar dos influxos políticos da épo- ca, acabou
prevalecendo, na redação do Código de 39, o aspecto científico, a
disciplinajurídica.154 E certo que a posição dojuiz no processo é uma resultante das
tendências políticas e filosóficas do seu tempo. O século xIx consagrou o
individualismo e, por isso, a direção do processo era confiada exclusivamente às
partes.155 Surgem, já no final daquele século, os primeiros conflitos de massa, que
acabam repercutindo no campo da dogmática processual. Conquan- to a experiência
histórica do comunismo tivesse resultado numa visão burocrática do direito, outros
dados empíricos permitem di- zer que não há uma relação necessária entre o regime
político tota- litário e o princípio processual inquisitivo. Do fato de tal princípio ter sido
adotado em países comunistas, a exemplo da antiga Alema- nha Oriental e da
extinta URSS, não se exclui a possibilidade de que possa ser aplicado em regimes
liberais. Como registra Erich Döhring, há uma tendência de expansão dos poderes
judiciais mesmo nos países que adotam o princípio dispositivo, a exemplo da
França, Itália e Espanha, de sorte que a perspectiva meramente formal da prova
acha-se em franco declínio.156
O que parece estar na base de uma certa dificuldade da dogmá- tica processual,
quando trata da questão da verdade, é a confusão que se estabelece entre quatro
planos diferentes de conhecimento. A verdade material (processual) não se
confunde com a verdade on- tológica (filosofia), tampouco com a verdade lógica
(ciências ideais)
Início da nota de rodapé
(154) Moacyr Amaral Santos, Contra o processo autoritário, in Revista da Faculdade
de Direito, São Paulo, vol. 54, fasc. 1, São Paulo, 1 959, p. 212-229.
(155) Pedro Baptista Martins, Comentários ao Código de Processo Civil, Decreto-Lei
1.608, de 18 de Setembro de 1939, vol. I, Revista Forense, 1940, p. 338; Amilcar de
Castro, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 8, São Paulo, RT, 1974, p
106.
(156) Erich Döhring, op. cit., p. 08 e 09. No mesmo sentido, no Brasil, José Luiz
Vicente Franceschini afirma que a concepção autoritária do processo, conceito
publicístico, nada tem de inadequado ao direito das nações onde vige o regime
democrático (op. cit., p. 25).
Fim da nota de rodapé
Página 163
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
ou com a verdade empírica (ciências naturais e históricas).157 Grande parte dos
processualistas modernos, conquanto sensível à primeira e segunda distinções,
apartando a prova judicial da verdade metafísica e da verdade racional, não
demonstra a mesma facilidade em estremá-la da verdade empfrica. Inicialmente,
diga-se que a dogmática processual não se ocupa da prova do fato, mas sim da
afirmação do fato,158 o que retira o processo do campo empírico.159
Início da nota de rodapé
(157) A propósito da distinção entre verdadeprocessual e verdade ontológica, vide
Jorge A. Clariá Olmedo (op. cit., p.149-153). João Mendes de Almeida Jr., invocando
o pensamento de São Tomás de Aquino, diz que a verdade processual busca a
adequação da coisa ao intelecto; a certeza é a firme adesão do intelecto à coisa (op.
cit., p. 155).
(158) Leo Rosemberg, op. cit., p. 17. No mesmo sentido, também Santiago Sentis
Melendo (op. cit., p. 38). Diz o autor que a distinção não é mero jogo de palavras: os
fatos existem como realidade mesma. A afirmação é um fenômeno intelectual que se
refere à coisa ou ao fato. A parte, antes de afirmar, trata de fazer a averiguação da
existência do fato. Depois, feita a afirmação, cuida de oferecer os elementos que a
provêm. Aqui, já se está no campo da verificação. Não colhe a distinção que se
pretende fazer entre averiguação (processo penal) e verificação (processo civil). A
averiguação (ou investigação) diz com a atividade policial, mas nem por isso se
pode dizer que é categoria adequada ao processo penal, que visa a umiulgamento
(op. cit., p. 58 a 62). Importante registrar que parte responde pelas declarações
relativas a fatos e não a direitos, porque, neste ponto, as dificuldades ligadas ao
campo da in- terpretação avultam (Leo Rosenbemg, op. cit., p. 38 1 ). A discussão
sobre a existência do direito afirmado insere-se em campo técnico, heurístico, que a
parte nem sempre está em condições de avaliar (a respeito, v. também Santiago
Sentis Melendo, p. 70 e 71).
(159) Piero Calamandrei diz que, diferentemente do historiador, que trabalha com
fatos empíricos, formulando sua tese e investigando os fatos (averiguando, diria
Sentis Melendo), ao juiz não é dado escolher a pergunta que tem de responder,
formulada por outras pessoas, que são as partes. Ademais, tem dejulgar nos limites
de certas regras. Neste ponto, o processualista italiano critica a comparação feita
por Calogero, no livro La lógica del giudice e il suo controllo in casazione
(Calamandrei, Eljuiz y el historjador s.p., apud Santiago Sentis Melendo, op. cit.,
nota 1 24, p. 68).
Fim da nota de rodapé
Página 164
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Ademais, como observa Piero Calamandrei, a prova está voltada à demonstração da
semelhança e não da verdade, o que neste ponto também se aplica à verdade
histórica.160 Ainda que exista concordância entre os diversos testemunhos, acerca
de determinado fato, poderá o juiz quando muito concluir que, diante da
uniformidade dos relatos, é bem possível que as coisas tenham se passado mesmo
daquela forma. Somente em casos excepcionais, como é a hipótese da inspeção
judicial, poderá o magistrado conhecer os fatos na sua dimensão empírica.161
Início da nota de rodapé
(160) Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol 3, Buenos Aires, Ediciones
Jurídicas Europa-America, 1973, p. 319. A respeito, o autor cita Voltaire (Dictionnaire
philosophique, voz Verité), para quem Ies verités historiques ne sont que des
probabilités. A respeito das relações entre verdade histórica e verdade jurídica, ver
também KarI Engisch, Introdução ao pensamentojurídico, 7. ed., Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1996, p. 90 e 91.
(161) Idem, p. 317-319 e 349. Neste ponto, o processualista italiano diz que, mesmo
diante do fato, será difícil ao magistrado afirmar que está diante da realidade,
porquanto o que vemos é só aparência (idem, p. 319). Calamandrei suscita aqui
(sem aprofundar o debate) uma clássica disputa filosófica, travada entre realistas e
idealistas, questão que será objeto do terceiro capítulo deste trabalho. Ainda a
propósito da distinção entre verdade processual e verdade eínpírica, Calamandrei
observa que a coisa julgada impiica apenas a idéia de uma certezajurídica, diversa
da certeza psicológica. No momento em que a sentença passa em julga- do, a crise
de consciência do juiz perde todo significado. A sentença é um ato de vontade, que
se desprende das premissas lógicas. Editada que for, passa a ser norma jurídica. Os
fatos continuam sendo os mesmos, e não é certo dizer que, cobertos pelo manto da
coisajulgada, haveria quanto a eles presunção de veracidade. A coisa julgada recai
sobre relações jurídicas e não sobre o mundo sensível (idem, p. 320-321). A pro-
pósito desta discussão, v. nota 1 36. Niklas Luhmann, jurista alemão que desenvolve
reflexões no campo da teoria dos sistemas, estabelece distinção entre expectativas
cognitivas (que são fáticas) e expectativas normativas (que são contrafáticas). A
normajurídica, ainda que manifestamente desconforme às expectativas sociais,
impõe-se sob um critério de racionalidade diverso daquele que preside o processo
de conhecimento
Fim da nota de rodapé
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
Está claro que todo juízo de probabilidade e verossimilhança tem um caráter
eminentemente relativo. Assim, o direito processual opera com graus de
aproximação progressiva da 162 Isto levaria a crer que a distinção entre verdade e
verossimilhança, muitas vezes feita pelo legislador (art. 273, caput, do cPC, v.g.), é
um nonsens. A doutrina considera, entretanto, que a verossimilhança diz respeito à
alegação da parte, ao passo que o juízo de verdade (ainda que reduzido, em última
análise, a um juízo de semelhança, sob o ponto de vista psicológico e sociológico), é
uma estimativa final, que versa sobre toda a prova produzida. A alegação da parte é
a interpretação que ela retira dos fatos. Serve, no processo dispositivo, para fixação
do themaprobandum. Não é prova, mas delimitação dos fatos a serem provados. O
juízo definitivo de verdade, de outra forma, está pautado no exame da prova que
nestes limites foi produzida.163
Ainda que convencido de que a natureza humana é incapaz de alcançar a verdade
absoluta — diz Piero Calamandrei — é dever de honestidade empenhar-se com
todas as forças para tentar
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
(Sociologia do Direito 1, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983, Bi- blioteca Tempo
Universitário, vol. 75, p. 45-76). Este modelo de aná- Iise é significativo para que se
possa entender a distinção entre verdade processual e verdade empírica.
(162) Santiago Sentis Melendo, (op. cit., p. 40-59).
(163) Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol. 3, Buenos Aires, Ediciones
Jurídicas Europa-America, 1973, p. 326-330. A propósito, o autor invoca as lições de
Calogero (La lógica del giudice e il suo controllo in cassazione, Padova, Cedam,
1937, p. 57) e de Wilhelm Sauer (Allgemeine Prozessrechtslehre, Heymanns, V.,
195 I). Neste ponto, Calamandrei chama a atenção para as restrições que o sistema
processual estabelece no que diz respeito a certos tipos de prova (op. cit., p.334-
336), a exemplo do que dispõem as regras dos arts. 400, 11, e 401, ambos do CPC,
e a regra do artigo 155 do CPP; no mesmo sentido, Francesco Carnelutti, Estudios
de Derecho Procesal, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1952
(Colección Ciencia del Proceso, 20), p.1 14 e 1 15. A respeito, ver o que foi dito na
nota 22.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
aproximar-se, o mais possível, desta meta inatingível.164 Neste sentido, a noção de
verdade processual aproxima-se do campo moral. Probatio, a exemplo do verbo
probare vem de probus, que quer dizer bom, reto, honrado.165 Estas considerações
remetem novamente à questão do dever de lealdade processual. Aqui, dentre outras
indagações, retoma-se a discussão acerca do dever de completude, que consiste
em saber se a parte estaria obrigada a apresentar até mesmo fatos contrários à sua
pretensão, reflexões que se inscrevem em um campo mais abrangente e
compreensivo, sugerindo a distinção entre argumentação, adequada às ciências
culturais, e demonstração, adequada às ciências ideais, físicas e naturais.
Com efeito, o senso comum dos processualistas orienta-se no sentido de que todos
os atores processuais têm o dever de colaborar para que se aplique com exatidão e
justiça o direito objetivo. Impregnado, pois, o processo de acentuado sentido ético. E
de se ressaltar, porém, que a relação processual, quando se forma, encontra as
partes conflitantes em situação psicológica pouco propícia para manter um clima de
concórdia.166 Há um senso de disputa que faz lembrar umjogo, na referência de
diversos processualistas. Mas na competição, em que pese uns serem mais hábeis
do que os outros, também não são permitidas trapaças.167 Entretanto, como
reconhece
Início da nota de rodapé
(164) Piero Calamandrei, Derecho Procesal IIL Buenos Aires, Edicionesju- rídicas
Europa-América, 1973, p. 351.
(165) Santiago Sendes Melendo, op. cit., p. 33.
(166) José Frederico Marques, Instituições de Direito Processtial Civil, vol. 11, Rio
de Janeiro, Forense, 1958.
(167) Francesco Carnelutti, Diritto e Processo, Milano, Morano Editore, 1 958, p.
203-205; no mesmo sentido, Guido Calogero, Probità, lealtà, veridicità nelprocesso
civile, in Rivista di Diritto Processuale Civile, vol. 1 6, Parte 1, Ano 1 939, XVII-XVIII,
Padova, Cedam-Casa Editríce Dott, Antonio Milani, p.1 36- 1 38, e Piero
Calamandrei (op. cit., p. 267-279). Também utilizando-se da figura de linguagem,
que fez escola na doutrina italia- na, Amíicar de Castro diz que no período do
liberalismo, o iuiz não participava do processo: limitava-se a assistí-lo, como se
fosse um ár- bitro esportivo, assinalando as faltas dos contendores e controlando as
Fim da nota de rodapé
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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
Calamandrei, principalmente no processo do tipo dispositivo, é muito difícil
estabelecer o limite entre uma sagaz defesa e o logro, a trapaça.168
A deslealdade, em seus diversos matizes, tem como ponto comum o objetivo de
conseguir provimento jurídico sem que estejam presentes os pressupostos, de fato e
de direito, previstos em lei.169 Couture entende que a parte está em juízo para dizer
o que
Início da nota de rodapé
regras dojogo, paraafinai proclamaro vencedor (op. cit., p. 106). Esta metáfora é
comum na doutrina (Gian Antonio Micheli, op. cit., p. 169; Francisco Ramos Méndez,
¿Abuso de derecho en el proceso?, in José Carlos Barbosa Moreira, org., Abuso dos
direitosprocessuais, Rio de Janeiro, Forense, 2.000, p. 6; Humberto Theodoro Jr.,
Abuso de direito processual no ordenamentojurídico brasileiro, in José Carlos
Barbosa Moreira, org., Abuso dos direitosprocessuais, Rio de Janeiro, Forense,
2.000, p. 101 e 1 10).
(168) Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol. 3, Buenos Aires, Ediciones
Jurídicas Europa-America, 1 973, p. 267-269. Diz o processualista que alguns
estudiosos, considerando o fato de que, no pro- cesso dispositivo, é a iniciativa das
partes que dá o ritmo da sucessão dos atos, consideram as tergiversações, as
molestações, os diferimen- tos, vale dizer, toda sorte de chicana, como refinado de
boa prática fòrense (idem, p. 275 e 276). Francisco Ramos Méndez sustenta que o
processo não é um jogo de crianças nem um instrumento acadêmi- co, mas sim um
instrumento para criação do direito. Não há razão nenhuma para implantar neste
campo normas de cortesia ou compor- tamento distinto daqueles que regem outros
campos sociais. No pro- cesso, que encarna a luta pelo direito, refletem-se as
mesmas tensões do resto da sociedade. O razoável é assumi-las (op. cit., p. 6).
Susten- ta ainda o autor que não há Iugar para uma ação autoritária dojuiz pois o
processo não é uma disputa entre cavalheiros, cheia de flores e mesuras (idem,
ibidem). Contra este chamado liberalismo proces- sual está a Escola Eficientista do
Processo Civil (Jorge W. Peyrano, Abuso de los derechos procesales, in José Carlos
Barbosa Moreira, org., Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense,
2000, p. 75 e 76).
(169) Idem, p. 270. Pedro Baptista Martins diz que, de acordo com a orienta- ção do
Código de 39 (que prevalece no atual), é indiferente a perda ou êxito da ação, para
que fique ou não configurado o abuso do direito do
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
sabe, ainda que isto não venha ao encontro daquilo que efetiva- mente queira. Na
base da distinção entre saber e querer, diz que nada impede, dentro da
racionalidade do sistema dispositivo, que a parte diga o que sabe para depois, em
continuação, tentar convencer o juiz do acerto do seu direito, vale dizer, daquilo que
quer.170 Sustenta que o dever de dizer a verdade é um princípio implícito,
independente de previsão normativa, porque a realiza- ção da justiça, fim perseguido
pelo processo, não pode se apoiar na mentira.171
Assim argumentando, o processualista uruguaio coloca a questão da verdade no
campo moral. Sugere dois exemplos. O marido promove ação de divórcio, alegando
incompatibilidade de gênios, muito embora a infidelidade fosse o verdadeiro moti- vo
da ruptura conjugal. E assim o faz para preservar o equilíbrio emocional dos filhos.
Estaria, ao faltar com a verdade, proceden- do de maneira desleal? O outro exemplo
está no campo do chamado dever de completude. Uma parte pode conduzir o
proces- so dizendo objetivamente a verdade e subjetivamente a mentira. Basta que
apresente fatos que a favoreçam, omitindo outros que lhe sejam desfavoráveis.
Haveria deslealdade processual? Para contornar estas dificuldades, o texto definitivo
do Código de Processo italiano, no lugar do dever de dizer a verdade — como
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
autor. Conta o caso de uma parte que alterou a via do instrumento de contrato que
tinha consigo, supondo que assim melhor consolidaria seu direito. O fato não
interferiu no resultado da demanda, da qual se sagrou vencedora. Contudo, mesmo
assim, configurada restou a má-fé, pela qual haveria de responder (Comentários ao
Código de Processo Civil — Decreto-Lei 1.608, de 18 de seteinbro de 1939, vol. l,
Rio de Janeiro, Revista Forense, 1940, p. 200).
(170) Eduardo J. Couture, Estudios de Derecho Procesal Civil, tomo 111, 2. ed.,
Buenos Aires, Ediciones Depalma, p. 246 e 247.
(171) Idem, p. 249-250. Diz Amílcar de Castro que ninguém dirá que seja uma
perfeição processual esgravatar uma demanda, urdir uma cavilação, sutiiizar uma
trampa, inventar um engano, fazer uma rede de burlas... para, no seu malvado
interesse, enganar o iuiz, sem que este o possa desmascarar (op. cit., p. 107).
Fim da nota de rodapé
Página 169
O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES
previsto no Projeto Solmi — estabeleceu: As partes, seus procuradores e defensores
têm o dever de atuar com probidade e lealdade. 172 Há aqui uma referência à
questão da boa-fé, com a qual se encerrou o primeiro capítulo.
Início da nota de rodapé
(172) Idem, p. 252-253; a propósito da dificuldade da doutrina em conciliar a base
ética do processo com a necessidade da solução prática, v. J.Ramiro Podetti, Teoria
y técnica de proceso civil y trilogia estructural de Ia ciencia delproceso civil, Buenos
Aires, Ediar, S. A. Editores, 1963, p.142-150. Francesco Carnelutti, tratando do
anteprojeto do Código Alemão, não faz referência expressa às dificuldades tão bem
aponta- das, acima, por Couture (Estudios de Derecho Procesal, vol. 50, Buenos
Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1952, p. 171 e 172). E cer- to, todavia,
que, integrando comissão também composta por Redenti e Calamandrei, tratou de
aiterar a redação do Projeto do Ministro Solmi, comojá registrado (Eduardo J.
Couture, op. cit., p. 253). É igualmente certo que, nessa mesma obra (Estudos),
Carnelutti adverte para a difi- culdade que o dever de verdade oferece ao construtor
do processo civil. Diz que o problema técnico desemboca em um problema ético
(idem, p.185e 186).
Fim da nota de rodapé
Página 170- Em Branco
Página 171
3
A TEORIA DO SIGNIFICADO
SUMÁRIO: 3.1 A cosmovisão da Antiguidade — 3.2 A teoria representativa — 3 .3 A
superação da dicotomia idealismo e realismo — 3.4 A consciência reflexiva e a
razão alargada.
3.1 A cosmovisão da Antiguidade
Nos dois primeiros capítulos, buscou-se conhecer o senso co- mum teórico dos
juristas acerca do abuso do direito, saber como a doutrina e ajurisprudência, na base
do caso concreto, constroem esse conceito operacional visando à solução dos
conflitos. A elaboração dogmática não se resume a um sistema de conceitos, a uma
atividade heurística. Por trás dela estão representações do mundo, imagens que o
operador do direito tem de si próprio e do trabalho que produz. Por isso, mais
importante que perguntar sobre o conceito de abuso do direito é indagar acerca das
diversas concepções, dos diversos empregos que se faz dessa expressão, fórmula
sintética, aglutinadora de um sentido que ultrapassa a esfera das definições
universais, o plano da consciência, para colocar-se no campo da linguagem. Não se
persegue a natureza do conceito de um ponto de vista representativo, como
entidade existente fora da prática discursiva, buscando-se entender, isto sim, como
as partes utilizam essa categoria jurídica para alcançar determinados objetivos.
O discurso jurídico, como já reconhecia Michel Foucault, move-se muito mais no
campo da persuasão do que propriamente no terdo conhecimento. Às vezes, torna-
se difícil separar teoria e prática porque, tanto no campo da elaboração teórica
quanto na esfera da praxis, está-se diante de enunciados que não se Iimitam a
descrever, prescrevendo, outrossim. A análise lingüística do abuso
Página 172
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
do direito processiiale o uso desse conceito na prática jurídica implicam uma
distinção entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação. Não interessa
investigar o itinerário percorrido pela mente dos sujeitos processuais para saber
como eles elaboram a noção de abuso, nem tampouco vasculhar sua consciência
para saber de uma vontade orientada para a verdade ou para a mentira. Em lugar
disso, importa conhecer o significado construído pelas práticas sociais, pela situação
comunicativa concreta, vale dizer, a maneira pela qual os sujeitos processuais
argumentam para justificar uma determinada conduta.
As premissas da crítica ora enunciada serão desenvolvidas neste e nos dois tópicos
seguintes. O fio condutor da exposição, como já se fez sentir no cotejo das práticas
judiciais com os modelos de verdade, é a dicotomia ernpirismo-racionalismo, que diz
com a origem do conhecimento, e realismo-idealismo, que tem a ver com a essência
do conhecimento. Para os empiristas, a experiência é a origem única do
conhecimento, que só é válido quando verificado por fatos metodicamente
comprovados. De outra forma, os racionalistas entendem que a razão tem papel
preponderante no processo cognoscitivo. Os fatos, isoladamente, não oferecem
condições de certeza. Na concepção realista da razão e do conhecimento, o objeto
tem prioridade sobre o sujeito, ao passo que na concepção idealista, a prioridade é
do sujeito, ou seja, do pensamento sobre o objeto.
A discussão acerca do significado surge mais propriamente com Platão, muito
embora o tema não fosse novo. Dele trataram os sofistas,
Início da nota de rodapé
(1)Ajustiflcação é questão de ordem lógica e é feita por meio de um argu- mento, no
qual o enunciado, que deve serjustificado, figura como con- clusão. A descoberta do
enunciado, em contraste, é um processo psi- cológico que Ieva à sua concepção,
defesa e aceitação (Wesley Salmon, Lógica, 6. ed., Rio de Janeiro, Zahar, p. 25). No
mesmo sentido, Irving Marmer Copi (lntrodução à Lógica, 2. ed., São Paulo, Mestre
Jou, 1 978, p. 20 e 2 1 ). A respeito dessa distinção no campo do direito, ver
Recaséns Siches, Tratado General de Filosofia del Dei•echo, 2. ed., México, Edi-
torial Porrúa, S.A., 1 96 1, p. 385 e 387, e Manuel Atienza, As razões do direito, São
Paulo, Landy, 2000, p. 22-26, 50-52, 84, 177 e 213.
Fim da nota de rodapé
Página 173
A TEORIA DO SIGNIFICADO
além de Heráclito, Demócrito e Antístenes. Segundo os comentaristas, o que mais
impressiona em Crátio, obra na qual Platão se dedicou ao exame das origens da
linguagem, é a veia artística do filósofo ateniense, a sua dialética impecável, que
bem se mostra no colóquio entre Crátilo, Hermógenes e Sócrates. A conversa entre
eles serve, como sempre, de pretexto para que Platão possa exercitar seu rcfinado
espírito de investigação. Trata-se de um diálogo da alma consigo mesma. No lugar
de lançar, ex cathedra, princípios e doutrinas, a forma dialogada permite-lhe
despertar as idéias que dor- mem no fundo da alma.2 Sócrates é quem dá o tom da
conversa. Como sucede nos outros diálogos platônicos, é ele quem conduz o
assunto, ouvindo com parcimônia, mas sempre interferindo, quando necessário
reconduzir os polemistas às questões que realmente importam.
Crátilo considera que os nomes são exata representação dos objetos, estabelecidos
em conformidade com a natureza das coisas, ao passo que Hermógenes, fiel
discípulo de Sócrates, sustenta que a linguagem é resultado de uma convenção.
Platão, na palavra de Sócrates, inicia fazendo uma defesa da tese do realismo.
Chega ao ponto de afirmar que as letras e sílabas incorporarn a forma de cada
objeto, muito embora reconheça a influência do tempo e do uso na alteração dessas
formas. Depois, faz cair sobre a tese realista todo o peso de sua argumentação,
passando à defesa do nominalismo. O nome e o objeto nomeado são coisas
distintas. Sendo o nome uma
Início da nota de rodapé
(2) A propósito, ver o prefácio de Dias Palmeira à tradução portuguesa da obra de
Platão (Crátilo — diálogo sobre (ijusteza dos nomes, 2. ed., Coleção de Clássicos
Sá da Costa, Lisboa, Livraria Sá da Costa Edito- ra, 1994, p. 70, 71, 83, 87 e 104).
Nele, o teólogo e filósofo português esclarece a interessante relação entre a
maiêutica, forma da qual primeiramente se utilizou Sócrates, e o idealismo platônico,
que tem na teoria da reminiscência, na tese da transmigração das almas, seu
postulado in- dispensável (idem, p. 54, 55 e 57). Segundo registro de Aristóteles,
Platão fora discípulo de Crátilo, antes de conhecer Sócrates (Aristóteles, Obras,
Metafísica, Livro 1, Cap. 6, 986b/1 987b, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1967, p.
919). Anota Francisco de Paula Samaranch, responsável pela tradução das obras de
Aristóteles diretamente do grego para a Iíngua espanhola, que Crátilo, por sua vez,
foi um dos discípulos de Heráclito e um dos primeiros mestres de Platão (idein,
ibidem).
Fim da nota de rodapé
Página 174
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
imitação do objeto, há possibilidade de o homem se enganar, atri- buindo a um
objeto uma imagem que não lhe convém, vale dizer, um nome inexato, falso. Assim,
o nome não passa de uma imagem e como tal não pode ser uma reprodução exata
do objeto. Segue-se daí que não podemos prescindir das convenções lingüísticas.3
Segundo interpretação de Dias Palmeira, que traduziu o Crátílo para a Iíngua
portuguesa, é difícil saber até que ponto Platão expõe sua firme convicção acerca da
origem da linguagem, ou até que ponto exercita sua veia humorística, presente
sobretudo nas referências irônicas à conformação dos nomes às coisas, a propósito
das quais acumula as mais engenhosas e absurdas explicações.4 De qualquer
forma, o estudo lingüístico desenvolvido por Platão guarda a marca de seu
idealismo, ou também chamado realismo, variações que podem confundir, se não se
atentar para o fato de que, na concepção platônica, existe um nome ideal, próprio,
natural de cada coisa. A justeza do nome tem em conta, portanto, a coisa em si,
como exis- tente no mundo das idéias, na morada da razão, composta de formas
eternas e imutáveis, e não o fenômeno da natureza, pertencen- te ao mundo dos
sentidos, que está em contínua mudança e que, por isso, é incognoscível.5 Neste
ponto, pode-se dizer que Crátilo é
Início da nota de rodapé
(3) Platão, Crátilo — diálogo sobre ajusteza dos nomes, 2. ed., Coleção de Clássicos
Sá da Costa, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1994, p. 18-80, l 12-154.
(4) Dias Palmeira, Prefácio a Crátilo — diálogo sobre ajusteza dos nomes, 2. ed,
Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1994, p. 107. Estas explicações ba- seiam-se na
correspondência entre a estrutura gramatical e a estrutura ontológica, donde resulta
que a construção da Iíngua não é arbitrária (Manfredo Araújo de Oliveira, Reviravolta
lingüístico-pragmática na filosofia contelnporânea, Coleção Filosofia, São Paulo,
Loyola, 1996, p. 20).
(5) A propósito, v. Platão, A República, Livro VII, S.R, Atenas, 1 958, espe- cialmente
p. 245-252, e Livro X, especialmente p. 386-394. Esta interpretação, segundo Dias
Palmeira (op. cit., p. 26, nota 10), vem ao en- contro de uma passagem do Hipias
Maior onde se lê: Responda-me, Sócrates: todas as coisas que tu chamas belas
seriam elas tais, se não existisse o belo em si? De fato, há um idealismo
gnoseológico (moderno) e um idealismo ontológico (transcendente). A teoria das
idéias
Fim da nota de rodapé
Página 175
A TEORIA DO SIGNIFICADO
percursor de Parmênides.6 Entrementes, como dito há pouco, Platão não prescinde
da importância das convenções, no que se afasta da pretensão a um isomorfismo
entre linguagem e ser, entre estrutura gramatical e estrutura ontológica.7
A reflexão lingüística em Arístóteles não pode ser dissociada do profundo desprezo
que nutria pelos sofistas, cujos paradoxos — segundo ele — estavam fundados
precisamente na confusão estabelecida entre linguagem e objeto. E certo que
Platão, no Górgias, também critica a retórica sofística, pondo a descoberto sua
incon- sistência e aparência inofensiva.8 Porém, a compreensão da função
designativa e da natureza instrumental da linguagem, que emerge da obra de
Platão, coloca as críticas do filósofo em bases diferentes daquelas que orientam o
pensamento de Aristóteles. O acesso ao mundo das idéias, na concepção platônica,
dá-se independentemente da linguagem, ou seja, ser e linguagem são coisas
distintas. Para Aristóteles, em que pese a distinção, certo é que o homem não tem
acesso imediato ao ser, que é sempre mediado pela linguagem. Nesse passo, os
estudiosos reconhecem uma certa ontologia. Isto porque, conquanto Aristóteles
sustente que a linguagem não é a manifesta- ção do real, mas apenas um símbolo,
que não toma o lugar da coisa, também admite que os estados da alma, mediadores
da linguagem e do ser, têm correspondência com o real. A palavra é símbolo — e
não signo — exatamente porque a convenção em torno dela é doadora
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
de Platão implica o reconhecimento de que a prévia existência das idéias é que
condiciona a possibilidade de ser e conhecer no mundo empírico. Na perspectiva do
idealismo moderno, de outra forma, o homem se eleva ao plano das idéias a partir
de processos de conhecimento. Em Platão, o idealismo reduz o real ao ideal, o ser à
idéia. As idéias passam a ser realidades últimas (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1
1. ed., 1 986, p. 1 1 9). No mesmo sentido, ver Alaôr Caffé Alves, Lógica —
pensamen- toformal e argumentação — elementos para o discurso jurídico, São
Paulo, Edipro, 2000, p. 53 e 54.
(6) Dias Palmeira, op. cit., p. 109.
(7) Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 21
(8) Platão, Górgias, o de la retórica, 457b, in Platão, Obras, Madrid, Aguilar S.A.,
Ediciones, 1969, p. 364.
Fim da nota de rodapé
Página 176
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
de sentido. Todavia, há nas proposições, compostas de nomes, uma referência à
existência daquilo que está sendo nominado, às coisas em si mesmas.9 Não por
outro motivo, Aristóteles faz uma distinção entre sentença e proposição. Na primeira,
importa a convenção em torno do significado das palavras, ao passo que nas
proposições há implícito o juízo de verdade e de falsidade. A proposição representa
o juízo. Uma súplica, por exemplo, é uma sentença ou expressão, que não implica o
juízo verdadeiro/falso. Por isso, está no campo da retórica ou da poética e não no
campo da lógica.10
A maneira por que os juristas elaboram o conceito de abuso do direito processual
revela a marca impressiva da concepção on- tológica do significado, dessa visão das
essências, que está em Platão e Aristóteles, ainda que de prismas diferentes. A
expressão abuso do direito processual é o conteúdo de múltiplas formas de
consciência que têm em comum a mesma essência. Estabelece-se uma relação
unívoca entre palavra e coisa, de forma tal que os sujeitos processuais assumem
uma participação passiva no pro- cesso de elaboração do significado. Quando a
dogmática recorre a conceitos dicotômicos a exemplo do lícito e ilícito, jurídico e
antijurídico, obrigatório e proibido, supõe a existência de cate- gorias universais,
representadas por estes conceitos, que são a expressão mesma da realidade
jurídica. Por isso, o paradoxo de Planiol. Mas como Mario Rotondi já advertia no
primeiro capítu- lo (seção 1.4), é importante entender que a discussão acerca do
abuso do direito interfere com o problema dos limites da ordem jurídica, ou seja,
importa considerar o significado jurídico do es- paço deixado entre aquilo que é
obrigatório e aquilo que é proibi- do. A conduta descrita como obrigatória ou proibida
não tem um significado unívoco. Existe cntre essas condutas um espaço va- zio que
há de ser preenchido com um conteúdo significativo. A
Início da nota de rodapé
(9) Aristóteies, De la expresión o interpretación, Cap. 4, 16a/17a, in Aristóteles,
Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1 967, p. 256 e 257. A análise crítica, como
se seguiu, é feita pòr Manfrerdo Araójo de Oliveira (op. cit., p. 25-34).
(10) Aristóteles, De Ia expresión o interpretación, Cap. 4, 16a117a, in Aristóteies, op.
cit., p. 257 e 258.
Fim da nota de rodapé
Página 177
A TEORIA DO SIGNIFICADO
pluralidade de sentidos do texto legal remete, assim, ao campo das valorações, pelo
que se tem de reconhecer que as proposições não são sempre descritivas. O direito
está, assim, no campo de uma razão prática e não de uma razão teórica.
Mas o jurista segue propondo classificações que supostamente refletem a natureza
intrínseca das coisas. Tanto na argumentação dogmática como na argumentação
zetética, a discussão acerca do abuso do direito reflete uma disputa em torno da
verdadeira classificação, uma falácia metafísica que vem alimentando o pensamen-
to jurídico desde a chamada elaboração científica do direito, em contraste com a
jurisprudentia dos romanos. Daí porque se diz que a questão do abuso, como se
coloca hoje para os juristas, é legado do racionalismojurídico, da pretensão de
desenvolver o direito como um sistema cerrado e autárquico, que se esboroa ao
menor contato com a realidade social. Foi precisamente essa consciência dos limites
entre a norma e a realidade, entre o racional e o real, que inau- gurou a reflexão
problematizadora em torno da possibilidade de uma conduta abusiva, trazendo de
volta a ciência prática dos romanos, isto a partir da segunda metade do século xx.
Aristóteles, é certo, desenvolve a questão da verdade no terreno da chamada lógica
apodítica, onde surge a clássica distinção entre juízos universais e juízos
particulares, juízos afirmativos e juízos negativos, bem como o quadro de oposição e
as regras de distribuição. Trata-se não só de categorias lógicas, mas também
ontológicas, pois se mostram como condição da possibilidade do conhecimento.11
Mas a par da distinção que Aristóteles estabelece entre juízos apodíticos e juízos
dialéticos, entre episteme, conhecimento racional, e doxa, simples opinião,
aparência, importa chamar a aten- ção para as relações que o filósofo estabelece
entre a Primeira Analítica e os Tópicos. A crítica aos sofistas — quejá se vê em
Platão e lsócrates — consistia no fato de se utilizarem da erística, vale dizer, de
raciocínios especiosos. Para Aristóteles, contudo, a argúcia dos
Início da nota de rodapé
(11) Aristóteles, De la expresión o interpretación, Caps. 5-14, 17a/24b, e Analítica
Primera, 24b/70b, inAristóteles, Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1967, p. 258-
349.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
sofistas, no sentido pejorativo, consiste ern desenvolver a retórica trapaceando as
regras formais do silogismo. Busca o filósofo a aproximação entre doxa e ontos, com
o que a retórica passa ser vista como técnica. O orador não precisa
necessariamente recorrer a premissas verdadeiras, contanto que respeite as regras
internas do silogismo, expostas na Primeira Analítica. O importante é, pois, a
verossimilhança, o que permite vislumbrar a utilidade da retórica, principalmente no
campo pedagógico e no terreno das controvérsias, no qual se inserem as disputas
judiciais e a próprias disputas filosóficas.12 Com isto, Aristóteles reabilita a retórica,
colocando-a no mesrno plano da dialética, tão estimada por Platão.13
Estas reflexões preparam o terreno para uma gradativa superação da dicotomia
realismo-nominalismo, que começa a se delinear quando o pensamento se desloca
da esfera de contemplação do ser verdadeiro, em que se movem os gregos, para o
campo da ação social. Com isto, a concepção mentalista, própria das teorias repre-
sentativas do significado, cede espaço para um sentido intersubjetivo da linguagem,
que surge das práticas sociais, e não antes delas, como se fosse lícito supor a
existência de uma força misteriosa por trás das palavras. O redescobrimento da
retórica aristotélica foi em grande parte responsável por esta alteração dos rumos da
filosofia da linguagem. A filosofia e a teologia medievais sempre se guiaram pelas
doutrinas do realismo e do nominalismo, como é possível ver nas obras de Roger
Bacon, Duns Scotus e Willian Ockham. A marca impressiva dessa díade também
pode ser reconhecida na herme- nêutica cristã medieval, fruto do interesse dos
pensadores daquela
Início da nota de rodapé
(12) Aristóteles, Retórica, Livro I, Caps. 1, 2, 5 e 15, 1354a11358a; 1359b/ 1362a;
1375a11377b, e Tópicos, Livro I, Cap. 2, e LivroVIII, Caps 5- 1 1, 1 OOb, 1 Olb; 1
59a11 61 a, inAristóteles, Obras, Madrid,Aguillar S.A., Ediciones, 1967, p. 1 16-122,
124-127, 419, 420, 516-523 e 146-150. A propósito, v. Olivier Reboul, Introdução à
retórica, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 21-41, Sergio Paulo Rouanet,A razão
cativa—As ilusões da consciência; de Platão,a Freud, 3. ed., São Paulo, Brasiliense,
p. 37 e 38, e Chaïm Perelman, Etica e Direito, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p.
469-473.
(13) Olivier Reboul, op. cit., p. 34 e 35.
Fim da nota de rodapé
Página 179
A TEORIA DO SIGNIFICADO
época na apreensão do sentido do texto bíblico.14 Entretanto, antes de tratar desta
mudança de orientação, convém o exame de outras concepções representativas
acerca do significado das palavras.
3.2 A teoria representativa
A filosofia grega estava muito mais preocupada com o objeto do que com o sujeito.
Para Platão, que desenvolve uma estrutura semiótica triádica (nome-idéia-coisa), o
significado das palavras surge a partir do referente, da coisa a que as palavras se
referem, por elas nomeada. E o que também se vê na teoria dos signos dos epicu-
ristas, que é, entretanto, diádica (signo-objeto), e mais, materialista.15 Convém
esclarecer essa diferença. Enquanto o real, em Platão, são as idéias imutáveis, as
essências, os seres exemplares, o objeto, na elaboração dos epicuristas, é a
entidade física, palpável, da qual emanam as imagens captadas pelo receptor. De
qualquer forma, tanto em uma como em outra concepção, o significado surge a partir
da coisa, do ser. Isto é o que se chama de uma teoria referencial. Com os
Início da nota de rodapé
(14) Note-se que a teoria dos signos, no período medieval, era parte da Iógica, como
se pode colher na obra de Leonino de Pádua, Logica estdoctrina principaliter de
signis. Data daquela época a distinção entre conotação e denotação, examinada no
segundo capítulo (seção 2.3), mais tar- de retomada por Stuart Mill. Estudando a
bíblia, os semioticistas escoiásticos adotaram um modelo exegético depois aplicado
a outros campos do conhecimento, inclusive na Renascença, que reabilitou práticas
até então vistas como magia ou bruxaria, a exemplo da astrologia e da alquimia. E
conhecida, também nesse período renascentista, a doutrina das assinaturas,
estudada pelo médico e sábio suiço Paracelsus, que reconheceu a existência de
signos naturais, deixados por Deus, pelo homem, por um principio interior do
desenvolvimento, chama- do archaeus e pelas estrelas ou planetas (astra). Estes
signos, deixados como traços indexicais no mundo, eram chamadas assinaturas e
podiam ser descobertos na face humana, no corpo humano, nas Iinhas visíveis da
superfície da planta etc. Daí a quiromancia, a astrologia, que têm em comum essa
visão pansemiótica (Winfried Nöth, Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce,
Annablume, 1995, Coleção E-3, São Paulo, p. 36-41).
(15) Winfried Nöth, op. cit., p. 32 e 33.
Fim da nota de rodapé
Página 180
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
sofistas, a tônica desloca-se do objeto para o sujeito, perspectiva que tem
continuidade em Descartes e depois em Kant. Para Protágoras, o homem é a
medida de todas as coisas. A verdade, o certo e o errado, o bem e o mal, sempre
têm de ser avaliados sob o ponto de vista do homem. Entre os estóicos, que
desenvolviam um modelo triádico do signo (signo-significado-objeto), o papel
daquele que reconhece o signo é fundamental. E esta recepção somente se mostra
possível porque o homem tem capacidade de antecipar o enten- dimento da coisa.
Na mente humanajá existem conceitos que per- mitem elaborar previamente a
imagem das coisas.16 Isto é o que se chama de uma teoria idealista, que identifica o
significado da pala- vra com a idéia que o signo evoca, com o conceito, que está no
cam- po do pensamento.
Filósofos tais como Santo Agostinho e Ludwig Wittgenstein (este na primeira fase,
correspondente ao seu Tratactus), trabalham toda a questão linguística do ponto de
vista referencial, a exemplo dos gregos. Outros, dentre eles John Locke,
desenvolvem uma visão idealista, acentuando o papel da interferência mental no
processo de seiniose, vale dizer, no processo significativo. Uns e outros incluem-se
dentro de uma perspectiva que se convencionou chamar de concepção
representativa (o signo representa a coisa; o signo representa o pensamento).17
Além da teoria referencial e da teo- ria idealista, a concepção representativa da
linguagem também inclui uma teoria comportamental, que ficou conhecida como
behaviorisrno. Sob este enfoque, o significado das palavras tem origem naquilo que
fazem os seres humanos quando delas se utilizam. Existe aqui uma identificação do
significado com as situações em que as palavras são empregadas ou com o tipo de
resposta que as palavras estimulam. Há mesmo quem sugira a substituição do ter-
mo linguagem por coinportamento verbal. Skinner sustenta que saber o que ocorre
quando um homem fala ou responde é questão que deve ser tratada no campo da
psicologia, ciência experimental
Início da nota de rodapé
(16) Ide,n, p. 31-33.
(17) William P. Alston, Filosofía del Lenguaje, Madrid, Alianza Editorial, S. A., 1974,
p. 38-45.
Fim da nota de rodapé
Página 181
A TEORIA DO SIGNIFICADO
do comportamento.18 Na linha da tradição de J.B. Watson, que inaugurou a escola
behaviorista, Skinner procura minimizar a importância dos mecanismos mentais na
formação do significado das palavras. O tema da psicologia passa a ser o
comportamento ou as atividades do ser humano e não a consciência, conceito que
substituiu a noção de alma, como existente entre os gregos. E isto porque a
consciência não é algo que se possa observar, experimentar. Ao lado da crítica à
teoria idealista, Skinner também faz objeções à tese referencialista. Esse esquema
semântico — diz ele — não permite captar propriedades importantes do objeto, a
exemplo das dimensões da coisa. Ademais, não oferece a possibilidade de
surpreender a intenção dofalante.19
Diante das objeções de Skinner — e antes que se possa empreender uma análise
crítica da concepção representativa — é importante fazer um reconhecimento do
terreno filosófico em que se deu a pas- sagem de uma reflexão ontológica, como
desenvolvida por Platão e Aristóteles, para uma filosofia da consciência, que se
inicia com Descartes, prosseguindo depois com Husserl. Para Descartes, as coisas
só existem pela intermediação do pensamento. Sendo assim, o objeto mesmo se
torna intangível. Por isso, o filósofo racionalista passa a duvidar de tudo. Mas não se
trata, como diz no Discurso sobre o Método, de duvidar por duvidar, à moda dos
céticos, e sim de uma dúvida metódica, que afasta a areia movediça e a terra, para
desco- brir a rocha ou a argila, vale dizer, para adquirir a certeza.20 Nessa mesma
obra, Descartes lança algumas regras para a direção do es- pfrito, retiradas de seu
Tratado sobre o universo, com o que pretendia fundar as bases para uma ciência
universal.21
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(18) Burrhus Frederic Skinner, O comportamento verbal, São Paulo, Cultrix- Edusp,
1978, p. 15-20.
(19) Idern, p. 20-24.
(20) René Descartes, Discurso sobre o método, São Paulo, Hemus Editora Ltda.,
Quarta Parte, p. 58.
(21) Idem, Primeira e Terceira Partes, p. 13-25; 56-61; no mesmo sentido, René
Descartes, Meditações, Meditação Quarta, do Verdadeiro e do Falso, § 2.°, in
Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983 (Coleção Os Pensadores), p. 1 15.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Do ponto de vista semiótico, ao postular a prioridade do intelecto sobre as
experiências, Descartes acabou alijando o aspecto referencial da teoria dos signos.
Dentro de sua obsessiva busca pela verdade, reconhece que apenas o ato de
pensar, a capacidade de duvidar, é a certeza da própria existência. Eis aqui o cogito,
funda- do na única certeza fundamental, ponto de partida para o reexame de tudo
aquilo de que duvidara.22 Não há negar que o racionalismo de Descartes, ao rejeitar
o conhecimento fundado nos sentidos, descrevendo o processo semiótico
exclusivamente na base de catego- rias mentais, acaba conduzindo a uma
concepção idealista, que tem como pressuposto, precisamente, o papel
preponderante da cons- ciência no processo de conhecimento. O dualismo
cartesiano (de um lado, a mente, o sujeito que observa o mundo, e de outro o mun-
do observado, os objetos materiais) Ieva também ao solipsismo, presente nas
formas extremadas do idealismo. Assim, se é certo que o sujeito não pode conhecer
os outros homens a não ser pelas próprias idéias, é ele, então, o único a existir. O
problema da certeza, em Descartes, tem também repercussões na esfera moral. É
que inteligência e vontade andam a par, em uma reflexão que se inaugura, na
Antiguidade, de uma perspectiva ética e que em Descartes tem conseqüências
também no processo cognitivo.23
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(22) René Descartes, Meditações, Meditação Quarta, Do Verdadeiro e do Falso, § 1
1, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983 (Coleção Os Pensadores), p.
1 1 9.
(23) A vontadejá fora objeto de discussão entre os gregos, mas sempre submetida à
razão, como faculdade superior da alma. E o que se vê em Platão (Fedro, o de Ia
belleza, XXXIV, in Platão, Obras, Madrid, Aguilar S. A., Ediciones, 1969, p. 868 e
869) e em Aristóteles (Etica a Nicômaco, Livro VI, Cap. 1, 1 1 38b1 1 1 39a, in
Aristóteles, Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1 967, p. 1 .240). Também os
estóicos radicalizaram a concepção de uma razão hegemônica, encarregada de
suprimir ou controlar os impuisos. No estoicismo, a recusa das paixões adquire um
sen- tido diretamente cognitivo, abrindo caminho para o conhecimento ver- dadeiro.
Com Santo Agostinho, a vontade passa a desempenhar papel central no processo
cognitivo. A percepção só se torna consciente por um ato de vontade. A esta
concepção voluntarista opõe-se São Tomás de Aquino, para quem é a inteligência
que indica à vontade os bens que
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Página 183
A TEORIA DO SIGNIFICADO
Embora Descartes seja a negação da Escolástica, decidido que se encontrava a
conhecer os fundamentos da razão, certo é que Deus estava presente em toda a
sua filosofia, o que tem implicações na sua maneira de conceber a relação entre
conhecimento e vontade, ponto em que se cruzam o saber e a moral. A inteligência,
para Descartes, não alcança tudo, é finita, ao passo que a vontade, esta sim, é infini-
ta. Os erros são precisamente o resultado do descompasso entre o conhecimento e
a vontade, entre o poder de conhecer e o poder de escolher. O poder da vontade,
que o homem recebe de Deus, não é em si mesmo a causa dos erros, nem
tampouco o poder do entendi- mento, que é conferido à criatura pelo próprio Criador.
Porém, como a vontade é muito mais ampla e extensa que o entendimento, o
homem não a contém em seus limites, estendendo-a também às coisas que não
entende. Como a vontade é livre, e mais, como se põe a atuar sobre coisas que não
entende, perde-se muito facilmente, escolhendo o mal pelo bem, ou o falso pelo
verdadeiro. Isto faz com que o homem se engane e peque.24
Na concepção de Descartes, vontade e entendimento são duas espécies de
pensamento. Sentir, imaginar e mesmo conceber coisas,
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
devem ser buscados, vale dizer, a vontade se move em função dos fins propostos
pela razão (Sergio Paulo Rouanet, A razão cativa, 3. ed., São Paulo, Brasiliense, p.
16-19).
(24) René Descrtes, Meditações, Meditação Quarta, Do verdadeiro e do Falso, § 9 e
10, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1 983 (Coleção Os Pensadores),
p. 1 1 7- 1 1 9; no mesmo sentido, René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa,
Edições 70, 1 997 (Coleção Textos Filosóficos, ed. 42) Primeira Parte, Artigo 35, p.
39. Nas reflexões cartesianas, Deus acaba sendo inocentado dos erros que suas
criaturas cometem (René Descartes, Meditações, Meditação Quarta, Do Verdadejro
e do Falso, § 1 1 a 1 3, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983, Coleção
Os Pensadores, p. 1 19-121), porquanto não sendo Deus enganador, a faculdade de
conhecer que nos deu não pode- ria falhar, nem mesmo a faculdade de querer,
desde que não a amplie- mos além do que conhecemos... A razão dita-nos,
naturalmente, que nada devemos julgar, a não ser que, antes de julgar, conheçamos
o objeto distintamente (René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa, Edições 70,
1 997, Coleção Textos Filosóficos, ed. 42, Primeira Parte, Artigos 43 e 44, p. 42).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
são formas diferentes de apreender enquanto desejar, ter aversão, duvidar, são
formas diferentes de querer Parajulgar é preciso aplicar a vontade e o livre arbftrio.
Aliás, é a existência de uma vontade livre que torna o homem digno de louvor ou de
censura.25 As elaborações de Eduardo Couture, examinadas no segundo capftulo
(seção 2.4) são um exemplo dessa influência idealista, dessa implicação entre
inteligência e vontade que se desenvolve ainda no plano de umafilosofia da
consciência. Na visão jusnaturalista de Couture, a vontade também está submetida
à razão. A parte tem de dizer ao juiz o que sabe para depois fazer valer aquilo que
quer. A razão está orientada para o conhecimento dos fatos enquanto a vontade
está orientada para os valores. Nisto consiste a justiça inspirada pela verdade. Esta
relação entre conhecimento e vontade tem duas outras perspectivas diversas. Uma
delas, que surge na elaboração do positivismojurídico, é inspirada no criticismo
kantiano, como será visto no próximo tópico, e a outra, é fruto das incursões de
Perelman no campo da Tópica, da Retórica e das Refutações sofísticas de
Aristóteles, como também será visto mais adiante.
Na linha que descende diretamente das reflexões cartesianas, importa considerar o
idealismo de John Locke, que é, a bem dizer, um realismo representativo.26 O
filósofo inglês emprega a palavra idéia no sentido em que Descartes utiliza a
expressão cogitatio. No Livro Primeiro de seu Ensaio sobre o entendimento humano,
começa por negar a existência de idéias inatas.27 No Livro Segundo,
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(25) René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 1 997 (Coleção
Textos Filosóficos, ed. 42), Primeira Parte, Artigos 32, 34 e 37, p.39e40.
(26) A propósito, v. John Hospers, lntroducción al análisisfilosófico, 2. ed., Madrid,
Alianza Editorial, 1984, p. 603-618. Contrariamente ao que sustentava o inatismo
cartesiano (as idéias inatas, que não advêm da experiência, são inteiramente
racionais, colocadas em nosso espírito por Deus, que não nos engana), o empirismo
advoga a tese de que a razão, a verdade e as idéias racionais são adquiridas pelo
homem através da experiência.
(27) John Locke, Ensayo sobre eI entendimiento humano, Bogotá, Fondo de Cultura
Económica, Sección de Obras de Filosofia, p.17-79.
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
sustenta que a alma passa a ter idéias a partir da percepção.28 Neste aspecto —
segundo Manuel Garcia Morente — a teoria do conhecimento em Locke coloca-se
sob o signo da psicologia.29 Ainda sob este aspecto, também é possível reconhecer
no idealismo do filósofo inglês uma base empírica. Isto porque, segundo exposição
feita especialmente nos Capítulos 1 a IX do Livro Segundo, ao lado das qualidades
secundárias, que não são produzidas pela coisa, mas que têm capacidade de
provocar experiências sensoriais (idéias, no sentido que o filósofo passa a
empregar), Locke reconhece a existência de qualidades primárias, inerentes às
coisas mesmas.30 Nesta medida, só é possível ter conhecimento direto das
sensações e nunca das coisas mesmas. Delas só temos cópias, que são
modificações subjetivas do espírito, operceber-se a consciência a si mesma, na feliz
expressão de Morente.31
No campo da linguagem, John Locke desenvolve uma teoria da designação, exposta
nos Capítulos I e 11 do Livro Terceiro de seu Ensaio sobre o entendiinento, na qual
se afasta dos pressupostos cartesianos. É que Descartes, ao postular a prioridade
do intelecto sobre a experiência, acabou por desconsiderar o aspecto referencial.
Para Locke, existem duas classes de signos, vale dizer, as idéias e as palavras. As
idéias representam as coisas na mente daquele que contempla, ao passo que as
palavras nada mais representam senão as idéias na mente de quem as emprega. As
palavras, assim, são signos das idéias do emissor, sinais sensíveis dessas idéias,
ao passo que as idéias do emissor são signos das coisas.32 A linguagem seria,
assim, simples instrumento de idéias particulares, cuja existência independe da
palavra, mas que só podem ser manifestadas através dela. Longe de uma conexão
natural entre sons e idéias, Locke sustenta que a linguagem é arbitrária, ou seja, o
uso prolongado de uma
Início da nota de rodapé
(28) Idem, p. 83-99.
(29) Manuel Garcia Morente, op. cit, p. 1 82. No mesmo sentido, Miguei Reale, op.
cit., p. 120 e 121.
(30) John Locke, op. cit., p. 83-128.
(31) Manuel Garcia Morente, op. cit., p. 183.
(32) John Locke, op. cit., Livro Terceiro, Cap. ¡ e Cap. 11, § 2-6, p. 39 1 -396.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
palavra, numa determinada comunidade, passa a provocar nos ho- mens certas
idéias de maneira tão pronta e constante, que eles se põem a supor a existência de
um vínculo natural.33
A semiótica moderna, entretanto, faz restrições a esse ponto de vista. A separação
entre idéias e palavras, como se aquelas pudessem existir independentemente
destas, desconsidera o fato de que a significação não vem apenas da percepção
das coisas. Ela é, sim, o resultado da conjugação entre significante (palavra) e
signficado (idéia).34 Na Semiologia de Sausurre, por exemplo, a palavra arbitrário
não significa que o plano de expressão dependa da livre escolha do falante, visto
que nenhum indivíduo pode mudar o signo estabelecido pelo seu grupo lingüístico.
Arbitrário quer dizer imotivado, já que o significante não guarda nenhum vínculo
natural
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(33) John Locke, Ensayo sobre el entendimiento humano, Bogotá, Fondo de Cultura
Económica, 1994, Livro Terceiro, Cap. 11, § 8, p. 397 e 398.
(34) A crítica é feita por Winfried Nöth (op. cit., p. 47), na base da semiótica de
Sausurre. A semiologia de Sausurre vem exposta no seu Curso de Linguística Geral,
obra póstuma que reúne apontamentos das aulas que ministrou na Universidade de
Genebra, como compilados por alguns de seus discípulos. Para ele, a Iíngua é um
sistema de signos que, por sua vez, exprimem idéias. A relação entre significante
(palavra) e significado (idéia) é estabeiecida com base em um sistema de regras
(língua). O signo é, assim, uma coisa dupla, constituída de dois termos. Todavia, a
idéia que o signo exprime não tem um sentido metafísico, como aquele que se pode
encontrar em Platão. Ela não é anterior à palavra. O signo é um artifício
comunicativo, do qual se valem dois seres humanos, dentro de uma determinada
sociedade (Ferdinand de Saussure, Curso de Lingüística Geral, São Paulo, Editora
Cultrix, s/d, Introdução, Cap. 3; Primeira parte, Cap. 1, p. 1 5-25 e 79-84). Para
Umberto Eco, Saussurrejamais definiu claramente o significado, deixando-o a meio
caminho entre uma imagem mental, um conceito e uma realidade psicológica; em
compensação, sublinhou energicamente o fato de o significado ser algo relacionado
à atividade mental de indivíduos no seio da sociedade. Contudo, segundo
Saussurre, o signo exprime idéias e, mesmo aceitando-se que ele não estava
pensando numa acepção platônica do termo idéia, persiste o fato de que suas idéias
eram eventos mentais em uma mente humana (Umberto Eco, Tratado Geral de
Semiótica, São Paulo,Editora Perspectiva, 1976, ColeçãoEstudo, p. 10).
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
com o significado, nem mesmo na Iinguagem onomatopéica.35 A dimensão social
do uso da linguagem aparece, em Sausurre, na referência ao símbolo dajustiça. A
balança não poderia ser substituí- da por um objeto qualquer, um carro, por
exemplo. Daí porque o símbolo nunca é completamente aleatório.36 A mais disto,
conquanto Locke houvesse acentuado o aspecto referencial em sua teoria do
conhecimento, certo é que ele não cuidou de diferenciar com muita clareza a
experiência sensual e a experiência racionaL Não se sabe se os conceitos são
resultado de processos lógicos ou percebidos pela intuição. E difícil dizer o que se
tem na mente ao pronunciar determinada expressão. Não há como conceber uma
idéia da palavra de ou do, independente da palavra mesma, das funções gra-
maticais que ela desempenha. Ao sustentar que o aparecimento da idéia de abuso
do direito dá lugar à emissão da expressão abuso do direito (e vice-versa) o
idealismo empirista de Locke não consegue explicar a hipótese de a expressão estar
sendo enunciada fora do contexto usual. Neste caso, ficaria difícil saber a que idéia
corres- ponderia a expressão.
Berkeley e Leibniz foram dois críticos do Ensaio sobre o en- tendimento humano.
Todavia, o idealismo de suas teorias também não permitiu ultrapassar as
dificuldades acima apontadas. Leibniz sustenta que Deus não só inspirou o desejo
dos homens de relacio- nar-se como também lhes deu o dom da palavra, faculdade
que os une, instrumento do qual se servem para representar e explicar as idéias.
Fruto dessa sociabilidade, a palavra foi formada e aperfeiçoada progressivamente.
Há povos, contudo, a exemplo dos chineses, que variam suas palavras, em número
reduzido, através de tons e acentos. Por isso, um célebre matemático, Gólio,
acreditava que a língua dos chineses é artificial, ou seja, inventada pelo homem para
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(35) Saussure, op. cit., p. 81-84.
(36) Idem, p. 82. Ao sustentar que a escolha do significante tem condicionamentos
sociais, Saussurre afasta-se da concepção platônica, que se pode ver em Crátilo,
vale dizer, de um convencionalismo radical, fundado em uma petição de principio,
pois não se concebe como o homem poderia ter estabelecido convenções
lingüísticas sem antes conhecer a linguagem (William P. Alston, op. cit., p. 89).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
que as diversas nações daquele país pudessem comunicar-se. Enfim, na concepção
idealista de Leibniz, as palavras também são si- nais das idéias. Tanto quanto
Locke, ele acredita que o sentido não brota de um nexo natural, pois, fosse assim,
haveria uma única língua entre os homens. Trata-se de uma convenção arbitrária,
na expressão do filósofo alemão. Como sinais das idéias, as palavras não se
aplicam às coisas mesmas, que às vezes o homem nem co- nhece. Deus possui as
idéias das coisas antes de criar os objetos dessas idéias e nada impede que ele
possa comunicá-las aos seres dotados de inteligência. Aliás, não há nem sequer
demonstração de que os objetos dos sentidos estão fora de quem os percebe.37
Para Berkeley, não se pode falar na existência de um mundo físico independente
das idéias, na existência de coisas anteriores às experiências sensoriais, como
supunha Locke. Daí porque é in- sustentável a afirmação de que ao homem só é
dado perceber a cópia dos objetos, mas nunca os objetos reais. A tese de Locke traz
ínsito o germe da contradição, pois ao defender que é impossível conhecer o
mundo, está fazendo afirmações sobre ele. O que existe é uma série ordenada de
percepções (conhecida comofamília de ex- periências sensoriais), que permite ao
homem conhecer o objeto.
Início da nota de rodapé
(37) Wilhelm Leibniz Gottfried, Novos ensaios sobre o entendimento huina- no, Livro
111, As palavras, São Paulo, Abril Cultural (Coleção Os Pen- sadores), 1980, p. 2 1
l, 212, 215, 218, 222, 231, 235 e 236. Conforme anota Luiz João Baraúna, que
traduziu a obra para o português, Jorge Dalgarno, autor de Arte dos Sinais,
Característica Universal e Língua Filosófica (1661), e John Wilkins, que escreveu um
manual de corres- pondência codificada, intitulado Mercury (1641), ambos citados
por Leibniz, exerceram influência indiscutível sobre o seu projeto de uma língua
universal (Leibniz, op. cit., p2 1 5). Quanto à onomatopéia, Leibniz sustenta, na base
de diversos exemplos da língua alemã, do francês e do espanhol (os quais fazem
lembrar as elucubrações de Platão, em Crátilo), que haveria boas razões para supor
algo de natural na origem das palavras. Todavia, um estudo etimológico mais
aprofundado permitiria concluir — ainda segundo Leibniz — que devido a muitos
percalços e mudanças, as palavras, em sua maioria, estão profundamente alteradas
e se acham bem longe da sua pronúncia e da sua significação primor- diais (Leibniz,
op. cit., p. 215 a223).
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
As alucinações são experiências sensoriais desconectadas, soltas, não ordenadas,
razão pela qual as pessoas beliscam o próprio cor- po, na tentativa de saber se
estão acordadas. Neste aspecto, o mem- bro do tato, na expressão de Berkeley, é
fundamental para que se possa falar em experiência verídica. O espelho pode
enganar quanto à imagem que reflete, mas ao tocá-lo será possível saber que ali
não está a mesa inicialmente reconhecida na base do sentido visual. Enfim, para
essa forma de idealismo, a existência de um objeto não percebido é uma
contradição. Daí porque esse estpercipi.38 Berkeley admite a existência de uma
causa para as experiências sensoriais. É graças a Deus que as experiências
ocorrem de maneira ordenada e não caótica, a exemplo do que sucede nas
alucinações. A esta altu- ra, tem-se de indagar como podem os homens, limitados a
conhe- cer apenas as experiências sensoriais, atribuí-las a Deus. Vê-se que
Berkeley fundou sua teoria em urna entidade, que trata por espírito, distinta da
experiência. Não é difícil reconhecer aqui o solipsismo presente nas formas
extremas do idealismo, pois se é certo que nada existe senão no meu espírito, seria
eu o único a existir, já que não conheço os outros a não ser pelas minhas próprias
idéias.39
O idealismo ontológico de Berkeley, como desenvolvido nos Princípios do
conhecimento humano, implica, sob o ponto de vista da teoria da linguagem, uma
posição nominalista. Como as sensa- ções não existem a não ser na mente de quem
as percebe, tudo o que se dá no mundo interpretado como processo de semiose.
Em vez de estabelecer relações de causa e efeito, Berkeley vê apenas rela- ções
entre signos e coisas significadas. Com isto, todo o mundo natural é permeado de
signos, de forma tal que o barulho que se ouve na rua não é causado pelo ruído dos
automóveis, mas é apenas um signo dele.4° O empirismo radical do filósofo inglês
irnplica reco- nhecer que tudo aquilo que não possa ser conhecido através das
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(38) George Berkeley, Três Dkílogos entre Hilas e Filonous em oposição aos céticos
e ateus, in Berkeley, 3. ed., São Paulo, Abril Culural (Coleção Os Pensadores),
1984, p. 51-75.
(39) John Hospers, op. cit., p. 639-643, e Georges Politzer, op. cit., p. 44-54.
(40) Winfried Nöth, op. cit., p. 45 e 46.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
sensações é destituído de significado, o que leva a admitir que a expressão abuso
do direito, empregada pelos juristas no decorrer de vários séculos, como visto nos
capítulos anteriores, não tem nenhum sentido.
Nas suas Investigações acerca do entendimento humano, Hume persegue o firme
propósito de demonstrar a impossibilidade de conhecer as coisas. Não se trata
apenas de reduzir ao absurdo a teoria de seus predecessores, mas de demonstrar
que até mesmo o eu que experimenta as coisas, como concebido por Berkeley, é
um feixe de sensações. Igualmente, a existência de Deus, como inteligência
planejadora, é inferencial, indireta e vaga, porque em se tratando a existência de
uma questão de fato, só pode ser resolvida através da observação. Hume
desenvolve um procedimento metodológico fundado em dois princípios. O primeiro
deles diz que todas as idéias derivam, mediata ou imediatamente, de suas
impressões correspondentes. Assim é que a percepção surge no espfrito humano a
partir das impressões e das idéias, estas cópias daquelas. As idéias são pálidas
imagens das sensações, das paixões, das emoções, enfim, das impressões.41
Apenas no caso das percepções simples é que as idéias guardam profunda
semelhança com as impressões. As percepções simples não comportam divisões,
mas podem compor percepções complexas. As idéias simples são cópias
semelhantes das percepções simples; as idéias complexas, combinação de idéias
simples (a exemplo de montanha de ouro), nem sempre guardam tal semelhança
com as impressões correspondentes. Isto conduz a certas dificuldades, que acabam
colocando em dúvida a própria validade das inferências lógicas. Assim, se é certo
que todo efeito é distinto da causa, toma-se impossfvel localizar a impressão
originária da idéia de causalidade. Enfim, jamais se poderia ter idéia de uma coisa
que nunca se revelou aos sentidos.42
O empirismo solipsista de Hume recorre, todavia, a um segun- do princfpio, que
consiste na liberdade da imaginação de transpor
Início da nota de rodapé
(41) David Hume, Investigação acerca do entendimento humano, São Paulo,
Nacional e Edusp, 1 972 (Biblioteca Universitária, Série Primeira, Filosofia, 13), p. 15
e 16.
(42) Idern, ibidem.
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
e mudar stias ideias. Esta Iiberdade não é obra do acaso, mas expressão de
princípios universais que permitem uma sequência de ideias mais ou menos
ordenada (associação). Estes principios universais são a semelhança (um retrato
evoca a pessoa retratada), a contiguidade (à aproximação de sua casa, o homem
sente mais próximas as coisas que se relacionam com ela) e a causalidade (na base
da experiência, o homem desenvolve inferências).43 Decerto, nenhum objeto
presente imediatamente à memória e aos sentidos permite uma inferência causal,
uma idéia de conexão necessária entre eventos. Mas, ao observar a semelhança
entre certo número de casos, o homem experimenta um sentimento que leva o
espfrito a passar de um objeto àquele que usualmente o acompanha (transição de
catisa e efeito).44 Vê-se que Hume se orienta por um idealismo subjetivo, ao
transpor o problema da fundamentação da indução do plano do objeto para o plano
do sujeito. Sob o ponto de vista lingüístico, este subjetivismo pode ser reconhecido
na tese segundo a qual o significado das palavras está no plano das associações
intramentais.45
Vê-se assim que para o idealismo apriorista, o abuso dos direitos processuais surge
como puro pensamento, inserido no contexto de um direito natural, expressão
permanente de uma razão subjetiva que dirige a conduta prática, de um moralismo
jurídico no qual se guiam as normas e as decisões. As disputas animadas pela con-
cepção subjetivista, que giram em torno de uma vontade orientada para prejudicar o
outro no exercfcio inconsiderado de um direito, a
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(43) Idem, p. 20 a 56.
(44) Idem, p. 59 a 75.
(45) William P. Alston, op. cit., p. 1 00. Em outra passagem, o autor observa que
este subjetivismo, comum a Locke, Berkeley e Hume, em que pesem as distinções
que separam estes filósofos, pode ser resumido da seguinte forma: todas as idéias
são cópias ou transformações de cópias das impressões dos sentidos. Portanto uma
palavra somente tem significado quando se possa estabelecer uma associação entre
essa palavra e uma idéia derivada da experiência sensorial. Neste sentido, todo
significado deriva necessariamente da experiência dos sentidos (op. cit., p. 97).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
exemplo do que se vê na chamada teoria das imissões, presente no primeiro
capítulo (seção 1.1), guardam a marca desse apriorismo, que foi superado
inicialmente por John Locke. No idealismo empi- rista todo significado deriva da
experiência, com o que certas categorias jurídicas, a exemplo do abuso dos direitos
processuais, ca- recem de sentido. O idealismo empirista de Hume é também
ceticismo. Como a existência do abuso do direito não pode ser observada enquanto
realidade sensível, o que existe é simples ficção. Quanto a Locke, é certo, como dito
há pouco, que ele considera o objeto, diferentemente do que se dá com Descartes,
no que se pode- ria enxergar uma concepção referencial. Todavia, o seu realismo
representativo é um idealismo genético, psicológico. Como observou Horkheimer, a
teoria do conhecimento de Locke é exemplo de uma traiçoeira lucidez de estilo, que
concilia as diferenças simplesmente apagando as nuanças. Nesse sentido, curioso
observar que a doutrina política do filósofo inglês, longe de buscar um fundamento
empírico para o estado de natureza do qual derivou o direito natural, procura uma
compreensão racionalista, no que inspirou Rousseau, seu discípulo direto, e o
próprio iluminismo.46 Bem por
Início da nota de rodapé
(46) Max Horkheimer, Eclipse da razão, São Paulo, Centauro, 2000, p. 35 e 36. O
empirismo ingiês deitou raízes na elaboração de outros fïlósofos. Condillac, em seu
Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Huma- nos, descreve a semiose como
um processo que se desenvolve primitivamente a partirda experiência sensual
imediata, alcançando níveis mais complexos através da percepção, consciência,
atenção, reminiscência, imaginação, interpretação, memória e reflexão. Para
Condillac, o uso dos signos é o princípio que revela a fonte de todas as nossas
idéias. Tal como Locke, defende que a base da vida mental é constituída pelos
signos. Mas esta gênese da cognição permite reconhecer, ao lado dos signos
causais, que estabelecem a conexão entre o objeto e a idéia, a existência de signos
naturais, que expressam sentimentos, e de signos institucionais, que são escolhidos
arbitrariamente para representar as coisas na idéia (Etienne B. de Condillac, Essai
sur lorigene des connaissances humaines, in E. B. de Condillac, Oeuvres
philosophiques, vol. 1, Paris, Presses Université de France, 1 947, p. 1 . 1 1 8,
Introdução, apud Winfried Nöth, op. cit., p. 5 1). E fácil identifïcar no sensualismo do
fïlósofo fran- cês uma concepção referencial da linguagem, pois o signifïcado surge
a partir da coisa real. A teoria da linguagem formulada por Condillac
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
isso, o empirismo moderado de Locke, se bem não possa admitir um conceito de
abuso como expressão da experiência, consente numa elaboração muito próxima do
jusnaturalismo racional. Ao mesmo tempo em que desenvolve a noção de um direito
subjetivo, fruto do individualismo liberal-burguês, o homem moderno ganha
consciência da distinção entre direito e fato, com o que a teoria do
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
inspirou um movimento que fïcou conhecido como ldéologie, cujo sentido prende-se
ao exame das faculdades psicológicas, que tinha a fina- lidade de elucidar a origem
e a formação das idéias, como propedêutica de todas as disciplinas científicas.
Destutt de Tracy e o círculo de intelectuais ligados ao lnstitut de France buscavam,
assim, fundar uma his- tória natural da mente, ou seja, pretendiam investigar e
descrever a forma pela qual se dá o pensamento. Este é o único ponto que os une à
tradição racionalista de Descartes, vale dizer, a busca de um método. No mais, os
filósofos liberais do lnstitut afastam-se diametralmente dos postulados cartesianos,
infensos que se mostravam a todo preconceito metafísico e religioso (Condillac,
Helvétius, Degérando — Vida e obra, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1984,
Coleção Os Pensadores, p. 7). A respeito do significado de idéologie para os
integrantes do lnstitut, ver Anthony de Crespigny e Jeremy Cronin, Ideologias
Políticas, Brasflia, UnB, 1 98 1, Coleção Pensamento Político, vol. 37, p. 6. Uma das
principais características da filosofïa francesa do séc. XVII, além da oposi- ção a um
racionalismo abstrato, fundado na razão inata, é a estreita Iigação que os filósofos
iluministas mantinham com a vida pública. Embora os filósofos do século XVIII, a
exemplo de Montesquieu, Voltaire, Diderot, DAlembert e Rousseau, também fossem
racionalistas, eles o eram em medida diferente. Concebiam a razão como força que
parte da experiência sensível, desenvolvendo-se juntamente com ela (Condillac,
Helvétius, Degérando — Vida e obra, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1984,
Coleção Os Pensadores, p. 7). Diderot, por exem- p1o, diferentemente do que
sustentava o racionalismo cartesiano, dava particular importância à Iinguagem dos
gestos, mais expressiva que a linguagem verbal, dada a sua tridimensionalidade,
que difere da estrutura unidimensional da palavra. Para o semiólogo
contemporâneo, Winfried Nöth, professor de Lingüística da Universidade de Kassel,
é possível concluir que na perspectiva de Diderot, a Iinguagem provoca uma
distorção da realidade. Esta distinção entre linguagem verbal e linguagem não-
verbal terá repercussões na elaboração da semiótica moderna, refletindo, sobretudo,
no conceito de ícone (Winfried Nöth, op. cit., p. 52).
Fim da nota de rodapé
Página 194
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
abuso se desprende das suas bases morais, às quais estava ligada por força do
idealismo transcendente (Platão) e do idealismo apriorista (Descartes).
O mérito do idealismo moderno está em haver superado a concepção ontológica da
Antiguidade, onde as idéias existem por trás das coisas, independentemente do
sujeito cognoscente. Mas tem- se de reconhecer que há uma relação entre
significante e significado que não inclui necessariamente a coisa real (teoria
referencial) ou a idéia, como expressão sensorial carregada de materialidade (teoria
idealista). As palavras são doadoras de um sentido que não brota delas próprias,
mas sim do uso social que delas se faz. O signo abuso do direito não aponta para si
próprio e tampouco para uma realidade empírica, que possa ser experimentada
através dos sentidos, mas sim para outros signos, tais comojustiça, lealdade,
correção, construídos de acordo com as práticas sociais. O significado, tal qual
sucedia na retórica clássica, tem em conta a alteridade, a relação entre as pessoas.
Esta passagem, que vai de uma concepção representativa para um sentido
intersubjetivo da linguagem, exige o exame de outros pressupostos, que estão na
fenomenologia.
3.3 A superação da dicotomia idealismo e realismo
Diferentemente do que supõe uma concepção representativa do significado, o
pensamento não é uma atitude solitária. Esta crítica tanto vale para a perspectiva
idealista como para o realismo ingênuo, que parte da possibilidade de uma perfeita
correspondência entre o ser real e o ser pensado. A teoria referencial falha ao identi-
ficar significado e coisa real, porque há categorias ideais que não têm
correspondência no mundo sensível. A idéia de número não se confunde com o som
da palavra um ou com a marca um, que se deixa sobre o papel. A idéia de Deus, por
sua vez, não tem referência empírica. Há também categorias gramaticais,
conhecidas como sincategoremas, que isoladamente não têm nenhuma referência, a
exemplo das conjunções e dos verbòs auxiliares. Elas só ganham sentido no
contexto de uma oração. Outrossim, é certo que duas expressões, a despeito de
diferentes significados, podem ter o mesmo referente. E o que sucede, no clássico
exemplo de Gottlob Frege,
Página 195
A TEORIA DO SIGNIFICADO
com Estrela da Manhã e Estrela da Tarde, expressões que ape- sar da diversidade
de significados possuem o mesmo referente, qual seja, o planeta Vênus.47 As vezes
ocorre de o significado ser o mes- mo, mas diversos os referentes. O pronome
pessoal eu tem um único significado, mas referentes distintos, conforme seja a
própria pessoa quem o emprega ou pessoa diversa.48 Bem por isso, o crité- rio de
verdade não está na simples adequação do enunciado ao fato, vale dizer, em uma
relação meramente semântica.49
A teoria idealista também é passível de críticas. Há aqui duas vertentes. Uma delas
admite a existência da realidade objetiva, que é ideal por natureza, e outra concebe
a razão como força que parte da experiência sensível.50 Se as pessoas
guardassem seus pensamen- tos, seria bem possível prescindir das palavras. Trata-
se, é claro, de uma hipótese cerebrina, porque o homem é um ser social. Mas é
Início da nota de rodapé
(47) Gottlob Frege, Lógica e filosofia da linguagem, São Paulo, Cultrix — Edusp,
1978, p. 67.
(48) O exemplo é de William P. Alston (op. cit., p. 30).
(49) Os realistas recorrem à noção de sinonimia, na tentativa de demonstrar a tese
que estabelece uma relação direta entre palavras e coisas. Mas o fato de duas
expressões designarem o mesmo objeto, conquanto necessário para dizer que são
sinônimas, não autoriza a substituir uma por outra em contextos diferentes. Rosa de
Hiroshima e bomba atômica, aparecem, no famoso poema de Vinicius de Moraes,
com um único referente. Todavia, cada uma das palavras que compõem a
expressão tem significados diferentes. Para Iembrar Shakespeare, na fala de Julieta,
aquilo a que chamamos rosa não teria menos perfume se utilizássemos outra
palavra. Enfim, não se pode confundir o signo com o referente. A propósito, v. Alaôr
Caffé Alves, Lógica — pensamentoformal e arguÍnentação — elementos para o
discursojurídico, São Paulo, Edipro, 2.000, p. 50-57.
(50) A distinção também é conhecida pelas expressões idealismo objetivo (existe a
realidade objetiva, que é ideal por natureza) e idealismo subjetivo (a realidade é uma
construção da mente). Esta última, é uma forma extrema de idealismo. O sentido da
palavra idéia, que aparece na pri- meira definição, varia muito, de filósofo para
filósofo (Adam Schaff, lntroducción a la semántica, México, Fondo de Cultura
Económica, 1 992, p. 70). Berkeley está filiado ao idealismo subjetivo, ao passo que
Locke, por exemplo, sustenta um idealismo objetivo.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
preciso ver, comojá se disse na seção anterior, que há uma relativa independência
entre signo e idéia. Ao ouvir uma palavra, diferen- temente do que supõe o
radicalismo mentalista, o receptor nem sem- pre tem a mesma imagem, a mesma
idéia. Cada pessoa possui uma concepção própria de casa, rua, cidade. E possível,
de outra forma, ter imagens mentais idênticas, acompanhadas de palavras distintas,
com significados bastante diferentes. Assim, à imagem de uma rua poderia vir ligada
a palavra rua, como também outras, a exemplo de caminho, sentido, percurso.
Entretanto, estas palavras, em determinada hipótese, podem estar sendo
empregadas com o mesmo sentido.
A teoria comportamental também é passível de críticas. A tese comum entre os
comportamentalistas consiste em que, tendo os indivíduos uma estrutura física e
mental análoga, sucede daí que possam comunicar-se, entender uns aos outros,
mutuamente. Assim, alguém experimenta uma determinada sensação e age, por
meio dela, de modo que outras pessoas tenham experiências semelhantes.
Diferentes mentes têm, desta forma, experiências parecidas.5 E certo que a tese
refuta o transcendentalismo contido nas diversas formas de idealismo lingüístico, já
examinadas. Outros behavioristas, a exemplo de Alan Gardiner, acrescentam, com
um toque de realis- mo, que a coisa da qual se fala, comum às duas pessoas que se
co- municam, também participa desta ação comunicativa.52 Todavia, a objeção a
essas construções está em que elas partem de uma falácia conhecida como circulus
in demonstrando. Em outras palavras, instados a demonstrar a possibilidade da
comunicação, os behavioristas dão como pressuposta essa possibilidade, passando
a afirmar, então, que os homens se comunicam graças à semelhança de seus or-
ganismos. Ao admitir a existência de sujeitos e mentes separadas, não haveria
como explicar a possibilidade da comunicação senão recorrendo a algum princípio
supra-empírico, o que aproxima os
Início da nota de rodapé
(51) I. A. Richards, Principles ofLiterary Criticism, London, Routledge & Kegan Paul,
Cap. XXI, apudAdam Schaff, op. cit., p. 141.
(52) Alan Gardiner, The Theory ofSpeech and Language, Oxford, The Claredon
Press, 1951, p. 18 e ss., apudAdam Schaff, op. cit., p. 143.
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
comportamentalistas das teses do idealismo lingüístico. Também os que recorrem à
noção de realidade comum àqueles que se comuni- cam incidem na mesma falácia,
porquanto a possibilidade da comu- nicação na base da existência desta realidade é
exatamente a questão que tem de ser demonstrada, mas que fica somente
pressuposta.53
Aos lógicos deve-se a elaboração de uma teoria auto-referen- cial do signo, que se
inaugura com Port Royal, para quem o signo não tem vínculo com uma mente
exterior. Trata-se de uma visão autopoiética, onde o processo de comunicação é
gerado por si próprio, dentro de um mesmo sistema, fechado e exclusivamente
mental. Este mentalismo semiótico radicalizou a teoria diádica, postulando que tanto
o significado como o sígnificante são categorias ideais. O signo verbal (significante)
não seria a expressão acústica da palavra pronunciada, mas a representação ou o
modelo mental daquele som e daquela articulação no momento da recepção. Como
Início da nota de rodapé
(53) Adam Schaff, op. cit., p. 141-145 e 148. Alston também faz críticas à teoria
comportamental. O signitïcado não varia em uma relação direta com os fatores que
os comportamentalistas põem em relevo. Como as anteriores (teoria referencial e
teoria idealista), a teoria comportamental baseia-se em uma idéia importante, que se
deforma, entretanto, pelo seu simplismo: Assim como o uso significativo da
linguagem tem algo a ver com a referência ao mundo, assim como, de algum modo
expres- samos e comunicamos nossos pensamentos ao usar a linguagem, cons-
tituiu também um fato significativo que as unidades de linguagem adquiram seu
significado ao serem usadas pelas pessoas em diversos tipos de situações. As
teorias comportamentais erram ao conceber esta implicação comportamental em
termos excessivamente simplistas. Supõem que uma palavra ou sentença tem
determinado significado em virtude de estar envolvida, como resposta e/ou corno
estímulo, cm conexões estímulo-resposta basicamente sernelhantes, exceto no que
diz respeito a sua complexidade, a um simples reflexo, como o da extensão do
joelho. Infelizmente, estas conexões nunca foram encontradas, exceção feita às que
não são obviamente determinantes do significado, como sucede com o grito
cuidado! que geralmente provoca o afastamento. Alston conclui que é necessária
uma teoria mais adequada, sob o ponto de vista do comportamento lingüístico, uma
teoria que defina as unidades de conduta que são decisivas para estabelecer o
significado das palavras (William P. Alston, op. cit., p. 52 e 53).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
esse significante mental excita um significado que é igualmente mental, a semiose
fica completamente confinada à mente, desde a recepção até a compreensão final
do signo. Este modelo semiótico acabou influenciando a concepção de Saussure e é
reconhecido como o antecedente mais remoto do chamado construtivismo radi- cal,
uma das correntes das ciências cognitivas.54
Início da nota de rodapé
(54) No campo da biologia, o construtivismo radical de Humberto Maturana e
Francisco Varela é um importante paradigma. Postulam estes estudiosos que os
signos percebidos por um observador nunca podem vir de fora de sua própria
mente. Não circulam entre fonte e receptor; daí sua auto-referencialidade
(Autopoiesis and cognition, Dordrecht, Reidel, 1972, apud Winfried Nöth, op. cit., p.
43 e 44). As ciências cognitivas são um conjunto de disciplinas — que se uniram
sem perder as suas ca- racterísticas e metodologias próprias — voltadas para a
investigação do conhecimento. Surgem com a cibernética, por volta dos anos 40 (ver
Norbert Wiener, Cibernética e Sociedade — o uso humano de seres humanos, 5.
ed., São Paulo, Cultrix, s/d, especialmente p. 14, 16, 57, 72, 82,95, 110, 115, 134,
149, 168, 178e 184a 190),o que permitiu que a investigação puramente especulativa
abrisse espaço para a experimentação. Uniram-se, então, a psicologia cognitiva, a
inteligência artificial, a lingüística, a filosofia, a neurobiologia e a antropologia, na
base da analogia entre a mente e o computador. Na área da lingüística, os
estudiosos estavam ocupados em tentar a validação psicológica da gramática
gerativa de Noam Chomsky (Aspectos de la teoria de Ia sintaxis, Madrid, Aguilar
S.A. Ediciones, Coleção Cultura e História, 1 97 1), que se funda na tese de que
todo ser humano é dotado de uma certa competência sintática, proveniente de
mecanismos psicológicos inatos, o que Chomsky busca comprovar recorrendo à
estrutura profunda das orações. As elaborações do lingüista inglês, que têm a marca
do racionalismo de Descartes e de Leibniz, dentre outros, foram objeto de diversas
investi- gações no campo da psicologia e também do direito, dentre as quais se
destaca a contribuição de Roberto Jose Vernengo (La interpretación literal de Ia ley,
Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1 97 1, p. 77-89). A propósito ver também Luiz Sergio
Fernandes de Souza, Opapel da ideolo- gia nopreenchimento das lacunas no direito,
2 ed., São Paulo, RT, 2005, p. 99-1 10. O modelo sistêmico-funcionalista também
discute os sistemas autopoiéticos, como se vê em Luhmann e Talcott Parsons. No
Bra- sil, assinala-se a discussão inovadora de Tercio Sampaio Ferraz Jr., no finai da
década de 70 (Teoria da Norma Jurídica: ensaio de pragmática da comunicação
normativa, Rio de Janeiro, Forense, 1 978, especialmente
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
A possibilidade de uma linguagem artificial, simbólica, livre das imperfeições da
linguagem natural, às quais se fez menção no segundo capítulo (seção 2.3),
inscreve-se também no campo da Lógica. Este foi o ideal concebido por Leibniz, que
desenvolveu re-gras para a combinação de signos, com vista à construção de uma
Iinguagem científica e universal, de um sistema racional pautado na representação
isomórfica das coisas do mundo.55 O tema da pro- cura de uma língua universal
encontra-se igualmente em George Dalgarno, em John Wilkins56e, sob outra
perspectiva, não isomórfica, na obra de Friedrich Ludwig Gottlob Frege, cujas
elaborações inau- guram a filosofia analítica. Tal como Leibniz, Frege pretendia de-
senvolver uma linguagem artificial, que permitisse exprimir com exatidão todas as
formas lingüfsticas. Essa ideografia substituiria a linguagem ordinária no campo
científico, permitindo, outrossim, uma crítica da linguagem natural.57 Antes mesmo
de Husserl, Frege extremou Lógica e Psicologia, buscando um critério de
objetividade.58
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
p. 140-149). Mais recentemente, em defesa da tese da autopoiese no direito, no
contexto de uma economia globalizada, v. Willis Santiago Guerra Filho, Autopoiese
do Direito na Sociedade Pós-Modernas in- trodução a uma teoria social sistêmica,
especialmente, p. 1 8, 1 9, 22, 39-73 e 91.
(55) Leibniz, op. cit., p. 32 1 -327. Consta que, antes dele, Raimundus Lullus já
esboçara unia tentativa de conduzir todo o conhecimento humano a conceitos
univocos, que se exprimiam através de uma espécie de alfa- beto de símbolos,
aplicados matematicamente (Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 23).
(56) George Dalgarno, Ars signorum, vulgo character universalis et lingua
philosophica, Menston, Scolar, 1 968, apud Winfried Nöth, op. cit., p. 44, e John
Wilkins, Mercury, the secret and swiftrnessenger Amsterdam, Benjamins, 1 984,
apud Winfried Nöth, op. cit., p. 44.
(57) Gottlob Frege, op. cit., p. 131-152.
(58) Paulo Alcoforado, Introdução à edição brasileira de Gottlob Frege, Lógica
efilosofia da linguagem, São Paulo, Cultrix — Edusp, 1978, p. 1 3. A respeito da
distinção entre o campo da investigação lógica e o campo da psicologia v. Irving
Copi (op. cit., p. 1 9-26) e Wesley Salmon (op. cit., p. 13-29).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Eo fez na base da distinção entre sinal ou signo (a); objeto ou denotação (b); sentido
(c).59
A denotação, na linguagem natural, pode ser estabelecida através de várias
palavras, sinônimas, portanto. Ademais, há diversas palavras com o mesmo sentido.
Contudo, a linguagem científica, rigorosa, logicamente exata, exige uma relação
biunívoca entre sinal e sentido. Mais que isto, todo sinal deve ter um sentido
determinado, preciso, o que nem sempre ocorre na linguagem natural. Os
enunciados científicos, outrossim, têm de evitar o emprego de nomes que tenham
sentido, mas não denotação, sob pena de não ser possível lhes atribuir um juízo
veritativo. Destarte, uma linguagem rigorosa postula a existência de denotação e
sentido. O sentido, para Frege, não é a idéia e nem tampouco o objeto,
diferentemente do que se passa na teoria representativa. A representação é sempre
subjetiva: a representação de um homem não é a mesma de outro. Todo enunciado
contém um pensamento (proposição), que é o sentido da frase. A denotação é
aquilo que permanece no enunciado, ainda que se altere o seu sentido, vale dizer, é
ela a referência ao objeto. O valor de verdade está naquilo que permanece, ou seja,
na denotação. O conhecimento pleno só existe quando se tem tanto o sentido (a
proposição, o pensamento), como a denotação (o valor de verdade). Mas Frege
reconhece que há casos em que se mostra impossível alterar o sentido sem que
isso também altere o valor de verdade, ou seja, a denotação do enunciado. E o caso
das frases João disse que viu Maria e João viu Maria. A alteração do sentido
interferiu na possibilidade de se predicar o juízo falso/verdadeiro a estes enunciados.
Eis o esforço de Frege para expulsar as línguas naturais da lógica formal, que seria,
então, universal, sem necessidade de tradução.
As elaborações de Frege são importantes para que se possa entender o rompimento
com a dicotomia entre realismo e idealismo. Nelas, o sentido surge como algo
diferente da referência. Estrela da Manhã e Estrela da Tarde, comojá se disse
anteriormente, têm o
Início da nota de rodapé
(59) Gottlob Frege, op. cit., p. 59-86. A respeito, ver também Manfredo Araújo de
Oliveira (op. cit., p. 62-69), no qual também se inspirou a presente exposição.
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
mesmo referente. Isto implicaria afirmar, de uma perspectiva representativa, que o
significado destas duas expressões é o mesmo, já que elas denotam o mesmo
objeto. Frege observa, entretanto, que, ao se considerar o conteúdo dessas
expressões, o modo como elas denotam, suas significações se afiguram
diferentes.60 Da mesma forma, o enunciado Walter Scott é o autor de Waverley
apresenta duas vezes a mesma referência (Walter Scott e autor de Waverley), com
sentidos diferentes. Já nas frases O atual rei da França é calvo e Perseu matou o
minotauro, vê-se que a despei- to da ausência de um referente, há um sentido.61 Ao
mesmo tempo em que Frege introduz no estudo semântico, a partir da noção de
referência, um objeto da realidade fenomênica, extralingüística, faz a significação
dependcr de um valor de verdade. A crítica que se costuma fazer a esta perspectiva
semântica é que ela coloca o pro- blema da significação no terreno da verdade,
pertencente à Lógica, quando é certo que para apreender o sentido da frase O atual
rei da França é calvo ninguém precisa saber se a França tem ou não um rei na
atualidade. A questão que se coloca, neste ponto, é de compe- tência lingüística,
tão-só.62
As contribuições de Frege no campo da linguagem valem mais por aquilo que está
nas suas premissas do que propriamente na conclusão. O projeto de uma relação
biunívoca entre signo e sentido — que também foi perseguido pelo positivismo
lógico, como será visto no capítulo seguinte — implica dificuldades que a teoria
semântica do significado não está em condições de resolver. As elaborações de
Frege apontam precisamente para esses problemas. Uma teoria cientifica sempre
contém algum termo que denota coisas que não podem ser observadas. O id, o
superego e o ego, na teoria freudiana, são exemplos disto. Estas expressões têm,
entretanto, um
Início da nota de rodapé
(60) Gottlob Frege, op. cit., p. 87-103. A respeito, v. Adam Schaff, op. cit., p. 231.
(61) A propósito, v. ManfredoAraújo de Oliveira (op. cit., p.65 e 66) e Edward Lopes
(Fundamentos da Lingüística Contemporânea, São Paulo, Cultrix, s/d, p. 245 e 246).
(62) Edward Lopes, op. cit., p. 247 e 248.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
significado que permite explicar diversos fenômenos psicológicos.63 Como resultou
claro, poucos anos depois, a partir das elaborações do positivismo lógico, nem a
verificabilidade nem afalsificabilidade, como critérios de significação, conseguem
estabelecer um parâmetro de verdade fundado numa relação necessária entre sen-
tido e denotação. Como admitiu Popper, até mesmo enunciados basicos (asserções
sobre a existência de algum estado de coisas observável num lugar e tempo
determinados), por se revestirem de um caráter hipotético, dependem de uma
teoria64. Com isto, afasta- se a tese daqueles que sustentam que o discurso
jurídico, fazendo referência a categorias que não pertencem à realidade objetiva,
seria destituído de sentido. Conquanto o abuso dos direitos processuais não seja
uma realidade palpável, as teorias que se desenvolvem em tomo dessa questão têm
um inegável sentido prático, como se teve oportunidade de ver nos capítulos
anteriores.
Enfim, conquanto o abuso do direito não seja uma figura, uma imagem da realidade,
também não se pode cogitar de uma categoria metafísica. O significado do abuso do
direito não é um objeto platônico, existente antes mesmo da palavra abuso do
direito, mas sim uma ferramenta, que cumpre determinadas funções sociais, no que
se reconhece o seu sentido. Adam Schaff observa que apesar do relevo que os
lógicos deram ao problema da linguagem, as questões centrais da filosofia são
outras. Os questionamentos acerca da linguagem refletem uma preocupação
epistemológica que a análise estritamente lógica não está em condições de
apreender. O proble- ma da linguagem não pode ser reduzido a aspectos formais,
pres- cindindo dos aspectos ontológicos e também da Iigação do homem com o
mundo. Esta síntese tem de ser alcançada de um prisma so- ciológico.65 O
criticismo kantiano é o ponto de partida de algumas
Início da nota de rodapé
(63) John Hospers, op. cit., p. 296-298.
(64) A propósito, v. A. J. Ayer, Linguagem, verdade e lógica, Lisboa, Pre- sença,
1991, p. 13-29, 52-53, 70-78, 105-126, 145-147, eAs questões ceutrais dafilosofia,
Rio de Janeiro, Zahar, 1 975, p. 37-45; John Hospers, op. cit., p. 326-343; William P.
Alston, op. cit., p. 105-123.
(65) Adam Schaff, op. cit., p. 121-124.
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
perspectivas filosóficas que buscaram a superação e síntese da dicotomia razão
subjetiva-razão objetiva.
A fenomenologia de Kant procura conciliar concepções filosóficas que dividem
racionalistas e empiristas, realistas e idealistas, tratando de demonstrar a
insuficiência das reflexões até então desenvolvidas. Kant impressionou-se do
ceticismo demolidor de Hume, que o moveu à construção de um novo sistema
metafísico, na Crítica da Razão Pura.66 E certo que não se pode cogitar de idéias
inatas à moda de Descartes e Leibniz. Todavia, também não se pode fundar o
conhecimento exclusivamente na experiência. Como foi visto, Hume chega à
conclusão de que a ciência baseada na causalidade é metafisica. Esta possibilidade
não é empírica e, portanto, não pode ser provada — dirá o filósofo inglês. Segundo
Kant, o conhecimento está fundado não só em dados sensíveis mas também nos
conceitos puros, que são necessários para um trabalho de síntese. Enfim,
conquanto importante a realidade sensível, é certo que o conhecimento não pode
prescindir dos elementos racionais que ordenam os dados empíricos. Estes, quando
desligados dos con- ceitos próprios do entendimento, são desprovidos de
significado. Por outro lado, os conceitos seriam vazios se não recebessem o con-
teúdo dos dados sensoriais. Enfim, o espírito condiciona a expe- riência ao mesmo
tempo em que ela o desperta para a consciência
Início da nota de rodapé
(66) As considerações que seguem têm lastro na Crítica da Razão Pura, cuio
refinamento de conceitos — como reconhecido pelos filósofos que sucederam Kant
—exigiu também segundas leituras (Johannes Hessen, op. cit., p. 7-23, 54-57, 78-
80, 108- 1 1 1; Manuel Garcia Morente, op. cit., p. 229-263; Nicola Abbagnano,
Diccionario de Filosofía, Colômbia, reimpresión, Fondo de Cultura Económica, 1997,
p. 718 e 973; Rafael Gómez Pérez, História bósica dafilosofia, São Paulo, Nerman,
1988, p. 1 83- 1 90; André Lalande, op. cit., p. 378-382: Gilles-Gaston Granger, A
Razão, 28 ed., São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1969, coleção Saber Atual, p.
1 8-20 e 61 -63; Emiie Bréhier, op. cit., vol. 11, Madrid. Tecnos, 1988, p.I7O-2l3;
Miguel Reale, Introdução à Filosofia, 3. ed. São Paulo, Saraiva, I994,p. 1 19-169,
Marilena Chauí, Convite à Filo- sofia, 2. ed., São Paulo, Atica, 1995, p. 76-80, e
Hermes Lima, Intro- dução à ciência do direito, 3 1 . ed., Rio de Janeiro, Freitas
Bastos, 1 996, p. 214-217).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
de si próprio.67 No criticismo kantiano, o método (sujeito) cria o objeto, pelo que
inexistente a coisa em si mesma. A razão é sempre razão subjetiva. As formas a
priori da sensibilidade (matéria) encontram algo que está no espfrito anteriormente à
experiência, vale dizer, os conceitos a priori do entendimento (forma). Assim, dife-
rentemente do que supõem o inatismo cartesiano e o empirismo de Hume, tempo e
espaço são estruturas da razão. A realidade em si não é espacial, temporal,
qualitativa ou causal.
Dito de outra forma: o sujeito do conhecimento é a razão uni- versal e não uma
subjetividade pessoal e psicológica. A estrutura da razão universal é inata e não
depende da experiência. A razão universal é apriori, vale dizer, anterior a toda
experiência. Os conteúdos da razão, que variam no tempo e no espaço, dependem,
todavia, da experiência e são organizados por um conjunto de elementos chamados
categorias, condições a priori do conhecimento. Com as categorias, que tornam
possível o conhecimento intelectual, o sujeito formula conceitos. Os juízos, relação
entre conceitos, são analíticos (tautológicos e universais) e sintéticos (ampliativos e
particulares); empíricos (derivados da experiência) e puros (não derivados da
experiência). O criticismo de Kant, como superação e síntese da díade razão
subjetiva — razão objetiva, concebe também juízos sintéticos a priori (conteúdo da
razão que depende da experiência). São doze as categorias originárias: a) segundo
a quantidade: totalidade, pluralidade e singularidade, às quais correspondem,
respectivamente, o juízo universal, o iuízo particular e o juízo singular; b) segundo a
qualidade: realidade, negação e limitação, às quais correspondem, respectivamente,
os iuízos afirmativos, os juízos negativos e os juízos indefinidos; c) scgundo a
relação: inerência, causalidade e comunidade, às quais correspondem,
respectivamente, os juízos categóricos, os iuízos hipotéticos e os juízos disjuntivos;
d) segundo a modalidade: possibilidade, existência e necessidade, às quais
correspondem, res- pectivamente, juízos problemáticos, juízos assertóricos e juízos
Início da nota de rodapé
(67) Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1985, Introdução, I - 111, p. 36-42.
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
apodíticos.68 A filosofia e a ciência são a síntese que a razão realiza entre
umaforma universal e necessária (juízo a priori) e um conteúdo particular e
contingente (juízo a posteriori). As categorias, vale dizer, o conjunto de elementos
que organizam o conteúdo empírico, não são hábitos psicológicos associativos, mas
instrumen- tos racionais que permitem conhecer o mundo. Não são estas categorias
a realidade mesma, mas estruturas a priori, pelo que a razão não está nas coisas,
mas no homem que as conhece (razão subjetiva).69
Mas ao lado de uma razão pura teórica está uma razão pura prática, que não
contempla uma causalidade externa necessária, criando, isto sim, sua própria
realidade. Aqui está o reino humano da paixão, bem como o campo da Etica, que
postula a existência de leis morais das quais decorrem deveres para a liberdade do
homem. O dever ser não é uma imposição externa à vontade e à consciência, mas
expressão de uma lei moral em nós. O homem, como ser natural, é movido por
interesses, pela necessidade de satisfazer apetites, impulsos e desejos. A
verdadeira liberdade não é aquela causalmente determinada, mas sim a que permite
a passagem das motivações do interesse para o dever.70 Repetindo Kelsen, o
homem só é livre a partirda norma. O homem é livreporque sua condutaé umponto
terminal de imputação, embora seja causalmente determinada. Por
Início da nota de rodapé
(68) Idem, Introdução, IV e V, p. 42-49, Estética Transcendental, p. 61-87, e
Analítica Transcendental, Cap. 1, Segunda e Terceira Seção, p. 103-1 17.
(69) Idem, Introdução, Iv - vII, p. 42-57. Veja-se que, diferentemente do que supunha
o realismo representativo de Locke, nem mesmo as qualida- des primárias
pertencem à própria coisa. Forma, extensão, movimento e, por conseguinte, todas
as propriedades espaciais e temporais estão na consciência. Mais que isto, as
relações de causalidade, o conceito de possibilidade e necessidade, tudo se funda
em certas formas e funções a priori, as quais, excitadas pelas sensações, entram
em ação, independentemente da nossa vontade. Enfim, o mundo em que o homem
vive é formado por sua consciência, por suas formas a priori. E a isto se chama
mundo fenomênico. Esta, pois, a perspectiva fenomenológica em Kant (Hessen, op.
cit., p. 108 a 1 I 1).
(70) Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1 979, p.
1 39- l 48, eAjustiça e o direito natural, 2. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p.
124-136.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
isso, não existe qualquer contradição entre a causalidade da ordem natural e
aliberdade sob a ordem moral oujurídica.71 Kantrecusa o direito natural (na
concepção clássica) por entender que a lei posta vincula-se ao Estado. Mas o
conceito de direito transcende o empirismo da lei positiva, buscando fundamento na
razão prática, que procura conter a vontade sem limites. O dever, que vale para
todos e para qualquer ação, é uma forma universal categórica, Age sempre de tal
modo que a máxima do teu agir possa por ti ser querida como lei universal 72
A matriz da Teoria Pura do Direito é kantiana, como se pode ver da distinção entre
as categorias do ser e do dever ser. Mas para Kelsen a razão não é legisladora, pois
sua função é conhecer e não querer. Ao considerar que a norma é posta por um ato
de vontade, Kelsen afasta a possibilidade da existência de uma norma imedia-
tamente evidente, que pressupõe a razão prática. Isto lhe dá condições para
estabelecer a distinção entre o ato do conhecimento (ciência do direito) e o ato de
vontade (norma), numa perspectiva diversa daquela concebida por Kant, que acaba
identificando es- tas duas esferas.73 E que o direito, na visão kantiana, está no
campo da razão prática, orientada pela lei moral que impera na cons- ciência do
homem, ao passo que o imperativo categórico, do ângulo da Tcoria Pura do Direito,
serve apenas para separar o mundo da natureza, causalmente determinado, do
mundo espiritual das normas, as quais Kelsen também concebe como imperativos,
mas apenas na formulação do legislador. Esse empirismo da lei positi- va, não
considerado por Kant, permite uma aproximação entre Kelsen e os neoempiristas. A
norma nasce de um ato de vontade (lei, sentença etc.), mas se desprende dela,
ganhando um sentido objetivo, quando se torna norma posta. Kelsen reivindica,
então, uma dimensão lógica para o direito, que estaria no nível da proposição
jurídica. Esta, entretanto, é uma situação complicada do
Início da nota de rodapé
(71) Hans Kelsen, Teoria purci clo dij•eito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979,p.
148.
(72) Kelsen, Ajustiça e o direito natural, 2. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p.
24 e 25.
(73) Ide,n, p. 124-136.
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
ponto de vista do positivismo lógico, porque, como será visto mais adiante, a
proposição jurídica, na Teoria Pura do Direito, é também um dever ser, que tem um
sentido descritivo.74
Enfim, uma teoria do abuso do direito processual, na perspectiva kelseniana, mais
não poderia fazer senão identificar possíveis significações da sentença que apreciou
a questão do abuso como posta pelas partes. Com isto, Kelsen busca fugir do
embaraço de uma linguagem lógica sem referente, de um sentido sem denotação,
di- ficuldade que teria de enfrentar caso admitisse a possibilidade de uma relação
direta entre o campo do conhecimento e o campo da vontade, dos valores. Com a
intermediação da norma, que aparece como esquema de interpretação (e não como
estrutura de sentido), a Teoria Pura procura contornar o problema. Contudo, está
claro que as teoriasjurídicas não são simplesmente descritivas. Elas participam do
processo de criação do direito, o que será mais tarde enfatizado pelas correntes
jusfilosóficas que acentuam o papel da argumentação no campo da produção
jurídica, a exemplo da nova retórica de Perelman.75
Início da nota de rodapé
(74) Kelsen, Teoria pura do direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1 979, p. 1 16.
(75) Perelman, segundo se sabe, dedicou-se inicialmente à lógica formal,
escrevendo sua tese, em 1938, sobre Gottlob Frege. Tentou aplicar o método
positivista de Frege à idéia dejustiça, com o que supunha poder eliminar desse
conceito todojuízo de valor. Sucede que Perelman não resolveu a questão
consistente em saber como se raciocina a respeito de valores. Esse problema foi
resolvido, de uma outra ótica, anos mais tarde, quando teve contato com a dialética
aristotélica (Manuel Atienza, op. cit., p. 8 1 -83). A crítica de Perelman ao
positivismojurídico kelseniano está bem representada na seguinte passagem:
Parece-me que todos os paradoxos da Teoria Pura do Direito, assim como todas as
suas implicações fllosoficas, derivam de uma teoria do conhecimento que só dá
valor a um saber não controverso, inteiramente fundado nos dados da experiência e
da prova demonstrativa, desprezando totalmente o papel da argumentação. Com
efeito, nem a experiência nem a demonstração Iógica permitem a passagem do ser
para o dever-ser, da realidade para o valor, de comportamentos para normas. Por
conseguinte, como toda justificação racional das normas parece excluída na
perspectiva kelseniana, estas dependem efetivamente de imperativos religiosos, de
revelações
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A fenomenologia de Kant exerceu influência notável nos filósofos que se seguiram.
Particularmente importante, no campo da semântica, foi Husserl, cujo pensamento,
na senda aberta pelo criticismo Kantiano, coloca a tônica no sujeito do
conhecimento, na consciência reflexiva. O homem não é um ser puramente
intelectual. Ao lado da razão está a vontade dirigida para a ação. A questão da
essência do conhecimento desloca-se de uma postura receptiva e passiva — que se
encontra na dicotomia idealismo-realismo — para colocar-se no plano da ação e da
produção. Sob este prisma, a consciência é uma energia criadora, pois o homem, no
lugar de desco- brir o mundo que está em sua volta, passa a produzir a realidade.
Essa nova orientação permite colocar a questão do abuso do direito em novas
bases. É o que se passará a ver.
3.4 A consciência reflexiva e a razão alargada
Husserl, nas suas Investigações Lógicas, começa por distinguir o campo da
epistemologia e o campo da psicologia, a exemplo do quejá fizera Kant. Uma coisa
são as regras de correção dos enun- ciados que exprimem o pensamento e outra,
diversa, é a gênese do pensamento. As leis psicológicas são empfricas, vagas,
limitadas à comprovação de fatos, ao passo que as leis lógicas são certas, pre- cisas
e normativas. A apreensão do objeto, do ponto de vista gené- tico-psicológico, dá-se
através do método indutivo, ao passo que, sob o ponto de vista lógico, tem-se de
aplicar a dedução, adequada
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
sobrenaturais. As metafísicas racionalistas que buscaram fundamento puramente
humano para nossas normas e para nossos valores não são de fato senão
ideologias, que se esforçam em vão para substituir-se ao fundamento religioso não-
racional... Para constituir uma ciência do direito tal como ele é, e não como deveria
ser, é preciso, ao que me parece, renunciar ao positivismojurídico, tal como
concebido por Kelsen, para se consagrar a uma análise detalhada do direito positivo,
tal como se manifesta efetivamente na vida individual e social e, mais
particularmente, nas cortes e tribunais. Esta revela, de fato, que o dualismo
kelseniano não corresponde nem à metodologia jurídica nem à prática judiciária.
(Chaïm Perelman, Etica e Direito, São Paulo, Martins Fon- tes, 1996, p. 476 e 477).
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICAD
à evidência apodítica.76 Com isto, Husserl afasta-se do naturalismo sensualista, do
realismo pscicologista que se vê em Locke e Hume, pois a noção de objeto,
segundo sua visão fenomênica, estende-se além da simples objetividade sensível.77
Neste aspecto, também se afasta de Kant, pois as coisas, em sua essência, não são
formas subjetivas nem funções transcendentais da mente. A fenomenologia de
Husserl amplia o mundo a priori para nele incluir essências transcendentais ao
sujeito.78
Husserl é cartesiano, pois admite, da perspectiva do sujeito, que a consciência é a
única coisa de cuja existência não se pode duvidar. Assim, tudo o mais tem de ser
examinado, porque não se pode
Início da nota de rodapé
(76) Edmund Husserl, Investigaciones Lógicas, Madrid, Alianza Editorial, S .A.,
Colección Ensayo — Filosofía y Pensamiento, 1 999, Prolegomenos a la lógicapura
— lntroducción, p. 35-38, Cap. 2, § 1 3, po.53 a 59 e Cap. 8, po. 1 39- 1 63; ldem,
investigaciones para lafenomenologia y teoria del conocimiento, § 1-3, p. 215-222;
Recaséns Siches, Estudios de Filosofía del Derecho, in Del Vecchio e Recaséns
Siches, Filosofía del Derecho, tomo I, México, Union Tipografica Hispano-
Americana, 1 946, p. 617-620; Emile Bréhier, Historia de la Filosofía, vol. 2, Madrid,
Editorial Tecnos S.A., 1988, p. 630-635; Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 35-
40.
(77) Edmund Husserl, idem, vol. 1, Segunda Investigação, Cap. 2, § 7-12, p. 307-
317; Segunda Investigação, Cap. 5, § 37, p. 362-368; Recaséns Siches, Estudios de
Filosofla del Derecho, in Del Vecchio y Recaséns Siches, Filosofía del Derecho,
tomo I, México, Union Tipografica Edi- torial Hispano-Americana, 1946, p. 70, 153 e
154; Emile Bréhier. op. cit., vol. 2, p. 63 1 e 632.
(78) Recaséns Siches, Estudios de Filosofia del Derecho, in DeI Vecchio y Recaséns
Siches, Filosofia del Derecho, tomo I, México, Union Tipografica Editorial Hispano-
Americana, 1946, p. 70; Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 40-42; Emile
Bréhier, op. cit., vol. 2, p. 632-635 e 669-670. Emile Bréhier explica que Kant retira o
sujeito do objeto. O sujeito é somente condição para experiência de um objeto
previamente determinado pela ciência. Ao contrário, Husserl entende que se tem de
fazer uma abstração do objeto para empreender uma análise adequada do sujeito,
que, ademais, não deve ser psicológica e sim fenomenológica. Por conseguinte, só
em Husserl se mantém o subjetivismo como racionalismo (op. cit., vol. 2, p. 670),
uma espécie de empirismo
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
fazer suposições sobre a existência de qualquer outra coisa.79 Afastando-se da
polêmica acerca da existência de objetos fora da consciência — discussäo que
considera estéril, por envolver problemas insolúveis — Husserl parte da única
certeza, vale dizer, da existência de objetos da consciência. Sugere, a partir daí, que
aquelas per- guntas irrespondíveis, alvo das intermináveis disputas entre o realismo
e o idealisino epistemológico, sejam colocadas entre parênteses. Desta forma, a
fenomenologia husserliana busca, a exemplo das idéias platônicas, as essências
imutáveis das coisas, que são conhecidas por uma intuição particular. A intuição das
essências, que é a priori, independente de toda a experiência, afasta do objeto tudo
que é acidental, contingente, para atingir aquilo que é universal, o eidos.80 Este,
pois, é o método da fenomenologia, que permite à filosofia elevar-se à categoria de
ciência.
A redução eidética (epoché) consiste precisamente nessa transformação dos
fenômenos em essências, o que se dá através de um movimento de transcendência
daquilo que é puramente fático e particular no objeto. Não se trata de uma oposição
entre sujeito e objeto, mas de uma relação necessária, por meio da qual a coisa é
dada ao sujeito, à sua consciência, através de uma intuição intelectiva. A
consciência, para Husserl é sempre consciência de alguma coisa (intenção), de
modo que não se pode falar em consciência separada da coisa, em sujeito separado
do objeto. O papel da intuição é realizar (cumprir na linguagem de Husserl) a
intenção. Em outras palavras, pode-se dizer que a intuição, fonte última do
conhecimento humano, permite revelar, dentre os diferentes modos pelos quais o
objeto se apresenta à consciência, aquilo que ele tem de mais consistente, como a
priori material,
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
transcendental, pois nele a intuição aparece como fonte última do conhecimento.
(79) Emile Bréhier, op. cit., vol. 2, Madrid, p. 634 e 635; Miguel Reale, Filo- sofici do
Direito, 1 1. ed., São Paulo, Saraiva, 1995, p. 362 e 363; João MaurícioAdeodato,
Filosofia do Direito — uma crítica à verdade na ética e na ciência (através da
ontologia de Nicolai Hartmann), São Paulo, Saraiva, 1996, p. 69. Edmund Husserl,
op. cit., vol. 2, Quinta Investigação, p. 473 a 527.
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
distinto do a priori racional de Kant. Dentro de uma análise pro- gressiva, de uma
seleção gradual, que faz lembrar a dúvida metódica cartesiana, buscam-se aquelas
notas essenciais, aquilo quejá não se pode mais colocar entre parênteses, sob pena
de perder-se o objeto, conceito que, por ser universal, aplica-se a cada uma das
coisas individualizadas.81
Posto o conceito, é necessário partir para a recuperação do mundo natural, que não
se encerra no sujeito cognoscente, como supu- nha Descartes. O volver à
subjetividade transcendental tem em conta a bipolaridade sujeito-objeto, o olhar e a
coisa. Na primeira atitude (redução eidética), suprime-se o sujeito, com o
afastamento, com a neutralidade. Significativo, neste sentido, o étimo de epoché, do
grego abster-se. Nesta intuição da essência, não importa indagar sobre a existência
extramental do objeto. Em uma segunda atitude filosófica, volta-se, então, a tecer a
relação cognoscitiva dentro da qual o sujeito está preso ao mundo. O mundo está
diante do sujeito não só como inundo das coisas, mas também como mundo dos va-
lores, mergulhado na temporalidade e na historicidade. Este é o ponto de vista de
quem se dirige para o mundo e, ao mesmo tempo, de quem está situado nele,
descortinando um horizonte de coisas que não são simples corpos, mas objetos de
valor.82
Início da nota de rodapé
(81) Edmund Husserl, op. cit., vol. 2, Quinta investigação, Caps. 1 e 2, p. 475a526.
(82) A propósito dessa exposição de Husserl, que se encontra em suas Meditações
Cartesianas, vale citar o breve e compreensivo resumo de Lalande: a fenomenologia
procura esclarecer o princípio último de toda a realidade. Como ela se situa sob o
ponto de vista da significação, este princípio será aquele pelo qual tudo ganha um
sentido, o ego transcendental, exterior ao mundo, mas virado para ele. Aliás, este
sujeito puro não é o único, porque faz parte da significação do mundo oferecer-se
para uma pluralidade de sujeitos. A objetividade do mundo aparece assim como uma
intersuhjetividade transcendental. O reconhecimento do domínio transcendental e
sua descrição exigem que se adote uma atitude difícil de tomar e muito diferente da
atitude natural; o momento essencial é aquilo que Husserl chama de redução
fenomenológica transcendental (André Lalande, Vocabulário — técnico e crítico —
da Filosofia, 10. ed., voi. 1, Porto, Rés Editora, Ltda., s/d, p. 471).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
o exame do abuso do direito das partes no processo judicial implica dificuldades que
não passaram despercebidas à análise fenomenológica. Trata-se de uma categoria
jurídica, de um símbolo, cuio sentido é sempre uma aproximação na base do
significado de outras expressões, a exemplo de ilícito, uso anormal do direito,
litigância de má-fé, conduta temerária, deslealdade ou improbidade processual.83 A
dificuldade está em eliminar a vagueza do termo. Na tentativa de restringir o campo
extensional da definição, para apurar o conceito, aprofunda-se o campo intensional,
delimitando o conjunto de propriedades que o termo designa, com o que se corre o
risco de formular uma definição muito restrita. De outro lado, se não se aprofundar o
campo intensional, escolhendo propriedades que possam reduzir a extensão da
palavra, corre-se o risco de produzir definições muito amplas, que se perdem na
vagueza do termo.84 A idéia, em si mesma, é incomunicável. A linguagem, por sua
vez, padece de vicissitudes que comprometem o conhecimento do objeto. A redução
eidética do abuso processual procura exatamente fugir a este impasse, deixando em
suspenso, entre parênteses, os dados empíricos e acidentais daquele objeto
cultural, libertando-o de tudo quanto possa ser contingente, individual, para que dele
somente reste aquilo sem o que o objeto desapareceria. A dificuldade, neste
Início da nota de rodapé
(83) Na explicação de José Ferrater Mora, a essência ou a unidade ideal de
significação desses standards não está radicada em uma forma ontológica, mas em
atos intencionais que, executados (cumpridos), engendram outros sentidos, outras
realidades, característica própria do processo cultural. Ferrater Mora sugere a figura
de uma árvore, dizendo que ela representa, em diversos graus de aproximação, uma
árvore real. Porém, a figura dá à arvore figurada um sentido que esta
originariamente não tem. Cada nova figura vai aumentando o espectro de sentidos
possíveis de árvore. EIa pode ser entendida como símbolo de fortaleza, objeto de
adoração, símbolo do Iugar onde se realiza ajustiça ou debaixo da qual os amantes
juram fidelidade eterna um ao outro. Com isto, vai-se deixando o sentido como
intenção para ingressar em outras formas de sentido, que não são, todavia,
completamente independentes da trama originária de árvore. (Ferrater Mora,
Fundamentos de Filosofia, Madrid, Alianza Editorial S.A., 1987, op. cit., p. 173).
(84) A propósito das noções de conotação, denotação, ambigüidade, vague- za,
intensão e extensão, ver o segundo capítulo (seção 2.3).
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
ponto, reside em buscar a essência, o conceito universal, escoimando o objeto das
impurezas, de suas notas secundárias, acidentais.
A primeira vista, o embaraço é o mesmo que se apresenta sob a ótica do a priori
formal, do racionalismo kantiano que inspirou a obra de Kelsen, desde que a
natureza do Direito, não se fundando naquilo que empiricamente se realiza, nem
tampouco nos motivos interiores ou puramente morais, revela-se, de outra parte, na
razão pura.85 Aliás, diga-se de passagem que as polêmicas dogmáticas em torno
da noção de abuso do direito, como demonstrado nas seções anteriores deste
capítulo, alimentam-se, na subjacência, de dispu- tas filosóficas, de questões
aporéticas, o que explica as dificuldades. Incumbe à teoria geral do direito —
sobretudo a uma teoria crítica — trazer à tona do debate estas questões latentes.
Entretanto, como já dito, o método fenomenológico supera aquele percalço apontado
de início exatamente porque o seu a priori é material, ou seja, precisamente porque
Husserl entende que as essências são captadas não mais por uma estrutura
apriorística do espírito, mas através da intuição, maneira pela qual o conceito de
experiência se expande além do horizonte do empírico, já que as essências tam-
bém são desta forma experimentadas.86
Com a reflexão da consciência intencional sobre si mesma, o conceito universal vai-
se impregnando do mundo da vida. O sujeito transcendental conserva apenas um
caráter abstrato, na medida
Início da nota de rodapé
(85) o racionalismo consiste na tendência a considerar verdadeiro apenas o
conhecimento que esteja fundado em dados racionais. Por isso, toda experiência
tem de ser racionalizada para que o conhecimento obtido através dos sentidos
possa ser considerado verdadeiro; a descoberta da verdade por procedimentos não-
racionais, a exemplo da intuição e da revelação, é enganosa, pois seus resultados
sempre têm de se submeter ao crivo da razão.
(86) Recaséns Siches, Estudios de Filosofía del Derecho, in Recaséns Siches e De1
Vecchio, Filosofía del Derecho, Tomo I, México, Union Tipografica Editorial Hispano-
Americana, 1946, p.70 e 7 1, e Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 40-42. Ver
também, no mesmo sentido, Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1. ed., São Paulo,
Saraiva, 1986, p. 365, e Luiz Fernando Coelho, op. cit., p. 5,1 1 1,1 12.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
em que se faz sujeito concreto, sujeito no mundo.87 A fenomenolo- gia vê
ajuridicidade como uma atividade consciente, um conjunto de experiências de ordem
prática que constitui o mundo vivido. E na análise sistemática da experiência que se
pode buscar a certeza, embora apenas como fenômeno.88 Mas o que importa,
afinal, é que é este exatamente o mundo em que se vive, aquele que todas as
pessoas experimentam. Por isso, é na realidade revelada pela experiência prática do
processo judicial que está a verdade objetiva do direito. O conceito de abuso
somente pode ser compreendido nesse contexto, que permite explicar a
singularidade da ciência jurídi- ca, uma hibridação de saber descritivo e prática
prescritiva, um campo em que a atividade do estudioso vai sendo aos poucos
incorporada ao seu próprio objeto de estudo. Daí a dificuldade, sob outro ponto de
vista (dicotomia sujeito-objeto), de tentar justifi- car uma ciência que descreve e, ao
mesmo tempo, modifica o próprio objeto da descrição.89
Exemplo da dificuldade acima apontada pode ser visto na Teo- ria Pura do Direito,
quando Kelsen estabelece a distinção entre
Início da nota de rodapé
(87) Emile Bréhier, op. cit., p. 670.
(88) A fenomenologia husserliana, que se aplica a todos os campos do co-
nhecimento humano, como são as artes, as ciências, a matemática, admi- te que,
sob o ponto de vista fïiosófico, é possível o conhecimento das coisas puras, da
idealidade. Assim, a Filosofia da Matemática, porexem- pio, trata dos fundamentos
lógicos da aritmética, ao passo que a feno- menologia da matemática irá tratar das
experiências envolvidas na práti- ca da aritmética, nas operações que se realizam
com os números, por exem- p1o (Husseri, op. cit. voi. l, introducción, cap. 2, § 1 3, p.
57, investigaciones para lafenomenologia y teoria del conocimiento, introducción, § 2
e 3, p. 217-222). Assim também se passa com o Direito.
(89) A propósito destas dificuldades, ver, particularmente, Luís Alberto Warat, E1
derecho y su lenguaje, Buenos Aires, Cooperadora de Dere- cho y Ciencias
Sociales, 1976, p. 171; Alberto Casalmiglia, op. cit., p. 244. Karl Larenz, op. cit., p.
177-241, TheodorViehweg, Tópicayfilo- sofia del derecho, Barcelona, Gedisa
Editorial, p. 1 5-28, 77-85, e Carlos Santiago Nino, introducción alanálisis del
derecho, 2. ed., BuenosAires, Editorial Astrea, p. 338-347. Ver, outrossim, o que foi
dito no segundo capítulo (seção 2.3).
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
Proposição jurídica (enunciado que descreve a norma) e norma jurídica (objeto da
ciência normativa). E que para ojusfilósofo aus- tríaco, a proposição jurídica também
é normativa, por descrever normas do dever-ser. Apesar disto, a proposição jurídica
não tem um sentido prescritivo, mas sim descritivo.90 Husserl, de outra for- ma,
sustenta que o conteúdo teorético está separado da idéia de normação, do dever-ser
que é objeto de investigação das disciplinas teóricas. As disciplinas normativas
cuidam sobretudo de vaIorações práticas.9 Enquanto Kelsen concebe a norma
fundamental como categoria formal a priori, pressuposto de validade do or-
denamento jurídico, a fenomenologia husserliana permite entender que o dever-ser
da norma fundamental é a priori material, de con- teúdo axiológico, integrante da
essência mesma da ordem normati- va, à qual se tem acesso por intuição.92 Nisto
consiste o giro fenomenológico que permite contornar as dificuldades
epistemológicas de uma ciência que descreve prescrevendo.
Trazendo estas reflexões para o campo do abuso do direito no processo, tem-se de
concluir que o significado do uso anormal do direito de demanda, que está no plano
das realizações culturais, é intuitivo. A análise, hic et nunc, de uma prática abusiva,
embora singular, contigente e transitória, permite construir, a partir daquilo que é
particular e específico, um conceito universal.93 Neste sentido, a fenomenologia,
fonte de inspiração da teoria egológica de Carlos Cossio e da teoria tridimensional
de Miguel Reale, permite superar as críticas freqüentemente formuladas contra a
pretensão de fundar o Direito em bases científicas, críticas estas que se orientam
exata- mente no sentido de que, partindo da casuística, não é possível produzir um
conhecimento científico. Isto faz Iembrar a máxima de Poincaré, segundo a qual
uma acumulação defatos não é ciência, assim como um amontoado de pedras não é
uma casa. E certo que
Início da nota de rodapé
(90) Hans Kelsen, op. cit.. p. 1 15 e 1 16. Husserl, op. cit., vol. 1, Cap. I, § 14 e 15, p.
60 a 64.
(92) Luiz Fernando Coelho, op. cit., p. 1 l 1 e ¡ 12.Miguel Reale, Filosofia do Direito,
1 l. ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p.366e367.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
o pensamento do matemático e filósofo francês tem em conta outra questão, ou
seja, oproblema da interpretação na investigação científica, que não está limitada à
coleta dos dados. Mas aqui também é inovadora a fenomenologia jurídica.
Com efeito, toda significação reclama uma verificação intuitiva. Isto não é outra coisa
senão dizer, com Kelsen, que um mínimo de eficácia é condição de validade.94
Daíporque inconcebível a existência de uma normajurídica como simples categoria
mental. O significado da normajurídica surge, precisamente, no momento em que
coincidem aquilo que é simplesmente pensado e a intuição. Isto se dá através de um
ato de cumprimento (na terminologia de Husserl), que é a realização da intenção.95
O texto da norma não é expressão de um caso concreto, mas uma categoria mental.
Somente quando o juiz aplica a norma ao caso concreto revela-se o significado. Já
na escolha mesma da norma jurídica que integra o primeiro enunciado do silogismo
condicional (Sep, então q; p; q), há uma intuição valorativa. Muitas vezes o juiz
prefere uma regra legal à outra. Esta
Início da nota de rodapé
(94) Hans Kelsen, op. cit., p. 29 a 3 1. A propósito desta relação entre verifi- cação
intuitiva e eflcácia, v. Carlos Cossio, op. cit., p. 109.
(95) A propósito da noção de cumprimento, v. Edmund Husserl, op. cit., vol. 2, Sexta
investigação, introducción, p. 597-601; Sexta investigação, Primeira Seção, Cap. 1,
§ 8-10, p. 621-627; Sexta investigação, Pri- meira Seção, Cap. 3, § 16 a 18, p. 645-
650; José Ferrater Mora, Fundamentos de Filosofía, Madrid, Alianza Editorial S.A.,
1987, p. 172- 175. Segundo exposição feita por Carlos Cossio, o juízo, em razão de
sua imanente intencionalidade, reclama uma intuição que possa verificá- Io.
Somente através dela o juízo completa-se, deixando de ser mero pensamento. Eis
aqui o ato de cumprimento, a coincidência entre aquiIo que está na mente e aquilo
que está na intuição. Por isso, a existência das normas depende da existência dos
fatos. Este o sentido do chamado Princípio da Efetividade. Isto quer dizer que uma
norma jurídica não é verdadeira norma se não tem uma verificação intuitiva, que lhe
dá significado (Carlos Cossio, op. cit., p. 108 e 109). Para Husserl, a lógica pura não
trata de juízos propriamente ditos, mas sim de estruturas de juízos. Aqui reside a
crítica husserliana à indiferença da Iógica formal em relação à verdade (op. cit., vol.
I, Prolegomenos a la lógica pura, Cap. 1 1, § 66-72, p. 1 99-2 1 1; Investigaciones
para lafenomenologia y teoria delconocimiento, § 1, p. 215 e 216).
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Página 217
A TEORIA DO SIGNIFICADO
opção, que está por trás da primeira premissa de um argumento de- dutivo, é
orientada por uma convicção pessoal dojulgador. Não basta o fato empírico.
Também não basta a norma como pensada pelo legislador. As vivências
intencionais, a consciência voltada para o caso que é objeto do processo,
constituem o ato que confere significado às categorias jurídicas. Em outras palavras,
é da interpretação que nasce o significado.96
Tomando de empréstimo a classificação proposta por Carlos Cossio,97 pode-se
dizer que o julgamento (e isto se aplica ao pro- cesso judicial como um todo) encerra
diversos tipos de verdade: a) a verdade apodítica, aplicada às relações necessárias
entre os con- ceitos, a exemplo da sanção, do ilícito e do deverjurídico; b) a ver-
dade assertiva, que é expressão de um silogismo dedutivo no qual
Início de nota de rodapé
(96) Idem, p. 1 88 a 208. A respeito, ver também KarI Engisch, op. cit., p. 75 a 1 05,
Karl Larenz, op. cit., p. 265 a 27 1, Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o
sistema do direito positivo, São Paulo, RT-Educ, 1977, p. 245 a 248. Para Cossio,
por exemplo, o enunciado universal da nor- ma (Todos os S devem ser P) não é
senão enunciado particular (A1- guns S devem ser P), uma vez que, ao cotejar a
regra legal com o caso concreto, o juiz tem em conta aqueles a quem se aplica a
norma. A ciência jurídica, para Cossio, conhece sempre a partir da ótica do julgador.
O direito posto é o direito aplicado: não é a norma (pensamento), mas a aplicação
da regra à situação concreta (existência). Interessa aojuiz não o conceito (norma) e
sim a conduta (caso concreto). Neste sentido, a ciência do direito só conhece
singularidades, com o que Cossio repete Husserl, dizendo que só há experiência
direta das coisas singulares, nunca das coisas universais. Por isso, para saber o que
é direito, em vez de recorrer à norma, tem-se de verificar a conduta. O ser do direito
não é a norma. Nela está apenas o modo de ser do direito. Em outras palavras, o
que ao jurista não é dado saber sem que recorra à norma é se tal ou qual conduta
está proibida ou permitida. Esta perspectiva, segundo ojusfilósofo argentino, concilia
a tão polêmica antinomia, suscitada pelo realismo jurídico, entre fato e norma, O
racionalismo só enxerga a vali- dade do pensamento (norma) enquanto o
sociologismo só vê a validade da conduta (fato). A conciliação egológica permite
falar de uma validade normativa em uma ciência de realidades (Carlos Cossio, op.
cit., p. 128-139, 183-187, 199-201).
(97) Carlos Cossio, op. cit., p. 193.
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Página 218
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
uma das premissas é construída a partir de dados empiricamente verificáveis, a
exemplo do que ocorre com a provajudicial.98 Há uma terceira forma (c), que é a
verdade assertiva do tipo empírico- dialético, fundada nas valorações jurídicas, o
que mais de perto interessa para os propósitos da presente exposição.
Sob o enfoque da verdade apodítica, é impossível revelar a essência
fenomenológica do uso anormal do direito de demanda. Assim, se é certo que o uso
anormal de um direito deve ser impedi- do, tem-se de buscar o fundamento desta
proibição. Se ela está na norma, há de se indagar se a regra é provida de sanção.
Em caso positivo, já não se está mais em condições de separar o ilícito do abuso.
Em caso negativo, fica a dúvida quanto ao caráter normati- vo da proibição, que
mais se assemelharia a uma exortação, a um conselho ou a uma diretriz, vale dizer,
a uma regra deontológica, mas não jurídica. Mas se a proibição não está na norma
posta, necessário indagar acerca de outro fundamento jurídico qualquer, recorrendo
a uma justificativa teórica, a uma ratio, que não integra o sistema.
A reflexão sobre o fundamento jurídico da proibição do uso anor- mal do processo
encontra lugar, sob uma perspectiva fenomenológica,
Início da nota de rodapé
(98) Para ilustrar a verdade assertiva, veja-se a seguinte série de argumentos: 1 —
Todos os policiais, ao depor contra o réu emjuízo, mentem; O policial Ticio depôs
contra o réu em juízo; O policial Ticio mentiu. A conclusão deste quase-silogismo,
que tem forma dedutiva, por sua vez, pode ser utilizada como uma das premissas
que compõem o silogismo condicional empregado na sentença judicial: 2 — Todas
as testemunhas que mentem devem ser condenadas a cumprir pena de reclusão; O
poli- cial Ticio mentiu; Tício deve cumprir pena de reclusão. Trata-se de um
silogismo condicional válido, no qual se afirma o antecedente. Importante observar
que a primeira premissa do argumento i é prévia conclusão de um argumento
indutivo. Neste tipo de argumento, a conclusão sempre diz mais do que dizem as
premissas. Por isso, ainda que verdadeiras as premissas, a conclusão não
necessariamente o será. Vale dizer, examinados vários casos particulares,
constatou-se que os policiais mentem em juízo, tentando incriminar o réu, com o que
buscam legiti- mar o trabalho desenvolvido na fase do inquérito. Partindo do
particular, do empírico, chegou-se à generalização indutiva: Todos os policiais, ao
depor contra o réu em juízo, mentem.
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Página 219
A TEORIA DO SIGNIFICADO
no a priori material, de conteúdo axiológico. O exame da forma como atuam as
partes no processo, além da análise dos dados empíricos, implica
valoraçõesjurídicas. No segundo capítulo, viu-se que existem certos standards,
núcleos significativos em torno dos quais gravita a questão do abuso do direito no
processo. O significado surge de um ponto de vista estimativo, por meio de uma
intuição intelectiva. Assim, além do significado que nasce das relações necessárias,
das relações sintáticas entre conceitos do a priori formal, o sentido das expressões
jurídicas surge também dos valores prudenciais, que implicam uma tomada de
posição dante do caso concreto. Para poder situar-se, o julgador terá em conta a
finalidade do processo, condicionada às possibilidades históricas e sociais de sua
realização. Dele também se espera que não se deixe enganar por um utilitarismo
perverso, e mais, que esteja em condições de prever o resultado de sua decisão.99
O dever da verdade processual, por exemplo, é conceito bastante polêmico. De um
lado, há os que entendem que, além da desconformidade entre o fato e aquilo que
está na mente de quem descreve o fato, necessário seria examinar, para saber da
infringência a esse dever, o querer, a vontade de burlar o intelecto por parte de
quem apresenta o relato desconforme (subjetivismo). De outro lado, existem aqueles
que prescindem da existência do ânimo emulativo do litigante (objetivismo). Mas a
distinção, no campo concreto, coloca em pauta a necessidade de critérios dejustiça,
razão por quejá se entendeu que certos meios protelatórios muitas vezes se
justificam para evitar mal maior. E o caso do devedor que, na esperança de receber
numerário, procrastina o desfecho da execução judicial.100
Início da nota de rodapé
(99) Recaséns Siches, Introducción al estudio del derecho, México, Porruá, 1 98 1,
p. 254-260. A respeito dos standards jurídicos, ver o que foi dito no primeiro capítulo
(seção 1.4). A propósito de uma visão utilitarista do processo, v. a nota 1 12, Iogo à
frente.
(100) o exemplo, já utilizado no capítulo anterior (seção 2.2), é de Carvalho de
Mendonça (Código de Processo Civjl Interpretado, vol. 1, Rio de Janeiro, Livraria
Editora Freitas Bastos, 1940, p. 112 e 113). Sobre os expedientes procrastinatórios,
assim disse Piero Calamandrei: este abuso da finalidade dilatória dos meios
processuais é tão comum e tradicional,
Fim da nota de rodapé
Página 220
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
O chamado dever de completude também coloca em discussão a necessidade de
critérios axiológicos no exame da verdade processual. A propósito, citava-se, no
capítulo anterior (seção 2.4), um exemplo de Couture, ao figurar a hipótese de ação
de divórcio, na qual o litigante esconde o real motivo da ruptura conjugal, para
poupar a prole da desdita do cônjuge adúltero, contra quem a demanda foi
proposta.101 E aquilo que as pessoas costumam tratar por meia verdade.
Para a fenomenologia, a verdade é a evidência com que os objetos se apresentam a
partir da epoché, que deixa entre parênteses os dados empíricos e acidentais do
objeto, libertando-o do que é contingente, individual. Assim chega-se à essência, ao
conceito univer- sal, captado não mais por uma estrutura apriorística do espírito,
mas através da intuição, de uma razão alargada. Com a reflexão da cons- ciência
intencional sobre si mesma, o conceito universal vai-se impregnando do mundo da
vida. A verdade processual passa a ser vista, então, como um conjunto de
experiências de ordem prática que constitui o mundo vivido. Neste sentido, a arte
tem a sua verda- de, que é estética, assim como o direito também a tem. O processo
judicial busca a acomodação dos conflitos na base de regras de procedimento
adrede conhecidas, dentre as quais está aquela que diz que ao julgador compete, à
luz da prova produzida, aplicar ao fato, como reconstruído pelo discurso dialético
das partes, determinada norma jurídica. Outra regra do jogo processual consiste em
dizer a verdade. A verdade, entretanto, não é mais que verossimilhança, não é mais
do que aproximação dos fatos empíricos, assim como tam- bém o é a verdade
histórica.102
que se tornou mesmo objeto de estudo, considerando-se-o não como uma
degeneração patológica, mas sim como refinado virtuosismo de boa prática forense.
(Estudios sobre el Proceso Civil, in Derecho Procesal Civil 111, Buenos Aires,
Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 276). E, em outro ponto da mesma
obra, colhe-se: a lealdade prescrita, é lealdade nojogo; ojogo, isto é, a competição
de habilidade, é lícito. Porém não se permite a trapaça (idem, p. 268 e 269).
Início da nota de rodapé
(101) Eduardo J. Couture, Estudios de Derecho Procesal Civil, tomo I, 2. ed.,
Buenos Aires, Depalma, 1978, p. 249-253.
(102) Piero Calamandrei, Estudios sobre el Proceso Civil, in Derecho Procesal Civil,
vol. 3, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1 973,
Fim da nota de rodapé
Página 221
A TEORIA DO SIGNIFICADO
A legislação brasileira pune, com pena de reclusão, a testemunha que falta com a
verdade. Por questões éticas ou pragmáticas,
Início de nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
p. 3 1 9. Neste ponto, e ainda a propósito do policial Ticio, que foi condenado por
haver mentido em juízo, veja-se que a conclusão do argumento indutivo (Todos os
policiais, ao depor contra o réu em juízo, mentem), que serviu de base para o quase-
silogismo (cuja conclusão é O policial Ticio mentiu), bem demonstra como o julgador
é influen- ciado por sua particular visão de mundo. Experiências particulares, fa- tos
isolados que Ihe impressionaram o espírito podem contribuir para uma indevida
generalização indutiva (a propósito do valor do depoimento de policial é farta a
jurisprudência, como se pode ver em Julio Fabbrini Mirabete, Código de Processo
Penal interpretado — referências dou- trinárias, indicações legais, resenhas
jurisprudenciais, 5. ed., São Pau- lo, Atlas, 1 987, p. 282). Carlos Cossio, depois de
afirmar que o direito é uma ciência das singularidades, dirá que há uma pluralidade
de circunstâncias que compõem o caso concreto. Para ver esta totalidade como
conjunto, é necessário examiná-la em perspectiva, tal qual se contempla um Iago
sempre de um ou outro ponto de suas margens. Isto quer dizer que haverá sempre a
escolha de uma circunstância como clave ou meridiano para hierarquizar o conjunto,
escolha esta baseada na intuição axiológica do caso. A circunstância que assim
serve de guia para a compreensão do conjunto tanto pode ser uma daquelas que
estão na norma, tal qual pensada, como também uma outra que não a integra,
porque, afinal, todas intuem a mesma conduta, com a mesma possibilidade de
apresentá-Ia em perspectiva. O problema da verdade jurídica está, precisamente,
em determinar a melhor perspectiva, dentro de certas exigências de objetividade.
Trata-se de uma verdade axiológica, porquanto as circunstâncias do caso são
percebidas onticamente pela intuição sensível, mas ontologicamente compreendidas
e, assim, valoradas. O trabalho de subsunção é uma verdadeira integração de
sentido, que se dá em uma vivência complexa, na qual aparecem refundidos o
sentido mental da norma e o sentido efetivo da conduta. O conhecimento do juiz é
um ato de compreensão pelo qual, ao aplicar o conceito ao caso concreto, terá de
recriar o sentido da conduta, vivenciando-o novamente (Carlos Cossio, op. cit., p.
185 a 187, 196 a 198). A dogmática penal mesmajá incorporou estas reflexões
jusfilosóficas: o Juiz, ao solucionar a questão penal — definição jurídico-penal
positiva ou negativa — conheceu-a. O conhecimento, como pode parecer no
primeiro lanço, não parte de pura descrição do fato, imerso em suas
circunstancialidades e emergente na acusação, ou em outra simples afirmação do
dever-ser. O julgador vai ao
Fim da nota de rodapé
Página 222
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
tanto na esfera civil como na esfera penal, dispensa certas pessoas do compromisso
de dizer a verdade. Assim sucede no caso de testemunhas suspeitas ou impedidas,
a exemplo, respectivamente, do cônjuge da parte e daquele que tiver interesse no
litígio. Veja-se que a parte também está no dever de dizer a verdade (art. 14, I, e 17,
11, do CPC), exceçäo feita ao réu no processo-crime, que tem o direito de
permanecer calado (art. 5.°, LXIII, da C.F.).103 Se o autor da ação penal mentir,
imputando falsamente a prática de crime ao réu, res- ponderá pela prática de
denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal).104 No processo civil, a parte
que se recusar a depor ou mesmo que tergiversar a respeito dos fatos estará sujeita,
em qual- quer dos casos, ao ônus da confissão (art. 343, § 2.°, do CPC). Fal- tando
com a verdade, poderá ser condenada ao pagamento das des- pesas e dos
honorários advocatícios, o que não a dispensa do dever de indenizar a parte
contrária (arts. 16 e 18 do CPC).
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
fato, posto em Juízo, mas já antes aprestado com o modelo legal de conduta... Não
é tudo, porém. A cognição consiste em estado de consciência intencional. Sentença
adveio de sentir. Conhecer, entretanto, está em agir, vendo uma realidade — não a
realidade.... O fato, aí não é mera re- presentação ou simples imagem mental,
porém o existente, o concreto, tanto que desvendado pelos meios de prova (Sergio
Marcos de Moraes Pitombo, O juiz penal e a pesquisa da verdade material, in
Hermínio Alberto Marques Porto e Marco Antonio Marques da Silva [org.], Processo
Penal e Constituição Federal, São Paulo, EditoraAcadêmica, l 993 [Coleção Temas
de Direito e Processo Penal], p. 72 e 73).
(103) O Supremo Tribunal Federal, aplicando o texto da Constituição, tem entendido
que o direito de permanecer calado inclui, implicitamente, a prerrogativa processual
de o réu negar, ainda que falsamente, a prática da infração penal (HC 68.929-9, DJU
de 28.08.92, p. 1 3.453, apud Julio Fabbrini Mirabete, op. cit., p. 265). O réu só não
pode mentir quanto a sua identidade ou autoacusar-se falsamente, porque estas
práticas encontram punição no Código Penal, caracterizando crime, portanto (arts.
307 e 341).
(104) o Promotor de Justiça também comete o crime de denunciação caluniosa
quando age com interesses subalternos, imputando a alguém crime de que o sabe
inocente (Vicenzo Manzini, Trattato di Diritto Penale Ita- liano, vol. 5, Torino, Unione
Tipografico-EditríceTorinese, 1 950, s. l 624 e I 632, p. 683 e 705).
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
Há hipóteses, entretanto, nas quais a parte, tanto quanto a testemunha (art. 347 e
incisos do CPC; art. 208 do CPP), não tem o dever de dizer a verdade. E o caso do
sigilo de profissão, ministério ou função (art. 406, 11, do CPC; art. 207 do CPP) e
também, no campo do processo civil, do depoimento acerca de fatos que possam
acarretar graves danos à própria testemunha ou à própria parte (art. 406, I, do CPC;
art. 347 do CPC). Mesmo que se mostre imprescindível ao conhecimento dos fatos,
à falta de outras provas, as testemunhas suspeitas ou impedidas não podem ser
obrigadas à verdade (art. 405, § 4.°, do CPC; art. 214 do CPP). Diversamente, as
partes, no processo civil, em determinadas ações de estado, têm o dever de dizer a
verdade (art. 347, parágrafo único, do CPC).105
René Popesco sustenta que a parte, no processo civil, também tem o direito de
calar, isto em decorrência da liberdade de não se apresentar em juízo. Mas, em
contrapartida, o outro litigante tem o direito de ouvir a parte. O magistrado, por sua
vez, tem o poder e, às vezes, até o dever de interrogá-la. Por isso, aquele que se
recusa a depor, sob simples alegação de que tem o direito de permanecer calado,
abusa deste direito, opondo-se ao próprio interesse social, que tem em conta a
rápida solução dos litígios.106 Daí o ônus da con- fissão, há pouco mencionado.
Este ponto de vista dá a exata dimen- são das dificuldades que envolvem o tema da
verdade processual e do abuso do direito.
Com efeito, a parte tem o dever de dizer a verdade (art. 14, I, do CPC). Conduzindo-
se de forma diversa, pratica um ilícito, pois,
Início da nota de rodapé
(105) Durante a tramitação do Projeto de Lei, o Senador e civilista baiano Nélson
Carneiro propôs a supressão da obrigação de dizer a verdade, nas circunstâncias
previstas no artigo 347 do Código de Processo Ci- vil, mesmo no caso das ações de
estado (parágrafo único). Todavia, o texto manteve-se inalterado (Aiexandre de
Paula, Código de Processo CivilAnotado, 4. ed., vol. 2, São Paulo, RT, 1988, p.
1.293).
(106) René Popesco, Le silence créateur dobligation et l abus du droit, apud J. M. de
Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, 7. ed., vol. 3, Rio de Janeiro,
Livraria Freitas Bastos, 1 958, p. 369 e 370, apud Moacyr Amaral Santos, Prova
Judiciária no Civel e Comercial, 5. ed., vol. 2, São Paulo, Saraiva, 1983, p. 237-239.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
neste caso, a lei prevê sanção (arts 16, 17 e 18 do CPC). Ocorre que o silêncio é
uma atitude ambígua. Dele já se disse que implica consentimento (qui tacet
consentire videtur). Mas esta presunção não está livre de controvérsias, porquanto,
segundo a regra de Paulo, quem cala nem por isso confessa, sendo certo apenas
que não nega (qui tacet, non utiquefatetur sed tantum verum est eum non negare).
Muitas vezes, o silêncio revela-se como forma perversa de obstar à fruição de um
direito, exatamente porque imobiliza. Para fugir ao impasse, para impedir que a
parte, com sua omissão, pudesse decidir sobre a sorte do processo, recorreu o
legislador ao ônus da con- fissão. Não se trata de buscar a verdade, mas de garantir
a aplicação dajustiça, dentro de determinadas regras, adrede conhecidas.
Sob este enfoque, o dever de dizer a verdade (cuja infringência implica imposição de
sanção e não simples ônus processual) aplica-se somente àquele que fala, de onde
é dado concluir que não se há de exigir da parte a revelação de fatos que possam
favorecer o outro litigante. Calando, não estará sujeita a pena, mas apenas a um
ônus processual, exatamente porque não se admite que abuse do direito de
permanecer em silêncio.107 De qualquer forma, esta confissão tácita não é uma
presunção absoluta. Cabe ao juiz apreciar o conjunto probatório, saber da
verossimilhança e coerência dos de- mais elementos de convicção existentes nos
autos, como constava da norma do artigo 229, § 2.°, do Código de 39. Ademais,
nem sempre o silêncio da parte é abusivo. O que se vê é que o Iegislador, mesmo
no processo penal, em que vige como regra o principio
Início da nota de rodapé
(107) Neste aspecto, não deve impressionar o uso da expressãopena de confissão,
já que as definições são contextuais. Em outras palavras, não há um vínculo natural
entre as palavras e as coisas, como sustentam os realistas, apegados ao idealismo
platônico. A relação que se estabelece entre as palavras e aquilo que elas
pretendem significar é convencional. No sistema adotado pelo Código, há uma
presunção de manifestação da vontade de confessar. Giuseppe Chiovenda explica
que, tal como sucede com a revelia, a presunção visa a tornar o processo mais
célere, com o que se cumpre um interesse social. A confissão tácita, assim, não tem
o caráter de sanção, como ocorria na elaboração dos antigos (Instituições de Direito
Processual Civil, vol. 2, 111, São Paulo, Saraiva, 1 965, p. 368).
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
inquisitivo, quis poupar partes e testemunhas, em certas situações, do
constrangimento da verdade.108 Como bem o disse Couture, a verdade é muitas
vezes dramática, para não dizer patética.109 Por isso, crê-se que não se tem o
dever de dizê-la quando dela possa resultar notório dano pessoal.
Assim, diante da multifacetada significação da verdade processual, há quem prefira
falar na existência de um dever de probidade processual, por abranger também os
aspectos axiológicos, o que envolve a questão da boa-fé.110 Em outras palavras, a
verdade não é tim objetivo que se deva alcançar a qualquer preço, não porque o
processo seja propriamente um jogo de habilidades e astúcia, mas pelo só fato de
que nem tudo a todos se diz. 111 O significado do uso
Início da nota de rodapé
(108) A jurisprudência, sensível à realidade social, tem entendido, com base no art.
226, § 3.° da Constituição Federal, que a exceção ao dever de dizer a verdade
também se estende àquelas testemunhas que, sem ter parentesco com a parte, por
consangüinidade ou afinidade, acham-se socialmente e sentimentalmente ligadas a
ela por laços resultantes de união estável entre a parte e um dos parentes da
testemunha.
(109) Conta Couture que umajovem e abnegada advogada do Estado patroci- nou
ação de investigação de paternidade cuja prova pericial (exame hematológico) foi
negativa. Por insistência da mãe da autora — que dizia ter sido o réu o único homem
de sua vida — as partes submeteram-se a novo exame, com o mesmo resultado.
Desconsolada e descrente na justiça, a representante legal da criança pediu que
fosse realizado um terceiro exame, quando então se soube que tampouco era ela a
mãe da criança, porcerto, trocada na maternidade. (Eduardo J. Couture, Estudios de
Derecho Procesal Civil, 2. ed., tomo 111, Buenos Aires, Ediciones Depalma, 1978, p.
257 e 258).
(110) A questão da boa-fé também se presta a diversas interpretações. Há quem
cogite de um dever objetivo e outros de um dever subjetivo.
(111) Para a dogmática penal, a verdade material deve ser entendida de duas
formas: no sentido de uma verdade subtrafda à influência que, através do seu
comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela, mas
também no sentido de uma verdade que. não sendo absoluta ou ontológica, há de
ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade
obtida a todo preço, mas processualmente válida (Jorge de Figueiredo Dias, Direito
Processual Pe- nal, Coimbra, Coimbra Editora, vol. 1, 1974, p. 193 e 194).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
normal do processo, sob o ponto de vista fenomenológico, sob o ângulo de uma
intuição estimativa, está na conformidade da conduta das partes aos padrões sociais
e morais vigentes, àquilo que o senso comum reconhece como certo, enfim, ao
mundo da vida,112 que nada tem a ver com a verdade metafísica ou com a verdade
empírica.
Não faltam, porém, críticas à fenomenologia husserliana, da qual se diz ser idealista,
pois que a realidade, para Husserl, é ideal por natureza, como ocorreu a Platão.113
O significado surge, assim, como uma entidade ideal objetiva, conforme resulta da
sua concepção de
Início da nota de rodapé
(112) Por isso, não existe no método fenomenológico qualquer referência a um
utilitarismo à moda de Bentham, segundo o qual verdadeiro é aquilo de que se pode
extrair conseqüências práticas, aquilo que é útil, que pode ser colocado a serviço da
ação humana com vista a maior soma de felicidade (Johannes Hessen, op. cit., p. 50
a 54). A propósito de uma teoria utilitarista do abuso do direito remete-se o leitor à
nota 39 do primeiro capítulo, seção 1.1. Como dizAlfRoss, uma coisa é o útil, a
vanta- gem, e outra ojusto, aquilo que deve ser. As considerações acerca da
utilidade são importantes, mas não se confundem com as exigências de justiça.
Muito embora fosse o intento de Bentham refutar a concepção da idéias inatas, das
verdades a priori, que se vê no idealismo subjeti- vista de Locke, tanto quanto
rechaçar o jusnaturalismo, é certo que o utilitarismo está preso à ilusão de construir
uma teoria dajustiça sobre bases morais, na natureza racional do homem, cujo
conhecimento é dado por uma intuição intelectual (Alf Ross, Sobre el derecho y
Iajusticia, 2. ed, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1 997, p. 357-
364). A propósito, para Sergio Marcos de Moraes Pitombo, o problema da verdade
processual não guarda relação com a utilidade do processo, com o seu custo-
benefício, ou algo semelhante. Daí advertir o autor acerca dos perigos de se fazer
prevalente a idéia de instrumentalidade sobre a dejustiça (Sergio Marcos de Moraes
Pitombo, op. cit., p. 73). Registre-se que a tese da instrumentalidade processual,
como desen- volvida pela moderna processualística, guarda estreita relação com o
pragmatismo utiiitarista. Nessa terceira fase metodológica do process0, há uma
preocupação com a efetividade da tutela jurisdicional. A propósito, ver o que foi dito
no segundo capítulo (seção 2.1). Esta anáIise será retomada no último capítulo.
(113) Adam Schaff, op. cit., p. 233 a237.
Fim da nota de rodapé
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A TEORIA DO SIGNIFICADO
atos intencionais. Com efeito, Husserl diz que a significação cons- titui uma classe
de conceitos em sentido universal, que a despeito de não terem existência concreta,
possuem um ser, uma essência. Por isso, os objetos ideais existem e assim como é
certo que acerca deles se pode falar (como se fala do número 2 e do princípio da
con- tradição), certo também é que tais objetos são apreensíveis intelectivamente. A
lógica pura, quando trata dos conceitos, dos juízos, dos argumentos, ocupa-se
precisamente das unidades ideais que Husserl chama de signiflcação. Uma coisa é
o significado, uma entidade ideal, e outra coisa são as experiências concretas, as
vivências que surgem do significado, as quais podem ser exprimidas de diversas
maneiras.114
A evidência com a qual o significado surge a partir da epoché não é senão
atransformação de uma consciencia individual, talqual concebida pelo psicologismo,
em uma consciência supra-individual. Parte-se do singular, do contingente, daquilo
que é comum às experiências individuais acerca de um determinado significado,
para depois rechaçar (colocando entre parênteses) tudo aquilo que é particular,
secundário, com o que se encontra o sentido ideal das palavras. A referência ao
objeto intencional — que é experimentado, ainda que não exista na realidade
objetiva — dá-se através de uma visão direta da essência das coisas, que não é
intersubjetiva, vale dizer, que não se presta a demonstrações. Esta é a principal
crítica que o positivismo lógico formula contra a fenomenologia, à qual também se
seguiu a crítica do materialismo dialético.115
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(114) Edmund Husserl, op. cit., vol. I, Primeira Investigação, Cap. 1, § 1 1, p. 246,
Cap. 3, § 29, p.281, Cap. 4 § 3 1, 32 e 35 p. 287, 288 e 309; Segun- da investigação,
Cap. 2, § 8, p. 309, Cap. 4, § 31, p. 352.
(115) A propósito das formulações desenvolvidas neste parágrafo, ver, mais
amplamente, Adam Schaff, de onde as referências foram retiradas (op. cit., p. 241 -
248). Como registra Alaôr Caffé Alves, nós não nascemos humanos primeiramente,
perfeitos e acabados (essência humana), para depois transformar o mundo, pois o
humano se dá precisamente no pro- cesso de transformação do mundo e do próprio
homem, no transcorrer da história. Isso não reclama apenas a cognição, a teoria, o
pensamento Iógico, mas principalmente a ação prática, o mundo em movimento, a
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Estas objeções, que têm repercussão no exame do abuso dos direitos processuais,
levaram a uma reformulação do conceito de mundo da vida, como será visto no
último capítulo.
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vontade e o interesse... A Lógica Formal é uma lógica pura, uma lógica de
identidade abstrata, do pensamento puro, não localizado no tempo e no espaço. Por
isso que ela é muito usada por Husserl, ao buscar essências ideais, imóveis
perfeitas, eternas, imutáveis. E a razão lógica, a razão formal (Alaôr Caffé Alves,
Lógica — Pensamento formal e argumentação — Elementos para o discuso jurídico,
São Paulo, Edipro, 2000, p. 388).
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4
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
SUMÁRIO: 4. 1 O paradoxo de Wittgenstein — 4.2 A superação da teoria
representativa — 4.3 Razão teórica versus razão prática — 4.4 A Iinguagem e a
construção da realidade.
4.1 O paradoxo de Wittgenstein
A possibilidade do apriori material, em Husserl, tem como pressuposto a evidência
com que os objetos se apresentam a partir da epoché. Em outras palavras, a
pluralidade de significados da experiência, dos diversos níveis de realidade,
pressupõe um momento em que as coisas possam ser conhecidas como elas
mesmas são, vale dizer, como se apresentam à consciência, ao eu transcendental.
No dizer de Remo Bodei, a perda do mundo da vida, ou seja, a sua suspensão por
meio da epoché, torna-se a premissa de sua reconquista.1 Todo idealismo
husserliano reside precisamente nessa con- sideração do fenômeno como absoluto.
Com efeito, a redução fenomenológica revela uma profunda fratura entre a atitude
teórica que busca essências não acessíveis ao conhecimento humano e aquela
outra, que volta a compor a trama de relações cognoscitivas e afetivas, às quais o
sujeito, personagem do mundo da vida, está preso. Quando a decisão judicial dispõe
acerca da prática de abuso no processo há, por detrás dela, uma série de
indagações, avaliações, sentimentos e motivações que se materializam na
intervenção concreta do julgador. A decisão não pode ser concebida, assim, fora das
circunstâncias do caso em exame, das
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(1) Remo Bodei, Afilosofia do século XX, Bauru, Edusc, 2.000, p. 168.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
suas particularidades, e não vale senão dentro daquele território (limites subjetivo e
objetivo da coisa julgada). Os conceitos normativos e as definições jurídicas não
são, pois, fruto da intuição intelectual de uma natureza intrínseca dos fenômenos
denotados.
Não se pode negar a existência de conceitos universais, como estrutura de unidade
de tudo aquilo que é singular, contingente. Fosse de outra forma, as
decisõesjudiciais seriam expressão de um total subjetivismo. Daí a dizer que esta
unidade possa ser alcança- da por essências dadas na intuição, vai uma distância
que não se pode percorrer senão fazendo algumas concessões ao idealismo
jurídico. Não se concebe uma definição pura de abuso dos direitospro- cessuais
exatamente porque é impossível lançar um olhar neutro sobre o fenômeno jurídico e,
depois, voltar à realidade para vê-la com outros olhos. Seria de se indagar, a
propósito da redução eidética, que fenômeno estaria em condições de impor-se à
consciência do sujeito sem se deixar impregnar dos valores, da maneira de ser de
uma determinada sociedade.2
Como já se teve oportunidade de ver no segundo capítulo (seção 2.3), o processo
judicial está impregnado de historicidade. A legitimação do discurso jurídico dá-se
através de uma rede de estereótipos culturais, traduzidos em formas e fórmulas, que
são garantidos e reforçados pela linguagem. E se é certo que a verdade não está no
universo estável e tangível de sons, cores, espaços e movimentos, não menos certo
é também que não se pode buscar o significado das práticas processuais em uma
razão universal ou em uma intuição da essência do fenômeno jurídico. Tanto quanto
o racionalismo, o transcendentalismo fenomenológico de Husserl é idealista. A
dogmática processual (como de resto toda a dogmática jurídica) inspira-se
precisamente neste movimento pendular, que ora se inclina mais para o
racionalismo jurídico e ora se aproxima mais desta concepção ontológica, deste
intuicionismo intelectivo, à moda de Platão, Descartes e Husserl.
Início da nota de rodapé
(2) Neste mesmo sentido desenvolve-se a análise de Michel Miaille (Uma introdução
crítica ao Direito, Lisboa, Moraes Editores, 1979, p. 282).
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Rechaçando a metafísica contida tanto no idealismo como no realismo, alguns
filósofos-cientistas do início do século XX, na base da análise lingüística dos
enunciados, sustentam que cabe ao filósofo contribuir para o progresso da ciência,
principalmente das ciências formais, a exemplo da Matemática, e das ciências da
natureza, a exemplo da Biologia. O positivismo lógico, que se desenvolveu a partir
do Círculo de Viena, afasta-se de todas as considerações relativas às coisas em si,
à causa última do mundo, ao imperativo categórico e aos valores últimos, objetos
fictícios que constituem o campo de investigação da metafísica, da filosofia dos
valores e da ética. Com isto, o positivismo lógico reduz a filosofia à lógica das
ciências, voltada à análise da linguagem natural, ao exame das vicissitudes e
impropriedades que a tornam inadequada à formulação dos enunciados científicos.3
Ao desprezo que os empiristas nutriam pela metafísica o positivismo lógico somou
as descobertas da lógica contemporânea, sobretudo da lógica simbólica, no intento
de conhecer o significado dos enunciados da ciência. Não é de se estranhar, assim,
que ao lado das contribuições de Frege, Peano e Russell, possam ser encontrados
alguns pontos em comum com Hume e Leibniz, ressalvada, quanto ao primeiro, a
concepção segundo a qual o significado das palavras surge das associações
intramentais (idealismo subjetivo) e observado, no que concerne ao segundo, o seu
interesse pela investigação lógica e não pela metafísica. Para os positivistas, as
proposições significativas dividem-se em formais ou fáticas, vale
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(3) É o que se pode encontrar no ensaio de Carnap, Signficado e sinonímia nas
linguagens naturais, in Moritz Schlick, RudolfCarnap — Coletâ- nea de Textos, 2.
ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pen- sadores), p.129-142. A
respeito, v. A. J. Ayer, Introducción del compi- lador, in A. J. Ayer (org.), El
positivismo lógico, México, l. ed., Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 30-34; A. J.
Ayer, Linguagem, verdade e lógica, Lisboa, Presença, 1991, p. 9-23; A. J. Ayer,
Questões Centrais da Filosofia, Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 37-39; William P.
Alston, ob cit., p. 105-110; Adam Schaff, op. cit, p. 72 e 73; Enrico Pattaro, Filosofia
del derecho. Derecho. Cienciajurídica, Madrid, Instituto Editorial Reus, S.A., p. 58 e
71, e Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 87-92.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
dizer, analíticas ou empíricas. As primeiras, tratando de verdades necessárias, são
tautológicas, ao passo que as outras, que têm um referente no mundo empírico, são
passíveis de verificação. Mas é precisamente no que concerne a este segundo tipo
de enunciado que surgem as primeiras dissensões dentro do positivismo lógico.4
A verificação não é uma possibilidade empírica, mas lógica. Alguns positivistas
cogitam da comparação entre enunciados e fa- tos, como é o caso de Schlick.
Outros, a exemplo de Neurath e Carnap, buscando afastar-se de uma metafísica
realista, sustentam que, sob uma perspectiva lógica, um enunciado somente pode
manter relação com outro enunciado. Há, pois, dois critérios de verificação do
significado das proposições empíricas, quais sejam, o crité- rio de correspondência
(relação entre enunciados e fatos) e o critério de coerência (relação entre
enunciados). Ayer, depois de apresentar uma série de objeções a este último
critério, diz que mesmo Carnap, em suas obras mais recentes, influenciado pelo
Iógico polonês Tarsky, acabou por reconhecer a legitimidade da semântica, muito
embora restrita à eleição de formas lingüísticas, sem se aperceber de que os fatos
denotados sugerem problemas mais sérios.5
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(4) A. J. Ayer, lntroducción del compilador, in A. J. Ayer (org.), Elpositivismo lógico,
México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 15 e 16. A respeito dessas
divergências, ver também John Hospers, op. cit., p. 326-343. A propósito do
idealismo subjetivo de Hume, v. William P. Alston, op. cit., p. 97 e 100, eAdam
Schaff, op. cit., p. 70.
(5) A. J. Ayer, lntroducción del compilador in A. J. Ayer (org.), El positivismo lógico,
México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 26 e 32; igualmente, Manfredo
Araújo de Oliveira, op. cit., p. 82 e 83 e Moritz Schlick, RudolfCarnap — Coletânea
de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pensadores), p. 14 e
15. Sobre a distinção entre verdade como correspondência e verdade como
coerência, v. ainda John Hospers, op. cit., p. 148-158. A propósito das objeções ao
critério de coerência, v. A. J. Ayer, Verijìcacióny experiencia, in A. J. Ayer (org.), El
positivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica. p. 236- 248). Para o
exame da distinção entrepossibilidade empírica epossibi- lidade lógica, ver Carnap,
Testabilidade e significado, in Moritz Schlick, Rudo1fCarnap — Coletânea de Textos,
2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pensadores), p. 171-213. A
propósito, ver também
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Com efeito, Carnap, tanto quanto os demais positivistas lógicos, entende que é
impossível conhecer a constituição e as leis do
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A. J. Ayer, lntroducción del compilador in A. J. Ayer (org.) Elpositivis- ,no lógico,
Madrid, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 26, William P. Alston, op. cit., p. 106-
1 10 e 14 a 123, eJohn Hospers, op. cit., p. 326- 343. Diga-se, a esse respeito, que a
contrastabilidade, como critério de signitïcado, não exige a verificação real do fato,
mas sim a possibilidade de verificação ou confirmação, que não é técnica nem
empírica, mas Iógica. Neste sentido, como observa Alston, a teoria da
verificabilidade coincide com o atomismo lógico desenvolvido por Russell, segundo o
qual a Iinguagem tem níveis de estratificação, o mais simples deles re- velado nas
chamadas orações observacionais, vale dizer, orações básicas que simplesmente
relatam a própria experiência de quem fala. A partir deste nível seria possível atingir
outras estruturas sintáticas que permitiriam orações mais elaboradas, a exemplo dos
enunciados científicos. Existe, entretanto, muita polêmica em torno do critério de ve-
ritïcação. Para Neurath, as proposições da ciência não podem se referir a dados
sensíveis, que fazem parte da experiência privada de cada um, a exemplo da dor.
Os enunciados que se referem a experiências e elaborações mentais, próprias ou de
outrem, são todos enunciados físicos. A linguagem fisicalista da ciência há de ser
intersubjetiva. Schlick, para fugir da acusação de solipsismo, sustenta que a
linguagem referida a dados sensíveis é incomunicável quanto ao conteúdo destes
mesmo dados, mas não quanto a sua estrutura. Embora as sensações sejam pri-
vadas — tanto assim que duas pessoas podem experimentar sensações diversas
em relação à palavra vermelho — é certo que essa palavra é usada nas mesmas
situações, no que se pode reconhecer as mesmas relações entre as impressões a
ela ligadas. Isto bastaria para assegurar a objetividade de proposições que
contenham vermelho. Ayer dirá que a concepção de estrutura faz Iembrar as
qualidades primárias de Locke (idealismo objetivo). Se não posso saber se o meu
vizinho diz o mesmo que eu quando emprega determinada palavra, tampouco tenho
meios para saber se quer dizer o mesmo que eu com o emprego daquela palavra.
Há apenas uma harmonia em nosso comportamento (A. J. Ayer, lntroducción del
compilador in A. J. Ayer (org.), Elpositivismo lógico, México, Fondo de Cultura
Económica, 1 993, p. 24 e 25). Carnap tentou desqualificar as críticas ao solipsismo,
sustentando que sua escolha por uma linguagem solipsista revela um interesse
epistemológico, consistente na explicação da maneira como os conceitos científicos
mantêm conexões Iógicas com a experiência, e não uma descrição da maneira
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
mundo real por meio da pura reflexão, sem qualquer controle empírico. A existência
de sentenças gramaticalmente inquestionáveis mas carentes de significado (pseudo-
sentenças) explica-se pela ausência de convenções que garantam o conhecimento
verdadeiro. Não basta a sintaxe gramatical; é necessária uma sintaxe lógica,
exatamente para fugir às especulações metafísicas. As ciências empíricas
pesquisam fatos apresentados por meio da linguagem natural (L). A linguagem-
sistema da ciência (L) é construída a partir daquelas formações Iingüísticas (L).
Assim como L é Iingua- gem-objeto em relação a L, a Iinguagem da ciência é
linguagem- objeto em relação à filosofia, à qual compete garantir que a lingua- gem
ideal da ciência, artificialmente constituída, imune à ambigüi- dade e à vagueza da
linguagem natural (L), esteja em condições de desenvolver conceitos que possam
ser aplicados na análise empíri- ca da confirmação.6
Carnap registra que a filosofia tradicional tem-se envolvido em pseudodisputas,
porquanto, do ponto de vista do significado científico, tanto a tese realista quanto a
tese idealista não exprimem afirmações sobre fatos. Trata-se, portanto, de pseudo-
enunciados, destituídos de conteúdo, acerca dos quais não se pode falar de
correção ou incorreção. O geógrafo não tem dúvida quanto à existência física de
uma montanha. A divergência entre realistas e idealistas não ocorre no domínio
empírico. Saber se a montanha, além do que se
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como eles são psicologicamente obtidos pelo sujeito individual. No dizer de Ayer,
isto é pouco mais do que umajustificativa da pureza das in- tenções de Carnap, mas
em nada diminui as objeções a sua teoria. A respeito, v. Ayer, lntroducción del
compilador, in A. J. Ayer (org.) El Positivismo Lógico, México, Fondo de Cultura
Económica, 1 993, p. 24, e Moritz Schlick, Rudolf Carnap — Coletânea de Textos,
28 ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pensadores), p. 13.
(6) Carnap, Testabilidade e significado, in Moritz Schlick, RudolfCarnap — Coletânea
de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pensadores),
particularmente p. 1 74 e 1 98-200; Camap, Pseudopro- blemas na Filosofia, in
Moritz Schlick, Rudolf Carnap — Coletânea de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril
Cultural, 1985 (Coleção Os Pensado- res), Carnap, Logische Syntax der Sprache, 2.
ed., Viena, Nova York, 1968, apud Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 73-83.
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
afirma sobre ela, é real, ainda que não se possa conhecer a realidade mesma
(realismo), ou se, de outra forma, somente as percepções ou processos conscientes
são reais (idealismo), é indagação que transcende o campo da experiência para
colocar-se na esfera das lucu- brações metafísicas. Por isso, Camap diz que
nenhuma destas teses pode ser considerada cientificamente significativa.7
Assim, na concepção do positivismo lógico, a filosofia opera como metalinguagem,
que busca identificar, de um ponto de vista puramente sintático (formal), as pseudo-
sentenças metafísicas, verdadeiros non-sens que habitam grande parte das
discussões filosóficas tradicionais. Aplicando a matemática, fundada em axiomas
(estes em si mesmos não dedutíveis, mas a partir dos quais, por inferência, é
possível extrair novas fórmulas), Carnap desenvolveu uma espécie de teoria geral
da estrutura formal dos textos científi- cos. Neste contexto, o critério de verificação
do significado das relações empíricas não poderia ser outro que não o critério de
coerência. Mas se é certo que esta posição permite a Carnap garantir a
intersubjetividade e a objetividade do discurso científico, elaborado em uma língua
universal e indiferente às impressões sensíveis que cada uma das pessoas possa
associar a uma determinada palavra, não menos certo é também que o ideal
empirista de uma ciên- cia unificada sugere uma série de percalços.8
Não se ajusta aos propósitos deste trabalho enunciar os proble- mas que emergiram
daquela concepção fisicalista de Carnap, mas apenas mostrar que ele próprio,
convencido da insuficiência de uma linguagem unilateral, entendeu que o confronto
dos aspectos for- mais da linguagem com a realidade, vale dizer, com o campo
exten- sional dos conceitos e das definições elaboradas pelo cientista, põe em
relevo questões filosóficas das quais a simples análise sintática
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(7) Carnap, Pseudoproblemas na Filosofia, in Moritz Schlick, Rudolf Carnap —
Coletânea de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os
Pensadores), p.157 e 161-163.
(8) A respeito da influência dessa concepção empírica na chamada filoso- fia
analítica, ver Alaôr Caffé Alves, Lógica — Pensamentoformal e argumentação —
Elementos para o discursojurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 320-321.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
não dá conta. A supor que a filosofia, na perspectiva do positivismo lógico, esteja
limitada ao estudo dos fundamentos e métodos da ciência, e mais, que assim sendo,
nada possa dizer acerca da realidade mesma (que é objeto do conhecimento das
ciências empíricas), há de se convir em que, tal qual a teoria do conhecimento, a
filosofia vive um impasse, porquanto faz afirmações sem sentido.9 Wittgenstein
também enfrentou a mesma aporia e a exemplo de Schlick acabou por concluir que
a filosofia é uma atividade e não uma teoria.
No Tractatus, Wittgenstein revela a disposição de estudar a natureza dos
instrumentos do conhecimento, visando a saber se as pretensões da filosofia, no
que excedem o conhecimento empfrico, são ou não Iegítimas. Parte para a
empreitada munido do arsenal
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(9) Em outras palavras, se é certo que a filosofia se ocupa unicamente da estrutura
semiótica da linguagem científica, examinando os procedimentos utilizados pelo
cientista na elaboração dos conceitos, das hipóteses e teorias, e se é certo também
que o conhecimento empírico do real está reservado apenas às ciências
particulares, há de se perguntar, então, sobre o signitcado de uma tal teoria da
ciência, voltada ao conhecimento dos fundamentos do mundo, mas não ao
conhecimento do mundo mesmo. Isto coloca em pauta outro problema da
metaiinguagem filosófica, con- sistente em saber qual o sentido da proposição que
afirma a validade do principio de verificação. Este princípio não é uma sentença
empírica, tampouco tautológica. Ou bem se reconhece que não só os enunciados
fáticos e formais são dotados de sentido, ou se tem de admitir que o fundamento
óltimo de toda certeza científica é uma sentença metafísica, destituída de sentido.
Schlick, fugindo ao dilema, diz que o princípio de verificação não é uma sentença. A
explicação acerca das proposições da ciência, que é papel da filosofia, não pode
constituir uma nova proposição pois, a ser assim, isto obrigaria um regresso ao
infinito. Está se diante de uma atividade fllosófica — dirá Schlick. Carnap, de outra
forma, sustenta que as proposições filosóficas também se submetem ao critério de
verificação. Elas não seriam proposições significativas sobre o mundo, mas
proposições significativas sobre a Iinguagem utiliza- da para falar do mundo. (Moritz
Schlick, Rudolfcarnap — Coletônea de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural,
1985, Coleção Os Pensado- res, p. XV-VIII; A. J. Ayer, lntroducción del compilador in
A. J. Ayer — organizador — E1 positivismo lógico, México, Fondo de Cultura
Económica, 1 993, p. 20, 2 1 e 29; Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 85-9 1;
John Hospers, op. cit., p. 328.
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
lógico de Frege e de Russell, fazendo, naquilo que alguns reconhecem como
antipsicologismo militante, total abstração das faculdades subjetivas do
conhecimento (Tractatus, 5.641).10 Pondo de lado as elaborações que se
desenvolvem através das funções proposicionais — reflexão que demandaria um
exame mais aprofundado da tradição lógica — é importante registrar que o Tractatus
parte da noção de fatos atômicos, que correspondem às proposições unitárias de
uma linguagem formal idealizada, mostrando depois como a significação das
proposições mais complexas pode, pelo menos em tese, ser analisada por métodos
próprios das funções de verdade. A linguagem é reduzida aqui a sua função
descritiva, o que somente se torna possível porque linguagem e mundo têm a
mesma forma lógica (isomorfismo)11
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(10) Luiz Henrique Lopes dos Santos, inApresentação e estudo introdutório à 2.
edição brasileira de Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico- Philosophicus, São
Paulo, Edusp, p. l 1-24 (a tradução brasileira do Tractatus orientará a exposição que
se segue, com simples menção do número dos aforismos no próprio corpo do texto).
No mesmo sentido são as considerações de Pilar López de Santa María Delgado,
para quem Wittgenstein está preocupado não com a dimensão psicológica do
pensamento, mas sim com o conteúdo do pensamento como retrato de um mundo.
Não importam os processos psicológicos realizados no pensamento, mas sim o
resultado deles. Não interessa ao Tractatus estabelecer as capacidades e limites do
cérebro humano, senão os limites absolutos do pensamento (lntroducción a
Wittgenstein — sujeto, mente y conducta, Barcelona, Herder, 1986, Coleção
Biblioteca de Filosofia, ed. 22, p. 47 — sobre o mesmo tema, prossegue a autora
nas pp. 61, 62, 68,69e72).
(11) A propósito, Luiz Henrique Lopes dos Santos, op. cit., p. 68, 80 e 84; Allan Janik
e Stephen Toulmin, A Viena de Wittgenstein, Rio de Janei- ro, Campus, l 99 l, p. 249
e 250; Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 20-36. Ferrater Mora
apresenta um resumo compreensivo desta concepção. Explica que o mundo é a
totalidade dos fatos atômicos e não de coisas. Um fato atômico é composto de
coisas ou entidades, que, por sua vez, são nomeadas por substantivos, pronomes,
adjetivos etc., de modo que se estabelece uma relação entre coisas e palavras.
Assim como uma combinação de coisas é umfato atômico, uma combinação de
palavras é uma proposição atômica, estabelecendo-se uma relação isomórfica entre
um e outro. A combinação de proposições
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A partir daí, Wittgenstein passa a discorrer acerca da maneira pela qual a
proposição descreve o mundo (Tractatus, 5.4711). Dirá que a proposição é uma
figuração lógica da realidade (Tractatus, 2.063-2.2; 4.001. 4.01, 4.014, 4.0141,
4.021, 4.023 e 4.03). O sinal proposicional, composto de palavras articuladas, é o
lado sensível da proposição (Tractatus, 3.1, 3.11, 3.12, 3.14, 3.32, 3.321,4.0312 e
4.442), mas nem por isso se pode sustentar um realismo platônico porque os
nomes, per se, são destituídos de sentido. Denominam mas não descrevem.
Somente no contexto das relações lógicas da proposição é que têm referência,
tornando-se inteligíveis (Tractatus, 3.141, 3.202, 3.221 e 3.3). A aplicabilidade das
proposições lógicas às proposições fatuais implica reconhecer a capacidade de
exibir relações internas entre proposições fatuais. Também as proposições lógicas
(que são tautológicas) e as contradições mostram propriedades e relações internas
(Tractatus, 4.023, 4.032, 4.122 e 6.124). Porém, a tautologia e a contradição não
dizem nada, pois a tautologia, sendo incondicionalmente verdadeira, não tem
condições de verdade, enquanto a contradição é incondicionalmente falsa
(Tractatus, 4.461 e 5.142). A verdade da tautologia é certa; a da proposição é
possível; a da contradição é impossível (Tractatus, 4.464). A tautologia deixa à
realidade todo o infinito espaço Iógico; a contradição preenche todo o espaço lógico
e não deixa nada à realidade (Tractatus, 4.463). Nelas não há figuração da
realidade, pois não representam situações possíveis (4.462).
Do exposto decorrem alguns enunciados importantes. Assim é que só as
convenções humanas permitem o entendimento da linguagem natural, com a qual o
homem é capaz de exprimir todo o sentido (Tractatus, 4.002). A filosofia mais não é
do que a crítica dessa linguagem (Tractatus, 4.003 1). Cabe a ela identificar toda a
ambi- güidade decorrente da polissemia e das diversas funções sintáticas
desempenhadas pela mesma palavra (símbolos diferentes), na tentativa de apurar a
linguagem da ciência, delimitando ao mesmo temp o o seu território, vale dizer, o
limite entre o pensável e o impensável
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
atômicas constitui as chamadas funções de verdade. A linguagem converte-se,
assim, em um mapa da realidade (Ferrater Mora, Diccionárjo de Filosofïa, 5. ed., vol.
4, 1986, Madrid, Alianza, p. 3.495-3.500).
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
(Tractatus, 3,318, 3.321-3.325; 4.1 13 e 4. 1 14). O resultado da filosofia, entretanto,
não são proposições, mas esclarecimentos acerca das proposições. Neste sentido,
como já registrado parágrafos acima, a filosofia não é uma teoria, mas uma atividade
que busca o esclarecimento lógico dos pensamentos (Tractatus, 4.112 e 4.122). A
proposição pode apenas mostrar a forma lógica, mas nunca dizê-la. Nem a forma
lógica da linguagem nem o seu isomorfismo com o mundo são exprimíveis
(Tractatus, 4. 1 2 1, 4. 12 1 2 e 5.6 1), precisamen- te porque, sendo as proposições
da lógica tautológicas (Tractatus, 6. 1 e 6.12), não dizem nada (Tractatus, 6.11).
Somente é possível mostrá-los, como condições formalmente necessárias da
linguagem, cuios limites não podemos transcender. Quando o Tractatus enun- cia
que os limites de minha linguagem são também os limites de meu mundo (Tractatus,
5.6), acaba em um paradoxo, pois a filosofia, ao tratar da maneira como as formas
lógicas das proposições mode- lam o mundo, está incluída entre as coisas que não
podem ser ditas mas apenas mostradas (Tractatus, 6.53).12
Início da nota de rodapé
(12) Ferrater Mora prossegue dizendo que a linguagem natural não atende à
depuração que se exige da linguagem cientffica. No fundo dela tem-se de descobrir
um esqueleto lógico, que constitui sua função essencial. Este esqueleto Iógico é a
Iinguagem ideal. As proposições através das quais o esqueleto lógico é descoberto
não são nem proposições atômicas nem funções de verdade. Por isso, elas carecem
de sentido. Wittgenstein, assim, longe de dizer alguma coisa sobre a Iinguagem,
apenas mostra. A filosofia está fora dos limites da minha Iinguagem e também do
meu mundo. Não é uma teoria da ciência, mas uma atividade (Ferrater Mora,
Diccionário de Filosofia, vol. IV, 5. ed., Madrid, Alianza, 1 986, p. 3.495- 3.500).
Como registram Janik e Toulmin, em Wittgenstein assim como em Kant, o
entendimento cria a ordem da natureza. A lógica torna possível o mundo, que é
modelado pelas formas lógicas de proposições. Ocorre que um modelo não pode
modelar a forma de modelagem, apenas a mostra. As proposições são capazes de
modelar e descrever a realidade, mas não simultaneamente descrever como a
descrevem sem se tornarem auto-referenciais e, por conseguinte, destituídas de
significado (Tractatus, 4.1 1 13 e 4.1212). A conseqüência disto é a impossibilidade
de se elaborar uma teoria do significado (op. cit., p. 216-220). O isomorfismo entre
Iinguagem e mundo, que faz do místico o indizível, porque está fora do mundo,
implica indagar acerca da completude do
Fim da nota de rodapé
Página 240
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Enfim, o que a filosofia quer dizer existe e importa considerar. Apenas não se pode
fazê-lo da maneira como postula a filosofia tradicional, ou seja, dizendo o que não
pode ser dito (Tractatus, 7). Isto inclui o religioso, o místico e o ético, que existem
mas são inexprimíveis. (Tractatus, 6.421, 6.432, 6.522, 6.53). Vê-se neste aparente
sem-sentido do Tractatus uma crítica à concepção racional da ética. Ela está fora do
mundo, tal qual a Iógica, porque é uma condi- ção da existência dele (Tractatus,
6.42 1). A metafísica é inefável não por absurda, mas porque é importante. Ao
mesmo tempo, o Tractatus revela as limitações de uma teoria do significado pautada
na repre- sentação, visto que é impossível para o filósofo descrever como as
proposições descrevem o mundo. Isto abre horizontes para uma crítica da teoria do
abuso. A filosofia, ao tratar do bem, da verdade
Início da nota de rodapé
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mundo que conhecemos. Na concepção tractariana, nada se pode dizer do alógico
porque para sair dos domínios da Iógica seria necessário ultrapassar os Iimites do
pensamento. Esta perspectiva faz lembrar o pen- samento de Parmênides (fora do
ser nada existe; o ser não tem limites, pois se houvesse existiria o não ser).
Iguaimente, no Tractatus, o não ser não existe. Nada fica de fora do campo lógico. A
Iógica, o mundo e a linguagem são completos. Assim, o ilógico é impensável, vale
dizer, não pode ser tïgurado. E sendo a linguagem a expressão do pensamento, não
se pode dizer o que não se pode pensar. Isto conduz ao solipsismo, que o próprio
Wittgenstein admite correto, mas do qual nada se pode dizer. O solipsismo só pode
ser concebido do ponto de vista do eu metafísico. Aqui, Wittgenstein recorre à
relação entre o olho e o campo visual, que não contém o olho que o vê (Tractatus,
5.-5.641). O eu metafisico nada mais é do que o ético, que somente se pode
mostrar, nunca dizer (a respeito das diversas interpretações do solipsismo
deWittgenstein, v. Pilar Lópes de Santa María. op. cit., p. 54-76). Aqui reside a
aporia da reflexão filosófica, a qual desemboca num idealismo subjetivo que o
Tractatus teve de admitir. Adam Schaff considera que o idealismo do positivismo
lógico consiste precisamente na redução da filosofia à aná- lise da Iinguagem,
quando é certo que a linguagem é somente um dos objetos dos estudos filosóficos.
Este reducionismo é reflexo do empirismo imanente contido na possibilidade de uma
linguagem científica convencional, livre das impurezas da linguagem natural,
expressão do idealismo subjetivo que concebe a construção da realidade pela mente
(Schaff, op. cit., p. 73 e 74).
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
e do justo não pode mais do que apontar para estes conceitos. Além disto, não está
em condições de dizer como as proposições jurídicas modelam o mundo do dever-
ser. A dogmática jurídica, por sua vez, também mais não faz do que mostrar o
significado do abuso dos direitos processuais. Neste ponto reproduz-se o paradoxo
de Wittgenstein, como será possível agora demonstrar.
É certo que a definição de abuso do direito de demanda é contextual, ou seja, ela
surge no mais das vezes na menção ou na amostragem dos casos concretos,
contida nos repositórios de jurisprudência, de forma que nem sempre a extensão do
termo pode ser fixada a partir da mera especificação de notas individualizadoras. A
simples conotação não é suficiente para que se possa estabelecer a multiplicidade
de sentidos que a prática forense incorpora ao conceito de abuso do direito no
processo. Todavia, tem-se de reconhecer que as teorias dogmáticas não se
resumem ao fatual. A experiência aponta apenas algumas situações, que bem
demonstram como aquela definição pode ser ou muito ampla ou muito restrita.13 Em
outras palavras, não se está diante de um conceito empírico, que possa ser
construído por uma linguagem teórica formal e intersubjetiva, como concebida pelo
Círculo de Viena e por Wittgenstein. Aliás, as dificuldades apontadas no capítulo
anterior (seção 3.4), quando se buscava identificar o fundamento jurídico da
proibição do abuso do direito processual, dão a exata dimensão da inviabili- dade de
uma linguagem fisicalista no campo da teoria do direito. Definições estipulativas tais
como sanção, ilícito, norma, embora destinadas a eliminar as imprecisões de
significado, não conseguem cumprir este objetivo no campo ético e cultural. Em
outros termos, a teoria do direito não logrou desenvolver regras de coerência que
Início da nota de rodapé
(13) Com efeito, doutrina ejurisprudência divergem a respeito das notas que
integram o conceito de abuso do direito no processo. Conforme maior ou menor a
intensão, menor ou maior, respectivamente, em uma proporção inversa, será o
campo extensional. A consideração do aspecto subjetivo, por exemplo, poderá
afastar muitos casos da incidência da teoria do abuso. De outra forma, e sob outro
aspecto, a obrigação de trazer aos autos todos os fatos dos quais a parte tem
conhecimento implicará ampliação do conceito de abuso.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
pudessem vincular as diversas categorias que compõem o universo jurídico. Mesmo
em Kelsen, conquanto se possa reconhecer a exis- tência de um critério de
coerência, precisamente em sua estática jurídica, há um recurso ao critério de
correspondência, que se re- vela na difícil relação entre validade, eficácia e
efetividade.14
Início da nota de rodapé
(14) A propósito, v. Roberto José Vernengo, Normajurídica y esquema reerencial, in
Derecho, Filosofía y lenguaje — homenaje a Ambrosio L. Gioja, Buenos Aires,
Astrea, 1976 (Colección Filosofía y Derecho, 3), p. 213-223. Luís Alberto Warat
chama a atenção para o fato de que Kelsen, ainda que sem fazer referência ao
positivismo Iógico ou a Wittgenstein, foi o primeiro autor a utilizar-se, no campo
jurídico, da distinção entre linguagem objeto e metalinguagem. Mesmo assim, a
perplexidade metodológica no direito é muito grande, porquanto a teoria não só
descreve como também interfere diretamente na programação de comportamentos
que nem sequer existem (El Derecho y su Lenguaje, Buenos Aires, Cooperadora de
Derecho y Ciencias Sociales, 1 976, p.7 1 -72). Como apontaAntônio Graça Neto
(Kelsen e Wittgenstein: as interfaces da lógica, Revista do Curso de Pós-Graduação
da Uni- versidade Federal de Santa Catarina, Estudos Jurídicos e Políticos,
Seqüência 32, julho de 1996, p. 115-123), Hans Kelsen, na Teoria Pura do Direito,
tanto quanto Wittgenstein, no seu Tractatus, tarnbém perseguiu o propósito de uma
linguagem formalizada, longe da ambigüida- de e vagueza próprias da Iinguagem
natural. E importante ressaltar, fazendo coro com o autor, que malgrado Kelsen não
concebesse a aplicação da Lógica à norma mesma, admitia fosse aplicada às
proposições da ciência constitutiva do Direito, outro traço que o aproxima do
positivismo lógico (a respeito, v. Kelsen, Normasjurídicas e análise lógica—
correspondência trocada entre Hans Kelsen e Ulrich Klug, Rio de Janeiro, Forense,
1 984, p. 80). Mas um dos pontos em que a Teria Pura do Direito se afasta do
Tractatus — segundo observa Graça Neto — diz precisamente com a possibilidade
de uma linguagem lógica cujo referente, ou seja, a norrna, não é lógico. Em outras
palavras, a norma surge corno estrutura de sentido sem referente, o que é, do ponto
de vista wittgensteiniano, pura metafísica. A proposição jurídica, cujo referen- te é a
norma, apesar do sentido descritivo, não é um enunciado apofântiCo, colocando-se,
isto sim, no mundo do dever ser (Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4. ed, Coimbra,
1979, p. 1 16). A propósito da dificuldade, do ângulo da filosofia analítica, dejustificar
enunciados científicos pres- critivos, ver Tercio Sampaio Ferraz Jr., Direito, retórica e
comunicação, São Paulo, Saraiva, 1973, p. 163.
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
A norma jurídica não se confunde com o fato social precisamente porque é
expressão de valores da sociedade e não um retrato ou um flagrante do mundo
empírico. A teoria do direito, como metalinguagem jurídica (cuja linguagem-objeto é
a norma) não estaria, assim, em condições de cumprir o papel que o positivismo
lógico reserva à linguagem-sistema da ciência, pois no lugar de afastar toda a
ambigüidade e vagueza, a dogmáticajurídica, no mais das vezes, vale-se da
indefinição para ampliar ou restringir o leque de aplicações da norma (interpretação
extensiva, interpretação analógica e interpretação restritiva). Mais que isto, as
normas de conteúdo impreciso dão lugar a complexos argumentativos — conhecidos
na dogmática jurídica como teorias — que nada mais são do que elaborações
retóricas voltadas à legitimação das decisões, como é o caso do abuso dos direitos
processuais.15
Início da nota de rodapé
(15) A respeito da distinção entre teoria e complexos argumentativos, v. Tercio
Sarnpaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito, técnica, decisão, dominação,
São Paulo, Atlas, 1988, p. 84-88; Alaôr CafféAlves, op. cit., p. 378-382, 372-374,
323, 324 e 397-399; Luís Alberto Warat, Mitos e Teorias na Interpretação da Lei,
Porto Alegre, Síntese Ltda., 1979, p. 143-154. A respeito da importância dos
conceitos imprecisos no Direito é vasta a bibliografia. Na linha de reflexão
desenvolvida no presente trabalho, v. Luís Alberto Warat, A Definiçãojurídica — suas
técnicas; texto programado, Porto Alegre, Atrium, 1 977, p. 14, 41, 45, 47 e 48; Luís
Alberto Warat, El Derecho y su Lenguaje, Buenos Aires, Cooperadora de Derecho y
Ciencias Sociales, 1976, p. 1 19-139; Luís Alberto Warat, Mitos e Teorias na
Interpretação da Lei, p. 91-154; Juan Ramon Capella, El derecho como lenguaje —
un análisis lógico, Barce- lona, Ariel, 1968, p. 246-275; Carlos Santiago Nino,
Introducción al análisis del derecho, 2. ed., Buenos Ames, Astrea, 1984, p. 245-272;
Perelman, La logicajurídica y la nueva retorica, Madrid, Civitas S. A., 1979, p. 73-91;
KarI Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 7. ed., Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, 1996, p. 205-274; Karl Larenz, op. cit., p. 292; Alaôr Caffé
Alves, op. cit., p. 170 e 171; Luiz Fernando Coelho, op. cit., p. 204-207 e Tercio
Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito — técnica, decisão, dominação,
São Paulo, Atlas, 1988, p. 268-270. Para uma crítica acerca da existência de
conceitos indeterminados no campo do Direito Constitucional, v. Dirnitri Dimoulis,
Moralismo, positismo e pragmatismo na interpretação do Direito Constitucional, in
RT, São Paulo, Ano 88, novembro de 1999,
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
No capítulo inicial do presente trabalho, buscou-se demonstrar, precisamente, como
a dogmática jurídica foi incorporando as novas tendências da sociedade, fruto do
desenvolvimento das relações de produção, para inscrever a chamada teoria do
abuso do direito não mais nos quadros da aemulatio, como concebida desde os ro-
manos, mas na esfera de um exercício anormal do direito, concepção que buscava
temperar, mantida a aparência de legalidade, o excessivo egoísmo liberal-burguês.
Os reflexos destas elaborações logo se fizeram sentir no movimento de codificação,
a um ponto tal que, hoje, são muitas as disposições normativas que se ocupam dos
chamados abusos do direito, inclusive no campo do processo judicial, como se
tratou de demonstrar no segundo capítulo. Estas regras legais, apesar de fornecer
algumas notas do conceito de abuso processual, acabam deixando espaço para a
interpretação da doutrina e também para a interpretação judicial.
Não bastasse, a possibilidade de construir linguagens formais e artificiais,
adequadas a cada um dos campos da ciência, revelou- se, segundo um novo
paradigma da lógica matemática, inviável. O modelo axiomático-formal da
matemática, desenvolvido por David Hilbert, que tanto influenciou a Viena do início
do século passado, não resistiu à crítica demolidora de Kurt Gödel, que em 1931
publicou um artigo intitulado Sobre as Proposições lndecidíveis dos Principia
Mathematica e Sistemas Correlatos. O jovem matemático, integrante do chamado
Círculo de Viena, refutou a tese da for- malização absoluta da matemática. Até
então, acreditava-se que a partir de axiomas, proposições inquestionáveis, era
possível derivar todas as demais proposições do sistema, dando lugar a um
teorema. Gödel, em seu trabalho, mostrou que tal pretensão é insustentável,
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
vol. 769, p. 1 1-27. José Eduardo Faria, a propósito de outras questões, que têm em
conta o direito incremental, registra que os conceitos jurídicos indeterminados
colocam ojurista diante de um dilema, pois se de um lado atendem à necessidade de
definir o sentido da norma a partir da singularidade do caso concreto, de outro, à
medida que se disseminam no sistema normativo, aumentam o grau de incerteza e
insegurança jurídica (O direito na economia globalizada, São Paulo, Malheiros,
1996, p. 131-140).
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
porquanto grande parte das classes de sistemas dedutivos não tem consistência
lógica interna. Os sistemas onde a aritmética pode ser desenvolvida são
essencialmente incompletos, visto que há enunciados aritméticos verdadeiros que
não podem derivar do conjunto.16 Por isso, o projeto filosófico do
positivismojurídico, que busca dotar a ciência do direito de uma linguagem precisa e
auto-suficiente, é equivocado, tanto quanto equivocada também é a idéia de que o
cientista do direito opera dentro de um sistema cerrado de normas, no qual
inexistem inconsistências ou lacunas.17
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(16) A respeito da influência de David Hilbert sobre o Círculo de Viena e sobre o
pensamento de Wittgenstein, v. AlIan Janik e Stephen Toulmin, A Viena de
Wittgenstein, Rio de Janeiro, Campus, 1 99 1, p.1 1 5, 209, 2 1 0, 2 1 7, 2 1 8 e 248.
A propósito da refutação de Gödel à formalização absoluta da matemática, v. Ernest
Nagel e James R. Newman, Prova de Gödel, 2. ed., São Paulo, Perspectiva, 1 998
(coleção Debates, ed. 75), p. 1 3-38 e 65-85; mais especificamente sobre o teorema
da incompletude, v. p. 56-63. A propósito de um paralelo entre o Teorema de Gödel
e a questão da unidade e coerência do ordenamentojuridico, v. Tercio Sampaio
Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, Atlas, 1 988, p. 1 99, Juan-
Ramon Capella, E1 derecho como Ienguaje, Barcelona, Ariel, 1 986 (Colección
Zetein), p. 276-279 e 288-290, e Luiz Sergio Fernandes de Souza, O papel da
ideologia no preenchimento das lacunas no direito, 2 ed., São Paulo, RT, 2005, p.
241 e 242.
(17) Kelsen, em diversas passagens da Teoria Pura do Direito, acaba revelando
estas fisuras, não sem antes dizer que se trata de um problema de ordem prática,
que não cabe ao estudioso considerar. Assim, a existência de lacunas no direito, por
exemplo, justifica-se de um ponto de vista operacional, permitindo que o juiz possa
contornar uma situação que entenda injusta. Trata-se de uma ficção, que cumpre um
objetivo ideológico (Hans Kelsen, op. cit., p. 338-343 e 472). Aqui se insere a
clássica distinção entre lacuna técnica e lacuna axiológica. Para uma anáiise mais
detalhada do tema, v. Amedeo Conte, Saggio sulla completezza degli
ordinamentigiuridici, Torino Giappichelli, 1 962, p. 47-60; Bobbio, Teoria
dellordinamento giuridico, Turim, Giappichelli, 1960, p. 158; Karl Larenz, op. cit., p.
363-373; Karl Engisch, op. cit, p. 275-361. Outrossim, Kelsen entende que ojuiz, ao
proferir uma sentença, efetua uma escolha entre as possíveis significações da
norma, como também apontadas pela ciência do direito, de sorte que não se há de
falar em interpretação correta. Entretanto, editada a norma, a interpretação passa
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Mas se as categorias jurídicas não são tautológicas nem tam- pouco empíricas,
estar-se-ia então diante do indizível, do inefável. Com efeito, se é certo que à ciência
do direito mais não é dado senão apontar a ambigüidade e a vagueza dos conceitos
jurídicos, a exemplo do abuso do direito, tem-se de concluir que o direito, assim
como a ética, a estética, a poesia e a teologia, é utilizado não como descrição de
relações necessárias ou mesmo descrição de fa- tos sensíveis, mas apenas para
exprimir certos sentimentos e evocar reações, através de juízos aos quais não faz
sentido atribuir validade objetiva.18 Ou seja, se os enunciados da ciência do direito
mais
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
a vincular, porque autêntica. À ciência do direito cabe apenas apontar esta
pluralidade, porquanto não lhe é possível, quer do ponto de vista lógico quer do
ponto de vista científico objetivo, estabelecer um significado unívoco. A tese da
univocidade é uma ficção, que apresenta como verdade científica aquilo que é
apenas um juízo de valor político. Neste ponto, Kelsen critica ajurisprudência dos
conceitos, que no afã de con- solidar o ideal da segurançajurídica, desconsidera a
plurissignificação da maioria das normas jurídicas (Hans Kelsen, op. cit., p. 469-
473). Importante registrar que a unidade e coerência do ordenamento jurídico, na
perspectiva de Kelsen, não resulta do fato de tratar-se de um sistema lógico. Neste
ponto, Kelsen afasta-se de Ulrich Klug, defendendo a tese de que a coesão do
direito sejustifica de um ponto de vista hierárquico. Uma coisa são as antinomias,
que podem ser desfeitas com recursos que o próprio sistema oferece, e outra coisa
a contradição, que ocorre quando há dois enunciados, com o mesmo sujeito e o
mesmo objeto, um deles verdadeiro e outro falso (Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4.
ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p. 277 a 289 e Normas jurídicas e análise
lógica — correspondência trocada entre Hans Kelsen e Ulrich Klug, Rio de Janeiro,
Forense, 1984, p. 68). A propósito da distinção entre conflitos normativos e
contradição, em Kelsen, v. Juan- Ramon Capella, op. cit., p. 64 a 67.
(18) A. J. Ayer, Linguagem, Verdade e Lógica, Lisboa, Presença, 1991, p. 99.
Schlick entende que a ética é uma ciência fática. Não pelo só fato de ser uma
ciência normativa deixa de ter relação com o real. Para ele, as valorações são fatos
que existem na realidade da consciência humana (Moritz Schlick, Quepretende la
Etica? in A. J. Ayer, organizador, El Positivismo Lógico, México, Fondo de Cultura
Económica, 1993, p. 262 e 263). Carnap sustenta que os enunciados éticos não são
juízos de fato, mas imperativos disfarçados. A. J. Ayer (lntroducción del compilador
in
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
não podem senão descrever como as normas regulam, de maneira não fatual, a
realidade concreta, claro está, do ponto de vista do positivismo lógico, que são
destituídos de significado, tanto quanto a filosofia do direito. Assim, a verdade —
seja ela epistemológica, lógica ou semântica — não é atributo do direito.
Por certo, o que os positivistas do Círculo de Viena, à diferença de Wittgenstein, não
foram capazes de compreender é que as questões da ética, dos valores, enfim, do
significado da vida, situando-se fora dos limites da linguagem descritiva— sem
possibilidade, portanto, de demonstração — mostram situações que, a despeito de
transcendentais, haveriam de ser de alguma forma consideradas. O que importa na
vida humana, no dizer de Wittgenstein, é precisamente aquilo sobre o que se deve
silenciar. Daí o lado místico do Tractatus, que o positivismo lógico fingiu ignorar.19
No mundo dos fatos, nada existe
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El Positivismo Lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1 993, p. 27 e 28) e
William P. Alston (Filosofía del lenguaje, Madrid, Alianza Universidad, 1974, p. 1 1 1
e ss.) sustentam que essa teoria imperativa da ética é uma versão da chamada
teoria emotiva, a qual, nos trabalhos de filósofos ingleses e americanos, viu-se
muitas vezes associada ao positivismo lógico.
(19) Neste sentido, as interpretações de Janik e Toulmin, op. cit, p. 232 e 249- 259;
Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 27, 28 e 95, e Paul Strathern, op.
cit., p. 44 e 45. Merece registro a tese de Carnap no senti- do de que o metafísico é
um artista frustrado, com pretensões de trans- ferir para o campo teorético da
ciência enunciados que mais não são do que atitudes emotivas diante da vida.
Observa que um poeta não trata de invalidar o poema do outro, porque sabe que
está no terreno da arte e não da teoria. Curiosamente, os metafísicos envolvern-se
em disputas acerca de coisas das quais nada se pode afirmar. (Carnap, L
superación de la metaflsica mediante el análisis lógico del lenguaje, in A. J. Ayer —
organizador, Elpositivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1 993, p.
84-87). Carnap não se apercebeu, entretanto, do misticismo e da poesia existentes
no Tractatus, do que são mostra os aforismos (Janik eToulmin, op. Cit., p. 1 3, 1 94,
1 95, 23 1 , 232, e PilarLópezde SantaMaría Delgado, op. cit., p. 78 e 84-95). Não se
deu conta de que o aforismo nunca postula a verdade. Talvez caibam também aqui
as observações que Carnap faz em relação a Zarathustra: Nietzsche, nesta obra,
não buscou a forma teorética, assumindo abertamente a forma da arte, do
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ABUSO DE DJREITO PROCESSUAL
de valor; o sentido do mundo deve situar-se fora do mundo (Tractatus, 6.41). A
linguagem pode apresentar a experiência, mas também pode impregnar a
experiência de significado. Embora a poesia, os valores, não possam ser reduzidos
a proposições — como sustentam os integrantes do Cfrculo de Viena — isto não
quer dizer que se deva renunciar totalmente à tentativa de expressar o inefável.20
Vê-se assim que se abre,já no Wittgenstein do Tractatus, uma possibilidade para a
compreensão do caráter cultural do Direito. Osj uízos de valor não podem ser
relegados, como entendia Carnap, a simples condição de imperativos de forma
gramatical desviada 21 ou “imperativos disfarçados”. 22 O que a linguagem mostra
Início da nota de rodapé
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poema (Carnap, La superación de la metafísica mediante el análisis lógico del
lenguaje, in A. J. Ayer — organizador, El positivismo lógico, México, Fondo de
Cultura Económica, l 993, p. 87). Sobre a relação entre o poeta e o metaffsico ver
também, no mesmo sentido, A. J. Ayer, Lin- guagem, verdade e lógica, Lisboa,
Presença, 1991, p. 21-23.
(20) Allan Janik e Stephen Toulmin chamam a atenção para o fato de que
Wittgenstein, a despeito do isomorfismo de suas concepções, foi capaz de voltar os
olhos para os grandes problemas existenciais, numa atitude que os autores
reconhecem como afaçanha ou aproeza ética do Trcctatus. Esta preocupação com o
indizível, na interpretação de Janik e Toulmin, revela-se nas correspondências que o
filósofo de Viena trocava com Waisman e Schlick. Ela está impregnada da própria
experiência de vida de Wittgenstein, um homem inclinado às artes, que também se
aproximou da religiosidade, sob influência, em ambos os campos, das obras de
Tolstói, especialmente de seus Contos e da Breve explicação dos Evangelhos. Janik
e Toulmin, procurando situar o pensamento de Wittgenstein naViena do inicio do
século XX, entendem que uma coisa é a filosofia que o Tractatus contém (a teoria do
mundo, a critica de Frege e Russell etc.) e outra, bem distinta, é a mundivisão
(Weltanschauung), a crença na existência de coisas de natureza superior (Tractatus,
6.42), que somente podem ser mostradas, nunca ditas. Na ciência, queremos
conhecer os fatos; nos problemas da vida, os fatos não são importantes. Na vida, a
coisa importante é responder ao sofrimento de outrem (AlIan Janik e Stephen
Toulmin, op. cit., p. 219-226).
(21) Carnap, Philosophy andLogicalSyntax, London, Routledge, 1954, p. 24, apud
Juan-Ramon Capella, op. cit., p. 92.
(22) A. J. Ayer, lntroducción del compilador in A. J. Ayer (org.), Elpositi- vismo lógico,
México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 27.
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
(sentimentos, emoções, valores) é muito superior àquilo que ela diz (Tractatus,
6.42). Assim como o andaime lógico do mundo é apriori, também a ética, como
condição do mundo, é transcendental. Entretanto, os valores não estão no campo da
razão, mas sim na esfera da poética. Por isso, ética e estética são uma coisa só
(Tractatus, 6.42 1). O poeta, o artista, quando insiste em dizer o indizível, atinge o
homem na sua subjetividade, permitindo-lhe entrar em contato com a fantasia, que é
o manancial do valor. Para o homem bom, a ética é um modo de vida, não um
sistema de proposições. Só a arte pode expressar a verdade moral e só o artista
pode ensinar as coisas que mais interessam na vida.23
Nesta perspectiva reaberta porWittgenstein, que remete a Kant, é necessário
transpor os limites que a linguagem objeto e a metalinguagem da ciência impõem ao
conhecimento do homem. E esta necessidade de ir mais além, de ultrapassar a
barreira daquilo que pode ser dito, revela precisamente a atitude ética que aproxima
o direito da poesia, da retórica, fazendo lembrar o ars boni et aequi dos romanos, a
doxa da democracia ateniense, em contraste com a episteme, com o conhecimento
racional e especulativo. E a capacidade de imaginar que permite ao homem a
elaboração de modelos para conhecer aquilo que não é sensório. É através da
imaginação que o homem pode projetar-se para além do presente, desenvolvendo
técnicas que lhe permitam interferir na trajetória
Início da nota de rodapé
(23) Janik e Toulmin, op. cit., p. 226 e 228. A importância que Wittgenstein atribuia
às fábulas, ao imaginário, como expressão do sentido da vida, pode ser
exemplificada — de acordo com o registro de Paul Engelmann — na forma como os
filmes defar-west impressionaram o espírito do filósofo, que os considerava alegorias
de fundo moral (Lettersfrom Ludwig Wittgenstein, With a Memoir B.F. Mc Guinness,
Oxford, Basil Blackweli, l 967, p.92 e 93, apudJanikeToulmin, op. cit., p. 226). Conta-
se também que os filmes de Carmem Miranda exerceram grande fascínio sobre
Wittgenstein (Caetano Veloso, Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras,
1 997, p. 268). Acerca da disposição criativa que se revela nos diversos jogos de
linguagem, os quais contrapõem o pensamento ambíguo e o pensamento lógico, ver
Alaôr Caffé Alves, op. cit., p. 348-351.
Fim da nota de rodapé
Página 250
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
da humanidade.24 Mas é importante dizer que enquanto a arte, na poesis
aristotélica, é concebida como técnica voltada para a ação, para o resultado, a ética
tractariana é vista por alguns como atitude de simples contemplação daquele que
reconhece os limites da linguagem e, portanto, do mundo.
Se é certo, de um Iado, que expressões retóricas, a exemplo de abuso do direito,
acabam atingindo um certo grau de emancipação à luz do Tractatus, não menos
certo é também que tal qual ocorre com as próprias elaborações desenvolvidas
porwittgenstein (as quais estão no campo do indizível, diante do reducionismo
descritivo de sua teoria), aquele que as compreende, após ter escalado através
delas, haverá de jogar fora a escada (Tractatus, 6.54). Com efeito, só se pode falar
acerca daquilo que está fora do mundo de uma perspectiva ex- terna. Cabe à
Filosofia, demarcando o território da ciência, limitaro impensável de dentro, através
do pensável. Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo. O
que estiver além destes limites é impensável e indizível (Tractatus, 4.113, 4.114, 5.6,
5.6 1). Bem por isso, o abuso dos direitos processuais surge, na perspectiva de
Wittgenstein, vale dizer, na ótica de um sujeito metafísico absoluto, como alguma
coisa desprovida de sentido. Esta abordagem tem desdobramentos de suma
importância para o desenvolvimento das idéias que seguirão nas próximas seções.
Cabe apenas fazer uma breve referência às implicações do reducionismo
wittgensteiniano.
Início da nota de rodapé
(24) A respeito da concepção científica, técnica e filosófica de Aristóteles, v. a seção
3. ¡ do presente trabalho. A propósito da importância da imaginação na formulação
dos modelos científicos, v. Rubem Alves, Filo- sofia da Ciência — introdução aojogo
e suas regras, 17. ed., São Paulo, Brasiliense, p. 120, 136 e 144-163. Sobre a
importância da chamada ficção científica para as reflexões acerca do princípio da
causalidade v. CarI Sagan, O romance da ciência, 4. ed., São Paulo, Francisco
Alves, 1985, p. 153-162. A respeito do poder da imaginaço no campo do direito, v.
Jesús lgnacio Martínez Garcia, La imaginaciónjurídica, Madrid, Dykinson, 1999, p.
71-91. A propósito da relação entre direito e arte, ver Tercio Sampaio Ferraz Jr.,
Notas sobre o Direito e a Arte, o Senso de Justiça e o Gosto Artístico, in Revista da
Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, volume 2,
Porto Alegre, Síntese (Coleção Acadêmica de Direito, v. 20), p. 35-45.
Fim da nota de rodapé
Página 251
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
É inegável que a elaboração abstrata da doutrina jurídica, assim como a norma, só
ganha sentido na aplicação ao caso concreto. Antes disto, o que existe é a
idealidade, a letra fria da lei, uma previsão hipotética ou — para usar expressão
amplamente empregada na filosofia analítica — umafunção proposicional. Todavia,
no momen- to em que o direito se materializa, no momento em que se revela na
existência humana, há um significado que, é certo, não se identifica com o fato
empírico. Vista sob o prisma do reducionismo descritivo do Tractatus, a apreciação
do abuso do direito processual poderia ser identificada com a realidade concreta, à
moda de um realis- mo jurídico ingênuo. Ocorre que a teoria do abuso, como com-
plexo argumentativo, tem compromisso com a ação e, portanto, com critérios de
razoabilidade, conveniência, utilidade, não se prestando à aplicação da díade
verdadeiro-falso, própria do critério de verificação.25
Mas a obra de Wittgenstein é polêmica. Há quem sustente que o paradoxo foi mal
compreendido. O indizível (que não tem sen- tido porque não tem referente), apesar
de absurdo, porque se aplica à própria lógica e à filosofia, é mesmo assim mais
importante que tudo aquilo que pode ser dito. Não se pode postular, na com-
preensão do Tractatus, a clássica distinção entre linguagem objeto e
metalinguagem, feita pela filosofia analítica, sobre a qual o próprio Wittgenstein
discorre. As proposições do Tractatus não são enunciados científicos. A filosofia
nele contida, outrossim, é precisamente uma crítica à espécie de racionalismo que
aprisiona o espírito humano, impedindo que se distinga as duas esferas da
totalidade do mundo, quais sejam, a esfera dos fatos e a esfera dos valores. O
metafísico surge assim como um território proibido mas ao mesmo tempo inevitável.
Os valores não são algo passível de
Início da nota de rodapé
(25) A propósito do critério de verificação no campo do Direito, v. Ernesto Grün e
Martín Diogo Farrel, Problemas de verificación en el derecho, in Derecho, Filosofia y
lenguaje — homenaje a Ambrosio L. Gioja, Buenos Aires, Astrea, 1976 (Colección
Filosofia y Derecho, 3), p. 55- 73; Martín Diogo Farrel, Hacia un criterio empírico de
validez, Buenos Ames, Astrea, (Colección Ensayosjurídicos, 9), 1972.
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Página 252
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
debate, mas de ação.26 Não existem proposições éticas mas apenas ações
éticas.27
Aparentemente, Wittgenstein parecia ter renegado a filosofia, ao atingir os confins da
linguagem e do mundo. Mas ao fechar-se em longo silêncio, trabalhando alguns
anos como professor primário, arquiteto e jardineiro, convenceu-se de que talvez
não fosse preciso jogar fora a escada; bastava construir outra. Foram precisamente
a sua atividade na escola fundamental e as conversações com Ramsey e Sraffa que
o levaram a entender como a linguagem está pragmaticamente relacionada a
contextos extralingüísticos de comportamento. Esta segunda fase do pensamento de
Wittgenstein terá importantes repercussões para a compreensão da assim chamada
teoria do abuso dos direitos processuais.
4.2 A superação da teoria representativa
Na concepção tractariana, os problemas filosóficos e o sem sentido surgem da
transgressão dos limites da linguagem, que cum- pre um papel exclusivamente
descritivo. Conta-se que em uma de suas conversas com o italiano Piero Sraffa,
professor de Economia em Cambridge, Wittgenstein discorria sobre a identidade da
forma lógica entre a proposição e o fato descrito, quando seu interlocutor,
discordando desta que era a tese central do Tractatus, fez um gesto trivial, muito ao
gosto dos italianos, para demonstrar sua insatisfação, ao mesmo tempo em que
perguntava: qual
Início da nota de rodapé
(26) A interpretação segundo a qual a ética, em Wittgenstein, é simples con-
templação, sem compromisso com a ação, pode ser encontrada na obra de Pilar
López de Santa María Delgado (op. cit, p. 82 e 83). Outra interpretação é proposta
por Allan Janik e Stephen Toulmin, na base sobretudo da influência que a crítica da
Iinguagem, desenvolvida pelo escritor KarI Kraus, exerceu sobre o espírito de
Wittgenstein. Na leitura feita por aqueles autores, o Tractatus procurou proteger as
fantasias das incursões da razão, impedindo que o sentimento espontâneo fosse su-
focado pela racionalização (op. cit., p. 220-223, 228, 229 e 231).
(27) PauI Engelmann, Überden tractatus Logico-Philosophicus von Ludwig
Wittgenstein, in Bei der Lampe, p. 1 5, apud, Janik e Toulmin, op. cit., p.
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
a forma lógica disto?.28 Embora esta passagem encontre versões diferentes, nas
próprias narrativas que Wittgenstein teria feito a pessoas mais próximas, entre as
quais von Wright, ela não deixa de ser significativa, porque aponta os novos
caminhos que o levaram às Investigações Filosóficas, isto depois de uma fase de
transição, na qual Wittgenstein procurou conciliar aquela tese referencial com uma
nova perspectiva filosófica.29
Mantém-se, no segundo Wittgenstein, a preocupação com os limites da linguagem,
mas de uma perspectiva diversa, que incumbe à filosofia descrever. E esta
descrição, ainda que não tenha referência à realidade empírica, é dotada de sentido.
Em outras palavras, sentido e referência deixam de ser mutuamente dependentes.
Às proposições filosóficas, assim como às expressões elaboradas no modo
imperativo, não se aplica o princípio da verificação, segundo o qual compreender o
sentido de uma proposição equivale a conhecer suas condições de verdade
(Investigações, § 117, 136, 137, 531- 533). Nas Investigações Filosóficas,
Wittgenstein está inclinado a considerar que os problemas filosóficos têm origem na
falta de re- conhecimento dos problemas da linguagem (Investigações, § 1 19, 123,
132 e 133). Aqui, tal qual lhe ocorrera anteriormente, a filosofia é uma crítica da
linguagem (Tractatus, 4.0031). Todavia, nesta segunda fase de suas elaborações
teóricas, por força de um novo reconhecimento das fronteiras da linguagem,
Wittgenstein é levado a incorporar o indizível. Não existe mais uma cidadela do
místico, do inefável. Agora, aquilo que Wittgenstein considerava ser o
Início da nota de rodapé
(28) Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 100.
(29) Exemplo destas obras de transição, segundo Pilar López de Santa María
Delgado (op. cit, p. 101 e 102), são as Philosophische Bemerkungen e a
Philosophische Grammatik. Servirão para a compreensão desse assim chamado
segundo Wittgenstein, as suas Philosophische Untersuchungen (Ludwig
Wittgenstein, Investigações Filosóficas 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1 996 — Coleção
Pensamento Humano, vol. 1 5). Tal como foi feito na seção anterior, onde as
referências ao Tractatus aparecem no próprio corpo do texto, com o número do
aforismo, as citações ora serão feitas com remissão aos parágrafos que dividem a
Parte I das Investigações Filosóficas.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
mais importante, a exemplo da filosofia, da ética, da poesia, passa a integrar o
campo da linguagem. As palavras são ações e como tais inscrevem-se nasformas
de vida (Investigações, § 7 e 23).
Asformas lógicas, o isomorfismo entre linguagem e mundo — que, na concepção do
Tractatus, autorizam a aplicação das tabelas de verdade — dão lugar, no segundo
Wittgenstein, às formas de vida. A linguagem deixa de ser um instrumento
secundário, uma maneira de descrever a estrutura ontológica do real, conhecida
através da razão, para transformar-se em condição de possibilidade do próprio
conhecimento (Investigações, § 100, 101-104, 379, 380, 584 e 737), de modo que
não se cogita mais da existência de uma consciência sem a linguagem
(Investigações, § 32, 330, 342, 416-432). As palavras, por sua vez, não têm função
exclusivamente designativa, como reconhecida 110 Tractatus por força de um
reducionismo descritivo (Investigações, § 27, 40, 49, 57-59). Assim como é certo que
as proposições possuem outros modos verbais, além do indicativo, certo também é
que as palavras comportam usos diversos. Quem diz Não está esplêndido o dia
hoje?, muitas vezes faz uma afirmação e não uma pergunta. Quem dá uma ordem,
muitas vezes pode fazê-lo na forma interrogativa: Você gostaria de fazer isto?.
Trata-se de formas retóricas e nem sempre se pode reconhecer a asserção, a
pergunta e a ordem em uma gramática superflcial (In- vestigações, § 21-26).30
Wittgenstein sugere expressões tais como
Início da nota de rodapé
(30) Importante registrar, neste ponto, que a expressão gramática, nas Investigações
Filosóficas, está sendo utilizada em um sentido especifico, que não tem em conta o
exame das relações internas da palavra e das relações entre palavras, orações e
frases, sob o ponto de vista formal (sintaxe), mas sim a descrição das regras de
combinação dos símbolos, considerado o sentido (semântica). A propósito desta
distinção, ver Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 1 14. Manfredo Araújo
de Oliveira esclarece que a gramática superficial, para Wittgenstein 11, é aquilo que
normalmente se chama de gramática (normas de construção correta de frases)
enquanto que a gramática profunda é o conjunto de regras que constitui
determinado jogo de linguagem (op. cit., p. 140 e l 4 1). Há uma crônica bem-
humorada de Luiz Fernando Verissimo que ajuda a entender essa distinção: Quatro
ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa
mesma missão, de-
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
“Água!”, ‘Fora!”, “Ai!”, “Socorro!’, “Lindo!”, “Não!”, para depois perguntar: Você ainda
está inclinado a chamar estas palavras de denominação de objetos? (Investigações,
§ 27). Mas para entender a questão dos novos limites da linguagem, como foi posta
nas Investigações Filosóficas, é necessário aprofundar o exame deste caráter social
e pragmático da linguagem.
Por detrás da aparência externa de uma frase (e encoberta por ela) estão os
diversos jogos de linguagem, os diversos sentidos da expressão, que não derivam
da intenção do usuário, de modo que para entender o que alguém diz, longe de
procurar saber o que ele tem em mente, é necessário voltar a atenção para o uso da
linguagem, que insere o homem no contexto das relações sociais (Investigações, §
19, 22, 23, 33-35, 95, 107, 143-156, 178, 187, 188, 321, 322, 507-510, 540-541,
665-682, 687-693).Ao rechaçar a identificação entre linguagem e pensamento,
Wittgenstein afasta-se também da tese idealista, do solipsismo epistemológico ou
lingüístico,
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
signada por seu Professor de Português: saber se eu considerava o estudo da
Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua...
Respondi que a Iinguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que
deve serjulgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas de
Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A
sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro,
não necessariamente certo. Por exemplo: dizer escrever claro não é certo, mas é
claro, certo? O importante é comunicar (E quando possível surpreender, iluminar,
divertir, comover... Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a
ver com a Gramática). A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas
Iínguas mortas, e aí é de inte- resse restrito a necrólogos e professores de Latim,
gente em geral pou- co comunicativa... E o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas
ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua mas sozinha não
diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura (Luís
Fernando Veríssimo, O gigolô das palavras, Coleção Nova Leitura, vol. 8, 9. ed.,
Porto Alegre, L&PM, 1 982, p. 10 a 12). A propósito, o segundo Wittgenstein entende
que não há palavras corretas ou incorretas, mas apenas palavras apropriadas ou
inapropriadas, considerando o que se quer significar com o emprego delas (Pilar
Lópes de Santa María Delgado, op. cit., p. 121).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
resultado do idealismo extremo. As categorias do pensamento não são as categorias
da linguagem, que é intersubjetiva e social (Investigações, § 243-315). Ademais, o
ideal de uma linguagem perfeita, sem imprecisões, é visto pelo segundo
Wittgenstein como pura metafísica (Investigações, § 97-109 e 116). Não se nega a
importância da linguagem artificial no campo das ciências da natureza, mas este não
é um paradigma lingüístico, como supunha a concepção tractariana (Investigações,
§ 81 e 88). Importa entender como a linguagem é utilizada nas diversas situações
sociais, nos diversos campos da atividade humana (Investigações, § 7 e 23). Por
isso, tem-se de analisar as diversasformas de vida, conceito de matiz nitidamente
sociológico, que serve como uma espécie de pano de fundo sobre o qual se
desenvolve toda a teoria do significado no segundo Wittgenstein.31
As formas de vida, diferentemente do mundo da vida, em Husserl, não surgem como
um conceito analítico, fechado. Tal qual osjogos de linguagem, que fazem parte das
atividades cotidianas das pessoas, o conceito deformas de vida é necessariamente
fluido, vago, impreciso. Longe da metafísica tractariana, que buscava uma essência,
una propriedade comum a todas as coisas designadas pelo mesmo termo, a
perspectiva da linguagem comojogo significa uma série inumerável daquelas
atividades do dia-a-dia, daquelas varia- dasformas de vida (Investigações, § 18, 97-
116). Assim como o conceito dejogo não é unívoco, o mesmo se pode dizer da
lingua- gem. A palavrajogo não designa nenhuma propriedade que seja por si só
necessária para seu emprego, como bem mostram os fatos que são denotados por
ela, a exemplo do xadrez, dos dados, dos jogos de bola, de roda, dosjogos de
palavras etc. (Investigações, § 65- 75). Assim, é o uso das palavras, nos diversos
contextos lingüísti- cos e extralingüísticos, que decide sobre as diversas
significações das expressões lingüísticas (Investigações, § 43 e 423). Apren- der
uma língua é dominar uma técnica, o que exige em cada situa- ção da vida um
adestramento específico (Investigações, § 90, 188 e 206). Para saber o que é a
linguagem humana, basta observar o
Início da nota de rodapé
(31) Pilar López de Santa María Deigado, op. cit., p. 1 17.
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
funcionamento da linguagem concreta dos homens (Investigações, § 120, 432 e
435).32
Os limites da linguagem, no segundo Wittgenstein, dizem respeito não mais à
separação entre o que pode ser dito (proposições
Início da nota de rodapé
(32) Wittgenstein diz que as crianças aprendem não propriamente através de
definições ostensivas (porque ainda não podem perguntar por uma denominação),
mas através de um ensino ostensivo, que estabelece uma relação associativa entre
as palavras e as coisas. Porém, não se trata de uma função designativa das
palavras e sim de uma função de uso (Investigações, § 9 e 10). A definição
ostensiva é limitada, porque pressupõe conhecimento prévio de uma língua.
Ademais, a simples exibição de um objeto designado pela palavra não garante a
compreensão do significado, que surge, sim, nos jogos de Iinguagem, nas situações
de uso da linguagem (Investigações, § 2 e 31). Wittgenstein abandona assim a
metáfora da pintura, por ele utilizada no Tractatus, para recor- rer à ilustração da
ferramenta. Uma parte grita a palavra (pedindo que se lhe entregue alguma coisa), e
a outra age de acordo com a instrução (Investigações, § 2-22). Exemplo deste
processo de uso das palavras são os jogos através dos quais as crianças aprendem
a língua materna. Wittgenstein lembra também as brincadeiras de roda, que têm
uma racionalidade própria (Investigações, § 7). A propósito dos diversos jogos de
linguagem, que exigem adestramento especifico, considerada cada uma dasformas
de vida, veja-se o poema Trem de Ferro, de Manuel Bandeira: Café com pão/ Café
com pão/ Café com pão//Virge Maria que foi isto maquinista?/ Agora sim/ Café com
pão/ Agora sim/ Voa, fumaçal Corre, cerca/ Ai seu foguistal Bota fogoi Na fornalhal
Que eu preciso/ Muita forçal Muita forçaì Muita força// Oô.../ Foge, bicho/ Foge,
povo/ Passa ponte/ Passa poste/ Passa pasto/ Passa boi/ Passa boiadaì Passa
galho/ De ingazeiral Debruçadal No riacho/ Que vonta- de/ De (Manuel Bandeira,
Estrela da Manhã, in Poesia e Prosa, vol. 1, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1 958, p.
255 e 256). Aqui, o poeta modernista abre mão da sintaxe, dispensando regras de
ortografia e pontuação em nome do ritmo e da melodia dos versos, que mostram o
movimento de uma locomotiva subindo e descendo o morro. Como observa
Wittgenstein, falamos da compreensão de uma frase em dois sentidos. Em um
deles, ela pode ser substituida por uma outra que diz o mesmo que ela; mas
também no sentido de que ela não pode ser substituída por nenhuma outra, tal qual
um tema musical é insubstituível. No primeiro caso está o pensamento da frase, o
que é comum a diversas frases; no segundo, algo que somente essas palavras,
nessas posições, a exemplo de um poema, exprimem (Investigações, § 531).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
tautológicas e empíricas) e o que não pode ser dito (proposições axiológicas e
metafísicas), mas sim aos diferentes contextos de uso, aos diferentes jogos de
linguagem, que se multiplicam conforme as necessidades humanas. (Investigações,
§ 7 e 18). O significado de uma peça é seu papel no jogo (Investigações, § 563).
Pode-se dizer, assim, que as regras de uso da palavra variam de acordo com o
regramento do jogo, que é estabelecido pela gramática, esta orientada
primordialmente para os aspectos semânticos da linguagem. As regras gramaticais
são estabelecidas arbitrariarnente, mas uma vez convencionadas, obrigam aqueles
que utilizam a linguagem, pois o acordo firmado em torno das regras supõe um
acordo em torno das formas de vida (Investigações, § 199, 241 e 497). O sem
sentido surge, no segundo Wittgenstein, não na transgressão de supostos limites
externos da linguagem, mas sim no emprego de uma pala- vra estranha a um
determinado jogo de linguagem.
Esta nova interpretação dos limites da linguagem, no segundo Wittgenstein, tem
importantes desdobramentos. A linguagem é expressão da praxis comunicativa
interpessoal, de modo que tão variados quanto asformas de vida existentes são
também os jogos de linguagem (Investigações, § 23). A linguagem é uma espécie de
ação (Investigações, § 340 e 351) e os mal-entendidos surgem quando regras de
uso apropriadas a determinadas situações lingüísticas são empregadas em
contextos comunicativos diversos (Investigações, § 90). Não há, nas Investigações
Filosóficas, um sentido de transgressão aos limites internos da linguagem. A
obrigação de perma- necer dentro dos limites de um jogo lingüístico é condicional,
porque nem todos estão obrigados a jogar um determinado jogo. Cabe à filosofia
uma tarefa puramente descritiva, qual seja, examinar o funcionamento da linguagem
em cada contexto de atividades (pois, como visto, não há uma essência comum aos
diversosjogos de lin- guagein). A atividade filosófica é urn tratamento para as
doenças da filosofia, atormentada por dificuldades que a colocam também em
questão (Investigações, § 1 1 1, 133 e 255).33
Início da nota de rodapé
(33) A propósito, v. Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 121 e 1 22 e
Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 1 33, l 37 e 1 38
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Para o segundo Wittgenstein, a pugna entre realistas e idealistas, que serviu como
fio condutor das noções desenvolvidas no capítulo anterior, não passa de um mal-
entendido a respeito dos limi- tes da linguagem. O mental e o corporal
constituemjogos lingüisticos distintos, que têm funções e regras de uso diferentes.
Diante deste dualismo, ao desconsiderar que o mental e o material têm status
lógicos que não se confundem, os filósofos envolvem-se ern questões sem sentido.
Não pode haver oposição entre conceitos pertencentes ajogos de linguagem
distintos, de sorte que, quando os filósofos buscam uma resposta exclusiva,
esquecem-se de que dois conceitos de tipos diferentes não se excluem. O equívoco
está na formulação de questões amplas acerca da origem e da essência do
conhecimento, que deveriam ser recusadas, no lugar de serem res- pondidas.34
Entende-se que o mesmo se passa quando os teóricos do direito buscam definir
abuso do direito na base da dicotomia lí- citoilícito, apegados a umjogo de linguagem
binário, legalista, que exclui as demaisformas de vida.35
Com efeito, há de se reconhecer que o direito trabalha com jogos de linguagem
diferentes uns dos outros. O significado dos termos saber e prática jurídica consiste
na totalidade de seus usos possíveis, o que afasta, a um só tempo, a tese realista do
significado
Início da nota de rodapé
(34) Ludwig Wittgenstein, The BIue and Brown Books, Preliminary Studies for the
Philosophical Investigations, New York, 1 960, apud Pilar López de Santa María, op.
cit., p. 206.
(35) Allan Janik e Stephen Toulmin (op. cit., p. 327) entendem que o avilta- mento da
linguagem, objeto das críticas de Wittgenstein, é engendrado pela invenção dejogos
de linguagem espúrios, como tentativa de fugir aos problemas sociais e políticos, tal
como ocorreu na Viena dos Habsburgos, ambiência que muito influenciou a obra do
filósofo. Os problemas da comunicação e da expressão nascem do divórcio entre as
condições efetivas de vida e a os jogos de linguagem, o que equivale, em termos
marxistas, à noção defalsa consciência. A respeito de um conceito pragmático
dafalsa consciência, que está mais próximo do modelo desenvolvido no presente
trabalho, v. Lelio Lantella, Prathiche definitorie e proiezione ideologiche nel discorso
giuridico, in Andrea Belvedere, Mario Jori e Lelio Lantella, Definizioni Giuridiche e
Ideologie, Milano, Dott. A. Giuffrè Editore, 1979, p. 175-185.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
fixo das palavras e a tese que reduz o significado ao pensamento, própria do
idealismo. A dogmática jurídica é expressão das diversas formas de vida, dos
contextos específicos de ação. Longe de uma suposta estrutura ontológica, base
das classificações por gênero e diferença, muito utilizadas pelos juristas, os
conceitos jurídicos só podem ser compreendidos nos diversos contextos lingüísticos
e extra lingüísticos nos quais são empregados. Os delineamentos da noção de
abuso do direitoprocessual surgiram a partir do caso concreto. O conceito foi
ganhando configuração normativa, já nas Ordenações, sem que houvesse uma
preocupação propriamente sistemática. A medida que asformas de vida foram-se
tornando mais complexas, sentiu-se a necessidade de abandonar a velha
concepção romanística da aemulatio, que vai sendo substituída, pouco a pouco, pela
fórmula do uso anormal do processo, mais adequada ao modelojurídico do Estado
Social, que surge no final do século XIX, fruto da esgarçadura das solidariedades
tradicionais.
Esta transição, como está no segundo capítulo, implicou verdadeira reviravolta,
sobretudo diante da chamada teoria abstracionista, que marca a emancipação do
processo civil em relação ao direito privado. Titular do direito de ação não
necessariamente é aquele que tem o direito material, mas sim todos quantos de
boa-fé acreditam tê-lo. E para os objetivistas, desde Josserand e Saleilles, o
conceito de boa-fé tem em conta aquilo que é conforme às exigên- cias sociais e
não o que está no pensamento, na intenção da parte. Com isto, a teoria do abuso
deixou de serum simples desdobramento da teoria dos atos ilícitos. Ocorre que essa
nova demarcação colocou os processualistas diante de um outro problema. É que a
esta altura, por força da concepção reinante no século XIX (que bem se mostra no
pandectismo, na EscolaAnalítica e na Escola da Exegese), o direito passa a ser visto
como corpo ordenado de regras, objeto de uma ciência que também tem uma
pretensão sistematizadora. Ao lado do método dedutivo de Savigny, está a
orientação indutiva de lhering, que se faz sentir nas diveisas classificações dos
conceitos jurídicos. A crítica que Planiol lançou contra o conceito de abuso do direito
(quando saímos dos limites das normas agimos sem direito) insere-se precisamente
na disputa em torno da verdadeira
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
classificação, uma falácia metafísica que supõe um universo jurí- dico povoado de
entidades com existência própria.36
Como já se adiantou, no final do primeiro capítulo, o conceito de abuso do direito
não é unívoco. Seu campo intensional e extensional é bastante amplo. Daí porque
não se lhe aplicam as classificações dicotômicas, os jogos de linguagem que
operam no terreno da lógica formal, onde vigem o princípio da contradição e o
princípio do terceiro excluído. As diversasformas de vida explicam, assim, que ao
lado do lícito e do ilícito existem outros jogos de racionalidade que as categorias
jurídicas tradicionais, presas a uma gramatica superficial, não conseguem
apreender. E a imprecisão do conceito de abuso do direito processual, tal qual
sucede com a pa- lavrajogo, que garante a operacionalidade da expressão. O
significado dejogo, assim como o significado do abuso do direito processual, é dado
pelo uso da palavra. Nos jogos de bola, há ganhar e perder; mas se uma criança
atira a bola na parede e a agarra nova- mente, neste caso este traço desapareceu
(Investigações, § 66). Compreender uma expressão é establecer parentescos, numa
complicada rede de semelhanças que se sobrepõem umas às outras e se
entrecruzam (Investigações, § 66). Você pode estabelecer limites? Não... Mas
istojamais o incomodou ao empregar a palavrajogo (Investigações, §67).Veja-se que
muito mais importante que a função designativa é a capacidade da linguagem de
estabelecer o sen- tido através das ações humanas.37
A propósito, não deixa de ser significativo, como já se acentuou no final do segundo
capítulo, o fato de 05 processualistas buscarem a compreensão da conduta abusiva
na semântica do jogo (fair play processual), onde freqüentemente aparecem
metáforas como regra,
Início da nota de rodapé
(36) Sobre a falácia metafísica no campo das classificações jurídicas, v. Lantella, op.
cit., p. 263-265.
(37) Descrevemos jogos dizendo isto e coisas semelhantes são chamados jogos
(Investigações, § 69). Mas um conceito impreciso é, por acaso, um conceito? Uma
fotografia desfocada é, por acaso, O retrato de uma pessoa? Pode-se substituir
sempre com vantagem um retrato desfocado por um nítido? Freqüentes vezes, não
é o retrato desfocado precisamente aquilo de que mais precisamos? (Investigações,
§ 71).
Fim da nota de rodapé
Página 262
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
ataque, defesa, adversário, disputa, competição, habilidade, trapaça, deslealdade
etc. Significativo também, como registrado naquela mesma oportunidade, que os
processualistas até hoje não tenham chegado a um consenso quanto aos limites que
dividem o campo da sagaz defesa e o terreno da trapaça. Carnelutti identificou esta
dificuldade como um problema técnico que desemboca em um problema ético.38 De
outra forma, entende-se que o conceito de abuso do direito é sócioprático (sic),39
cuja significação tem de levar em conta o contexto social em que está sendo
utilizado. Em vão juristas têm buscado classificações, que se mostram sempre
artificiais, pois assim como acontece com o jogo, o conceito não designa nenhuma
propriedade que seja comum às diversas situações em que o abuso do direito de
demanda é discutido. Como já se teve oportunidade de demonstrar no segundo
capítulo (seção 2.2), o ele- mento subjetivo da conduta abusiva nem sempre é
requisito para a configuração do abuso processual, cuja repressão, outrossim, inclui
não só sanções (no que o abuso estaria identificado com o ilícito), como também a
aplicação de ônus e a desconsideração dos efeitos produzidos pela conduta
processual.40
Início da nota de rodapé
(38) Francesco Carnelutti, Estudios de Derecho Procesal, vol. 1, Buenos Aires,
Ediciones Jurídicas Europa-América, 1952, p. 185 e 186.
(39) A expressão é utilizada porManfredoAraújo de Oliveira (op. cit., p. 1 3 1).
(40) Expressivo, neste sentido, o seguinte fragmento da doutrina processual
argentina contemporânea claro está que às vezes afloram nos tribunais situações
que o legislador não concebeu como conduta abusiva. Porém, dado que a realidade
é mais rica que as abstrações que se possam con- ceber no âmbito do poder
Iegislativo, pode suceder, frente ao impacto das novas complexidades
sócioeconômicas que irrompem na vida, que se imponha uma recriação, mudanças
ou adaptações para rernover os obstáculos ou suprir os vazios da dimensão
normativa. Neste caso, a solução dos conflitos em nossa sociedade exige do órgão
judicial a modernidade de enfoque dos temas momentosos. A seu turno, a realidade
sociológica deve orientar o juiz, com vista às flexibilizações próprias da evolução do
pensamento, que requerem a harmonização dos valores axiológicos com a
realização da justiça, imperativo maior dos tempos de incerteza, os quais exigem
respostas adequadas ao realismo das. circunstâncias (Gualberto Lucas Sosa, Abuso
de Derechos Procesales, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos Direitos
Fim da nota de rodapé
Página 263
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Os limites entre o ilícito e o abuso, como resulta do segundo Wittgenstein, não
podem ser traçados de forma estanque, mesmo porque, tal qual o conceito de jogo,
o abuso do direito processual não tem contornos precisos. E como se o sujeito
buscasse — em outra figura de linguagem wittgensteiniana — traçar limites entre
cores que se mesclam. Se alguém traçasse um limite preciso, eu não poderia
reconhecê-lo como o que também sempre quis traçar ou que tracei em espírito.
Pode-se dizer então: seu conceito não é igual ao meu, mas tem parentesco com ele
(Tractatus, § 76) …E nesta situação se encontra, por exemplo, quem na Estética ou
na Ética busca por definições que correspondam aos nossos conceitos
(Investigações, § 77). Há certos standards que orientam o intérprete na
compreensão do sentido histórico e social do abuso do direito, como reconhecidos
no final do primeiro capítulo, mas não um conceito como idealidade. O significado do
abuso processual tem de ser recolhido nas diversas formas de vida. Ao lado do uso
representativo das palavras está o uso funcional, que se revela nos diversos níveis
de calibração do sistemajurídico, o qual ora recorre ao padrão da legalidade ora ao
padrão da legitimidade ou da efetividade, na tentativa de buscar a adesão do
endereçado da norma.41
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 45). Bem por isso, outro conhecido
autor argentino, também contemporâneo, sustenta que a figura do abuso do direito
não deve ser exaustivamente regulada pelo Iegislador. Pelo contrário, exceção feita
a hipóteses muito pontuais, o melhor será consagrar um conceito plástico e pouco
rígido, que permita apreender todas as formas de conduta que possam caracterizar
abuso (Jorge W. Peyrano, Abuso de los Derechos Procesales, in José Carlos
Barbosa Moreira, op. cit., p. 76).
(41) A propósito desta visão pragmática e sistêmico-funcionalista, ver o modelo
desenvolvido por Tercio Sampaio Ferraz Jr. (Teoria da Norma Jurídica: ensaio de
pragmática da comunicação normativa, Rio de Janeiro, Forense, 1 978,
particularmente p. 1 27- 1 59). A análise sistêmico-funcionalista revela, igualmente,
que o direito, operando códigos binários do tipo lícito-ilícito, válido-inválido, corre o
risco de cair no isolamento, caso não consiga estabelecer um acoplamento
estrutural com outros sistemas, que têm em seu repertório códigos mais inclusivos, a
exemplo do que ocorre com a política, com as artes, com a comunicação. Aqui está,
inclusive, a importância da interdisciplinariedade
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
As dificuldades no reconhecimento do campo do abuso processual surgem, em
resumo, quando os juristas não se apercebem de
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
(Gunther Teubner, Juridificação: noções, características, Iimites e soluções, in
Revista de Direito e Economia, Coimbra, 1988; André-NoëI Roth, O Direito em
crise.• fim do Estado Moderno, e Vittorio Olgiati, Direito positivo e ordens sócio-
jurídicas; um engate operacional para ¿ima sociologia do direito européia, ambos in
José Eduardo Faria (org.), Direito e globalização econômica, São Paulo, Malheiros,
1996, respectivamente a p. 15-27 e 81-1 03; Willis Santiago Guerra Filho,
Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna, Porto Alegre, Livraria do
Advogado Editora, 1 997, particularmente, p. 57, 58, 70, 71, 72, 82). Há um acórdão
do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (hoje, extinto), em que foi relator o
Juiz Sena Rebouças, muito signiticativo daquilo que Wittgenstein desenvolve nos
parágrafos 76 e 77, acima reproduzidos no texto. O julgamento diz respeito a uma
alegada invasão de espaço aéreo, atribuída ao proprietário do prédio confinante,
onde funcionava conhecida casa de lanches, que nele insta- lou painel publicitário
de considerávei dimensão, a ultrapassar em doze centímetros — e a considerável
altura — a linha divisória dos imóveis. A Câmara decidiu que se mostrava abusiva a
invocação do direito ao espaço aéreo, independentemente de eventual análise dos
motivos de foro íntimo que a tivessem suscitado, diante da inexistência de lesão
econômica que pudesse justificar a pretensão à tutela jurisdicional. Em certo ponto,
o acórdão, reproduzindo fragmento das contra-razões, consigna que A tinta sempre
tem uma espessura qualquer e, assim, também invadiria o espaço aéreo do espaço
contíguo... Ademais — prossegue o acórdão — é muito difícil equacionar a estética,
como teoria do belo e filosofia da arte... As pessoas cultivam valores diferentes e,
neste campo, estabelecem suas hierarquias segundo a cultura, vivência e
sensibilidade individual. O Ietreiro luminoso não se distingue de outros que, no
mesmo local, compõem o que se pode chamar, sem ferir suscetibilidades, de
paisagem urbana americana, uma transposição (às vezes melhorada, às vezes
piorada) de Times Square que não se limita a São Paulo, mas também se vê, com
as cores locais, em Las Vegas, em Londres (Piccadilly Circus), em Berlim (no lado
ocidental da Porta de Brandenburg, especialmente no Kurfürstendamm), no centro
de Colônia, bem ao lado da famosa catedral gótica e do Römisch-Germanisches
Museum, onde havia, em 1 985, uma casa Mc Donalds (TACSão Pau- lo, 2. Câm.,
Ap. 426.6 17-3, 27.2.9 1, in RT, São Paulo, Ano 80, vol. 665, março de 1991, p. 96-
99).
Fim da nota de rodapé
Página 265
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
que as diversasformas de vida ou de cultura exigem uma compreensão gramatical
adequada a cada um dos contextos sociais. Quem quiser entender a significação,
por exemplo, do sistema de canalização de água em uma casa terá de ver que uso é
dado a esse sistema. Wittgenstein, como engenheiro que era, não se opunha ao
cálculo matemático, desde que inserido no jogo de linguagem apropriado. Fora disto,
importava considerar a matemática aplicada, demonstrar não só que os cálculos
envolvidos eram formalmente impecáveis, mas também que cumpriam uma tarefa,
acima e além de sua própria elaboração formal.42 Coube a von Wright, discípulo de
Wittgenstein e um dos responsáveis pela publicação póstuma de suas Investigações
Filosóficas, o mérito de ter ressaltado a importância do contexto em que as
expressões são utilizadas, quando se trata de entender o conceito de norma jurídica,
que não está funda- do em elementos gramaticais, mas no uso comunitário.43
O lógico finlandês von Wright reconhece três tipos de normas principais (a) e três
tipos de normas secundárias (b). Das três primeiras espécies são as regras (a.a), a
exemplo daquelas desenvolvidas pela Gramática e das que estabelecem os
movimentos de um jogo; as diretrizes (a.b.), que dispõem acerca das técnicas e
meios empregados com vista a uma determinada finalidade, a exemplo das
orientações contidas em um manual de instalação; as prescrições (a.c), que são as
ordens, proibições ou permissões dadas pela autoridade que promulga a norma e
impõe sanções. Ao lado destas espécies, estão as normas secundárias (b), que têm
aspectos em comum com aqueles tipos principais. São elas as normas ideais (b.a),
que estão entre as regras e as diretrizes, pois ao mesmo tempo em que
estabelecem um padrão, um modelo dentro de uma determinada classe de objetos,
orientam o caminho a seguir para alcançar uma
Início da nota de rodapé
(42) Estas comparações são feitas por Allan Janik e Stephen Toulmin. A primeira
delas parte das idéias do arquiteto Adolf Loos, intelectual da geração vienense que
influenciou o pragmatismo das Investigações de Wittgenstein (op. cit., p. 300-307).
(43) A propósito da exposição que segue, v. Georg Henrik von Wright, Norma y
acción — una investigación lógica, Madrid, Tecnos, 1974, p. 63- 92e 109-121.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
situação diferenciada dentro de uma determinada classe; os costumes (b.b.), hábitos
orientados por certas pressões sociais, que têm pontos em comum com as
prescrições, mas que, à diferença delas, não emanam de qualquer autoridade com
poderes para impor sanção. Assemelham-se também às regras, pois os costumes
diferen- tes permitem distinguir os grupos sociais; as normas morais (b.c), dispersas
nos diversos agrupamentos sociais, sem possibilidade de uma definição precisa, e
que têm pontos de contato com as regras, porque definem uma determinada
instituição (as promessas religiosas, v.g.). Algumas das normas morais encontram
fundamento no costume, a exemplo da monogamia.
Acrescenta Wright que os operadores deônticos obrigatório, proibido e permitido são
interdefiníveis e que as prescrições ora podem assumir a forma de enunciados
imperativos, ora a forma de enunciados condicionais. Com base nessas noções,
Wright passa a demonstrar que as normas jurídicas muitas vezes estão ocultas por
uma gramática superficial. Só mesmo o exame das semelhança e do parentesco das
formas e modos verbais utilizados permite reconhecê-Ias. Assim é que as orações
imperativas não necessariamente se identificam com a formulação de normas. É o
caso de uma prece ou imprecação (Venha a nós o vosso Reino), de um conselho ou
de uma advertência (Não faça isto). Por outro lado, nem todas as normas são
formuladas no modo imperativo ou na forma condicional. E o caso das permissões
(ainda que se possa falar da obrigação, imposta a terceiros, de respeitá-las). Há
permissões, outrossim, que são formuladas em termos imperativos. A luz verde,
dirigida ao pedestre, diz atravesse agora. Porém, no uso comunitário, que é o que
importa considerar segundo Wittgenstein (Investigações, § 241), seu significado é
pode atravessar agora.
Acrescente-se que as diretrizes muitas vezes são também formuladas de maneira
imperativa ou condicional. Isto implica reconhecer a possibilidade de usos não-
normativos de expressões como você deve, você tem. Ademais, os funtores
deônticos dão lugar a formulações muito mais ricas que as sentenças imperativas,
pois além da obrigação e da proibição contam com a instância da permissão,
categoria deôntica que sugere uma série de questões no
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
âmbito da teoria jurídica, igualmente exploradas por Wrigth.5 As normas jurídicas
também podem ser formuladas com emprego do modo verbal indicativo, a exemplo
da regra do artigo 15, parágrafo Único, do Código de Processo Civil (Quando as
expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado
que não as use, sob pena de lhe ser cassada a palavra), ou do artigo 129
(Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e réu se serviram do
processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o iuiz proferirá
sentença que obste aos objetivos das partes.).
Enfim, abstraindo de um maior aprofundamento no campo da lógica deôntica, que
excederia as pretensões desta sumária exposição, pode-se dizer que o jogo de
linguagem das normas jurídicas não é a lógica das sentenças indicativas nem das
sentenças imperativas, nem tampouco das sentenças condicionais ou hipotéticas. E
isto porque o significado da norma não está preso a elementos gra- maticais, mas
relacionado ao uso, ao emprego da expressão norma- tiva, dentro de um
determinado contexto histórico e social.45 Isto
Inicio da nota de rodapé
(44) A propósito, v. a distinção entre permissãofraca e permissão forte, que interfere
com a questão do direito subjetivo (G.H. von Wright, op. cit., p. 100-107). Em última
análise, o espaço dapermissão também interfere com o tema do abuso do direito,
pois o que se discute são os limites do ordenamento jurídico.
(45) Neste sentido, a questão do racionamento de energia elétrica no País é
ilustrativa. O que está no centro da regulação feita pela Medida Provisó- ria 2. 1 52,
de 1 0.06.200 1 (muito embora a norma não faça esta referência) é o abuso do
direito do consumidor diante de uma crise dos recursos hídricos, perspectiva que
acaba coiidindo com a Lei 8.078/90, cuja ótica é precisamente inversa (defender o
consumidor contra o abuso do for- necedor). Entretanto, o Supremo Tribunal Federal
(ADC 9-6 — DF, j. 28.06.2001, Tribunal Pleno, rel. Néri da Silveira, maioria de
votos), à vista do grau de institucionalização do Código de Defesa do Consumidor e
sem condições de argumentar no campo da estrita constitucionaIidade, diante da
norma dos artigos 5 .°, inciso XXXII, 1 70, inciso V, 1 75, incisos 11 e IV, da
Constituição Federal, preferiu manter-se no campo da efetividade da norma (uma
decisão contrária ao Executivo poderia comprometer o plano de racionamento, com
sérias conseqüências sociais, o que o povo brasileiro parece entender, tanto assim
que os jornais
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
explica porque se buscou apontar, no primeiro e segundo capítulos, a maneira como
a chamada teoria do abuso do direito funciona, de que forma os juristas e
operadores do direito procuram conciliar a verdade como imperativo ético com a
verdade como imperativo prático. Esta tensão dialética, que alimenta as discussões
em torno do abuso dos direitos processuais, revela-se no segundo Wittgenstein
como um falso dilema, uma polêmica sem sentido, exatamente por- que não se pode
buscar o significado de expressões deslocadas do uso, fora dapraxis social. Nessa
mesma perspectiva, a polêmica entre subjetivistas e objetivistas, desenvolvida nas
duas primeiras seções do segundo capftulo, também se revela destituída de sentido,
pois para saber o que alguém diz não é necessário investigar o que tem em mente.
Basta ver como as partes empregam as palavras nos di- versos contextos do
processo, que é uma das diversasformas de vida.
4.3 Razão teórica versus razão prática
Como foi visto, o positivismo lógico coloca os enunciados descritivos em posição
privilegiada, porquanto somente a eles se pode aplicar o conceito de verdade. Do
ponto de vista do positivismo metodológico, ou também chamado conceitual, ainda
que se pudesse conceber o direito como ciência dos valores, certo é que ao cien-
tista não seria dado mais do que descrever a norma, cujo sentido objetivo independe
das condições psicológicas e das condições sociais que possam ter orientado sua
edição. A propósito, como já se disse anteriormente, o pressuposto de Kelsen,
comum a todo neopositivismo, é o caráter descritivo da ciência, que não se coaduna
com o aspecto prático ou emocional dos juízos de valor.46
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
noticiam a redução no consumo de energia elétrica em praticamente to- dos os
Estados membros). Outrossim, a decisão da suprema corte, ao deferir o pedido de
medida cautelar deduzido nos termos do art. 21 da Lei 9.868/99, utilizou-se também
de um padrão axiológico que contra põe os critérios dejustiça comutativa ejustiça
distributiva, distinção feita por Aristóteles no Livro V da Etica a Nicômaco
(distribuição dos ônus na proporção do consumo de cada um dos consumidores).
(46) Ver, neste sentido, a análise de Nicolás Abbagnano, Historia de la Filosofía,
tomo 111, 3. ed., Barcelona, Montaner y Simón, S. A., 1978,
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Entretanto, a dualidadefato e valor à luz da exigência da objetividade científica,
acabou ganhando novos contornos, que foram traçados pelo próprio positivismo
lógico. Para Schlick, incumbe à ética, integrante das ciências sociais, a descrição de
fatos, vale dizer , a investigação acerca das condições em que os conceitos bom e
mal, por exemplo, são realmente utilizados, e não a produção de valores. A ética
busca apenas o conhecimento e não a expressão de sentimentos, desejos,
esperanças etc... Fugindo àperspectivakantiana, Schlick defende a tese de que a
ética não justifica uma atitude mental, uma ação, não lhes atribui um valor moral,
mas apenas descreve sob que circunstâncias, sob quais regras atitudes e ações são
efeti- vamente avaliadas como boas. A validade de uma valoração encontra
fundamento em normas mais elevadas, as quais, por sua vez, são extraídas dos
fatos, da consciência e da natureza da vida humana, regras últimas que são
princípios morais. A ética não é, pois, uma ciência normativa, e ncm tampouco uma
ciência que descreve nor- mas (como é o caso do direito, sob a perspectiva
kelseniana), mas uma ciência causal, que indaga da razão pela qual o homem reco-
nhece certas condutas como boas ou más. A descrição ética, além da teoria da
norma (que determina o conteúdo dos conceitos bem e mal), tem em conta os
fundamentos de validade da norma moral, que transcendem os princípios morais
para alcançar as causas psicológicas das atitudes e ações.47
O Círculo de Viena não se interessou muito pela ética, limitan- do-se a desqualificar
os juízos de valor do ponto de vista de uma ciência descritiva. Como foi visto (seção
4.1), Carnap dizia tratar- se de imperativos de forma gramatical desviada ou de
imperati- vos disfarçados. Na concepção do positivismo conceitual de Kelsen, as
normas jurídicas, como formuladas pelo cientista do
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
p. 685 e 686. Ver também Carios Santiago Nino, Introducción al análisis del derecho,
Buenos Aires, Editorial Astrea, 1 984, p. 37-43, Norberto Bobbjo, Contribución a la
teoria del derecho, Valencia, Fernando Torres Editor, S.A., 1980 (Colección Derecho
y elEstado), p. 105-110 e 1 19-124 e Enrico Pattaro, op. cit., p. 67-82.
(47) Moritz Schlick, ¿Quepretende la ética?, in A.J. Ayer (org.), Elpositivismo lógico,
México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 251-268.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
direito, não são imperativos ou ordens, masjuízos hipotéticos. Graças a esta
elaboração, que encontrou seqüência e aprofundamento na teoria egológica de
Cossio, cogitou-se da possibilidade de uma lógicajurídica aplicada não à norma
mesma, que é imperativa, mas aos enunciados que a descrevem, às proposições
jurídicas.48
Com efeito, as tentativas de adequação dos funtores deônticos (obrigatório, proibido,
permitidofazer e permitido nãofazer) à estrutura dos enunciados apofânticos,
próprios da lógica elementar, revelaram alguns paradoxos. E isto porque a validade
é uma categoria que não se insere nas relações lógicas, como bem o demonstrou
Kelsen nas correspondências trocadas com Ulrich Klug.49 A aplicação dos juízos
universais da lógica aristotélica às normas mesmas, juízos imperativos que não
podem ser verdadeiros ou falsos, somente seria possível se houvesse um conceito
em condições de desempenhar, no campo da lógica deôntica, o mesmo papel que
Início da nota de rodapé
(48) Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p.
110-116. A respeito destas elaborações, ver a análise desen- volvida por Antônio
Luís Machado Neto, Teoria da ciênciajurídica, São Paulo, Saraiva, 1975, p. 140-146.
(49) Hans Kelsen, Normasjurídicas e análise lógica (correspondência trocada entre
Hans Kelsen e Ulrich Klug), Rio de Janeiro, Forense, 1984. Mais particularmente a
págs. 60-69, Kelsen refuta a posição defendida por Klug, no sentido de que duas
normas seriam contraditórias quando não pudessem ser simultaneamente válidas,
dizendo que a verdade de uma afirmação está no campo do pensamento, ao passo
que a validade de uma norma está no campo da vontade. A vontade é o imperativo,
o preceptivo, enquanto a verdade pertence à esfera do indicativo, do descritivo.
Querer e conhecer (ou pensar) são duas coisas distintas. O conhecer precede o
querer do qual a norma é o significado, não lhe sendo imanente, como supõe o
jusnaturalismo. Só Deus pode querer enquanto conhece. A existência da norma
(validade) é deversercorrelato auma vontade. Assim, como não há analogia entre
verdade de um enunciado e validade de uma norma, um conflito de normas não
pode ser visto como uma contradição lógica. E tanto não o é que o ordenamento
jurídico dispõe sobre regras para a solução do conflito, que se dá quer através da
derrogação de uma ou de ambas as normas, quer da perda de eficácia. O conflito
não pode ser resolvido pela ciência do direito (conhecimento), mas apenas pelo ato
de vontade do Iegislador.
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
está reservado à verdade na esfera da lógica formal. Esta tentativa também se
mostrou frustrada, pois, no limite, acabava por reduzir o campo da validade ao
campo da eficácia da norma. Em outras pala- vras, a existência da norma estaria
condicionada ao seu cumprimento irrestrito por parte de todos os endereçados. A
própria experiência demonstra, entretanto, que as coisas não se passam bem assim
e é esta, precisamente, a crítica que se pode fazer às diversas formas de
sociologismoiurídico.50 Estas mesmas dificuldades se reproduzem,
Início da nota de rodapé
(50) Uma das tentativas, empreendidas pela lógica deôntica, de desenvolver
enunciados e argumentos nas mesmas bases dos enunciados apofânticos, a partir
dos operadores obrigatório, proibido epermitido, pode ser resumida, a grosso modo,
da seguinte maneira: S é P (universal atirmativa) corresponde a Todo S está
obrigado a P; S é não P (uni- versal negativa) corresponde a Todo S está proibido
de P; Algum S é P (particular afirmativa) corresponde a Alguns S podem fazer P;
Alguns S não sãoP (particular negativa) corresponde a Alguns S não podem fazer P.
A verdade dos primeiros enunciados categóricos corresponderia a satisfatoriedade
dos segundos, conceito que designa a condição de realização dos termos sujeito e
predicado, os quais, por sua vez, referem-se a classes de objetos. Sabe-se que o
enunciado S é P não implica a existência de elementos na classe S, pois é
perfeitamente Iícito fazer referência a uma classe que não tenha elementos, enfim a
uma classe vazia. Parafraseando Wesley Salmon (op. cit., p. 55), pode ser
verdadeiro o enunciado A classe de notas de cem reais em meu bolso é uma
fortunp, ainda que esta classe seja vazia. Isto também se aplica à universal
negativa, pois dizer Nenhum S é P é o mesmo que dizer Todo s é não P. Disto
decorre que, assim como um enunciado cate- górico é verdadeiro se e somente se
não existir qualquer elemento da classe em que se realize somente o sujeito (ou
seja, realizando-se o sujeito, tem-se de realizar também o predicado), uma norma
jurídica que obriga é satisfatória se e somente se não existir qualquer pessoa,
integrante da classe dos destinatários da norma, que deixe de realizar a conduta
descrita na norma. De igual modo, uma normajurídica que proíbe é satisfatória se
não existir qualquer pessoa, integrante da classe dos destinatários da norma, que
realize a conduta descrita na norma. Em qualquer dos casos, pois, se a classe dos
destinatários da norma for vazia, a norma é sempre satisfatória. A satisfatoriedade,
assim, consiste na ausência de qualquer ação ou abstenção que implique o
descumprimento da norma (PauI Snyder, Modal logic and its apllications, New York,
van Mortrand Reinhols Company, p. 75,193 e 220).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
do ponto de vista do positivismo conceitual, no nível da teoria da norma, pois a
proposiçãojurídica, para Kelsen, também é um dever ser, ainda que de sentido
descritivo.51
Não cabe enfrentar, considerados os propósitos da presente investigação, os
desafios que essas questões lógicas sugerem, mas apenas apontar para as
limitações desse ângulo de análise, cujas dificuldades deixam entrever problemas de
natureza epistemológica e metodológica. Como vem-se tratando de demonstrar, a
chamada teoria do abuso do direito exprime de maneira significativa todos estes
embaraços. Não se pode conceber a existência de um sistema fechado, que opera
na base de códigos binários do tipo lícito/ilícito, proibido/não proibido, e ao mesmo
tempo dinâmico. Eo contato com o sistema social que aponta os limites, as lacunas
e os con- flitos do sistema jurídico. Mas, paralelamente, é este mesmo contato que
garante a unidade e a consistência do sistema. Os paradoxos, a exemplo daquele
apontado por Planiol, revelam que grande parte das categorias jurídicas somente
pode ser concebida no contexto de uma lógica dinâmica, o que abre espaço para o
aspecto cultural do direito.
Dessa perspectiva, acima desenvolvida, há de se considerar que o direito tem
existência real, finalidade e valores próprios. Como qualquer instituição social, ele se
apropria de maneira seletiva da realidade dos fatos, reconstruindo-os na base de
estereótipos e ficções, para devolvê-los, como fatos institucionalizados, ao meio
social. Daí porque também não se pode cair no extremo oposto ao formalismo
jurídico, que é o realismo ingênuo, pois o juiz, autoridade competente, aprecia
osfatos provados — de acordo com um procedimento também previsto na norma —
e não o fato mesmo, como fenômeno social. Isto explica determinadas concessões
às exigências da verdade, feitas pela teoria do abuso do direito em nome de uma
instrumentalidade processual, como foi visto no segundo capítulo (seções 2.2 e 2.4).
Assim, a parte só é apenada, ou somente suporta determinado ônus pela prática da
trapaça, quando o seu
Início da nota de rodapé
(51) Hans Kelsen, Thoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, I979,p.
116.
Fim da nota de rodapé
Página 273
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS,
comportamento tiver influenciado a decisão da causa.52 No mais, não há abuso.
Tem-se entendido, igualmente, que o dever de lealda- de e boa-fé, que engloba
todas as figuras do artigo 14 do CPC, não impõe ao litigante a obrigação de deduzir
todos os elementos des- favoráveis a ele próprio e nem todos os que sejam
favoráveis ao adversário.53
Diga-se, ainda a propósito destas questões epistemológicas, que embora os
processualistas insistam em buscar o fundamento da teoria do abuso do direito nos
princípios morais, claro está que o apelo a certos standards mais vale como
estratégia retórica do que propriamente como fundamentação. E, neste particular, há
de se lem- brar a distinção feita, no final do segundo capítulo, entre argumentação,
adequada ao campo das ciências culturais, e demonstração, que tem curso no
campo das ciências ideais, físicas e naturais. Como foi visto, coube a Wittgenstein
revelar que o indizível — do que são exemplo os valores — é muito mais importante
do que aquilo que pode ser dito. Charles Stevenson também defende a tese
neoempirista do caráter não-racional e sim emotivo dos valores morais. Os
enunciados éticos nada descrevem. No entanto, cumprem determinadas funções,
pois a par de exprimir a aprovação ou desaprovação daquele que fala, são um
convite para que os ouvintes venham com- partilhar desta atitude do emissor.
Em um artigo da revista Mind, publicado em 1937, que antecede a edição de sua
clássica obra, Ethics and Language, Charles
Início da nota de rodapé
(52) Sebastián Soler, Derecho Penal Argentino, Tipografia Editora Argentina,
Buenos Aires, tomo Iv, p. 301, apud Eduardo Oteiza, Abuso de los derechos
procesales en América Latina, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos
Direitos Processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2.000, p.28e29.
(53) Humberto Theodoro Jr., Abuso do direito processual no ordenamento jurídico
brasileiro, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio
de Janeiro, Forense, 2000, p. 101. Eduardo Couture, como visto no segundo
capítulo, entende de maneira diversa. Segundo o processualista uruguaio, que se
baseia na distinção entre saber e querer, nada impede que a parte diga tudo aquilo
que sabe para depois tentar convencer ojuiz do acerto de seu direito, ou seja,
daquilo que quer (Eduardo J. Couture, op. cit., p. 246 e 247).
Fim da nota de rodapé
Página 274
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Stevenson começa por reconhecer a vagueza e ambigüidade de conceitos como
bom, na base das definições de Hobbes e de Hume, que servem de pretexto para
uma nova formulação. O sentido mais importante de bom pressupõe três requisitos:
a) o desacordo acerca do que é ser bom; b) uma mudança de atitude diante do reco-
nhecimento da qualidade bom, que passaria a exercer, assim, um certo magnetismo
sobre aquele que fala (ao reconhecer que certo homem é bom, a pessoa terá uma
tendência a ajudá-lo); c) o valor bom é algo que pode ser verificado de outras formas
e não somente através do método científico. A seguir, o autor diz que sempre há um
aspecto descritivo nos juízos éticos. Todavia, sua função mais importante não é
descrever fatos, mas sim exercer influência sobre as pessoas. Neste sentido — diz
Charles Stevenson — os termos éticos são instrumentos utilizados na complicada
interação e ajusta- mento dos interesses humanos.54
Tomando de empréstimo alguns exemplos de Charles Stevenson,55 na tentativa de
adaptá-Ios ao campo do processo judicial, é possível dizer que, quando ojuiz afirma
que tais e quais condutas constituem abuso do direito, não só as está desaprovando
como também influenciando o comportamento das partes. O mesmo vale para a
relação entre as partes e também para arelação entre as partes e o juiz, quando 05
litigantes, neste último caso, procuram convencê-lo de que o adversário está agindo
mal, na esperança de que o julgador também compartilhe da desaprovação da
conduta. Daí porque doutrina e jurisprudência consideram que a prática de abuso
processual tem de ser analisada caso a caso.56 Desnecessário dizer que a
argumen- taçãojurídica é instrumento fundamental nessa dinâmica de persua- são,
que muitas vezes recorre a falácias formais e materiais, na ten-
Início da nota de rodapé
(54) Charles L. Stevenson, E1 signijïcado emotivo de los términos éticos in A. J.
Ayer (org.), Elpositivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 269-
273. Particularmente, quanto à passagem re- produzida no final do parágrafo, ver p.
275.
(55) ldem, p. 274.
(56) Gualberto Lucas Sosa, Abuso de derechos procesales, in José Carlos Barbosa
Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio de Janei- ro, Forense, 2.000, p.
45.
Fim da nota de rodapé
Página 275
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
tativa de convencer o interlocutor processual.57 Pode suceder que o juiz não se
impressione com a argumentação da parte, naquilo que diz respeito às
conseqüências do abuso processual que um litigante imputa ao outro, precisamente
porque a conduta abusiva não teria o condão de alterar os rumos do processo.
Nestes casos, como foi visto há pouco, doutrina ejurisprudência não reconhecem
prática de abuso do direito.
Ao lado do uso descritivo das palavras, está o uso dinâmico, que se reconhece nas
interjeições que expressam sentimentos, na poesia que embevece, criando um
estado de ânimo, e na oratória, que estimula ações e atitudes, funções que não se
excluem. Quando o juiz diz a uma das partes, que teria agido de maneira temerária,
Por certo, o senhor não incorrerá novamente nesse erro, pode estar fazendo uma
predição (uso descritivo), ou uma sugestão, a fim de estimulá-la e, em
conseqüência, impedi-la de cometer o mesmo erro (uso dinâmico). Esta
classificação tem em conta o propósito
Início da nota de rodapé
(57) O juiz pergunta à parte, que presta depoimento pessoal: em que mo- mento o
senhor mentiu? Hoje, ao dizer que não se envolveu nos fatos, ou no processo
anterior, quando disse categoricamente que sabia de toda a trama?. Está claro aqui
o emprego da falácia conhecida como per- gunta complexa, pois o magistrado está
partindo do pressuposto de que a parte em algum momento mentiu. Presente
também está a falácia con- sistente em confundir tipos diversos de incompatibilidade
de enuncia- dos, quais sejam contraditórios e contrários. No caso de enunciados
contraditórios, a verdade de um deles implica a falsidade do outro e a falsidade de
um deles acarreta a verdade do outro. Trata-se de p ou nãop , tertium non datur.
Cuidando-se de enunciados contrários, mostra- se impossível a verdade de ambos,
embora possível a falsidade simultânea. Versões diferentes sobre o mesmo fato,
como sucede na hipótese em exame, nem sempre implicam contraditoriedade.
Saber de toda a trama não necessariamente implica envolvimento nos fatos. A am-
bigüidade e a vagueza das palavras, somadas à carga emotiva, instau- ram, no
campo dos signos providos de conteúdo semântico, controvér- sias que não podem
ser resolvidas, comojá se disse, na base de códigos binários, resultantes da
aplicação dos princípios racionais (identidade; contradição; terceiro excluído).
Dependendo do contexto, e considerada a relação de hierarquia entre as partes e o
juiz, poder-se-ia cogitar também de um argumentum ad baculum.
Fim da nota de rodapé
Página 276
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
de quem fala e não necessariamente o significado da palavra, que pode se manter
inalterado apesar da variedade de experiências que acompanham o uso do signo.
Entretanto, há uma classe de signifi- cado que tem uma relação íntima com o uso
dinâmico, a saber, o signijïcado emotivo, já reconhecido por Ogden e Richards,
autores de um livro clássico sobre a teoria do significado.58 Charles Stevenson,
partindo da elaboração destes lingüistas, sustenta que o significa- do emotivo é uma
tendência de produzir reações afetivas nas pes- soas, tendência esta relacionada à
história de uso da palavra.59
Início da nota de rodapé
(58) No Iivro de C. K. Ogden e I. A. Richards (The Meaning ofMeaning, 5. ed.,
NovaYork, Harcourt, Brace & World, Inc., 1938) os autores desenvolvem o chamado
triângulo semiótico. O pensamento (também conhecido como referência, idéia,
conceito) está no vértice superior do triângulo, ao passo que o símbolo (signo,
palavra) ocupa, na base da figura geométrica, o ângulo esquerdo. O ângulo direito
está reservado ao objeto (coisa). Este clássico diagrama busca demonstrar a
relação causal entre os diferentes elementos do significado. No livro, os autores
desen- volvem um estudo sobre a influência da linguagem no pensamento e na
ciência do simbolismo, estabelecendo a distinção, comum aos neoempiristas, entre
significado cognoscitivo e significado emotivo das palavras. A função cognoscitiva ou
simbólica compreende a simbolização da referência da palavra à coisa e sua
comunicação ao ouvinte. A função emotiva, que encontra na poesia a sua forma
suprema, compreende a expressão das emoções, das atitudes, dos humores, das
intenções de quem fala, bem como sua comunicação ao ouvinte. A propósito
daelabo- ração de Ogden e Richards, v. Nicolás Abbagnano, Historia de la Filosofia,
tomo 111, 3. ed., Barcelona, Montaner y Simón S. A., 1978, p. 684, Adam Schaff, op.
cit., p. 222-230, Enrico Pattaro, op. cit., p. 79, Umberto Eco, Tratado Geralde
Semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1 980 (Coleção Estudos, vol. 73), p. 50 e 51,
Umberto Eco, O signo, 3. ed., Lisboa, Presença, 1985, p. 21-26, e Decio Pignatari,
Informação. Lin- guagem. Interpretação, 4. ed., São Paulo, Perspectiva, Coleção
Deba- tes, 1970,p.30e31.
(59) Charles Stevenson, op. cit., p. 276-278. O autor esclarece também que certas
palavras, em razão de seu significado emotivo, são mais apropriadas para
determinados tipos de uso dinâmico, como é o caso de democracia, na esfera da
oratória, e de amor, na esfera dos sentimentos e da poesia. O Código Civil de 1916,
nos seus 1.807 artigos, utiliza-se uma única vez da palavra amor (art. 1 .338), não
reproduzida no Código Ci vil atual (art. 868).
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Quanto mais acentuado o significado emotivo da palavra, menos provável se mostra
que as pessoas a utilizem de um modo puramente descritivo.60 E o que ocorre com
a palavra abuso, que remete à intromissão, mau uso, injustiça etc. A teoria do abuso
do direito, tanto de viés subjetivista como objetivista, revela não só a desaprovação
desta ou daquela conduta processual, como também o objetivo de influenciar a
conduta das partes. Daí porque não basta a ela- boração do conceito, como previsto
na norma, a pura idealidade, no pressuposto de que as pessoas passem a observar
a regra legal pelo simples fato de ela existir. Há, inegavelmente, uma certa mítica da
lei, em razão das associações existentes em torno deste símbolo. Todavia, para
além da idéia, é necessário reconhecer, comojá fazia o segundo Wittgenstein, a
importância do uso, das práticas sociais, na fixação do significado. Isto remete —
como vem-se acentuando a todo momento — a uma questão epistemológica, pois
ao mesmo tempo em que a teoria do direito interfere na produção social, deixa-se
influenciar por ela.
É inegável que, quando o estudioso do direito desenvolve seus complexos
argumentativos (que a dogmáticajurídica conhece como teoria), apresentando juízos
de valor como se fossem juízos descritivos, busca em verdade estabelecer um certo
consenso em torno de determinados significados, que passam a ser vistos como se
fossem a expressão da realidade mesma. Os estudos desenvolvidos a propósito da
relação entre direito e linguagem têm apontado para o caráter veladamente
ideológico das chamadas definições reais. Em outras palavras, o intérprete, ao
recorrer às definições reais de abuso, buscando como que um sentido indisputável,
propõe em termos de essência aquilo que reputa importante de um ponto de vista
prático.61
Início da nota de rodapé
(60) Idern, p. 278.
(61) A propósito desse caráter ideológico das definições reais, v. Luis Alberto Warat,
A definição jurídica — suas técnicas, texto programado, Porto Alegre, Atrium, 1977,
p. 18. De um ponto de vista funcional, v. Lelio Lantella, op. cit., p. 244-253. Como
escreve Alaôr Caffé Alves, a norma jurídica não quer conhecer o mundo das ações
humanas e sim modificá-lo (op. cit., p. 194).
Fim da nota de rodapé
Página 278
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Fechando o seu círculo teórico, Charles Stevenson volta à discussão acerca dos
requisitos necessários ao reconhecimento do sentido mais importante dos iuízos
éticos. Quanto ao primeiro requisito, distingue entre desacordos de crença e
desacordos de interesse.62 As partes podem estar certas das conseqüências da
omissão da verdade no processojudicial. Mas ainda assim, é possível que uma delas
reconheça esta prática como boa e a outra como má. Ou seja, não há entre elas
desacordo de crença e sim desacordo de interesses, fruto de uma particular
cosmovisão, de uma determinada mundividência. Isto interfere com o terceiro
requisito, mencionado por Charles Stevenson no começo do seu trabalho. O
desacordo de crenças pode ser resolvido na base do método empírico. Basta
verificar os fatos. Supondo que as partes divergentes a respeito da existência de
conseqüências da omissão da verdade no processo, cuidar-se-ia de observar a
realidade. Contudo, o desacordo de interesses não comporta o emprego de qualquer
método racional.63
A discussão travada na doutrina e najurisprudência, como vista nos capítulos iniciais
do presente trabalho, a propósito da existência de limites à atuação das partes no
processo, revela mais pro- priamente um desacordo de interesses, que pode ser
identificado nas dicotomias processo autoritário versus processo científico; processo
inquisitivo versus processo dispositivo; verdade formal versus verdade real. Todos
reconhecem que a omissão da verdade pode interferir nos rumos da prestação
jurisdicional. Quanto a isto não há divergência. Entretanto, há quem sustente que
não existem razões para exigir dos litigantes comportamentos distintos daqueles
existentes em outros setores da vida social. O processo, sob essa ótica, encarna a
luta pelo direito, refletindo as mesmas tensões existentes no resto da sociedade. Os
verdadeiros protagonistas dos lití- gios são os cidadãos, não os tribunais, pelo que
se tem de deixar as
Início da nota de rodapé
(62) idern, p. 281 a 285.
(63) Idem, ibidern.
(64) A propósito destas questões, v. o segundo capítulo 2, seção 2.4.
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
partes livres para desafogar suas ansiedades e angústias.65 Está-se aqui diante de
um desacordo de interesses.
Bem se vê, desta forma, que os termos e enunciados éticos não se prestam à
verificação científica. Nesse terreno, a questão da verdade, de um ponto de vista
cognoscitivo, não se coloca. Mas ainda que não se possa cogitar de um método
para a solução do desacordo de interesses, é possível falar em um modo de
promover o acordo, que depende do alcance emocional das palavras, isto é, do
significado emotivo, de sua força retórica, de uma metáfora apropriada, de um bom
tom de voz, da intensidade dos gestos etc.66 Este aspecto interfere com o segundo
requisito mencionado por Charles Stevenson no início de seu trabalho. A mudança
de atitude diante do reconhecimento de uma determinada qualidade, de um
determinado valor, predispõe a pessoa à ação, vale dizer, a conduzir-se em
conformidade com aquilo que passou a ver como certo, como bom.
Muitas vezes, desacordos de interesses (atitudes) são apresen- tados como se
fossem desacordo de crenças (juízos). Genaro Carrió, examinando a pseudodisputa
travada em torno da questão consistente em saber se ojuiz cria direito, chega à
conclusão de que não se trata de um juízo descritivo, mas sim valorativo, cuja
resposta depende das diversas concepções quc se possa ter acerca da função
jurisdicional e do sistema jurídico.67 No caso do chamado abuso do direito, passa-
se o mesmo. O paradoxo proposto por Planiol é a mais clara demonstração de que
toda controvérsia em tomo da possibilidade de
Início da nota de rodapé
(65) Francisco Ramos Méndez, ¿Abuso de derecho en elproceso?, in José Carlos
Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense,
2.000, p. 6.
(66) Charles Stevenson, Ethics and Language, New Haven, Conn, Yale University
Press, 1944, p. 138, apud Nicolás Abbagnano, Historia de Ia Filosofía, tomo 111, 3.
ed., Barcelona, Montaner y Simón S.A., p. 682 e 683. No mesmo sentido, Charles
Stevenson, op. cit., p. 284 e 285.
(67) Genaro Carrió, Notas sobre derecho y lenguaje, 4. ed., Buenos Aires, Abeledo-
Perrot, 1990, p. 105-1 14. Esse trabalho também se encontra reproduzido, sob o
título igiudici creano diritto — esame di unapolernica giuridica, in Uberto Scarpelli
(org.), Diritto e Analisi del linguaggio, Edjzjon di Comunità, Milão, 1976.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
exercer abusivamente um direito mal esconde um desacordo de interesses (atitudes)
em torno do estatuto teórico do direito, que longe de operar com enunciados
descritivos, interfere na realidade, deixando-se também influenciar por ela. Mas claro
está que a operacionalidade das teorias jurídicas reside precisamente em não se
mostrar como complexo argumentativo. Isto revela uma faceta ideológica que
cumpre, no campo do direito, determinadas funções sociais. Comojá se adiantou, há
uma série de falácias formais e materiais que visam à legitimação do discurso
jurídico como instância imparcial na solução dos conflitos. O encobrimento da atitude
permite ao teórico, reconhecendo a subjetividade da posição sustentada, apresentá-
la como se fosse expressão do fato real.68
Início da nota de rodapé
(68) Assim, a classificação binária, lícito e ilícito, revela uma falácia meta- física, pois
pressupõe um universojurídico povoado de entidades com existência própria. A
esfera do permitido, entretanto, acaba denunciando o caráter idealista desta
formulação, pois ao mostrar que existe um terceiro modo deôntico, abre espaço para
a discussão dos limites do sistema jurídico em contraste com o sistema social (a
propósito, veja- se o que foi dito na seção 4.1, particularmente a nota 17). Ao lado da
falácia metafísica, acham-se a construçãoforçada do gênero e diferença e afalácia
metodológica do recurso à metáfora. A tentativa de elaborar o conceito de abuso do
direito como espécie do gênero ilícito, na base da semelhança e de uma diferença
específica, herança da lógica clássica, desconsidera o aspecto cultural das
construções jurídicas, tal qual como foi visto no primeiro capítulo (seção 1.4). E
significativo o poder das metáforas no campo do direito, as quais, ao buscar uma
aproximação com o real, acabam por empreender uma reconstrução do objeto, sob
aparência de simples substituição das palavras, da mera comparação. O objetivo,
entretanto, é prático, operacional (Lantella, op. cit., p. 220, 263-265, 275 e 292; ver
ainda Alaôr Caffé Alves, op. cit., p. 35 1). A respeito da comparação entre o
processo judicial e o jogo, vale o que foi dito no segundo capítulo (seção 2.4).
Eduardo Angel Russo crítica, contudo, essa analogia, pois a teoria do jogo aponta
para um modelo matemático, onde nenhuma variável externa pode incidir no
desenvol vimento e no resultado. O trapaceiro é colocado para fora do jogo. Os
jogadores não agem em colusão para beneficiar terceiro, estranho ao jogo. O
objetivo dos jogadores é ganhar. Por último, observa que as regras dojogo
permanecem inalteradas durante a disputa. No proces- so judicial, de outro modo, as
trapaças muitas vezes fazem parte das
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
De tudo que foi dito, resulta claro que a compreensão de uma teoria do abuso dos
direitos processuais demanda um modelo epistemológico um pouco mais amplo, que
ultrapasse as rígidas mol- duras de uma ciência supostamente descritiva. A
chamada investigação pura, mormente no campo das humanidades, entrou em crise
no pós-guerra e nos anos sessenta viu-se confrontada com as reivindicações de
envolvimento na solução dos problemas econômi- cos e sociais. As exigências do
desenvolvimento tecnológico e a crescente transformação da ciência em força
produtiva puseram em xeque a própria validade da distinção entre investigação
básica e aplicada, passando a exigir novos paradigmas. Nessa ordem de idéias, foi
preciso repensar a racionalidade cognitiva das ciências, ruptura epistemológica que
se mostra ainda mais significativa quando se está tratando do direito, dividido entre
uma racionalidade
Início da nota de rodapé
regras (a respeito, ver seção 2.4). Nem sempre as partes visam a ganhar. Movem-
nas, em certas circunstâncias, um ideal dejustiça ou afã de vingança, pelo que não
importa o próprio fracasso, contanto que se consiga prejudicar o outro. Muitas vezes,
também, prefere-se a solução menos vantajosa do ponto de vista econômico, em
nome da rápida solução do litígio. E possível cogitar, outrossim, da modificação das
regras no curso do processo, tal como sucede com a reforma das normas proces-
suais, que incide de pronto, alcançando o processo em curso, ou com a alteração do
direito material, que pode interferir na estratégia das partes. Assim — acrescenta o
autor — à incerteza estratégica própria de todos os jogos, soma-se, no caso do
proceso judicial, uma incerteza nor- mativa, que decorre também dos problemas de
interpretação da lei, dos conflitos entre normas e porque não dizer, da
discricionariedade judicial, segundo assinalava Frank Jerome. Diga-se ainda que o
fim do pro- cesso não necessariamente coincide com o fim do jogo, pois há de se
considerar a liquidação do julgado, sua execução, a prescrição, a abolitio criminis, a
retroatividade da Iei penal mais benigna etc. Por último, importa considerar que os
teóricos do direito também realizam suas Jogadas quando aparentam apenas
descrever o fenômeno jurídico de fora, com o que, consciente ou inconscientemente,
influem no comportamento dos outros jogadores (Eduardo Angel Russo, Derecho y
la teoria delosjuegos, in JoséAlcebíades de Oliveirajr. (org.), Opoderdas metóforas
— homenagem aos 35 anos de docência de LuisAlberto Warat, Porto Alegre,
Livraria do Advogado Editora, 1998, p. 256-261).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
coguinitivo-instrumental e uma racionalidade moral-prática.69 Não há condições
ainda de avançar no campo desta transição paradigmática,
Início da nota de rodapé
(69) Boaventura de Sousa Santos, Da Idéia de Universidade à Universida- de de
idéias, in Revista Crítica de Ciências Sociais, vols. 27 e 28, Coimbra,junho de 1989,
p. 25, 27, 51 e 52. Esse pensador português, ao tratar da dicotomia racionalidade
cognitivo-instrumental e racionalidade moral-prática, está-se referindo mais
exatamente ao campo das ciências sociais. Entretanto, entende-se que estas
categorias também se aplicam à esfera do direito, sobretudo no contexto das
chamadas sociedades modernizantes, que coincide com o pós-guerra, com o
chamado welfare state, período no qual a teoria do abuso do direito encontrou largo
desenvolvimento, como foi visto no primeiro capítulo. A respeito desta epistemologia
crítica, que substitui a ética da neutralidade científica pela ética da responsabilidade
social do cientista, ver os trabalhos de Hilton Japiassu, Introdução ao pensamento
epistemológico, 3. ed., Rio de Janeiro, FranciscoAlves, 1979, e O mito da
neutralidade cientifica, 2. ed., Rio de Janeiro, Imago Ltda., 1981. Sobre o conceito
de paradigma no âmbito das ciências, ver Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções
científicas, São Paulo, Perspectiva, 1982, Coleção Debates, vol. 1 1 5. Nessa obra,
surgida no final da década de sessenta, Kuhn critica o modelo da ciência universal e
desinteressada, desenvolvido pelo cientificismo positivista. Confronta a produção
científica com o ambien- te social que nela se reflete. A ciência não cresce
necessariamente de maneira acumulativa e contínua. A ciência caminha por saltos
qualitativos, de forma que a descoberta das verdades dá-se através de um processo
de normalidade e crise, onde se alternam períodos de consolidação e substituição
de axiomas, hipóteses, princípios, categorias e interpretações,
chamadosparadignias. Enquanto a elaboração científica não é reconhecida pela
comunidade dos cientistas, está-se diante de um estágio de pré-ciência, em um
momento de construção do paradigma, que, uma vez aceito na base da
unanimidade, instaura um período de ciência normal, madura. Contudo, existem
momentos em que os paradigmas, incapazes de dar uma explicação para fatos
novos, entram em crise, exaurindo-se. Paralelamente, outros paradigmas vão
surgindo 110 horizonte das ciências, com o que se iniciam as chamadas revoluções
cientijìcas, que só se consolidam quando um novo consenso se estabe lece em
torno de outro paradigma, dando lugar a um novo período de ciência normal. Kuhn
deixa claro, assim, que as alterações de rumo no campo científico não são resultado
da ruptura de uma lógica inteffla dos padrões científicos. A escolha entre os
paradigmas que começam a
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
mas já é possível reconhecer que a preocupação dos filósofos com o uso da
linguagem (isto a partir de Wittgenstein), ao colocar em crise o modelo
representativo da teoria do significado, aponta para as necessárias relações entre o
discurso teórico e a prática cotidiana. Esta reviravolta filosófica, com repercussões
sobretudo no campo da teoria da ciência, permitirá melhor compreender o caráter
praxeológico das elaborações jurídicas, particularmente das formulações relativas ao
abuso dos direitos processuais.
4.4 A linguagem e a construço da realidade
Os processualistas nunca levaram a questão da verdade tão a sério quanto o
fizeram os filósofos. E certo que as discussões acerca da imanência ou da
transcendência da verdade, que orientam, respectivamente, o idealismo e o
realismo, tiveram algumas repercussões na polêmica entre subjetivistas e
objetivistas, como foi visto no segundo capítulo, particularmente na seção 2.2.
Porém, Iogo os
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
emergir no estágio pré-cientffico não está fundada em supostos crité- rios universais
e comunais, a exemplo do critério de falsificabilidade, proposto por Popper. A
história mostra que não há critérios lógicos ou metodológicos no discurso científico.
Na realidade, o cientista está mais preocupado em preservar paradigmas do que
propriamente em falsificá-los. Como observou Wittg9nstein, as proposições em si
mesmas não guardam nenhum sentido. E necessário ver como funcionam. Por isso,
é importante verificar o que os cientistas fazem e procurar entender até que ponto o
contexto dajustificação passa a interferir no contexto da descoberta. Enfim,
alterando-se as condições sociais, as atitudes dian- te dos fatos, altera-se o campo
científico. O modelo dos paradigmas, desenvolvido por Kuhn, permite entender que
essa interdependência entre sujeito e objeto também tem repercussões nos diversos
níveis do conhecimento jurídico (direito/ dogmática jurídical teoria do direito). E disso
exemplo a interferência recíproca entre os complexos argumentativos desenvolvidos
pela doutrina jurídica e a prática judicial. Vale dizer, a teoria influi na prática e a
prática é incorporada pela teoria. O confronto entre diversos paradigmas conduz a
um processo de persuasão que envoive argumento de autoridade, argumento de
força e outras estratégias de convencimento, as quais têm em conta fatores sociais,
Políticos, econômicos e culturais. A verdade da ciência é mediada pela llnguagem
que, por sua vez, é um produto cultural.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
doutrinadores perceberam que a dogmática processual, envolvida com a solução
dos conflitos, longe de buscar a essência do conhecj mento, haveria sim de mostrar
(no sentido wittgensteiniano) como o conceito de verdade funciona. Trata-se, pois,
de jogos de linguagem diferentes. No mundo da filosofla não se há de cogitar de
dogmas, de pontos de partidas inquestionáveis, ao passo que no mundo
doprocessojudicial algumas regras já estão postas e outras surgem no desenrolar do
jogo.
Ao defender a verdade como concordância do relato com os fatos ocorridos
(veritas), os subjetivistas enveredaram por um terreno coberto de dificuldades. A
sentença, fundada em evidências psicológicas ou subjetivas, não pode ser objeto de
um enunciado univer- salmente válido. Atrelar a noção de abuso processual, por
exemplo, à intenção de enganar implica a produção de uma sentençajudicial que
opera na base das valorações, da intuição emocional e volitiva. Pondo de parte a
polêmica em torno da objetividade ou subjetividade dos enunciados éticos, é certo
que a norma individual e con- creta não pode, do ponto de vista do neopositivismo,
dar lugar a um conhecimento de validade universal, pois a linguagem teórica, que é
lógica, também tem de ter um referente Iógico. Ocorre que a sen- tençajudicial não
descreve fatos, fazendo apenas estimativas. Como o ato dejulgar tem conteúdo
voluntarístico, não se esgotando na pura atividade do intelecto, disso resulta
também a inadequação de um critério de verdade fundado na evidência racional.70
Início da nota de rodapé
(70) A Ciência do Direito, especialmente no Brasil, ainda está muito imbufda de
racionalidade abstrata, no sentido de que a experiência jurídica possa toda ela ser
reduzida a uma sucessão de silogismos ou de atos atribuíveis a uma entidade
abstrata, ao homo juridicus. A técnica jurídica, operando com meros dados lógico-
formais, vai, aos poucos, firmando a convicção errônea de que ojuiz deve ser a
encarnação desse mundo abstrato de normas, prolatando sentenças como puros
atos de razão. Na rea- lidade, sabemos que o juiz, antes de ser juiz, é homem
partícipe de todas as reservas afetivas, das inciinações e das tendências do meio
social, e que nós não podemos prescindir do exame dessas circunstâncias, numa
visão concreta da experiência jurídica, por maior que deva ser necessa riamente a
nossa aspiração de certeza e de objetividade (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1.
ed., São Paulo, Saraiva, 1 986, p. 1 36).
Fim da nota de rodapé
Página 285
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
A posição adotada pelos objetivistas, ficasse somente na refutação ao idealismo e
ao empirismo psicologista, não resolveria as dificuldades acima apontadas. Com
efeito, os objetivistas sustentam que a verdade consiste na concordância do relato
com o objeto, pouco importando saber se a alteração dos fatos resulta ou não de um
ato deliberado das partes. Sucede que a verdade judicial, como já visto, não tem
compromisso com o mundo sensível, mas sim com a decisão, que o discurso
jurídico, na base de elementos irracionais e estimativos, busca legitimar. Entretanto
(e aqui está a diferença), o objetivismo, tal qual desenvolvido pela dogmática
processual, não se deixa confundir com um realismo ingênuo, avançando também
no campo cultural. Há em toda interpretação um fazer persuasivo, que reconstrói o
objeto. Não basta a convicção íntima dojulgador (psico- logismo) e tampouco uma
investigação puramente lógica (intelectualismo). Necessário se faz aquilo que os
processualistas chamam de persuasão racional, a qual se desenvolve no campo da
retórica.71
Início da nota de rodapé
(71) Aristóteles divide a classe das orações em duas sub-classes, a saber aquelas
que comportam a atribuição dos juízos verdadeiro efalso e aquelas que não
comportam. As primeiras correspondem à lógica e as segundas à poética, à retórica.
Ao Iado das orações apofânticas, o filósofo grego distinguiu as súplicas, as ordens,
as respostas, as ameaças (Aristóteles, De la expresión o interpretación, Cap. 4,
16a/17a, in op. cit., p. 256 e 257; Aristóteles, Poética, Cap. 19, 1456b, in op. cit., p.
95). A argumentação, em Aristóteles, surge como uma das partes da arte retórica,
voltada ao convencimento. O discurso forense tem a aparência de um silogismo.
Entretanto, nele se coloca a questão da verossimiIhança, que não se confunde com
a verdade. A partir de entimemas, os litigantes desenvolvem um discurso tópico,
pautado em noções comuns, que recorre à dialética, capaz de conciliar os
contrários. A apresenta- ção das provas desenvolve-se, então, na base de
argumentos de autoridade, do apelo aos sentimentos e à piedade do ouvinte, sem
deixar de Iado os indícios, documentos e testemunhos (Aristóteles, Retórica, Livro I,
Caps. 1 e 2, 1354a/1359a, in op. cit., p. 1 16 a 122). Miguel Reale re- gistra que a
realidadejurídica... não pertence à esfera dos objetos ideais, nem à esfera ou ao
âmbito dos objetos psíquicos, pois lhe corresponde uma estrutura própria, a dos
objetos culturais... (Filosofia do Direito, 1 1.ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p. 302).
Em outro ponto, acrescenta: “Sentenciar não é apenas um ato racional, porque
envolve, antes de mais
Fim da nota de rodapé
Página 286
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Ainda que o processo não mais esteja preso à chamada prova legal, certo é que o
conhecimento do fato empírico exige formas e fórmulas pelas quais se toma fato
pertinente, fato processual. Apenas na ausência de regulação específica pode o juiz
aplicar as regras da experiência (art. 335 do CPC); assim mesmo, o fato empírico só
terá relevância se subsumido a uma norma jurídica. Ademais, nem todas as provas
são permitidas (arts. 332, 401, 405 e parágrafos do CPC). O silêncio do réu, no
processo penal, é uma faculdade prevista na Constituição (art. 5.°, LXIII).
Diferentemente, no processo civil, o silêncio pode muitas vezes constituir prova
contra aquele que permaneceu calado (arts. 343, § 2.°, 359, I, do CPC), sendo
admitido apenas em certas circunstâncias moralmente rele- vantes (art. 363 e
incisos do CPC). Estas particularidades, somadas às regras do ônus da prova, da
preclusão e da coisa julgada, bem demonstram que a verdade é uma condição
retórica de sentido, um lugar comum que permite às partes e aojulgador estabelecer
o con- senso em torno deste ou daquele significado.72
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
nada, a atitude de estimativa do juiz diante da prova. O bom advogado sabe
perfeitamente da importância dos elementos emocionais na condução e na
apreciação dos elementos probatórios. Tais fatores de convicção adquirem
importância muito grande em certos setores do Direito, como, por exemplo, no júri
popular. A convicção dojurado não é mera resultante de frias conjeturas racionais,
pois vem animada sempre de cargas emotivas... (idem, p. 136).
(72) Nas palavras de Karl Engisch, o chamado ônus da prova é uma das figuras de
pensamento mais ricas de sentido que a razão dos juristas tem elaborado. O ônus
da prova relaciona-se com a hipótese de, apesar de todas as atividades probatórias,
subsistirem dúvidas na questão de fato. O juiz tem de resolver o Iitígio, muito
embora não possa resolver a dúvida. Qual a decisão que ele há de proferir em tais
circunstâncias, eis precisamente o que lhe vem dizer o ônus da prova, mais
exatamente a regulação do ônus da prova. O complexo de todos os fatos é dividido
em fatos cuja prova se encontra a cargo do autor e fatos cuja prova compete ao
demandado. O ônus da prova, do ponto de vista de uma lógica jurídica, é uma
injunção ao juiz sobre como ele deve decidir sempre que não possa afirmar ou negar
com segurança fatos juridicamente relevantes. Diferentemente do que sucede no
silogismo lógico, a ausência de prova do fato (e, portanto, do fato), resulta em uma
conclusão, qual seja,
Fim da nota de rodapé
Página 287
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
O processo judicial, impregnado do sentido ético e prático, exige dos litigantes e do
juiz um envolvimento em torno da construção de significados, que não são conceitos
puros e tampouco expressão de uma realidade tangível, como faz crer a teoria
representativa do significado. Há entre as partes, e também na relação das partes
com o juiz, um controle persuasivo, pois os limites entre a conduta ilícita e a conduta
abusiva estão no mundo da vida. Como salienta Tercio Sampaio Ferraz Junior,
provar significa não apenas demonstrar um fato (sentido objetivo) mas também
aprovar ou fazer aprovar (sentido subjetivo). Isto se dá através de uma espécie de
simpatia, capaz de sugerir confiança, ou através de argumentos que permitam a
fixação de um sentido favorável àquele que fala e argumenta.73
Está claro que um objeto assim tão multifacetado, como é a experiência jurídica,
reclama uma compreensão teórica em condições de romper as amarras com o
conceito de representação. Este passo foi dado a partir de Wittgenstein,
notadamente em suas Investigações Filosóficas, quando se tornou possível
compreender que certos enunciados declarativos, conquanto nada descrevam,
podem ter um sentido.74 Coube a John Langshaw Austin dar um tratamento mais
ordenado aos conceitos que Wittgenstein propositadamente apenas rnostrou, a
começar por duas grandes classificações, que serão daqui a pouco examinadas.
Antes é necessário analisar alguns pressupostos da chamada teoria dos atos defala,
objeto de
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
o julgamento de improcedência da ação (Karl Engisch, op. cit., p. 102- 104). A
questão do ônus da prova envolve complicados problemas de ordem prática. Um
deles consiste em saber a quem compete provar o fato negativo, cuja ocorrência é
afirmada no processo. Atualmente, em conseqüência do reconhecimento dos
chamados interesses transindividuais, característicos da sociedade pós-moderna, a
legislação prevê, em certos casos, a inversão do ônus da prova em favor do
coIegitimado para o exercício da ação que tem em conta a defesa dos interesses
metaindividuais. Vê-se aqui a tentativa de facilitar a proteção de interesses que a
sociedade pós-industrial considera relevantes.
(73) Tercio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,
dominação, São Paulo, Atlas, 1988, p. 291.
(74) A propósito, v. Aristóteles, Poética, Cap. 19, 1456b, in op. cit., p. 95.
Fim da nota de rodapé
Página 288
ABUSO DE DIREITO PROOESSUAL
publicação póstuma, na base de apontamentos e anotações de estudiosos
(recolhidos porJ. Urmson e Marina Sbisá) que tiveram a opor tunidade de ouvir a
série de conferências proferidas porAustin, em 1955, na Universidade de Harvard.75
Austin, como caudatário da tradição pragmática, critica a teoria filosófica centrada no
significado semântico, pontos de vista que, mais tarde, John Searle tentará conciliar.
Sua análise representa um novo paradigma na teoria do conhecimento, pois a partir
dos conceitos centrais de cada uma das ciências, confrontados com seu uso na
linguagem ordinária, torna-se possível esclarecer o sentido das elaborações
científicas. Particularmente importantes são as contribuições da teoria dos atos de
fala no campo do conhecimento jurídico. A teoria do direito está no nível da
metalinguagem, pois seu objeto trabalha com a linguagem natural. É precisamente
esta linguagem que constitui a realidade, de onde se pode dizer que linguagem é
ação e não mera representação do real. O significado de uma sentença não pode
ser estabelecido através de seus elementos cons- titutivos, vale dizer, através do
nome (sentido) e do predicado (referência). De outra forma, são as condições de uso
das sentenças que determinam seu significado. Assim, a verdade passa a ocupar
um segundo plano no campo das ciências e da teoria do conhecimento. No Iugar
dela importa considerar a eficácia do ato, que Austin conhece comofelicidade. Com
isto, o próprio conceito de significado se dissolve, no que dá Iugar a uma nova
concepção de linguagem, qual seja, um feixe de relações que envolvem o contexto,
as con- venções de uso e a intenção dos falantes.76
Início da nota de rodapé
(75) O trabalho foi publicado sob o título How to do things with words, ern 1962. Há
tradução brasileira, de Danilo Marcondes de Souza Filho, a quem também coube al
apresentação (Quando dizer éfazer Palavras e ação, Porto Alegre, Artes Médicas, 1
990).
(76) A propósito, ver as considerações feitas por Danilo Marcondes de Souza Filho
na apresentação à tradução brasileira das conferências de Austin (Quando dizer
éfazer. Palavras e Ação, Porto Alegre, Artes Médicas, 1 990, p. 7- 1 7). Ver também
Eduardo Rabossi (Actos de habla, in Marcelo Dascal — org., Filosofía del lenguaje
11. Pragmática, Consejo Superior de lnvestigaciones Científicas, Editorial Trotta, 1
999,
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Página 289
AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
O pressuposto desta reviravolta filosófica, com repercussões na esfera da teoria da
ciência, está na distinçäo entre sentenças declaratil as (ou constatativas) e
sentenças performativas, que Austin estabelece já na sua primeira conferência. A
distinção remonta, de certa forma, a Aristóteles, que reconhece a existência de um
sentido em perguntas, exclamações, ordens, desejos, autorizações, tal como
também admite Wittgenstein. O próprio Charles Stevenson, como foi visto, defende
a tese de que as chamadasproposições éticas cumprem um propósito, têm um
objetivo, enfim, são proferidas não para relatar um fato, mas sim para despertar
sentimentos ou reações. Austin diz que muitas perplexidades filosóficas surgem do
erro consistente em confundir declarações fatuais com pro- ferimentos que ou são
sem sentido ou então foram feitos com pro- pósitos bem diferentes. O disfarce
destes proferimentos, entretan- to, nem sempre surge numa roupagem declarativa.
Era de se esperar — diz ele — que os juristas, mais do que ninguém, se apercebes-
sem disto.77
Início da nota de rodapé
Enciclopédia Iberoamericana de Filosofía, vol. 1 8, particularmente p. 53-60), José
Ferrater Mora (Fundamentos de Filosofía, Madrid, Alianza Editorial, 1 987, p. 82-85),
Carlos Vogt (Linguagem, Pragmática e Ideo- logici, 2. ed., São Paulo, Editora
Hucitec, 1989, particularmente p. 20- 23, 50, 51 e 95-102), Eduardo Roberto
Junqueira Guimarães, (Sobre alguns caminhos da pragmática, in Sobre pragmática,
Uberaba, Cen- tro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de
Uberaba (Série Estudos), p. 15-27), Alaôr Caffé Alves (op. cit., p. 352-358) e
Manfredo Araújo de Oliveira (op. cit., p. 149-169). Registre-se que a expressão
sentença, aqui utilizada, não tem relação com ojulgamento de um caso. A sentença,
para Austin, é uma unidade lingüística, dotada de estrutura gramatical e de um
significado.
(77) J. L. Austin, op. cit., p. 2 1 -23. A frustração dessa expectativa de Austin pode
ser ilustrada com o fato de que a dogmática processual ainda hoje concebe a
existência de sentenças meramente declaratórias, quando é certo que há nelas um
proferimento performativo (para Austin, proferimento é a emissão concreta e
particular de uma sentença). A propósito dos proferimentos performativos no direito,
ver também Alberto Cal samigl ia, Sobre la dognicítica juridica: presupuestos y
funciones del saber jurídico, in Anales de la Cátedra Francisco Suarez, 22, Granada,
1983, p. 257.
Fim da nota de rodapé
Página 290
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Assim, Austin quer dizer que uma declaração de direito não é uma declaração de
fato. Expressões como dôo (os meus bens a fulano, v.g.), aceito (a doação, v.g.),
declaro (nulo o ato, v.g.), prome- to (devolver o preço, v.g.), dentre outros verbos na
primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa, são operativas.
Usá-las, dentro de um determinado contexto, não é descrever o ato praticado, mas
sim realizá-lo (daí o neologismo performativo, do inglês to perform). E de uma ação
não se diz que é verdadeira ou falsa, mas sim feliz ou infeliz, conforme essa ação
seja ou não eficaz. Afelicidade dos proferimentos performativos é explorada por
Austin na segunda, terceira, quarta e quinta conferências.78 Na base desse conceito
o autor sugere inclusive um novo modelo para a teoria da nulidade dos atos
jurídicos. A questão, sem maior interesse no campo do abuso processual, será
examinada apenas com o propósito de melhor compreender o paradigma austiniano.
Para que um proferimentos performativo seja feliz há de se observar certas
condições assim enunciadas: a) existência de determinado procedimento
convencionalmente aceito ou de determinado ritual, envolvendo palavras; b) as
pessoas e circunstâncias, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento
invocado; c) o procedimento deve ser executado de maneira correta e completa por
todas as pessoas nele envolvidas; d) a pessoa que participa do procedimento,
buscando influir na atitude ou na conduta de outro participante, deve fazê-Io de
maneira sincera, e mais, deve realmente conduzir-se desta maneira
subseqüentemente. Se qualquer destas regras for transgredida, o proferimento será
malogrado, infeliz. Nos casos a e b, a burla às condições implica nulidade do ato. No
direito romano, como foi visto no segundo capítulo (seção 2.2), qualquer infração
formal implicava nulidade insanável (condição a). Outros- sim, uma sentença
proferida por juiz incompetente ou um ato prati- cado sem mandato judicial, se não
ratificado pela parte, é nulo (condição b). Nestes casos, o ato não se concretiza, não
surte efeitos, muito embora possa haver resultados ou efeitos no campo
fenomênico.79
Início da nota de rodapé
(78) idem, p. 29-56.
(79) Austin dá o exemplo do bígamo que, a despeito do nome, não se casa duas
vezes, haja vista que o novo casamento é nulo (op. cit., p. 32).
Fm da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
A burla à condiçäo c, de outra forma, não interfere com a concretização do ato, do
qual não se pode dizer que seja nulo, mas apenas não-consumado, vazio.
O interessante desta classificação, no campo processual, consiste em que o relato
vale como prova (tem força legal) não pelo que foi dito mas porque a testemunha, ao
assumir o compromisso de dizer a verdade — um substituto do juramento, de origem
remotíssima — está praticando uma ação, vale dizer um ato processual. Mais do
que a descrição de um fato, a testemunha está agindo, interferindo na construção de
um objeto que não é aquele mesmo do mundo fenomênico. Por isso, como insiste
Austin, não há o menor sentido em cogitar da verdade ou da falsidade destes atos,
que apenas podem ser felizes ou infelizes, caso observem ou não as condições que
há pouco foram sucintamente expostas. Quando se diz prometo dizer a verdade,
sem a intenção de cumprir a promessa, é certo que houve a promessa, mas o ato foi
vazio, na expressão de Austin, porque insincero, proferido sem seriedade. Não se
trata de ato nulo, mas malogrado, um caso de infelicidade que o autor trata por
abuso, para diferenciá-lo dos casos de desacerto, onde o ato infeliz é nulo. Fal- sa
promessa, feita por má-fé, deslealdade, não é um proferimento falso, porque a ação
de prometer existe. Não se diz que a instrução do processo é falsa ou que a
sentença fundada em prática proces- sual abusiva o seja. A expressão “falso”, no
contexto das provas, têm um âmbito ético e institucional que não se confunde com a
exatidão entre o relato e a realidade ou entre o relato e o que se tem no
pensamento. Como diz Austin, bastará ao mentiroso voltar atrás no seu testemunho,
dando as razões de seu deslize.80
Início da nota de rodapé
(80) J. L. Austin, op. cit., p. 22 e 26-35. A distinçao entrefato bruto efato institucional
será feita mais tarde por Searle (a propósito, v. Jesds lgnácio Martínez García, op.
cit., p. 25 e 26). Austin, nas conferências 4 e 5, tratará de explicar, entretanto, que
há alguns pontos de contato entre proferimentos performativos felizes e sentenças
declarativas verdadeiras. Assim é que ao dizer prometo estou realmente pro-
metendo. Em outras palavra, é verdadeiro, e não falso, que estou fazendo. Ademais,
é verdadeiro, e não falso, que aquelas condições a, b e c foram satisfeitas.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Ao lado dos performativos explícitos (primeira pessoa do sin- gular do presente do
indicativo da voz ativa) estão OS performativos implícitos. Ao dizer faça, está-se
ordenando que alguém realize alguma coisa. Mas é possível também que se esteja
dando um conselho a esta pessoa, o que não se confunde com uma ordem. Estarei
lá amanhã não necessariamente é uma promessa. Estas infelicidades podem
resultar da falta de observância de qualquer das condições enunciadas em a, b e c,
conforme classificação vista parágrafos atrás. Os exemplos servem, segundo Austin,
para demonstrar que a classificação por ele proposta não é exaustiva e que os
critérios nela adotados não são estanques, de sorte que admitem sobreposições e
zonas de imprecisão. Deve-se evitar a todo custo a simplificação excessiva. Aliás,
como foi visto na seção 4.2, coube a von Wright o mérito de ter ressaltado a
importância do contexto em que as expres- sões são utilizadas, quando se trata de
entender o conceito de nor- ma jurídica, que está fundado no uso e não nas regras
gramaticais.
Mas os exemplos acima mencionados, segundo Austin, servem igualmente para
demonstrar o quão precária é a distinção entre performativos e constatativos (ou
declarativos) na base de um critério puramente gramatical ou lexicográfico. Assim, o
emprego da segunda e terceira pessoas, na voz passiva, também se presta a enun-
ciados operativos, a exemplo da expedição de autorizações (“está a parte autorizada
a deixar o lar conjugal”) ou da realização de advertências (“adverte-se o executado
de que a prática configura ato atentatório à dignidade da justiça”). Outrossim, o
modo verbal é indiferente porque, ao lado do indicativo, pode-se usar o imperati-vo
para ordenar que alguém faça alguma coisa. O tempo verbal tampouco importa, pois
além do presente, admitem-se, nas decisões judiciais, construções como “a parte foi
desleal” no lugar de “consigno que a parte foi desleal”. Importante também é o
contexto. Assim, quando o juiz pergunta à parte, cujo comportamento se mostra
inconveniente, “o senhor poderia se retirar?”, está claro que não espera uma
resposta. No lugar disto, tem a expectativa de que a parte, em respeito àquela
ordem, deixe o recinto.81
Início da nota de rodapé
(81) J. L. Austin, op. cit., p. 57-63. Na sua sexta conferência, o autor susteflta que os
perforinativos explícitos resultam de “proferimentos mais
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Austin, na scxta e sétima conferências, buscou ainda diversos critérios para salvar a
distinção entre performativos e constatativos, com a qual iniciou suas preleções.
Mas como não resultassem precisos, acabou concluindo que as diferenças são
mesmo artificiais, pois têm em conta só as proposições e não a situação em que
estas são empregadas. Ocorreu-lhe, a partir de diversas tentativas frustradas, que
necessário seria analisar a totalidade da ação lingüística, em todas as suas
dimensões,fonética (emissão de ruídos),fática (conformidade às regras da
gramática) e rética (aquilo que é dito), conceitos que passa a aprofundar na sua
oitava conferência. A partir destas noções, Austin deixa clara a insuficiência do
modelo referencial, pois sentenças como haverá uma sanção, conquanto possam
ser entendidas sem maiores problemas, tanto podem ter o sentido de uma
declaração como de uma advertência ou de uma ordem. E isto porque, ao dizer algo
(ato locucionário), aquele que diz também está fazendo alguma coisa (ato
ilocucionário), ou seja, declarando um fato, advertindo, dando uma ordem. Importa,
assim, entender o sentido em que a fala está sendo usada nesta ou naquela
ocasião.82
Em outras palavras, no nível locucionário, a língua apresenta- se como produção de
sons pertencentes a um certo vocabulário, cuja organização se faz segundo regras
da gramática, aos quais se atribuem um certo sentido e uma certa referência. Mas é
preciso reconhecer que a língua também cumpre outras funções, outros atos.
Quando o juiz manda riscar palavras nos autos, aplicando a regra do artigo 15,
caput, do cPc, tal ordem pode realizar ações como
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
primários, muitos dos quais deram lugar a performativos implícitos. Eu o farei, por
exemplo, é anterior a Prometo que o farei. Aquele caráter vago e ambíguo da
Iinguagem primitiva pode ter suas vantagens, mas a sofisticação e o
desenvolvimento de formas e procedimentos sociais, diz Austin, exige maior clareza
(op. cit., p. 69 e 70). Diga-se ainda que nem todas as declarações são descrições.
Por isso, Austin prefere a expressão constatativo, no lugar de descritivo (op. cit., p.
23 e 1 16).
(82) Idem, p. 85-94. A respeito do abandono definitivo da distinção consta-
tativos/performativos, ver a conferência 1 2, particularmente o que o autor diz na
página 122 da sua obra.
Fim da nata de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
amedrontar, intimidar, inibir novos abusos etc. Este efeito, produzido ou não,
depende de fatores outros que não são propriamente lingüísticos e cuio testemunho
só o endereçado da ordem pode dar. Está-se aqui no nívelperlocucionário, que
consiste em se obter certos efeitos pelo fato de se dizer algo. Mais importante, do
ponto de vista lingüístico, é o nível ilocucionário da linguagem, onde se encontra o
conjunto de atos que se realizam, específica e imediata- mente, pelo só exercício da
fala. Ao dizer advirto, além de anunciar a advertência, o juiz estará realizando a ação
prevista na norma geral e abstrata, como por exemplo na regra do artigo 599, 11, do
cPc.83
A partir deste novo paradigma, voltado para os efeitos provocados pelos atos de fala
nos sentimentos, nas atitudes e ações das pessoas, a lingüística desloca-se da
esfera do enunciado para o camp o da práxis simbólica. Embora se admita a
importância da função referencial da linguagem, é forçoso reconhecer também que o
as- pecto denotativo e cognitivo nem sempre é aquilo que mais interessa quando se
trata de saber como a ciência constrói seu objeto. Esta reflexão se mostra sobretudo
importante no campo das chamadas ciências praxeológicas, a exemplo da
dogmática processual, cujas teorias são muito mais um arsenal de lugares comuns,
topoi e con- dições retóricas de sentido do que propriamente um sistema de
princípios explicativos. Como registra Austin, não importa a realização do ato de
dizer algo (nível locucionário), mas sim o ato realizado ao dizer algo (nível
ilocucionário).84 A distinção, dentre outras coisas, denuncia a falácia descritiva
contida no imaginário da ciência neutra, desprovida de conteúdos ideológicos, pois
quando se afirma alguma coisa está-se conjuntamente realizando atos locucionários
e ilocucionários.
Raramente as mensagens verbais preenchem uma única função, vale dizer,
possuem um único sentido. As palavras têm de ser até certo ponto explicadas pelo
contexto em que são utilizadas na troca
Início da nota de rodapé
(83) Nesse exato sentido, v. Carlos Vogt, op. cit., p. 21 e 22.
(84) J. L. Austin, op. cit., p. 89. A distinção, aliás, dá título à décima conferência de
Austin.
Fim da nota de rodapé
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
lingüística (ao dizer X, estava fazendoY ou fizY). Por isso, mesmo diante de
sentenças constatativas, nem sempre se tem condições de dizer se determinada
asserção é falsa ou verdadeira. É que na vida real, diferentemente das situações
mais simples, consideradas na teoria lógica, há de levar-se em conta os fins, os
propósitos da afir- mação. O enunciado A França é hexagonal talvez seja
suficientemente claro para um general, mas não o será para um cartógrafo. Trata-se
de uma declaração esquemática, de uma descrição aproxi- mada e não de uma
descrição verdadeira ou falsa. O mesmo se passa quanto a dizer ou não a verdade,
na condição de parte, em um processojudicial, pois o que sejulga verdadeiro em um
tribunal pode não ser considerado do mesmo modo no mundo dos fatos reais.85
Início da nota de rodapé
(85) Exemplo disto é o caso do pai e da filha que movem, um contra o outro, ação
revisional de alimentos (na qual a filha figura como ré), e ação de execução de
alimentos (na qual o pai figura como executado). Na ação de execução, a filha,
representada por sua mãe, declinou domicílio na Cidade de ltapecerica da Serra,
onde a genitora exerce o comércio, figurando como sócia com poderes de gerência
(arts. 98 e 100, 11, do CPC e art. 36, caput, do CC de 1916). Entretanto, citada por
hora certa na ação revisional, a menor suscitou a incompetência do Juízo da
Comarca de Itapecerica da Serra, alegando, para os fins previstos no art. 94 do
CPC, ser domiciliada em Curitiba, cidade na qual inclusive residia em companhia da
mãe, O autor requereu fosse a filha condenada como litigante de má-fé, pois faltara
com a verdade na ação de execução, ao declinar seu domicílio em Itapecerica.
Defendeu-se a menor, dizendo que já na época da propositura da ação de execução
de alimentos residia em Curitiba, local de onde sua genitora administrava a
empresa, valendo-se dos recursos da informática. Disse que abriu mão do foro
especial, na execução de alimentos, declinando domicílio na Cidade de Itapecerica,
porque nesta localidade sua mãe exerce atos de comércio. Seguiu-se decisão no
sentido de que, ainda que não se possa cogitar de pluralidade de domicílios (pois
não há de se falar em domicílio necessário daquele que pratica atos de comércio), e
muito embora não se justificasse a declaração de domicílio na Cidade de Itapecerica
da Serra, pois o foro especial é estipulado em favor de quem promove a execução
de alimentos (no caso, a filha), certo é que a exeqüente não abusou do seu direito
quando propôs a demanda no domicílio do pai, ainda que sob desnecessária e
ambígua justificação. Outrossim, está provado, por farta documentação, que a
menor reside mesmo, comojá residia, em Curitiba,
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Em outros termos, os enunciados jurídicos tem de ser interpretados no nível
ilocucionário. Não basta o aspecto locucionário, a noção supersimplificada de
correspondência com os fatos. Quando a parte, ou seu advogado, faz uma
afirmação nos autos, é necessário estabelecer, a propósito por exemplo da
aplicação do dispos- to no artigo 14, I, do cpc ou do disposto no artigo 34, XV, da Lei
8.906/94, a relação entre aquilo que foi dito e os diversos tipos de atos
ilocucionários. Em resumo, não basta saber o que a parte ou o advogado disse, mas
sim o que fizeram ao dizê-lo (uma petição, um protesto, um registro, um desafio,
uma exortação, uma reclamação, um desabafo, uma advertência, uma declaração,
uma descrição, um relato, uma interpretação, uma estimativa etc.).86
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em companhia da mãe, foro competente para a ação revisional de alimentos — art.
94 do CPC (TJSão Paulo, 7. Câmara de Direito Privado, AI 2 1 1 .370-4/6, ReI. Julio
Vidal, . 3 1 . 1 0.200 1). Como diz Austin, é necessário entender que verdadeiro e
falso, assim como livre e não Iivre, não designam, de forma alguma, algo simples.
Tais palavras só representam uma dimensão geral de que, nas circunstâncias
dadas, em relação a um determinado tipo de ouvinte, para certos fins e com certas
intenções, o que foi dito era adequado ou correto, em oposição a algo incorreto.
Neste ponto, Austin deixa claro que não há aqui qualquer referência às teorias
pragmáticas de verdade, definidas por filósofos americanos como Peirce e William
James, segundo as quais, a grosso modo, o critério de verdade de uma sentença
são os resultados de sua aplicação prática. Tampouco se está sustentando um
ponto de vista utilitarista (verdadeiro é o que dá bons resultados). O que Austin
sustenta é que a verdade ou a falsidade de uma declaração não depende
unicamente do significado das palavras, mas também do tipo de atos que, ao proferi-
las, estamos realizando e das circunstâncias em que os realizamos (J, L. Austin, op.
cit., p. 1 19). O significado também não depende de ser falsa ou verdadeira a
expressão. Duas sentenças, com o mesmo sujeito e o mesmo predicado, uma
verdadeira e outra falsa, são contraditórias. Não obstante, pode ocorrer que as duas
tenham sentido. O contexto dos fatos dirá qual delas é verdadeira e qual é falsa
(Alaôr Caffé Alves, op. cit., p. 355 e 356).
(86) Dispõe o artigo 14, I, do CPC: Compete às partes e aos seus procuradores
expor os fatos em iuízo conforme a verdade. Outrossim, dispõe o artigo 34, XV, da
Lei Federal 8.906/94: Constitui infração disciplinar fazer, em nome do constituinte,
sem autorização escrita deste, im-
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Veja-se que a infelicidade não é atributo exclusivo dos proferi- mentos performativos,
aplicando-se também aos constatativos, às declarações. Por isso, a burocracia e a
justiça são muito ciosas do emprego de determinadas fórmulas tais como pelo
presente advirto, pelo presente declaro, pelo presente consigno. No dizer de
Austin,87 estas expressões introdutórias servem para indicar de maneira clara a
realização do ato de advertir, declarar, consignar, etc. Contudo, estes performativos
explícitos e altamente formais não são regra no direito. No mais das vezes, um certo
grau de ambigüi- dade e de vagueza faz parte do discurso jurídico. Há um vasto
leque de interpretações desse espaço retórico no campo do direito, que vão desde a
impostura, expressão da manipulação flagrante e grosseira promovida pelas
instituições burguesas, até o chamado realismo jurídico, sob cuja denominação
encontram-se as diversas vertentes do psicologismo (a exemplo do realismo
americano de Jerome Frank), da linguística e do culturalismo.88
O próprio curso da presente exposição deixa entrever o mecanicismo contido nas
leituras marxistas que reduzem o direito à pura
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putação a terceiro de fato definido como crime. Austin, particularmente na sétima
conferência (aqui ainda na base da dicotomia constatativos/ performativos) e na
décima segunda conferência, tenta formular uma classificação de verbos com base
na sua força ilocucionária. Chega, assim, a cinco classes: veriditivos, exercitivos,
comissivos, comportamentais e expositivos, mencionando, com relação a cada um
deles, uma série de exemplos (Austin, op. cit., p. 77 a 83 e p. 121 a 132). Registra o
autor que uma teoria geral dos atos de fala haverá de prescindir da noção da pureza
dos performativos, com o que se desfaz a dicotomia há pouco mencionada.
(87) J. L. Austin, op. cit., p. 60.
(88) Q realismo psicológico representa uma das formas de superação da Escola da
Exegese, processo que se iniciou com as críticas que a Escola do Direito Livre
(Ehrlich e Zitelmann) e a Escola da Livre Investigação Científica (Geny) lançaram
contra ajurisprudência dos conceitos. O realismo psicológico, deixando de lado o
eiemento normativo e axiológico da experiência jurídica, acaba reduzindo o sentido
da norma à vontade do juiz. Este reducionismo implica a recusa do reconhecimento
de qualquer aspecto racional na elaboração das sentençasjudiciais, orientadas tão
só por fatores irracionais, sentimentos e preconceitos.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
dominação. Outrossim, o corte epistemológico que vem sendo delineado desde o
início do presente trabalho exclui considerações que estão no campo do
psicologismo. Não basta saber o que se passa no âmago do julgador, indagar dos
seus sentimentos e preconceitos. Esta análise é ainda parcial, pois substitui a mítica
da razão pelo subjetivismo do julgador. De outra forma, é preciso entender de que
maneira as partes e o juiz interagem no processo, na base de fórmulas tópicas
orientadas para a decisão. E apraxis, desenvolvida atra- vés de uma linguagem
intersubjetiva, que permitirá identificar os limites entre o uso normal e o uso abusivo
do direito de demanda. A verdade processual, tal qual sucedia na retórica clássica,
tem de ser procurada na alteridade, na relação entre os atores do processo. Os
critérios para distinguir ilícito e abuso estão no mundo da ação prática, pelo que a
significação do abuso processual somente pode ser mostrada e não demonstrada.
Hägerström, fundador do chamado realismo escandinavo, uma das correntes do
realismo lingüístico, sustenta, de um ponto de vista antimetafísico e empirista, que
certas categorias jurídicas, a exemplo do direito subjetivo e do dever jurídico, são
palavras ocas porque não podem ser identificadas com nenhum fato. Sem embargo,
devido a certas razões psicológicas (que não cabe aqui explicar) as pessoas têm a
ilusão de que esses conceitos estão ligados, de alguma forma mística e
sobrenatural, àrealidade. Vilhelm Lundstedt, partindo da investigações de
Hägerström, Iançou uma vigorosa crítica à teoriajurídica, também de um ponto de
vista da teoria refe- rencial do significado. Desqualificou o direito como ciência,
enveredando por uma análise psicologista da coação, a partir da qual busca explicar
o sentido social do direito subjetivo e do dever jurídico. Mas o que a análise da
chamada Escola de Upsala revela de significativo é que as categorias jurídicas,
destituídas de referência à realidade, cumprem determinadas funções na aplicação
do direito. Neste sentido se desenvolve a reflexão de Karl Olivecrona, que seguindo
as trilhas da filosofia analítica, mostra como determinadas palavras e conceitos
jurídicos acabani estimulando ações e atitudes.89
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(89) Karl Olivecrona, Lenguajejurídico y realidad, Buenos Aires, Centro Editor de
América Latina S.A,, BuenosAires, 1 968 (Colección Filosofia
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
Com efeito, certos conceitos, apesar de não terem referência, dão a impressão de
transmitir informações acerca do real, estimulando ações, omissões, provocando
sentimentos. As chamadas palavras ocas, para usar a expressão de Hägerström,
cumprem im- portantes funções sociais, do que é exemplo a unidade monetária,
categoria que permite todo tipo de intercâmbio de bens e serviços.90 No campo
jurídico, a locução abuso do direito processual é típico exemplo de uma expressão
semanticamente vazia. A tentativa de buscar seu sentido em uma álgebra booleana
do tipo verdadeiro/ falso ou lícito/ilícito leva àquilo que Austin chamou de perplexi-
dade. A expressão abuso do direito não descreve nada. Em vão, seguem os
processualistas analisando-a como se fosse utilizada para descrever fatos. De outra
forma, é preciso reconhecer que, quando ojuiz declara abusiva uma determinada
conduta, está realizando um ato de criação. Aqui, dependendo do contexto, a
prestação jurisdicional pode inclusive transpor os limites objetivos da demanda, frus-
trando a expectativa das partes (art. 129 do CPC). Mas é necessário que o julgador
esteja atento às condições de uso dos proferimentos, que determinam o significado.
Não importa a verdade do que se passou no mundo fenomênico, contanto que o
editor da norma consiga legitimar o conteúdo da sentença que declarou abusiva a
con- duta das partes, garantido, assim, a eficácia do ato, aquilo que Austin
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y Derecho, vol. 2), p. 20-59. Diga-se que o autor segue os lineamentos do
positivismo lógico, ao considerar que apenas as expressões que fazem referência à
realidade fática têm sentido. Mas é inegável que alguns enunciados metafísicos,
destituídos de base empírica, acabam justificando decisões judiciais de um ponto de
vista supostamente racional, como será visto no próximo capitulo.
(90) Assim funciona a economia e nunca ocorreu a quem quer que fosse perguntar
acerca dos supostos objetos designados pela palavra Real ou Libra. Como diz
Olivecrona, a função da palavra que designa a unidade monetária é técnica,
interferindo com outros conceitos que transcen- dem o aspecto semântico, a
exemplo do cheque, das letras de câmbio, dos contratos bancários etc. (Olivecrona,
op. cit., p. 37 e 38). A forma como os recentes planos econômicos brasileiros
interferiram na vida das pessoas, sob todos os aspectos, é a mais clara
demonstração do sigflificado das chamadas palavras ocas.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
conhece comofelicidade. De outra forma, corre-se o risco de criar uma questão
recorrente, onde as partes passam a acusar o juiz de abuso de poder ou, o que se
revela ainda mais desagregador, passam a investir contra a própria autoridade
judicial.91
Ao lado do caráter mágico das formas e fórmulas processuais, que remontam aojogo
daprova, aojuízo das ordálias e ao juramento, expressões do processo arcaico tão
bem retratadas na Ilíada, como visto no segundo capítulo, é importante reconhecer o
caráter intersubjetivo das expressões jurídicas performativas, que transforma
simples ações do cotidiano, ou um jogo de palavras destituído de sentido, em
condutas juridicamente relevantes, das quais decorre uma série de conseqüências,
quando praticadas ou proferidas dentro de um determinado contexto. Embora não se
possa cogitar da verdade dos enunciados jurídicos, que não são analíticos e nem
podem ser comprovados empiricamente, é perfeitamente possível falar em uma
relação de conformidade do uso desses enunciados com regras jurídicas e sociais.
Os conceitos jurídicos, a exemplo do abuso dos direitos processuais, funcionam,
pois, como núcleos aglutinadores de sentido que operam paráfrases e redefinições
de um ponto de vista realizativo (para usar o neologismo empregado por Austin).
Desse ponto de convergência partem, em numerosas linhas, regras sobre
responsabilidade civil, responsabilidade penal etc. Sem esta perspectiva, seria
necessário construir numero- sas linhas diretas, numa espécie de teia de relações
de significado,
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(91) Tercio Sampaio Ferraz Jr., em sua pragmática da comunicação normativa,
reconhece aqui duas atitudes: a rejeição, que se coloca ainda no campo das regras
institucionais, desafiando soluções que podem ser encontradas no âmbito do
sistemajurídico, e a desconfirmação, que coloca em crise a própria autoridade e, por
via de conseqüência até mesmo o sistema (Teoria da Norma Jurídica: ensaio de
pragmática (da comunicação normativa, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 56 e 57).
Olivecrona considera que não há sentido na indagação acerca da verdade ou da
falsidade dos cnnceitos jurídicos, das chamadas palavras ocas. Importante, isto sim,
é a crença das pessoas na realidade de um direito de propriedade, de um
deverjurídico, enfim, a crença na função informativa do discurso jurídico.
(Olivecrona, op. cit., p. 50 e 52).
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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS
o que dificultaria sobremaneira o consenso em torno de determinadas questões.92
O modelo epistemológico sugerido pela teoria dos atos de fala desemboca,
entretanto, em um dilema, pois propõe o exame dos pob1emas filosóficos na base
da análise do uso das palavras envolvidas nesses mesmos problemas, o que coloca
a teoria da ciência na rnira das críticas que ela se propôs a formular. Em outras
palavras, torna-se difícil a distinção entre a metalinguagem epistemológica (teoria
crítica da ciência) e a ciência empírica da linguagem, o que em última análise revela
a dificuldade em estabelecer a fundamentação última do pensar e do agir.93 Estas
reflexões têm um grau de
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(92) Karl Olivecrona, op. cit., p. 57 e 58. Alf Ross sugere a mesma imagem, em um
texto curioso, no qual procura reproduzir, na base da alegoria de uma tribo primitiva
(cujo suposto nome é o anagrama de fantasia, habitante de uma ilha cuja
denominação, por sua vez, é o anagrama de ilusão), o tema das chamadas palavras
ocas. Apresenta o caso como verídico, dizendo que a tribo fora descoberta por um
missionário sueco, que ficou impressionado com o poder mágico das palavras
utilizadas pelos primitivos, capazes de desempenhar as mesmas funções da língua
natural, muito embora tais palavras (a exemplo de tû-tû, que dá nome ao texto)
fossem destituídas de qualquer referência semântica. Depois de esclarecer que tudo
não passava de uma fábula, diz que o tal missionário era uma alusão a Lundstedt, a
quem se deve o mérito de ter acentuado este poder operacional das palavras ocas
no campo do direito. A fonte de inspiração para a alegoria foi reconhecidamente a
analogia que Olivecrona estabelece entre essas palavras ocas e o pensamento
mágico primitivo. A partir daí, Alf Ross passa a analisar as diversas ligações que se
pode estabelecer entre cada um dos conceitos jurídicos, semanticamente
esvaziados, e uma pluralidade de consequências jurídicas, chegando à conclusão
de que aquelas cumprem, dentro da ciência jurídica, o objetivo de simplificar as
relaçõesjurídicas, a exemplo do que ocorre com núcleos significativos tais como
crédito, território, propriedade, os quais têm a rnesrna função da palavra tû-tû (Alf
Ross, Tû-Tû, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1 976). Ainda sobre o papel dos núcleos
significativos, v. Tercio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito —
técnica, (lecisão e dorninação, São Paulo, Atlas, 1988, p. 104-109.
(93) Esta questão é levantada por Danilo Marcondes de Souza Filho, Filosofia,
Linguagern e Comunicação, São Pauio, 1 984, p. 1 7, apud Manfredo Araújo de
Oliveira, op. cit., p. 169.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
refinamento do qual ainda não se aperceberam os juristas. Aliás, o problema do
conhecimento jurídico já se coloca no nível da relação ciência-objeto, que embora
seja anterior à relação teoria da ciência-ciência, com ela muitas vezes se confunde.
E o que se vê, por exemplo, na Teoria Pura do Direito. Está claro, entretanto, que
uma teoria instrumental da linguagemjurídica sugere as mesmas dificuldades
enfrentadas por Austin, as quais abrem caminho para a análise dos pressupostos de
uma teoria processual dentro do agir comunicativo.
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5
A RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA DO ABUSO DOS DIREITOS
PROCESSUAIS
SUMÁRIO: 5. 1 A razão instrumental e os direitos absolutos — 5.2 A racionalidade
instrumental e as novas demandas sociais — 5.3 A retórica no campo da ação
estratégica e da ação comunicativa — 5.4 A possibilidade do agir comunicativo no
processo judicial.
5.1 A razão instrumental e os direitos absolutos
A discussão acerca do abuso do direito, desenvolvida pela dogmática jurídica, tem
nítida feição instrumental, que se insere no contexto do pensamento jurídico da
sociedade industrial como cálculo do dissenso generalizado, uma espécie de
désarmer dos conflitos sociais que se revelam como exprssão das contradições do
modo de produção capitalista. A chamada teoria do abuso do direi- to surge, assim,
no cenário das grandes cidades que integram o pro- jeto do controle econômico e
político da classe burguesa, vale di- zer, da classe dos capitalistas modernos, que
possuem os meios de produção social e os empregados assalariados. Com o
surgimento dos grandes centros urbanos — dizem Marx e Engels — a burguesia
coloca obstáculos cada vez maiores à dispersão da população, dos meios de
produção e da propriedade, com o que promove a centralização política. Províncias
independentes, províncias com interesses, leis, governos e sistemas de impostos
separados foram aglomeradas em um bloco, em uma nação com um governo, um
código de leis, um interesse nacional de classe, uma fronteira e uma tarifa
alfandegária... A burguesia subjugou o país às leis das cidades. Criou cidades
enormes; aumentou em grande escala a população urbana,
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
se comparada à rural, e assim resgatou uma considerável parte da população da
idiotia da vida rural. 1
O nascedouro dessa dominação legal é o ideário liberal-burguês do Estado de
Direito. Ajttstiça que os iluministas perseguem tem pontos de contato com a
concepção marxista. No Manifesto Comunista colhe-se a idéia de que os homens
são propensos à cooperação, desde que não submetidos a relações alienantes, O
proletaria- do, como classe universal, seria capaz de superar a sociedade de
classes, rumo à sociedade comunista, despida de qualquer forma de alienação. Para
Marx, a idéia de justiça excluía o direito posto, porque ele está submetido à estmtura
econômica. O direito, para serjus- to, tem de ser universalmente válido e etemo. De
outra forma, o direi- to posto é particular, realizando apenas interesses das classes
domi- nantes Vê-se, pois, implícita em Marx, a noção de um direito natural, que
também é o ponto de partida das elaborações iluministas.2
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(1) KarI Marx e Friedrich Engels, O manifesto comunista, Coleção Leitura, 3. ed, Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1998, p. 15 e 16.
(2) Essa concepçãojusnaturalista do direito pode-se colher em diversas pas- sagens
do Manifesto, a exemplo daquela que se vê logo ao início, quando Marx e Engels
tratam dos burgueses e proletários. Há, entretanto, no mesmo Manisfesto,
fragmentos que parecem desautorizar essa interpretação, dando a entender que a
visão de um direito eterno é pura metafísica. Ao tratar, no segundo capítulo, dos
meios para conduzir o proletariado à condição de classe governante, os autores
assim se expressam: Sem dúvida, dir-se-ia, as idéias religiosas, morais, fiiosóficas e
jurídicas foram modificadas no curso do desenvolvimento histórico. Mas a religião, a
moralidade, a filosofia, as ciências políticas e a Iei sobreviveram, com firmeza, a esta
mudança. AIém disto, existem verdades eternas como a liberdade, a justiça etc., que
são comuns a todos estados da sociedade. Mas o comunismo proscreve as
verdades eternas, proscreve toda religião e toda moralidade, em vez de constituí-las
sobre uma nova base. Portanto, age em contradição a todas as experiências
históricas do passado (Marx e Engels, op. cit., p. 40 e 41). O certo é que não há, nas
obras de Marx, uma refiexão mais detida sobre o direito. Ao que se vê, na Crítica ao
Prograina de Gotha, por exemplo, Marx se volta con- tra o direito burguês. Como
sustenta Alan Stone (The place oflaw in the marxian structure-superestructure
archetype, in Law & Sociely Review, Colorado, vol. 19, ed. 1, 1985, p. 39-67), há
interpretações economicistas
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
Em Rousseau, quer no Contrato Social3 quer na Origem da Desigualdade,4
defende-se a tese de que o homem nasce livre e depois, com o surgimento da
propriedade, que traz consigo as desigualdades, acaba tendo de outorgar ao Estado
seus direitos naturais, como forma de garantir suas liberdades, o qual os devolve em
for- ma de direitos civis. Embora Rousseau considerasse a democracia uma forma
utópica de governo,5 nele se inspirou a idéia do Estado Democrático de Direito,
fundado no respeito à Iei, como expressão da razão humana manifestada pela
vontade geral, e na independência do juiz. Mas se é certo que a distribuição
antissocial da proprie- dade privada, tão bem retratada na descrição que Rousseau
fez das ruas de Montpellier — bordejadas de soberbos palácios e de choças
miseráveis, cheias de barro e de esterco — leva ao reconhecimento da necessidade
de recompor o contrato social, não menos certo é também que na Revolução, uma
vez vitoriosa, predominou o es- pírito reformista da burguesia, sem espaço para a
idéia de justiça social.
Intensificou-se, assim, o movimento de codificação, processo que se cristalizou na
edição do Código de Napoleão (1804) e do
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acerca da visão que Marx e Engels tinham do direito. Em muitas passagens do
Prefácio da críticcl ò Economia Política, lê-se que os elementos da superestrutura
estão separados da base econômica. Neste exato sentido, ver também a posição de
Engels, na carta que escreveu a J. Bloch, datada de 2 1 /22 de setembro de 1 890,
nas cartas endereçadas a Starkenburk (25 dejaneiro de 1894), e a Conrad Schmidt
(27 de outubro de 1890), bem como na missiva endereçada a Franz Mehring, em 14
dejulho de 1 893 (Marx/Engels, Obras Escolhidas, vol. 3, São Paulo, Alfa-Omega,
s.d., p. 284-285). A propósito do tema, ver também Roberto Lyra Filho, Karl, ineu
amigo: diálogo com Marx sobre o Direito, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor,
1 983 (particularmente importante é a síntese desenvolvida na página 70, onde o
autor enumera as razões da decepção de Marx em relação ao direito).
(3) Jean-Jacques Rousseau, Contrato Social, Bauru, Edipro, 2000 (Coleção
Princípios de Direito Positivo), Livro 1, p. 25-43.
(4) Jean-Jacques Rousseau, E1 origen de Ia desigualdad, México, Fondo de Cultura
Económica, 2.000, Primeira Parte, p. 5-44.
(5) Rousseau, Contrato Social, Livro 111, Capítulos 111 e IV, p. 85-90.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Código Alemão (1896), ambos orientados por uma espécie de de- formação da
Escola Histórica, que prescindindo de toda a historicidade do direito, pôs a tônica no
aspecto sistemático, do que é prova a preocupação de Savigny, ao reunir sob forma
ordenada os textos do direito romano. Paulatinamente, acentuou-se também o
individualismo, marca comum ao liberalismo político e ao liberalismo econômico, nos
quais só há espaço para uma liberdade negativa, como já se acentuava no primeiro
capítulo (seção 1.3). Corolário do egoísmo liberal-burguês é a noção de direito
subjetivo, havida como poder de impor aos demais o respeito à vontade do sujeito
jurídico. Não tardaram a surgir respostas a esta concepção, a princípio tímidas, na
base dos conflitos meta-individuais de vontades e interesses, como se vê em Léon
Duguit.6 Mas mesmo sob esta ótica — orientada para uma filosofia do sujeito, na
qual historicamente se alternam a transcendência dojusto (jusnaturalismo) e a
imanêncía dojusto (relação homem-consciência) —já começa a se esboçar a idéia
de uma liberdade-função para substituir a liberdade-direito.7
É nesse contexto, como acima delineado, que ressurge a discus- são acerca do
abuso do direito, agora orientada por uma visão inter- subjetiva, que tem em conta a
alteridade, a existência não só do outro, mas da sociedade, de forma que não se há
mais de indagar de uma intenção de prejudicar (aemulatio). As necessidades do
homem ultrapassam a esfera daquilo que é simplesmente físico ou fisiológico para
se inscrever no campo cultural. Paralelamente, o interesse juridicamente protegido,
com as repercussões que o conceito tem no campo processual, ganha uma
dimensão política, que diz com o direito de estar em juízo, provocando a tutela
jurisdicional do Estado, o que também exige dos atores processuais a consciência
da inter- subjetividade, e mais, dos deveres impostos pela convivência social. Ocorre
que a essa razão ética contrapõe-se uma razão funcional,
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(6) Léon Duguit sustenta que não se pode cogitar da noção de direito subje- tivo, de
ordem metafísica, mormente em uma época de realismo e positivismo filosófico (Las
transformaciones del derechoprivado, Buenos Aires, Heliasta, 1975, p. 173-176).
(7) Idem, p. 189.
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
que tem um substrato muito mais sociológico do que propriamente ontológico ou
epistemológico.8
Aquela razão libertária dos iluministas, voltada à emancipação do homem, por um
paradoxo, conduziu a humanidade a um cres- cente processo de dominação, que se
faz através de uma razão tec- nocrática, totalitária, como denuncia Max Horkheimer
em Eclipse da Razão.9 Ao lado dessa razão instrumental está a razão crítica, como
desenvolvida pelos filósofos da chamada Escola de Frankfurt, dentre eles
Horkheimer, que vê na superação dos diversos modelos de racionalidade (antiga,
medieval, moderna) o movimento dos conflitos, das contradições sociais e políticas
de cada época. A razão não determina a sociedade. De outra forma, é a sociedade,
fruto de uma evolução histórica contínua, que determina e condiciona a razão. Com
isto, os adeptos da teoria crítica afastam tanto o idealismo proclamado em nome de
um espírito absoluto quanto o naturalismo contido na noção de uma natureza
absoluta. Em outras palavras, a tensão entre razão subjetiva e razão objetiva, entre
sujeito e objeto, que se revela na filosofia tradicional desde Platão às ciências
modernas, ao mesmo tempo em que mostra a indiferença do pensamento tradicional
à dimensão histórica dos fenômenos, dos indivíduos e da sociedade, aponta —
agora de uma perspectiva críti- ca — para a necessidade de resgatar a razão
iluminista, vale dizer, a esfera da realização da autonomia e da autodeterminação do
homem.10 Trata-se, assim, de refazer o caminho que levou à deformação do
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(8) José Ferrater Mora, Diccionario de Filosofía, vol. IV, 5. ed., 1986, Madrid,
Aiianza, p. 2785.
(9) o texto, publicado inicialmente em inglês (1947), foi inserido em uma obra mais
abrangente, editada na Alemanha sob o titulo Crítica da Razão instrumental (1967).
Há tradução em espanhol, com este mesmo título. A exposição que se segue tem
em conta a tradução brasileira (Max Horkheimer, Eclipse da Razão, São Paulo,
Centauro Editora, 2000).
(10) Horkheimer, op. cit., p. 1 70- 1 87. Como observa Barbara Freitag, na in-
terpretação de Horkheimer, a teoria tradicional preocupa-se em formar sentenças
que definem conceitos universais. Para tanto procede na base da lógica formal,
defendendo o principio da identidade, da contradição e do terceiro excluído. É a
tradição de Descartes aplicada às ciências
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
saber produzido pelo iluminismo, e de indagar, nos limites do presente trabalho,
sobre as repercussões da razão instrumental no campo do direito e do abuso do
direito, mormente numa época em que a ética da eficiência e o desterro dos valores
da tradição acabam por reduzir as questões da justiça, da eqüidade e do bem
comum à relação meio-fim, própria das sociedades utilitaristas.
O movimento de codificação, que se iniciou com o Estado Moderno, coincide com a
necessidade de garantir a crença nos valores fundamentais, proclamados pela
civilização burguesa. Com a era industrial, o individualismo, aquilo que é particular,
acabou por assumir o papel antes desempenhado por aqueles princípios universais,
que se diziam fundados na razão objetiva.11 A lógica da reprodução ampliada
acabou por interferir sensivelmente nas condições de vida daquela legião de
pessoas atraídas para os grandes centros urbanos. Assim, a pretexto de garantir o
contrato social, numa sociedade marcada por acentuados contrastes e diferenças,
desenvolveu-se um processo de regulamentação generalizada da vida, que acabou
rompendo com aqueles preceitos do direito natural, nos quais se fundavam os
chamados direitos civis do Estado Liberal burguês.
Início da nota de rodapé
modernas, em que os fatos se tornam casos singulares, exemplos ou concretizações
do conceito ou da lei gerai. De outra forma, para a teoria critica, é certo que existem
conceitos gerais, a exemplo das categorias marxistas mercadoria, valor, dinheiro,
acumulação etc., com as quais Horkheimer inicialmente trabalha. Todavia, a relação
entre realidade e conceitos não é, por isso mesmo, análoga à que existe entre casos
particulares e uma categoria ou espécie. Mais que isto, a esta relação não se aplica
simplesmente os elementos da lógica formal. A teoria crítica procura integrar um
dado novo ao corpo teóricojá elaborado, relacionando-o sempre com o
conhecimento quejá se tem do homem e da natureza naquele momento histórico.
Ou seja, na base do conceito geral de troca simples de mercadoria, por exemplo,
procura mostrar, a partir de novas pesquisas, próprias e alheias, como a economia
de troca nas condições atualmente dadas conduz necessariamente ao agravamen-
to das contradições na sociedade, o que leva a guerras e revoluções (Barbara
Freitag, A teoria crítica: ontem e hoje, São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 38-39).
(11) Horkheimer, op. cit., p. 28 e 29.
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
Paralelamente à arbitrária redução do conteúdo da razão iluminista, reduziu-se
também a esfera da liberdade das pessoas. A razão objetiva, antes ocupada em
preencher a função intelectual que de- sempenhava a religião — esta destronada
pelos revolucionários — perdeu sua autonomia, cedendo lugar para uma razão
formalizada, cujo caráter operacional tornou-se único critério de avaliação. Assim, na
chamada sociedade de massas a razão subjetiva e o utilitarismo perverso
substituíram as raízes intelectuais dos valores inspirados na justiça, igualdade,
felicidade, tolerância, pela funcionalidade dos significados. Se o conceito de verdade
é significativo, só o é em função de suas conseqüências. O direito, a arte e a religião
foram apartados da verdade à medida que se tornaram algo inteira- mente
aproveitado no processo social.12
Enfim, nada vale por si mesmo e nenhum objetivo como tal é melhor que o outro.
Destas razões superiores da funcionalidade o pensamento moderno tentou extrair
uma filosofia, tal como se apresenta no pragmatismo de William James. Nele, a
razão subjetiva apresenta um caráter instrumental. No lugar de conceitos analíti-
cos, buscam-se simples abreviações de itens aos quais o conceito se refere, meros
auxiliares do processo produtivo. Assim, quanto
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(12) Horkheimer, op. cit., p.29 3 1 , 32, 39,44,48, 49, 50e 176. MaxHorkheimer trata,
neste ponto, da reificação. O conceito, originalmente utilizado por Marx quando
¿studa a mercadoria, designa o processo pelo qual o caráter humano das relações
sociais permanece oculto, apresentando-se, na sua aparência, àqueles que
participam dessa relação, como algo totalmente independente de suas vontades.
Segundo Horkheimer, a origem desse processo deve ser buscada nos começos da
sociedade organizada e do uso de instrumentos. Contudo, a transformação de todos
os produtos da atividade humana em mercadorias só se concretizou com a
emergência da sociedade industrial. As funções outrora preenchidas pela razão
objetiva, pela religião autoritária ou pela metafísica têm sido ocupadas pelos
mecanismos reificantes do anônimo sistema econômico (Horkheimer, op. cit., p. 48).
Para melhor compreensão teórica do conceito de reificação, ver Karl Marx, Capital
— A critique of Political Economy, vol. 1 (Oprocesso deprodução do capital),
Moscow, Progress Publishers, 1977, Parte I, Capítulo I, Seção 3, D, p. 75, e KarI
Marx, op. cit, vol. 3 (Theprocess of capitalista production as a whole), Parte vI,
Capítulos XL a XLVII, p. 614-813.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
mais as idéias se tomam automatizadas, instrumentalizadas, menos as pessoas
vêem nelas pensamentos com um significado próprio. São consideradas como
coisas, máquinas. A razão subjetiva também serviu, sob outro aspecto, ao
desenvolvimento do positivismo moderno, do fisicalismo, onde a linguagem aparece
apenas como mero instrumento no gigantesco aparelho de produção da sociedade
moderna. Para a filosofia analítica, herdeira das elaborações do positivismo lógico,
as sentenças performativas, ainda que não tenham significado do ponto de vista dos
proferimentos constatati- vos, revelam um sentido ligado a sua operacionalidade.13
Precisamente neste ponto é que se pode colher a relevância estratégica de um
direito descolado da realidade, das tradições e dos valores.
Se é certo que a sociedade do século XX está enredada por teias organizacionais,
fruto da burocracia crescente das economias planificadas e do dirigismo econômico,
certo também é que a razão instrumental assume, nesse cenário de desumanização
do pensamento e de atrofia da capacidade crítica, um importante papel de homo-
geneização de conteúdos, que se revela na esfera do direito através da noção de
uma justiça social ampliada, própria do welfare state, do chamado Estado
Providência. O direito, nos quadros de uma sociedade utilitarista, é posto por
decisão, legitimando-se através de procedimentos que se revelam na eleição dos
governantes, na votação das leis, na solução judicial dos conflitos. Trata-se de
decisões técnicas, que variam na dependência dos fins e do resultado, cuja validade
está diretamente relacionada ao bom desempenho do sistema jurídico. Essa
tecnicização do direito, que se opera nas
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(13) Horkheimer, op. cit., p. 29, 30 e 49. A propósito das funções da linguagem, ver o
que foi dito no capítulo anterior, na base das idéias do segundo Wittgenstein, de
Charles Stevenson e de Austin. Para Horkheimer, a funcionalização da linguagem
acaba com a distinção entre pensamento e ação. Todo pensamento ou palavra se
transforma em instrumento. Como nos tempos da magia, cada palavra é
considerada uma força poderosa que pode destruir a sociedade e pela qual aquele
que fala deve ser responsabilizado (idem, p. 31). A propósito da operacionalidade
jurídica que se retira deste caráter mágico das chamadas palavras ocas, ver o que
foi dito, na base de AIf Ross e Olivecrona, no capítulo anterior (seção 4.4).
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
mãos de engenheiros,14 não pode recusar, entretanto, um certo contato com a
razão objetiva.
É fato que nas sociedades pragmáticas do século XX tudo é posto por decisão.
Mesmo os fundamentos desta decisão são também postos, o que faz pensar,
sobretudo na esfera das correntes forma- listas do direito, que o sistemajurídico está
fundado em verdadeiros axiomas. Contudo, os engenheiros têm de manter um certo
controle sobre essas estruturas de poder, o que a simples ética instrumental muitas
vezes não está em condições de prover. Opera-se, assim, uma passagem da razão
objetiva para a razão subjetiva, com ligeiras adaptações, que visam a facilitar a
pragmatização da vida e a formalização do pensamento. No dizer de Horkheimer —
referindo-se, nesse passo, às relações entre filosofia e religião 15— as adaptações
da filosofia absoluta à sociedade pragmática preenchem uma função útil para os
poderes constituídos. Assim, por exemplo, a humanização do positivismo francês, na
base da idéia de solidariedade, inspirada no racionalismo cognitivista da ilustração,
cumpre determinadas funções sociais. Os reflexos de uma tal adaptação, no campo
do direito, podem ser encontrados no conceito de consciência jurídica coletiva,
desenvolvido por Léon Duguit, noção que orientou várias gerações de juristas, na
tentativa de rever a teoria do abuso do direito no contexto da sociedade de massas.
A partir da metade do século XX, como foi visto no primeiro capítulo (seção 1 .4),
alguns autores buscam fundamentar uma teoria
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(14) Para Horkheimer, engenheiros seriam todos os técnicos e profissionais que
compõem a moderna tecnocracia, a exemplo dos industriais, administradores,
políticos etc. (Horkheimer, op. cit., p. 156). Assim como Platão queria transformar os
filósofos em governantes, os tecnocratas querem transformar os engenheiros em
componentes do quadro de diretores da sociedade (idem, p. 66). O engenheiro não
está interessado em compreender as coisas por si mesmas ou em função do en-
tcndimento em si mesmo, mas sim em função de ajustá-las dentro de um esquema...
A mente do engenheiro é a mesma mente do industrial em forma tecnológica. O seu
comando decidido transformará os homens num conjunto de instrumentos sem
objetivos próprios (idem, p. 152-153).
(15) Horkheimer, op. cit., p. 68 e 69.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
objetiva do abuso do direito, desligada da concepção individualista da aeinttlatio
(que ainda sobrevive no século xvIII, como forma de contornar o egoísmo dos
direitos absolutos), utilizando-se, para tanto, da idéia de uma consciência jurídica
coletiva, que ora se revela na noção de princípios gerais de direito ora em preceitos
extraídos das opiniões culturais dominantes.16 A consciência, como categoria
filosófica, é a mais viva expressão do racionalismo. Entretanto, numa sociedade
premida pela industrialização e urbanização crescentes, não são mais os fatos
interpretados a partir de uma abstração qualquer. Ao inverso, os conceitos passam a
ser elaborados para atender às necessidades ditadas por uma ética da eficiência.
Assim, a idéia da consciência mesma, de um dado apriori que condiciona a
experiênciajurídica, passa por algumas reformulações.
Em verdade, as primeiras elaborações acerca de uma consciência coletiva surgem
com Durkheim, que desenvolve um naturalismo social fundado na metodologia
positivista. Sob este enfoque, os fatos sociais são tratados como se fossem coisas,
que têm de ser estudadas a partir dos mesmos métodos, de natureza empírica,
aplicados às ciências físicas e às ciências naturais.17 Todavia, Durkheim não é
propriamente um materialista. Na sua concepção, a sociologia deve voltar os olhos
não apenas para as formas materiais, mas também para os estados psíquicos. E por
meio de suas consciências que os homens estabelecem relações. Depois de afastar
uma interpretação psicofisiológica da vida mental, Durkheim sustenta que a
consciência coletiva não é simples somatório das
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(16) A propósito, ver as elaborações de Mario Rotondi (Instituiciones de Derecho
Privado, México, Editorial Labor, S.A., 1953, p. 99-101), de Roberto Goldschmidt (A
teoria do abuso do direito e o anteprojeto bra- sileiro de um código de obrigações, in
Revista Forense, vol. 97, Ano 4 1, fasc. 487, janeiro de 1 944, p. 27-30), de Paulo
Dourado de Gusmão (Pressupostos filosóficos da noção de abuso do direito, in
Revista Forense, Rio de Janeiro, voi. 1 20, Ano 45, fasc. 545, p. 374-377), de Martín
Bernal (Elabuso delderecho, Madrid, Editorial Montecorvo, S. A., 1 982, p. 1 43) e de
Luis Alberto Warat (Abuso del derecho y lagunas de la ley, Buenos Aires, Abeiedo-
Perrot, 1969, p. 60, 66 e 83).
(17) Émile Durkheim, As regras do método sociológico, 10. ed., São Paulo. Nacional,
1982, cap. 2, p. 13-40.
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
consciências individuais. O ato humano tem valor porque visa a uma finalidade
superior ao indivíduo. Daí porque a sociologia não pode ser confundida com a
psicologia.18 Léon Duguit, embora
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(18) Para Durkheim, o conhecimento daquilo que se passa nas células cerebrais não
constitui a chave das representações individuais. A demonstração desta assertiva
pode ser feita tomando como exemplo a faculdade da memória. Segundo os que
defendem tratar-se de simples fenômeno físico de retenção, certa idéia pode deixar
de existir, mas a impressão orgânica que precedeu essa representação não
desapareceria completamente. Restaria uma certa modificação do elemento
nervoso, que o predisporia a vibrar de novo. Mas se o passado, tudo aquilo que
sobrevive no curso dos anos, tal como os hábitos, preconceitos, tendências, não é
senão um fenômeno orgânico, está claro que, alteradas as condições físicas,
desfeitos os elementos nervosos em que se baseia determinada representação, as
próprias idéias desapareceriam. Em verdade — dirá Durkheim — as coisas não se
passam bem assim, como demonstram os próprios fatos. Se as representações
desaparecessem totalmente, desde que saíssem da consciência atual, se
sobrevivessem apenas sob a forma de um vestígio orgânico, as semelhanças que
pudessem ter com uma representação surgiriam do nada, uma vez que não pode
haver nenhuma similaridade, direta ou indireta, entre esse vestígio, do qual se
admite a sobrevivência, e o estado psíquico agora considerado. Durkheim
prossegue, tratando do inconsciente — o que não interessa aqui desenvolver —
para depois afirmar que o conhecimento do que se passa nas consciências
individuais não constitui a chave das representações coletivas. A consciência
coletiva é a resultante das consciências individuais, que as ultrapassa, contudo,
assim como o todo ultrapassa a parte. Eis aí como o fenômeno social não depende
da natureza pessoal dos indivíduos. Neste ponto, o sociólogo positivista combate —
no seu próprio modo de dizer — tanto a metafísica materialista (explicação do
complexo pelo simples, do todo pela parte) como a metafísica idealista (que faz
derivar a parte do todo, vale dizer, que retira do nada, do todo sem a parte, aquilo de
que a parte necessita para existir). A teoria política e moral desenvolvida por
Durkheim guarda as impressivas marcas desta particular maneira de conceber a
relação entre o individual e o coletivo: a vida coletiva não é mais vista como
epifenômeno da vida individual, assim como a representação indivi- dual não é mais
vista como epifenômeno da vida física. E isso porque a personalidade coletiva é algo
mais que a totalidade dos indivíduos que a compõem. A moral começa, portanto,
onde começa a vida em
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
fiel à metodologia positivista, dá à noção de consciência coletiva interpretação
diversa.
Partindo do conceito durkheimiano de solidariedade, Léon Duguit sustenta que ela
está fundada no sentimento de sociabilidade e no sentimento de justiça, realidades
recolhidas a partir da observação dos fatos. Para ele, a formulação de Durkheim é
causalista, visto que, embora a norma social resulte do fato, assim como a lei
biológica resulta do organismo vivo, certo é que os indivíduos, aos quais a primeira
se aplica, têm consciência de seus atos. Não bastasse, a norma social cumpre uma
finalidade.9 Léon Duguit entende
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
grupo. Diga-se mais: se existe uma moral, um sistema de obrigações, é preciso que
a sociedade seja uma pessoa moral qualitativamente distinta das pessoas
individuais. Poderá ocorrer, no entanto, que a par da moral constituída, que se
mantém pela força da tradição, novas tendências surjam. A ciência dos costumes
permite tomar partido entre elas, porquanto é possível que os velhos costumes
correspondam a um esta- do de coisas que desapareceu, ou que está prestes a
desaparecer, situação em que as idéias novas passam a representar as mudanças
ocorridas nas condições da existência coletiva. O homem não é, pois, obrigado a
submeter-se docilmente à opinião moral. Entretanto, de forma alguma poderá aspirar
a uma moral diferente daquela que é exigida pelo estado social (Emile Durkheim,
Sociology and Philosophy, New York, The Free Press, 1974, p. 4-6, 12,13,24,27, 29,
32, 51,52,60 e 61).
(19) Léon Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, troisième édition, Paris, Ancienne
Librairie Fontemoing & Cia, Editeurs, tome premier, 1927, p. 66, 67, 78, 79, 82 e 84-
89. A crítica de Duguit procede, do que são prova algumas passagens da obra de
Durkheim: Nada pois de mais estranho que o desprezo com que nos censuram,
algumas vezes por um certo materialismo. Muito pelo contrário, do ponto de vista em
que nos colocamos, se chamamos de espiritualidade a propriedade distintiva da vida
representativa no indivíduo, deveremos dizer, com relação à vida social, que ela se
define por uma hiperespiritualidade; entendemos com isso que os atributos da vida
psíquica aí se encontram, mas elevados a uma potência bem mais alta, constituindo
algo de inteiramente novo. Apesar de seu aspecto metafísico, a palavra não designa
nada mais que um conjunto de fatos naturais, que devem ser explicados por causas
igualmente naturais. Mas ela nos indica que o mundo novo que assim se abre à
ciência ultrapassa todos os outros em complexidade; que não é simplesmente uma
forma ampliada dos reinos inferiores, mas que nele
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
também que os grupos sociais não são distintos das vontades individuais que os
compõem. A crença na existência de uma vontade coletiva superior às consciências
individuais, e a elas irredutível, só pode estar fundada em um princípio superior, em
uma concepção metafísica. Assim, se o causalismo, por um lado, desconsidera a
evidente diferença entre fatos sociais e fatos físicos, a crença em uma vontade
sobrenatural, por sua vez, desconsidera os valores que cada indivíduo tem.20
Não faltou quem reconhecesse nas elaborações do jurista francês o mesmo viés
metafísico por ele identificado nas teorias de Durkheim. Para François Geny — cujas
críticas foram expostas pelo próprio Léon Duguit, em seu Tratado — a noção de
sentimento de sociabilidade e de sentimento dejustiça é um conceito a priori, que
recorre a princípios superiores da razão pura, com o que se garante a passagem do
fato à norma. Duguit responde às objeções dizendo que a interpretação de Geny,
sim, está fundada em pressupostos metafísicos, deixando entrever que o sentimento
de justiça e o sentimento de sociabilidade, dois elementos que concorrem para a for-
mação da massa dos espíritos, teriam um sentido hegeliano, idealista. As críticas —
segundo a réplica de Duguit — partem de um mal entendido. A justiça não é um
ideal racional, absoluto, revelado pela razão humana, o que não impede dizer que
todos tenham pelo menos uma idéia aproximada do justo.21
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Continuação da nota de rodapé da página anterior
há forças das quais ainda não suspeitamos e cujas leis não podem ser descobertas
exclusivamente pelos processos de análise anterior (Sociology and Philosophy, New
York, The Free Press, 1 974, p. 34).
(20) Léon Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, troisième édition, Paris, Ancienne
Librairie Fontemoing & Cia, Éditeurs, tome premier, 1927, p. 82-89.
(21) Idem, p. 75-77, 80-82 e 116-121. Miguel Reale, a propósito da noção de massa
dos espíritos, diz que o conceito revive a idéia de espírito do povo de Savigny, um
retorno ao eu coletivo de Rousseau (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1. ed., São
Paulo, Saraiva, 1986, p. 447). Embora Duguit insista em que os princípios que
fundamentam o direito são consagrados pela sociedade, não resultando apenas da
natureza humana, entende-se — no dizer de Miguel Reale — que suas elaborações,
longe de uma construção puramente naturalistica e positivista do direito, acabam
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Bem se vê que a noção de consciência coletiva — quer resultante ou não da
combinação das consciências individuais — evocando a idéia de uma faculdade
originária, não advinda da experiência, está muito próxima do
racionalismojusnaturalista.22 Como bem o disse Horkheimer, os direitos do
indivíduo, expressão da racionalidade humana, concebida como conjunto de
percepções intelectuais fundamentais, inatas ou desenvolvidas pela especulação,
conquistaram gradativamente o primeiro plano nas sociedades industriais, com a
conseqüente supressão de outras categorias fundamentais no universo da razão
objetiva. Mas o mesmo processo trouxe à superfície as contradições entre esses
direitos absolutos e a idéia de nação. A lógica de uma razão formalizada não pode
conviver com as conseqüências anárquicas do individualismo exacerbado. Isto
explica por que a crise da razão objetiva representa também a crise do indivíduo.23
O recurso a uma cons- ciênciajurídica coletiva, ao mesmo tempo em que resgata
noções
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readaptando, com roupagens novas, velhas teses da concepção metafí- sica do
direito. De fato, não há como refutar, na teoria de Duguit, a aproximação cada vez
maior a certas doutrinas que exageram a contribuição de certas forças irracionais
(Miguel Reaie, op. cit., p. 452).
(22) Não deixa de ser significativo, neste sentido, que um autor de inclinação
jusnaturalista, como Giorgio DeI Vecchio, tivesse sustentado, na virada do século
xIx, uma tal idéia de consciência coletiva, como sentimento do justo e do injusto.
Para o jurista e filósofo italiano, a consciência coletiva mais não é senão a evolução
de uma forma espontânea e irrefletida da elaboração do direito (que fixa regras de
convivência de maneira difusa, em bases tácitas) para uma fase de elaboração
deliberada, reflexiva e consciente. A evolução jurídica dá-se através da passagem
de motivos psicológicos inferiores, impulsos imediatos e instintivos, como são o
medo, a agressividade, para motivos psicológicos superiores, a exemplo do respeito
e da solidariedade, com o que se Iimita o arbítrio individual. Por isso, o direito é fato
do espírito humano, resultante de estratégias de persuasão, pelas quais se
estabelecem a obediência e o consenso geral (DeI Vecchio, Lições de Filosofìa do
Direito, 2. ed., Coimbra, Arménio Amado Editor, 1 95 1, p. 22 a 24; 130, 285, 297,
383-386, 394 e 395; DelVecchio,Ajustiça, São Paulo, Sarai- va, 1960, p. 73 e 74).
(23) Horkheimer, op. cit., p. 29.
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
como justiça, igualdade e democracia, permite entrever — de uma perspectiva
crítica — o quão triviais se mostram esses slogans, cuja vacuidade se revela assim
que se busca indagar do seu significado específico na sociedade de massas.24
Quando as grandes concepções filosóficas estavam vivas — observa Horkheimer —
as pessoas não exaltavam o amor fraternal, a justiça e a humanidade porque era
realista manter tais princípios, extravagante e perigoso desviar-se deles. Como nos
jogos infantis e nas fantasias de adultos, os homens acreditavam numa verdade
suprema, que aos poucos foi sendo esvaziada de seu conteúdo objetivo, em nome
de necessidades artificiais, que são confundidas com utilidades.25 Não por acaso,
as primeiras concessões a uma concepção individualista do abuso do direito, como
foi visto no primeiro capítulo (seção 1 . 3), têm em conta a conformidade do exercício
do direito a sua finalidade econômica. O progresso tecnológico e a inserção das
ciências no processo de produção do capitalismo industrial geram novas
expectativas sociais. Dentro deste quadro, o fetiche da verdade ontológica, que fazia
parte do lúdico, do imaginário coletivo, foi substituído por uma verdade
procedimental, própria das organizações burocráticas, de início fundada em um
princípio metafísico, como se vê no positivismo metodológico, e mais tarde em um
pacta sunt servanda, como é próprio do jusnaturalismo implícito das teorias
baseadas em um consenso ético.
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A indagação que orienta as reflexões finais do presente traba- Iho prende-se
precisamente à possibilidade de conciliar o princípio constitucional da
inafastabilidade da jurisdição com a garantia da efetividade do processo de um
ponto de vista ético. Em outras palavras, trata-se de saber se ainda existe na
sociedade pragmática, orientada por um procedimentalisrno que faz do respeito às
próprias regras o critério último de aplicação dajustiça, espaço para um significado
que não se revele apenas na dimensão da sua utilidade, lugar para um processo
judicial que longe de ser a expressão de um
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(24) A propósito dessas idéias, v. Horkheimer, op. cit., p. 40, 155-159.
(25) Horkheimer, neste ponto, trata da perda de conteúdo dos conceitos, dis-
correndo também sobre o padrão utilitarista (op. cit., p. 34, 40-44).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
instrumentalismo orientado pela relação meio-fim, seja ele próprio um momento de
integração entre os diversos atores sociais, interagindo comunicativamente. Em
resumo seria de se indagar se uma revisão crítica da teoria dos abuso dos direitos
processuais — longe de rejeitar a razão subjetiva em nome de um individualismo
histori- camente obsoleto, que leva ao desprezo pelas massas, ao cinismo e à
confiança em forças obscuras26 — estaria em condições de garantir o
desenvolvimento das potencialidades do indivíduo, de assegurar os interesses
destoantes da maioria conduzida pela mídia eletrônica capitalista, na base de uma
razão dialógica, em que os significados sejam consensualmente elaborados e
reciprocamente respeitados. Fala-se aqui de um agir comunicativo, em contraste
com uma razão instrumental.
5.2 A racionalidade instrumental e as novas demandas sociais
No modelo do Estado minimalista a questão da justiça distributiva praticamente não
aparece. O processo judicial, identificado com a pretensão de direito material, revela
uma relação comutativa na qual o Estado não interfere senão para garantir as regras
dojogo, as relações de troca. O aumento da complexidade social e a progressiva
funcionalização dos conceitos deram lugar a novas fórmulas
Início da nota de rodapé
(26) Eis aqui a crítica que Horkheimer dirige a um heróico individualismo metafísico
com que certos autores buscam neutralizar os estragos produzidos pela razão
instrumental. Nesse passo, cita Aldous Huxley, que escrevendo em 1 932, já antevia
um futuro no qual o homem seria transformado em simples peça da engrenagem
tecnológica. O Admirável mundo novo não teve a pretensão de ser mais que um
romance de ficçäo científica. Mas se outro valor não tem, serve quando menos como
testemunho de que às vezes a vida realmente imita a arte, do que é prova a maneira
com a qual Huxley retrata um mundo em que o domínio quase integral das técnicas
e de uma determinada concepção do saber científico acaba por dar origem a uma
sociedade totalitária e desumana. A crítica de Horkheimer dirige-se ao fato de que o
romance, ao mesmo tempo em que ataca uma organização mundial, um capitalismo
mono- polista que está sob a égide de uma autodissolvente razão subjetiva, exalta a
figura de um homem cultivado, não contaminado pela civilização total (Horkheimer,
op. cit., p. 63 e 64).
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
de composição dos conflitos, do que resultou a autonomia do processo, que se
desprende daquela base material. Esta emancipação insere-se no contexto da
própria instrumentalização do direito, como foi visto na seção anterior, permitindo ao
Estado interferir na frag- mentação dos conflitos, que agora ganham uma expressão
coleti- va. Mas é inegável que essa neutralização do conteúdo, se de um lado
permite a realização de umajustiça distributivaprocessual, que se legitima a partir da
simples observância de formas e fórmulas, por outro, não pode recusar, em
situações-limite, o confronto com as questões valorativas. Está posta, assim, em
outros termos, a di- cotomia razão subjetiva — razão objetiva.
Os horrores da Segunda Grande Guerra, as manipulações técnicas e científicas
abriram lugar para os chamados direitos sociais de terceira e quarta gerações.
Conforme observa Horkheimer, a natureza hoje é concebida como um simples
instrumento do homem, cuja insaciabilidade é fruto de necessidades impostas pelos
próprios padrões de acumulação capitalista. Mas a tentativa de um retorno à
natureza, por uma revivescência das velhas doutrinas ou pela criação de novos
mitos, não representa propriamente a negação de uma razão formalizada. 27 Cada
vez menos algo é feito por si mesmo, independentemente de sua ligação com outros
fins. Uma inclinação que tire um homem da cidade e o leve para as margens de um
rio ou para o topo de uma montanha seria irracional, se julgada pelos padrões
utilitaristas. Segundo o ponto de vista de uma razão formalizada, uma atividade só é
racional quando serve a outro propósito, como, por exemplo, a saúde ou o
descanso, que ajude a recuperar a energia produtiva.28 Em poucas palavras, os
valores objetivos foram instrumentalizados.29
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(27) Horkheimer, p. ¡ 12-130.
(28) Idem, p. 44.
(29) As discussões acerca da relação custo-benefício, que orientam a polêmica em
torno da pena de morte, da pena privativa da liberdade, dão a exata dimensão do
trágico contexto em que estão inseridos os valores humanos. A teoria da reparação
do dano moral também é significativa, pois mostra que valores corno dignidade e
felicidade podem ser mensurados economicamente. E o chamado preetium doloris.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A formalização da razão permite entender assim como se opera aquilo que os
processualistas conhecem como terceirafase metodológica do processo civil, que
tem em conta a noção de instrumentalidade. Assim, o mesmo processo judicial que
serviu para arbitrar as relações meta-individuais, próprias de uma sociedade liberal-
burguesa, volta-se hoje para a solução de conflitos transindividuais, característicos
das sociedades pós-industriais, numa tentativa de garantir a hegemonia do direito
como forma de controle social. A transmigração do individual para o coletivo altera
os padrões de argumentação jurídica, mas não interfere com a função principal da
linguagem, mormente da linguagem utilizada no processo judicial, que é a de
determinar as formas de comportamento que a parte assume ao falar emjuízo, o
conjunto de atos que se realizam, específica e imediatamente, pelo simples
exercício da fala.
A chamada terceira fase metodológica do processo civil está voltada para o
desenvolvimento de mecanismos de institucionalização dos conflitos de larga escala.
Partindo da tradicional concepção de que o processo visa à realização da paz
através do direito, os processualistas buscam a domesticação das condutas desa-
gregadoras, pautando-se pela idéia de um Estado Democrático de Direito. Assim, O
processojudicial deve promover o equilíbrio das forças sociais, servindo como efetivo
instrumento dejustiça social. Esta nova perspectiva implica uma releitura das noções
de interesse de agir e de legitimidade para a causa. (art. 3.° do CPC), à vista dos
interesses coletivos, dos interesses difusos e dos interesses individuais
homogêneos. Alterou-se também o instituto da coisa julgada.30 A par da legislação
esparsa, visando à tutela dos valores
Início da nota de rodapé
(30) o acesso universal à justiça tem previsão no texto constitucionaI de 1 988 (art.
50, LXXIV), tanto quanto a ampliação da Iegitimatio ad causam (art. 5•0, XXI). As
previsões do artigo 8.°, 111, que estabelece a Iegitimidade do sindicato para a
defesa dos interesses da categoria, do artigo 129, 111, e § 1.0, que cuida das
funções do Ministério Público, e do art. 1 34. que institui a defensoria pública,
também participam, indiretamente, da idéia de um acesso universal à justiça.
Alterou-se também a disci- plina da coisajulgada que, em regra, passa a ter eficácia
erga omnes, estendendo-se a todos os interessados. No caso de improcedência da
ação por falta de provas, os efeitos da coisa julgada não se comunicam
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
sócio-culturais (Lei 7.347/85), dos direitos do consumidor (Lei 8.078/90), do
administrado (Lei 8.429/92) do deficiente físico (Lei 7.953/89), da criança e do
adolescente (Lei 8.069/90), do investidor no mercado de valores mobiliários (Lei
7.913/89), do solo urbano (Lei 6.766/79), do patrimônio genético (Lei 8.974/95), há
uma série de outros dispositivos legais voltados à realização desses direitos, a
exemplo do mandado de segurança coletivo (art. 5•0, LXX, da C.E) do mandado de
injunção (art. 50, LXXI, da C.F) e da ação popular (Lei 4.717/65), que teve alterado o
seu campo de incidência (art. 50 LXXIII).
Como se teve oportunidade de registrar no primeiro e segundo capítulos, o abuso do
direito de demanda tem lugarprivilegjado em toda essa legislação recente, voltada
para o alargamento das vias de acesso ao judiciário. E isto porque conquanto a idéia
de efetividade do processo esteja comprometida com a universalização da justiça,
com o desenvolvimento de uma legislação mais inclusiva, há também um apego à
noção de utilidade. Com efeito, a máquina judiciária não pode ser movimentada sem
que haja um resultado socialmente útil.31 Nisto se revela o interesse de agir. A
alteração da
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aos demais colegitimados. Tratando-se de interesses individuais homogêneos,
oiulgamento de improcedência, seja qual foro seu fundamento, não tem efeito erga
omnes (art. 16 da Lei 7.347/85 e art.103, I, 11 e 111, da Lei 8.078/90). O sentido
dejustiça distributiva faz-se sentir, outrossim, na inversão do ônus da prova, que se
coloca como possibilidade, à vista dos interesses da parte presumidamente mais
fraca (art. 6.°, VI1I, da Lei 8.078/90), ou até mesmo como imperativo, na hipótese de
acidentes de consumo, por exemplo (arts. 1 2 a 1 7 da Lei 8.078/90).
(31) A doutrina, quando se ocupa dos escopos sociais, políticos ejurídicos do
processo, diz que fixá-Ios equivale a revelar o grau de sua utilidade (Cândido Rangel
Dinamarco, op. cit., p. 207). A propósito, já se decidiu que aquele que abusa do
direito de petição consagrado no art. 5•0, XXXIV, a, da Constituição Federal, agindo
sem interesse, fica obrigado a indenizar (TJ São Paulo, AI 280.992- 1, Tupã, 6.
Câmara de Direito Privado, ReI. Ernani de Paiva, 08.02.96, v.u.). Interesse de agir
nessa perspectiva instrumentalista, traduz-se em utilidade. Carece de ação o
demandante, por falta de legítimo interesse, quando, a juízo do Estado, o custo
social e individual das atividades que preparam o provimento jurisdicional não traz a
perspectiva de retorno que, do
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
disciplina da coisajulgada civil, que interfere com o ideário liberal burguês da certeza
e segurança jurídica, também segue uma orientação instrumental, pois permite
estabelecer um controle sobre a par. ticipação das massas no campo dos interesses
transindividuais. Nessa medida, um mal desempenho da atividade processual não
pode prejudicar os demais co-Iegitimados, que não participaram do processo.32
Essa visão pragmática também vem-se desenvolvendo na esfera do processo penal.
Assim, por exemplo, diante da perspectiva da prescrição, considerada a pena em
concreto, tem-se entendido que não há utilidade no provimento jurisdicional, pelo
que injustificada a instauração de um processo.33 Isto, de certa forma, interfere com
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ponto de vista da utilidade pública, seja compensador (Cândido Rangel Dinamarco,
op. cit., p. 244 e 245). A análise econômica do direito, levada a cabo nesses últimos
anos, também de um prisma instrumentalista, tem ressaltado o custo social como
critério fundamental para a solução dos conflitos sociais (Posner, EconomicAnalysis
ofLaw, 2. ed., Boston Toronto, Little Brown and Co., 1 977).
(32) Cogita-se, na doutrina, até mesmo da possibilidade de colusão entre as partes,
de sorte que a disciplina da coisa julgada secundum eventum litis viria então para
impedir que o interesse dos demais co-Iegitimados pudesse ser atingido pelo abuso
do direito de demanda (a respeito, v. Rodolfo de Camargo Mancuso, Manual do
consumidor emjuízo, São Paulo, Saraiva, 1994, p. 102). A ser assim, veja-se que o
regime legal das demandas coletivas inovou em relação à disciplina do Código de
Processo Civil (art. 129 do CPC). A propósito do conceito de colusão ver o segundo
capítulo (seção 2.2). O conceito de legitimidade adequada, desenvolvido pela
doutrina a partir da regra do art. 5.° da Lei 7.347/ 85 e do art. 82 da Lei 8.078/90,
revela também a preocupação de prevenir o abuso do direito de demanda (Ada
Pellegrini Grinover et alii, C6 digo brasileiro de defesa do consumidor: comentado
pelos autores do anteprojeto, Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 513).
(33) De duas uma: ou o Iegisiador reformula a idéia de prescrição retroati va ou o
aplicador da norma terá de ceder às evidências, impedindo que pretensões
natimortas ocupem o espaço da produção judiciária socialmente útil (Luiz Sergio
Fernandes de Souza, A prescrição retroativa e a inutilidade do provimento
jurisdicional, in RT, São PauloAno 8 l ,junho de 1 992, vol. 680, p. 435-438).
Também a respeito do assunto, com far-
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
a questão do abuso do direito de demanda. Também as críticas às teorias de
deslegitimação do direito penal orientam-se por um discurso que tem sempre em
conta afinalidade. Argumenta-se que a sentença penal condenatória opera efeitos na
esfera civil, e mais, que o suspeito ou acusado teria direito de ver-se absolvido, pelo
que não seria jurídico declarar prescrição que ainda não ocorreu. No fundo, aqueles
que se voltam contra a tese de um direito penal mínimo temem o afrouxamento da
persecução criminal. Mais que isto, apostam no fetichismo do processo, que por si
só já serviria como uma espécie de expiação da culpa.34
Enfim, a dimensão ética do direito, e particularmente do processo judicial, vê-se
cada vez mais funcionalizada. As grandes ques- tões filosóficas, expressão da razão
objetiva, são resgatadas pelos processualistas apenas como lugares comuns,
condições retóricas de sentido que animam uma particular racionalidade do
processo. Essa formalização da razão explica o novo caráter mitológico da
Iinguagem processual. Como foi visto no segundo capítulo, o direito, na sua origem
histórica, está atrelado à questão da verdade; a princípio, a uma verdade revelada
pelos deuses, como se vê nallíada, e depois, à verdade como reconstrução dos
fatos, através do teste- munho, como está em Édipo. Nestas duas perspectivas, as
fórmulas processuais, o proferimento das palavras da lei, ganham uma dimensão
muito importante. Do emprego exato de uma expressão, da observância estrita de
um procedimento passa a depender o resultado da demanda.35
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ta citação bibliográtïca nacional, ver Maurício Antonio Ribeiro Lopes,
Reconhecimento antecipado daprescrição dapretensãopunitiva, in RT, São Paulo,
Ano 85, fevereiro de 1996, vol. 724, p. 522-536 e o acórdão pioneiro do Juiz Walter
Theodósio (RT, São Paulo, Ano 80, junho de 1991, vol. 668, p. 289-291).
(34) A respeito das diversas teorias de deslegitimação do discurso jurídico penal,
como resposta à criminologia tradicional, ver Eugenio Raúl Zaffaroni, Em busca das
penas perdidas: a perda de legitimidade do sistemapenal, Rio de Janeiro, Revan,
1991.
(35) Como observa Horkheimer, no contexto da funcionalização das idéias e da
verdade, a linguagem, considerada como mero instrumento, retor-
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
O individualismo liberal-burguês — como também foi visto no segundo capítulo —
deixou-se impregnar daquele apego à forma, com o que supunha garantir a
liberdade, a segurança e a certeza das relações jurídicas. Em bem pouco tempo, a
razão iluminista e a verdade deixaram-se subjugar pela racionalidade das massas. O
poder de imaginação e as formas ricas de significado cederam lugar para uma lógica
funcional, que se bem se presta à consecução de finalidades socialmente úteis,
também dá lugar à chicana e à má-fé processual. A absoluta separação entre fatos e
valores e a correspondente distinção entre o uso representativo e o uso
argumentativo da linguagem traduzem-se, no campo jurídico, também pela
emancipação do processo judicial, que se desprende das relações jurídicas
materiais. As proposições éticas, como ressaltado pelas correntes neoposititivistas,
cumprem um propósito, têm uma finalidade, O significado delas, então, está
diretamente ligado a certas situações de uso. O sucesso dos proferimentos
performativos, o êxito daquilo que se faz enquanto se diz, passa a depender da
adequação da conduta dos atores processuais a um determinado procedimento. Isto
explica o es- vaziamento do conteúdo ético das normas processuais, que cumprem
uma função operacional.36
A expressão abuso do direito processual é muito mais uma fórmula sintética, uma
abreviação de itens aos quais o conceito se re- fere — na expressão de Horkheimer
— do que propriamente uma idéia,
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na ao seu estágio mágico, aos tempos em que cada palavra era considerada uma
força poderosa, capaz de destruir a sociedade e pela qual aquele que fala deve ser
responsabilizado (Horkheimer, op. cit., p. 31).
(36) A classificação feita pela doutrina, no segundo capítulo (seção 2.2), a propósito
dos diversos tipos de conseqüência do abuso processual, é ilustrativa daquilo que
Austin desenvolve quando trata das condições de felicidade do ato defala (seção
4.4). Assim é que, dependendo da forma de transgressão das condições de sucesso
dos proferimentos performativos, pode-se cogitar de nulidade ou de simples
inexistência do ato. Com efeito, algumas condutas abusivas da parte implicam não
propriamente a imposição de sanção, mas a nulidade do ato (art. 13, I, do CPC) ou
mesmo a desconsideração dos efeitos produzidos pela conduta abusiva (arts. 181,
243, 245 e 808, 11, todos do CPC). São hipóteses de injlicidade do ato de fala.
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
um pensamento dotado de sentido próprio. Aqui está um flagrante do aspecto
ideológico do processojudicial, que se revela na funcionalização daforina de vida
voltada para as questões éticas, na colonização da razão objetiva por uma razão
formalizada. Por detrás do conceito de abuso do direito processual, dessa “palavra
oca”, para lembrar Hägerström, mostram-se, de um prisma crítico, múltiplas relações
ocultas que a simples aparência não permite apreender.37 Veja-se, a propósito do
senso comum dos juristas acerca do abuso do direito, quantas incursões foram
feitas, no primeiro e segundo capítuos, até que se pudesse chegar à apreensão
dessa fórmula sintética, operacional, que mais não é senão um feixe de amplas
relações sociais, cuja trama mais se entretece à medida do avanço tecnológico.
Resta saber, repetindo Georges Bernanos, na França contra os robôs, se um mundo
ganho para a técnica está efetivamente perdido para a liberdade, ou seja, se há
espaço, nessa textura pragmática, para considerações de ordem ética.
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(37) Nesse passo, Alaór Caffé Alves diz que ver o Direito como uma expressão
ideológica que não tenha somente um conteúdo operacional para a solução dos
conflitos intersubjetivos que surgem na superfície do corpo social, tal como o
concebe a consciência ingênua, compreende e exige um ato de uitrapassagem
crítica do momento aparentemente concreto da vida jurídica cotidiana, que só se
torna possível, a nosso ver, com a perspectiva de uma análise dialética onde os
elementos empíricos e teóricos sejam explorados de forma a fazer sobressair seu
conteúdo latente vinculado organicamente às condições estruturais do processo
social... O estudo da ordem jurídica ou de quaisquer outras manifestações
institucionais pelas quais o Estado se objetiva não pode, em nosso entender, ser
feito tendo como ponto de partida a idéia de que a inteira realidade se expressa ao
nível de nossa experiência imediata. No entanto, é exatamente isso que ocorre com
o senso comum dos juristas e de outros cientistas sociais quando imaginam
conhecer todo o seu objeto de aná- Iise na precisa forma e expressão de sua
manifestação concreta, aplicando apenas a razão analítica, pela qual conseguem,
não raro com sofisticação, uma sondagem de superfície dos elementos
desdobráveis em puro encadeamento lógico de conceitos, coerentemente dispostos
segundo as conexões visíveis oferecidas pela experiência imediata (Alaôr Caffé
Alves, Estado e ideologia: aparência e realidade, São Paulo, Brasiliense, 1987, p.
339-340).
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
As escolas jusnaturalistas acentuam o aspecto axiológico da teoria do abuso do
direito processual, como se vê nas elaborações de Eduardo Couture, desenvolvidas
no segundo capítulo (seção 2.4). Entretanto, como dito há pouco, a consciência
individual e a verdade ontológica, que se inserem no campo da razão objetiva, vão
sen. do capturadas por uma razão instrumental à medida que a sociedade se torna
cada vez mais complexa. Os juízos de valor, que antes faziam referência a
princípios morais genuínos, à abstração idealizada, ganham novo significado no
contexto dos problemas e das situações da vida real, onde as coisas só têm sentido
se orientadas para uma finalidade. O direito, reduzido à norma, passa a compor um
organismo cibernético, bem descrito pelas teorias sistêmicas de Talcott Parsons e
de Niklas Luhmann, estas últimas influenciadas pela concepção da Biologia,
particularmente pelo modelo desen- volvido por Humberto Maturana.38
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(38) Maturana, Henrique e Francisco Varela, Autopoiesjs and Cognitions, Dordrecht,
Reidel, 1 983. Niklas Luhmann, formado em Direito e Administração, fixou seu
campo de interesse na sociologia, influenciado pelo funcionalismo de Talcott
Parsons (1920-1979). A teoria sistêmica parte do ponto de vista de um terceiro
observador, procurando aplicar os conceitos da cibernética ao estudo da ação
social. A sociedade aparece então Como um sistema sócio-cultural que se diferencia
do meio através de mecanismos de seleção das possibilidades existentes nos
sisternas complexos. A estrutura do sistema social Composta destes mecanismos,
que permitem reduzir a complexidade do sistema, garantido assim a sua
estabilidade. Cada um destes mecanismos pode ser concebido como sistemas
parciais que integram o sistema comunicativo global, que é a sociedade. O direito,
por exemplo, aparece como um dos sistemas funcionais do sistema global, com a
tarefa de reduzir a com- plexidade do ambiente, absorvendo a contingência do
comportamento dos atores sociais. A redução da complexidade do sistema social
dá-se através de dois mecanismos estruturais, quais sejam, a expectativa cognitiva,
que é fática, e a expectativa normativa, que é contrafática. Estas formas de controle
social, das quais o direito participa (como integrante do sistema global que é a
sociedade) permitem exercero controle sobre as representações e interpretações do
mundo (Niklas Luhmann, Sociologia do Direito I, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,
1983, Coleção Biblioteca Tempo Universitdrio, vol. 75, p. 48-66 e 167-224). A
propósito dos conceitos desenvolvidos pela cibernética, v. Norbert Wiener,
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
O direito, visto dessa ótica, mostra-se como um sistema aberto — em permanente
contato com o sistema social — cujo repertório é composto por normas obrigatórias,
postas por uma autoridade, e cuja estrutura é formada por um conjunto de regras
que permitem estabelecer relações entre os diversos elementos daquele repertório.
A performance do sistema está na dependência da sua capacidade de controlar as
contingências, vale dizer, a incerteza quanto à realização ou frustração das
expectativas sociais. O esvaziamento do conteúdo, o corte em relação à realidade,
próprio de umajustiça distributiva processual, que se legitima na base da simples
observância das regras procedimentais, tem, entretanto, seus limites. Por isso,
quando o simples controle exercido através de atitudes cognitivas e normativas se
revela deficitário, o próprio sistema desenvolve mecanismos para dispersão do
dissenso, que se revelam precisamente nas palavras ocas, naquelas expressões
que não se confrontam com a realidade, mas que funcionam como código doador de
sentido.
Dessa perspectiva funcional, a concepção do abuso do direito fundada numa
consciênciajurídica coletiva, que por sua vez busca alicerce em princípios gerais de
direito, faz lembrar a referência de Horkheimer à hipocrisia da sociedade industrial,
onde a mesma voz que prega sobre as coisas superiores da vida, tais como a arte e
a amizade, exorta o ouvinte a escolher uma marca de sabão.39 José
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Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos, 5. ed., São Paulo,
Cultrix, 1 978. Como será possível analisar na seção seguinte, o modelo sistêmico-
funcionalista tem uma indisfarçável marca conservadora, que nem mesmo a
tentativa de substituir o conceito de informação porsignificado consegue contornar. E
que o significado aparece aqui não como construção dialógica, mas como expressão
de valores e normas internalizados, padrões de comportamento institucionalizados
monologicamente.
(39) Nesse ponto, Horkheimer lembra a anedota do menino que, olhando a Lua,
pergunta ao pai o que ela está anunciando. Assim, a natureza foi despojada de todo
seu valor ou significado intrínseco...Quando pedem a um homem que admire algo,
que respeite um sentimento ou atitude, que ame uma pessoa por ela mesma, ele
fareja sentimentalismo e sus- peita que estão querendo Ievá-Io na conversa ou
tentando vender alguma coisa (op. cit., p. 1 05 e 1 06). Em outro trecho, o autor
observa:
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Carlos Barbosa Moreira, tratando dos interesses difusos e coletivos, diz que se
enganam aqueles que menosprezam a dimensão técnica do direito, tanto quanto os
que o reduzem a essa mesma dimensão. Diversamente do que sonha um
romantismo ingênuo, o ordenamento jurídico não se reduz à manifestação de
princípios éticos... Mas tampouco seria reconhecível uma imagem do direito que o
figurasse totalmente estranho a inspirações da moral... Pouco importa que princípios
morais sejam a cada passo hipocritamente invoca- dos para justificar manobras do
egoísmo, da ânsia de dominação, do medo de perder privilégios ou de sofrer abalo
em posição de mando. Que se abuse de uma idéia não é o bastante para contestar-
lhe a validade.40
O movimento pela desburocratização da justiça, que se inscreve no modelo da
instrumentalidade do processo, vem ao encontro da crítica formulada por Galeno
Lacerda, no segundo capítulo (seção 2.3), contra uma formalidade perversa, que no
lugar de servir a finalidades sociais, pode comprometer a efetividade da prestação
da tutela jurisdicional. Esse empenho em libertar o conteúdo da forma também tem-
se mostrado numa certa tendência de aproximação entre o direito processual e o
direito material.41 A par dessas orientações, que revelam uma tentativa de legitimar
a razão instrumental em termos de uma ordem justa, assiste-se a uma crescente
politização dojurídico e a uma juridicização do político.42 Tudo isto
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“Outrora era o esforço da arte, da literatura e da filosofia para expressar o significado
das coisas e da vida, para ser a voz de tudo que é mudo.... Hoje, a língua da
natureza foi arrancada. Outrora pensava-se que cada expressão, palavra, grito ou
gesto tivesse um significado intrínseco; hoje é apenas um incidente” (op. cit., p.105).
(40) José Carlos Barbosa Moreira, Direito e ética no Brasil de hoje — aula inaugural
proferida na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ein 9 de março de
1994, in Temas de direito processual (sexta série), São Paulo, Saraiva, 1997, p. 302
e 303.
(41) José Roberto dos Santos Bedaque, Pressupostosprocessuais e condições da
ação, in Justitia, São Paulo, Ano 53, vol. 1 56, outídez. de 1 991, p. 54•
(42) Essa tendência, que tem lugar diante da crise da democracia represeflt tiva,
pode ser resumida como um processo de substituição das instancias
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
é expressão da angustia do homem contemporâneo, sobretudo nos momentos de
grave crise social, econômica e política, diante de um direito cujo sentido se esgota
nas utilidades que produz.43
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políticas, tal qual concebidas pelo modelo da tripartição dos poderes, cujas funções
passam a ser desenvolvidas pelo judiciário. O chamado governo dos juizes pode
gerar, entretanto, graves distorções, muito bem apontadas pela doutrina. Como
escreve Celso Fernandes Campilongo, de um ponto de vista sistêmico-funcionalista,
As instituições representativas podem criar direito novo, desde que, no processo
legislativo, respeitem os limites impostos pelo próprio direito. Os tribunais também
podem tomar decisões de cunho político inovador, desde que, no processo judicial,
observem os balizas estabelecidas pelo sistema político (Celso Fernandes
Campilongo, A crise da representação e a judicialização da política, in Diálogos &
Debates; da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, Ano 1, ed. 1, setembro de
2000, p. 26-32). José Reinaldo de Lima Lopes, ainda que de outro prisma
metodológico, também aponta as dificuldades com as quais o judiciário se defronta
para realizar a justiça distributiva, que exige a implementação de práticas concretas,
próprias da atividade do Executivo (José Reinaldo de Lima Lopes, Direito subjetivo e
direitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito, in José Eduardo
Faria, org., Direitos humanos, direitos sociais e justiça, São Paulo, Malheiros
Editores, 1994, p. 113-143). De uma perspectiva dogmática, Calmon de Passos
critica o modelo escolhido pela atual legislação naquilo que diz respeito às
chamadas ações coietivas. Considera que, em um Estado Democrático de Direito, a
institucionalização de soluções jurisdicionais para conflitos que ultrapassam os
Iimites do conflito individual (os quais se revestem de uma significação macro, que
só desafia, em tese, soluções políticas), somente é admissível dentro de um
universo bem delimitado e desde que haja legitimação política dos órgãos
incumbidos da solução jurisdicional desses conflitos em termos de composição e
responsabilidade (J. J. Calmon de Passos, Direito, poder,justiça e processo:julgando
os que nos julgam, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 9 1 e 92). A propósito
dajudicialização da política e da politização dajustiça é rica tam- bém a bibliografia
estrangeira (C. Neal Tate e Torbjorn Vallinder, The global expansion ofjttdicial power,
New York, New York University Press, 1985).
(43) San Tiago Dantas, já na década de 40, apercebera-se de que a política, no
século XX, havia recuperado seu incontrastável império, colocando para o jurista
problemas que ele não estava preparado para resolver. Em
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
José Joaquim Calmon de Passos vê com certa reserva a posição daqueles que
sustentam a instrumentalidade do processo, a deformalização dajustiça e a
diferenciação da tutela como formas de garantir a efetividade do direito. Entende que
o procedimento é mais do que um instrumento de garantias individuais e sociais,
revelan-do-se ele próprio como expressão do direito produzido por uma determinada
sociedade: Se o direito é apenas depois de produzido, o produzir tem caráter
integrativo, antes que instrumental. O direito não é algo que possa ser dissociado do
processo de sua produção e do produtor, porque ele só consegue existir, como
realidade
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aula magna proferida na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil,
comemorativa do cinqüentenário daquela instituição, San Tiago Dantas Iança uma
pergunta que até hoje gera discussão: pode qualquer política criar um Direito, ou o
Direito em sua natureza técnica está comprometido com determinados princípios
éticos e sociais que colidem com certos sistemas políticos e com outros se
harmonizam? (Renovação do Direito, in Encontros da UnB — ensino jurídico, Brasí-
lia, UnB, 1979, p. 39-45). Na aula inaugural do ano de 1955, na mesma Faculdade,
San Tiago Dantas sustenta que a cultura representa a subjugação do mundo físico
pela técnica. Mas a par desse controle, que o homem exerce sobre a natureza, há
de se cogitar também de um controle do homem sobre a razão técnica. A cultura é
composta, assim, de um controle técnico e de um controle ético, de cuja adequada
relação depende a expansão ou a decadência de uma civilização, de um grupo
social. A falta de criatividade dos juristas tem levado a sociedade a buscar novas
formas de composição dos conflitos. O direito, como técnica de controle da
sociedade, vem perdendo terreno e prestígio para outras técnicas, menos
dominadas pelo princípio ético, e dotadas de grau mais elevado de eficiência, a
exemplo da econômica. Nesse conflito entre um critério ético e um critério
puramente pragmático, o jurista assume o papel de força reacionária, de elemento
resistente, que os órgãos do governo estimariam contornar para poderem promover
por meios mais imediatos e diretos o que lhes parece ser o bem comum (A
educação jurídica e a crise brasileira, in Encontros da UnB — ensino jurídico,
Brasília, UnB, 1979, p. 49-54). Foi precisamente a desconfiança da tecnocracia na
eficiência do direito como técnica de controle social que deu lugar à elaboração de
novas categorias jurídicas, voltadas para a inserção dos interesses transindividuais
nos mecanismos jurídicos de composição dos contlitos.
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
(praxis), associado a um e outro. Só a ação humana dá a dimensão do poder e não
o arquétipo, a idealidade. O direito é decisão que somente se legitima na base de
formas de organização e regulamentação procedimental apropriadas. Daí o
equívoco da Constituição de 1988 — acrescenta o processualista — ao haver
enunciado gene- rosamente direitos fundamentais sem ter disciplinado
adequadamente a sua dimensão procedimental.44 Essa visão desafia a
possibilidade de se conceber o processo como agir comunicativo, onde as próprias
partes e o juiz estariam em condições de fixar, intersubjetivamente, o significado de
suas ações. O sentido do abuso do direito processual parece assim orientar-se por
um fazer persuasi- vo, por uma relação dialógica na qual todas as pessoas
envolvidas têm a sua hora e a sua vez.
O processo judicial, assim concebido, participa de um novo conceito de razão, como
elaborado por Jürgen Habermas em sua teoria da ação comunicativa, conceito que
nada tem em comum com a visão instrumental, mas que também ultrapassa a visão
kantiana assimilada por Horkheimer, isto é, a concepção de uma razão subjetiva,
autárquica, capaz de conhecer o mundo e de conduzir o destino da humanidade. O
significado do abuso dos direitos processuais seria, pois, o resultado de uma razão
comunicativa, que busca o consenso e respeita a reciprocidade daqueles que
participam do procedimento argumentativo. Resta saber se a dogmática jurídica
pode compartilhar dessa nova orientação ou, de outra forma, se um rnundo ganho
para a técnica está efetivamente perdido para a liberdade, como prenunciava
Georges Bernanos.
5.3 A retórica no campo da ação estratégica e da ação comunicativa
A racionalidade instrumental, como foi visto, resulta de uma deformação da razão
cognitiva. E certo que as ciências não se limitam a um papel meramente descritivo,
deitando raízes em contextos não-científicos, apropriadas por estratégias de poder.
Os cien-
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(44) J. J. Calmon de Passos, Direito, poder, justiça eprocesso: julgando os que
nosjulgam, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 23, 68, 76-80.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
tistas que colaboraram com o nazismo, por exemplo, hoje se justificam falando em
nome do progresso tecnológico. Wernher von Braun, que em 1942 desenvolveu os
foguetes do tipo A4/V2, lança- dos pelos nazistas sobre Londres, matando cinco mil
pessoas, tem P05 depois mudou-se para os Estados Unidos, onde se tornou um dos
diretores da agência espacial norte-americana. Lá desenvolveu o foguete Saturno 5,
que em 1969 levaria a Apolo 1 1 para a Lua. O químico Paul Schlack, cujas
pesquisas deram lugar à produção de uma fibra sintética mais barata do que o
nylon, própria para a produção de pára-quedas, finda a Grande Guerra, passou a
trabalhar como consultor na árca têxtil. O engenheiro Heinrich Nordhoff, que
aperfeiçoou os caminhões militares utilizados pela SS e pelo exército alemão nas
suas ofensivas-relâmpago, assumiu em 1948 a direção de uma das maiores
multinacionais do mundo, quando colocou em prática o velho plano de fabricar um
carro do povo. Sete anos depois a empresa já comemorava a fabricação do
milionésimo automóvel. Nordhoff ganhou notoriedade e fama, recebendo dezenas
de condecorações.45 Enfim, não se pode isolar a produção intelectual do homem,
como se ela fosse um estomo das relações sociais.
Está claro, outrossim, que o contexto da justficação das teorias científicas, da
validação delas, acaba se confundindo um pouco com
(45) Essas reflexões foram tema de uma exposição realizada no Museu de
Transportes e Técnica de Berlim, na qual se reuniu o trabalho de profissionais que
colaboraram com os nazistas, cujo título era Eu servi só à técnica. A frase, que é
uma referência à justificativa apresentada pelo ex-ministro para Armamento e
Munição da Alemanha nazista, a propósito do trabalho que desenvolveu na Segunda
Guerra Mundial, dá a tônica das desculpas utilizadas por muitos técnicos e cientistas
que, de- pois de terem colaborado, direta ou indiretamente, com a política de
extermínio executada pelos nazistas, foram recrutados para trabalhar nos países
aliados. Nessa mostra, conta-se que von Braun, hoje considerado o pai da
astronáutica, procurou mão-de-obra no campo de concentração de Buchenwald,
onde foram mortas mais de 55 mil pessoas. Segundo o organizador do evento,
Alfred Gottwaldt, o tema, técnica, poder e guerra continua atual, o que pode se
confirmar com o fato de hoje a Alemanha exportar armamentos sob a alegação de
que isso gera empregos (Silvia Bittencourt, Ciência afavor da guerra, Folha de São
Paulo, Ciência, 21.05.1995, p. 5-17).
Fim da nota de rodapé
Página 333
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
o contexto da descoberta, ou seja, com as causas, com os fatores sociais,
econômicos e psicológicos que levaram à construção de um determinado modelo
científico. No campo das chamadas ciências humanas, e mais particularmente no
campo do direito, o condicio- namento ideológico é patente. A ciência aqui reproduz
claramente o conflito de classes, o choque de culturas e de gerações, de forma que
se tem de reconhecer que a razão monológica, a razão apofântica, adequada às
chamadas ciências teóricas, não se ajusta à multiplicidade de significados que se
pode retirar das fórmulas e expressões jurídicas, as quais além de descrever,
prescrevem condutas.
Michel Foucault, conforme registro feito no segundo capítulo (seção 2.3), chama a
atenção para o desprezo que o filósofo, homem da verdade e do saber, sempre teve
por aquele que não passava de orador, o homem do discurso, que procurava
conseguir vitórias valendo-se de meia dúzia de palavras de efeito. Essa associação
entre a prática do discurso e o exercício do poder, que aqui ainda é concebida sob a
ótica da filosofia do sujeito, abre espaço, de uma pers- pectiva interdisciplinar, para
uma aproximação entre a teoria social e a filosofia, para uma nova relação entre o
retórico e o filosófico. Em Jürgen Habermas, que também se dedica à análise das
relações sociais a partir do advento da técnica, há uma crítica ao domínio da razão
instrumental, como concebido por Horkheimer. Mas Habermas, partindo de uma
nova teoria da sociedade e da modernidade, além de denunciar essa razão
atrofiada, que se limita ao aspecto cognitivo-instrumental, propõe a superação do
paradigma, a substituição da razão subjetiva por uma razão intersubjetiva. Esta nova
orientação da chamada Escola de Frankfurt, que se aproxima da filosofia
pragmática, tem importantes repercussões na analise do abuso dos direitos
processuais, como se passará a ver.
Habermas, que pertence à segunda geração de integrantes do Instituto de Pesquisa
Social de Frankfurt, inicialmente composto por Adorno, Horkheimer Marcuse e Erich
Fromm, procurou salvar a teoria crítica do pessimismo em que parecia mergulhada,
buscando uma reconciliação entre sujeito e objeto do ponto de vista de uma ação da
teoria comunicativa. Entende que a modernidade produziu uma certa perda de
sentido, provocada pelo esvaziamento das
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
grandes visões de mundo, a par de uma perda da liberdade, resultante do avanço
daburocracja. Distancia-se, contudo, davisão de Horkheimer ao defender a tese de
que esta modernização, 110 campo da cultura e das artes, acabou liberando o
potencial da razão comunicativa, até então sufocado pelas religiões e pela
concepção metafísica do mundo. Aqui, os processos de produção dependem cada
vez mais dos próprios homens e não da tradição e da autoridade. Sucede que a
sobrecarga da capacidade comunicativa no mundo modemo acabou criando
condições para uma disjunção entre o mundo vivido, onde as ações, de caráter
intencional, são presididas pelo entendimento, e o sistema, que é indiferente às
intenções dos atores sociais. Com isto, a racionalidade instrumental, até então
circunscrita ao campo administrativo e econômico, foi-se estendendo a outros
segmentos da vida social.46 Importante registrar, contudo, que o modelo
hermenêutico de Habermas implica uma reconstrução do conceito de mundo da
vida, que o distancia da elaboração desenvolvida por Husserl, presa ao paradigma
da consciência.47
início da nota de rodapé
(46) Sergio Paulo Rouanet, As razões do lluminismo, São Paulo, Companhia das
Letras, 2000, p.158-164e 340-345. No mesmo sentido, v. Barbara Freitag, op. cit., p.
62-65.
(47) Nesse passo, Habermas contrapõe o mundo da vida, conceito assim
reformulado, à concepção sistêmica, adequada à figura de um observador externo.
O modelo sistêmico explica a racionalidade instrumental, avessa ao diálogo,
enquanto a noção de mundo da vida permite entender a sociedade da perspectiva
interna dos atores, inseridos em situações concretas do cotidiano. Diferentemente
do que sucede no conceito husserliano, o mundo da vida, na pragmática-formal dos
pressupostos do agir comunicativo, surge na perspectiva de participação e
reconstrução dos falantes, compartilhado intersubjetivamente. Esta reformula- ção
permite contornar as criticas formuladas,já ao final do terceiro capitulo (seção 3.4), à
fenomenologia husserliana, da qual se disse ser ideaIista. Na visão habermasiana, o
mundo da vida é composto de três planos estruturais: a) a cultura, que se apresenta
como uma espécie de estoque do saber da comunidade, depósito dos conteúdos
semânticos da tradição, onde os participantes se abastecem dos modelos
interpretativos necessários ao processo comunicativo; b) a sociedade, no sentido
estrito, composta dos ordenamentos legítimos que regulam a solidariedade dos
participantes com determinados grupos sociais; c) a personalidade, que
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
Com efeito, o capitalismo passou a interferir cada vez mais na esfera do mundo
vivido, fazendo-se presente em terrenos até então reservados à ação comunicativa,
como é o caso da familia, da educação, do lazer. Surgem, assim, as patologias do
mundo vivido, como conseqüência da sua colonização, seja pelo sistema político
(burocratização) seja pelo sistema econômico (monetarização), num universo
totalmente sistêmico, tal qual descrito na seção anterior, quando se fez referência às
teorias de Parsons e de Luhmann. Enfim, a ruptura com a tradição e a autoridade se
de um lado possibilitou a emancipação de certas esferas da atividade humana, de
ou- tro trouxe a possibilidade de um instrumentalismo perverso.48 Embora
compartilhando em boa medida o diagnóstico crítico sobre a racionalidade
instrumental, feito por Horkheimer, Habermas procura uma alternativa à crítica global
da razão, que também refoge ao conceito sistêmico de Luhmann, caracterizado por
princípios normativos e instâncias auto-regulatórias da integração social.49
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
constitui um conjunto de competências que qualificam um sujeito para participar das
interações, permitindo-lhe construir e consolidar sua identidade Quando entra em
cena o agir estratégico, o mundo da vida vê-se neutralizado, com o que perde sua
força coordenadora da ação, deixan- do de ser fonte de garantia do consenso
(Jürgen Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro,
Tempo Brasilei- ro, I 990, Coleção Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série
Estu- dosAlemães, p. 86-101).
(48) Sergio Paulo Rouanet, As razões do lluminismo, São Paulo, Companhia das
Letras, 2000, p. 1 58- I 64. Para o autor, a anexação do mundo da vida por parte do
sistema, governado pela razão instrumental, conduziu ao que Max Weber chamou
de perda de liberdade do homem, crescentemente aprisionado numa armadura de
ferro, ou ao que, mutatis mutandis, Lukács denominou de alienação (idem, p. 341-
342). Neste exato sentido, ver também Barbara Freitag (op. cit., p. 62).
(49) Habermas entende que o modelo sistêmico é uma descrição adequada das
formas de legitimação tradicional, das relações estratégicas, que visam ao poder.
Mas nem tudo está perdido para esta racionalidade sistêmica. Há valores, normas e
processos de entendimento mútuo que têm de ser analisados sob outro ângulo. A
esperança está em reconquistar para o mundo vivido os espaços usurpados pelo
sistema, ou seja, contrapor a comunicação à violência, passar de uma ação
instrumental para
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
A teoria da ação comunicativa situa-se no campo dos atos de fala. Partindo do
modelo desenvolvido por Austin e Searle, Habermas passa a distinguir entre ações
no sentido estrito e ações Iingüísticas. Nestas, pessoas se comunicam visando a um
entendimento acerca de alguma coisa que está no mundo. Na ação não-Iingüística,
vale dizer, nas atividades simplesmente orientadas para um fim, o terceiro
observador está impossibilitado de dizer acerca das intenções dos falantes, pois ela
não revela a partir de si própria o modo como foi planejada. Somente os atos de fala
preenchem essa condição. Assim, quando alguém diz condeno, o ouvinte tem a
possibilidade de inferir do conteúdo semântico do proferimento o modo como a sen-
tença proferida está sendo utilizada. Enfim, as ações lingüísticas são auto-
referenciais; nelas o componente ilocucionário determina o sentido do que é dito
através de uma espécie de comentário pragmá- tico. Ao dizer alguma coisa, faz-se
algo e ao realizar-se uma ação de fala, algo também é dito.50
Habermas registra que somente uma segundapessoa, que abandone a posição de
observador extemo, está em condições de captar o sentido performativo de uma
ação de fala. Só aqueles que comparti- lham intersubjetivamente a mesma
linguagem, o mesmo mundo da
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
uma ação comunicativa (op. cit., p. 83-87). Segundo Pietro Barcellona, Habermas
tenta reagir ao processo de dessubstanciação, desenvolvido pela teoria sistêmica de
Luhmann (no qual o direito é posto por decisão, sem qualquer compromisso com a
verdade), buscando um apriorido entendimento, que não é, todavia, confiado à
intimidade da consciência mas à vocação universalista da Iinguagem, que nos impõe
co- municar segundo o princípio da verdade. Com isto, Habermas opõe-se ao
decisionismo de Luhmann (Pietro Barcellona, O egoísmo maduro e a insensatez do
capital, São Paulo, Icone, 1 995, p. 65-68). Ver também, nesse sentido, a propósito
dos pressupostos da teoria da ação comuni- cativa, as considerações de Sergio
Paulo Rouanet (As razões do ilumi- nismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2000,
p. 164-166 e 185-187) e de Barbara Freitag (op. cit., p. 62 a 65).
(50) Jürgen Habermas, op. cit., p. 65, 66, 1 i3-122. Para Habermas, a força
ilocucionária, diferentemente do que ocorre a Austjn, é um componente racional do
ato de fala. O elemento racional não se Iimita à proposição assertórica (Idem, p. 81 e
l24).
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
vida podem entender a reflexibilidade da linguagem natural. Nesse sentido, dá um
importante passo na transição de uma filosofia do sujeito, onde a razão está limitada
ao aspecto cognitivo-instrumental, para uma filosofia comunicativa. Trata-se de
abandonar aquela perspectiva da razão monológica para recompor a trilogia
kantiana (razão cognitiva, razão normativa e razão das vivências subjetivas) na base
do reconhecimento de uma comunidade lingüística, que pressupõe a
intersubjetividade de pelo menos dois atores voltados para o entendimento mútuo. O
sucesso do ato ilocucionário ultrapassa a simples compreensão do que é dito,
dependendo do assen- timento racionalmente motivado do ouvinte. Em outras
palavras, os fins ilocucionários só podem ser atingidos através da coopera- ção do
inter1ocutor.51
Mas afelicidade da ação lingüística, vale dizer, o sucesso dos proferimentos, varia
conforme se esteja cuidando de um agir estratégico ou de um agir comunicativo.
Trata-se de modos pelos quais os falantes empregam seus conhecimentos visando
a uma finalidade, mas de óticas diferentes. No agir comunicativo, o saber é
empregado com vista ao entendimento, ao passo que no agir estratégico tem-se em
conta a simples ação orientada para um fim, na qual não importam o entendimento,
a convergência intersubjetiva. Neste último caso, ingressa-se no universo das
relações de poder, onde o interlocutor obedece cegamente a imperativos a fim de
evitar sanções. Aqui não se cogita de composição entre os falantes, pois aquilo que
se obtém através da força, da ameaça, não é acordo. Quando uma relação de poder
é rejeitada, entra em cena um contrapoder, sem que se tenha critério para dizer
dajustiça deste ou daquele.52
Início da nota de rodapé
(51) Idem, p. 67-70.
(52) No agir estratégico, as influências externas à Iinguagem assumem o papel de
coordenação antes exercido pelos atos de fala. Há uma emasculação da força
ilocucionária e a linguagem, assim debilitada, passa a preencher apenas as funções
de informação que restam quando se retira do entendimento lingüístico a formação
do consenso. Nesse contexto, a ameaça cumpre um papel instrumental. Ela não é
propriamente um ato ilocucionário porque não visa à tomada de decisão
racionalmente motivada por parte do destinatário (Habermas, op. cit., p. 74 e 75).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Diversamente, no agir comunicativo, hápretensões de validade que podem inclusive
ser rejeitadas, criticadas. No agir estratégico, o sucesso da ação depende de uma
racionalidade dos planos individuais de ação, ao passo que no agir comunicativo o
entendimento depende de uma racionalidade que se manifesta nas condições
requeri- das para um acordo obtido comunicativamente.53 É importante dizer, no
entanto, que o agir estratégico não se confunde com a ação instrumental. A ação
estratégica busca exercer influência sobre as outras pessoas na base de regras
racionais de escolha. Na ação instrumental, diferentemente, o objetivo é transformar
o mundo por meio de regras técnicas.
Há certas sociedades em que as relações de poder predominam sobre as relações
comunicativas e isto por força de um desvio do paradigma da comunicação. Assim
como Wittgenstein concebia a figura dos jogos de linguagem espúrios, distorções
consistentes em confundir diferentes formas de vida, Habermas entende que a in-
cursão das relações de poder no campo da argumentação gera deformações
ideológicas, pois trata-se de jogos de racionalidade distintos, deforrnas de vida
diversas. E inconcebível conter a riqueza de significações da argumentação no
espartilho das demonstrações lógicas ou empíricas. No agir estratégico a linguagem
natural é utilizada apenas como meio para transmitir informações, ao passo que na
interação comunicativa ela se mostra também como fonte de integração social.
Aqueles que interagem no processo de argumentação tem de estar atentos às
armadilhas do poder, à possibilidade de manipulações de toda sorte, às falácias.54
A compreensão disto exige que se entenda uma noção até aqui apenas enunciada,
qual seja, o conceito de pretensão de validade.
As questões de significado, no campo da pragmática universal de Habermas, não
podem ser dissociadas das questões de validade.
Início da nota de rodapé
(53) Idem, p. 70, 72, 128 e 130. Também nesse mesmo sentido, Habermas,
Consciência Moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro, Tempo BrasiIeiro, 1 989,
Biblioteca Teinpo Universitário, vol. 84, Estudos Alemães, p. 79.
(54) Idem p. 7 1.
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
o entendimento possui um conteúdo normativo que ultrapassa o nível da
compreensão de uma expressão gramatical. A compreensão de um proferimento
implica entender-se com alguém sobre algo com o auxílio de uma expressão havida
como válida. Assim, não é possível saber o que significa uma expressão lingüística
sem que se saiba também como utilizá-la para entender-se com outrem. Dessa
forma, a teoria da ação comunicativa rompe com aquela visão representativa,
própria da filosofia do sujeito, que enxerga o problema da validade do proferimento
como relação entre a linguagem e o mundo, com o que a validade fica reduzida à
verdade. Na linha do neopositivismo, Habermas reconhece que os enunciados não
ser vem apenas para representar fatos. Rompendo com aquele reducionismo, diz
que a representação constitui apenas uma das três funções originárias da
linguagem, que é utilizada também para expressar intenções do falante e firmar
relações com o destinatário do proferimento.55
Início da nota de rodapé
(55) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos
Alemães), p. 75 e 77, e Consciência Moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1989 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 84, Série Estudos
Alemães), p. 79-84. Habermas observa que as teorias do significado mais
conhecidas prendem-se a uma única função da Iinguagem, impregnada da relação
sujeito-objeto, que só permite pensar o aspecto cognitivo e instrumental do processo
comunicativo. A tradição da teoria ontológica da verdade (teoria da
correspondência), que se encontra desde a semântica de Frege até o primeiro
Wittgenstein, é rompida pela teoria do significado enquanto uso, inaugurada pelo
segundo Wittgenstein. Mas a teoria dos atos de fala, segundo Habermas, ao mesmo
tempo em que supera a filosofia do su- jeito, ressalta a importância das relações
interpessoais, no que transcende também a visão do segundo Wittgenstein, presa
ao campo dos jogos particulares de linguagem (Habermas, Pensamento pós-
metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1 990, Biblioteca
Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Alemães, p. 74-79, 109- 1 13). Como
observa Manfredo Araújo de Oliveira, opera-se em Habermas uma reconstrução da
análise lógica, que tem em conta não só a experiência sensória, a observação (à
qual ficou Iimitado o positivismo lógico), mas também a experiência comunicativa, a
compreenção O intérprete,
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Há de considerar-se, pois, além do aspecto cognitivo e instrumental da linguagem,
os aspectos normativo e estético-expressivo. A cada um deles corresponde
determinado tipo de proposição, que os locutores invocam visando ao entendimento
mútuo: a) aquela que se refere ao mundo objetivo das coisas; b) aquela que diz com
o mundo social das normas; c) aquela relativa ao mundo subjetivo das vivências e
emoções. O agir comunicativo envolve, portanto, ações de fala nas quais o locutor,
valendo-se daforça do argumento, busca convencer o outro não só da verdade da
proposição (a), como também de sua correção (b) e de sua veracidade subjetiva (c).
No dizer de Habermas, a guinada epistêmica da semântica da verdade está em que
não se pode mais considerar a questão da validade de uma proposição como nexo
objetivo entre linguagem e mundo. A argumentação não se reduz à tentativa de
convencer o outro da verdade daquilo que se afirma (a), envolvendo igualmente uma
pretensão de reconhecimento dajustiça das normas invocadas (b) e da sin- ceridade
da expressão dos sentimentos do falante (c). Esta nova concepção da verdade, que
pressupõe o consenso entre aqueles que participam da ação comunicativa, não
decorre de constrangimen- tos lógicos ou empíricos, mas sim da força do melhor
argumento, da sua motivação racional.56
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
compreendedor do sentido, faz sua experiência fundamentalmente como
participante de uma comunicação na base de uma relação intersubjetiva com outros
indivfduos (ManfredoAraújo de Oliveira, op. cit., p. 324).
(56) Habermas, Pensamento pós-metaflsico: estudosfilosóficos, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1990, (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos
Aleinães), p. 80-82, e Consciência moral e agir co- municativo, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1989, (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 84, Série Estudos
Alemães), p. 79-84. Como ob- serva o autor, essas pretensões de validade podem
ser aceitas inques- tionavelmente (nesse caso, o entendimento consensual pode
dar-se de imediato), ou ser recusadas (nesse caso, o Iocutor tem de apresentar
novas provas para justificar suas dúvidas, cabendo ao outro apresentar contraprovas
parajustificar suas afirmações originais). Inicia-se, assim, um jogo de argumentação,
com recíprocas interferências, no qual a posição dos participantes vai-se ajustando
até que cheguem a um consenso (Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos,
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série
Estudos
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
A reviravolta pragmática de Habermas, assim, busca suas bases num conceito
bidimensional de sociedade, considerada em seu sentido amplo. No mundo vivido,
tem-se o espaço das interações espontâneas, no qual a verdade é fruto do
consenso, este obtido por meio da discussão, onde todos os falantes participam em
igualdade de condições. A força do argumento reside na capacidade de convencer
os participantes, vale dizer, na capacidade de motivá-los a aceitar uma pretensão de
validade, que tanto se pode colocar no nível do discurso teórico (verdade das
proposições), do discurso prático (justiça das normas de ação), como também no
campo da crítica estético-expressiva (sinceridade dos proferimentos), como vis- to
há pouco. Na esfera sistêmica, por sua vez, as ações são regidas por uma
racionalidade instrumental, própria da moderna burocra- cia, que foi anexando
aquela razão comunicativa, à medida que as sociedades se tornaram mais e mais
complexas. A teoria do agir comunicativo, segundo a figura de linguagem utilizada
por Barcellona, é o antídoto mais poderoso à lógica funcionalista e à teoria sistêmi-
ca, ambas expressão do agir instrumental, que opera segundo o esquema meio-fim,
prescindindo, por isso, de qualquer recurso à motivação racional.57
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
Aleniães, 1 990, p. 80-82). Diga-se que a princípio seriam cinco as pretensões de
validade, que incluem, além daquelas enunciadas, as seguintes: o falante deve
escolher um expressão inteligível, visando ao entendimento mútuo — inteligibilidade;
o falante deve demonstrar as razões da preferência de um determinado valor em
relação a outro — adequação dos padrões de valor (Haberinas, Teorías de la
verdad, 1 972, in Haberinas, Teoría de la acción comunicativa: complementosy
estudios previos, 4. ed. Cátedra, 1 984, Colección Teorema-Serie Mayor p. 1 33- 1
58). Todavia, como observa Manuel Atienza (op. Cit., p. 306-307), citando José M.
Mardones (Razón comunicativa y teoría crítica, Universidad del País Vasco, 1985,
págs. 1 10 e ss.), estas duas pretensões de validade acham-se inseridas no
contexto da tríade validade-correção veracidade. A inteligibilidade diz com o caráter
prévio da situação ideal de fala e a adequação dos padrões defala, que está no
campo da critica estética, também se insere como expressão de vivências
subjetivas, a par da sinceridade (ou veracidade).
(57) Pietro Barcellona, op. cit., p. 67.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Como já assinalado, ateoria do agircomunicativo tem um novo enfoque da ação
instrumental, que se revela no conceito do agir estratégico, também voltado para o
sucesso, no que difere da ação comunicativa, que tem em conta o entendimento
mútuo. Na interação estratégica busca-se exercer influência sobre as outras
pessoas na base de supostas regras racionais de escolha. De outra forma, a ação
instrumental, não-interativa e não necessariamente social, prescinde de qualquer
recurso à motivação racional. O que importa é a adequação entre meio e flm, a
eficácia de um expediente qualquer para influir sobre o comportamento humano. No
agir estraté- gico, as deformações induzidas pela ideologia surgem na forma de
influências externas à linguagem, as quais assumem o papel de coor- denação
antes exercido pelo entendimento nos atos de fala. Há uma emasculação da força
ilocucionária e a linguagem, assim debilitada, passa a preencher apenas as funções
de informação que restam quando se retira do entendimento lingüístico a formação
do consenso. O ator social, a pretexto de levantar pretensões de validade em
relação ao mundo objetivo das coisas (verdade), ao mundo social das normas
(correção) e ao mundo subjetivo dos afetos (sinceridade), desenvolve um discurso
ideológico que acaba se legitiman- do na atitude passiva do interlocutor, incapaz de
fazer a crítica. Resta saber, a esta altura, se o discurso judicial é meio de ação
comuni- cativa ou de ação estratégica.
Habermas entende que o direito integra a esfera cultural, um compartimento do
mundo vivido que está preservado da ameaça da esfera sistêmica. Neste aspecto,
sua visão destoa do ponto de vista weberiano — que vê na dominação legal a
estrutura modema do Estado e da empresa capitalista privada —, tanto quanto da
análise desenvolvida pelas teorias sistêmico-funcionalistas. Habermas acredita que
é possível estabelecer pretensões emancipatórias para os atores sociais na base da
ação comunicativa, no que também se liberta da visão pessimista de Horkheimer.
Aliás, desta perspectiva instrumental, desenvolvida ao início do presente capítulo,
vinculada quase sempre a teorias jurídicas que se proclamam não-ideológicas, a
exemplo do formalismo kelseniano, o processo judicial revelou-se campo fértil para a
prática da violência simbólica. A ideologia tecnocrática também se faz presente na
dogmática processual
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
da chamada terceirafase metodológica, que em nome do Estado Democrático de
Direito e da finalidade social do processo, desenvolveu formas de controle da
participação das massas no interior do Estado. A burocratização e a expansão
crescente do direito levaram a uma regulamentação generalizada da vida. O preço
do bem-estar generalizado, de uma justiça social ampliada revela-se, no campo do
processo judicial, no enfraquecimento do estereótipo da imparcialidade do juiz, que
passa a interferir cada vez mais na relação entre as partes.
Na ação comunicativa, o esquema justificativo da ação está pautado em outro tipo
de racionalidade, que busca a solução dos conflitos na base da comunicação e da
integração dos atores sociais. O que as partes fazem, ao manifestar-se nos autos,
revela fins ilocucionários que não podem ser atingidos por outro caminho que não
seja o da cooperação. O sucesso ilocucionário, que ultrapassa o nível da
compreensão daquilo que é dito, depende da concordância racionalmente motivada
do ouvinte, de forma que a identificação de uma prática abusiva estará sempre na
dependência de uma verdade estabelecida consensualmente. Assim, o universo
simbólico produzido pelas partes, com recurso a expressões vazias de conteúdo
referencial (palavras ocas), mostra-se não mais como exercício da violência, do
poder, mas sim como campo de interação, onde o sentido do que se diz e do que se
faz é estabelecido de maneira cooperativa. Por isso, se a parte, depois de ter
levantado pretensões de validade em relação a sua manifestação processual, for
confrontada com críticas do interlocutor, terá de apresentar novos argumentos
parajustificar sua posição inicial. Suponha-se que o executado apresente embargos
à arrematação, dizendo que não lhe pertence o bem penhorado. Suponha-se,
outrossim, que o embargado impug- ne a afirmação fatual (propriedade ou posse do
bem), a justiça da alegação (suscitando ocorrência de preclusão) e a sinceridade do
proferimento (suscitando o uso de expediente protelatório). Caberá ao embargante
apresentar contraprovas a fim de convencer não só o juiz, mas também o
embargado, da verdade fatual, da justiça normativa e da verdade subjetiva, com o
que estará buscando afastar a pecha de litigante de má-fé.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Assim, longe de discutir as intenções da parte, aquilo que está nos desvãos de sua
consciência, à maneira de um psicologismo de base subjetivista, como visto no
segundo capítulo (seção 2.2), importa mesmo considerar a motivação discursiva.58
Todo proferimento deve estar em condições de justificar-se criticamente com base
no confronto com argumentos e razões comunicativas. As proposições são racionais
não porque correspondam a uma verdade objetiva ou subjetiva, mas sim porque os
proferimentos ilocucionários atendem a critérios de argumentação convincente,
capaz de estabelecer o consenso em torno de símbolos que não têm uma referência
à realidade física. A retórica move-se, pois, num campo social, na esfera de uma
razão ampliada, que não se funda mais na relação sujeito-objeto e sim na relação
entre sujeitos. O reconhecimento da existência de uma comunidade Iíngüística, da
intersubjetividade dos atores processuais, na qual o significado de um proferimento
ilocucionário (dizer/fazer processual; manifestação/prática processual) não é posto,
mas sim discutido, permitirá compreender de que
Início da nota de rodapé
(58) Essa distinçäo vem ao encontro do corte epistemológico traçado nas últimas
páginas do capítulo anterior, quando se disse que o realismo psicológico, deixando
de lado o elemento normativo e axiológico da experiênciajurídica, acaba reduzindo o
sentido da norma à vontade do juiz, com o que fecha os olhos para a existência de
aspectos racionais da atividade judicial, cuja análise não pode ficar circunscrita às
idiossincrasias do julgador. Como adverte Manuel Atienza, a propósito de realismo
jurídico de Jerome Frank, confunde-se aqui o campo da descoberta com o campo
dajustificação. E possível que as preferências, os aborrecimentos pessoais, os
preconceitos e o estado de ânimo do juiz possam interferir na decisão judicial. Mas
isto não afasta a necessidade de justificar a decisão e tampouco converte esta tarefa
em alguma coisa impossível (Manuel Atienza, As razões do direito — teorias da
argu- mentação jurídica, São Paulo, Landy Editora, 2000, p. 26). A lógica ocupa-se
do campo da justitïcação e não do campo da descoberta (a respeito, v. Wesley
Salmon, op. cit., p. 25, e Irving Copi, op. cit., p. 20 e 2 1). Na esfera da lógicajurídica
ou da chamada teoria da argumentação jurídica, v. Manuel Atienza, op. cit., p. 84,
Karl Engisch, op. cit., p. 84 e 85, e Alaôr Caffé Alves, Lógica — pensamento formal e
argumentação — elementos para o discursojurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 58,
59,61,73,78, 103, 104, 142e 143).
Fim da nota de rodapé
Página 345
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
forma se dá a legitimação discursiva das decisões judiciais. A fixação do significado
de uma conduta abusiva não se resume à obser- vância das regras procedimentais,
a formas de integração sistêmica. Há outras instâncias de legitimação, que dizem
com questões dejus- tiça e com a subjetividade, que estão no campo da integração
social.
O conceito de consciênciajurídica coletiva, como expressão das opiniões culturais
dominantes, que informa a noção de antijuridacidade (mais ampla que ilicitude)
debaixo da qual estaria o abuso do direito, como visto flO primeiro capítulo (seções
1.2 e 1.4), ganha aqui uma outra interpretação, que o liberta do movimento pendular
do pensamentojurídico, ora inclinado à transcendência do justo (jusnaturalismo) e
ora à imanência do justo (relação homemconsciência). Na concepção
habermasiana, a compreensão da realidade não se dá através do universal, dos
princípios, daquilo que é eterno, do gênero e da diferença. Tampouco a razão
fraturada de Kant, desmembrada nas esferas autárquicas da razão pura, da razão
prática e da crítica do juízo, permite compreender a inserção das produções teóricas
no contexto do uso, da ação e da comunicação. A mediação para as objetivações
histórico-culturais do espírito humano está localizada nO campo da linguagem e não
nos fenômenos da consciência. São as práticas materiais que estabelecem o sentido
e não a consciência.59 Importa considerar não um suposto fundamento ontológico
dos princípios gerais de direito, mas sim a utilização desses chamados princípios
como condição retórica de sentido, invocados para contornar a estrita legalidade,
como se dis- se no primeiro capítulo (seção 1.4).60
Da perspectiva de um agir comunicativo, as partes processuais, ao invocar
pretensões de validade, apresentam mais que fatos. Submetem à apreciação do juiz
um caso, alegando que suas afirmações
Início da nota de rodapé
(59) Neste sentido, v. Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit, p. 338-348, e Sergio
Paulo Rouanet, As Razões do iluminismo, São Paulo, Compa- nhia das Letras,
2000, p. 173.
(60) A teoria do direito identifica diversos focos de significação para a palavra
princípios. Cada um deles cumpre uma determinada função retórica (a respeito, ver
Genaro Carrió, Princípios jurídicos e positivismo jurídico, Buenos Ayres, Abeledo-
Perrot, s.d., p. 33-38).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
sobre os fatos são verdadeiras e que suas formulações são justas e sinceras. A
verdade consensual está no confronto dessas versões e cada versão depende de
um particular interesse de quem vê o fato e da maneira como o caso é exposto.
Ojuiz, por sua vez, não se limita a contemplar o caso, pois embora aquela situação
possa ser subsumida a determinada norma, reina entre as partes discordância
acerca da subsunção. Assim como a argumentação da parte está institu- cionalizada
por regras que dizem com o ônus da prova, o julgador também está sujeito a regras
de avaliação da prova, de sorte que a versão dos fatos vai sendo reconstruída
diversas vezes, tal como apresentada pelas partes e tal como se coloca na
decisãojudicial da primeira e das demais instâncias.6
A força ilocucionária de uma declaração sobre fato inexistente revela, no campo do
processo judicial, a impossibilidade de reduzir a argumentação jurídica à lógica dos
enunciados. Ao manifestar-se nos autos, a parte pratica um ato cujo significado será
estabe- lecido na base da interação dos sujeitos processuais. Existe aqui uma
passagem do plano do discurso para o plano da ação. Como foi visto no segundo
capítulo (seção 2. 2), a reforma ao Código de Proces- so Civil, instituída pela Lei
6.771/80, ao alterar as regras do artigo 17 e incisos, afastou-se mais e mais dos
limites éticos orientados pela dicotomia verdade objetiva e verdade subjetiva. Ao
fazê-lo, aproximou-se de um conceito social de verdade, orientação que se foi
aprofundando na reforma dos anos 90 e 2.000. O paradigma da ação comunicativa
permite entender, então, como uma declaração sobre fato inexistente, na base das
pretensões de validade invocadas pelas partes, é incorporada por esse processo
argumentativo, que mais não visa senão ao consenso, ou seja, à satisfação do
interesse social da paz jurídica, através da aplicação da lei ao caso concreto,
conforme está na Exposição de Motivos do Código.62 A ameaça de
Início da nota de rodapé
(61) Neste sentido, vale lembrar a advertência de Jan Schapp, quando afirma que a
máxima da mihifactum, dabo tibi ius não dá uma imagem exata do quadro
processuai (Jan Schapp, Problemasfundamentais da metodo- logiajurídica, Porto
Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 42).
(62) A teoria do agir comunicativo é o pano de fundo da recente elaboração teórica
de J. J. Calmon de Passos, que refuta a visão instrumental do
Fim da nota de rodapé
Página 347
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
sanção à parte que não estiver em condições de refutar as objeções (dos outros
sujeitos processuais) quanto à verdade, a correção e a sinceridade daquela
declaração, coloca, entretanto, a delicada al- ternativa entre discernimento e
violência, uma vez que as ações de fala não podem ser realizadas com a dupla
intenção de chegar a um acordo com o destinatário e, ao mesmo tempo, produzir
algo nele de maneira causal.63 Isto implica considerações acerca da própria
fundamentação do direito moderno, que encontra em Hobbes e Locke, ainda que de
prismas diversos, explicações contratuaistas. 64
O direito, na visão de Habermas, é uma grande reserva de racio- nalidade
comunicativa. Sua dimensão retórica é o mais expressivo testemunho de sua
capacidade de resistência ao poder de expansão dos subsistemas de ação
instrumental. A elaboração de uma teoria do abuso do direito surgiu precisamente
nesse contexto do imperialismo individualista, como forma de oposição à
colonização cres- cente de segmentos cada vez mais amplos do mundo da vida.
Capturada pela racionalidade instrumental da sociedade de massas — que passou a
desenvolver códigos mais inclusivos, além do binário lí- cito-ilícito, diante do desafio
das novas demandas sociais —, vê-se agora recuperada para a filosofia. E inegável,
contudo, que a dinâmica do moderno processo judicial, conquanto orientada para a
conciliação (haja vista a regra do artigo 125, Iv, do CPC), não pode prescindir da
obediência. Esgotadas as tentativas de entendimento, o sentido é imposto por
decisão. Mas a imposição nem sempre é sinônimo de puro arbítrio. O sentido
pragmático da expectativa de obediência à ordem estabelecida está no
reconhecimento da au- toridade, ou seja, no reconhecimento dajustiça da norma
invocada,
Início da nota de rodapé
Continuação da nota de rodapé da página anterior
processo, ao dizer que o direito só existe depois de produzido e enquan- to
produzido (op. cit., p. 22, 55, 56, 58, 69, 74, 76, 89, 91, 98 e 100).
(63) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóflcos, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1 990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos
Aleniãe.s), p. 7 1 e 1 29.
(64) É o que Habermas, citando Parsons, reconhece como problema hobbesi ano
(Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1
990, Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Alemães, p. 83).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
critério que integra as pretensões de validade do agir comunicati- vo. Por mais
fracos que sejam os contextos normativos — diz Habermas — eles são suficientes
para autorizar um falante a ter uma expectativa de comportamento, que pode ser
criticada pelo ouvinte. O destinatário do ato de fala pode desobedecer aos
comandos que ele não considere legítimos, desde que estas ordens sejam
proferidas no contexto da ação comunicativa.65
A dissolução do fundo normativo, segundo Habermas, mostra-se sintomaticamente
na estrutura se, então da ameaça, que no agir estratégico assume o lugar da
seriedade e da sinceridade do falante... A expressão mãos ao alto!, proferida pelo
assaltante de banco que aponta o revólver para o caixa, exigindo a entrega do di-
nheiro, mostra de modo dramático que as condições de validade normativa foram
substituídas por condição de sanção... Somente no caso-limite do agir
manifestamente estratégico é que a pretensão de validade se encolhe,
transformando-se numa crua pretensão de poder, apoiada num potencial
contingente de sanção, não mais re- gulado convencionalmente e não mais
deduzível gramaticalmen- te.66 Mas esta regulação convencional também exige
uma res- posta à questão da legitimidade do direito, que consiste em saber quem
decide sobre as regras de convivência. A resposta de Habermas parece apontar
para a imagem de um direito institucionalizado, posto por decisão. O que diferencia
a ordem de um gângster, para que lhe seja entregue uma determinada soma em
dinheiro, da ordem de um funcionário de finanças, que exige o pagamento de um
tributo, é o caráter normativo.67 Qualquer semelhança entre Habermas e Kelsen,
garantem alguns, não é simples coincidência.68 A solução haber- masiana, de fato,
não parece ser muito diferente da resposta que
Início da nota de rodapé
(65) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóficos, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, I 990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90,Série
EstudosAlemães), p. 1 16 e 134.
(66) ldem, p. 134.
(67) Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra Arménio Amado, 1979, p.
26.
(68) Ver, neste sentido, João Bosco da Encarnação, Filosofia do direito em
Habermas: a hermenêutica, 1997, p.121, 196, 197e 203.
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
os juristas costumam dar ao problema jusfilosófico do fundamento de validade das
normas. Entretanto, ao fundar a expectativa de obediência numa razão discursiva,
Habermas aproxima-se mais da explicação de Hart, que recorre à noção de uma
norma de reconhecimento, nem válida nem inválida, mas que simplesmente existe
como ponto de partida para a argumentação jurídica. Aqui se pode identificar a
dimensão do uso.69
Quando o ouvinte compreende e aceita a oferta contida num ato de fala que se
desenvolve no contexto da ação comunicativa, é possível dizer que o ato
ilocucionário foi bem sucedido. Além disto, pode ocorrer também que o ouvinte seja
influenciado a comportar- se de acordo com o ato de fala (sucesso perlocucionário).
Entretan- to, se as pretensões de validade levantadas pelo falante estão mina- das,
configura-se aqui um rompimento unilateral dos pressupostos do agir orientado ao
entendimento. Essa ação estratégica parasitária do uso convencional da linguagem
fracassa tão logo o destina- tário do ato de fala se aperceba de que o falante visava
a uma finalidade que não estava posta consensualmente. Em outras palavras, havia
um suposto consenso, fruto da dissimulação daquele que invocou as pretensões de
validade O abuso dos direitos processuais, na visão de uma teoria crítica, nada mais
é que a contaminação de um agir comunicativo por um agir estratégico. O
significado ilocu- cionário do ato acaba se desfigurando no momento em que cumpre
função perlocucionária diversa. E o caso, por exemplo, da colusão, uma das formas
de uso anormal do processo, em que os litigantes, previamente combinados,
praticam atos processuais (força ilocu- cionária) com vista à produção de efeitos
(força perlocucionária) diversos daquele que resultava da manifestação mesma das
partes. Nesta situação perversa, os atos de fala das partes não são propria- mente
ilocucionários, pois não visam a uma escolha racionalmente motivada por parte do
julgador, que decide na errônea suposição de
Início da nota de rodapé
(69) Herbert L.A. Hart, O conceito de direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1986, p. 1 l 1-121 Diga-se de passagem que J. L. Austin, no quai se inspirou
Habermas, tinha Hart como um dos seus interlocuto- res, como expressamente
mencionado por Austin em nota de agradecimento (J. L. Austin, op. cit., p. 25, nota
9).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
uma ação comunicativa. Quando o iuiz, convencendo-se de que as partes querem
se servir do processo para a prática de ato simulado, obsta ao uso anormal do
processo (art. ¡ 29 do CPC), está rejeitando as pretensões de validade invocadas
pelos supostos litigantes.70
No discurso processual o agir estratégico é quase sempre latente. As partes nunca
dizem tudo até o fim, o que lhes permite voltar atrás quando pilhadas em alguma
situação que possa comprometer as pretensões de validade inicialmente
invocadas.71 Os sujeitos processuais, além disto, utilizam-se de palavras ocas
como se elas tivessem uma dimensão cognitiva. A disputa em torno de uma ver-
dade subjetiva ou de uma verdade objetiva, como limite ético da conduta processual
das partes, levanta pretensões de validade que
Início da nota de rodapé
(70) Idem. p. 72-75, 96 e 97. O exemplo típico que bem ilumina o assunto é o do
devedor que, para fraudar os credores, simula débito a um comparsa, em favor do
qual assina promissórias. O processo para a cobrança do débito simuiado, nesse
caso, visaria a frustrar o pagamento dos credores ou, pelo menos, a aviltá-lo (Hélio
Tomaghi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, São Paulo, RT, 1974, p.
401). E o caso também da parte que confessa dívida, numa ação que lhe é
promovida pela companheira, comprometendo, assim, a meação da esposa na sa-
tisfação do suposto débito (TA Rio de Janeiro, 1 a Câmara Civil, Ap. 95.677, rel. Juiz
Perlingeiro Lovisi, 22.1 1.83). Também é o caso da si- mulação fraudulenta entre
exeqüente e executado para penhorar bens da pessoajurídica em que a maioria das
quotas pertence ao executado, em razão de dívida que por ele já fora paga (1 .° TAC
São Paulo, 8. Câ- mara, Ap. 358.690, rel. Costa de Oliveira, 16.09.86). Ambos
acórdãos estão em Darcy Arruda Miranda Jr. et alii, CPC nos tribunais, vol. 3, São
Paulo, Jurídica Brasileira, p. 2001-2002.
(71) ParaMarilena Chauí, o discurso ideológico é feito de espaços em bran- co. E
graças a essas lacunas que o discurso se apresenta como coerente. Se o discurso
disser tudo que pretende dizer ele se autodestrói como ideologia (Marilena Chauí,
Cultura e democracia: o discurso compe- tente e outrasfalas, 3. ed, São Paulo,
Moderna, São Paulo, p. 21-22). E comum na doutrina jurídica o argumento de que o
advogado não está obrigado a dizer toda a verdade, mas apenas aquela porção da
verdade que possa estar contida nas razões de seu cliente (neste sentido, v. Ruy de
Azevedo Sodré, A ética profissional e o estatuto do advogado, São Paulo,LTr,
1975,p. 110).
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
não se sustentam senão na base da ocultação do uso performativo da linguagem
processual, vale dizer, do seu contexto pragmático. O sucesso ilocucionário de um
testemunho, por exemplo, pode ver- se comproinetido pela desconsideração de uma
simples formalidade. Um uso estratégico parasitário do agir comunicativo consistiria,
neste caso, em plantar alguma nulidade na colheita da prova oral desfavorável à
parte, para depois, invocando o error in procedendo, poder tirar vantagem da
anulação do ato processual. Essa prática abusiva alimenta-se das pretensões de
validade pressupostas no agir comunicativo.
A esta altura, impõe-se retomar o desafio de dar resposta a uma questão que está
presente no primeiro e segundo capítulos e que consiste em saber se a ação
orientada para finalidades individuais, na base de estratégias de influência, que
Habermas vê como desvio do paradigma da comunicação, como deformação
ideológica, não seria ela mesma expressão de uma particular racionalidade do di-
reito, em vez de simples irracionalismo oportunista e parasitário. Afinal, a decisão
judicial é um ato de poder, que se revela não ne- cessariamente numa relação de
força, mas num conjunto simbólico por meio do qual se procura influenciar a ação
dos participantes na base da ameaça da sanção (poderjurídico). A violência
simbólica estaria na própria gênese do discurso jurídico, não se revelando apenas
em contextos de frustração do entendimento. No dizer de Francisco Ramos Méndez,
o processo não é uma disputa entre ca- valheiros, cheia de flores e mesuras.... Nele
se refletem as mesmas tensões do resto da sociedade.72 Avalizar esta interpretação
implicadia reconhecer que o abuso do direito processual, como agir estratégico, não
é parasitário do agir comunicativo e tampouco uma alternativa para a ação
comunicativa fracassada. Engendrado nas relações de poder constitutivas do próprio
direito da sociedade moderna, o abuso dos direitos processuais somente ganha
sentido no processo de produção concreta do direito. Ainda aqui Habermas
vislumbra vestígios de mundos da vida compartilhados intersubjetivamente,
Início da nota de rodapé
(72) Francisco Ramos Méndez, Abuso de derecho en el proceso?, in José Carlos
Barbosa Moreira (org.) Abuso dos direitos processuais Rio de Janeiro, Forense,
2000, p. 6.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
base imprescindível até mesmo para as interações estratégicas.73 Com ser um ato
impositivo, a decisão judicial não pode prescindir da referência a certos valores, e
tampouco da utilização da função expressiva da linguagem.
Habermas sustenta que somente uma metalinguagem crítica, ou seja, só mesmo
uma teoria crítica da ideologia, desenvolvida do ponto de vista da gênese e da
validade, estará em condições de de- nunciar a contradição interna do discurso
ideológico, fazendo-o explodir. Esta atitude teórica dialética implica uma crítica das
pre- tensões de validade do ponto de vista um terceiro observador, o que acaba
resgatando o lugar privilegiado da relação comunicativa.74 Ao mesmo tempo, ela
recupera a dignidade do campo retórico, que deixa de ser espaço do puro arbítrio,
como faria supor uma filosofia centrada no sujeito. Esta perspectiva, aliás, é também
uma resposta às dificuldades em que a teoria dos atos de fala acabou
desembocando no final do capítulo anterior, mais precisamente à dificuldade con-
sistente em fundar umal teoria crítica da ciência na base do uso de uma linguagem
que é, ela própria, objeto daquela reflexão proble- matizadora. Todavia, como
apontado no segundo capítulo (seção 2.3), não se pode desconsiderar as
dificuldades em estabelecer limites entre a metalinguagem epistemológica (teoria do
direito) e a linguagem da ciência prática (dogmática jurídica). Diante disso, resta
saber da possibilidade desse distanciamento entre teoria e ciên- cia prática do
direito, como proposto por Habermas.
5.4 A possibilidade do agir comunicativo no processo judicial
Diz a fábula de Esopo que o vento e o sol discutiam para saber qual dos dois era o
mais forte, quando avistaram um viajante andando pela estrada. Combinaram,
então, que aquele que conseguisse fa- zer o homem tirar o casaco seria
considerado o mais forte dos dois. O vento deu um sopro tão intenso que quase
arrebentou as costuras
Início da nota de rodapé
(73) Habermas, Pensamento pós-metafísico.. estudos filosóficos, Rio de Ja- neiro,
Tempo Brasiieiro, 1990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos
Alemães), p. 98.
(74) Idem, p. 87, 88, 102 e 103.
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
do casaco. Mas como o viajante segurasse firme suas vestes, de nada adiantou o
vento continuar soprando até se cansar. Chegou a vez do so1. Primeiramente ele
afastou as nuvens das redondezas e depois apontou seus raios mais ardentes para
a cabeça do viajante. Em pouco tempo, frouxo de calor, o homem arrancou o casaco
e correu para a sombra mais próxima, concluindo, assim, Esopo que mais pode a
persuasão que a força.75 Na linguagem figurada dessa personagem possivelmente
lendária da tradição grega, a retórica surge como forma de interferir na vontade das
pessoas, como ação voltada ao convencimento. ParaAristóteles, tanto quan- to a
poética, a retórica se move no campo do imaginário, com a só diferença da sua
finalidade específica, que é a persuasão. Nessa medida — e como foi dito no início
do terceiro capítulo — a retórica se aproxima da técnica, cumprindo importantes
funções na esfera das controvérsias.
Na alegoria de Esopo, os argumentos que levam o homem à ação sugerem um
plano racional (o sol apontou seus raios para a cabeça do viajante), diferente, é
claro, do paradigma da racionalidade ló- gico-formal, que se esgota nos conceitos
analíticos e nos conceitos empíricos. A união entre ciência (episteme) e técnica
(techne), como delineada pelo modo de produção capitalista, coloca sobretudo para
o direito a necessidade de compreensão da ação prática de um pon- to de vista
diverso daquele situado na filosofia do sujeito. A dog- máticajurídica, como técnica
institucional, assume o papel de uma razão que produz conhecimento ao mesmo
tempo em que procura interferir na sociedade, O sentido dessa produção, por certo,
não pode ser encontrado na razão pura, numa forma de conhecimento que
desconsidera o agir social, a maneira como as pessoas usam palavras, definições e
teorias, O pensamento jurídico da segunda metade do século XX, compartilhando o
caminho trilhado pela fi- losofia analítica, deixou-se influenciar pelo paradigma da
razão prática. Não se trata apenas de denunciar a razão instrumental, as
conseqüências trágicas da cibernética, mas também de voltar os
Início da nota de rodapé
(75) Esopo, O vento e o sol, in Russell Ash e Bernard Higton (compiladores),
Asfábulas de Esopo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994,
p. 28 e 29.
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
olhos para uma nova racionalidade, construída por aqueles que participam do
processo de comunicação.
A concepção tópica do direito, a nova retórica de Perelman e a lógica informal de
Toulmin, revelam uma nova atitude epistemoló- gica diante de um saberjurídico
dividido entre necessidade de sistematização conceitual e necessidades práticas.
Essa tensão, insustentável de um ponto de vista da razão tradicional, acaba
conduzindo o direito a um dilema. Sob o prisma do positivismo metodológico, o
medo da contaminação ideológica faz com que o espaço da decisão jtirídica seja
relegado à esfera da política — com total isenção da responsabilidade social do
operador do direito — campo fértil para o decisionismo, para a tirania da imprevisão.
De outro lado, sob o prisma do realismo jurídico, a decisão judicial, produto da
vontade do julgador e não da razão, também surge como alguma coisa
essencialmente arbitrária.76 A teoria da argumentação jurídica coloca-se, contudo,
como uma terceira via, com perspectiva cognoscitiva, prática e política diversa
daquela que tem orientado o debate em torno da natureza e das funções do direito.
Importa conhecer, mais do que o campo da descoberta, as formas dejustficação das
decisões judiciais.
A dificuldade de entender a conjugação entrejuízos assertóricos e juízos valorativos
sobre o direito (de uma proposição do ser não
Início da nota de rodapé
(7) A propósito do positivismo metodológico, ver a crítica de Enrique Zuieta Puceiro,
Racionalidady objetividad cientifica en la teoría pura del derecho, in Agustin Squella
et alii, Apreciación critica de la teoría pura del derecho, Vaiparaiso, Edeval, 1 982, p.
89 e 90. A respeito da critica ao realismojurídico (mais especificamente ao realismo
sustentado por AIf Ross), e também da crítica ao decisionismo, ver Manuel Atienza,
op. cit., p. I 72, I 97 e 299. O movimento de politização dojurídico e da juridicização
do político, como apontado no final da seção 5.2, busca ocupar esse espaço de
irracionalidade, perdido para uma razão instrumental, que se revela no
democratismo e nas práticas assembleístas, deformações das democracias
parlamentares ocidentais. Em termos habermasianos, trata-se de resgatar a
concepção emancipatória da razão. A dificuldade, conforme será visto, consiste em
saber qual é o novo padrão de racionalidade jurídica. A respeito, v. Calsamiglia, op.
cit., p. 261 e 262.
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
se pode retirar uma proposição do dever ser) nasce de uma limitação imposta pelo
pensamento lógico-formal. A falácia naturalística, o sofisma denunciado pelo
positivismo conceitual, dissolve-se quando a reflexão jurídica se dá conta de que a
argumentação, no nível epistemológico, prático e político, não se esgota no
encadea- mento de enunciados, num processo dedutivo onde a verdade da
conclusão é decorrência necessária da verdade das premissas. Com efeito, nem
sempre a premissa normativa contém todas as informações necessárias à
conclusão. A premissa menor, o enunciado de fato, não é categórico, pois faz
referência a termos que não indicam classes. Poder-se-ia cogitar de um argumento
condicional do tipo Se p, então q; p; q, de uma hipótese de afirmação do
antecedente, como é apresentado o argumentojurídico nas elaborações mais usuais.
Sucede que o enunciado de fato é resultado de uma complicada cadeia
argumentativa, não necessariamente linear, que envolve não só argumentos
indutivos, como demonstrado no terceiro capítulo (seção 3.4), mas também
justificativas de conteúdo axiológico. Demais, a argumentaçãojurídica não se dá
apenas no campo semântico, mas também na esfera pragmática, o que envolve a
avaliação do peso do argumento consideradas as pretensões de cada um dos
falantes.
O interesse pela argumentação jurídica ressurgiu nos anos 50, particularmente com
a obra de Theodor Viehweg, Tópica e juris prudência. Nela revive a dialética
aristotélica — depois do ocaso experimentado na Idade Moderna — numa releitura
que é também orientada pela Ciência Nova de Giambattista Vico. Na dialética aris-
totélica opõem-se osjuízos apodíticos e osjuízos dialéticos; de um lado, as longas
cadeias dedutivas (sorites), de outro, os argumentos que partem apenas do
verossímil, do provável e não do verdadeiro. Vico busca conciliar o antigo, o retórico,
com o moderno, com o modo de pensar cartesiano. Na dedução, o ponto de partida
não pode ser eliminado e nem posto em dúvida. De outro modo, na tópica, o senso
comum, aquilo que parece certo, é o mote da descoberta de diversos pontos de
vista, de uma trama de opiniões a partir da qual se desenvolve uma rede de
silogismos, argumentos contra e argunentos afavor Viehweg busca então examinar
de que forma se dá a argumentação no direito romano, chegando à conclusão de
que as disputas eram orientadas pela endoxa, proposições verossímeis
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
senão aos olhos de todos, dos sábios, dos mais conhecidos e famosos. Parte depois
para a classificação destas opiniões reconhecidas, desses topoi, a fim de entender
como se relacionam, particularmente na retórica ciceriana. O Iegado dessas
elaborações revela-se, já ao final da Idade Média, nas chamadas artes liberais, quer
dizer, na gramática, na retórica, na dialética, na aritmética, na geometria, na música
e na astronomia. A tópica está presente, no trivium que a Idade Média recebeu e
cultivou como escolástica, nas três primeiras delas.77
Diferentemente da razão lógico formal, a tópica está orientada para o problema, de
onde se vê a incorporação do estilo mental dos sofistas e dos retóricos na
elaboração aristotélica. As aporias, as questões sem saída, conduzem a um modo
de argumentar que é a negação do estiolamento da fantasia e da imaginação, da
pobreza da linguagem. Para buscar o consenso em torno das opiniões é preciso
ultrapassar o pensamento sistemático, ao qual se contrapõe o pensamento
problemático, o que não implica negar a existência de relações entre esses dois
sistemas. Numa visão sistemática, remanescem problemas insolúveis, que não são,
porém, desprezados pela tópica, estilo de argumentação que coloca a tônica no
problema e não no sistema. Cícero desenvolveu uma espécie de catálogo de tópicos
(tópica de segiindo grau), sempre provisórios e elásticos, lugares comuns que
permitem chegar às conclusões e que variam segundo o ramo do conhecimento de
que se esteja tratando. Este aspecto funcional não se concilia com longas cadeias
conceituais, que levariam a conclusões extensas e absolutamente corretas (ars
iudicandi). Em vez disto, cumpre deixar sempre presente o problema, a busca das
premissas, que estimula a ars inveniendi. As diver- sas formas de analogia, ainda
hoje muito utilizadas na argumentação jurídica, são exemplo desse estilo de
argumentar onde o senso comum, a noção de semelhança e não de identidade,
orienta as diversas soluções possíveis para o mesmo caso concreto.78
Início da nota de rodapé
77) Theodor Viehweg, Tópica ejurisprudência, Brasília, Departamento de Imprensa
Nacional e Editora Universidade de Brasília, 1979 (Coleção Peiisamento Jurídico
Contemporâneo, 1), p. 17-32.
(78) ldem, p. 33-41.
Fim da nota de rodapé
Página 357
RAZÃO COMUNTCATIVA E A PRAGMÁTICA
Está claro, como acentua o próprio Viehweg, que a tópica abre um amplo espaço
para a hermenêutica, do que não se pode cogitar quando a argumentação se
desenvolve no plano da lógica dedutiva. A interpretação na base do senso comum
move-se não só no campo semântico, monológico, como também na esfera
pragmática, dia lógica, pois as premissas do argumento se legitimam pela aceita-
ção do interlocutor. O debate, a controvérsia, orienta-se por premissas que se
consideram relevantes, irrelevantes, admissíveis, inadmissíveis, aceitáveis ou
inaceitáveis, sempre a caminho do consenso. Viehweg considera que, quando se
trata de estabelecer um sis- tema dedutivo, a que toda ciência, do ponto de vista
lógico, deve aspirar, a tópica tem de ser abandonada... Valores como defensável,
ainda defensável, diflcilmente defensável, indefensável etc. care- cem aqui de
sentido. Talvez na seleção de proposições centrais — acrescenta ele — a tópica
possa conservar alguma importância.79 Estas reflexões permitem distinguir duas
perspectivas importantes do conhecimento jurídico, quais sejam, ajustificação
interna e ajustificação externa. Ao mesmo tempo, permitem responder a uma crítica
geralmente endereçada à concepção tópica do direito, da qual se diz que elabora
conceitos vagos, fazendo afirmações ingênuas sobre a justiça.8°
A lógica dedutiva possibilita uma justificação do direito do ponto de vista interno.
Todavia, quando se trata dejustificar a escolha da premissa normativa (o que
envolve problemas de subsunção e de interpretação) e de avaliar a prova (o que
envolve regras institucionais, como é o caso do ônus da prova, das presunções e da
preclusão), há de se recorrer a uma justificação externa, que vai além da lógica em
sentido estrito. A par das dificuldades na fundamentação das premissas e na
apreciação da prova, tem se de considerar que a argumentação jurídica é dialógica,
o que interfere com o con- teúdo pragmático do ato de fala. Viehweg — ao que se
entende — buscou ressaltar a importância do lugar-comum nos mais variados
campos do conhecimento. Os diversos sentidos de um topoi (que
Início da nota de rodapé
(79) Idem, p. 42 e 43.
(80) Manuel Atienza, op. cit., p. 70-72 e 74, e Luis Alberto Warat, Mitos e
teorias na interpretação da lei, Porto Alegre, Síntese, p. 86 e 87.
Fim da nota de rodapé
Página 358
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
os críticos apontam como vagueza do conceito) lembram a referência que
Wittgenstein faz aos distintos jogos de lingtLagem, que se alteram na conformidade
das diversas situações sociais, dos diferentes campos da atividade humana, de
mundos da vida contrastantes. Lembre-se que asformas de vida não surgem como
um conceito analítico, fechado. O ser vago, impreciso, é aquilo que permite a
utilização do conceito neste ou naquele contexto comunicativo. Mais importante que
a função designativa é a capacidade de estabelecer o sentido através das ações
humanas. Bem por isso, os topoi ora aparecem como conceitos doutrinários, ora
como princípios gerais de direito ou máximas da experiência, mas sempre como
fórmulas de procura, no dizer de Tercio Sampaio Ferraz Jr.,8 necessariamente
ambíguas e vagas, como convém aos instrumentos de composição dos conflitos.
Mas assim como a filosofia analítica, em um determinado momento das elaborações
em torno da Iinguagem, sentiu que era ne- cessário estabelecer instrumentos de
análise mais precisos — o que levou ao desenvolvimento da teoria dos atos de fala
— igualmente, no campo da argumentação jurídica, faz-se sentir a necessidade do
desenvolvimento de uma teoria da argumentação que não só descreva como o
discurso jurídico efetivamente ocorre, mas que também estabeleça regras,
procedimentos de argumentação racional. Uma tal perspectiva, ao mesmo tempo,
permite demostrar a falsi- dade do dilema entre o racional e o irracional, embaraço a
que a teoria do direito foi conduzida pelas mãos do positivismo jurídico, do
decisionismo e do realismo psicológico. Esta superação de paradigmas não é
monológica, mas dialógica. Ao debater sobre a argumentação (discurso sobre o
discurso), os cientistas discutem até chegar a um consenso. Desenvolvem-se aqui
argumentos com vista à formação do paradigma, que uma vez aceito na base da
unanimidade, instaura um período de ciência normal, madura. Incapaz de dar
explicações para fatos novos, o paradigma entra em crise.
Início da nota de rodapé
(81) Tercio Sampaio Ferraz Jr., Prefáci à tradução brasileira da obra de Theodor
Viehweg, Tópica e jurisprudência, Brasília, Departamento de Imprensa Nacional e
Universidade de Brasília, 1 979 (Coleção Pensa- mentojurídico conteinporâneo, ed.
1), p. 5.
Fim da nota de rodapé
Página 359
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
Paralelamente, outros paradigmas vão surgindo no horizonte da ciência, com o que
se iniciam as chamadas revoluções científicas, as quais só se consolidam quando
um novo consenso se estabelece em torno do outro paradigma, dando lugar a um
novo período de ciência normal. Enfim, o significado da ciência é convencional. A
estrutura das revoluções cientifìcas, a que se fez referência no quarto capítulo
(seção 4. 3), permite entender, dessa forma, como se entre cruzam as elaborações
de Thomas Kuhn e Habermas, agora no plano da metalinguagem científica. A teoria
do direito, sob este enfoque, somente poderá responder aos desafios colocados no
final da seção anterior caso se mostre capaz de articular o consenso.82
A teoria do direito desenvolve instrumentos conceituais para a representação do
conhecimentojurídico. Analogamente, a teoria da argumentação desenvolve
instrumentos para que se possa entender o papel da inferência na argumentação
jurídica. Ambas cumprem uma função descritiva e prescritiva. A tentativa de buscar
uma teoria da argumentação que atenda às demandas cognoscitivas, práticas e
morais do direito mais não é que reivindicar uma racionalidade jurídica fundada nas
pretensões de validade do agir comunicativo.83 A nova retórica de Perelman, que
parte do mesmo campo de
(82) A respeito de uma aplicação da teoria do paradigma ao campo do direito, ver
Enrique Zuleta Puceiro, Teoriajurídica y crisis de legitimacion, in Anuário de Filosofia
Jurídica y Social, Associación Argentina de Derecho Comparado — Sección Teoría
General, Buenos Aires, Abeledo- Perrot, 1 982, p. 289-306.
Início da nota de rodapé
(83) A análise do discurso científico de uma perspectiva do agir comunicativo lança
um novo olhar sobre o problema da cientificidade, tal como proposto pela
epistemologia tradicional. As tradições metafísica e positivista da ciência têm
reivindicado critérios inflexíveis de demarca- ção entre aquilo que deve ou não ser
considerado como ciência. Contrapõem o conhecimento científico às representações
ideológicas e às configurações metafísicas, distinguindo a verdade do erro, o sentido
referencial das alusões conotativas, a doxa da episteme. A verdade consensual,
como visto na seção anterior, compõe essas dicotomias na base de outros critérios
de racionalidade (ver, num sentido muito próximo, Luis Alberto Warat, Esboçospara
uma epistemologia das signijìcações e suas projeções sobre o direito, mimeo, s.d.,
p.4).
Fim da nota de rodapé
Página 360
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
investigação descoberto por Viehweg, também se mostra como tentativa de resgatar
a dignidade da razão prática, no que se pode identificar, igualmente, diversos pontos
de contato com Habermas. Depois de empreender uma frustrada tentativa de
resposta às questões dajustiça de um ponto de vista referencialista, Perelman se
apercebeu da aporia dessa empreitada, que envolve além do valor ético social de
proporcionalidade, critérios de justa proporção.84 Essas reflexões, que já estão em
Aristóteles, na Etica a Nicômaco (Livro V), estimularam Perelman ao confronto entre
raciocínios dedutivos (os dos Primeiros e Segundos Analíticos) e dialéticos (que
estão na Tópica, na Retórica e nas Refutações sofisticas). A nova racionalidade de
Perelman orienta-se, então, por uma razão prática, que encontra no campo do
direito uma espécie de modelo.
Importa aqui, considerados os propósitos do presente trabalho, a breve análise de
dois conceitos desenvolvidos por Perelman, em conjunto com Lucie Olbrechts-
Tyteca, no Tratado da Argumentação, seguida de algumas considerações que darão
apenas um panorama de sua retórica geral. O primeiro deles, auditório, faz
referência ao conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua
argumentação.85 O segundo conceito é menos preciso e diz com a noção (mais
propriamente) de auditório universal,86 vale dizer, o conjunto de todos os seres
dotados de razão, diante do qual se argumenta. Apesar de não se tratar de um
conceito empírico, mas sim ideal, é certo que o auditório universal varia de orador
para orador e também de acordo com os propósitos do mesmo orador.87 A argu-
mentação persuasiva é válida para um auditório particular, enquanto a
argumentação convincente é aquela que tem em conta o auditório
Início da nota de rodapé
(84) Segundo registro de Manuel Atienza, essas reflexões foram desenvolvidas por
Pereiman em uma obra intitulada Da justiça, publicada em 1945, na qual este autor,
partindo das elaborações de Frege, tenta desenvolver uma idéia racional, uma
noção válida dejustiça, isenta de valor (Manuel Atienza, op. cit, p. 81).
(85) Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da Argumentação: a nova
retórica, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 22.
(86) Idem, p. 34-39.
(87) Idem, p. 7 e 8, 22-28.
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Página 361
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
universal.88 Perelman, aproximando-se mais e mais do eixo pragmático de
Habermas, ressalta que a argumentação prescinde da ameaça e do uso da violência
física,89 partindo de premissas que são postas consensualmente, ainda que a
escolha dos objetos de acordo, dos elementos e da forma de argumentação, possa
ter a iniciativa do orador, que tratará de usar noções imprecisas o bastante para
gerar o convencimento. Na apresentação das premissas, outrossim, o orador
cuidará de utilizar determina das figuras de argumentação, que os lingüistas e
gramáticos conhecem como figuras de estilo (figuras de palavras, de construção e
de pensamento), tudo com vista a criar uma comunhão em torno de determinados
significados, já de certa forma reconhecidos pelo auditório, os quais tratará de
ampliar e valorizar.9°
Perelmam e Olbrechts-Tyteca passam a desenvolver, na última parte do Tratado,
uma minudente classificação de técnicas argumentativas, cuja insuficiência eles
mesmos reconhecem, e à qual atribuem uma importância de certa forma relativa. E
que ao orador caberá estabelecer a interação dos argumentos. Vários deles podem
servir a um mesmo propósito. A escolha haverá de ter em conta a situação
argumentativa, o que exige do orador a capacidade de avaliar a força dos
argumentos. Esta é uma noção que os próprios autores admitem como confusa, mas
também indispensável.9 Há, em diversos momentos da obra, uma tentativa de
aproximação do significado, na base de Iugares comuns, de recomendações
voltadas ao bem argumentar, o que confere ao Tratado uma feição descritiva (o
argulnento forte é aquele eficaz, que determina a adesão do auditório) e prescritiva
(o argumento forte é aquele válido, que tem de seguir regras para a adesão do
auditório). Perelman sustenta que não é possível uma dissociação absoluta desses
dois pontos de vista, pois tanto a eficácia quanto a validade se definem em relação a
um determinado auditório, cujas reações dão a medida daquilo que
Início da nota de rodapé
(88) Ideni, p. 29-34.
(89) Idem, p. 61-70.
(90) Idem, p. 73-208.
Ideni, p. 524.
Fim da nota de rodapé
Página 362
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
convence e os fundamentos das normas de convencimento. A eficácia, por vezes,
fornece o critério de validade do argumento e a idéia que se faça da validade influi
sobre a eficácia das técnicas de convencimento, o que se vê, por exemplo, na
hipótese em que a outra parte, diante da recusa do orador em justificar suas
afirmações, diz mas você deveria dar razões para isso.92
Essas considerações têm importante significado no direito, um dos campos de
aplicação específica da retórica geral, alterando a concepção da lógica jurídica. Não
se trata mais de desenvolver regras de correção interna do argumento, relacionando
evidências e conclusão, como ocorre na lógica formal, mas sim de mostrar o peso
das premissas. Segundo Perelman, nada impede que a argumentação jurídica se
desenvolva em forma de silogismo, o que não garante, contudo, a verdade da
conclusão. A argumentação aqui é dialética, mas num sentido diverso daquele que
Aristóteles atribui a esta expressão. A decisão judicial supõe sempre a possibilidade
de decidir de outra maneira. Muitas vezes o julgador forma seu convencimento na
base de considerações extra jurídicas e depois sai em busca das premissas
adequadas para fundamentar a conclusão. A demais, o juiz não atua de maneira
solitária, pois haverá de conciliar os argumentos apresentados pelas partes.93
Entende-se, neste ponto, que tanto o julgador desempenha o papel de auditório
universal em relação às partes, que buscam convencê-lo de suas razões, como as
partes também desempenham o papel de auditório universal em relação ao juiz. A
relação é dialógica, o que aproxima Perelman e Habermas.94
Início da nota de rodapé
(92) Idem, p. 523-529.
(93) Perelman, La lógicajurídicay la nueva retórica, Madrid, Editorial Civitas, S. A., p.
10, 1 1, 165, 166, 201 e 232. Para Perelman, tem-se de admitir, como sustenta
Kalinowski, que não há mais que uma lógica formal. Nela, entretanto, não se esgota
o pensamentojurídico (ide,n, p. 12-14).
Habermas utiiiza-se da noção de auditório universal, fazendo expressa menção a
Perelman, ao falar dos acordos racionalmente motivados, da teoria consensual da
verdade (Habermas, Teoría de la acción comuni- cativa, 2. ed., vol. 1, Madrid,
Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, S. A., 200 1 (Colección Humanidades-Filosofía), p.
48-50. A noção de audi-
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
Mas a idéia de um auditório ttniversal, de um consenso habermasiano, naquilo que
envolve a relação dialógica entre o iuiz e as partes, não deixa de suscitar alguns
problemas, que ferem preci- samente a possibilidade de um agir comunicativo no
processo judicial. Com efeito, as especificidades da controvérsia judicial, as regras
institucionais do debate, implicam uma decisão imposta pela autoridade
constituída.95 Todavia, de outra parte, segundo Perelman, o juiz tem de buscar a
adesão das partes. Não basta di- zer que a decisão foi tomada com base neste ou
naquele dispositivo legal. Há de demonstrar que ela é justa, oportuna e socialmente
útil. Aqui, o julgador haverá de ter em conta o ramo do direito de
Início da nota de rodapé
tório universal suscita, entretanto, alguma polêmica, porquanto ambígua. NeIa, ora
se encontra referência a uma categoria ideal, uma construção do orador, e ora a
uma categoria que Iembra o imperativo de Kant, o que evoca a idéia de acordo
como ratio decidendi. Por isso Atienza sustenta que o auditório universal
perelmaniano é não propriamente um conceito, mas uma intuição feliz (Manuel
Atienza, op. cit., p. 1 15 e 1 1 6). Robert Alexy, por sua vez, reconhecendo esta
mesma diversidade de sentidos, sustenta que o apelo à razoabilidade da audiência
envolve a idéia de um acordo entre todos os homens razoáveis, conforme se retira
de Kant. Por isso, o auditório universal é a humanidade iluminada, composta de
seres razoáveis, ou seja, em princípio, qualquer pessoa acima dos limites da
imbecilidade. Aliás, nos discursos práticos, a participação dos pouco capazes é
obrigatória, quando menos porque seus interesses também são afetados. Um tal
estado de coisas, na interpretação de Alexy, corresponde à situação de discurso
ideal de Habermas (Robert Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do
discurso racional como teoria dajustificaçãojurídica, São Paulo, Landy Editora e
Distribuidora Ltda., 2001, p. 132-135).
(95) Não deixa de ser significativa uma distinção corrente na dogmática processual,
segundo a qual as partes argumentam, enquanto oiuiz apenas fundamenta as
decisões e sentenças. Longe de um simples jogo de palavras ou de uma disputa
semântica, a distinção mal esconde uma relação de poder, de assimetria, da qual o
direito romano já dava seu testemunho: Aliud est postulate, et aliud consulere et
aliud domi et aliud corain ,nagistratibus. Aliás, foi necessário que o Estatuto dos
Advoga- dos deixasse claro que não há hierarquia nem subordinação entre
advogados e magistrados (art. 6.°).
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
que está tratando, e mais, o tipo de auditório a que se dirige.96 Esta idéia de
adaptação ao auditório, que já se vê no Tratado, aplica-se igualmente ao discurso
desenvolvido pelas partes, que se valem de topoi, a exemplo da noção de abuso do
direito, na tentativa de despertar a adesão do auditório.97 A escolha do argumento
adequado implica atribuir presença98 a este ou àquele elemento do discurso,
obscurecendo outros que possam não interessar. A questão da completude da
verdade, discutida no segundo capítulo (seção 2.4) in- terfere com essa
circunstância de dar-se preferência a uma versão em detrimento da outra, para o
que o orador (seja ele a parte ou o juiz) haverá de desenvolver técnicas
argumentativas adequadas. Ressaltar valores que servem aos objetivos da
argumentação, eclipsando outros, invocar um princípio geral do direito em prejuízo
de outro, utilizar a analogia a contrário senso, no caso de uma lacuna normativa,
quando em tese também caberia a analogia por semelhança, são formas de dar
presença a determinados elementos da discussão. Nos dois últimos exemplos, trata-
se de técnicas que podem conduzir o argumento a teses ou decisões opostas, o que
bem demonstra o especial significado da justificação externa nas argumentações
jurídicas.
Aquele que argumenta perante o tribunal do júri, por exemplo, muitas vezes utiliza a
retórica como expediente. O emprego
Início da nota de rodapé
(96) Pereiman, La Lógica Jurídica y Ia nueva retórica, Madrid, Editorial Civitas S. A.,
p. 142, 201 e 207. Perelman, a propósito, ressalta a importância da fundamentação
da sentença, fazendo um ligeiro escorço histórico acerca das razões que deram
origem à necessidade de o juiz motivar a sentença, ligadas à desconfiança que os
revolucionários franceses nutriam em relação aosjuízes da época, fiéis ao antigo
regime (idem, p. 202-206).
(97) Perelman, cuidando especificamente da noção de abuso do direito, diz tratar-se
de uma construção jurídica que serve para guiar a ação dos tribunais,
proporcionando aojulgador uma adequadajustificação das premissas. Nessa medida,
cumpre papel análogo ao das teorias filosóficas, morais e políticas (idem, p. 109-1 1
1).
A propósito do conceito de presença, ver Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca,
Tratado da Argumentação. A nova retórica, São Pau- lo, Martins Fontes, 1996, p.
558.
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
da simulação, das lágrimas insinceras e dos cumprimentos excessivos, dos artifícios
para apiedar ou para lisonjear, revelam receitas estereotipadas que muitas vezes
convencem, na dependência da qualificação do auditório e do tipo de adversário que
se tem pela frente. A repetição de fórmulas consagradas coloca em presença
determinados valores, instintos e atitudes morais do auditório. O mesmo mecanismo
de presença intervém quando se repete uma afirmação do adversário para contestá-
la. Entretanto, a maioria dos oradores prefere relegar ao silêncio uma objeção à qual
só se poderia opor uma fraca refutação, ainda que a abstenção da fala possa sugerir
concordância com a tese do adversário ou inconsistência das razões inicialmente
invocadas por aquele que agora se cala.99 O que pode impressionar, quando se
indaga da possibilidade da argumentação processual como agir comunicativo, não é
tanto a banalização dos sofismas, 05 quais obedecem a certas regras de validade
da argumentação, mas a existência de regras institucionais que interferem
diretamente com as pretensões de validade do discurso. No caso do júri
— para ficar nesse exemplo — aos jurados não é dado expressar suas atitudes, sob
pena de nulidade do julgamento. Nem todo tipo de informação pode ser introduzida
no discurso, pois há regras legais, no direito brasileiro, que impedem o uso de
documentos em plenário caso eles não tenham sido juntados aos autos com certa
antecedência.
As regras de validade do discursojudicial e as regras de validade da teoria da
argumentação demandam, entretanto, alguns aprofundamentos. As críticas
endereçadas à retórica de Perelman versam não só acerca da imprecisão dos
conceitos como também sobre uma certa indefinição epistemológica, que está no
plano da separação entre razão dialética (raciocínio prático) e razão científica
(raciocínio teórico), aparentemente inconciliável com sua afirmação no sentido de
que é impossível assinalar com clareza o limite entre o campo cognitivo e o campo
axiológico do saber jurídico. A vagueza do conceito de auditório universal (ainda que
se possa reconhecer nele um núcleo de sentido ligado à idéia do consenso), dificulta
o desenvolvimento de padrões de avaliação do discurso, o
Início da nota de rodapé
(99) Idem, p. 5 1 1, 546 e 562.
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
que também tem repercussões, considerado o significado convencional da ciência,
no plano epistemológico. A teoria da ação comunicativa, ao sustentar que a verdade
daquilo que é afirmado depende dajustificação da afirmação (e não ao contrário,
como supõem as teses referencialistas), postula, de um ângulo pragmático, a exis-
tência de um valor verdade também para os proferimentos normativos. A tarefa
seguinte consiste em fundar regras de justificação desse tipo de enunciado, com o
que Habermas dá um passo decisivo no plano da racionalidade jurídica.
A lógica da argumentação, em Habermas, é uma lógica do dis- curso pragmático,
onde importam não as sentenças mesmas, mas a atitude que cada um dos falantes
assume ao falar. O consenso está baseado naforça do melhor argumento. Assim,
cada uma das partes sustenta umapretensão, que varia segundo os contextos de
ação, vale dizer, de acordo com as instituições onde se desenvolve o discurso (um
tribunal, uma assembléia, um congresso científico etc.). Se ela for questionada, o
proponente haverá de dar suas razões, fundadas em fatos relevantes e suficientes.
Mas não bastam os fatos, o caso concreto. Se o oponente exigir que a outra parte
justifique a passagem das razões para a pretensão, aquele que a invocou haverá de
apresentar garantias, cujo grau de sustentação varia na base de qualificadores
modais, a exemplo de provavelmente, presumivelmente, ao que parece, e sempre
na dependência de existirem ou não condições de refutação específicas. As
garantias são e nunciados que descrevem regras. No caso da argumentação
jurídica, trata-se de regras gerais e abstratas, que tanto podem ser um princípio
quanto uma norma costumeira ou escrita. A validade da regra, por sua vez, diz com
o conceito de respaldo, que somente se torna explícito se a garantia é questionada.
A Iei posta, a noção de um direito natural, seriam critérios de justificação última. O
argumento nada mais é que ajustificação de uma pretensão de validade levantada
pelo falante.
Início da nota de rodapé
(I (10) Para o aprofundamento dessas críticas — e também para uma crítica ideo-
lógica — ver Manuel Atienza, op. cit., p. 86, 87, 109-130.
(101) Este modelo de argumentação, que recorre aos conceitos depretensão,
razões, garantia e respaldo, desenvoivido por Stephen Toulmin (Toulmin
Fim da nota de rodapé
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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
Apoiando-se na lógica informal de Stephen Toulmin, Habermas susteflta que a
argumentação haverá de ter em conta a empresa racional dos falantes, ou seja, o
campo ou as esferas da vida, com seus diferentesjogos de linguagem, em que se
desenvolve o discurso. A verdade consensual pressupõe uma situação ideal defala.
Assim, toda pessoa que puder falar pode tomar parte no discurso (a). Seguem-se a
esia regra de universalidade, regras de ausência de coerção (b), que garantem uma
comunicação livre de restrições externas e também internas (da própria estrutura da
argumentação). Isso pressupõe uma distribuição simétrica de oportunidades entre
todos os participantes do debate, aos quais se tem de garantir a iniciativa do
discurso e sua condução dialógica, com perguntas e respostas. Assim, toda pessoa
pode problematizar uma afirmação (b.a); toda pessoa pode introduzir qualquer
afirmação no discurso (b.b); toda pessoa pode expressar suas atitudes, desejos e
necessidades (b.c). Por último, tem de haver uma regra de proteção (c), que garanta
que nenhum orador possa ser impedido de exercer os direitos estabelecidos
anteriormente. 2
Início da nota de rodapé
et alii, An jntroduction to reasoning, NewYork, 1 979), foi expressamente adotado por
Habermas, que a ele se refere como investigação pioneira. Para Habermas, a
argumentação não pode ficar reduzida à lógica dedutiva e à lógica indutiva. Há
outras formas de argumentação Iegítima, de persuasão discursiva, que não podem
ser relegadas ao campo do irracional. A respeito dessa exposição, que reproduz as
idéias de Toulmin, v. Habermas, Teoría de la acción conunicativa, 2. ed., vol. 1,
Madrid, Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara S. A., 2001 (Colección Humanidades
Filosofía), p. 45-54, e Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989 (BibliotecaTempo Universitário, 84, Série Estudos
Alemães), p. 83 e 84. Ainda a respeito da relação entre a teoria da ação
comunicativa e a lógica informal de Toulmin, ver Manuel Atienza, op. cit., p. 163-166
e Robert Alexy, op. cit., p. 77-86 e 98-1 17.
(02) A elaboração de Habermas foi assim reproduzida porRobertAlexy (op. cit., p. I
12), como registra o próprio Habermas (Consciência moral e agir comunicativo, Rio
de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, Biblioteca Tempo Universitário, 84, Série
Estudos Alemães, p. 1 12). Consigne-se, outrossim, que ao falar das condições que
caracterizam a situação ideal de fala, Habermas remete à sua Wahrheitstheoriefl,
onde ele se dedica ao tema de maneira mais minudente (Teoría de la acción
comunicativa,
Fim da nota de rodapé
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
Toulmin desenvolve uma teoria com pretensões normativas e descritivas, na qual
Habermas, entretanto, reconhece uma certa inconsistência, quando se trata de
estabelecer a mediação entre os planos de abstração que representam o lógico e o
empírico. A crítica de Habermas tem em conta o fato de que Toulmin, distinguindo
os diversos campos de argumentação de acordo com as correspondentes
instituições (o político, o jurídico, o científico), acaba buscando a lógica da
argumentação num terreno externo. Não se pode confundir, como faz Toulmin, os
contextos em que são reconhecidas as pretensões de validade com o contexto de
constituição dessas pretensões.103 Mas não há negar que a lógica informal,
comparada à tópica de Viehweg e à nova retórica de Perelman, oferece um aparato
analítico mais refinado, que permite melhor situar a argumentação no contexto da
racionalidade pós-metafísica, à qual se reporta a teoria da ação comunicativa. A
princípio, como observa Manuel Atienza, as categorias respaldo, garantia, condição
de refutação e qualificador parecem não dizer muito mais do que já havia sido
demonstrado na lógica jurídica tradicional, desde Kalinowski. A distinção entre
garantia e respaldo mostra, dentre outras coisas, a conhecida ambigüidade entre
normas e proposições normativas. A distinção entre garantia e condição de
refutação, por sua vez, aponta para o fato de que as normas são e nunciados
hipotéticos e não categóricos.4 O qualificador por último, mostra que a passa- gem
das premissas para a conclusão nem sempre tem caráter neces- sário. Habermas,
além de reconhecer que o esquema de Toulmin está de certo modo mais próximo da
argumentação real que as propostas formais que ele critica, admite tratar-se de uma
forma de argumentação correta.5
Início da nota de rodapé
2. ed., voi. 1, Madrid, Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara S.A., 2001, Colección
Hurnanidades-Filosofía, p. 46).
(L()3) Habermas, Teoría de Ia acción cornunicativa, 2. ed., vol. 1, Madrid, Aguilar,
Altea, Taurus, Alfaguara S.A., 2001 (Colección Hurnanidades- Filosofía), p. 56-68.
° Manuel Atienza, op. cit., p. 158-162.
(105) Habermas, Teoría de Ia acción cornunicativa, 2. ed., vol. 1, Madrid, Aguilar,
Altea, Taurus, Alfaguara S.A., 200 1 (Colección Humanidades- Filosofía), p. 49.
Fim da nota de rodapé
Página 369
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
Todo esse debate guarda estreita relação com o tema da possibilidade do agir
comunicativo no processo judicial. O reconhecimento do caráter constitutivo dos
campos institucionais, no que concerne às pretensões de validade da
argumentação, não isenta os sujeitos do processo, pelo menos no enfoque de
Toulmin, do dever de respeitar o esquema da argumentação correta, fundado
naque- las regras vistas há pouco. Robert Alexy, que se inspirou nas elabo- rações
de Toulmin e de Habermas, chega a sustentar que esse esquema pode servir de
orientação aos argumentos que se desenvolvem na praxis forense.6 Mas por tudo e
em tudo que foi visto nos dois primeiros capítulos, pesa uma fundada desconfiança
acerca da existência de uma situação ideal defala no processo judicial, onde to- dos
tenham direito à palavra, em iguais condições, longe de qualquer tipo de
constrangimento. Como ressalta o próprio Habermas, a argumentação diante de um
tribunal, como de resto ocorre com todo discurso jurídico, distingue-se dos discursos
práticos em geral por sua vinculação ao direito vigente e também por outras
restrições especiais impostas pela ordem processual, as quais explicam a
necessidade de uma decisão dotada de autoridade e a faculdade de as partes
orientarem-se com vista ao êxito. Por isso, a princípio, Habermas viu-se inclinado a
admitir que o processo judicial, como todo e qualquer tipo de discurso jurídico, é
uma ação estratégica. Nessa passagem da Teoria da ação comunicativa, ele se
reporta à posição adotada na Teoria da sociedade ou tecnologia social, obra em que
critica as limitações e contradições da teoria sistêmica. Mas foi o contato de
Habermas com a teoria da argumenta- çãojurídica de RobertAlexy que alterou,
segundo ele próprio admi- te, o rumo de suas reflexões.7
Robert Alexy desenvolve uma teoria da argumentação que se pretende descritiva e
analítica, em estreita relação com a teoria da ação comunicativa, da qual pode ser
vista como reinterpretação,
Início da nota de rodapé
(I0 Robert. Alexy, op. cit., p. 1 13.
(07) Habermas, Teoría de Ia acción comunicativa, 2. ed., vol. 1, Madrid, Aguilar,
Altea, Taurus, Alfaguara S.A., 2001 (Colección Hu,nanidadesFilosofía), p. 60.
Fim da nota de rodapé
Página 370
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
segundo assinala Manuel Atienza.8 Para Alexy, o problema da fundamentação
última de uma determinada proposição pode ser resolvido pela exigência de uma
atividade dejustificação do debate, pautada em regras semânticas e pragmáticas
que são condição de possibilidade da comunicação lingüística. Todo discurso tem de
partir de convicções normativas dos participantes, as quais são variáveis e
historicamente delimitadas. Saber o que é certo não impli- ca necessariamente
consenso e nem disposição para segui-lo.9 Daí a necessidade de um sistema
jurídico que possa suprir esse déficit de racionalidade, cuja justificação, que também
se dá de forma discursiva, ocorre tanto na dimensão normativa (regras e princípios)
como na dimensão coativa, impondo-se àqueles que não se mostram dispostos a
observar as normas. As regras são normas que exigem cumprimento pleno (ou é o
lícito ou o ilícito), sugerindo a idéia de subsunção, ao passo que os princípios são
mandamentos de otimização que se caracterizam pela possibilidade de cumprimento
em diferentes graus, sugerindo a idéia de ponderação. Os princípios jurídicos que
informam a noção de abuso do direito seriam, assim, mais que um inventário de
topoi. Embora não se possa falar propriamente de uma teoria de princípios, há uma
ordenação entre eles, orientada por uma regra de estrutura (quanto mais alto for o
grau de desconsideração de um princípio, tanto maior deverá ser a importância do
cumprimento do outro), que estabelece uma ponderação de prioridades. As partes
podem modificar essa ordem, assumindo, então, o ônus da prova da inversão.
O direito é composto de três tipos de procedimento: criação legislativa; discurso ou
argumentação jurídica em sentido estrito; processo judicial. Cada um deles atende a
um determinado déficit de racionalidade. As normas legislativas, por si sós, não
garantem a solução de todos os casos, diante da impossibilidade de total previsão e
à vista das vicissitudes da linguagem. A simples argumentação (dogmática jurídica)
também tem seus limites
Início da nota de rodapé
(108) Manuel Atienza, op. cit., p. 250.
((09) Robert Alexy, op. cit., p. 200.
(110) Idem, p. 218-274.
Fim da nota de rodapé
Página 371
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
porque é incapaz de dar uma única resposta correta para cada caso. Daí o processo
judicial, que se move numa esfera institucionalizada, submetendo-se a regras que
asseguram uma solução, mais propriamente uma decisão, a qual não prescinde,
contudo, do caráter argumentativo. A argumentação jurídica, no sentido amplo, é um
caso especial do discurso prático em geral, pois nela as partes sustentam
pretensões cuja racionalidade depende do fato de encontrarem fundamentação no
ordenamento vigente. Assim, além das regras do discurso prático em geral, há
aquelas específicas do discurso jurídico, de justificação interna e externa, que dizem
com a sujeição à lei, aos precedentes e à dogmática.2 Anote-se que a observância
dessas regras implica uma solução racional, mas não a única possível. Nem mesmo
numa situação de discurso ideal (tempo e participação ilimitados; ausência absoluta
de coação e preconceitos; total clareza lingüística e conceitual; informação empírica
Início da nota de rodapé
l) As regras do discurso prático em geral foram expostas por Alexy (op. cit., p. 293-
296) no apêndice de seu livro. Trata-se de cinco regras (excluídas as formas de
argumentação), a seguir enunciadas sumariamente: a) regras básicas (não
contradição dos enunciados; sinceridade dos enunciados; universalidade dos
enunciados; aplicação analógica dos enunciados; vedação da anfibologia); b) regras
de racionalidade (são aqueias desenvolvidas por Habermas, a partir das
elaborações de Toulmin, como foi visto parágrafos acima); c) regras para alterar o
encargo da argumentação (ônus dajustificação da diversidade de tratamento
dispensado aos participantes; ônus da justificação da extrapolação do tema; ônus da
resposta; ônus da coerência de atitudes); d) regras de justificação (aceitação
consensual das conseqüências da regra; aceitação da aplicação geral e irrestrita das
conseqüências da regra; clareza e possibilidade de entendimento universal da regra;
justificação da gênese histórica e individual das regras morais que informam o
discurso do orador; consideração dos limites atuais de realização); e) regras de
transição (transitividade do discurso teórico para o empírico; transitividade para o
discurso Iingtiístico analítico; transitividade para a teoria do discurso).
(l 2) o discurso jurídico é orientado por regras dejustificação interna (lógicas) e de
justificação externa (empíricas, hermenêuticas, dogmáticas e regras de aplicação do
precedente) cuja enunciação demandaria algu- mas digressões, o que refoge aos
objetivos deste trabalho. A respeito, v. Robert Alexy, op. cit., p. 296-299.
Fim da nota de rodapé
Página 372
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
completa; capacidade de disposição para troca de papéis) seria possível assegurar
o consenso, pelo que se tem de admitir a possibilidade de respostas díspares e até
mesmo contraditórias para as mesmas pretensões de correção.113
Todavia, essas dificuldades, segundo Robert Alexy, não desqualificam a teoria do
discurso jurídico como argumentação racional. O que importa é assinalar Iimites
para o universo de respostas possíveis — e racionalmente fundamentadas — diante
de uma determinada pretensão normativa. Os três níveis de argumentação
(legislativo, dogmático e judicial) visam a tornar factível o discurso racional, tanto
quanto possível também no campo valorativo. Cumprem uma idéia reguladora,
permitindo cobrir lacunas de justificação segundo o modelo do Estado Democrático
de Direito. Há, nas elaborações de Alexy, uma relação necessária entre a teoria do
direito e a teoria do Estado, a qual também se pode identificar nas reflexões de
Habermas, que estabelece um nexo conceitual intrínseco entre Estado de Direito e
democracia, propondo um novo paradigma do direito racional, distante tanto da
posição empirista, que nega qualquer tipo de legitimidade que ultrapasse a
contingência da norma posta, como também da concepção platônica de um direito
superior.
O direito moderno, para Habermas, está fundado num sistema de normas positivas e
impositivas, voltadas para a garantia da liberdade, as quais contanì com pretensão
de legitimidade, pois existe a expectativa de que possam salvaguardar
simetricamente a autonomia de todos os sujeitos de direito. Essa legitimidade, que
justifica a ameaça de sanção para garantir o cumprimento da norma, está presente
não só no momento da criação, como também no processo de aplicação do direito.
Por isso é que se admite o constrangimento imposto àquele que estrategicamente
tenta fugir às ordens legais. O fundamento de legitimidade da decisão que põe a
primeira norma, antes inserido no contexto de um direito natural, metafísico ou
religioso, é o processo democrático de criação do direito, orientado pela ação
comunicativa, única fonte pós-metafisica da legitimidade.
Início da nota de rodapé
(13) RobertAlexy, op. cit., p. 218-262.
Fim da nota de rodapé
Página 373
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
Com isso, substitui-se a teoria contratualista por um modelo do dis- curso ou da
deliberação.114 Para Habermas, o conceito de norma válida pressupõe não só a
criação de acordo com as regras institu- cionais como também a obediência da
maioria das pessoas.115 O direito deve proteger, de forma simétrica, todos os
participantes afetados,6 o que remete à noção de eqüidade.7 Esta proteção faz- se
por meio de regras institucionalizadas que têm por conteúdo os próprios
pressupostos comunicativos, além dos procedimentos de formação da opinião e da
vontade, aos quais é possível aplicar o principio do discurso (são válidas as normas
de ação com as quais poderiam concordar, enquanto participantes de discursos
racionais, todas as pessoas possivelmente afetadas).8 Por esse caminho, o princípio
do discurso assume a figura jurídica de um princípio de democracia, do que é lícito
concluir que os sujeitos processuais podem desatender determinações baseadas em
normas que eles não considerem, sob esse prisma, legítimas.
Mas o caráter processual da razão comunicativa encontra, no campo do direito,
sérias dificuldades. As pretensões de validade do discurso jurídico parecem
constituídas por âmbitos de ação estra- tégica. O processo civil tem em conta
interesses econômicos e o processo penal serve à domesticação de conflitos que se
alimentam da questão social. Ademais — e por razões que estão também rela-
cionadas a essas constelações de poder — não se pode cogitar de uma situação de
igualdade entre os sujeitos processuais, e tampouco da participação universal.
Quanto ao primeiro aspecto, veja-se que os prazos, para as partes, são próprios,
mas para o iuiz são impróprios. O iuiz pode voltar atrás em suas manifestações,
ressalvada a coisa julgada, ao passo que às partes se aplica o princípio da
estabilização
Início da nota de rodapé
(l 4) Habermas, Direito e democracia: entrefacticidade e validade, vol. 2,
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, p. 307-310. (115) Idem, p. 308. )ll() Idem, p.
310.)71 Idem, p.312,313e316.
Idein, p.319e321.
119 (Idem, p. 320.
Fim da nota de rodapé
Página 374
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
do processo (art. 264 do CPC). Quanto ao segundo aspecto, veja-se o que foi dito, a
propósito da proteção dos interesses difusos e coletivos, sobre o controle da
participação das massas no interior do Estado (seção 5.2). A sinceridade também
não parece ser constitutiva de qualquer comunicação Iingüística e muito menos da
comunicação processual. Fosse de outra forma, o iuiz, no processo penal, não
poderia se comunicar com o réu, que tem direito de mentir.2 A propósito ainda da
sinceridade, diga-se que mesmo a testemunha, em determinadas situações, como
foi visto no final do terceiro capítulo, está dispensada do dever de dizer a verdade.
Isto também se aplica às partes, no processo civil.
Enfim, ao sustentar a existência de pretensões de validade no processo judicial, a
teoria da ação comunicativa parece desconsiderar não só a desigualdade dos
sujeitos e as limitações impostas pelas regras institucionais, como também o fato de
que as partes têm motivações nem sempre orientadas para a busca cooperativa da
verdade. O que as anima é no mais das vezes não o julgamento justo ou correto,
mas sim um resultado que lhes seja vantajoso.2 Além do resultado, os sujeitos
processuais vislumbram muitas vezes consequências, que não se colocam na linha
de argumentação das partes ou do juiz, e que vão além da simples produção de
uma norma válida.22 Quando os sujeitos processuais se sentem à vontade para
enunciar essas conseqüências (ainda que efetivamente não o façam), isto é sinal de
que o argumento conseqüencialista está fundado em
Início da nota de rodapé
(120) Otaweinberger, LogischeAnalyse als Basis derjuristchenArgumentation, in
Krawietz & Alexy (org.), Metatheorie juristcher Argumentation, Berlim, Duncker-
Humblot, 1983, p. 195, apud Manuel Atienza, op. cit., p.272e273.
(121) Ver, nesse sentido, a crítica de Manuel Atienza (op. cit., p. 291).
(122) As elaborações desenvolvidas nesse parágrafo inspiraram-se na distinção feita
pr Neil MacCormick, entre resultado da ação e conseqüências da ação
(MacCormick, On legal decisions and their consequences; fron Dewey to Dworkin,
New York, New York University Iaw Review, vol. 58, ed. 2, p. 239-258, apud Manuel
Atienza, op. cit., p. 1 93-203). Para MacCormick, são os argumentos
conseqüencialistas, ao lado dos princípios, que permitem estabelecer o contato
entre o sistema e o mundo.
Fim da nota de rodapé
Página 375
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
valores aglutinadores (justiça, moralidade pública, interesse social etc). É o que
ocorre quando se fala dos efeitos danosos da decretação da falência ou da
condenação à pena privativa da liberdade. Embora se possa cogitar aqui de uma
orientação utilitarista, certo é que o sentido difere daquele que se pode encontrar na
tradição do utilitarismo. A propósito, colhem os fundamentos da decisão do Supremo
Tribunal Federal, na ação direta de constitucionalidade relativa à medida provisória
que dispôs sobre o racionamento de energia elétrica, mencionados no capítulo
anterior (seção 4.2). A dogmática jurídica também se utiliza de argumentos
conseqüencialistas, quer na tentativa de temperar o rigor da lei, quer com o objetivo
de alcançar um fim social. Disso é exemplo a chamada terceira fase metodológica
do processo civil (seção 5.2). Mas nem sempre os argulnentos conseqiiencialistas
podem ser apresentados. A questão do abuso dos direitos processuais pode ser
localizada exatamente aqui. A força do argumento das partes está em nunca dizer
aquilo que não pode ser dito até o fim.
Habermas sai em defesa da teoria de Robert Alexy, dizendo que ela não deve levar
à errônea suposição de que todos os discursos efetivamente preencham as regras
da argumentação racional, pois estas não são constitutivas no mesmo sentido em
que as regras do xadrez determinam uma prática de jogo fatual. A situação ideal de
fala pode ou não ser contrafática, pois representa pressuposições pragmáticas de
uma prática discursiva privilegiada. Habermas admite que os discursos da vida real
estão submetidos a limitações de espaço e de tempo, a injunções sociais e a
motivações estranhas à busca cooperativa da verdade. As limitações empíricas, as
influências internas e externas devem ser neutralizadas por dispositivos
institucionais, de tal sorte que as condições idealizadas, já pressupostas pelos
participantes, possam ser preenchidas pelo menos numa aproximação suficiente.23
O próprio Alexy, no posfácio da sua obra, respondendo às críticas que lhe foram
dirigidas, admite que a relação
Início da nota de rodapé
(123) Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro,
Tempo Brasileiro, 1 989 (Biblioteca Tempo Universitário, 84, Série
Estudos Alemães), p.1 14 e 1 15.
Fim da nota de rodapé
Página 376
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
entre as partes processuais nem sempre é simétrica. Além disso, há limitações de
ordem institucional (tempo, pressão etc.) e o que conta, no mais das vezes, é ganhar
a causa. Sustenta, entretanto, que isso não desqualifica sua teoria. O ponto decisivo
é que os interessados exijam argumentar de forma racional. Ao menos devem fingir
que seus argumentos são constituídos de tal forma, que se encontram em condições
ideais para obter o acordo de todos.24 As partes têm de sustentar suas pretensões
de correção, ainda que por outras razões entendam necessária e conveniente uma
decisão que lhes seja favorável. Se não o fizerem, não terão observado a condição
do jogo. Isso mostra — arremata Alexy — que a argumentação em juízo não só
deve ser interpretada no sentido de uma teoria do discurso, mas também precisa ser
interpretada dessa maneira.25
A interpretação sugerida por Habermas e por Robert Alexy levanta pretensões de
validade que não se sustentam. A situação ideal defala, que leva a um acordo válido
para todos os sujeitos racionais, é sabidamente um conceito não contrastável com a
realidade empírica. Mas essa idealização acaba cumprindo uma função ideológica,
pois, em certas circunstâncias, permite justificar um modelo de democracia
meramente formal, onde as reais barreiras de comunicação são simplesmente
desconsideradas.26 Uma coisa é argumentar diante de um auditório crítico, que
esteja em condições de rejeitar pretensões engendradas no contexto da ação
estratégica; outra, consiste em falar para um auditório cuja atitude passiva e não
contestadora qualifica-o muito mais como assistência. Universalidade da
comunicação sem igualdade de oportunidades para o diálogo é pura retórica. Por
outro lado, o processo judicial revela limitações quando se trata de trabalhar com
códigos mais inclusivos, a exemplo daqueles que compõem a esfera política, do que
são mostra os problemas enfrentados pelo processo civil, na sua chamada
terceirafase inetodológica, que interferem com ajudicialização da
Início da nota de rodapé
(124) Robert Alexy, op. cit., p. 324.
(125) Idein ibidem.
(126) Ver, também nesse sentido, a crítica de Manuel Atienza (op. cit., p. 273 e 274).
Fim da nota de rodapé
Página 377
RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA
política e com a politização do jurídico. Conflitos de classe, movimentos grevistas e
outras formas de mobilização social não podem ser relegados ao campo das
decisões e atitudes emocionais cegas. Porém, a racionalidade da decisão também
tem de ser avaliada na base da decisão possível, o que pressupõe controle. Esse é
o grande desafio de uma teoria do discurso racional, quer no nível prático da
argumentação jurídica (dogmática jurídica, processo judicial), quer no nível de uma
teoria argumentativa da argumentação (teoria do direito).
Por último, se é certo, como sustenta Robert Alexy, que as partes têm de fingir que
seus argumentos atendem às condições do discurso racional, há de se indagar,
então, acerca do sentido de uma teoria do abuso dos direitos processuais. Se a
insinceridade faz parte da ação comunicativa, subsiste aparentemente insolúvel a
questão da existência de limites e dos critérios para estabelecer um mau uso, um
uso excessivo, impróprio ou injusto do processo. Por outro lado, admitindo-se que já
não se possa mais falar de um agir comunicativo, mas apenas de um agir
estratégico, ainda assim subsistiria a dúvida, pois a vontade humana não conhece
limites senão na própria razão ou na razão do mais forte. A conclusão do presente
trabalho será uma tentativa de apontar caminhos para resolver este dilema.
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CONCLUSÃO
É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda razão pode opor-se
outra: nunca mais se acabava. A força, pelo con- trário, resolve tudo. Levou tempo,
mas conseguimos compreendê- lo. Por exemplo, deve tê-Io notado a nossa velha
Europa filósofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingê-
nuos: Eu penso assim. Quais são suas objeções? Tornamo-nos Iúci- dos.
Substituímos o diálogo pelo comunicado. Esta é a verdade, dizemos. Podem ainda
discuti-la, isso não nos interessa. Mas, den- tro de alguns anos lá estará a polícia
para lhes mostrar que tenho razão. Albert Camus via o homem como um sol
diferente daque- le que aparece na fábula de Esopo. Violento, o sol vai projetando
na terra o esplendor da luz. Mas sua trajetória deixa também na paisa- gem uma
geografia de sombras. Como no Mito de Sísfo, onde Camus expõe a contradição
entre o homem e sua situação irracional no mundo, é preciso enfrentar a tragédia,
romper o dilema entre uma razão comunicativa aparente e uma razão abertamente
estratégica, na qual a ação orientada para o êxito acena sempre com a ameaça de
sanção. Enfrentar o dilema não significa resolvê-lo, mas apenas não ser devorado
por ele.
O projeto de uma teoria do discursojurídico como discurso racional não é senão uma
tentativa de fugir ao impasse entre racio- nalidade e irracionalidade. Porém, tem-se
de reconhecer que uma teoria crítica do processo judicial ainda está por ser
construída. As elaborações até agora desenvolvidas não foram capazes de estabe-
lecer o consenso em torno das pretensões de verdade (campo cog- nitivo), correção
(campo prático) e sinceridade (campo subjetivo)
Início da nota de rodapé
Albert Camus, A queda, Lisboa, Edição Livros do Brasil (ColeçãoAutores de
sempre), s.d., p. 75 e 76.
Fim da nota de rodapé
Página 380
ABUSO DE DJREITO PROCESSUAL
levantadas pelos juristas. Ordinariamente, essas pretensões não são questionadas.
O que importa, considerado o pragmatismo dos operadores do direito, é resolver o
conflito. E aqui os juristas seguem produzindo uma forma de saber que se pretende
descritiva e prescritiva, na qual se orientam e se legitimam as decisões judiciais.
Mas o direito não se esgota no sistema. Ele somente ganha sentido em contato com
o mundo. Há situações limite, tanto na esfera da subsunção do fato à norma, como
no âmbito da interpretação e da prova. Por isso, se um dos sujeitos do processo
problematiza as pretensões de validade levantadas pelo outro, se a
comunidadejurídica passa a questionar as pretensões de validade suscitadas pela
dogmática, tem- se de passar para o discurso, para o campo dajustificação.
Quando a dogmática jurídica ou os sujeitos do processo buscam estabelecer o
sentido do abuso processual, pode se dizer, para fraseando Robert Alexy, que eles
fingem argumentar no plano da racionalidade, naquelas três esferas de pretensão de
validade. A verdade é simples aparência, verossimilhança. No plano da sinceridade,
é difícil estabelecer uma distinção clara entre saber e querer sobre tudo quando a
igualdade entre os participantes, pressuposta pelas regras institucionais do debate
(correção), nem sempre se verifica na situação comunicativa concreta. Se é certo
que nisto se consente do ângulo do discurso prático, como Alexy deixou claro no
posfácio da sua obra, certo também é que não se pode admitir tal impostura no
plano de uma teoria que se pretenda científica. Mas uma coisa é o ethos científico e
outra a prática científica, um fazer persuasivo.2 Ao admitir que o processo não é
uma disputa de cavalheiros, cheia de flores e mesuras, já que nele se refletem as
mesmas tensões do resto da sociedade, a teoria processual, assumindo aqui o
papel de uma teoria crítica, acaba desvelando essa faceta ideológica da
argumentação jurídica, que consiste em
Início da nota de rodapé
(2) A expressão foi tomada de empréstimo de Maria José Coracini (Um fazer
Persuasivo: o discurso subjetivo da ciência, Campinas, Pontes-Educ, 1991).
Calsamiglia, num sentido bem próximo daquele sustentado por Alexy, diz que a
dogmática inventa teorias que servem para resolver conflitos sociais. Os juízes,
juristas e legisladores so educados nesse contexto e se vêem fortemente
influenciados por ele (op. cit., p. 252).
Fim da nota de rodapé
Página 381
CONCLUSÃO
ocultar o uso performativo da linguagem jurídica, em esconder o contexto
pragmático.
A concepção subjetivista do abuso dos direitos processuais, ao postular que a
qualificação do ato praticado no processo está vinculada ao exame da intenção da
parte, levanta pretensões de validade que não se justificam. Verdade subjetiva e
verdade objetiva são questões que até hoje não alcançaram consenso, muito menos
no campo praxeológico, onde se impõe decidir. A disputa em tomo da verdade
processual desenvolve-se, assim, num contexto retórico, que busca acudir esta ou
aquela decisão. Como diz Alexy, as partes têm de fingir que as movem o ideal de
justiça, objetivos nobres, para que possam ser admitidas ao jogo processual. A
máxima segundo a qual não se pode alegar a própria torpeza em juízo vale aqui,
analogamente, em um sentido muito próximo. Assim como na política ninguém fala
em nome da autocracia, admitindo interesses inconfessáveis, também no processo
judicial há situações que fogem às regras do debate, podendo sugerir uma
contradição pragmática. E o caso daquele que opõe embargos de declaração,
orientado por uma ação estratégica, apenas para ganhar tempo na elaboração do
recurso de apelação. Claro está que as razões dos embargos não poderão ser
estas. Tanto quanto improvável se mostra uma regulação normativa da publicidade
enganosa no campo da política, também na esfera judicial é difícil confrontar o
abuso com o direito na base das intenções da parte.
O controle judicial do abuso dá se sempre no contexto da justificação da conduta da
parte, da força dos argumentos por ela apresentados em abono ao seu
procedimento, e também da repercussão que a conduta possa ter para a decisão da
causa. Dependerá, outro sim, da reação do ex adverso diante da falta, ou dito de
outro modo, da importância que a parte contrária possa dar àquela conduta. Enfim, a
alteração do eixo do debate em torno do abuso dos direitos processuais, que se
desloca do campo semântico para o campo pragmático, permite entender que
importam não tanto os motivos da ação ou uma escala de valores absolutos nos
quais possa ela se inspirar, mas sim a justificação da conduta da parte, que deve ser
razoável. Essa justificação é dialógica. Por isso, além da razão
Página 382
ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
compreensiva, como vislumbrada por Recásens Siches,3 interessa considerar a
razão discursiva.
Sob esse enfoque, perde sentido a discussão acerca de uma verdade real ou formal,
de um princípio inquisitivo ou dispositivo, tanto quanto de uma respectiva e suposta
relação entre estes conceitos e um regime autoritário ou democrático, totalitário ou
liberal. Todos os participantes do processo podem tudo, desde que se conformem às
regras da argumentação racional, que se pressupõe editadas de acordo com um
procedimento democrático. Mas claro está, como já se adiantou, que esse
paradigma da razão comunicativa encontra problemas de justificação. O
pressuposto democrático é um deles. As críticas feitas à instituição do tribunal do júri
revelam, numa microescala, o circulo vicioso ou a petição de princípio a que pode
conduzir a idéia de democracia. A comunicação presume capacidade para o diálogo,
que é pressuposta pela lei. Mas o pressuposto nem sempre condiz com a realidade
política e social, o que torna o homem refém do populismo e das decisões
emocionais, que nem mesmo têm de ser justificadas (nem o eleitor nem ojurado
fundamentam seu voto). Nesse contexto, não há um paradigma racional para
estabelecer o sentido do abuso. Contudo, o aprendizado do diálogo só é possível no
ambiente democrático. Talvez esse seja o legado da teoria da ação comunicativa,
revelar por detrás daquela petição de princípio um círculo virtuoso.
Mas não se confundem o discurso político e o discurso processual. Numa situação
perversa, em que o eleitor e o político estejam mancomunados para fraudar a lei,
não se pode falar em ação comunicativa. O discurso desenvolvido no processo
judicial é, entretanto, como consideram Jürgen Habermas e Robert Alexy, um caso
especial do discurso prático, pois a sinceridade aqui deve ser entendida num sentido
muito específico, como já se disse. Esse enfoque, consideradas as regras de
transição do discurso prático em geral,4 que permitem a passagem de um discurso
prático para um
Início da nota de rodapé
(3) Recaséns Siches, Introducción al e.studio del derecho, Buenos Aires, Editorjal
Porruá, S.A., p. 254-260.
(4) A propósito das regras do discurso prático em geral, ver o que foi dito na nota 1 1
1 do quinto capítulo.
Fim da nota de rodapé
Página 383
CONCLUSÃO
discurso teórico, coloca a dogmática jurídica numa posição incômoda, ao ter de
aceitar a colusão como agir comunicativo. Assim, convencendo-se o juiz dos
argumentos que as partes simulam, adrede combinadas para ludibriá-lo, estará
consumado o logro, o embuste. Por isso, Habermas inicialmente sugeria a
possibilidade de um agir estratégico parasitário do agir comunicativo, do que o
abuso do direito processual parece ser um bom exemplo.5 Mas aqui
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(5) Tercio Sampaio Ferraz Jr. também vê momentos irracionais na discussão
jurídica. No processo judicial, a discussão dialética revela-se como discussão contra,
onde as partes não são homólogas, o que é próprio dos discursos que envolvem o
problema da decisão, e mais, onde predomina a regra do dever de prova, diante da
reação questionadora do ouvinte, como visto em Perelman (e também em
Habermas, acrescenta-se). O dever de prova faz do processo judicial um discurso
racional, uma forma de contornar as dificuldades do recurso a uma justificação
óltima, contida em princípios ou num ideal romântico da verdade como eterna
discussão. A liberdade processual pressupõe que as partes tenham interesse em
buscar a verdade, mas pressupõe também que elas possam mentir. Se o processo
fosse discussão com (homologia entre as partes), o discurso judicial seria um
procedimento de busca da verdade, conforme orientação da dogmática processual,
que aproxima a noção de verdade da noção de justiça. Mas não é isso que ocorre e,
assim, a noção de verdade tem de ser relativizada, institucionalizada por regras, o
que simplifica a estratégia do discurso judicial, permitindo conciliar premissas por
vezes incompativeis. O controle discursivo da decisão dá se através de um conjunto
de prescrições interpretativas de natureza tópica. Na tentativa de influenciar o
receptor da mensagem, os participantes mostram-se convincentes e confiantes.
Com astúcia tática, eles procuram esconder o modo de sua comunicação. Na dis-
cussão contra judicial, portanto, os participes perdem a sua eventual ingenuidade. O
advogado deve aparecer como defensor de um interesse Iegítimo, o iuiz como figura
neutra e imparcial, enquanto as partes têm de se mostrar como homens de bem,
pessoas de boa fé, tudo isto permeado por uma tópica formal, que impõe a
observância de certas regras à atividade probatória, orientada por uma retórica
ciceriana. Considerado, porém, o sentido partidário das ações, as partes nem
sempre buscam uma decisão ótima (verdadeira), mas apenas satisfatória, aquela
possível para colocar termo ao processo. E precisamente o caráter ambíguo da
verdade que explica o aparecimento do juiz como terceiro comunicador nesse
processo dialógico. E ele quem garante a
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
ainda subsiste a questão dos limites para distinguir o agir comunicativo do agir
estratégico.
Não se pode, do prisma de uma teoria pragmática do abuso dos direitos
processuais, buscar um critério a prioridos limites entre a trapaça e o regular
exercício, nem mesmo um critério empírico. A razão discursiva, orientada por
valores sociais relevantes, permitirá aos sujeitos processuais orientar-se em cada
situação concreta. No agir estratégico, seja ele manifestou ou parasitário, sempre
ha- verá vestígios do mundo da vida, como diz Habermas, aquele resto de
lembrança do que foi um dia um mundo orientado pelos valores, aos quais não se
pode sobrepor qualquer interesse, numa forma de utilitarismo perverso. Se a
dogmática jurídica e o processo judicial atendem às expectativas de certeza,
igualdade e justiça, tem se de reconhecer que ambos são elementos de integração
social, não se confundindo com a irracionalidade de uma vontade arbitrária.6 Muito
além de uma justificação interna, da coerência de seus princípios, conceitos e
procedimentos, a razão prática tem de prestar contas à humanidade. Dela se espera
que seja capaz não só de compreender o homem e suas circunstâncias, como
também de interferir para a solução dos conflitos sociais, com o que se dá um
sentido à vida. Mas ainda que a verdade e o sentido da vida sejam coisas muito
graves para serem confiadas à pesquisa
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seriedade do discurso. Enquanto a autoridade está argumentando, mantém-se o
caráter racional do discurso jurídico, já que a persuasão implica a idéia de
fundamentação e critica. A autoridade fica, por assim dizer, suspensa. Mas essa
homologia — que se dá quando as partes são racionais, dotadas de iguais
condições de verificar intersubjetivamente suas ações lingüísticas, e mais, quando o
discurso fundamentado está aberto à critica — vê-se rompida pela fundamentação
monológica da norma posta, que implica uma atitude passiva do ouvinte. A
heterologia é artificialmente desconsiderada, através de uma série de ficções
comunicativas, o que coloca em pauta o momento ideológico do direito (Tercio
Sampaio Ferraz Jr., Direito, retórica e comunicação: subsídiospara uma pragmática
do discurso jurídico, São Paulo, Saraiva, 1 973, p. xii, xiii, 31-37, 61-95, 159-189).
(6) Calsamiglia, op. cit., p. 273 e 274.
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CONCLUSÃO
da melhor argumentação, como sustenta Barcellona,7 há de se reconhecer que o
discurso é sempre preferível à brutalidade do comando, que não deixa espaço para
o dissenso. Daí porque mesmo nos contextos de agir manifestamente estratégico,
como são as guerras civis, os conflitos bélicos, procura-se apelar para uma instância
normativa, como lembra Habermas.8 E o mundo contemporâneo vem dando
testemunho disto.
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(7) Barcellona, O egoísmo maduro e a insensatez do capital, São Paulo, Ícone
Editora, p. 77.
(8) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóficos, Rio de Ja- neiro,
Tempo Brasileiro (Biblioteca Tempo Universitário, ed. 90, Série Estudos Alemães),
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL
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Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 5 Câmara Especial, Apelação
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Vidal, 3 1.1 0.200 1, mimeografagem.
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Diagramação eletrônica
Textos & Livros Proposta Editorial S/C Ltda.
CNPJ 04.942.841/0001-79
Impressão e acabamento
Gráfica e Editora Alaúde
CNPJ 01.856.174/0001-13
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Abuso de Direito e Má-Fé Processual Rui Stoco
Filosofia do Direito e lnterpretação
2.a edição
David Schnaid
Introdução à Ciência do Direito
26. a edição
André Franco Montoro
Teoria Pura do Direito
3.a edição
Hans Kelsen (Tradução de Agnes Cretella e
José Cretella Júnior)
Editora
REVISTA DOS TRIBUNAIS
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