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SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. Abuso de direito processual: uma teoria pragmática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 429 p. Página 1 ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL EDITORA AFILIADA Página 2 OBRAS DO AUTOR O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no Direito.2. ed., ver. E atual. São Paulo: RT, 2005. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

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SOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. Abuso de direito processual: uma teoria

pragmática. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. 429 p.

Página 1

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

EDITORA AFILIADA

Página 2

OBRAS DO AUTOR

O papel da ideologia no preenchimento das lacunas no Direito.2. ed., ver. E atual.

São Paulo: RT, 2005.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Souza, Luiz Sergio Fernandes de

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Abuso de direito processual: uma teoria pragmática / Luiz Sergio Fernandes de

Souza. — São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

Bibliografia.

ISBN 85-203-2739-7

1. Abuso de direito 2. Brasil - Processo civil I. Título.

05-3679 CDU-347. 124:347.9

Índices para catálogo sistemático: 1. Abuso do direito processual: Direito civil

347.124:347.9 2. Direito processual: Abuso: Direito civil 347.124:347.9

Página 3

LUIZ SERGIO FERNANDES DE SOUZA

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Uma teoria pragmática

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Uma teoria pragmática

LUIZ SERGIO FERNANDES DE SOUZA

0707

© desta edição: 2005

EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.

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Impresso no Brasil (06 - 2005)

ISBN 85-203-2739-7

Página 5

Ao Professor

Alaôr Caffé Alves

Página 6- Em Branco

Página 7

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Agradecimentos

Este livro é o resultado de alguns anos de pesquisa, também consumidos na

criteriosa seleção e organização da literatura e jurisprudência existentes sobre o

tema do abuso do direito. Agradeço a inestimável colaboração de Patrícia, que me

auxiliou na localização dos textos previamente identificados no projeto. Sou grato, do

mesmo modo, à prestimosa colaboração de Márcia Cristina, que desenvolveu

pesquisas na Biblioteca Nacional da França, em bus- ca dos escritos de Saleilles,

Charmont e Porcherot, publicados no início do século passado e não acessíveis por

meio eletrônico. Meus agradecimentos, igualmente, ao Professor Paulo Cintra

Damião, cujo apoio não me faltou na pesquisa e conferência dos textos em latim. Ao

saudoso magistrado João Roberto Bueno de Souza, antes de tudo um grande

amigo, deixo também aqui o meu reconhecimento. Foi em sua acolhedora biblioteca

que desenvolvi parte das pesquisas, não raras vezes, noite adentro, animado pela

prosa envolvente desse grande homem, que é para mim fonte perene de inspiração.

Ao companheiro do Colégio de Aplicação, hoje diplomata e pesquisador do Cebrap,

Geraldo Miniuci Ferreira Jr., que reencontrei no curso de pós-graduação da USP,

por um desses felizes acasos, e com quem tive oportunidade de discutir a teoria da

ação comunicativa de Habermas, fio condutor das minhas elaborações. Por fim,

deixo o registro da minha gratidão à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e

à Universidade de São Paulo, instituições nas quais encontrei o necessário estímulo

para o desenvolvimento dos meus estudos e da minha carreira acadêmica.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................1

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1. A CONSTRUÇÃO DA TEORIA DO ABUSO DO DIREITO NA DOGMÁTICA

JURÍDICA.......................................................................................................... 17

1.1 Os antecedentes históricos e a jurisprudência francesa.............................. 17

1 .2 A doutrina brasileira.................................................................................... 35

1.3 A construção do significado do abuso do direito na base do caso concreto 48

1 .4 Para uma revisão crítica da teoria do abuso do direito............................... 72

2. O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES NO PROCESSO JUDICIAL............. 85

2.1 Delimitações do tema na dogmática jurídica................................................ 85

2.2 As dificuldades do subjetivismo de base psicológica................................. 108

2.3 As práticas judiciárias e os modelos de verdade........................................ 132

2.4 A verdade no senso comum dos processualistas....................................... 146

3. A TEORIA DO SIGNIFICADO...................................................................... 171

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3. 1 A cosmovisão da Antiguidade................................................................... 171

3.2 A teoria representativa............................................................................... 179

3.3 A superação da dicotomia idealismo e realismo......................................... 194

3.4 A consciência reflexiva e a razão alargada................................................ 208

4. AS TEORIAS PRAGMÁTICAS.................................................................... 229

4. 1 O paradoxo de Wittgenstein...................................................................... 229

4.2 A superação da teoria representativa......................................................... 252

4.3 Razão teórica versus razão prática............................................................ 268

4.4 A Iinguagem e a construção da realidade.................................................. 283

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

5. A RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA DO ABUSO DOS DIREITOS

PROCESSUAIS ..............................................................................................303

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5.1 A razão instrumental e os direitos absolutos.............................................. 303

5.2 A racionalidade instrumental e as novas demandas sociais ..................... 318

5.3 A retórica no campo da ação estratégica e da ação comunicativa............ 331

5.4 A possibilidade do agir comunicativo no processo judicial .........................352

CONCLUSÃO................................................................................................. 379

REFERÊNCIAS............................................................................................... 387

1. Bibliografia................................................................................................... 387

2. Jurisprudência............................................................................................. 421

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INTRODUÇAO

“Há uma medida em todas as coisas: existem, afinal, Iimites”

(Horacio, Satiras, 1, 1.)

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O problema central que orienta a pesquisa sobre o abuso dos direitos processuais

diz respeito à existência de limites à atuação daqueles que, em tese, agem em

conformidade com a norma legal. Na perspectiva do formalismo jurídico, ou se

exerce um direito, pelo que não se pode cogitar de abuso, ou então se está

praticando um ilícito, razão pela qual também não há de se falar em abuso. A

discussão, posta nestes termos, aponta para a dificuldade em separar o direito e a

moral, a norma e a aplicação do direito, distinções que surgem somente quando o

pensamento jurídico se dá conta do contraste entre o ordenamento normativo e os

fatos, esferas que aparecem imbricadas na elaboração dos romanos. O primeiro e

segundo capítulos refletem, precisamente, as pesquisas desenvolvidas no campo da

dogmática jurídica, na tentativa de surpreender o significado do abuso do direito

desde os antigos à modernidade. Há todo um refinamento de conceitos que não se

pode desconsiderar, nem mesmo numa investigação zetética, cuja perspectiva

crítica pressupõe o conhecimento da maneira como se dá a elaboração prática do

direito ao longo dos séculos. Não bastasse, a distinção entre questões dogmáticas e

questões zetéticas é relativa, pois o discurso jurídico acaba suscitando um problema

de justificação, o que sugere algumas dificuldades quando se trata de desenvolver

uma teoria do abuso dos direitos processuais.

A separação entre norma e realidade dá lugar, outrossim, a uma reflexão

epistemológica do direito, que se desenvolve num movimento pendular, oscilando

entre o jusnaturalismo (como imanência ou transcendência do justo) e o formalismo

jurídico, em seus diversos

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

matizes. As elaborações dogmáticas e as justificações no plano da teoria do direito

refletem, alternativamente, a metafísica raciona- lista e o cientificismo do positivismo

francês, como será visto no terceiro capítulo. Toda essa controvérsia se move no

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plano da distinção entre uma razão prática e uma razão teórica, incapaz de

apreender o significado social do abuso do direito, conceito que se vai delineando

com o desenvolvimento da sociedade industrial. Nesse contexto, as práticas

jurídicas orientadas por valores acabam cedendo espaço para um direito que busca

sua legitimidade na norma posta, expressão de determinados interesses sociais.

Significativa se mostra, dentro desse quadro, a jurisprudência francesa, inspirada

nas elaborações inovadoras da doutrina da época, que suplantaram a teoria da

emulação, como desenvolvida desde o direito romano. Segundo a intuição romana,

que deitou raízes na Idade Média, o abuso do direito caracterizava-se pelo exercício

imoderado de um direito, sem nenhum proveito próprio e em prejuízo alheio.

Sensível às mudanças implementadas pela sociedade de massas, que coloca em

pauta interesses transindividuais, jurisprudência e dou- trina do início do século XX

deixam-se orientar por um novo paradigma do direito subjetivo. A figura do abuso do

direito, que havia surgido como forma de mitigar o individualismo liberal-burguês,

contornando a estrita legalidade, passa a reivindicar autonomia nos quadros da

teoria geral do direito, com o que se afasta das elaborações relativas aos atos

ilícitos. No Brasil, as discussões acerca do abuso do direito desenvolvem-se

inicialmente na linha da elaboração dos romanos, presa à noção da aemulatio. Esta

é a inspiração do Código Civil de Clóvis Beviláqua, reflexo de uma sociedade

patriarcal e agrária, que acaba ganhando novos contornos a partir da década de 50,

com o processo de industrialização e urbanização crescente.

O surgimento do Estado Social não alterou, entretanto, de maneira significativa, o

rumo das elaborações processuais. A autonomia do direito de ação reproduz, no

campo da dogmática processual, a tendência formalista do direito, conduzindo a

decisões que não se identificam com as práticas sociais. Esse descompasso entre

as demandas da sociedade de massa e a capacidade de solução judicial dos

conflitos leva à formulação de categorias binárias do tipo princípio dispositivo-

princípio inquisitivo, verdade formal-verdade

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INTRODUÇÃO

material, topoi que servem para garantir as expectativas em torno do papel

hegemônico do direito na solução dos conflitos. Como observa Horkheimer, a

formalização dos valores e a instrumentalização crescente do conhecimento não

podem prescindir de uma certa ontologia. Por isso, o recurso às categorias da

filosofia do absoluto, que fundamentam as chamadas teorias do abuso processual,

revela-se, de um ponto de vista crítico, como simples expediente retórico, que

incorpora o discurso zetético para legitimar determinada solução do caso concreto.

De uma tal perspectiva, que lança um novo olhar sobre a dogmática processual, faz-

se necessária a compreensão de outros jogos de racionalidade, diferentes daqueles

elabora- dos pela filosofia da consciência.

Como se terá oportunidade de ver no quarto capítulo, o positivismo lógico, ao afastar

a possibilidade da elaboração de proposições científicas acerca de juízos

metafísicos, acaba abrindo espaço para uma reflexão pragmática em torno do abuso

do direito, que se inaugura na senda aberta pela filosofia analítica, mais especifica-

mente com a reviravolta de Wittgenstein. Em suas Investigações Filosóficas,

Wittgenstein põe em xeque as elaborações do Círculo de Viena, ao mostrar o

significado das categorias culturais, que revelam diversas formas de vida. As

palavras não são apenas representativas, cumprindo, outrossim, determinadas

funções. Seu significado não pode ser reduzido ao modelo triádico signficante-

significado-coisa. Com isto, a epistemologia jurídica, até então presa a uma filosofia

da consciência, ao mentalismo dos racionalistas e empiristas, passa a conhecer a

maneira como os operadores do direito elaboram categorias ricas de significado,

entre as quais está a noção de abuso do direito, que surge da trama das relações

intersubjetivas.

Com a pragmática, o conceito de representação, preso à relação sujeito-objeto, dá

lugar a uma investigação voltada para o uso da linguagem, perspectiva na qual os

sujeitos processuais constroem intersubjetivamente o significado das suas ações. O

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ato de fala, na expressão de J.L. Austin, não só descreve fatos, como também

realiza ações. Ao falar, as partes estão praticando atos processuais cujo significado

não pode ser compreendido na base das categorias verdadeiro-falso, mas sim no

plano dos proferimentos performativos, que dizem com a efetividade social do

direito, noção que se desenvolve

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

na esfera das condições de felicidade dos atos de fala. Esse novo enfoque, que

supera a semântica clássica, oferece um instrumental teórico adequado para a

compreensão da racionalidade instrumental. How to do things whith words teve

grande repercussão não só nos domínios da filosofia como também no campo de

outras diversas disciplinas. No caso do direito, cujas elaborações teóricas guardam

estreitas relações com a praxis jurídica — ambas com pretensões descritivas e

prescritivas — as reflexões de Austin revelam a dificuldade no desenvolvimento de

uma teoria crítica que se utiliza das mesmas categorias que estão no campo

dogmático. E precisa- mente esta dificuldade que se encontra na elaboração de um

discurso crítico do abuso dos direitos processuais, como já se adiantou.

Abre-se então para o discurso jurídico, no último capítulo, a perspectiva de uma

justificação do ângulo de uma razão comunicativa, tanto no nível da prática quanto

no plano da teoria processual. Partindo do mesmo pressuposto pragmático de

Austin, Habermas vislumbra a possibilidade de uma fundamentação dialógica em

diversas setores da vida social, ainda não capturados pela racionalidade sistêmica.

Fugindo ao pessimismo que se pode entrever na idéia de um Eclipse da Razão,

como concebida por Horkheimer, a teoria da ação comunicativa de Habermas

permite resgatar a dimensão ética do direito, que está nas regras de fundamentação

discursiva. Sucede que as relações de poder se encontram na própria gênese do

direito. A decisão, no limite, aponta sempre para a possibilidade do exercício da

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força. Isto sugere que o discurso jurídico se constitui no campo da ação estratégica,

no qual a idéia de consenso não passa de eufemismo. Afinal, as teorias dogmáticas,

nas quais se inclui a teoria do abuso dos direitos processuais, guardam a marca

impressiva do utilitarismo, próprio do tipo de pensamento que se desenvolve na

sociedade de massa. Caberia indagar, então, sobre a possibilidade de um discurso

racional no campo do direito, e mais, sobre o significado de uma teoria do abuso dos

direitos processuais no âmbito das pretensões de racionalidade levantadas pela

teoria da ação comunicativa.

Essa tentativa de reatar teoria e praxis, no contexto das sociedades pós-tradicionais,

em que os valores são substituídos por interesses, nos quais as preferências

pessoais passam a ocupar o

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INTRODUÇÃO

espaço antes reservado à virtude da ética aristotélica, revela-se como expressão da

angústia do homem contemporâneo diante de um saber tecnológico que também

pede limites. A teoria pragmática, ao mesmo tempo em que mostra a maneira como

a razão forma- lizada opera no contexto da sociedade de massa, busca o retorno a

uma ética capaz de gerar acordos amplamente partilhados, na pretensão de

completar o trabalho do iluminismo. Mas a voracidade com que os mundos da vida

vão sendo rapidamente anexados pela racionalidade instrumental mostra também a

dificuldade em conceber o processo judicial como agir comunicativo. Nele, os

sujeitos processuais, que desenvolvem relações assimétricas, estão sub- metidos a

injunções e motivações estranhas à busca cooperativa da verdade. Por isso,

subsiste, de maneira instigante e desafiadora, a questão dos limites da atuação das

partes no processo, ou seja, a pergunta acerca do sentido do abuso do direito

processual, e mais, do significado de uma teoria do abuso.

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A contribuição pragmática não interfere com o senso comum dos processualistas.

Não se está buscando aqui um novo enfoque dogmático, uma nova operabilidade, à

maneira como se encontra na doutrina jurídica, mas apenas o desenvolvimento de

uma reflexão crítica sobre o processo judicial. Procura-se conhecer o significado

intersubjetivo das formas e fórmulas desenvolvidas pelos operadores do direito, para

entender o sentido do abuso dos direitos processuais, particularmente numa

sociedade onde os valores foram substituídos pelos interesses, onde as teorias

transformam-se em tendências, enfim, um mundo no qual não se concebe mais a

existência de normas universais, quer de natureza intelectual, quer de natureza

moral. Pode impressionar a densidade da pesquisa dogmática, sobre- tudo no

primeiro e segundo capítulos, em um trabalho de viés filosófico. Tem-se de admitir,

porém, que as elaborações jurídicas são mesmo envolventes. Entendê-las é quase

sempre mergulhar num mundo repleto de teias significativas, de estereótipos

culturais entretecidos pela linguagem. Conquanto a compreensão crítica exija um

certo distanciamento, não é fácil lançar um olhar distante sobre um objeto que é

precisamente o resultado da contínua interação de práticas culturais. Essa

dificuldade acompanha, a cada passo, a elaboração de uma teoria do abuso dos

direitos processuais.

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1

A CONSTRUÇÃO DA TEORIA DO ABUSO DO DIREITO NA DOGMÁTICA

JURÍDICA

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SUMÁRIO: 1.1 Os antecedentes hist6ricos e a jurisprudência francesa— 1 .2A

doutrina brasileira— 1 .3 A construção do significado do abuso do direito na base do

caso concreto — 1 .4 Para uma revisão crítica da teoria do abuso do direito.

1.1 Os antecedentes históricos e a jurisprudência francesa

É bastante discutível a posição daqueles que buscam no direito romano a origem,

ainda que remota, da noção de abuso do direito. Alexandre Corrêa, em trabalho

apresentado no Seminário Internacional de Direito Romano (Perugia, 1971), embora

criticando a tese dos que se negam a ver aquela origem, admite que não há

propriamente entre os romanos uma formulação de princípios, uma dou- trina, mas

apenas um sentimento, uma intuição, que se pode recolher em Cícero e nas regras

particulares dos jurisconsultos.

Em Max Kaser também é possível encontrar referência ao direito romano. A exceptio

dolis é o meio processual que garante a efe

Início de nota de rodapé

(1) Alexandre Corrêa, Notas sobre o abuso dos direitos em Direito Roma- no

Clássico, in Justitia, Ano XXXVI, 4. ° Trimestre de 1974, vol. 87, p. 2 1 1 -220.

Admite Alexandre Corrêa, citando Scialoja e Bonfante — contrários à tese da origem

romana do instituto — que não se trata propriamente de regras gerais de direito.

Todavia, na solução dos casos particulares, o romanista brasileiro reconhece a

existência de princípios implícitos.

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

tividade do preceito que proíbe, caso a caso, o exercício prejudicial dos direitos sem

utilidade própria. 2 Enneccerus, igualmente, sus- tenta que já no direito romano se

entendia que o exercício de um direito, contrário aos preceitos de equidade ou sem

interesse do titular, é inadmissível. Aquele que se sentisse prejudicado, poderia

valer-se da exceptio doli generali que, em sua formulação definitiva, passou a

prescindir da intenção de prejudicar, bastando que o exercício da pretensão fosse

contrário ao sentimentojurídico.3

Josserand, Cornil e Charles Appleton reconhecem a existência de vários traços da

teoria do abuso nas fontes do direito romano. Josserand, citando Cornil, diz que o

romanista francês encontrou em Gaio a formulação de uma teoria geral do abuso do

direito quando, para justificar a interdição dos pródigos e a proibição de maltratar os

escravos, dizia male enim nostrojure uti non debemus. Invo- ca ainda a lição de

Appleton, para quem a teoria tanto não é moder- na que sobre ela repousa toda a

evolução do direito romano, ca- minhando para a eqüidade a partir do direito estrito.

Por fim — acres- centa Josserand — é bem de ver a afirmação de Celso, jus est ars

boni et aequi, bem como a máxima de Paulo, non omne quod licet honestum est.4

A jurisprudência em Roma, assim como os editos, faz parte das fontes do direito e

os magistrados — no dizer de Alexandre Corrêa — não se sujeitavam à lei de

maneira tão rigorosa quanto hoje.5 Neste sentido, colhe a máxima scire leges non

est, verba earum, tenere, sed vim ac protestam. Com efeito, vê-se no ius civile como

os romanos evitavam a positivação, do que são mostra a escassa edição de leis

durante um considerável período de tempo e a elástica e notabilíssima lex annua do

pretor, que só se cristalizou de maneira

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Início de nota de rodapé

(2) Max Kaser, Derecho Romano Privado, Madrid, Reus S.A., 1968, p. 37.

(3) Enneccerus, Tratado de Derecho Civil, 3. ed., vol. 2, 2a Parte, Barcelona, Bosch,

1970, p. 1076.

(4) Josserand, De lesprit des droits et de leur relativité — Théorie dite de lAbus des

Droits, Paris, 1939, p. 3 e 4, apud Alexandre Corrêa, op. cit.,p. 214.

(5) Alexandre Corrêa, op. cd., p. 213.

Fim da nota de rodapé

Página 19

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

definitiva no Edito de Adriano.6 Esta vocação tópica, no sentido aristotélico e

ciceriano, bem explica como o pretor, auxiliado pelos jurisconsultos, adequava o

direito às exigências do caso concreto.7

Na base da prudentia romana fez-se possível a proteção do escravo contra o dono

(male enim nostro jure uti non debemus), do filho contra o pai (si pater filium ter

venum duit filius a patre liber esto), a repressão da fraude (manumissiones in

fraudem creditorum), a introdução da actio Pauliana, o direito de uso das águas

(haec aequitas suggerit etsi jure deficiamur qui factus mihi quidem prodesse protest:

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ipsi vero nihil nocitttrus est; aquam enim arcere hoc esse curare ne inflttet), a

proibição dos atos emulativos do proprietário (est same non debet habere: si non

animo vicino nocendi, sed suum agrum meliorem faciendi idfecit) e da emulação

entre marido e mulher (de lo quod uxoris in aedficium viu ita conjunctum est, ut

detractum alicujus usus esse possit, dicendurn est agi posse; posse eum haec

detrahere qitae ttsiti ejitsfutttra sint, sine mulieris tamen damno).8

De fato, os autores que buscam no direito romano a origem da teoria do abuso do

direito costumam selecionar alguns textos significativos: summum jus, summa

injuria; non omne quod licet honestum

Início da nota de rodapé

(6) Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, Brasilia, Ministério da Justiça, 1 979,

p. 5 1.

(7) Sobre a p1icação da ars boni et aequi do direito romano, inspirada em

Aristóteles, v. Etica Nicomaquea, Aristóteles — Obras, 2. ed., Madrid, Aguiiar, S.A., 1

967, Livro V, cap. X, 1 1 37b/1 1 38a, p. 1 .237 e 1 .238.

(8) Alexandre Corrêa, op. cit., p. 2 1 3-2 1 9; Pedro Baptista Martins, O abu- so do

direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 12, 26, 42, 103 e 155;

Alvino Lima, Abuso do Direito, in J.M. de Carvalho Santos (org.), Repertório

Enciclopédico do Direito Brasileiro, vol. 1, Rio de Janeiro, Borsoi, 1947, p. 325-327;

Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo LIII, Rio de

Janeiro, Borsoi, 1 966, p. 64-66; Charmont, LAbus dtt Droit, in Revtte Trimestrielle de

Droit Cjvjl, tomo I, Librairie de la Société du Recueil Général des Lois & des Arréts, 1

902, p. 1 19; Giuseppe Grosso, Abuso del diritto (diritto ro- inano) in Enciclopedia del

Diritto, vol. 1, Varese, Giuffrè Editore, 1 958, p. 1 6 1 - 1 63; Rodolfo Sohm,

Instituiciones de Derecho Privado Romano — História y Sistema, México, Nacional,

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1 975, p. 1 0; Fernando Augusto Cunha de Sá, Abuso do Direito, Coimbra, Almedina,

1997, p. 47-49.

Fim da nota de rodapé

Página 20

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

est; malitiis non est indulgendum; male enim nostro jure uti non debemus; quod tibi

non nocet et alteri prodest,facile est concedendum. Entretanto, não é difícil localizar

preceitos de sentido oposto, tais como dura lex sed lex, feci sed jure feci; nemo

damnun facit, nisi qui id fecit quod facere jus non habent; jure suo qui utitui nemini

injuriamfaci; qui jure suo utitui neminem Iaedit,9 numa indicação de que o jus

abutendi seria mesmo o princípio geral em vigor.

Para Contardo Ferrini, a regra da máxima autonomia da propriedade, no direito

antigo e clássico, não foi formalmente renegada pelo direito justiniano, que apenas a

suavizou com um princípio de sociabilidade. ° E certo, como diz Alexandre Corrêa,

que o método dedutivo não é próprio do Direito Romano Clássico, com o que o

romanista procura justificar a inexistência de uma máxima geral que pudesse servir

de aplicação aos casos concretos. Mas ainda assim, vê-se que a proibição dos atos

emulativos, vale dizer, daqueles praticados com intenção de prejudicai sem utilidade

ou com utilidade mínima, longe de constituir um axioma ou aforismo, mostra-se

como simples expressão fragmentária de afirmações feitas por antigos autores, de

decisões judiciais ou de formulações doutrinárias, com as quais se buscava mitigar o

jus abutendi. 12

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(9) Alvino Lima, idem, ibidein; Cunha de Sá, idem, ibidem.

(10) Contardo Ferrini, Manuale di Pandette, 3. ed., ns. 35 1 e ss., apud Alvino Lima,

op. cit., p. 327; no mesmo sentido, Jose Manuel Martín Bemal, El abuso del derecho,

Madrid, Ed. Montecorvo S.A., p. 26 e 27; Pedro Baptista Martins, entretanto,

discorda dessa posição. É que, por ser excessivamente limitado o campo de

incidência da regra proibitiva da emulação, ela não prevalecia como princípio geral,

até porque os romanos eram infensos a generalizações. Mas foi o gérmen da fase

justiniânea (neque malitiis indulgendum est) que, mais tarde, veio a florescer e

frutificar na doutrina da emulação (op. cit., p. 16).

(11) Alexandre Corrêa, op. cit., p. 216; a propósito, v. a distinção feita por Viehweg

(op. cit., p. 3.344), entre demonstração (conceito ligado às noções de sistema,juízos

apodícticos, evidência) e argumentação (conceito relacionado às noções de

sistemas, juízos dialéticos e problemas).

(12) Carlos Fernández Sessarego, Abuso del derecho, Buenos Aires, Edito- rial

Astrea, 1992, p. 96 (no que invoca, igualmente, a posição de Díez-

Fim ne nota de rodapé

Página 21

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

Salvador Riccobono apresenta uma explicação histórica para a aparente contradição

dos textos romanos. O individualismo e o absolutismo das concepções são próprios

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do sistema do ius civile, do direito quiritário, ao passo que os textos que consagram

a proibição dos atos emulativos surgem a partir do séc. 11 do Império, com Iastro

em considerações éticas e humanitárias.3 Segundo Alvino Lima,4 esta é a

explicação que tem sido acolhida pela maio- ria dos autores, a exemplo de Cornil,5

Campion,6 Mazeaud,7 Josserand8 e de Butera.9 Também em Ennecerus,2°

Giuseppe Grosso, 2 Pedro Baptista Martins 22 e Martín Bernal23 é possível

encontrar esta interpretação.

De todo o exposto, pode-se retirar a conclusão de que as máximas e aforismos

extraídos do direito romano não são o bastante para fundar um princípio de ordem

geral. A doutrina mesma do abuso do direito não encontra fundamento no direito

romano, na aemulatio,

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Picazo e Gullón Ballesteros, Sistema de derecho civil, vol. 1, Madrid, Tecnos, 1984,

p. 442).

(13) Riccobono, Aemulatio, Nuovo Digesto Italiano, vol. 1, Torino, Unione

Tipografico-Editríce Torinese, 1937-XVI, p. 210.

(14) Alvino Lima, op. cit., p. 327.

(15) Cornil, Le droitprivé, Paris, 1924, p. 102, apudAlvino Lima, op. cit, p. 327.

Campion, La théorie de labus des droits, Paris-Bruxellas, 1 935, ns. 8 e ss.

apudAlvino Lima, op. cit., p. 327.

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(17) Léon e Henry Mazeaud, Traitéthéorique etpratique de la responsabilité civile,

délictuelle et contractuelle, 2. ed., Paris, 1 934, vol. 1, n. 555, apud Alvino Lima,

idem, ibidem.

(18) Josserand, Évolutions etActualités — Conferences de droit civil, Paris, 1936, p.

74, apudAlvino Lima, idem, ibidem.

(19) Butera, Codjce civile italiano, p. 38, apud Alvino Lima, idem, ibidem.

(20) Enneccerus, Tratado de Derecho Civil, Tomo I, vol. 1, Parte Geral, 1a Parte, §

65, p. 285, e Tratado de Derecho Civil, Tomo I, vol 11, Parte Geral, 2.a parte, § 239,

p. 1 .076.

(21) Giuseppe Grosso, op. cit., p. 162.

(22) Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 17 a 19.

(23) Martín Bernal, op. cit., p. 26 e 27.

Fim de nota de rodapé

Página 22

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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embora existam ali alguns casos de vedação da prática de atos lesivos sem utilidade

própria, mas antes com interesse de lesar.24 Não obstante, interessa pôr em relevo

a elaboração prudencial daquela época, a riqueza do direito pretoriano na tutela de

novas pretensões, o trabalho de adequação das velhas fórmulas às exigências

históricas,25 numa atitude tópica que, sem dúvida, acabou influenciando o

desenvolvimento da teoria da aemulatio no direito medieval.

Com efeito, alguns autores vêem na Idade Média a origem mais remota da doutrina

do abuso do direito, lastreada na aemulatio. Luis Alberto Warat, entretanto, identifica

na idéia da separação de poderes o pressuposto para o florescimento da teoria do

abuso do direito, condição esta que não havia no direito romano e tampouco no

direito medieval, e que somente irá surgir com a Revolução France- sa.26 Fernando

Augusto Cunha de Sá, por sua vez, entende que somente se pode falar de uma

teoria do abuso do direito no contexto histórico-social do liberalismo capitalista da

segunda metade do séc. XX, que coincide com a derrocada do formalismo

jurídico.27

De qualquer forma, não há negar que a proibição dos atos de emulação, fruto da

influência da moral cristã, que reprovava o

Início de nota de rodapé

(24) Idem, p. 19 e 27; igualmente, Mario Rotondi, Instituiciones de Dere- cho

Privado, Barcelona, Labor S.A., 1953, p. 99; Fernández Sessarego (op. cit., p. 97) e

Pontes de Miranda, Tratado, Tomo LIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1966, p. 66.

(25) Giuseppe Grosso, op. cit., p. 1 6 l; ver, igualmente, Fernández Sessarego (op.

cit., p. 98) e Luis Alberto Warat, Abuso del derecho y lagunas de Ia Iey, Buenos

Aires, Abeledo-Perrot, 1969, p. 41 e 42.

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(26) Warat, op. cit., p.43.

(27) Cunha de Sá, op. cit., p. 49 e 50; Jorge Manuel Coutinho de Abreu, reportando-

se a Cunha de Sá, depois de fazer ligeira referência a uma hipotética presença do

abuso do direito entre os romanos, diz, citando Pietro Rescigno (Labuso del diritto, in

Rivista di Diritto Civile, Parte 1,1965. p. 218), que a doutrina só ganhou consistência

no final do séc. XIX, com o crescimento das contradições da sociedade capitalista e

com a derrocada do positivismo jurídico (Do abuso do Direito, Coimbra, Livraria

Almedina, 1983, p. 13); no mesmo sentido, Fernández Sessarego, que também

invoca a lição do jurista italiano (op. cit., p. 1 1 8 e ss.).

Fim de nota de rodapé

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

exercício dos direitos de maneira prejudicial ao interesse dos outros, alcançou

grande desenvolvimento não só no campo dos direitos reais como também na esfera

das obrigações, convertendo-se em verdadeira regra ou princípio, do que é prova a

existência de diversas presunções — que recorrem às noções de uso extraordinário

e de utilidade do exercício do direito — relativas ao animus nocendi ou ao animus

vexandi.28

A proibição dos atos emulativos foi consagrada na Lei de Parti- das (1256), que tem

influência dos direitos romano e canônico, particularmente na Lei XIX, Título XXXII

da Partida XXI, relativa ao uso da água entre vizinhos, e na Lei XIX, Título XXXII, da

Partida 111, que veda a escavação de um poço sem utilidade e com o único

propósito de molestar o vizinho.29 No Código Civil da Prússia (1794), Primeira

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Parte, Título VI, § 36 e 37, também é possível encontrar dispositivo genérico acerca

dos atos emulativos: o que exerce seu direito dentro dos limites próprios, não é

obrigado a reparar o dano que causa a outrem, mas deve repará-lo, quando resulta

claramente das circunstâncias que, entre algumas maneiras possíveis de exercício

de seu direito, foi escolhida a que é prejudicial a outrem, com intenção de lhe

acarretar dano.30

Mas sobreleva, no campo da construção do conceito de abuso do direito, a

percepção, ainda na Idade Média, da existência de

Início de nota de rodapé

(28) Luís Alberto Warat (op. cit., p. 44), Fernández Sessarego (op. cit., p. 1 0 1) e

Martín Bernal (op. cit., p. 30), os dois primeiros reportando-se a Henoch Aguiar,

Hechos y actosjurídicos, Buenos Aires, Tea, 1950, tomo 11, p. 83.

(29) Esta referência à Lei das Sete Partidas do Rei de Castela, Afonso X, que

influenciou as primeiras Ordenações, encontra-se, dentre vários auto- res, em Luís

Alberto Warat (op. cit., p. 44 e 45) e Alvino Lima (op. cit., p. 328), ambos reportando-

se, tanto quanto os demais, a Henoch Aguiar, que escreve sobre o assunto em dois

textos distintos, Las Siete Parti- das del Rey don Afonso el Sabio tomo 11, p. 776, e

Actos ilicitos — Responsabilidad civil en la doctrina y en Codigo Civil, p. 83.

(30) Planiol, Traité Élémentajre de Droit Civil, tome I, cinquième édition, Paris,

Librairie Générale de Droit et de Jurisprndence, 1950, n 170, p. 76 e 77, e Aivino

Lima (op. cit., p. 328).

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

limites no exercício dos direitos, que é consequência das novas relações de

vizinhança, superada a fase de uma economia primitiva e de uma indústria

embrionária. Assim, ao lado da teoria da emulação, de viés subjetivista, surge uma

outra concepção, de natureza objetivista, que não leva em conta a intenção de lesar,

mas sim o efetivo resultado lesivo. Trata-se da teoria das imissões, entendida esta

última expressão como penetração de ruídos, calor, fumaça, odores, enfim, de toda

sorte de incômodos que extrapolem o limite da normalidade e da utilidade. Com isto,

a idéia de ilicitude vai-se alargando e a noção de responsabilidade também.31

É interessante perceber como essa concepção mais elástica da figura do abuso do

direito foi, pouco a pouco, ganhando corpo, a despeito mesmo da concepção

individualista e idealista do Código Civil napoleônico, que supunha não deixar nada

ao arbítrio do intérprete, na expressão de Laurent. O Código de 1804 considerou

que a única maneira de evitar que o espírito reacionário dos juízes pudesse se

confrontar com as liberdades individuais era a interpretação literal dos seus

dispositivos, como se isto fosse possível.

No dizer de Pontes de Miranda, com o movimento de codificação, que ossifica o

direito, dando-lhe rigeza oficial, assiste-se ao ocaso dos direitos resistentes. A

renovação jurídica, que se operava no terreno político, precisava da noção

absolutista dos direitos subjetivos para se erguer contra o absolutismo do antigo

regime. Os códigos do séc. XIX, segundo o jurista brasileiro, são frutos imediatos ou

retardados da época revolucionária ou do seu individualismo pontiagudo. Nesse

contexto, inexiste lugar para a noção de abuso do direito.32

Início de nota de rodapé

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(31) Rotondi, op. cit., p 99. Martín Bernal, op. cit., p. 31 e verso; Fernández

Sessarego, op. cit., p. 103 e 104; Ugo Gualazzini, Abuso del diritto (Diritto

Intermedio) in Enciclopedia del Diritto, vol. 1, Giuffrè Editore, p. 163-165.

(32) Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Especial, Tomo LIII, Rio

de Janeiro, Borsoi, 1 966, p. 70. Alvino Lima também registra um eclipse do princípio

proibitivo dos atos emulativos a partir do movi- mento de codificação (op. cit., p.

328). A propósito da evolução histórica da noção de codificação, v. François Geny,

Méthode dinterprétation

Fim da nota de rodapé

Página 25

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

Mas, por mais paradoxal que possa parecer, foi exatamente esse espírito

individualista que gestou a concepção moderna do abuso do direito, como forma de

temperar, mantida a aparência de legalidade, o excessivo egoísmo liberal-burguês.

A idéia da tripartição dos poderes, legada de Aristóteles e de John Locke, também

participa deste processo de emancipação do abuso do direito em relação às suas

bases morais, pois a norma escrita, a ser observada pelos juízes, passa a

estabelecer limites que separam o direito dos fatos sociais. Assim, não tardou a

jurisprudência francesa em demonstrar o idealismo contido no brocardo in claris

cessat interpretatio, na base da interpretação dos arts. 1382 e 1383 do Código Civil.

No final do século XIX, também os autores franceses travaram acesa controvérsia

acerca do abuso do direito.

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A partir do processo de urbanização e industrialização, os tribunais franceses

passaram a se ocupar não só de situações em que o direito era exercido com o

manifesto propósito de prejudicar, sem utilidade própria, como também das

hipóteses de exercício antissocial do direito previsto em lei. Tanto a vertente

subjetivista, caudatária da teoria da aemulatio, desenvolvida no direito romano e no

direito medieval, como a vertente objetivista, inspirada nas concepções de

solidariedade social, vigentes no século XIX,33 buscam no artigo 1382 do Código

Civil francês o seu fundamento legal.34

São conhecidas as decisões dos tribunais franceses no campo do direito de

propriedade. Cita-se, por exemplo, o julgado da Corte de Cassação, de 1826, a

propósito da emissão de fumaça, nociva aos vizinhos, proveniente de uma indústria

química. Igualmente, a Corte

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

et sources en droit privé positif tomo I, Paris, Librairie Générale de Droit etde

Jurisprudence, 1919, p. 73-84; v., igualmente, Planiol, op. cit., ns. 56 e 1 13, p. 24,

49 e 50, e Jean Carbonnier, Droit Civil, Tomo I, Paris, Presses Universitaires de

France, 1955, p. 146.

(33) Charmont, LAbus du Droit, in Revue Trimestrielle de Droit Civil, tomo I, Paris,

Librairie de Ia Société du Recueil Général des Lois & des Arréts, 1902, p. 121.

(34) Diz o artigo 1 382 do Código Civil francês: “qualquer ato do homem que cause

prejuízo a outrem obriga aquele que tenha concorrido com culpa a repará-lo”.

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Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

de Douai, em 1 854, decidiu que a fumaça das chaminés da fábrica, se excessiva,

dá Iugar à legítima pretensão do vizinho, consistente em impedir o uso imoderado de

um direito. A Corte de Colmar, por sua vez, ordenou a demolição de uma falsa

chaminé, construída com o único objetivo de retirar a iluminação natural do prédio

vizinho. E assim decidiu sob fundamento de que a construção fora feita somente

para satisfazer sentimento de rancor e não interesse de ordem econômica ou

moral.35

A doutrina costuma referir-se a condutas que, consideradas em si mesmas, são

Iícitas, irreprováveis, mas que do ponto de vista da intenção e finalidade mostram-se

abusivas. Aqui, o espírito de emulação transparece claramente no resultado da

conduta: se o titular do direito causa prejuízo a outrem, sem nenhuma utilidade,

configurado está, salvo erro de cálculo, o exercício doloso. E o caso da execução de

música que espanta a caça ou da instalação de enormes lanças de ferro em uma

propriedade, que acabam por rasgar balões ou dirigíveis em manobra.36 Somam-se

a estes casos judiciais, que j á se tornaram célebres na doutrina, a conduta do

proprietário que coloca tapumes de altura desproporcional na divisa de sua

propriedade, lançando permanente sombra sobre o imóvel vizinho, bem como a

obstrução de um veio de água. São atos lícitos, em si mesmos, mas que se tornam

reprováveis quando são feitos com intenção de prejudicar o vizinho, sem utilidade

própria.37

Início de nota de rodapé

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(35) Saleilles, De l´abus de droit — rapport présenté a la première sous- commission

de la comission de revision du Code Civil, in Bulletin de la Société D

ÉtudesLégislatives, Paris,ArthurRousseau, Editeur, quatrième anée, 1 905, p. 330-33

1; paradigmática é a decisão da corte de Colmar, também citada por Ripert (La régle

morale dans les obligations civiles, quatrième édition, Paris, Librairie Générale de

Droitet delurisprudence, I 949, p. 1 7 1), por Colin e Capitant (Traité de Droit Civil,

tomo 11, Paris, Librairie Dalloz, 1 959, p. 624), por Aubry et Rau (Cours de Droit Civil

Français, cinquième édition, tome sixième, Paris, Imprimierie et Librairie Générale de

Jurisprudence Marchal et Billard, 1920, p. 342) e por Enneccerus, op. cit., tomo I, 2.

parte, p. 1 .076.

(36) Ripert, op. cit., p. 171.

(37) Idem, ibidem; veja-se que a tese do abuso do direito, de matiz subjetivista,

longe de negar a existência de direitos subjetivos, reafirma-os,

Fim de nota de rodapé

Página 27

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

Abuso do direito, no dizer de Charmont, é uma velha idéia, que encontra origem

remota entre os romanos, retomada em pleno século XIX, como marco de uma

etapa na evolução da consciência jurídica dos franceses, fruto dos sentimentos e

das necessidades de uma época, como bem o disse, igualmente, Porcherot.38

Neste passo, Charmont faz um breve balanço das transformações em curso naquela

época. Escrevendo em 1 902, o civilista diz que o interesse pela doutrina do abuso

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do direito ressurgira, havia então quinze anos, na base do caso concreto. Ela é o

repositório das expectativas de uma sociedade em ebulição, de mudanças que

interferem na maneira de ser e de viver dos povos, influenciando o campo das

ciências culturais, particularmente a concepção do direito. Na Alemanha, são o

imperativo e a ação coercitiva que asseguram o respeito à norma. A força e o direito

acabam por se confundir. A Inglaterra dá maior importância ao aspecto utilitário.

Para a Escola de Bentham e de James Mill, o direito não é mais do que um meio de

legitimar e satisfazer interesses. Na França, sob a influência da filosofia do século

XVIII, procurou-se o fundamento do direito na idéia de liberdade; o direito é, ao

mesmo tempo, a consequência e a condição da liberdade; é uma faculdade de agir,

uma garantia contra o Estado, inerente à natureza humana. Não importam os

resultados da conduta, limitando-se a lei a dispor sobre o dever de reparar o dano no

caso de prejuízo.39

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

colocando acento na noção de interesse. Destarte, se é certo que o direito subjetivo

consiste no interesse juridicamente protegido, no dizer de lhering, não menos certo é

também que, inexistindo interesse (sério e legítimo), não se pode falarem direito

(Mario Rotondi, Le rolede la notion de labus du droit, in Revue de Droit Civil, Paris,

Sirey, 1980, p. 66).

(38) Porcherot, apud Charmont, op. cit., p. 1 19; Saleilles, tomando de empréstimo a

referência feita por Virgile Rossel, a propósito do Projeto do Código Civil suíço, diz

que a previsão normativa do abuso do direito deveria ser expressão da razão e da

consciência do povo francês (op. cit., p. 349 e 350).

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(39) Charmont, idem, ibidem; Everardo da Cunha Luna, ao lado da referência ao

Iiberalismo econômico inglês e ao idealismo alemão, campo fértil para o absolutismo

dos direitos individuais, também faz alusão ao individualismo dos anglo-saxônicos.

Diz, entretanto que, para Luis

Fim de nota de rodapé

Página 28

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Mas com a crise do Iiberalismo, percebeu-se a quantas injustiças uma tal idéia de

liberdade, de expressão absoluta, rendia ensejo. A jurisprudência tentou corrigir

estas injustiças. A par dela, a doutrina colocou ênfase na precariedade dos limites

que se buscava estabelecer entre Direito e Moral, desguarnecendo a posição

daqueles que sustentavam que um ato não pode ser ao mesmo tempo conforme e

contrário ao direito. 40 E o caso de Planiol, para quem

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Legaz y Lacambra, a noção de abuso do direito é devida ao utilitarismo de Bentham

(Everardo da Cunha Luna, Abuso do Direito, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 980,

p. 44 e 90). Em outra passagem, considera que o equilíbrio britânico não poderia

deixar-se esvair por um individuaIismo feroz, a ponto de prejudicar as boas relações

dos indivíduos em sociedade, porque, apesar de individualistas típicos, ninguém

melhor que ingleses têm a consciência do social. O social, entre britânicos, é uma

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extensão do individual, e, não como entre latinos, uma pedra no meio do caminho.

Para uma análise crítica do utilitarismo de Bentham (filosofia fundada na ética do

prazer de Aristipo e Epicuro), que se tornou o ancestral mais próximo do Estado de

Bem-Estar Social, v. Giorgio DeI Vecchio, Lições de Filosofia do Direito, Coimbra,

Arménio Ama- do, 1 95 1 , p. 402-405; John Rawls, Uma Teoria da Justiça, Brasília,

UnB, Coleção Pensamento Político, vol. 50, p. 40-48 e 398-406; David Lyons, As

regras morais e a ética, Campinas, Papirus Editora, 1990, p. 11- 1 42, 1 54 e 1 67, e

Alf Ross, Sobre el Derecho y la Justicia, Buenos Aires, Editorial Universitaria de

Buenos Aires, 1997, p. 357-364).

(40) A propósito do conteúdo moral do conceito de abuso do direito e do papel

dajurisprudência na elaboração desta categoria, ver Mario Rotondi, Le role de la

notion de labus du droit, in Revue de Droit Civil, Paris, Sirey, 1 980; Ripert observa

que, a rigor, a simples intenção de prejudicar não implica necessariamente o

reconhecimento do abuso. EIa está presente, por exemplo, na greve ou no lock-out.

Nestes casos, entretanto, crê- se que se trata de uma estratégia Iegítima para

alcançar objetivos que se reputa igualmente legítimos. Vê-se — diz Ripert — a

satisfação do dever moral dominar o exercício dos direitos, e, se o juiz não tem uma

clara concepção de dever moral, ele será incapaz de julgar se há abuso do direito

(op. cit., p. 178 e 179). Planiol, a propósito, pensa de maneira diversa. É inegável —

diz ele — que toda ação, todo trabalho, é um fato de concorrência econômica e

social. Todo homem que adquire uma superioridade em um ramo qualquer de

atividade prejudica outros e é seu direito prejudicar. A intenção de prejudicar é outra

coisa. Ela reside no

Fim da nota de rodapé

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

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a expressão abuso do direito é uma logomaquia. O homem abusa das coisas e não

dos direitos. Quando saímos dos limites estabelecidos pela norma — diz ele —

agimos sem direito.41 Mas tem-se de reconhecer que é precisamente na noção de

limites do direito que reside toda a controvérsia da teoria, diante da concepção

absoluta vigente entre os franceses, do que é mostra a posição dos irmãos

Mazeaud.42

Com o tempo, até mesmo a tese subjetivista da noção de abuso do direito,

verdadeiro desdobramento da teoria dos atos ilícitos, mostrou-se insuficiente para

atender a prodigalidade e profusão das novas situações engendradas pela

sociedade industrial. Mais que isto, à falta de um rigoroso sistema de presunções,

torna-se árdua a tarefa de perquirir o móvel e a intenção do agente.43 E a crítica de

Saleilles e de Geny,45 por exemplo. Bem por isso, jurisprudência e

Início de nota de rodapé

ato que não representa nenhuma utilidade para o agente e que está inspirado no

único objetivo de prejudicar (Planiol, Traité Élémentaire de Droit Civil, tome I,

troisième édition, Paris, Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1949, p.

337).

(41) Planiol, op. cit., tomo 11, p. 336 e 337; tomo I, p. 160. Nesse mesmo sentido,

Lodovico Barassi, lnstituciones de Derecho Civil, vol. 1, Barcelona, José M. Bosch, 1

955, p. 2 1 9 e 220. Para Léon Duguit, a doutrina do abuso do direito não passa de

um expediente inventado pelos juristas, em um certo momento histórico, para

atenuar os efeitos da comcepção absoluta do direito subjetivo de propriedade (Las

transformaciones del Derecho privado desde el código Napoleón, Madrid, F. Beltran,

1921, p. 124). Como observa Cunha de Sá, Duguit é coerente, pois negando a

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existência de direitos subjetivos, não poderia mesmo aceitar a ocorrência de abuso

(op. cit., p. 293).

(42) Mazeaud & Mazeaud, Traité théorique et pratique de la responsabilité civile —

déllictuelle et contractuelle, tomo I, Paris, Librairie Générale de Droit et de

Jurisprudence, 1947, p. 520 e 521.

(43) Aubry et Rau, op. cit., p. 340 e 342.

(44) Como diz Saleilles, criticando o recurso à psicologia individual, não se pode

supor que alguém fosse tão ingênuo a ponto de confessar que não tinha outro

objetivo senão o de prejudicar. Sempre restaria a alegação de um interesse

individual (Étude surlobligation, 2. ed., p. 371, apud Charmont, op. cit., p. 123).

(45) François Geny, Méthode d’ interprétation et sources en droit privé positif p. 544,

apud Charmont, op. cit., p. 123.

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

doutrina evoluíram para a concepção do uso anormal do direito. Segundo Saleilles, é

o exercício contrário ao destino econômico ou social do direito subjetivo, aquele

reprovado pela consciência pública, que caracteriza o abuso, já que todo direito, do

ponto de vista social, é relativo.46 Para Geny, igualmente, só será dado descobrir a

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medida justa dos direitos individuais à vista do seu objetivo econômico e social. 47

Charmont, por sua vez, reconhece que a intenção de prejudicar não é o único

critério para o reconhecimento do abuso do direito; o objetivo social e econômico

parece ser um critério mais adequado.48

Josserand, a princípio, também sustenta uma posição objetivista, filiando-se ao

ponto de vista da finalidade social do direito subjetivo. Assim, abusa do seu direito

aquele que o exerce em desrespeito à sua finalidade e espírito próprios, em

contrariedade às regras sociais. Ao lado dos direitos altruístas, concedidos ao titular

para satisfação de interesses que lhe são exteriores, vislumbra a existência de

outros tantos. Classifica-os como direitos não causados, prer-rogativas de fronteiras

bem estreitas e demarcadas, relativas a direitos abstratos e peremptórios, que

poderiam ser exercidos de modo absoluto, e direitos de espírito egoísta, categoria

composta por prerrogativas cuja finalidade social seria mesmo a satisfação dos

interesses pessoais do titular do direito. Quanto a estes últimos, cabe citar o

exemplo do pátrio poder. Veja-se que ainda aqui se está na esfera de produtos

sociais, razão pela qual seu exercício, mesmo voltado ao interesse individual, não

pode se confrontar com as finalidades da comunidade que os concedeu. Até os

egoísmos individuais são postos a serviço da sociedade, pelo que — conclui

Josserand — a concepção de direitos subjetivos integralmente egoístas, artificial e

metafísica, não mais se justifica.49 Mais tarde, por

Início de nota de rodapé

(46) Saleilles, op. cit., apud Charmont, op. cit., idem, ibidem.

(47) Geny, op. cit., p. 544, apudCharmont, op. cit., p. 123.

(48) Charmont, op. cit., p. 124.

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(49) Josserand, De l’esprit des droits et de leur relativité — Théorie dite de l’ Abus

des Droits, Paris, 1927, p. 388 e ss., apud Cunha de Sá, op. cit., p. 405 e 406;

igualmente, Josserand, De labus des droits, 1905, apud Planiol, op. cit., tomo II,

p.338 e 339, e tomo I, p. 160 e 1 6 1. Para Ripert,

Fim da nota de rodapé

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

reconhecer a fragilidade do critério finalista, que considera abstrato e fugidio, acabou

recorrendo à noção de motivo legítimo, com o que deu particular relevo ao elemento

subjetivo.50

Partindo da mesma classificação tricotômica, acima apontada, Jean Dabin sustenta

que os direitos altruístas são, em verdade, direitos-função, destinados ao

desenvolvimento de certas atividades de interesse comum (a família, a empresa, o

Estado, os agrupamentos políticos etc.). Neste sentido, o direito subjetivo tomaria a

feição de uma competência. Tanto os direitos egoístas quanto os direitos-função são

dados pelo legislador em vista de certas finalida- des e sob condição de que sejam

usados de modo determinado. O mau uso dos direitos-função configuraria explícita

ilegalidade, na medida em que contraria a própria norma, subvertendo a natureza

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

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o campo de aplicação da teoria do abuso do direito estaria restrito aos atos que,

irreprováveis na aparência, tenham sido inspirados pela in- tenção de prejudicar o

outro. Mas o jurista da Faculdade de Paris também vislumbra uma categoria

semelhante a dos direitos egoístas. Trata-se dos direitos arbitrários, aos quais,

entretanto, diferentemente do que ocorre a Josserand, não se aplica a idéia de

abuso. Esse arbítrio é necessário, porquanto o titular é o único juiz do dever que lhe

incumbe, o que se toma ainda mais claro quando se faz repousar a teoria do abuso

sobre o fundamento moral. Isto porque há motivos tão pessoais que nenhuma

apreciação valorativa é possível. Exemplifica com a oposição dos pais ao casamento

dos filhos, domínio em que a apreciação das razões da conduta escapa à

apreciação do juiz, que somente poderá se ocupar desta questão quando houver

expressa previsão Iegal (Ripert, op. cit., p. 174 e 175; no mesmo sentido, Planiol, op.

cit., tomo 11, p. 341, citando decisão da Corte de Lyon, e também Colin e Capitant,

op. cit., p. 630 e 631).

(50) Josserand, De l’ esprit des droits et de leur relativité — Théorie dite de l’Abus

des Droits, Paris, 1950, p. 375, apud Everardo da Cunha Luna, op. cit., p. 101 e 102.

Ripert, criticando o critério de motivo legítimo, teme o arbítrio judicial, pois caberia ao

juiz uma delicada apreciação, que supõe um nível superior da moralidade pública.

Pelas mesmas razões, Ripert também discorda do finalismo sociológico defendido

por Josserand, nele reconhecendo uma tendência de colocar todas as ações

humanas sob o controle judicial, do que resultaria o fim da idéia de direito subjetivo,

ameaçado pelo estatismo e pelo comunismo (Ripert, op. cit., p. 180 a 183).

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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específica do direito, não só no aspecto da realidade social e moral, como também

no plano do direito positivo. De outra forma, o mau uso dos direitos egoístas

(exceção feita aos estáticos, que não pressupõem a idéia de uso, pois o titular deles

retiraria proveito pelo só fato de existirem) configura simples transposição de limites

morais, já que seu titular pode fazer deles o que bem entenda. Daí porque, para

Dabin, a teoria do abuso do direito representa o corretivo que a legalidade

postula.51

A posição objetivista de Saleilles, que se pode encontrar na segunda edição de sua

Teoria Geral das Obrigações,52 parece ter sido revista, entretanto, por ocasião das

discussões na comissão de revisão do Código Civil.53 Tratava-se de saber se a

construção pretoria- na e doutrinária do abuso do direito, feita na base do artigo

1382, que se ocupa das obrigações por atos ilícitos, estaria a merecer expressa

previsão normativa, em dispositivo próprio, quer como des- dobramento do próprio

artigo, quer na parte geral, no título preliminar do Código, ou, quando menos, em um

parágrafo inserido no artigo

De início, Saleilles observa que, em se concebendo o abuso como ato contrário ao

direito, não basta cogitar de simples reparação, matéria que está no domínio do

artigo 1382 do Código Civil. Necessário prevenir o dano, impedir o ato abusivo.

Neste aspecto, Saleilles chama a atenção para uma particular evolução da teoria da

responsabilidade civil, delineada pela jurisprudência francesa no

Início da nota de rodapé

(51) Cunha de Sá, op. cit., p. 380 a 387.

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(52) Saleilles, Étude sur la théorie générale de l’obligation, daprès le premier projet

de Code Civil pour l’ empire allemand, apud Carlos Fernández Sessarego (Abuso del

Derecho, Buenos Aires, Astrea, 1992, p. 1 98 e 1 99), na primeira edição dessa

obra, a posição de Saleilles, segundo observa Carlos Fernández Sessarego, ainda é

subjetivista.

(53) Saleilles, De l’abus de droit — Rapport présenté a la première sous-

commission de la commission de revision du Code Civil, in Bulletin de la SociétéD

Etudes Législatives, Paris, Arthur Rousseau, Editeur, 1 905.

(54) Diz o artigo 6 do Código Civil francês: não se pode derrogar, por convenções

particulares, as Ieis que interessam a ordem pública e aos bons costumes.

Fim da nota de rodapé

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

terreno dos fatos industriais e no domínio do direito administrativo. Trata-se da teoria

do risco, segundo a qual a responsabilidade não está fundada na noção de culpa,

derivando do simples exercício de atividades que, pela sua própria natureza, são

potencialmente ofensivas, conquanto lícitas.55 Saleilles não vislumbra na teoria do

risco uma derivação ou uma nuança da teoria do abuso, porquanto o caráter

antissocial do fato não está na intenção do agente, diversamente do que ocorre na

hipótese do ato abusivo. Neste último caso, a conduta implica não só o dever de

reparar como também o dever de abstenção da prática anormal do direito, o que

refoge ao âmbito do artigo 1382, encontrando previsão mais adequada na parte

geral do Código Civil, como complemento do artigo 6. Admite, entretanto, que a

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jurisprudência francesa, aplicando o artigo 1382, tem-se posicionado em favor da

simples reparação do ato abusivo e não no sentido de obstá-lo, com o que os

tribunais atribuem as mesmas consequências jurídicas aos casos intencionais e não-

intencionais de uso antissocial do direito.56 A partir dessa exposição, Saleilles,

depois de discorrer sobre o abuso do direito na esfera trabalhista e no campo do

processo civil, deixa claro que a configuração desta prática pressupõe a intenção de

prejudicar: um ato cujo efeito só pode ser o de prejudicar o outro, sem interesse

apreciável e legítimo, não pode nunca constituir exercício lícito de um direito. 57 O

conceito, assim delimitado, impediria o arbítrio judicial, configurado no apelo às

exigências da equidade e às conveniências sociais. 58

Início da nota de rodapé

(55) Saleilles, op. cit., p. 328-337; Ripert observa que a teoria do risco representou o

primeiro abalo às sólidas bases da concepção absolutista de direito subjetivo,

vigente no séc. XIX (op. cit., p. 159).

(56) Idem, op. cit., p. 338-341.

(57) Ideni, p. 348.

(56) Idem, p. 345; reforçando a tese subjetivista de Saleilles, Ripert diz que

eventuais dificuldades que o juiz possa ter na análise da intenção do titular do direito

não serão muito diferentes daquelas que comumente enfrenta ao apreciar a fraude e

a boa-fé; E ilusório pensar, é ilusório querer criar um direito civil puramente objetivo

e julgar os fatos sem se ocupar das intenções (op. cit., p. 167).

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

O que se vê é que a doutrina foi levada a enfrentar temas suscitados pela

jurisprudência, consagrando várias aplicações daquilo que ficou mais tarde

conhecido como teoria do abuso do direito. Os julgados das cortes francesas não se

limitam às hipóteses em que esteja provada a intenção de prejudicar, reconhecendo

a prática de abuso também nos casos de conduta culposa (quase-delito). Está- se

aqui, tanto no que diz respeito ao dolo quanto no que concerne à culpa, no campo

da responsabilidade civil, velha conhecida dos franceses. O critério dos motivos

ilegítimos, da finalidade antissocial do ato ou do uso anormal do direito oferece,

entretanto, algumas dificuldades, como já foi visto. Não obstante, encontram-se

diversos julgados que também o consagram.59 Igualmente, as restrições à

aplicação da noção de abuso aos chamados direitos arbitrários, que se pode

encontrar na doutrina, têm em conta construções pretorianas.60

As consequências práticas dependem do critério adotado. Colin e Capitant registram

que alguns códigos modernos, a exemplo do soviético e do suíço, reservam o

tratamento da questão do abuso do direito para a parte geral, diferentemente do que

ocorre com a lei e a jurisprudência francesa, as quais trabalham no campo da culpa

delitual. Com isso, aqueles códigos equiparam o exercício abusivo à prática de um

ato sem direito, que implica não só o dever de indenizar, como também o dever de

abstenção (sanction en nature). Entretanto, na lição desses civilistas franceses, quer

se reconheça a proibição do abuso do direito como princípio geral, quer se enquadre

o abuso no domínio da culpa, certo é que se estará tratando de um ato ilícito, que

não deveria ter sido praticado. Diversamente da interpretação feita por Saleilles,

Colin e Capitant observam que a jurisprudência francesa nunca hesitou em ordenar

a cessação do prejuízo e nem mesmo em impedir que a ação lesiva fosse

praticada.61

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Início de nota de rodapé

(59) Colin e Capitant, op. cit., p. 629 e 630; igualmente, Planiol, op. cit., tomo 1,p.

1.027.

(60) Idem, ibidem, p. 55.

(61) Registre-se, entretanto, como já fazia Charmont, citando Saleilles (op. cit., p. 1 1

6 e 1 1 7), que, em certos casos, a sanction en nature não é aplicável: o patrão não

pode ser obrigado a contratar novamente no caso de

Fim da nota de rodapé

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

1.2 A doutrina brasileira

Até 1822, o Brasil, primeiramente na condição de colônia e, depois (com a Carta de

Lei de 1815), elevado a Reino Unido de Portugal, obedecia às leis Iusitanas, mais

particularmente, a par da profusa legislação extravagante, às Ordenações Filipinas.

Nelas não se encontra preceito específico acerca do abuso do direito que, em

Portugal, é teoria desenvolvida em grande parte pela doutrina e, de outra, pelos

tribunais.62 Bem por isso, nas leis que passaram a viger no Brasil, por força da

recepção do direito português, não havia particular referência ao abuso do direito. O

Código Comercial (1 850) tem uma norma (artigo 84, n. 3) reservada ao abuso de

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confiança, questão distinta. Também omissos eram os Regulamentos 737 e 738,

expedidos em cumprimento àquele Código, e o Código Criminal de 1830, que

substituiu o Capítulo V das Ordenações Filipinas.

Em matéria penal, a referência ao tema do ato abusivo surgiu com o Código de 1890

que, no artigo 338, n. 7, incluía entre as for- mas de estelionato o fato de abusar, em

próprio ou alheio proveito,

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

despedida injusta, pois isto violaria a liberdade individual; da mesma forma, o

industrial cuja fábrica polui não pode ser obrigado a demolí-la, pois o ilícito não é a

existência da indústria, mas a emissão abusiva de fumaça (Colin e Capitant, op. cit.,

p. 634).

(62) É certo que, no Livro V § § 42 e 1 1 8, das Ordenações Filipinas, já havia

sanções para a prática de ofensas irrogadas em juízo e para a repressão da

demanda maliciosa, que também encontra previsão no Livro 111, Título LXVII,

inspirado nas Ordenações Manuelinas (Livro 111, Título 5 1, § 54), segundo registro

de Cândido Mendes de Almeida (C6digoFilipino, ed. 1 870, 14. ed., p. 67 1, citado

por José Olímpio de Castro Filho, Abuso do Direito no Processo Civil, Rio de

Janeiro, Forense, 1960, p. 74). Outras tantas disposições processuais, que

acabaram, inclusive, por influenciar o Código de Processo Civil português de 1 876,

também têm lugar nas Ordenações Filipinas (Castro Filho, op. cit., p. 58-60; 76-79).

Todavia, como será visto mais adiante, falta uma consagração expressa daquilo que

mais tarde se convencionou chamar de abuso do direito. Nem mesmo no Código

Civil de 1867 é possível encontrá-la, conquanto reconheça a doutrina portuguesa,

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invocando o testemunho de Tito Arantes, que, no art. 13. ° do diploma de Seabra,

houvesse referência indireta à questão (Cunha de Sá, op. cit., p. 1 12 e 1 13).

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

das paixões ou inexperiência de menor, interdito ou incapaz, e fazê-lo subscrever

ato que importe efeito jurídico em dano dele ou de outrem....63 No Decreto-Lei

3.688, de 03 de outubro de 1941, há duas referências ao tema, relativas ao abuso

de profissão ou atividade (arts. 12, alínea a, e 35).

Como aponta Walter Vieira do Nascimento, a codificação das leis brasileiras, a

contar de 1822, processou-se gradativamente nos vários ramos do direito, exceção

feita às leis civis, que somente em 1 857 foram consolidadas por Teixeira de Freitas.

Mais tarde, esse trabalho do renomado civilista brasileiro serviu a uma codificação

civil, escrito que se tornou célebre como Esboço. A obra mereceu o elogio de Clóvis

Beviláqua e do autor do Código Civil Argentino de 1869, Vélez Sársfield, que se

disse nela inspirado.64

No Esboço de Teixeira de Freitas, tanto quanto no Código Civil argentino de 1869,

inexiste qualquer referência à questão do abuso do direito. Fernández Sessarego,

comentando o fato, diz que não se poderia esperar que o extraordinário Código Civil

de Vélez reconhecesse, de modo expresso e claro, uma teoria contrária aos

princípios individualistas que impregnavam as disposições dos códigos herdeiros da

codificação francesa de 1 804. Mas, por certo, Vélez não ignorava os princípios

relativos à proibição dos atos abusivos, do que são prova as fontes consultadas para

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a elaboração do Código, a exemplo da jurisprudência francesa e do Código Civil da

Prússia, datado de 1 794. Certamente, o mesmo se passa com Teixeira de Freitas,

autêntico gênio, na expressão de Vieira do Nascimento. Nem mesmo em seu

Vocabulário Jurídico fez o autor do Esboço qualquer referência ao tema.65

Início de nota de rodapé

(63) Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, vol. 7, Rio de Janeiro, Forense,

1958, p. 265.

(64) Walter Vieira do Nascimento, Lições de História do Direito, Rio de Janeiro,

Zahar, 1979, p. 145 e 146.

(65) Na parte relativa aos fatos em geral (fatos voluntários, atos jurídicos e atos

ilícitos — arts. 43 1 -445 e arts. 822 e ss.), inexiste referência ao tema do abuso, que

aí encontraria sua adequada localização (Esboço Teixeira de Freitas, Rio de Janeiro,

Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Serviço de Documentação, 1 952, vol. 1;

Teixeira de Freitas, Vocabulário

Fim da nota de rodapé

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

Outras tantas foram as tentativas de elaborar um Projeto do Código Civil, a exemplo

daquelas encetadas por José Nabuco de Araújo, Joaquim Felício dos Santos e

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Antonio Coelho Rodrigues. Como anota Haroldo Valladão, Carlos de Carvalho, no

artigo 1029 de sua Consolidação, datada de 1 899, mandava indenizar no caso de

excesso no exercício do direito, fundando-se na ordem L. 4, título 2, que deixava o

juiz decidir, consideradas as circunstâncias, se o esforço fora ou não incontinente.66

Todavia, coube ao Ministro Alfredo Valladão, a propósito do Projeto de Clóvis

Beviláqua, que se discutia no Senado, levantar o problema do abuso do direito. Em

artigo publicado no Jornal do Commercio, de 04 de fevereiro de 1912, o Ministro

chamava a atenção para o tema, que já se inscrevera nos códigos da Alemanha e

da Suíça. Noticiando a viva polêmica travada entre Sailelles e Josserand, de um

lado, Planiol e Esmein de outro, Alfredo Valladão sustentava que não existem

direitos absolutos, concepção que deveria orientar o Código brasileiro, sob pena de

a legislação já nascer ultrapassada. A nosso ver — dizia no artigo — o abuso do

direito caracteriza-se pela anormalidade de seu exercício, pelo seu exercício

antissocial. Esta há de ser apreciada objetivamente, embora, em muitos casos, a

apreciação objetiva envolva a necessidade de se conhecer o elemento

psicológico.67

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Jurídico, tomo I, São Paulo, Saraiva, 1983; WalterVieira do Nascimento, op. cit., p.

146; Fernández Sessarego, op. cit., 255); a confirmar a ausência do tratamento da

questão nos projetos anteriores ao de Clóvis Beviláqua, v. Haroldo Valladão, op. cit.,

p. 12.

(66) Haroldo Valladão, Condenação do abuso do direito, in Arquivos do Ministério da

Justiça, Ano XXVI, n. 1 07, set/1 968, p. 1 2; a respeito dos anteprojetos

mencionados, v. Vieira do Nascimento, op. cit, p. 146, Pontes de Miranda, Fontes e

Evolução do Direito Civil Brasileiro, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1981, p. 79-96, e

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Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil, 1 3. ed., vol. 1, São Paulo,

Saraiva, 1975, p. 48).

(67) — Alfredo Valladao, O abuso do direito, RT, São Paulo, p. 330-338, apud

Haroldo Valladão, op. cit., p. 12. No campo do processo civil, José Olfmpio de Castro

Filho aponta disposições esparsas do Decreto 3.084, de 1 .898, que de maneira

precursora reprimiam e preveniam o abuso do direito, seguindo a tradição das

Ordenações (op. cit., p. 80 e 81).

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Clóvis Beviláqua, convidado que fora pelo então Presidente Campos Salles, colega

de congregação da Faculdade de Direito do Recife, aceitou o desafio de redigir um

Projeto de lei, que ficou pronto em seis meses. Das diversas polêmicas que ensejou,

particularmente conhecido ficou o debate suscitado por Ruy Barbosa.68 Diga- se

ainda que o Projeto, em sua redação original, não fazia referência ao exercício

regular de um direito reconhecido, mas apenas à legítima defesa, prevista no artigo

172. Como observa Haroldo Valladão, na •a reunião da Comissão Revisora, Lacerda

de Almeida sugeriu que o dispositivo fosse deslocado para o capítulo dos Atos

Ilícitos. Na 41a reunião, alterou-se a redação do artigo só para melhor caracterizar a

legítima defesa. Entretanto, na redação final do Projeto, o art. 172 passou a figurar

como artigo 181, com o acréscimo ou no exercício regular de um direito

reconhecido. Esta a redação que, sem qualquer notificação, justificativa, emenda ou

de- bate, prevaleceu na Comissão Especial da Câmara ou do Senado.69

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Foi assim que se inseriu, clandestinamente, na expressão de Haroldo Valladão, 70

de maneira indireta e singular, no dizer de Alvino Lima,7 essa fórmula um tanto

misteriosa, como admite Pontes de Miranda,72 tímida e obscura, na palavra de

Pedro Baptista Martins,73 que outros tantos preferem tratar por forma

Início da nota de rodapé

(68) Ernesto Carneiro Ribeiro, A redação do Projeto do Código Civil e a réplica do Dr

Ruy Barbosa — Tréplica, 3. ed., Bahia, Livraria Progresso Editora, 1 95 I.

(69) Haroldo Valladão, op. cit., p. 13.

(70) Idem, ibidem.

(71) Alvino Lima, op. cit., p. 345; no mesmo sentido, José Olimpio de Castro Filho,

1960, op. cit., p. 84.

(72) Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Especial, tomo LI1I, Rio

de Janeiro, Borsoi 1966, p. 73.

(73) Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 92; para Roberto Goldschmidt o Anteprojeto

do Código das Obrigações, de 1941, expressa-se de maneira muito mais clara (A

Teoria do Abuso de Direito e o Anteprojeto Brasileiro de um Código das Obrigações,

Revista Forense, Rio de Janeiro, volume XCVII, Ano XLI, fasc. 487, janeiro de 1944,

p. 30.

Fim da nota de rodapé

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Página 39

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

negativa,74 forma oblíqua,75 fórmula a contrário sensu76 ou fórmula implícita.77

Entre os autores que admitem a consagração da teoria do abuso do direito pelo

legislador pátrio, é consenso que ela surge mesmo de uma interpretação em sentido

contrário. Partindo da regra segundo a qual o exercício regular de um direito

reconhecido não configura ato ilícito (art. 1 60, I, do Código Civil de 1 9 1 6), trata-se

de saber qual a natureza jurídica do exercício irregular A lógica deôntica não

autoriza a concluir, necessariamente, pela ilicitude (proibição), como fazem os

civilistas pátrios. O assunto será melhor desenvolvido no segundo capítulo. De

qualquer forma, já se pode adiantar que se está diante de uma solução retórica, que

se bem encontra fundamento em argumento indutivo, a contrário senso,

desconsidera, por certo, a existência de uma terceira categoria deôntica (além do

obrigatório e do proibido), que é a permissão.

Início da nota de rodapé

(74) Pontes de Miranda, Fontes e Evolução do Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro,

Forense, 1981, p. 162 e 163.

(75) Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro, Livraria Freitas

Bastos, 1960, p. 548.

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(76) Edmundo Lins Neto, Abuso do direito — Qual o conceito que melhor se ajusta

ao direito positivo brasileiro, in Revista de Crítica Judiciária, Rio de Janeiro, Ano XX,

vol. 37, ns. 1 e 2, jan/fev de 1943, p. 27; Eduardo Espinola Filhn, Tratado de Direito

Civil Brasileiro, vol. 1, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, p. 1.939, p. 617; Carvalho

Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, 7. ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos,

vol. 3, p. 338; Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 92; Barros Monteiro, op. cit., p.28 I;

Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, l I. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995;

Claudio Antonio Soares Levada, Responsabilidade CivilporAbuso de Direito, São

Paulo, RT, nov./1990, Ano 79, p. 39. Antunes Varela considera que não há, no

Código Civil brasileiro, senão vestígios inequívocos da reação da lei contra o

exercício anormal de certos direitos. Assim é que a Ieitura do Código Civil leva à

conclusão, por argumento a contrário, de que constituem atos ilícitos os praticados

no exercício irregular de qualquer direito (O abuso do direito no sistema jurídico

brasileiro, in Revista de Direito Comparado LusoBrasileiro, ano I, n. 1, Rio de

Janeiro, Forense julho de 1982, p. 42 e 43).

(77) Sessarego, op. cit., p. 272; Cunha de Sá, op. cit., p. 89.

Fim da nota de rodapé

Página 40

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Na base desta construção doutrinária, os autores são levados a concluir, então, que

o exercício irregular de um direito é ato ilícito. Mais que isto, interpretando o artigo

100 do Código Civil de 1 9 1 6 também a contrário senso, concluem que a ameaça

do exercício anormal (diga-se irregular) de um direito constitui coação, violência,

ilicitude que obriga o autor a indenizar, caso haja prejuízo.78 A esta altura, surgem

algumas polêmicas, que dizem res- peito não só ao critério eleito pelo legislador,

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quando reconheceu a tese do abuso do direito, como também à autonomia teórica

desta elaboração.

Clóvis Beviláqua, ao comentar o Código Civil, acabou acompanhando o Deputado

Mello Franco, que via na interpretação a contrário senso do disposto no artigo 160, I,

do Código Civil de 1916 a condenação do abuso do direito. Mais que isto, consignou

que o Código aceitou a doutrina de Saleilles.79 Plinio Barreto, em parecer publicado

em 1931, aponta a ambiguidade do registro feito por Beviláqua, porquanto, como já

foi visto, é polêmica, quando me- nos, a filiação de Saleilles à corrente objetivista.

Para o autor, há duas fases distintas no pensamento do doutrinador francês: a

primeira, de vertente objetivista e a segunda, a definitiva, de viés subjetivista. A ser

correto que o Código Civil brasileiro adotou a posição de Saleilles — conclui Plinio

Barreto — somente se poderia cogitar de sua expressão definitiva.80

Carvalho Santos, em longo e proveitoso comentário ao artigo 160, I, do Código Civil

de 1916, concorda com Plínio Barreto, dizendo que, em sendo assim, tem-se de

reconhecer que a doutrina

Início de nota de rodapé

(78) Orosimbo Nonato, Da coação como defeito do ato jurídico (ensaio) Rio de

Janeiro, Forense, 1957, p. 172 e 273; no mesmo sentido, Edmundo Lins Neto (op.

cit., p. 27) e Everardo da Cunha Luna (Abuso de Direito, 2. ed. Rio de Janeiro,

Forense, 1 988, p. 1 1 9 e 1 24). A norma do Código Civil de 1 9 1 6 corresponde à

regra do artigo 1 53 do Código Civil vigente.

(79) Clóvis Beviláqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado, Rio de

Janeiro, vol. 1, Francisco Alves, 1959, p. 348.

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(80) Plinio Barreto, parecer publicado na RT, São Paulo, Ano XX, vol. 79, fasc. n.

378, ago./1931, p. 51 1 e 512. A norma do Código Civil de 1916 corresponde à regra

do artigo 188, I, do Código Civil vigente.

Página 41

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

do abuso do direito pertence ao campo da teoria geral do ato ilícito, o que se deduz

da própria referência ao assunto, feita pelo Código englobadamente com o ato

ilícito.8 Ocorre que, sob este ponto de vista, a doutrina subjetivista de Saleilles —

que tem por abusivo o ato cujo único efeito é o prejuízo de outrem, sem interesse

apreciável e legítimo daquele que o pratica — mostra-se limitada, porquanto leva em

conta apenas o dolo (ou o erro grosseiro, a este equiparado).82

A partir destas considerações, Carvalho Santos conclui que a referência feita por

Clóvis diz respeito à primeira fase do pensamento de Saleilles, à sua posição

primitiva, que pode ser resumida nos seguintes termos: o dano, quando resulta de

procedimento conde- nado pelos costumes, não tem de ser necessariamente doloso.

Basta o simples exercício anormal, ainda quando não o fosse senão imprudente, o

que lhe dá feição de fenômeno anti-social.83 Mesmo assim — acrescenta Carvalho

Santos — é preciso convir que o Código brasileiro não seguiu à risca a doutrina de

Saleilles, pois repele o objetivismo preconizado em sua doutrina. DeIa recolhe

apenas a anormalidade condenável em razão do dolo ou da culpa, que venha a

ofender o destino econômico e social do direito.84

Este, portanto, o sentido que Plinio Barreto e Carvalho Santos emprestam à

expressão exercício irregular ou anormal de um direito, não obstante reconheça o

mestre paulista que a jurisprudência não tem dado ao Código brasileiro essa

interpretação lata, limitando-se ao exame da intencionalidade e, quando muito, do

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erro grosseiro, equiparado ao dolo.85 E possível encontrar, na jurisprudência

brasileira das décadas de 30, 40 e 50, alguns acórdãos que se

Início da nota de rodapé

(81) Carvalho Santos, op. cit., p. 350.

(82) Idem, ibidem.

(83) Idem, p. 354.

(84) Iden3, p. 354 e 355; para João Fronzen de Lima, o Código Civil brasileiro teria

adotado a teoria de Saleilles na sua versão subjetiva, o que muitas vezes dificulta a

aplicação da teoria do abuso do direito (Curso de Direito Civil Brasileiro, 4. ed., vol.

1, Rio de Janeiro, Forense, 1960, p. 374).

(85) Plinio Barreto, op. cit., p. 512.

Fim de nota de rodapé

Página 42

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

socorrem da noção de culpa stricto sensu.86 Poucos, entretanto, são os julgados

que recorrem ao critério objetivo ou finalista, como bem demonstram Aguiar Dias,

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Edmundo Lins Neto e Pedro Baptista Martins, autores que, juntamente com Alvino

Lima, compartilham desta mesma orientação.87

Início da nota de rodapé

(86) A pesquisa dos acórdãos citados por Plinio Barreto (op. cit., p. 512), Edmundo

Lins Neto (op. cit., p. 36-38), Pedro Baptista Martins (op. cit., p. 92, § 77) e Assad

Amadeo Yassim (Considerações sobre abuso de direito, São Paulo, RT, ago./198O,

vol. 538, p. 21-24) permite afirmar que a jurisprudência brasileira, pelo menos até a

década de 70, tinha nítida influência subjetivista. E o que se pode ver a partir do

exame de outros tantos julgados, a exemplo daqueles que versam sobre protesto

abusivo (sentença do Juízo da Comarca do Rio de Janeiro, proferida pelo Juiz José

Antonio Nogueira, em 15 de janeiro de 1926, publicada na Revista Forense, vol. 44,

fascs. 271-276, Belo Horizonte, 1926, p. 280 e 28 l ; Supremo Tribunal Federal,

Apelação Cfvel n. 5.537, ReI. Edmundo Lins, publicada no Archivo Judiciário, vol.

28, out./nov./dez. de 1933, Rio de Janeiro, 1 934, p. 79-83) e concorrência desleal

(Corte de Apela- ção Civil do Rio de Janeiro, Apelação Cível n. 4.469, ReI. Collares

Moreira, publicada no Archivo Judiciário, vol. 39, fasc. n. 1, 05 de julho de 1933, p.

296 e 297). Passando revista a jurisprudência das últimas décadas, foi possível

encontrar alguns poucos acórdãos de orientação objetivista. Decidiu a Segunda

Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo que comete abuso do direito o

contraente que, com grave prejuízo ao outro, exercita de forma irregular o poder de

desconstituição unilateral do contrato por prazo indeterminado. De modo que o

comete o cedente que, sem provar necessidade inadiável, denuncia con- trato

atípico de cessão de águas, ao término do plantio da cessionária, comprometendo

toda a safra com a falta de irrigação (Ap. Civ. n. 1 82.997-— Guaratinguetá, v.u.,

Rel. Cezar Peluso, 1 .° de junho de 1993, in Re- vista de Jurisprudência do Tribunal

de Justiça, São Paulo, Lex Editora, vol. 148, p. 81-83).

(87) Aguiar Dias (op. cit., p. 545-551) depois de invocar a posição de Pedro Baptista

Martins, critica a interpretação subjetivista que se dava à regra do art. 160, I, do

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Código Civil 1916, transcrevendo fragmentos de acórdãos insertos na Revista

Forense 83/529 e 91/441 e na RT 129/198 (voto do Desembargador Teodomiro

Dias); Edmundo Lins Neto (op. cit., p. 37) cita acórdão transcrito na Revista Forense

46/280, que se refere ao exercício anormal e antissocial do direito, como requisito

único para configuração do abuso do direito; em Pedro Baptista Martins (op. cit. p. 1

03- 1 06;

Fim da nota de rodapé

Página 43

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

Entre os civilistas pátrios mais modernos, afora Caio Mario da Silva Pereira,88

inexiste controvérsia sobre o fato de o Código Civil brasileiro ter consagrado a

doutrina do abuso do direito. Há aqueles que sustentam expressamente o critério

finalista 89 ou o objetivista. 90 Exceções feita a Everardo da Cunha Luna, não se

logrou encontrar

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

108- 110) é possível encontrar acórdão inserto no Arquivo Judiciário 17/28 e outro,

em que há declaração de voto de Orozimbo Nonato, cuja fonte não vem referida,

ambos perfilhados à teoria objetivista, que é também a orientação de Alvino Lima

(op. cit., p. 346 a 348).

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(88) Para Caio Mario, não existe, no Código brasileiro e nem nas leis posteriores,

uma regra consagradora da teoria do abuso do direito, tal como vem enunciada no

art. 226 do BGB. Não faltou quem a visse no artigo 1 60 do Código Civil. Reconhece,

contudo, o autor mineiro que é possível vislumbrar em algumas regras do Código

Civil, a exemplo daquela inscrita no art. 5 1 4, uma aplicação da teoria (Instituições

de Direito Civil, vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1 998, p. 43 1). No mesmo sentido

são as considerações do civilista português, Antunes Varela, ao examinar o

ordenamento jurídico brasileiro (op. cit., p. 42-49). Em parecer sobre o abuso na

demanda, lastreado nas disposições do CPC de 39 e do art. 20 da Lei de Falências,

Caio Mario reconhece a possibilidade de abuso flagrante das vias do direito, no qual

se pode incorrer, segundo Iição dos irmãos Mazeaud, que transcreve, até mesmo

por imprudência (Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano 52, fascs. 623 e 624, maio-

junho de 1 955, vol. 159, p. 106 e 107).

(89) Vicente Ráo, O Direito e a vida dos direitos, São Paulo, Max Limonad, 960, p. 1

96- 1 97; Orlando Gomes, Introdução ao Direito Civil, 1 1. ed., Rio de Janeiro,

Forense, 1995, p. 132; Silvio Rodrigues, Direito Civil, Parte Geral, vol. 1, São Paulo,

Max Limonad, 1 962, p. 340; Arnold WaId, Curso de Direito Civil Brasileiro, 5. ed.,

vol. 1 , Rio e Janeiro, Lux Ltda., 1987, p. 190e 191; CarlosAlbertoBittar,

CursodeDireito Civil, vol. 1, São Paulo, Forense Universitária, 1994, p. 186.

(90) Guilherme Fernandes Neto, C1fíusu1asAbusivas, in Carlos Alberto Bittar

(coordenador), Os contratos de adesão e o controle das cláusulas abusivas, São

Paulo, Saraiva, 1 99 1, p. 79 e 80. Carlos Roberto Gonçalves, Responsabilidade

Civil, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 1988, p. 43. Para San Tiago Dantas, o animus

nocendi pode configurar-se ou não. O que vale considerar é o aspecto objetivo do

ato. Se configurada a antisociabilidade, existe abuso e cabe repressão (San Tiago

Dantas, O conflito de vizinhança e sua composição, 1939, p. 126, apud Diogo de

Fim da nota de rodapé

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Página 44

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

uma defesa explícita do critério subjetivista, que em alguns casos apenas

transparece.91 Singular é a posição de Serpa Lopes que, sem negar a importância

da vertente objetivista, diz que o legislador pátrio, ao traçar as regras dos artigos 100

e 160, I, do Código Civil de 19 1 6, apenas fixou um critério geral; caberá à

jurisprudência dele extrair o sentido mais apropriado à espécie sob julgamento.92

Mas a inserção do abuso do direito nos limites da teoria geral dos atos ilícitos

também é objeto de muita controvérsia, como á se teve oportunidade de ver na

seção anterior. Há aqueles que consideram o ato abusivo um simples ilícito,

categoria não autônoma, com repercussões no campo da responsabilidade civil.

Outros tantos

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Figueiredo, O abuso do direito na retomada de imóveis por livre conveniência do

locador, in Revista de Direito da Procuradoria Geral, Estado da Guanabara, 1 966,

vol. 1 5, p. 256). Este último autor vislumbra aqui uma teoria monista, uma tentativa

de unificar a concepção subjetivista e a concepção objetivista. O que San Tiago

Dantas sustenta é que a teoria cloabuso envolve inclusive a aemulatio, mas não só.

Aplica-se também a todos os casos de violação da destinação econômica e social

do direito (San Tiago Dantas, op. cit., p. 126 e 127, apud Diogo de Figueiredo, op.

cit., p. 256 e 257).

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(91) Everardo da Cunha Luna é enfático ao defender a necessidade da configuração

de dolo ou culpa para que se possa falar em abuso do direito (op. cit., p. 1 19);

Limongi França, em breve exposição, cita dispositivo do Código Civil mexicano, que

tem orientação subjetivista (Manual de Direito Civil, 2. ed. vol. 4- 1, São Paulo, RT, 1

976, p. 412; vol. 1 , 1980, p. 319; vol. 4-2,1969, p. 294); Washington de Barros

Monteiro, depois de dar notícia das diversas teorias, parece inclinar-se pelo critério

subjetivista (op. cit., p. 281 e 282) Maria Helena Diniz não se ocupa da diversidade

de critérios (Curso de Direito Civil Brasileiro, 1 1. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva,

1995, p. 295 e 296).

(92) Serpa Lopes, Curso de Direito Civil, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1 960, VoI.

I, p. 548; no mesmo sentido, Martín Bernal (op. cit., p. 42). Pedro Baptista Martins

(op. cit., p. 76) e Edmundo Lins (op. cit., p. 37) destacam sentença da lavra de Serpa

Lopes, que acolhe o critério objetivista, com ressalva, entretanto, das hipóteses de

abuso no exercício da demanda, nas quais há de se exigir a configuração da culpa.

Para Demogue, igualmente, o direito de estar em juízo tem de ser analisado de

maneira ampla (Traítédes obligations en genéral, vol. 4, p. 307, 308 e 315,

apudAlvino Lima, op. cit, p. 335).

Fim de nota de rodapé

Página 45

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

consideram-no, ainda que sob denominações diversas, uma ilicitude de lato sensu,

que implica inclusive o dever de abstenção.

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Seguindo a posição dos irmãos Mazeaud, de Bartin e de Demogue, autores como

Clóvis Beviláqua, Plinio Barreto e Carvalho Santos praticamente identificam os

conceitos de abuso do direito e ilícito. Não há negar que esta posição guarda

coerência com o critério subjetivista, que, segundo interpretação dos dois últimos, o

autor do Código Civil também teria adotado. Contudo, isto implicaria praticamente a

negação do abuso do direito como conceito ou doutrina autônoma, segundo

reconhece Alvino Lima.93

Pontes de Miranda, inspirando-se em Charmont, diz que o direito não cessa onde o

abuso começa; o que dá ensejo à reparação é a existência de dano. Se alguém age,

no exercício irregular de um direito, mas mesmo assim sem causar dano, não

comete ato ilícito absoluto.94 Mas, em outra passagem, a propósito do disposto no

art. 160, I, do Código Civil de 19 1 6, diz: pré-excluem-se dos atos ilícitos os atos

que constituem exercício regular. O irregular é, pois, ilícito.95

Pedro Baptista Martins, comentando o artigo 100 do Código Civil de 1 9 1 6, diz que

muitos têm visto neste dispositivo outra fonte legal de obrigações por atos abusivos.

Entretanto, trata-se de simples modalidade especializada de abuso do direito.96

Mais adiante, diz que o ato abusivo, considerado em si mesmo, é perfeitamente

legal; por si só não basta para gerar responsabilidade do autor; necessário que o

agente tenha causado prejuízo apreciável.97 Ocorre que a doutrina considera a

coação ato ilícito (a propósito, ver a nota 78). Mais que isto, Pedro Baptista não faz

depender a noção de abuso do direito do conceito de culpa lato sensu. Tais

circunstâncias

Início de nota de rodapé

(93) Segundo Alvino Lima, não fossem distintos os campos do abuso do direito e da

responsabilidade civil, bastaria o preceito do artigo 159 do Código de 1 9 1 6 (op.

cit., p. 346). Veja-se, com redação um pouco diversa, o artigo 1 86 do Código Civil

vigente.

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(94) Pontes, Tratado, tomo LII1, Rio de Janeiro. Borsoi, 1966, p. 73-75.

(95) Ideni, p. 62.

(96) Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 93.

(97) Idein, p. 145.

Fim de nota de rodapé

Página 46

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

poderiam gerar perplexidade. Entretanto, em outra passagem, o civilista assim se

manifesta: o ato que é lícito ante o direito positivo em vigor, torna-se ilícito quando

apreciado à luz dos princípios gerais, em constante e permanente mutação.98

Roberto Goldschmidt, analisando o Anteprojeto do Código das Obrigações de

1941,99 cuja redação coube aos Ministros Filadelfo Azevedo, Orozimbo Nonato e ao

Professor Hahnemann Guimarães, diz que não obstante a técnica legislativa

adotada, houve o reconhecimento da autonomia da doutrina do abuso do direito, que

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não está inserida na esfera da responsabilidade civil por culpa, mas sim no campo

dos princípios gerais do direito. Esta exatamente a crítica que faz à redação do

Anteprojeto, porquanto o artigo 156, cuja norma tem matiz nitidamente objetivista, foi

colocado no capítulo da responsabilidade civil.100

Sustenta Goldschmidt que todo o equívoco da cultura jurídica latina consiste em não

distinguir antijuridicidade e culpabilidade. A primeira noção diz com a contrariedade

aos bons costumes, à boa- fé, vale dizer, àqueles preceitos que são extraídos das

opiniões culturais dominantes, ao passo que o segundo conceito faz referência à

vontade livre e consciente de agir (dolo) ou à voluntária omissão de diligência

(consciente ou inconsciente) em calcular as consequências possíveis e previsíveis

do próprio fato. Por isso, o abuso do direito é antijurídico e encontra lugar entre os

princípios gerais do direito, obrigando à reparação, no caso de responsabilidade,

aqui sim, segundo os princípios da culpa.101

Início da nota de rodapé

(90) Idem, p. 140.

(99) Como anota Luis Recaséns Siches, o artigo foi originariamente escrito em

espanhol e publicado na Argentina, ao tempo em que o jurista alemão, refugiado da

guerra, Iecionou em Córdoba (DelVecchio e Recaséns Siches, Filosofía del

Derecho, tomo 11, México, Union Tipografica Editorial Hispano Americana, 1946, p.

728).

(100) Roberto Goldschmidt, op. cit., p. 22, 28, 29 e 30; diz o artigo 156 do

Anteprojeto que está obrigado a indenizar todo aquele que cause dano, por exceder,

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no exercício do direito, os limites do interesse por este protegido ou os limites

resultantes da boa-fé.

(101) Idem, ibidem.

Fim de nota de rodapé

Página 47

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

Alvino Lima e Aguiar Dias, analisando o ponto de vista de Goldschmidt embora lhe

façam algumas objeções, entendem que realmente não se pode inserir a noção do

abuso do direito nos quadrantes da responsabilidade civil. Diz Alvino Lima — em

longo e erudito artigo — que não é possível, no estado atual da ciência do direito,

quando a teoria da responsabilidade objetiva se expande, a mais e mais, se restrinja

ao mínimo, quase inútil, a aplicação da doutrina do abuso do direito. E acrescenta:

Em face destes novos preceitos, a jurisprudência dos nossos tribunais não se

limitará a condenar os que exercem abusivamente os seus direitos, rebuscando, na

intenção de lesar, o único fundamento da teoria do abuso do direito. 102

Mutatis mutandis, valem em relação ao direito pátrio as considerações feitas por

Fernando Augusto Cunha de Sá acerca da pequena receptividade, no âmbito do

direito português, dos critérios objetivista e finalista que informam a teoria do abuso

do direito:

A situação explica-se, numa parte, pelo relativo atraso do desenvolvimento

econômico e social do nosso país, noutra parte pelo excessivo apego de nossa

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magistratura ao formalismo, à letra da lei, a um certo entendimento de valores tais

como os da justiça, da certeza e da segurança, ou do papel da jurisprudência na

aplicação do direito, noutra parte ainda, talvez, pela mansidão ou doçura de

costumes de nossa gente, sempre ciosa dos seus direitos mas inca- paz por vezes

de reagir a formas mais nuancées da ilegitimidade do exercício dos mesmos ou até

de formar uma consciência social do que é admissível e do que o não é. Mas não se

esqueça que, lá fora, foram sobretudo os problemas decorrentes do

desenvolvimento industrial e, nomeadamente, os conflitos propriedade agrícola /

propriedade industrial, a formação de grandes empresas capitalistas e de fortes

sindicatos operários, ou de amplas concessões no que respeita às Iiberdades

cívicas, a par de um arejamento cultural e da formação de correntes de pensamento

profundamente dominadas pela preocupação social (muitas delas, até, de raízes

tomistas), que

Início de nota de rodapé

(102) Alvjno Lima, op. cit., p. 346 e 347; José de Aguiar Dias, Da responsabilidade

civil, 8. ed., vol. 2, Rio de Janeiro, Forense, 1 987, p. 533 a 535.

Fim de nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

estiveram na base da lata aplicação da figura à vida jurídica de todos os dias e a

todos os actos e manifestações dessa mesma vida.103

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1.3 A construção do significado do abuso do direito na base do caso concreto

A despeito das dificuldades em estabelecer um conceito claro e preciso acerca do

abuso do direito, a experiência jurídica mostra, através dos séculos, a importância

das elaborações dogmáticas em torno do tema, a começar pelo direito de

vizinhança, onde a teoria do abuso ganhou seus primeiros contornos. Assim é que o

princípio qui suo iure utitur neminem laedit (D. 50, 17, 55, Gaio), resquício da justiça

de mão própria, vai aos poucos cedendo lugar a uma visão mais humanista, que se

insere, como já visto, no contexto de certos preceitos cristãos. Em Ulpiano é

possível encontrar a origem da regra do art. 587 do Código Civil de 1 9 1 6, segundo

a qual a cada um é dado reparar sua própria casa, contanto que não prejudique,

sem permissão, o direito do vizinho (D, 50, 17; UIp. 3 opin.), disposição esta que

corresponde ao artigo 1 3 1 3 do Código Civil vigente. Viu-se que o individualismo

exacerbado do direito romano, a princípio, passou a fazer certas concessões no que

diz respeito ao dano intencional. Quanto ao uso das águas, entendia-se, com base

em Ulpiano, que ao proprietário é dado abrir sulcos no seu prédio, ainda que em

prejuízo das fontes do vizinho, para melhorar o seu,

Início de nota de rodapé

(103) Cunha de Sá, op. cit., p. 279 e 280; interessantes, a propósito do espírito da

gente portuguesa, o realismo satírico das obras de Eça de Queirós (1845-1900) e o

ensaísmo crítico de António Sérgio (1883- 1969). Conquanto polêmica a Teoria do

Homem Cordial (a propósito, v. Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, Rio de

Janeiro, José Olímpio Editora, 1963, e Cassiano Ricardo, O Homem Cordiale outros

pequenos estudos brasileiros, Rio de Janeiro, INLIMEC, 1 959), certo é que os

comentários do autor português guardam estreita relação com o cenário socio-

econômico-cuIturaI existente no Brasil até o final da década de 50, que se inscreve

nos quadros de uma economia agrária exportadora e de uma sociedade rural e

patriarcal. Quanto à orientação dos juízes, o tema será melhor desenvolvido a partir

do quinto capítulo.

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Fim de nota de rodapé

Página 49

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

sob condição de que não o faça com ânimo de prejudicar.104 Sucederam-se, então,

com fundamento na distinção entre uso normal e uso anormal da propriedade, da

qual foi precursor Quintus Mucius Scaevola,105 diversas regras, que regulam os

direitos de vizinhança até nossos dias, as quais visam a coibir o uso nocivo da

propriedade, mais especificamente o direito de construir, o direito de tapagem e o

direito de servidão. Com a modernidade, surgiu a questão dos condomínios,

mormente dos condomínios em edifícios, a desafiar a inventiva dos homens na

solução dos conflitos.

Jurisprudência e doutrina são pródigas em exemplos, numa demonstração da

importância do tema, mormente nas chamadas sociedades de massa,

caracterizadas por mobilidade crescente e diferenciação social. Nelas afloram, no

dizer de Mannheim, todas as irracionalidades e explosões emocionais

características de aglomerações humanas amorfas.106 Na tentativa de acomodar os

interesses e pretensões desse turbilhão de pessoas, deserdadas do capitalismo

industrial (gerador de expectativas e demandas que o sistema não conseguiu

absorver), esquadrinharam-se ainda mais as regras normativas, num crescente

processo de codificação, que já se iniciara no começo do séc. XXI. Aqui, no dizer de

Pontes de Miranda, exercendo o meu direito, posso lesar a outro, ainda se não saio

do meu direito, isto é, da linha imaginária que é o meu direito. Por isso, o estudo do

abuso do direito é a pesquisa dos encontros, dos ferimentos que os direitos

fazem.107 O condomínio em edifícios é a expressão estética que melhor retrata as

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sociedades de massa, com o seu amontoado de apartamentos e conjuntos

comerciais.108 Transpostos

Início de nota de rodapé

(104) Pontes de Miranda, Tratado, tomo LIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1966, p.64e65.

(105) ldem, p. 66.

(106) Mannheim, Homem e sociedade em um período de reconstrução, apud

Benedicto Silva (org.), Dicionário de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, FGV, verbete

sociedades de massa, p. 1 . 143.

(107) Pontes de Miranda, idem, p. 67 e 68.

(100) Para uma análise antropoiógica do fenômeno da urbanização, v. Nels

Anderson, Sociologia de la comunidad urbana, México, Fondo de Cultura

Económica, 1 965, p. 587-589, e Lewis Mumford, A cultura das

Fim de nota de rodapé

Página 50

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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estes limites, os ocupantes dividem o mesmo espaço em escadas, corredores,

elevadores, play-grounds e em outras partes comuns do edifício, nas quais não lhes

cabem mais que frações ideais.

É fora de dúvida que esta ambiência torna-se fonte inesgotável de litígio, porquanto

a insuficiência dos códigos e das leis logo se mostra, diante da gama de

possibilidades que a nova situação engendra. Conquanto as normas jurídicas, aos

poucos, houvessem se ocupado dos limites e da relatividade dos direitos entre os

condôminos em edifício,109 certo é que subsiste a importância das construções

doutrinárias, mormente sob o influxo das idéias socialistas do início do século, que

colocam a tônica na igualdade, em detrimento da liberdade. Deste ponto de vista, é

possível afirmar que a grande contribuição de uma teoria do abuso do direito está

em oferecer solução para os casos que não foram previstos pela legislação. Nesse

sentido é o reconhecimento da doutrina. 110

O proprietário de um apartamento de veraneio pode alugá-Io para temporada.

Todavia, se o excesso no número de ocupantes, com certa frequência, onera o

serviço de elevadores, sobrecarrega e encarece o fomecimento de água (com

repercussão no rateio), concorrendo, outrossim, para o desgaste paulatino das

partes comuns, configurado estará o abuso do direito de propriedade. Inútil se

mostra a

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

cidades, São Paulo, Ed. Itatiaia, 1961, p. 96, 254, 238 e 263; quanto às

repercussões do fenômeno no campo do direito brasileiro, v. Orlando Gomes e

Antunes Varela, Direito Econômico, São Paulo, Saraiva, 1 977, p.43 ess.

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(109) É o caso da utilização do teto do edifício, por parte do proprietário da unidade

situada no último andar. A respeito, era omisso o Decreto 5.481/28. Aos poucos,

com lastro na teoria do abuso do direito, juris- prudência e doutrina foram se

delineando, no que deram lugar à regra do art. 3.° da Lei 4.591/64 (cfr. Caio Mario

da Silva Pereira, Condomínio e Incorporações, 5. ed., Rio de Janeiro, Forense,

1988, p. 157-159).

(110) Pedro Batista Martins, op cit., p. 81 e 82; Pontes de Miranda, Tratado de

Direito Privado, tomo XI, Rio de Janeiro, Borsoi, 2. ed., p. 26, e tomo LIII, Rio de

Janeiro, Borsoi, 1 966, p. 70; Coutinho de Abreu, op. cit., p. 49; Warat, op. cit., p. 76,

77, 85 e 85.l ) A ilustração inspirou-se no exemplo de Pontes de Miranda (Tratado de

Direito Privado, tomo XII, Rio de Janeiro, Borsoi, 2. ed., p. 258).

Fim de nota de rodapé

Página 51

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

consulta aos códigos e às leis, em busca de questões particulariza- das, que

somente a casuística jurisprudencial, inspirada em boa parte na ilustração e nos

standards da doutrina, poderá fornecer. E o caso das dimensões e do conteúdo das

propagandas ou anúncios veiculados por Ietreiros, placas ou tabuletas, fixados na

parte comum do edifício. E também a hipótese da existência de animais domésticos

no interior dos apartamentos, mesmo quando regulada pela convenção de

condomínio. De um Iado, o apartamento é unidade autônoma, mas por outro, é certo

que o animal, ainda que conduzido pelo dono, terá de circular eventualmente pelas

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partes comuns do edifício. Ademais, o conceito de animal doméstico é muito

elástico, a consentir certas excentricidades.

Veja-se que em todas estas situações o intérprete é levado a guiar- se por uma certa

tipologia, por uma certa dicotomia, tal como normalidade-anormalidade; função-

disfunção; proveito-prejuízo; má- fé e boa-fé. Assim é o caso da construção da

quadra de esportes, em área comum, cujas luzes venham a se projetar, e o barulho

repercutir, com intensidade, no apartamento do primeiro piso. O mesmo se passa

com a construção de uma churrasqueira. O desfrute da paisagem, igualmente, pode

ver-se ameaçado pela construção de deter- minado equipamento do condomínio,

aprovada pela maioria dos condôminos, que não se vê prejudicada com a inovação,

mas que, antes, dela retire grande proveito.

Trata-se de situações em que se confrontam, de um lado, o direito de uso, gozo e

fruição da coisa por parte do proprietário, e de outro, o dever de não impor

embaraço ou obstáculo ao bom uso da propriedade por parte de todos. Como as

relações jurídicas, no mais das vezes, são bilaterais, é possível identificar em cada

uma das pontas da relação condomínio-condômino um feixe de direitos e deveres,

de sorte que, se o condômino tem direito ao sossego e ao descortino de uma

paisagem que lhe conforte o espírito, de outro lado também tem o dever de não

interferir no uso das partes comuns, no que toca aos demais condôminos. Quanto a

estes, se é certo que Ihes cabe o direito de não ver embaraçado o uso da coisa

comum, certo também é que têm o dever de não excluir a posse de qualquer dos

comunheiros.

Página 52

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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O aumento crescente da complexidade nas relações sociais, criando um nível de

demanda que o modelo liberal (político e econômico) não estava em condições de

atender, também acabou por interferir na esfera da regulação de outros direitos, a

exemplo do contrato civil, do contrato de trabalho, das relações de comércio, das

relações de consumo e do direito de família. Já na década de 30, Enneccerus

reconhecia que a proibição do abuso de direito diz res- peito a toda classe de

direitos, incluindo aqueles que não são regulados pelo Código Civil, pois não cabe

supor que essas leis pretendem excluir um princípio geral que tem fundamento

moral.2 Essa evolução, desde uma posição subjetivista, baseada na

intencionalidade, no animus nocendi, até a teoria objetiva, que se aplica hoje a

algumas esferas do direito civil, é trajetória que também se inscreve nos quadros de

um processo de socialização do direito, fruto das contradições surgidas com a

revolução industrial.

A princípio, as legislações recepcionaram as construções subjetivistas da doutrina e

da jurisprudência, do que é exemplo a noção de exercício anormal do direito, que já

se encontrava entre os romanos. Além da regra do artigo 160, I, do Código Civil

brasileiro de 1916, na qual se reconhece a ilicitude do abuso do direito, os civilistas

identificam em outras normas (a exemplo daquelas inscritas nos arts. 15, 100, 115,

155, 526, 1.297, 1.313 e 1.531 desse mesmo Código, que encontram

correspondência, quanto ao que interessa, na regra dos artigos 43, 153, 122, 180,

1.229, 665, 679 e 940 do Código Civil vigente) a mesma inclinação doutrinária, fruto

das elaborações dogmáticas do início do século XX, ainda impregnadas por uma

certa concepção romanista (aemulatio). A propósito, registra Everardo da Cunha

Luna que, não obstante a afirmação de Clóvis Beviláqua, no sentido de que a regra

do art. 160, I, do Código Civil de 1916 teria acolhido a doutrina de Saleilles, certo é

que a inclinação da Iegislação brasileira, até então, era mesmo subjetiva.113 E, à

primeira vista, o argumento convence, porquanto,

Início da nota de rodapé

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(112) Enneccerus, op. cit., tomo I, vol. 2, § 239, p. 1.082 e 1.083.

(113) Everardo da Cunha Luna, Abuso de Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1 988, p.

I 19; Clóvis Beviláqua, op. cit, p. 344-348. Esse contexto, como será possível ver a

seu tempo, alterou-se com a edição do Código Civil vigente.

Fim de nota de rodapé

Página 53

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

como já se viu, a regra legal insere o exercício abusivo (ou irregular) do direito, a

contrário senso, na categoria dos atos ilícitos, que pressupõem o conceito de culpa

lato sensu.

Ocorre que doutrina e jurisprudência brasileiras evoluíram, na base da casuística,

induzindo, por conseguinte, alterações na legis- lação e, o que é mais importante, na

forma de interpretá-la, tal qual sucedeu em outros países. Daí porque autores da

envergadura de Pedro Baptista Martins e Alvino Limajá identificavam uma tendência

objetivista na aplicação da teoria do abuso do direito. Mas para que se possa melhor

entender essa polêmica, convém o exame da legislação estrangeira. Longe da

pretensão de desenvolver um es- tudo do Direito Comparado, afigura-se importante

cotejá-la com a legislação brasileira do início do séc. XX, na tentativa de identificar o

critério adotado quanto à aplicação da teoria do abuso do direito.114

Início de nota de rodapé

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(114) A exposição que segue tem em conta comentários e resenhas feitos por

Planiol (Traité Élémentaíre de Droit Civil, troisième édition, tome II, Paris, Librairie

Générale de Droit et de Jurisprudence, 1949, p. 339, e Traité Elémentaire de Droit

Civil, cinquième édition, tome I, Paris, Librairie Générale de Droit et de

Jurisprudence, 1950, p. 161); Colin e Capitant, Traité de Droit Civil, tomo 11, Paris,

Librairie Dalloz, 1 959, p. 625-626; Enneccerus, Tratado de Derecho Civil, 1 .° e 2.°

tomos, 2. parte, Barcelona, Bosch, Casa Editorial S.A., 1 970, p. 621 -639 e 1 .073- 1

.087; Georges Ripert, La règle morale dans les obligations civiles, Librairie Générale

de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1949, p. 164 e 165; Charmont, Labus du droit, in

Revue Trimestrielle de Droit Civil, tomo primeiro, Paris, 1902, p. 122; Saleilles, De

labus de droit— rapport présenté a la première sous-commission de la commission

de revision du Code Civil, in Bulletin de la Société dEtudes Législatives, Paris, Arthur

Rousseau, Editeur, quatrième anée, 1905, p. 348; Jorge Manuel Coutinho de Abreu,

Do abuso de Direito, Coimbra, Almedina, 1 983, p. 50-55; Fernando Augusto Cunha

de Sá, Abuso do Direito, Coimbra, Almedina, 1 997, p. 57-89; Carlos Fernández

Sessarego, Abuso del derecho, Buenos Aires, Astrea, 1992, p. 217-285; Jose

Manuel Martín Bernal, E1 abuso del derecho, Madrid, Ed. Montecorvo, S.A., 1982, p.

65-100; José da Silva Pacheco, Prefácio à 3.edição da obra de Pedro Baptista

Martins Abuso do Direito e o Ato ilícito, Rio de Janeiro, Forense, 1 997, p. 1 8-23;

Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 82-85; Alvino Lima, Abuso do direito, in J.M. de

Carvalho Santos (org.), Repertório

Fim de nota de rodapé

Página 54

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Na Alemanha, é possível colher a regra do artigo 226 do Código Civil (1 896),

segundo a qual o exercício de um direito é inadmissível se tiver por fim, apenas,

causar dano a outrem. Igualmente, o artigo 826 do mesmo Código dispõe que todo

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aquele que, de um modo contrário aos bons costumes, causar voluntariamente

danos a outrem, fica obrigado a indenizar. O Código Austríaco (1906, com a revisão

de 1916), por sua vez, também dispõe que é vedado o exercício de um direito com

menosprezo aos bons costumes e com evidente intenção de lesar. O Código Civil

chinês, de 1929, já estabelecia que não pode o exercício de um direito ter por fim

principal prejudicar outrem. A intenção de lesar também é critério adotado pelo

Código polonês, de 1934, e pelo Código mexicano (1928).

Até aqui, vê-se que a legislação tem um feitio nitidamente subjetivista, pois as

previsões acerca do abuso do direito levam em conta o elemento intencional de

causar dano.115 Mas o BGB, em alguns

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Enciclopédico do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro, Borsoi, 1947, vol. l; Pontes de

Miranda, Tratado de Direito Privado, Parte Geral, tomo 11, Rio de Janeiro, Borsoi,

1954, p. 292-293, e Parte Especial, Tomo LIII, Rio de Janeiro, Borsoi, 1960, p. 76 e

77; Luis O. Andorno, Abuso del Derecho, Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário

e Empresarial, Ano 6,janlmar/1982, vol. 19, p. 15-37; AssadAmadeoYassim,

Considerações sobre o abuso do Direito, RT, São Paulo, Ano 69, agosto de 1980,

vol. 538, p. 1 8-25; Plinio Barreto, parecer publicado na RT, Ano XX, agosto de 1931,

vol.79, fasc. 378, p. 507-519; José Olimpio de Castro Filho, Abuso de Direito no

Processo Civil, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1960, p. 26 a 27, René David, Os

grandes sistemas do direito contelnporâneo, São Paulo, Martins Fontes, 1993;

Haroldo Valladão, Condenação do abuso do Direito, in Arquivos do Ministério da

Justiça, Ano XXVI, setembro de 1 968, n 1 07, p. 1 0- 14; Roberto Goldschmidt, A

Teoria do Abu.so do Direito e o Anteprojeto brasileiro de um Código das Obrigações,

Revista Forense, Ano XLI, vol. 97, fasc. 487, janeiro de 1 944; Antunes Varela, O

abuso do direito no sistema jurídico brasileiro, in Revista de Direito Comparado

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Luso- Brasileiro, Ano 1, n. 1, Rio de Janeiro, Forense, julho de 1982, p. 37-59; José

Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro,

Forense, 2000.

(115) Registre-se, porém, certa dissensão quanto ao Código de Obrigações polonês,

pois há quem entenda que nele existe também uma referência ao fim

Fim de nota de rodapé

Página 55

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

de seus dispositivos, já consagrava expressamente a vedação ao exercício

antifinalístico do direito. Vale citar a regra do § 242: o devedor é obrigado a efetuar a

prestação como exige a lealdade e a confiança recíproca, em correspondência com

os usos socialmente admitidos. Como aponta Cunha de Sá, é possível encontrar em

outros tantos dispositivos do Código Civil alemão os reflexos da orientação

objetivista, nas suas diversas vertentes. Assim é que o Código exclui o direito (ou o

seu exercício) por falta de interesse ou pela pequena importância de interesse do

respectivo titular (§§320, alínea 2; 459, alínea 1; 498, alínea 2; 542, alínea 2; 634,

alínea 3; 905, 2a parte), o que leva a doutrina a apontar o engano da interpretação

de Josserand, no que toca a uma suposta orientação estrita- mente intencional do

Código alemão.116

O Código suíço (1907) prevê, em seu artigo 2.°, que cada um deve exercer seus

direitos e cumprir suas obrigações de acordo com as regras da boa-fé; o abuso

manifesto de um direito não está protegido pela lei. A redação do dispositivo poderia

dar a entender que o legislador helvécio teria se filiado à teoria subjetivista. Mas,

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como observa Luis O. Andorno, “trata-se de um princípio geral que outorga uma

ampla margem de apreciação ao órgão jurisdicional, que terá de decidir, em um

caso particular, se houve violação da regra moral ou desvio das finalidades

perseguidas pela lei”.117 Também

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

social (Henri Mazeaud, Traité théorique etpratique de la responsabilité civile, Paris,

Libr. en Rec. Sirey, 1931, n. 1, p. 559, apud Martín Bernal, op. cit., p. 90 e 9 1; neste

sentido são os comentários de Alvino Lima (op. cit., p. 344 e 345) e de Roberto

Goldschmidt (op. cit., p. 29).

(116) Cunha de Sá, op. cit., p. 60; igualmente, Charmont (op. cit., p. 122) e Martín

Bernal (op. cit., p. 84) reconhecem no sistema alemão uma conjugação dos critérios

intencional e objetivista.

(117) Luis O. Andorno, op. cit., p. 1 8; no mesmo sentido são as considerações de

Carlos Fernández Sessarego, para quem No Código Civil suíço, a proibição do

abuso de direito assume a forma de uma cláusula geral, cuja ampla redação permite

ao juiz apreciar cada caso e cada circunstância a fim de que, com a ajuda da

doutrina, dos antecedentes jurisprudenciais e de sua sensibilidade valorativa, possa

determinar se está diante, segundo o texto da lei, de um abuso manifesto de um

direito (op. cit., p. 214 e 215).

Fim de nota de rodapé

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Página 56

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

de molde objetivista é o Código Civil vigente na China (1999), no qual o legislador,

inspirando-se no direito português, dispõe que é ilegítimo o exercício de um direito,

quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons

costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito. A feição objetivista, bem

assim, está impressa no atual Código Civil da Polônia (1964), cujo artigo 5.°

estabelece: não se pode usar um direito em proveito pessoal, se isto não estiver de

acordo com as finalidades sociais e econômicas desse direito ou em conformidade

com o bem comum.

Conquanto se reúnam na França as maiores contribuições para a elaboração de

uma teoria do abuso do direito, fato é que inexiste na legislação francesa disposição

específica a respeito. Doutrina e jurisprudência, na proteção contra os excessos, têm

invocado, como já foi visto, a regra do art. 1.383 do Código Civil (Toda pessoa é

responsável pelo dano que causar, não somente por ato seu, mas ainda por

negligência ou por sua imprudência). E possível dizer, na lição de Spota, que a

dogmática e a jurisprudência francesa constituem magnífico exemplo do

desenvolvimento de uma doutrina que parte da idéia da relatividade dos direitos, de

acordo com o plano de cada instituição, segundo suas características e espírito, e a

despeito mesmo da ausência de lei. Com ela, elaborou-se um princípio geral de

direito que fez evoluir uma legislação que já conta com século e meio de

existência.118

Reafirmando o reconhecimento da destinação social do direito, o anteprojeto do

novo Código Civil francês, no seu art. 147, considera abusivo todo ato ou fato que

exceda manifestamente, pela intenção do seu sujeito, pelo seu objeto ou pelas

circunstâncias em que é realizado, o exercício normal de um direito. O parágrafo

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segundo ressalva, entretanto, os direitos que, pela sua natureza ou em virtude de lei,

possam ser exercidos de modo discricionário,119 no

Início da nota de rodapé

(118) Alberto G. Spota, Tratado de Derecho Civil, Buenos Aires, Ed. Depalma, 1

947, tomo I, parte geral, p. 474, apud Martín Bernal, op. cit., p. 78; a propósito da

importância da jurisprudência francesa na recepção da dou- trina finalista, v.

bibliografia mencionada na primeira seção deste capitulo.

(119) Cunha de Sá, op. cit, p. 54; também o Código Civil do Paraguai (1 988), no seu

artigo 372, estabelece a ressalva, fiel à doutrina de Josserand.

Fim da nota de rodapé

Página 57

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

que se reporta à classificação tricotômica de Josserand, como já vista. Perfilando-se

entre os países cuja legislação também seguiu o critério objetivista encontra-se

ainda a Espanha. Na Exposição de Motivos da lei que, em 1 974, alterou o Código

Civil espanhol (1 888), com acréscimo de uma alínea ao artigo 7.°, consignou-se a

importância de alguns antecedentes legislativos, como interpretados pelos tribunais,

e do direito comparado. Inspirou-se o legislador no movimento da doutrina e

jurisprudência contemporâneas.120 Também de orientação objetivista são os

códigos de Portugal (1966), da Grécia (1940) e da Bolívia (1976).121

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Importante lembrar que a orientação objetivista não se esgota na conformidade do

exercício do direito à sua finalidade econômica. Também na elaboração de Saleilles

encontra-se outro critério, de inspiração finalista, que tem em conta a conformidade

do exercício do direito aos fins para os quais ele foi conferido ao seu titular. Abusa

do direito quem o exerce com escopo diverso daquele previsto em lei, ainda que

inexista o ânimo de prejudicar. Esta formulação é geralmente identificada, como

visto, em fórmulas tais como, uso ou exercício anormal, limites normais do exercício,

uso social ou interesse social, uso contrário aos fins para os quais a lei foi instituída

etc.

Início da nota de rodapé

(120) Assim dispõe o art. 7.°, alínea 2, do Código Civil espanhol: A Iei não ampara o

abuso do direito ou o seu exercício antissocial. Todo ato ou omissão que, pela

intenção do seu autor, por seu objeto ou pelas circunstâncias em que se realize,

ultrapasse manifestamente os Iimites normais do exercício de um direito, com dano

para terceiro, dará lugar à correspondente indenização e à adoção das medidas

judiciais ou administrativas que impeçam a persistência do abuso.

(121) O Código Civil da Bolívia tem pelo menos dois dispositivos de inspiração

nitidamente objetivista: Art. 107. O proprietário não pode realizar atos com o único

propósito de prejudicar ou de molestar outros, e, em geral, não Ihe é permitido

exercer seu direito de forma contrária ao fim econômico ou social em razão do qual

foi conferido; art. 1279. Os direitos se exercem e os deveres se cumprem conforme

a sua natureza e conteúdo específico, que resultam das disposições do

ordenamento jurídico, das regras de boa-fé e do seu destino econômico-social (a

propósito, ver igualmente a norma do artigo 1 17, inciso I e 11). Também o

Fim da nota de rodapé

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Página 58

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

O Código Civil argentino, por exemplo, anteriormente à reforma de 1 968, dispunha

que o exercício de um direito próprio, ou em cumprimento de uma obrigação legal,

não constitui ilicitude de nenhum ato. Antes mesmo das mudanças que se seguiram

à reforma, reconhecia-se, na doutrina e na jurisprudência, uma alteração de rumos,

a apontar não só para a aplicação da teoria do abuso, como também para a

orientação objetivista. Assim, entendeu-se abusiva a resolução de um contrato pelo

simples descumprimento de obrigação acessória, que não interferia com a obrigação

principal; injurídica também se entendeu avença que estipulava o uso da habitação

como contraprestação do trabalho doméstico; também abusiva se considerou a

recusa do proprietário de uma colônia em autorizar a instalação de escola pública,

pelo só fato de existir outro colégio, a distância menor do que a prevista em lei, já

que a negativa obrigaria as crianças que moram longe do centro a percorrer trajeto

bem maior.22

Com a alteração promovida pela Lei 17.7 1 1, de 1968, fez-se ao artigo 1 .07 1 do

Código Civil, há pouco transcrito, o seguinte acréscimo: A lei não ampara o exercício

abusivo dos direitos. Como tal será considerado o que contrarie os fins que aquela

teve em vista ao reconhecê-los ou o que exceda os limites impostos pela boa-fé,

moral e bons costumes. A inovação, que além dos fundamentos da dou- trina e da

jurisprudência, inspirou-se no artigo 2.° do Código suíço, tem matriz objetivista, a

exemplo do que também se vê nos códigos da Venezuela (1942, com a reforma de

1982) e do Paraguai (1987).

O Código Civil do Peru (1984) refere-se à questão do abuso do direito em onze dos

seus dispositivos. No artigo 924, reúne as expressões abuso e excesso, mas com a

disjuntiva ou.23 Entendem os

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Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Código Civil português (art. 334), tanto quanto o grego (art. 281), condiciona o

exercício dos direitos à sua finalidade social e econômica, para além da observância

da boa-fé e dos bons costumes. No Código português há ainda mais cinco artigos

específicos (arts. 152, 155, 269, 1482 e 1 470), que tratam do abuso do direito nas

questões de família, obrigações e propriedade.

(122) Cunha de Sá, op. cit, p. 83 a 85.

(123) Art. 924: aquele que sofre ou está ameaçado porque outro se excede ou

abusa no exercício de seu direito pode exigir a restituição ao estado

Fim de nota de rodapé

Página 59

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

doutrinadores que participaram da comissão de reforma que se trata de expressões

sinônimas, porquanto idênticas as consequências advindas de uma e de outra

conduta.124 Antes, contudo, logo no Título Preliminar (artigo 11), fiel ao texto de

1936, o Código já dispõe acerca do tema: A Iei não ampara o abuso do direito. O

interessado pode exigir a adoção das medidas necessárias para evitar e suprimir o

abuso e, se for o caso, a correspondente indenização. O legislador peruano também

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dispõe acerca do abuso de direito ao tratar da representação conjugal (art. 292), do

regime patrimonial do casamento (art. 329), do usufruto (art. 1.021), do depósito (art.

1.079), do penhor (art. 1.076), do comodato (art. 1.738), das relações internacionais

privadas (arts. 2.060 e 2.064) e, de maneira mais ampla, no art. 1.971, 1, seguindo a

redação do artigo 160, 1, do Código Civil brasileiro de 1916, na qual já se inspirara

na edição do Código de 1936.

No Código Civil da Colômbia (1873) não há dispositivo específico para regular o

abuso do direito. Apenas o Projeto, que está em tramitação desde 1980, disciplina a

questão, dispondo que o exercício dos direitos não pode ser contrário a sua função

social e econômica (art. 33, § 1 .°). Por enquanto, os juízes seguem aplicando o art.

2.341, que versa sobre o ato ilícito. Na doutrina, dividem-se as opiniões a respeito

da autonomia da figura do abuso do direito.125 Omissos também é o Código Civil de

Cuba (1988). Não obstante, o artigo 4.°, inserido nas disposições preliminares,

preceitua que os direitos devem ser exercidos de acordo com sua finalidade e

conteúdo social, não sendo lícito seu exercício quando o fim perseguido seja causar

dano a outrem. Malgrado a referência subjetivista que se pode encontrar na parte

final do artigo (que Femández Sessarego

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

anterior ou a adoção das medidas cabíveis, sem prejuízo da indenização pelos

danos causados.

(124) Fernández Sessarego, op. cit., p. 316-318.

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(125) Idem, p. 281 a 284. A respeito, Hernán Fabio López Blanco, Informe cerca dei

abuso de los derechos procesales en Colombia, in José Carlos Barbosa Moreira,

Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000.

Fim de nota de rodapé

Pagina 60

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

atribui a um certo vezo ideológico),126 entende-se que, diante do primeiro período

do artigo 4.° do Código Civil cubano, haver-se-á de interpretá-lo de acordo com os

contornos delineados pela Constituição, que, é claro, não se compadecem com a

noção individualista contida no subjetivismo legado dos romanos.

O Código Civil da antiga Rússia disciplinava o abuso do direito de maneira

nitidamente subjetivista. Outro, entretanto, foi o tratamento dado à questão pela

República Socialista Federativa Soviética da Rússia, uma das quinze repúblicas da

recém-extinta União Soviética. Os direitos subjetivos, no ordenamento jurídico

soviético, devem ser exercidos com observância das finalidades do Estado e não

podem se contrapor aos objetivos perseguidos por uma sociedade socialista, em

estágio de edificação do comunismo, pelo que haverão de ter sempre em conta o

desenvolvimento das forças produtivas. Esta é a interpretação que se retira do artigo

1.0 do Código Civil de 1922, que serviu de modelo à codificação civilista das demais

repúblicas socialistas soviéticas: Os direitos civis são tutelados pela lei, salvo nos

casos em que sejam exercidos em oposição à sua destinação econômica e social.

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Apesar de redigido na fase da Nova Política Econômica (NEP), que se seguiu a um

período de certa abertura à iniciativa econômica privada. a revolução deu ao

dispositivo legal um significado marcadamente socialista, a ponto tal que a regra foi

praticamente reproduzida no art. 5•0 dos Fundamentos da legislação civil da URSS

e das repúblicasfederadas.127 Trata-se, no dizer de Josserand, de uma

Início da nota de rodapé

(126) Idem, p. 284. Fica clara a influência do marxismo-Ieninismo no Código Civil

cubano, como, de resto, em todo o ordenamento jurídico. Assim é que a

Constituição da República de Cuba, logo em seu preâmbulo, faz referência ao apoio,

ajuda, colaboração e à amizade fraterna que une o povo cubano à antiga União

Soviética.

(127) Coutinho de Abreu. op. cit, p. 51 a 54; acerca da origem do dispositivo legal e

da acentuada diferença de tratamento em comparação à legislação burguesa, ver

também Pedro Baptista, op. cit., p. 85 e 89-92; Cunha de Sá, entretanto, escrevendo

antes do fim do império soviético (a primeira edição de sua obra data de 1 973 e a

segunda, de 1 997, não foi atualizada), chama a atenção para o fato de que, hoje, o

dispositivo acha-se

Página 61

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

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das fórmulas mais avançadas na recepção da doutrina do abuso do direito.128 Esta

orientação finalista foi praticamente mantida nos Fundamentos da Legislação Civil

da URSS e das repúblicas federadas. promulgados em 1961, bem como nos

Fundamentos que entraram em vigor em 1 .° de Agosto de l 964, em disposições

que são basicamente reproduzidas, sob reserva de indispensáveis adaptações, nos

códigos das repúblicas federadas.129

É relativamente recente a desintegração da União Soviética. Com a criação da

Comunidade dos Estados Independentes (CEI), alterou-se bastante a configuração

política, econômica, étnica e cultural do antigo império. Mas, novamente, dentre

todas as repúblicas, a Rússia tornou-se a mais poderosa, recepcionando as leis

anteriores, que, portanto, ainda estão de acordo com os Fundamentos da legislação

civil da URSS e das repúblicas federadas. E difícil dizer, a esta altura, diante da

alteração de rumos na política econômica daquele país — mormente depois do

programa de privatização em massa, desenvolvido em 1994 — acerca de um novo

significado dos direitos civis. E possível que a teoria do abuso do direito, que Cunha

de Sá revelara ter caído em desuso (diante do caráter provisório do direito na

construção de uma sociedade socialista) renasça, ainda que sobre outras bases.130

Início de nota de rodapé

praticamente em desuso, por reconhecer-se que o caráter provisório do direito na

construção de uma sociedade socialista tornaria a proibição supérflua (op. cit., p.

70); no mesmo sentido René David, Le Droit Sovietique, I, I 954, p. 1 33- 1 35 e 25 1

apud Haroldo Valladão, op. cit., p. 11.

(128) Josserand, De l esprit des droits et de leur relativité, 1 927, p. 275 e 276, apud

Pedro Baptista Martins, p. 92; no mesmo sentido os comentários de Campion (La

théorie de Iabus des droits, Bruxelles, 1925, apud Coutinho de Abreu, op. cit., p. 5

1); ver também as observações de Martín Bernal (op. cit., p. 88), Cunha de Sá (op.

cit., p. 68) e Alvino Lima (op. cit., p. 343 e 344).

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(129) Cunha de Sá, op. cit, p.7O-72; Coutinho de Abreu, op. cit., p. 54; René David,

op. cit., 1.993, p. 21 I e 212;Antunes Varela, op. cit, p. 42.

(130) Martín Bernal diz que o totalitarismo de base econômica acaba repercutindo

na superestrutura jurídica, o que estabelece a diferença entre a teoria do abuso do

direito dos países soviéticos e a doutrina dos siste-

Fim de nota de rodapé

Página 62

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Na Itália, como foi visto, a questão do abuso do direito sempre provocou viva

polêmica. Conquanto o projeto ministerial do Código houvesse previsto, no seu art.

7.°, a vedação do exercício contrário ao escopo da norma, certo é que o Código Civil

(1942) não adotou essa posição. Há apenas alguns artigos, um deles relativo ao

usufruto (art. 1.015) e outros concernentes aos direitos reais (art. 1.175) e aos

contratos (arts. 1.337, 1.366, 1.375 e 1.438), que contêm fórmula genérica, alusiva à

boa-fé, incapaz de convencer os adversários da doutrina do abuso de direito.

Scialoja, Fadda, Bensa e Coviello, escrevendo antes do Código, mas a propósito de

regras semelhantes, contidas nos artigos 545, 559, 592 e 593 da legislação anterior,

diziam tratar-se de mera limitação ao exercício do direito de propriedade, da qual

não se pode extrair um princípio geral.131

De fato, a teoria da emulação foi muito desenvolvida no direito italiano. O atual art.

833 é expressão disto: O proprietário não pode exercer atos que não tenham outro

fim senão causar dano ou

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Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

mas ocidentais. A propósito das relações entre a estrutura social e a super estrutura

jurídica, v. Alan Stone, The Place of law in the marxian structure-superstructure

archeiype, in Law & Society Review, Colorado, vol. 19, n. 1, 1985, p. 39 a 67. Nesse

artigo, Stone discorre sobre o significado impreciso daquelas expressões, como

empregadas nas obras de Marx e Engels, circunstância que tem gerado

interpretações economicistas. Chama a atenção, no entanto, para o fato de que, em

muitas passagens do Prefácio da Crítica à Economia Política, lê-se que os ele-

mentos da superestrutura estão separados da estrutura econômica.

(131) Scialoja, Enciclopedia Giuridica Italiana, verb. Aemulatio, § 1 3, p. 439; Fadda

e Bensa, notas retiradas da obra de Windscheid, Diritto delle Pandette, Torino, 1925,

vol. 1, p. 413; Coviello, Manuale de Diritto Civile Italiano, p. 484 e ss., todos citados

por Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 1 8 e 1 9. Como registra Antunes Varela, à

semelhança do que ocorre no Código Alemão de 1 896, também no Código italiano

de 1 942 não se encontra nenhuma norma de caráter geral, que diretamente

contemple o abuso do direito. Chegou a ser projetada, mas não vingou na redação

definitiva do diploma, uma disposição desse teor: ninguém pode exercer o próprio

direito em contraste com o fim para o qual esse direito é conferido (op. cit., p. 40).

Fim de nota de rodapé

Página 63

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

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incômodo a outrem. Spota, todavia, pensa que este preceito, somado a outras

normas do Código, permite dizer que a legislação italiana acolheu o princípio do

abuso do direito não só no que diz respeito à emulação, como também à prática de

atos incompatíveis com os fins sociais e econômicos do direito.132 Tal qual sucedeu

no regime do Código Civil de 1865, quando a jurisprudência foi adaptando a teoria

geral dos atos emulatórios à realidade da época, também coube aos tribunais, na

vigência do novo Código, premidos pela necessidade de dar solução aos novos

conflitos da sociedade de massa, reorientar a aplicação da tese do abuso do direito,

para nela inserir a vedação da prática de atos antieconômicos e antissociais, sem

que se tivesse de indagar da intenção do titular do direito. No dizer de Martín Bernal,

trata-se, como ocorre com o direito francês, de uma legislação que adota

implicitamente um critério lato.133

Exemplo desta adaptação da teoria do abuso do direito aos conflitos coletivos,

próprios das sociedades de massa, foi colhido por Rescigno.134 O caso, submetido

ao Tribunal de Messina, ocorreu logo depois da 11 Guerra Mundial. Um grupo de

famílias sem-teto ocupa certas áreas de um conjunto habitacional construído por

uma entidade que desenvolvia um programa de construção de casas po- pulares. A

entidade, por razões de ordem social, tolera o ato. Mais que isto, permite-o,

provendo aquelas áreas de alguns serviços básicos. Inconformados, os proprietários

de áreas vizinhas, integrantes do mesmo conjunto de casas populares, promove

ação contra a entidade, argumentando que, ao se omitir na expulsão dos invasores,

teria abusado de um direito, praticando ilícito civil. Tanto o Tribunal de Messina

como a Suprema Corte entenderam que, malgrado a abstenção pudesse configurar

abuso, apreciáveis razões de conveniência e oportunidade, que não podiam ser

superadas no

Início de nota de rodapé

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(132) Spota, Tratado de Derecho Civil, Buenos Aires, Depalma, 1947, tomo I, parte

geral, voi. 2, 1 967, p. 530, apud Luis O. Andorno, op. cit., p. 18; no mesmo sentido,

Antunes Varela, op. cit., p. 40 e 41.

(133) Martín Bernal, op. cit., p. 77 a 82.

(134) Rescigno, Labuso del diritto, in Rivista di Diritto Civile, 1965, apud Fernández

Sessarego, op. cit., p. 221-224.

Fim de nota de rodapé

Página 64

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

plano social e político, justificavam a omissão no exercício da defesa

possessória.135

Como observa Fernández Sessarego, o julgado permite entender a maneira como a

jurisprudência, na Itália dos anos 60, construiu, sobre a base dos princípios gerais

de direito, uma cláusula bastante ampla acerca do abuso do direito.136 E assim foi

em toda parte do mundo, a começar pela França. AIém da jurisprudência fundada na

emulação, à qual já se fez menção anteriormente, há julgados que representaram

verdadeiros marcos para a adoção do critério objetivista, a exemplo daqueles

relativos ao direito de vizinhança (casos Lingard, Mercy, Lecante e Grosheintz), os

quais influencjaram o anteprojeto do novo Código Civil francês (no qual a tese do

abuso do direito é consagrada sob a rubrica do exercício normal). A teoria do abuso

também encontrou campo fértil na interpretação judicial dos contratos, das

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liberdades individuais e corporativas (liberdade de pensamento, liberdade de

comércio, greve, lock-out, inise à lindex, direito de associação etc.).137

Na órbita dos contratos, vê-se que a industrialização e a sociedade de massas

impõem novos paradigmas para as relações de troca, que deixam de ser individuais

para se tornarem coletivas, com prejuízo para a chamada autonomia da vontade. Se

de um lado houve simplificação dos negócios, de outro aumentou o espaço da

liberdade negativa, em prejuízo da liberdade positiva.138 Mas, como

Início da nota de rodapé

(135) A Guatemala é o único país latino-americano a inscrever em seu ordenamento

jurídico a omissão como forma de abuso, conforme registra Fernández Sessarego

(op. cit., p. 285 e 286). Rotondi, já na década de 40, sustentava o abuso na omissão

do exercício de um direito, que é, no fundo, a justificativa para o instituto da

prescrição aquisitiva da propriedade (op. cit., p. 99 e 100).

(136) Fernández Sessarego, op. cit., p. 224.

(137) Cunha de Sá, op. cit., p. 5 1 e 52.

(138) Para melhor compreensão dos conceitos de liberdade negativa (liberdade

desfazer) e liberdade positiva (liberdade para fazer), v. Hans Kelsen, A justiça e o

direito natural, 2. ed., Coimbra Arménio Ama- do, 1979, p. 62-66, Isaiah Berlin,

Quatro Ensaios sobre a Liberdade,

Fim de nota de rodapé

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

observa Tercio Sampaio Ferraz Jr.,139 esta ampliação é ilusória, diante do

crescente processo de massificação das pessoas. Há apenas uma falsa impressão

de igualdade, igualdade esta que é o pressuposto ideológico do conceito de

liberdade desenvolvido pelos revolucionários burgueses. Contudo, a partir do séc.

XX, à medida que as contradições do capitalismo industrial se agravaram, a

sociedade também foi- se conscientizando da necessidade de prover meios de

equalização dos direitos. Buscou-se, assim, a ampliação do espaço da liberdade

positiva, num reconhecimento de que os homens não nasceram iguais na sorte e na

fortuna. Nessa medida, o individualismo burguês, aos poucos, foi cedendo espaço

para outros padrões de comportamento, que passaram a compor a trama das novas

relações sociais.

A jurisprudência não é propriamente um indutor dessas transformações sociais, que

apenas são recolhidas pelos tribunais. Como será possível analisar no quarto e

quinto capítulos, as construções pretorianas são um dos sinais aparentes da crise da

concepção formalista do direito. A par da tradicional concepção de direito subjetivo,

fundada na noção de propriedade, surgem os chamados direitos subjetivos de

terceira e quarta gerações, que dizem respeito às reivindicações coletivas e à

resistência oposta às manipulações tecnológicas e científicas.140 O Estado, que até

então fora visto como um inimigo, passa a intervir de maneira crescente, sobretudo

nos chamados países do capitalismo tardio, gerando investimentos na área da

previdência social, desenvolvendo políticas públicas de erradicação das doenças

carências e elaborando projetos de distribuição de renda. Esta intervenção do poder

público, que busca novas bases para o contrato social, tem importantes implicações

na esfera da racionalidade jurídica.141

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Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Brasília, Ed. UnB, 1 98 1, p. 1 33 a 144 (Coleção Pensamento Político) e Joel

Feinberg, Filosofia Social, Rio de Janeiro, Zahar, 1974, p. 29 e 30.

(139) Ferraz Jr., Destino dos contratos, in Estudos e Conferências, Revista dos

Advogados, São Paulo, Ano 111 n. 9, AASP, p. 50 a 54.

(140) Bobbjo, A Era dos Direitos, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1 992, p. 5- 10.

(141) Particularmente interessante, a respeito dessa nova ótica contratualista, é a

visão neoliberal de John Rawls (Uma teoria da justiça, Brasília,

Fim de nota de rodapé

Página 66

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

No campo das Iiberdades individuais e corporativas são conhecidas, na Itália, as

sentenças sobre despedida abusiva, com prejuízo para o empregado (sentença da

Corte di Appello de Gênova, de 26 de abril de 1954, citada no Massimario di

giurisprudenza del lavoro, 1954, p. 201) e também aquelas que declaram abusivas

lutas sindicais que ultrapassam os limites da reivindicação legítima, tais como a não

colaboração, a sabotagem ou a greve a scacchiera, movimentos que consistem

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numa prestação irregular por parte do emprega- do, em prejuízo do empregador e

do destinatário do produto ou do serviço (sentença do Tribunal de Chiavari, de 09 de

fevereiro de 1953, citada no Massimario, 1953, p. 7). Na esfera da liberdade de

expressão, o Tribunal de Veneza, em sentença proferida em 1.0 de agosto de 195 l,

declarou abusivo o direito de crítica exercido por certo cornentarista, ao rotular de

pintura metafísica as obras de determinado artista, sem levar em conta a sua

produção como um todo, ou as suas obras de outro gênero e estilo (Giurisprudenza

italiana, 1952, 1, 2, 306). Por último, no que concerne à liberdade de comércio,

entendeu-se abusiva a crítica feita em um periódico, a propósito de determinado

produto que acabara de ingressar no mercado. Isto porque o comentário, longe de

informar o leitor, tinha a finalidade deliberada de denegrir a imagem do produto,

criando, assim, concorrência comercial desvirtuada, com agressão aos direitos ou

interesses alheios (sentença da Corte di Appello de Roma, 21 de maio de 1956,

citada na Giustizia civile, rep. 1956, voc. stampa, n. 3 — bis).142

No direito português, onde a doutrina teve papel decisivo na elaboração da teoria do

abuso do direito (importante é o Anteprojeto

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

UnB, Coleção Pensamento Político, vol. 50), pautada na conjugação de dois

princípios de justiça: a) princípio da igual liberdade máxima, segundo o qual deve

existir igualdade na distribuição de direitos e deve- res básicos; b) princípio da

diferença, segundo o qual as desigualdades somente se justificam quando

representarem benefícios para todos, especialmente para os menos privilegiados.

Sobre o tema, v. também Joel Feinberg, op. cit., p. 146-174.

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(142) A referência a todos estes julgados foi retirada da obra de Cunha de Sá, já

citada, a páginas 57 e 58; especificamente, no que concerne às liberdades

corporativas, aí incluído o direito de coalizão, v, Pedro Baptista Martins, op. cit., p.

49-61.

Fim de nota de rodapé

Página 67

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

do Código Civil de Vaz Serra, que menciona a prática de atos manifestamente

contrários à consciência jurídica dominante na coletividade social), o atual art. 334,

de orientação objetivista, têm aplicações bastante amplas. Aliás, a vivência

jurisprudência, na expressão de Cunha de Sá, mesmo à época do Código anterior

(1867), sinalizava no sentido de um reconhecimento da doutrina, ainda que em

bases subjetivistas.143 Assim, no campo das relações comerciais, decidiu-se acerca

da responsabilidade, perante terceiros, de uma sociedade em nome coletivo que se

obrigou em razão de uso abusivo da firma social por parte do sócio-gerente (Tribunal

da Relação do Porto, 04 de março de 1 970, Jurisprudência das Relações, 16.°, p.

312).144

Na Grécia, é larga a aplicação do disposto no art. 281 do Código Civil, que veda o

exercício do direito de modo contrário às finalidades econômicas e sociais previstas

na lei. Na esfera contratual, são diversos os acórdãos relativos a cláusulas abusivas,

que se configuram no nexo entre a exploração da necessidade, leviandade ou

inexperiência de uma das partes e a manifesta desproporção das prestações, a ser

aferida no momento mesmo da celebração do contrato.145 Na Espanha, os autores

costumam referir-se a duas paradigmáticas

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Início da nota de rodapé

(143) o autor português faz referência a uma decisão, proferida pelo Tribunal da

Relação de Coimbra, em 26 de Maio de 1 988, na qual se considerou abusiva, tal

como no precedente francês, já mencionado nesse trabalho, a construção de uma

chaminé, intencionalmente dirigida a prejudicar OS vizinhos de um prédio contíguo

(Cunha de Sá, op. cit., p. 245). E clara, ainda aqui, a influência da aemulatio.

(144) ldem, p 257. Antunes Varela registra que, diferentemente do que ocorria com o

Anteprojeto de Vaz Serra, onde o abuso do direito era tratado no capítulo relativo à

responsabilidade civil, o código português de 1 966 inseriu o tema nas disposições

gerais relativas ao exercício e tutela dos direitos (op. cit., p. 41).

(145) Idem, p. 82; em um sentido mais amplo, o conselho de Estado francês, já no

início do século, por força das repercussões da 1 Grande Guerra na economia

contratual, havia disposto sobre a possibilidade de revisão Judicial dos contratos que

viessem a se tornar excessivamente onero- SOS para uma das partes, em razão de

novas circunstâncias, fora de toda previsão. Sobreveio, em 1 91 8, a Lei Failliot, que

consagrou o princípio

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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sentenças da década de 40, que acabaram por influenciar a Reforma de 1974.

Assim é que o Tribunal Supremo, em decisão proferida aos 14 de fevereiro de 1944,

ocupando-se dos estragos provocados na praia de San Adrián de Besós, bem como

na central elétrica ali instalada, danos estes que tinham origem na extração de areia

no litoral de Barcelona por parte de um consórcio, decidiu que, a par dos limites

legais, com frequência defeituosamente estabelecidos, existem outros, de ordem

moral, teleológica e social, cuja inobservância pode dar lugar à responsabilidade

daquele que, atuando sob o amparo de uma legalidade aparente, ultrapassa a

fronteira imposta pela equidade e pela boa-fé, causando danos para terceiros e para

a sociedade.146

No Brasil, desde o início do século XX, também se fizeram sentir as consequências

da tensão entre a sociedade individualista e a sociedade de massas, que

repercutiram sobretudo nas relações contratuais.147 Atualmente, a Lei 8.078, de 11

de setembro de 1990, ao

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

da revisão. Pedro Baptista Martins sustenta que a teoria da imprevisão, como ficou

conhecida, tem fundamento na noção de abuso na execução do contrato, conforme

desenvolvida pela jurisprudência (op. cit., p. 43). Daí a observação de Charmont (op.

cit., p. 125) e de Rotondi (Le role de la notion de labus du droit, in Revue de Droit

Civil, Paris, Sirey, 1980, p. 66 e 67) acerca do papel precursor dajurisprudência

francesa, que se antecipou às elaborações da doutrina e às alterações legislativas.

(146) Fernández Sessarego, op. cit., p. 226 a 229; este acórdão é igualmente

mencionado por Martín Bernal (op. cit., p. 102, 127, 145,155, 228, 248, 258, 274 e

354).

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(147) Pedro Baptista Martins, a propósito das disposições do Decreto 22.626, de 7

de abril de 1 933, assim se pronunciou: A história das transformações do direito

privado nos mostra que nessa contradição é que consiste o abuso. Os códigos civis,

por exemplo, firmam, em regra, o princípio da Iiberdade convencional. E à sombra

desse princípio prosperam a usura e o anatocismo. As condições econômicas atuais

já não toleram, entretanto, as taxas postas em curso pela usura. Por isso, era

sempre com a consciência de que estava sendo vítima de um abuso que o

prestamista se submetia às extorsões da agiotagem. Praticando a usura, o mutuante

abusava de sua liberdade contratual, porque procurava auferir do seu capital

rendimentos que as novas condições econômicas não comportavam. E só o

retardamento Iegislativo é que gerava a possibilidade de

Fim de nota de rodapé

Página 69

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

tratar das cláusulas abusivas (art. 52, § 1 .°), reconhecendo a hipossuficiência do

consumidor, limitou o valor da multa nos contratos de crédito e financiamento,

fixando-a em dois por cento daquele relativo à prestação (conforme alteração feita

pelo art. 1 .° da Lei Federal 9.298, de 01.08.1996). O rol de cláusulas abusivas,

exemplificativo (art. 7.°), foi delineado na base da construção pretoria- na, que é

registro histórico da passagem das manifestações de vontade individuais para as

manifestações de vontade coletivas, próprias da contratação em massa.148

O movimento das associações de consumidores — que teve origem nos EUA,

durante o período da Grande Depressão — acabou induzindo construções

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pretorianas que são precursoras de certas previsões hoje inseridas em lei. A

desconsideração da pessoa jurídica, prevista no artigo 28 da Lei Federal 8.078/90,

que visa a reprimir os abusos de direito cometidos através de uma sociedade

comercial, encontra seu nascedouro nos julgados dos tribunais ingleses (case

Salomon vs. Salomon & Co, 1897), que repercutiram, tempos depois, nos EUA, país

onde se formou larga jurisprudência. Rubens Requião, escrevendo na década de 60,

diz que a jurisprudência brasileira, desde algum tempo, já vinha delineando os

primeiros

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

semelhantes abusos (Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 141). Com a edição da Lei

4.595/64, as empresas do sistema bancário foram excluídas do regime da Lei de

Usura, submetendo-se aos parâmetros fixados pelo Conselho Monetário Nacional.

Vedada, entretanto, ainda é a prática do anatocismo, exceção feita às cédulas

industriais e comerciais, desde que haja cláusula expressa, que têm regulação

própria (art. 5.° do Decreto-Lei. 1 67/67, art. 5 .° do Decreto-Lei 4 I 3/69 e art. 5 .° da

Lei 6.840/80). A polêmica acerca do tema reacendeu com a Constituição Federal de

1 988, que, no artigo 192, § 3.°, fixou a taxa de juros em doze por cento ao ano.

(148) Ainda que se possa reconhecer a lentidão da Justiça, como apontada por um

dos autores do Código de Defesa do Consumidor (Antonio Herman V. Benjamin,

Apresentação da obra de Alberto Amaral Jr., Proteção do consumidor no contrato de

compra e venda, São Paulo, RT, 1993, sem paginação), é certo, como diz Ripert,

que a evolução Ienta e gradual do direito é própria de seu papel moderador (Les

forces creatices du droit, Paris, Librairie Générale de Droit et Jurisprudence, 1 955

apud Martín Bernal, op. cit., p. 170).

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

contornos da aplicação da disregard doctrine, fundada na noção de abuso do direito

(RT 238/394, 343/181 e 387/138). 149 A facilitação dos meios de defesa dos direitos

do contratante (art. 6.°, VIII, da Lei 8.078/90), questão que encontra lastro na teoria

do abuso do direito, é tese também recolhida nos tribunais.

São muitos os exemplos de proteção judicial contra o uso abusivo do direito: a) no

Brasil, a jurisprudência se adiantou, seguindo a doutrina e legislação italianas, em

matéria de sustação de protestos;150 b) anteriormente à previsão do artigo 20 do

Decreto-Lei 7 .66 1, de 2 1 de junho de 1945, já se delineava uma tendência

jurisprudencial, na base da noção do uso abusivo do direito de demanda, no sentido

de punir aquele que requer a falência com manifesta intenção de prejudicar o

comerciante;151 c) a edição do Decreto 24.150, de 20 de abril de 1934, veio

resguardar a função econômica dos contratos, colocando o locatário comercial a

salvo das exigências abusivas do senhorio, que, sob ameaça de apropriar-se do

valor do ponto comercial, exigia luvas para a renovação do contrato. O Decreto, que

partiu do Anteprojeto de Ribas Carneiro, contratado que fora pelo Sindicato dos

Lojistas do Rio de Janeiro, encontrou inspiração na lei francesa de 1926, que é fruto

da influência da doutrina e dajurisprudência;152 d) também quanto ao abuso do

direito de

Início de nota de rodapé

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(149) Rubens Requião, Abuso do direito e fraude através da personalidade jurídica

(disregard doctrine), in RT, São Paulo, Ano 58, dez. de 1969, vol.410,p. l2 e ss.

(150) RT 109/172, 148/686, 150/246, 162/21 1, 172/667, 176/69, 178/669, 179/789,

1 88/295, 252/588 e 227/445, citadas por Pedro Vieira Mota, Sucedâneos da

sustação do protesto, São Paulo, edição do autor, sld., p. 7; também a propósito,

Jorge Americano (Comentários ao Código do Processo Civil do Brasil, vol. l, São

Paulo, Livraria Acadêmica Saraiva & Cia, 1940, p. 27).

(151) Tribunal do Distrito Federal, 4/12/1909, in O Direito, vol. 3, p. 399; Câmaras

Reunidas do Tribunal do Distrito Federal, 20/6/1912, in Revistado Direito, p. 26, vol.

143; Tribunal de São Paulo, in RT, vol. 1 12, p. 660, todos citados por José Olímpio

de Castro Filho, op. cit., p. 185 e 186.

(152) Ladislau Karpat, A locação no Direito Brasileiro, São Paulo, Hemus, s.d., p. 69

e 70; Carios B. Valente & Carlyle Popp, Ação Renovatória de Locação, Curitiba,

Juruá Ed., 1992, p. 33 e 34.

Fim de nota de rodapé

Página 71

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

purgação de mora no pagamento do aluguel, cobrado em ação de despejo, foi

precursora a orientação do Tribunal de Justiça de São Paulo.153

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Na seara das relações trabalhistas, onde mais se fez sentir a transposição de uma

de economia agrária, ainda vigente na década de 40, para um modelo de economia

comercial e industrial, que marcou o início dos anos 60, é fértil o campo para a

aplicação da teoria do abuso, a começar pela chamada despedida obstativa, cujo fim

é impedir a aquisição da estabilidade no emprego. A construção des- te conceito é

eminentemente pretoriana (Súmula 26 do TST). Mais amplo é o significado da

dispensa abusiva, conceito que tem em conta a prática de ato contrário aos fins

sociais do direito, ultrapassando o campo da simples despedida arbitrária.154

No que toca à defesa dos interesses difusos, a exemplo do meio ambiente, dos

direitos humanos, da etnia, das minorias sociais etc., que se contrastam muitas

vezes com o abuso do poder econômico, tecnológico e científico, a jurisprudência

brasileira começou a de linear-se discretamente, diante da inexistência de lei

específica, exigência dos arts. 3.° e 6.° do Código de Processo Civil. Em países

como a Áustria, Itália, França e EUA, as construções, muitas vezes contra legem,

ganharam relevo a partir do início do século XX. A princípio, os tribunais

consagraram a garantia da defesa dos

Início de nota de rodapé

(153) OscarTenório, Outras considerações a respeito do abuso de direito na

purgação da mora, in Arquivos do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, Rio de

Janeiro, Ano XIV, março de 1956, n.57, p. 11 a 14.

(154) Amauri Mascaro Nascimento, Iniciação ao Direito do Trabalho, São Paulo, LTr,

5. ed., 1980, p. 21 8 e 219; Sergio Torres Teixeira, Proteção à relação de emprego,

São Paulo, LTr, 1998, p. 162. Este último autor, em dissertação de mestrado

apresentada à Universidade Federal de Pernambuco, sustenta que a Lei 9.029, de 1

3 de abril de 1995, veda toda e qualquer forma de discriminação patronal hostilizada

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na legislação pátria, não sendo exaustivo o elenco apresentado nas suas letras (op.

cit., p. 393). A propósito da aplicação da teoria do abuso do direito as relações

trabalhistas da sociedade industrial do séc. XIX, v. Saleilles, op. cit., p. 343 e 344,

Planiol, ob cit., tomo 11, p. 905 e 906, Colin e Capitant, op. cit., p. 634, e Charmont,

op. cit., p. 1 16.

Fim de nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

interesses coletivos, o que permitiu a proteção de abusos pratica- dos através da

chamada contratação em massa. A propósito, tornaram-se famosas as decisões da

Courde Cassation que, em 1913 e em 1 9 1 8, reconheceu, respectivamente, a

legitimidade dos syndicats professionnels e a legitimidade das associationes de

défense, corpos intermediários da sociedade, para a defesa de interesses de seus

associados.155

1.4 Para uma revisão crítica da teoria do abuso do direito

Apesar do emprego de expressões genéricas, tais como exercício irregular, abuso,

excesso, é de se entender que o direito exercido abusivamente, por definição,

pressupõe que o agente atue dentro dos limites objetivos da norma, porém,

desviando-se dos fins econômicos e sociais perseguidos pela regra legal. E neste

sentido que a teoria do abuso do direito ganha autonomia, buscando um nicho

próprio, distinto daquele reservado à teoria dos atos ilícitos. 156

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Alguns autores, entretanto, sustentam que qualquer desvio do direito em relação às

finalidades para as quais foi instituído configura ilícito. Fernández Sessarego,

resumindo a posição dos que se perfilham a esta corrente doutrinária, sustenta que

o ato abusivo é uma conduta que transpõe a fronteira que separa um

comportamento

Início de nota de rodapé

(155) Mauro Cappelletti, Formações Sociais e interesses coletivos diante da justiça

civil, Revista de Processo, São Paulo, Ano II, jan-março de 1 977, n. 5, p. 149. A

proteção dos interesses difusos inaugura uma nova fase metodológica na teoria do

processo, com importantes repercussões no campo do chamado abuso dos direitos

processuais, como será visto mais adiante. Assim, se é certo que a universalização

da justiça implica um aumento da participação do juiz na instrução da causa — o

que se revela na mitigação do ônus da prova, na alteração dos limites da coisa

julgada— não menos certo é também que isto não se pode fazer sem que se tenha

em conta o caráter intersubjetivo da argumentação jurídica. A questão consiste em

saber de que tipo de racionalidade o processo judicial se vale no desenvolvimento

desse novo modelo processual.

(156) Martín Bernal, op. cit., p. 247; Warat também entende que o abuso do direito

pressupõe a licitude da conduta (op. cit, p. 69).

Fim de nota de rodapé

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

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lícito de um ilícito, qualquer que seja a intensidade, o matiz ou a gravidade que a

ilicitude comporte.157

É consabido que os conceitos não têm uma referência direta à realidade. Definem-

se palavras e não coisas. Estas considerações serão melhor desenvolvidas no

terceiro capítulo. Por ora, servem apenas para dizer que o conceito de ilícito tem em

conta, como visto, alguns critérios identificados pela doutrina. Fossem outros os

critérios, diferente seria o conceito. Fora daí, mergulha-se numa concepção

platônica, numa visão realista acerca da Iinguagem.

Desta forma, a fim de não incorrer no erro de confundir o conceito com a própria

realidade, esquecendo-se de que as palavras são simples convenções, é necessário

estar atento para as armadilhas semânticas, que mal escondem uma simples

disputa verbal. Acerca das classificações não se pode dizer que sejam certas ou

erradas, mas apenas úteis ou inúteis. A importância da autonomia do conceito de

abuso do direito, como categoria distinta do ilícito, reside precisamente em saber se

é possível acontecer de alguém colocar-se à margem do direito, na dependência da

maneira como exerce uma faculdade que por ele lhe é assegurada.

Essa discussão remete, em outras palavras, ao paradoxo apontado por Planiol: ou

bem se exerce um direito, pelo que não se pode cogitar de abuso, ou bem se está

praticando um ilícito, pelo que não há razão para falar em abuso. Tertiuni non datur

A posição dos objetivistas que, como Sessarego, reduzem o abuso do direito ao

ilícito, tem de ser entendida, 110 entanto, como uma terceira opção dentro deste

aparente dilema. É que a ilicitude, aqui, tem uma conotação mais ampla, a incluir

outras propriedades que, historicamente, o conceito não comporta.

Com efeito, a teoria geral do ato ilícito, como visto, é fruto de uma concepção

individualista, que não tem em conta a alteridade, a solidariedade e a coexistência

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das potencialidades humanas. Bem mais feliz, neste sentido, a redação do atual

Código Civil brasileiro,

Início de nota de rodapé

(157) Fernández Sessarego, op. cit., p. 312 e 313.

Fim de nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

que tem feição nitidamente objetivista, a destrinçar o abuso do ilícito (stricto sensu),

como categorias autônomas.158

Não há negar, pois, que, dentro de uma concepção mais abrangente, o direito

exercido abusivamente é mesmo um ilícito (lato sensu), porque antissocial, contrário

às finalidades para as quais foi instituído. Necessário é, para que se possa entender

esta ampliação do conceito de ilícito, acompanhar as mudanças que se

processaram, no campo da dogmática jurídica, a partir do final do século XIX.

Paulo Dourado de Gusmão, escrevendo no final da década de 40, já reconhecia, na

indevida identificação entre o direito e o Esta- do, toda a origem da controvérsia

acerca do abuso do direito. Não se pode desconhecer que o direito é o resultado de

uma pluralidade de fontes, que corresponde às exigências dos diversos grupos

sociais. Direito positivo é aquele que a consciência coletiva, num dado momento

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histórico, admite como válido e obrigatório.159 Não se pode deixar de reconhecer

aqui — embora Dourado de Gusmão não faça explícita referência — a posição

defendida por Mario Rotondi, como se terá oportunidade de ver.160

Início de nota de rodapé

(158) O artigo 1 88 do Anteprojeto elaborado pela comissão presidida pelo Professor

Miguel Reale foi praticamente reproduzido no artigo 1 87 do Código Civil em vigor

(Lei Federal 10.406, de 10 de Janeiro de 2.002): ...também comete ato ilícito o titular

de um direito que, ao exercê-Io, excede manifestamente os limites impostos pelo

seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos costumes. Aliás, o art. 986 do

Anteprojeto (artigo 927 do Código Civil vigente) dispunha que o ilícito estava previsto

não só no art. 187 como também no art. 188 (artigos 186 e 187 do Código Civil

vigente). Equivocada, assim, sob o ponto vista desenvolvido nos parágrafos

anteriores, a crítica de Guilherme Fernandes Neto, segundo a qual o Anteprojeto,

nos dispositivos há pouco mencionados, teria abraçado a teoria subjetivista,

reduzindo a figura do abuso do direito à categoria do ilícito (O abuso de direito no

Projeto 634-B, Revista de Informação Legislativa, ano 27, n. 1 06, abr./jun./90). A

tanto convir, basta ver que o Anteprojeto se inspirou no artigo 334 do Código Civil

português, como reconhece a doutrina (Antunes Varela, op. cit., p. 42, nota 2).

(159) Dourado de Gusmão, Pressupostos filosóficos da noção de abuso do direito, in

RT, São Paulo, Ano XLV, fasc. 545, vol. 120, p. 50-56,

(160) Rotondi, Intituiciones de Derecho Privado, Barcelona, Ed. Labor S.A., 1953, p.

99-100; uma exposição mais ampla do pensamento desse autor

Fim de nota de rodapé

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Página 75

TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

A consciência jurídica coletiva surge, assim, como fonte constitutiva do direito, que

não se esgota nas fontes formais, nas normas postas. Daí a pluralidade de

princípios gerais, que estruturam o direito no tempo e no espaço. Esta consciência

está longe da Volksgeist do historicismo jurídico de Savigny, porquanto é sempre

contrastável com as consciências singulares. Tanto uma como outras, em suas

camadas mais profundas, são depositárias de valores arcaicos, avessos a

mudanças. A justiça consiste exatamente no equilíbrio entre acomodação e

mudança, competindo às fontes Constitutivas promovê-la. Dentre os valores sociais

estão o individualismo e o estatisrno, que o solidarismo procura conciliar, como

solução de justiça. E dentro desse nesse quadro que se tem de considerar a

questão do abuso do direito, no entendimento de Dourado de Gusmão.

Com efeito, se o direito busca a justiça, e se esta varia em função dos valores

espirituais coletivos, a tipicidade normativa, que é a regulamentação abstrata de

uma dada relação, também varia, mas não com a mesma velocidade. Cabe, assim,

aos princípios gerais do direito recolher as fontes constitutivas não absorvidas pela

norma. Daí em diante, Dourado de Gusmão insere a questão do abuso no desvio do

exercício do direito por parte do titular que, preferindo as finalidades individuais às

finalidades sociais do direito, excede os limites latentes na consciência coletiva,

invocando a norma retrógrada, desconforme ao direito atual, ao sentimento histórico

da justiça.

Da doutrina exposta, que busca fundamentos em Gurvitch, Durkheim e Geny,

importa considerar a questão da consciência jurídica coletiva e a noção de princípios

gerais de direito, ambas inseridas no quadro do descompasso entre as expectativas

sociais e a

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italiano, discípulo de Barassi, encontra-se em sua tese de doutorado, O abuso do

Direito, Pádua, 1 922. Antunes Varela identifica na crise do conceitualismo legal-

formal da pandectística o momento em que a concepção axiológica do direito

subjetivo ganha expressão. Não se trata, como quer Rotondj, de reconhecer na tese

do abuso do direito um momento estritamente sociológico. Essa posição ignora a

dimensão jurídica do conceito (Antunes Varela, op, cit,, p. 50 e 5 1; 55-59). Paulo

Dourado de Gusmão também se afasta do legalismo de Rotondi.

Fim de nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

norma. Genaro Carrió aponta sete focos de significação para a palavra princípios: a)

propriedade fundamental ou parte integrante de alguma coisa; b) regra, guia ou

orientação; c) causa, origem; d) finalidade, propósito; e) premissa, axioma, essência;

f) regra prática de conteúdo; g) máxima, aforismo. Os princípios gerais do direito,

segundo Carrió, fazem referência a todas estas idéias.161

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Com frequência, fala-se em certos princípios legais, tais como o da separação dos

poderes (primeiro significado), ou na essência dos conceitos jurídicos, considerados

como entidades, nos moldes da jurisprudência dos conceitos (quinto significado).

Fala-se também no princípio da bagatela ou no princípio da insignificância, que

expressam generalizações ilustrativas, obtidas com o recurso à estrutura do sistema,

já que não previstas normativamente (primeiro e segundo significados). E comum

também a referência a ratio legis ou a mens legis, que expressam a idéia de

finalidade, objeto do quarto significado e que, da mesma forma, não têm previsão

normativa. Os princípios também fazem referência aos juízos de valor, tal como a

idéia de consciência jurídica popular (segundo e terceiro significados) ou às

máximas que provêm da tradição jurídica (sétimo significado).

São, pois, diversas as teorias acerca da natureza dos princípios, como diversas

também são as teses acerca de seus fundamentos (direito natural, direito

comparado, direito posto etc.).162 Bobbio,

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(161) Genaro Carrió, Princípios juridícos y positivismo jurídico» Buenos Aires,

Abeledo Perrot, s.d., p. 33-38.

(162) Del Vecchio (Lições de Filosofia do Direito, Coimbra, Arménio Amado, Ed., 1

95 1, p. 4 1 5-42 1) constrói o conceito de princípios gerais do direito na base

metafísica do jusnaturalismo; a partir do positivismo jurídico, a referência aos

princípios gerais do direito passou a ser feita pela própria norma, com o que

ganharam uma natureza supletiva, ainda que sob fundamentos diversos (Emílio

Betti, Interpretación de Ia Iey y de los actos jurídicos, Madrid, Editoriales de Derecho

Reunidas, s.d., p. 281-288; Larenz, Metodologia de Ia ciencia del derecho, Bacelona,

Anel, 1994, p.148-150, 172, 173, 185, 368-385 e465-483 ; Esser, Einfiihrung in die

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Grundbegrffe, p. 183 e Grundsatz undNorm in der richterlichen Fortbildung des

Privatrechts, p. 5, apud Larenz, op. cit., p. 146 e 471). A partir de Crisafulli (Per la

determinazione del concetto deiprincipi generali del Diritto, en Studi sui Principi

generali

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

por exemplo, sustenta que os princípios são obtidos através de uma analogia juris,

fundada no emprego de um argumento indutivo (relação de semelhança), cuja

conclusão resulta na segunda premissa integrante de um silogismo dedutivo.163 No

mesmo sentido é a posição de Enneccerus, para quem a analogia juris parte de uma

pluralidade de disposições jurídicas particulares, extraindo delas, por indução,

princípios mais gerais, que se aplicam a casos que não se ajustam a nenhuma das

disposições da lei. 164

No caso dos princípios gerais que informam a noção de abuso do direito no

ordenamento jurídico brasileiro, surgem eles de vá- rias disposições particulares,

existentes em diversas codificações. São standards que orientam o intérprete na

compreensão do sentido dell ordinamento giuridico, Pisa, 1 94 1, p. 240 e ss., apud

Betti, op. cit., p. 282), os princípios gerais de direito ganham status normativo.

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(163) Bobbio, Teoria dellordinamento giuridico, Turim, Copisteria Giappichelli,

LitografiaDiritto, l96O,p. 173-175; I81e182.Ojusfilósofo italiano parte da construção

de Crisafulli.

(164) Enneccerus, op. cit., Tomo I, Parte Geral, volume 1, § 53, p.212; para Mario

Rotondi, o discurso sobre o abuso do direito avança sobre uma problemática mais

ampla, e chega a compreender os problemas mais gerais dos Iimites da ordem

jurídica, da interpretação e aplicação da norma (Le role de la notion de l abus du

droit, in Revue de Droit Civil, Sirey, I 980, p. 68); para Martín Bernal, não se trata de

argumentar, na aplicação de um princípio geral do direito, com a existência de uma

lacuna, senão com um caso de atipicidade normativa; para Warat, igualmente, a

noção de abuso do direito não tem referência à inexistência de norma, já que existe

uma conduta deonticamente permitida, ainda que tal previsão possa resultar

inapropriada para regular as atuais formas de convivência social. O autor argentino

não deixa de admitir que este, entretanto, é o sentido contra- intuitivo de lacuna em

Kelsen (op. cit., p. 98). Entende-se, todavia, que a questão do abuso do direito pode

interferir com o problema das lacunas desde que se tenha em conta a permissão

negativa como categoria deôntica (tudo que não está proibido está permitido), o que

afasta a tese da existência de um espaço jurídico inqualificado, vale dizer, sem

significação jurídica. Coljn e Capitant entendem que é precisamente no uso destas

faculdades, pertencentes ao campo da permissão negativa, que mais se come- tem

atos prejudiciais aos outros (op. cit., p. 626 e 627). A respeito desta discussão, v.

Amedeo Conte, Saggio sulla completezza degli ordinamenti giurjdjcj Turim,

Giappichelli Ed., 1962.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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histórico e social de justiça, extraídos do texto da norma.165 Expressões tais como

moralidade, utilidade, finalidade, adequação, limite ou limitação, moderação, motivo

justo, motivo legítimo, prática equitativa, função social; excesso, desnecessidade,

exercício irregular exercício anormal, mau uso, uso abusivo, são indicativas de

condutas que, na dependência das circunstâncias sociais, econômicas e sociais,

ingressam na esfera da iliceidade (expressão que ora se passa a adotar como

referência a um conceito mais amplo de ilicitude, ainda que de origem normativa,

segundo alguns, porque fundado nos princípios gerais de direito).166

Hoje, muitos são os dispositivos na legislação brasileira que encamparam a noção

de abuso do direito, como espécie do ilícito. Poder-se-ia citar, sem qualquer

pretensão sistematizadora, a Constituição Federal, o Código de Aguas (Decr.

24.643/34), o Código Penal (D.L 2.848/40, com as alterações que se seguiram), a

Lei das Contravenções Penais (D.L. 3.688/41), a Lei de Falência e de Recuperação

de Empresas (1 1.101/05), a Lei de Imprensa (5.750/67), a Lei de Proteção à Fauna

(5.197/67), o Código de Processo Civil (Lei 5.869/73, com as alterações que se

seguiram), a Lei das Sociedades Anônimas (6.404/76), a Lei de Greve (7.783/89), a

Lei que

Início da nota de rodapé

(165) A propósito, escreve Fernández Sessarego: o direito, corno a vida, é temporal

e histórico e, por conseguinte, lábil e fluido. As condutas humanas, inseridas na

temporalidade, portanto, reflexos fenomênicos da Iiberdade, podem ser ou deixar de

ser valiosas de um momento para outro, sem solução de continuidade. Podem ser

justas até certo momento para, logo depois, transformar-se em injustas. Podem ser

solidárias durante um lapso, para, no átimo seguinte, converter-se em antissociais.

Não vemos, pois, inconveniente para que uma conduta potencialmente lícita ou

ilícita, no momento inicial, transforme-se, em certo instante, em ilícita, ao transgredir

algum dever imposto pelo ordenamento jurídico. É indiferente que o dever imposto

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seja especifico ou genérico, como seria aquele previsto em um princípio ou cláusula

geral do direito (op. cit., p. 313); no mesmo sentido, Goldschmidt (op. cit., p. 26 e

27).

(166) Josserand propõe a denominação atos ilícitos em contraposição a atos ilegais

(ilicitude stricto sensu) (De Iesprit des droit et de leur relativitè, n. 261, apud Alvino

Lima, op. cit., p. 329). Trata-se, de qualquer forma, de uma tentativa de definição

teórica.

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

disciplina a ação de indenização dos prejuízos causados por investi- dores

mobiliários (7.913/89), o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), o

Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), a Lei dos Crimes Contra a Ordem

Tributária (8. 137/90). a Lei de Locação (8.245/9 1), a Lei de Abuso do Poder

Econômico (8.884/94), o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94), a Lei que veda a

dispensa abusiva (Lei 9.029/95), a Lei de Propriedade Industrial (9.274/96) e a Lei

que pune as atividades lesivas ao meio ambiente (9.605/98). 167

Pedro Baptista Martins, já na década de 30, registra esse movi- mento legiferante,

através do qual as hipóteses de limitação ao direito vão assumindo o caráter de

ilegalidade normativa expressa.168 Mas é claro que a própria expressão abuso,

quer na interpretação do direito como um todo (onde o conceito surge como

antônimo de liceidade), quer no exame da norma específica (onde o conceito

aparece como antônimo de licitude) suscita um sem número de significados, na

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dependência do caso concreto. O importante, ainda nas palavras do autor, é que se

entenda que o reconhecimento de uma situação abusiva não depende de expressa

previsão legal.169 E nem

Início da nota de rodapé

(167) Registre-se que a doutrina controverte sobre o enquadramento do abuso do

poder (excesso de poder e desvio definalidade) na categoria do abuso do direito.

Dabin diz que em nada se diferenciam (cfr. Cunha de Sá, op. cit, p. 390). Todavia,

Eisenmann (Une nouvelle conception du drojt subjetctif. la théorje de M.Dabin,

Revue de Droit Public, 1954, p. 767, apud Cunha de Sá, op. cit., p. 383), partindo da

noção de direito subjetivo como interesse, defendida por Dabin, diz que o direito

subjetivo não pode ser entendido como competência, uma vez que o titular carece

de um interesse particular e o exercício da competência mais não é senão um dever.

Igualmente, Planiol sustenta que não se pode confundir o abuso do direito com o

desvio do poder. Diz que o direito subjtivo é um poder egoísta. A autoridade pública,

ao contrário, exerce o poder em nome de todos, cometendo excesso de poderes

quando age em um interesse privado (Pianiol, op. cit., tomoll, p. 340, nota 1). Bem

por isso, não foram incluídas no rol das leis que consagraram o abuso do direito

aqueles referentes aos agentes públicos.

(168) Pedro Baptista Martins, op. cit., p. 48.

(169) Ide,n, p. 8 l e 82; o autor, em certa passagem, citando Josserand e Rotondi,

lnvoca a importância dos princípiosjurídicos (op. cit., p. 138-140).

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

se argumente com o princípio da reserva legal (art. 50 da Constituição da

República), porquanto, como vjsto, as limitações do uso, abusivo resultam de outros

princípios também extraídos do sistema jurídico.170

Com maior razão —respondendo à crítica de Roberto Goldschmidt ao Anteprojeto

do Código de Obrigações de 1941 — entende-se que o só fato de o artigo de lei,

relativo ao abuso do direito, encontrar-se deslocado de sua adequada ubiquação

não é suficiente para com- prometer a autonomia da teoria, que tem de ser

distinguida do regramento dos atos ilícitos (stricto sensu). Ideal mesmo seria, como

aponta Haroldo Valladão, que a questão do abuso do direito fosse tratada na Lei

Preliminar, na Lei Introdutória, na Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas.171

Todavia, cuidando-se de princípio

Início de nota de rodapé

(170) A propósito, Pedro Baptista Martins, escrevendo no regime da Constituição de

1937, extrai das normas dos artigos 122 e 123, relativas aos direitos e garantias

individuais, fundamento constitucional para a repressão do abuso do direito (op. cit.,

p. 1 16 e 1 17). Hoje, tais garantias assumiram um caráter social (arts 50 a 17 da

Constituição Federal de 1988). Haroldo Valladão já reclamava um tratamento

constitucional acerca da matéria do abuso do direito, no seu dizer, principio supremo

de justiça social (op. cit., p. 14). Martín Bernal, a propósito da Constituição da

Espanha, diz que é na passagem do Estado de Direito para um Estado Social do

Direito que se pode identificar a consagração, ainda que implícita, da doutrina do

abuso do direito (op. cit., p. 283 a 287). Interessante, aliás, a relação entre o critério

finalista, defendido por Josserand e Campion — no sentido de que o exercício do

direito deve conformar-se à finalidade para a qual foi instituído ou à natureza mesma

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de determinada instituição jurídica — e a teoria constitucional das garantias

institucionais. Escrevendo sobre essas garantias, na base de princípios que são

normas-chave de todo o sistema jurídico, Paulo Bonavides observa que o Estado

Social alterou o perfil individualista das antigas disposições constitucionais, que

tinham fundamento na noção de direito subjetivo, com o que ganhou relevo a idéia

de dar amparo a certas instituições (sindicato, família, maternidade, ensino etc.), de

fundamental importância para a sociedade (Curso de Direito Constitucional, São

Paulo, Malheiros, 6. ed., 1996, pp 492 e 498).

(171) Haroldo Valladão, idern, ibidem (nesse sentido, o autor carioca retoma a

questão já discutida por Saleilles, no relatório apresentado à comissão de

Fim de nota de rodapé

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

geral do direito, pouco importa que esteja ou não reduzido à norma escrita.

Em suma, para uma teoria crítica do abuso do direito, o conceito tem de ser

encontrado no descompasso entre a realidade e a norma, entre a consciência

jurídica coletiva e o ordenamento jurídico vigente, entre a legalidade e aquilo que

Hauriou chamou de superlegalidade.172 Daí a advertência de Goldschmidt, no

sentido de que à idéia de abuso basta o conceito de antijuridicidade, vale dizer, um

juízo de valor, uma estimativa ético-social da conduta humana, que está no campo

metajurídico.173

Luís Alberto Warat, compartilhando dessa perspectiva, também recorre à noção de

uma consciência jurídica coletiva, ou seja, de uma normatividade meta jurídica que

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se orienta sempre por critérios de justiça e que busca reconhecimento pela ordem

legal. A figura retórica do abuso do direito é uma forma de Iegitimação destas

expectativas, uma máscara de legalidade, na expressão do professor argentino, hoje

radicado no Brasil. Isto dissolve o paradoxo aponta- do por Planiol, porquanto há de

se reconhecer que a expressão abuso não é unívoca, comportando um campo

intensional (conotação) e extensional (denotação) bastante amplo.174 Como já se

teve oportunidade de dizer, é exatamente o reconhecimento da diversidade do

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

revisão do Código Civil francês); todavia, como já advertia Carlos Maximiliano,

escrevendo na década de 20, a lei não se equipara a um manual teórico. Assim, os

títulos, as epígrafes, não são critério seguro para definir a natureza jurídica de um

instituto, pois a disposição das matérias de uma codificação não é feita com o rigor

escolar (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p. 266

e 267).

(172) Maurice Hauriou, Evolutions et actualités de droit civil, Paris, 1936, p 89, apud

Alvino Lima, op. cit., p. 338.

(173) Roberto Goldschmidt, op. cit, p. 27-30; Enneccerus também busca nos

princípios jurídicos o fundamento da noção de abuso do direito (op. cit., Tomo I,

Parte Geral, vol. 2, 2.a parte, p. 1.083 e 1.085); ver, igualmente, Fernández

Sessarego (op. cit., p. 3 14), Luis O. Andorno (op. cit., p. 33), Martín Bernal (op. cit.,

p. 63), Luís Alberto Warat (op. cit., p. 60, 65, 66, 72 e 80) e Haroldo Valladão (op.

cit., p. 12 e 14).

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(174) Warat, op. cit. p. 60, 66 e 83.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

sentido da expressão direito (jurídico e metajurídico) que denuncia a falácia do

argumento de Planiol, porque, sendo diversos os senti- dos, não se pode cogitar do

princípio da contradição.175

Está claro, a esta altura, que a importância do conceito de abuso do direito no

campo da dogmática jurídica depende da concepção que se possa ter acerca do

próprio Direito. Para Mario Rotondi, que recorre, igualmente, à idéia de uma

consciência jurídica coletiva, não se pode negar a importância da noção de abuso do

direito como categoria metajurídica, bandeira de vanguarda das transformações do

direito posto.176 O autor, contudo, coloca a tônica nas reformas legislativas, sem

dar muita importância às expressões do pluralismo jurídico, já reconhecidas desde

Geny e Ehrlich, no final do séc. XIX.

Luís Alberto Warat dissente da opinião de alguns juristas, no sentido de que a

consagração legislativa do abuso do direito possa banalizar o conceito, que é regra

tópica.177 Sustenta, entretanto, que a alteração do campo de significação do direito

não reside no simples fato de ter-se alterado a letra da lei. A positivação permite

apenas que o juiz tenha o respaldo legal necessário para desenvolver plenamente o

momento intuitivo do ato de decisão,178 que assim se verá legitimado, sob o ponto

de vista da racionalidade formal. Desde que a noção de abuso do direito caiba numa

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fórmula bastante ampla, como é aquela do Código suíço, estará desta forma

garantido o exercício da prudentiajuris.179

Início de nota de rodapé

(175) Como observa Alaôr Caffé Alves, o princípio do terceiro excluído não pode ser

aplicado às palavras ambíguas ou indeterminadas, pois estas não comportam o

corte preciso do sim ou não, do verdadeiro ou falso (Alaôr Caffé Alves, Lógica —

Pensamento formal e argumentação — Elementos para o discurso jurídico, São

Paulo, Edipro, 2000, p. 351).

(176) Rotondi, lnstituiciones de Derecho Privado, México, Editorial Labor S.A., 1953,

p. 99-101.

(177) Esta banalização é apontada por Pedro León, para quem a previsão le- gal

implicaria a inserção do conceito na vala comum dos atos ilícitos (Pedro León, apud

Warat, op.cit., p. 84 e 85 — não consta referência ao titulo da obra do autor citado).

(178) Warat, op. cit., p. 85 e 86.

(179) Idem, p. 86 e 87.

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TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

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Na fórmula utilizada pelo legislador suíço, a expressão boa-fé (que também aparece

nos Códigos da Polônia, Grécia, Portugal, Bolívia, Argentina, Venezuela, Paraguai e,

de certa forma, no Código Civil italiano, em dispositivos esparsos) tem um

significado objetivo. Trata-se de uma forma tópica, de um princípio geral de direito

que se reporta aos padrões sociais e morais vigentes, às expectativas do cidadão

comum.180 Esta orientação, entretanto, ao contrário do que supõem os opositores

da teoria do abuso do direto, não é arbitrária, movendo-se dentro de uma esfera

pragmática. É o que se pretende demonstrar no quarto e quinto capítulos. Por ora,

trata-se de saber como o conceito é elaborado no campo do pro- cesso judicial.

Início de nota de rodapé

(180) Neste sentido, v. Carlos de La Vega Benayas, Teoría, Aplicación y Eficacia en

las Normas del Código Civil, Madrid, Ed. Civitas, S.A., 1 976, p. 249 e ss., apud

Martín Bernal (op. cit., p. 1 93 e 1 94), cujo conceito ora se adota por ser o que mais

se aproxima da linha pragmática que orienta o presente trabalho.

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES NO PROCESSO JUDICIAL

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SUMÁRIO: 2.1 Delimitação do tema na dogmática jurídica— 2.2 As dificuldades do

subjetivismo de base psicológica — 2.3 As práticas judiciárias e os modelos de

verdade — 2.4 A verdade no senso comum dos processualistas.

2.1 Delimitação do tema na dogmática jurídica

Como foi visto no capítulo anterior, não havia no direito brasileiro, até a edição do

Código Civil, norma específica sobre o abuso do direito. E certo que já as

Ordenações Filipinas, ou Ordenações do Reino, como ficaram conhecidas,

reprimiam certas condutas processuais. Mas, conforme registro de José Olímpio de

Castro Filho e de Pedro Baptista Martins, trata-se ainda de uma perspectiva do

direito romano, porquanto as sanções limitavam-se a agravar as custas, em certos

casos de lide temerária.1 Como será visto adiante, esta orientação persiste no

direito brasileiro até a chamada unificação do processo civil.

Início de nota de rodapé

(1) José Olímpio de Castro Filho, Abuso do Direito no Processo Civil, Rio de Janeiro,

Forense, 1 960, p. 73; Pedro Baptista Martins, Comentários ao Código de Processo

Civil — Decreto-Lei 1. 608, de 18 de setembro de 1939, vol. I, Rio de Janeiro,

Revista Forense, 1940, p. 35. Como registra este último processualista mineiro, no

direito romano havia um sistema de litis crecencia, de sorte que as sanções

pecuniárias iam-se tornando mais severas, na medida da gravidade da infração.

Fala-se, assim, na condenação in duplum e in triplum, (Pedro Baptista Martins, o

abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 997, p. 67 e 68).

Fim de nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Assim, se a parte vencida tivesse agido sem malícia, seria condenada apenas nas

custas singelas. Agindo de maneira maliciosa, responderia por custas em dobro ou

tresdobro, na dependência da gravidade de sua conduta, podendo até ser presa,

caso não lhe fossem achados bens (Livro 111, Título LXVII). Quando o autor

demandasse pagamento de quantia a maior, sujeitava-se também à condenação de

custas em dobro ou tresdobro. Era-lhe permitido, no entanto, antes da contestação,

descer de demandar em relação à parte que sobejasse, hipótese na qual

responderia apenas por custas singelas. Se o autor tivesse agido por ignorância ou

simpleza, seria condenado em custas singelas ou em dobro, segundo o grau de

culpa (Livro 111, Título XXXIV). No Título seguinte, havia previsão de pagamento de

custas em dobro, quando o autor exigisse cumpri- mento de obrigação, pendente

condição suspensiva.2

Ainda no Livro III das Ordenações do Reino, existiam dispositivos que obrigavam a

devolução em dobro, caso o autor demandasse para receber dívida já satisfeita, sem

prejuízo do pagamento de custas, na mesma expressão. Aqui, igualmente,

facultava-se ao autor descer da demanda na parte que sobejasse daquilo que lhe

era de- vido, subsistindo condenação nas custas em dobro (Título XXXVI). Na

hipótese de chamamento à autoria, caso o terceiro comparecesse para dizer da

legitimidade de sua intervenção, o réu era absolvido da demanda e o autor

condenado nas custas em dobro ou tresdobro, segundo o grau de malícia

empregada (Título XLIV). Nos parágrafos seguintes, encontrava-se também previsão

de custas em dobro para hipótese de indevida nomeação à autoria. Punido com

multa era aquele que, incumbindo-se de apresentar determinada pessoa em juízo,

não o fizesse (Título XLVI). Aquele que desviasse bens, fraudando a execução, ou

que retardasse, com oposição de embargos, o fim da demanda, estava reservada a

pena de prisão (Título LXXXVI, 13, 16,17 e 18). O vencido nos embargos à

execução era condenado ao pagamento de custas em dobro (Título LXXXVII, 8).

Caso a culpa fosse atribuída ao advogado, ficaria

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Início de nota de rodapé

(2) Cândido Mendes, Código Filipino, 1 4. ed., 1 870, p.61 8, 6 1 9 e 67 1 , apud

José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 73-75.

Fim de nota de rodapé

Página 87

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

suspenso, por algum tempo, do exercício da função, tendo de recolher multa ao

tribunal.3

A Disposição provisória acerca da administração da justiça civil, anexa ao Código de

Processo Criminal do Império, de 29 de novembro de 1832, em parte alterada pela

Lei de 3 de dezembro de 1841 e pelo Decreto 143, de 15 de março de 1842,

manteve-se fiel à inspiração das Ordenações do Reino e, portanto, à inspiração

romano-canônica. Nela se obscureceu, todavia, tanto quanto no Regula- mento 737,

de 25 de novembro de 1850 (que se aplicava às causas comerciais), a repressão ao

abuso do direito no processo, do que é prova a existência de pouquíssimos

dispositivos relativos ao tema. Punia-se o excipiente, com condenação de custas em

tresdobro e pagamento de multa, quando arguisse maliciosamente a suspeição do

juiz. O pedido de arresto, feito de má-fé, dava lugar à condenação em perdas e

danos. 4 Seguiu-se a Lei 2.033, de 20 de setembro

Início de nota de rodapé

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(3) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 76-78. Anota ainda o autor, citando

Cândido Mendes (op. cit., p. 88 e 727), que, segundo a Lei da Boa Razão, datada de

1 8 de agosto de 1 769, o advogado que praticasse chicana, retardando o desfecho

da causa, ou que desenvolvesse argumentação falaciosa, seria multado. Persistindo

na prática, perderia os graus universitários e, caso, pela terceira vez, incidisse na

falta, valendo- se de interposta pessoa que lhe assinasse os arrazoados, haveria de

ser degredado para Angola (op. cit., p. 78 e 79). Registre-se que esta Lei, de

concepção jusnaturalista moderna, também foi aplicada no Brasil mesmo depois da

independência, por força do Decreto de 20 de outubro de 1 823, editado pela

Assembléia Geral Constituinte. No caso de cobrança de dívida já paga, cabe citar

acórdão do Tribunal de São Paulo, de 05/08/1919, proferido nos autos da Apelação

Civil 9.373, em que se invoca, a par do disposto no Livro 111, Título XXXIV das

Ordenações, o artigo 1 .53 1 do Código Civil de 1 9 1 6, então, recém editado (RT,

São Paulo, Ano VIII, vol. XXXI, fasc. 167, setembro de 1919, p. 40 e 41).

(4) Idem, p. 80. Pontes de Miranda, a propósito do Regulamento 737, registra a

existência também da chamada ação de dolo, em que se buscava ver reconhecida a

responsabilidade do vencido que agisse com temeridade ou malícia (art. 337).

Reconhece, todavia, que a ação por sim- ples abuso do direito processual (como

trata) só veio com o Código de Processo Civil de 39, muito embora por ela

propugnasse desde 1 929, na obra História e Prática do Arresto, a págs. 95 e

seguintes (Tratado

Fim de nota de rodapé

Página 88

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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de 1 87 1, aprovada pela Resolução Imperial de 28 de dezembro de 1 876, que,

como Consolidação das Leis do Processo Civil — denominação pela qual se tornou

conhecida — Iimitava-se a reunir a legislação até então existente.

A Constituição do Império criou ajustiça federal, a par da justiça dos Estados, com o

que se seguiu a Consolidação das leis referentes à justiça federal, aprovada pelo

Decreto 3.084, de 5 de novembro de 1 898. Nela havia também algumas

disposições esparsas que reprimiam o abuso do direito de demanda. O arresto

pleiteado de má-fé dava lugar à ação de perdas e danos. Estava prevista imposição

de custas em tresdobro, para a hipótese em que a exceção de suspeição fosse

rejeitada, e em dobro, quando se estivesse tratando de oposição. O senhorio que

demandasse aluguel já pago, no todo ou em parte, também era condenado nas

custas em tresdobro. Ha- via custas de retardamento e imposição de pena de prisão

àquele que escondesse bens passíveis de penhora. Aquele que pedisse mais do

que lhe era devido, ou que exigisse obrigação, conditio pendet, era condenado,

respectivamente, às custas em tresdobro e em dobro. Se o autor demandasse por

dívida já paga, obrigava-se à restituição em dobro. Em qualquer caso, surpreendido

em malícia, poderia ser condenado nas custas, em dobro ou tresdobro, conforme o

arbítrio do julgador.5

Nos Códigos Estaduais é possível encontrar, igualmente, alguns dispositivos

relativos ao abuso do direito de demanda, mas ainda de matiz nitidamente

romanista. Mesmo nos Códigos da Bahia (1915), do Distrito Federal (1924) e de São

Paulo (1930), que traduzem o pensamento renovador da doutrina alemã do final do

século XIX, a repressão à lide temerária ainda estava baseada na imposição

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

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das ações, tomo VI, São Paulo, RT, 1 976, p. 540). A propósito da aplicação do

mencionado artigo, v. sentença do Juízo de Belo Horizonte, datada de 04/1 1/1 9 1

3, que se encontra na Revista Forense, vol. XX, fascs. I 1 5- l 20, julho-dezembro de

1 9 1 3, Belo Horizonte, 19 13, p. 440-44 l, bem como acórdão do Tribunal da

Relação de Minas Gerais, datado 02/12/1914, publicado na Revista Forense, vol.

XXIII, fascs. 133-138, BeIo Horizonte, janeiro-junho de 1915, p. 216-220. José

Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 80 e 81.

Fim de nota de rodapé

Página 89

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

de multas e no agravamento das custas. Punia-se com multa a arguição infundada

da suspeição do juiz (Distrito Federal e Minas Gerais), impondo-se custas em dobro

na hipótese de rejeição liminar (Distrito Federal) ou perda da caução prestada (Rio

Grande do SuI); quando a nomeação à autoria fosse feita em nome de quem não

tinha a coisa, aquele que a fizesse era condenado a pagar custas em dobro (Minas

Gerais e Pernambuco) ou em tresdobro (Distrito Federal e São Paulo); aquele que

decaísse da oposição respondia por custas em dobro (Distrito Federal e Minas

Gerais); o litigante de má-fé havia de pagar multa (Distrito Federal) e, sendo

vencido, custas em dobro ou tresdobro; ao advogado que interpusesse agravo fora

dos casos previstos em lei era imposta multa (Distrito Federal e Minas Gerais); quem

provocasse incidente de falsidade, agindo de má-fé, pagaria custas em tresdobro

(Distrito Federal) ou em décuplo (Rio Grande do Sul), mesmo na hipótese de culpa

(Minas Gerais); o arresto pleiteado de má-fé dava lugar a perdas e danos (Distrito

Federal, Minas Gerais, São Paulo Pernambuco e Bahia), o mesmo sucedendo no

caso de embargos (Bahia); pelo pagamento de multa diária (São Paulo) ou custas

(Rio Grande do Sul), respondia aquele que retardasse o processo. Por último, ao

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advogado que retivesse os autos além do prazo seria imposta multa (São Paulo e

Rio Grande do Sul) ou suspensão do exercício da pro- fissão (Pernambuco).6

Início de nota de rodapé

(6) Oscar da Cunha, O dolo e o direito judiciário, p. 145, apud J. O. de Castro Filho,

op. cit., p. 80-83. Diversos julgados da época registram a aplicação desses

dispositivos Iegais. E o caso da sentença proferida pelo Juiz Olavo EIoy de Andrade,

da Comarca de BeIo Horizonte, em 04 de novembro de 1913, inserta na Revista

Forense, vol. XX, fascs. 1 15-120, julho-dezembro de 1913, Belo Horizonte,

Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, p. 41 1-414. Kaethe Grossmann, em

estudo de direito comparado (O dever de veracidade no Processo Civil — Exposição

de Direito Comparado, in Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano XLII, vol. 101, fasc.

409,janeiro de 1945, p. 282-286), mostra que os deveres éticos relacionados à

lealdade processual já haviam sido incorporados, então, pela legislação de grande

parte dos países da Europa, do que é exemplo o disposto no § 1 38, I, do Código

Alemão (já antes do Terceiro Reich o dever de Iealdade estava previsto em

numerosos projetos de reforma) e no art. 178 do Código Austríaco, que influenciou o

Código

Fim de nota de rodapé

Página 90

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A partir do Código de Processo Civil de 1939, além da previsão de multas e custas

diferenciadas, o legislador passou a dar especial

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Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Iugoslavo ( 170 e 242). No Código de Processo russo também havia a proibição da

mentira (art. 6). A má-fé processual era punida com multa pelos códigos da Suécia

( 8.° do cap. 1 4), da Dinamarca ( 325) e da Hungria (art. 222, inc. 2). Nos códigos

de alguns cantões suíços também é possível encontrar regras sobre o, dever de

verdade, sem que houvesse, entretanto, previsão de sanção. E o caso do Código de

Processo da Basiléia ( 32) e do Código de Processo de Uri (art. 96). Regra geral,

entretanto, a legislação dos cantões reprimia a prática com imposição de multa, a

exemplo do que sucedia em Zurique ( 90), Berna ( 42), Genebra ( 432) e Soloturno

(art. 1 8). No direito latino, não obstante a ausência de preceito específico, Kaethe

Grossmann identifica algumas regras precursoras, a exemplo do art. 1 2 1 do Código

de Seabra, em Portugal. Na Itália, a autora reconhece a consagração da tese do

abuso do direito de demanda nas regras dos arts. 30, 33, 36 e 193 (CPC de 1926) e,

na França, nos artigos 3 1 3 e 246 do antigo Código. No Código de Processo Civil de

2003, ora vigente, o legislador francês dispõe sobre o dever que as partes têm de

colaborar na produção das provas (art. 1 1), estabelecendo ainda que a testemunha

está sujeita ao pagamento de multa e à pena de prisão caso venha a faltar com a

verdade (art. 21 1). Nos países Iatino-americanos, alguns códigos, já ao tempo em

que Kaethe Grossmann escrevia, também previam a imposição de multa para

aquele que faltasse com o dever de veracidade. E o caso do CPC mexi- cano (art.

140), do Código Judiciário colombiano (art. 575) do Código da Costa Rica (art.

1 .074), de Honduras (art. 1 92), da Nicarágua (art. 2. 1 09), da Guatemala (art. 608),

do Paraguai (art. 222) e do CPC da Argentina (art. 221). Atualmente, a matéria está

regulada no artigo 90 do Código de Processo Civil mexicano (1 943, com a Reforma

de 2002); no artigo 72 do CPC da Colômbia (1970, com a relação que lhe deu a

Decreto 2.282, de 1989); no artigo 323 do CPC da Costa Rica (1990); no artigo 396

do CPC de Honduras (1906); no artigo 157 do CPC da Guatemala (1964); no artigo

56 de CPC do Paraguai (1988); na Argentina, a questão é tratada pelos códigos

processuais das diversas províncias e também pelo Código Processual Civil e

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Comercial da Nação, aqui especiticamente no artigo 45, com a redação que lhe foi

dada pelo arti- go 2.° da Lei 25.488, de 22/1 1/01. Acerca do Direito Processual

Com- parado, numa perspectiva mais moderna, ver Alfredo Buzaid, Processo e

verdade no direito brasileiro, in Revista de Processo, São Paulo, Ano XII, 47,julho-

setembro de 1987, p. 94-96; Alcides de Mendonça Lima,

Fim de nota de rodapé

Página 91

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

relevo à condenação em perdas e danos, também conhecida desde os romanos.7

No direito clássico, havia a chamada iudicium calumnia, remédio repressivo para os

casos em que, improcedente a demanda, ficasse caracterizada a ilicitude ou a falta

de fundamento da pretensão deduzida em juízo, o que rendia ensejo a indenização.

8 No Código de 39, a parte que intentasse demanda por espirito de emulação, mero

capricho, ou erro grosseiro, respondia por perdas e da- nos (art. 3.°, caput). O abuso

do direito também estava configurado — por expressa disposição — no uso

malicioso dos meios de defesa, o que compreendia a resistência injustificada ao

andamento do pro- cesso (art. 3.°, parágrafo único). A par destes dispositivos, o

Código de 39 manteve a previsão do pagamento de custas e despesas, para as

hipóteses de Iide temerária, que se revelavam, por exemplo, na provocação de

incidentes manifestamente infundados (artigo 63, caput). E a condenação era devida

ainda que a parte saísse vencedora (art. 63, § 2.° e 3.o). 9

Abuso do direito de deinandar in Revjsta de Processo, São Paulo, Ano V, 1 9, julho-

setembro de 1 980, p. 57-58; José Carlos Barbosa Moreira, Responsabilidade das

partes por dano processual, Revista de Processo, São Paulo, Ano 111, 1 0, abril-

junho de 1 978, p. 1 8-20; Antunes Varela, O abuso do direito no sistema jurídico

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brasileiro, in Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro, Rio de Janeiro, Ano 1,

ed. 1, julho de 1 982, p. 38-42, bem como os artigos reunidos por José Carlos

Barbosa Moreira, em Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000.

Início de nota de rodapé

(7) Kaethe Grossmann (op. cit., p. 286) anota que em várias Iegislações da época a

mentira processual conferia à parte contrária direito à indenização por eventuais

danos sofridos. É o caso do Código de Genebra (art.432), do Código da França (em

decorrência do célebre preceito do art. 1 .382), bem como do Código da Austria

(408), da Itália (art. 370) e da Guatemala (art. 608).

(8) Gino Zani, La Mala Fede nel Processo Civile, Roma, 193 1, p. 3 1 e 32,apud

Pedro Baptista Martins, O Abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro,

Forense, 1997, p. 67. A respeito, v. também Kaethe Grossmann, O dever de

veracidade no Processo Civil, in Revista Forense, Rio de Janeiro, vol. 101, Ano XLII,

fasc. 409,janeiro de 1945, p.280 e 281.

(9) Alcides de Mendonça Lima sustenta que o abuso do direito de demanda é

espécie do gênero improbidade processual. O artigo 63 e parágrafos

Fim de nota de rodapé

Página 92

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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A esta altura, é importante suscitar um aspecto que interfere com a chamada teoria

da ação. A condenação em custas e despesas processuais, quer fundamentada no

fato objetivo da derrota (teoria da sucumbência)10 quer no só fato de a parte ter

dado causa ao processo ou incidente (teoria da causalidade),11 tem como

pressuposto um conceito de risco. E certo, sob o primeiro enfoque, que a atuação da

lei não pode representar uma diminuição patrimonial em prejuízo de quem ganha a

demanda. Sob o segundo enfoque, nada mais justo que o pagamento de custas e

despesas fique a encargo daquele que poderia ter evitado a controvérsia judicial. No

entanto, não se pode perder de vista que o recurso à justiça é uma das

manifestações da liberdade civil. Antes da sentença não há como dizer quem tem

razão. Bem por isso, a obrigação de pagar custas e despesas, a princípio, não é

uma sanção, exatamente porque não se está tratando de um ilícito.12

Com efeito, a partir do século XIX, operou-se uma autêntica revolução de conceitos

na esfera do direito processual, visto até então

resguardam o dever de lealdade no curso do processo, quer vencedora, quer

vencida a parte, ao passo que o artigo 3.° e seu parágrafo dizem respeito ao exato

momento da propositura da ação e àquele em que o réu se defende. Assim, o abuso

do direito de demandar seria — na expressão do jurista — um pecado original,

porque a idéia já nasce com o próprio exercício do direito, ainda que possa se

apresentar com outros matizes ao Iongo do processo (Abuso do direito de

demandar, in Revista de Processo, Ano V, 19, julho-setembro de 1980, p. 57 a 66).

No presente trabalho — como será visto ao seu tempo — adota-se critério diverso,

tratando por abuso do direito de demanda, ou abuso do direito no processo judicial,

as diversas formas de uso anormal do processo, que incluem a improbidade

processual.

Início de nota de rodapé

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(10) Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 111, São

Paulo, Saraiva, 1965, p. 207.> Francesco Carnelutti, Sistema di Diritto Processuale

Civile, vol. 111, Pádua. CEDAM, 1936, XIV, p. 436 e 437.

(12) Salvatore Satta, Direito Processual Civil, 7. ed., Rio de Janeiro, Borsoi, 1973, p.

151 e 152; nesse exato sentido ver também Josserand (De l esprit de droit et de Ieur

relativité — Théorie dite de LAbus de Droit, Paris, 1939, p. 59) apud J.M. de

Carvalho Santos, Código de Processo Civillnterpretado, vol. 1, Rio de janeiro, Freitas

Bastos, 1 940, p.99 e 100).

Fim de nota de rodapé

Página 93

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

como um compartimento do direito civil. Ao lado da ação de direito material, passou-

se a conceber a existência de uma ação de direito processual. Frustrada a prestação

espontânea, o titular da pretensão de direito material pode invocar a intervenção do

Estado, visando à realização do seu direito. Esta nova perspectiva tem origem na

viva polêmica travada entre Windscheid (1856) e Muther (1857), cuios

desdobramentos se fizeram sentir na concepção publicista do direito de ação, que

se pode ver em Plosz (1876) e Degenkolb (1877). Com Bülow, em 1868, abre-se

caminho, de outra parte, para a chamada teoria abstracionista, segundo a qual o

direito de ação independe da existência de uma sentença favorável, assistindo a

quem creia, de boa-fé, ser titular da pretensão de direito material.13

Modernamente, em uma posição intermediária, está Liebman (1949), para quem a

ação consiste no direito a um provimento sobre o mérito. Trata-se de um direito

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abstrato, exercido contra o Estado, mas ao mesmo tempo relacionado à pretensão

de direito material (causa petendi) e sujeito ao preenchimento de certos requisitos,

conhecidos como condições da ação. O processualista italiano reconheceu uma

certa ironia na expressão daqueles que definiam o tal direito abstrato como direito de

não ter razão, pois, sob essa ótica, igualmente absurdo seria falar em um direito de

ter razão. Certa- mente — prossegue Liebman — um dos momentos mais difíceis e

dramáticos da profissão do advogado, no qual se põe à prova tanto o seu dom de

jurista quanto a sua qualidade de homem probo, é aquele em que tem de aconselhar

o cliente a propor ou não uma demanda de êxito particularmente incerto. Mas esta

circunstância não pode ser um obstáculo ao reconhecimento do direito de ação.14

Início de nota de rodapé

(13) Celso Neves, Estrutura Fundamental do Processo Civil — tutela jurídica

processual, ação, processo e procedimento, Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 76,

90, 91, 92, 93 e 102; também para Degenkolb, abstracionista, a ação é um direito

público subjetivo, que compete a qualquer uin que creia, de boa-fé, ter razão para

ingressar emjuízo (Chiovenda, Principii di diritto processuale civile—Le azione.

Ilprocesso di cognizione, Napoli, Casa Editríce Dott Eugenio Jovene, 1965, p. 56 e

57).

(14) Liebman, Institutjj del diritto comune nel processo civile brasiliano, in Studi in

Onore di Redenti, 1 950, título VI, § 1 .°, apud Celso Neves,

Fim de nota de rodapé

Página 94

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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Quando se cogita da existência de um abuso do direito de demanda, há de se ter em

conta a autonomia do direito de ação, circunstância que torna ainda mais polêmica a

dissensão reinante entre subjetivistas e objetivistas. Preenchidos os requisitos de

admissibilidade do julgamento de mérito (condições da ação e pressupostos

processuais), o processo terá de receber uma sentença. O simples exercício deste

direito, portanto, não pode configurar abuso. Todavia, procedendo a parte com dolo

ou culpa, estará sujeita a sanções processuais, como já era da tradição dos

romanos, respondendo ainda por eventuais perdas e danos. Nestas hipóteses, a

conde- nação em custas e despesas, prevista no Código de 39 (art. 63, § 1 .° e 2.°),

assume o caráter de verdadeira reprimenda. Até aqui, está- se na esfera da

concepção subjetivista da teoria do abuso do direito. Resta saber, de outra forma,

acerca da configuração do uso anormal do processo nos casos em que não se

cogita de malícia ou culpa.

A doutrina e a jurisprudência brasileiras inclinaram-se sempre pela solução

subjetivista, fiéis à orientação dos juristas e tribunais franceses.15 Assim é que, para

Aguiar Dias, o simples fato de propor

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

op. cit., p. 1 08- 1 1 3; a propósito, Piero Calamandrei diz que, entre admitir toda e

qualquer demanda, por mais incabível que, prima facie, possa parecer, correndo o

risco de sobrecarregar os tribunais e, de outro lado, subordinar o exercício da ação à

prévia autorização do juízo, é preferível assumir os inconvenientes da primeira

solução (Derecho Procesal Civil, vol. 111 — Estudios sobre el proceso civil, Buenos

Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 352 e 353).

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(15) A propósito, v. Charmont, que cogita exclusivamente das hipóteses de ações

propostas de má-fé, ou mal fundamentadas, o que revela imprudência (op. cit., p. 1

14 e 123); igualmente, Saleilles delimita o campo de aplicação da teoria do abuso do

direito de demanda à malícia e ao objetivo perverso, torpe, citando farta

jurisprudência. Diz que alguns cogitam de indenização decorrente da simples

sucumbência, já que a perda da ação seria mostra de que a parte foi obrigada a

enfrentar a lentidão e as despesas de um processo, sem que, afinal, a parte adversa

ti- vesse razão. Registra que, todavia, há sérias objeções a este ponto de vista (De l’

abus de droit — rapport présenté a la première souscommission de la commission

de revision du code civil, in Bulletin de La Société D Études Législatives, quatrième

année, 1 905, Paris, Arthur

Fim de nota de rodapé

Página 95

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

ou de prosseguir em ação judicial não constitui, em si, abuso do direito ou ato ilícito.

Necessária a configuração de dolo ou culpa.6Esta também é a posição de Serpa

Lopes,17 Carvalho Santos,8 Oscar Tenório, Luiz Antonio da Costa Carvalho20e

Gabriel Rezende Fitho.2

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

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Rousseau, Éditeur, p. 340-342); Ripert também limita a responsabilidade das partes

aos casos de culpa ou dolo, configurados na ação mal formulada, na defesa

infundada, no retardamento malicioso do pro- cesso (o que inclui a interposição de

recurso sem legítimo interesse), na execução sem título, na ação proposta fora do

domicilio do réu, com objetivo de dificultar a defesa, no pedido de anulação dos atos

aos quais o próprio requerente deu causa etc.(op.cit.,p. 167, 169, 170e 172);no

mesmo sentido, Colin e Capitant, (op. cit., tomo 11, p. 630), Planiol (tomo 11, p.

338), Mazeaud & Mazeaud, op. cit., p. 453 e ss.

(16) José de Aguiar Dias, Da responsabilidade civil, vol. 2, 8. ed. Rio de Janeiro,

Forense, 1987, p. 55. O autor ressalva, entretanto, a hipótese de execução

provisória, pendente recurso recebido apenas no efeito devolutivo. No caso, a

responsabilidade é objetiva (idem, p. 555). Esta questão será rnelhor examinada na

seção seguinte.

(17) Serpa Lopes, sem deixar de tecer elogios à concepção objetivista da teoria do

abuso do direito, diz que à jurisprudência caberá dar à norma do Código Civil o

sentido mais adequado à espécie em julgamento (op. cit, p. 548). Pedro Baptista

Martins (O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1997, p.

76) e Edmundo Lins Neto (op. cit., p. 37) destacam sentença da lavra de Serpa

Lopes, na qual está consignado que, em se tratando de exercício do direito de ação,

exige- se ao menos a demonstração de culpa para que se possa cogitar de abuso

da demanda.

(18) J.M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil interpretado, vol. 1, Rio de

Janeiro, Freitas Bastos, 1940, p. 99-103, e Código Civil Brasileiro Interpretado, 7.

ed., vol. 111, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1958, p. 357-368. U

(19) Oscar Tenório, Outras considerações a respeito do abuso de direito na

purgação da mora, in Arquivos do Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores,

Rio de Janeiro, Ano XIV, março de 1956, 57, p. 11-14.

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(20) Luiz Antonio da Costa Carvalho, Curso Teórico-Prático de Direito Judicicjrj0

Civil, vol. 1, Rio de Janeiro, A. Coelho Branco Filho (Edi- tor), l 949, p. 302- 306.

(21) Gabriel Rezende Filho, Direito Processual Civil, 3. ed., vol. 3, São Paulo,

Saraiva, i p. 45 e 46.

Fim da nota e rodapé

Página 96

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A orientação da jurisprudência brasileira, mesmo depois do Código de 39, é

nitidamente subjetivista. 22 São raros os julgados que se

Início de nota de rodapé

(22) A propósito, ver TA São Paulo, Ap. 17.097 — Capital, Re I. Affonso de

Carvalho, 07.08.1931, in RT, São Paulo, Ano XX, novembro de 1931, vol. LXXX,

fasc. 381, p. 167 e 168; TA São Paulo, Ap. 897 — Santos, Rel. Meirelles dos Santos,

09.03.1938, citando os irmãos Mazeaud, in RT, São Paulo, Ano XXVII, maio de 1

938, vol. CXIII, fasc. 456, p. 7 17- 724; TA São Paulo, Ap. 2.121 — Piratininga, rel.

Paulo Passalaqua, 1 .°.02. 1 939, na qual foi confirmada erudita sentença do juízo

monocrático, com farta citação doutrinária, nacional e estrangeira, da lavra do Juiz

Adolpho Pires Galvão, in RT, São Paulo, Ano XXVIII, maio de 1 939, vol. CXIX, fasc.

468, p. 572-577; outra sentença, com inúmeras citações doutrinárias e

jurisprudenciais, da lavra do Juiz Augusto Saboia da Silva Lima, Titular da Terceira

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Vara Cível do Rio de Janeiro, datada de 1 .° de setembro de 1 928, encontra-se

reproduzida, na íntegra, na Revista de Direito Civil, Comercial e Criminal, Rio de

Janeiro, vol. 90, Livraria Cruz Coutinho — Jacintho Ribeiro dos Santos, Editor,

outubro de 1928, p. 161-168; este mesmo juiz, quando promovido ao Tribunal de

Apelação do Rio de Janeiro, proferiu acórdão em que registra, já na vigência do

Código de 39, a clara orientação subjetivista de nossas cortes, objeto de dezena de

julgados; sentença da Quinta Vara Cível do Rio de Janeiro, de 05/06/28, publicada

no Arquivo Judiciário, Rio de Janeiro, vol. 7, julh./agos./set. de 1928, p. 70-72; o

acórdão proferido na Apelação Civil 14.566, do Tribunal de Justiça do Estado de São

Paulo, datado de 07/6/1 927, após tecer considerações sobre a responsabilidade

objetiva, consigna que, em se tratando do exercício de ação, faz-se mister pesquisar

todas as circunstâncias, inclusive as de caráter subjetivo (Archivojudiciário, Rio de

Janeiro, vol. XVI, out./nov./dez. de 1 930, p. 1 60 e 1 6 1); colhem ainda decisões de

viés subjetivista em matéria de abuso do direito na ação de usucapião (Revista

Forense, Rio de Janeiro, Ano XVIII, vol. 57, fasc. 437, BeIo Horizonte, 1 93 1, 1 24 e

125), na ação pauliana (Revista Forense, Ano XXV, vol. 75, fasc. 424, julho de 1

938, p. 1 84- 1 87), no atentado (Archivo Judiciário, Rio de Janeiro, vol. 40, fasc. 1,

outubro de 1936, p. 444 e 445) e na execução (Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano

XXXV, outubro de 1938, vol. 76, fasc. 424, p. 79- 8 l); J.M. de Carvalho Santos

também faz menção a diversas acórdãos do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal

de São Paulo e da Bahia, tanto no seu Código de Processo Civil Interpretado (op.

cit., p. 100-103), como no Código Civil Brasileiro Interpretado (op. cit., p. 361-366),

todos de viés subjetivista; mais recentemente, colhe aresto do Min.

Fim de nota de rodapé

Página 97

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

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orientam pela concepção objetivista. Merece especial citação a jurisprudência do

Supremo Tribunal Federal, em matéria de purgação da mora pelo locatário, porque

acabou influenciando o trabalho do legislador, duas décadas depois.23 Entrementes,

a doutrina, à vista das inovações trazidas pelo Código de 39, que rompia com o

sistema romano-canônico, inserindo o processo 110 campo publicista, soube

valorizar os importantes instrumentos que o legislador colocou nas mãos do juiz, a

quem não pode ser indiferente a maneira como atuam as partes na persecução de

seu direito.24

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Amaral Santos (STF-RE 69.439, in Revista Trimestral de Jurisprudência, vai. 56, p.

¡ 29, apud Roberto Rosas, Abuso de direito e dano processual, in Revista Brasileira

de Direito Processual, Uberaba, vol. 39, 3.° trimestre de 1983, p. 1 15-130). Esse

autor, a despeito de filiar-se à concepção objetivista, reconhece que diversa é a

orientação jurisprudencial, citando vários exemplos disso. Pedro Baptista Martins,

igual- mente, apesar de defender a concepção objetivista, reconhece que os

tribunais brasileiros não se animaram a abandonar a doutrina da emulação. Cita,

particularmente, acórdão de 07 de junho de 1927, transcrito no volume 1 6, página 1

60 do Arquivo Judiciário (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, Rio de

Janeiro, Revista Forense,1 940, p. 48 e 49).

(23) O registro desta orientação da suprema corte é feito por Oscar Tenório (op. cit.,

p. 1 2 e 1 3). A Lei 1 .300, de 28. 1 2. 1950, referindo-se ao direito de purgação de

mora pelo locatário, não impunha limites. Porém, a justiça paulista, responsável pela

elaboração da doutrina do abuso no exercício deste direito, vislumbrou a hipótese de

intenção maliciosa. A propósito, colhe a Apelação Cível66.591, São Paulo, da 1.a

Câmara Civil do Tribunal de Justiça, rel. David Filho,j. 08.03.1955, in RT, São Paulo,

Ano 44, junho de 1 955, vol. 236, p. 92-94. Sobreveio a Lei Federal 3.085, de

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29/12/56, em cujo artigo 1 1 estava consignado que o exercício da faculdade era

regular e não abusiva (art. 1 1). Todavia, a partir da Lei 6.649, de 16/05/79, o

Iegislador limitou o número de oportunidades para a emenda da mora, dando um

tratamento objetivo à questão.

(24) Não faltou quem visse no processo inquisitivo a expressão mesma de um

determinado momento político, pois o País enfrentava um regime autoritário na

época em que o Código de 39 foi promulgado. Moacyr Amarai Santos ensaia esta

relação entre o aspecto político e o aspecto cientifico, findando por concluir que

prevaleceu, entretanto, a disciplina Jurídica (Contra o processo autoritário, in Revista

da Faculdade de

Fim da nota de rodapé

Página 98

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

O Código de 39 reúne uma série de dispositivos nos quais o senso comum dos

juristas reconhece uma referência ao abuso do direito. 25 Há hipóteses em que se

exige a configuração do dolo ou da culpa. Assim sucede nos casos de processo

fraudulento (art. 1 15) ou naqueles em que a parte, falseando a verdade, afirma

encontrar-se o réu em lugar incerto, não sabido ou de difícil acesso, a fim de que a

citação se faça por edital (art. 179). O mesmo se passa no caso de perempção (art.

204) ou quando o exequente indica à penhora bens

Início de nota de rodapé

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Continuação da nota de rodapé da página anterior

Direito, São Paulo, vol. LIV, fasc. 1, 1959, p. 212-229). Não se pode perder de vista,

porém, que o processo é sempre uma mescla do princípio dispositivo e do princípio

inquisitivo, em proporção que varia conforme o tempo e o lugar (Giuseppe

Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 2, São Paulo, Saraiva,

1965, p. 345).

(25) Pedro Baptista Martins, Comentários ao Código de Processo Civil — Decreto-

Lei 1.608, de 18 de setembro de 1939, vol 1, Rio de Janeiro, Forense, 1 940, p. 35-

49; 1 95-21 2; 346-35 1 , e O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., 1997, p. 66-82; J.

M. de Carvalho Santos, Código de Pro- cesso Civil Interpretado, vol. 2, 2. ed., Rio de

Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, p. 1 32 e 1 33; Jorge Americano,

Comentários ao Código de Processo Civil do Brasil, vol. 1, São Paulo, Saraiva & Cia

— Livraria Acadêmica, 1 940, p. 1 8-3 1; 1 1 0- 1 1 3; Herotides da Silva Lima,

Código de Processo Civil Brasileiro, vol. 1, São Paulo, Saraiva & Cia — Livraria

Acadêmica, 1940, p. 22 e 223; João Bonumá, Direito Processual Civil, vol. 1, São

Paulo, Saraiva & Cia — Livraria Acadêmica, 1946, p. 373- 383; Luiz Antônio da

Costa Carvalho, Curso Teórico-Prático de Direito Judiciário Civil, vol. 1, Rio de

Janeiro, Coelho Branco Filho Editor, 1949, p. 301-306; José Olímpio de Castro Filho,

op. cit., p. 122, 123, 164, 165, 172-183; José Frederico Marques, Instituições de

Direito Processual Civil, vol. 2, Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 131-137; Pontes de

Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 2. ed., tomo I, Rio de Janeiro,

Forense, p. 130-154 e 407-424; tomo 11, 2. ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1

958, p. 21 8-221; tomo 111, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 212-214; tomo VIII, 2.

ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 959, p. 439-443; tomo xIII, 2. ed., Rio de Janeiro,

Forense, 1961, p. 396-403; Pontes de Miranda, Tratado das Ações, tomo 1!, São

Paulo, RT, 1971, p. 1 85-187; tomo Vl, 2. ed., São Paulo, RT, 1976, p. 539-541; José

da Silva Pacheco, Curso Teórico-Prático do Processo Civil, tomo I, 2. ed., Rio de

Janeiro, Borsoi, 1 962, p. 1 4 e 1 5; Arruda Alvim, Curso de Direito Processual Civil,

vol. 1, São Paulo, RT, 1971, p. 9,10 e 539.

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Fim da nota de rodapé

Página 99

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

que não são passíveis de constrição (art. 942). Igualmente, a parte que age com

dolo ou temeridade na propositura de ação cautelar, responde por perdas e danos

(art. 688, parágrafo único).

A doutrina, de modo geral, reconhece abuso do direito de demanda nos casos de

absolvição de instância (atualmente conheci- dos como causa de extinção do

processo sem julgamento do mérito), mas desde que configurado o dolo ou a culpa.

E certo que a parte tem direito ao processo. Mas ele não lhe foi dado para realização

de objetivos outros, diversos da atuação da vontade da lei (Chiovenda)26 ou da

justa composição da lide (Carnelutti). 27 Assim, a ausência de condições da ação,

dos pressupostos processuais, da outorga uxória (nos casos em que a lei exige) e

da caução às custas, tanto quanto o abandono da causa, a inépcia da inicial e a

inércia na citação de terceiros (arts. 91, 179 e 201), são circunstâncias que, na

dependência da maneira como procede o autor, podem levar à configuração do

abuso. 28 Da mesma forma, quando o réu argúi preliminares manifestamente

infundadas, com o claro objetivo de ludibriar ou procrastinar o feito, ou quando

ardilosamente nega o fato, configura-se o desvio do processo de sua destinação

normal. Pode ocorrer também que o réu, reconhecendo o fato alegado na inicial,

venha a apresentar exceções ou interpretações da lei manifestamente descabidas,

com o que, quando menos, estar configurado o erro grosseiro, equivalente ao

dolo.29

Início de nota de rodapé

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(26) Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. I,

Edição Saraiva, 1965, p. 37.

(27) Idem, p. 46.

(28) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 1 18-139; no dizer de Luiz Antônio da

Costa Carvalho, quando o proponente da ação, dispondo apenas de um simulacro

de direito, é portador de uma pretensão aparentemente justa, mas não tem o direito

e socorre-se de um interesse legitimo a sua atividade processual será

indiscutivelmente ilícita, por que antissocial e injusta. E essa atividade ilícita, cuio fim

intencional será o prejuízo de outrem, pode ser culposa ou dolosa, conforme a forma

de manifestação do abuso do direito seja resultante de simples culpa ou de má-fé do

agente (op. cit., p. 303).

(29) Jose Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 139-142.

Fim da nota de rodapé

Página 100

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Em segundo lugar, estão as hipóteses de responsabilidade objetiva. E o caso da

execução provisória, pendente apelação recebida apenas no efeito devolutivo, que

corre por conta e risco de quem a promove (arts. 882, 11 e 883, II).° José Olímpio de

Castro Filho entende que, por igual razão, a prática de qualquer ato de força, initio

litis, quer no processo de execução, quer em qualquer dos processos especiais,

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impõe o dever de indenizar, desde que, a final, o direito invocado não seja

reconhecido pela sentença. Assim sucede com o ato de penhora do qual advenha

comprovado prejuízo,31 bem como nas hipóteses de medida liminar, concedida,

inauditur altera pars, em ações possessórias (arts. 371 a 378), cominatórias (arts.

304 a 305) e na ação de nunciação de obra nova (art. 384).32 Em se tratando de

ação cautelar, há responsabilidade objetiva, por expressa disposição legal, nos

casos em que a parte deixa de propor a ação principal no prazo de trinta dias, com o

que se opera a perda da eficácia da medida liminar (art. 677). Fora daí, não se pode

cogitar de responsabilidade senão a título de dolo ou culpa (art. 688, parágrafo

único).33 O arrematante, ou o fiador, que não pagar o preço da

Início de nota de rodapé

(30) Os irmãos Mazeaud, reconhecendo a responsabilidade daquele que promove a

execução provisória, entendem que estaria ela fundada na imprudência de executar-

se uma sentença ainda não definitiva (Traité de la responsabilité Civile, Delictuelle et

Contractuelle, Paris, 1 93 1, vol. 1, p. 294-297, apud Pedro Baptista Martins, O

abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., 1997, p. 79, e Comentários ao Código de

Processo Civil, vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1940, p.44 e 45). Todavia, na

doutrina, é pacífico o entendimento de que não se trata de ilícito, porquanto o próprio

ordenamento jurídico confere ao titular da ação o direito de fazer valer a sentença

ainda não transitada em julgado, ainda que com algumas Iimitações.

(31) Idem, op. cit., p. 172-176; nesse particular, José Olímpio de Castro Filho afasta-

se dos autores que fundam a responsabilidade por excesso de penhora no erro

grosseiro, equivalente ao dolo, ou na culpa (idem, p. 171), como é o caso de Jorge

Americano (op. cit., p. 24).

(32) Idem, p. 172-177.

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(33) Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII, Rio de

Janeiro, Revista Forense, 1959, p.439 a 443), tanto quanto José Olímpio de Castro

Filho (op. cit., p. 176-182), consigna que, nesta

Fim da nota de rodapé

Página 101

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

arrematação em três dias, independentemente de culpa ou dolo, está obrigado ao

pagamento de multa (art. 978).

Importante dizer que, qualquer que seja o fundamento da responsabilidade pelo

dano causado à parte, e independentemente da previsão de multa, custas

agravadas etc., haverá sempre o dever de indenizar, quando for reconhecido o

abuso do direito de demanda.34 E, nisto, o Código de 39 representa um verdadeiro

marco, no qual avultam, a um só tempo, a concepção publicista do processo e um

sentido finalístico, 110 dizer de MoacyrAmaral Santos.35 Essa orientação teleológica

inspirou, recentemente, uma terceira fase metodológica da teoria do processo, que

segue na senda aberta por Liebman, enfatizando a instrumentalidade do processo,

que não pode mais ser visto como resultado de um direito de ação puramente

abstrato. Sobreleva uma análise mais pontual da pertinência subjetiva do processo

(legitimaçäo para agir). A máquina judiciária, cujo custo social tem de ser

considerado, não pode, ademais, ser movi- mentada sem que haja um resultado

socialmente útil (interesse de agir). Assim, não se cogita mais de uma absoluta

independência do processo em relação ao direito material, que se realiza através da

prestação da tutela do Estado.36

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Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

questão, viu-se afastada a tese de Calamandrei, que propugnava pela

responsabilidade objetiva daquele que, provocando danos à parte adversa, ficasse

vencido em ação cautelar. Para o processualista italiano, essa responsabilidade

buscava fundamento no fato de que a medida preventiva tem a mesma natureza

jurídica da execução provisória.

(34) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 200.

(35) MoacyrAmaral Santos, op. cit, p. 215 e 216.

(36) A respeito da terceira fase metodológica do processo, ver, no Brasil, Cândido

Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, 2. ed., São Paulo, RT, 1 990;

José Roberto dos Santos Bedaque, Pressupostos processuais e condições da ação,

in Justitia, São Paulo, Ano 53, out./ dez. 1 99 i, vol. 1 56, p. 48-66. Essa visão é

caudatária de um movimento pela universalização da justiça, iniciado com

Cappelletti, a partir do qual se passou a fazer uma releitura do caráter publicístico da

ação, para nele reconhecer também um instrumento eficaz de acesso à ordem

jurídica Justa, fruto das necessidades do Estado democrático de direito (Mauro

Fim de nota de rodapé

Página 102

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A dogmática processual penal também não ficou indiferente à discussão travada

entre concretistas e abstracionistas, que surge, dentre outras, na referência feita por

Giovanni Leone. Depois de traçar um breve panorama de cada uma destas

correntes, o processualista italiano invoca a solução intermediária de Giuseppe

Sabatini, para quem titular da ação não é quem tenha razão, nem quem não a tenha,

senão somente aquele que tem interesse na eficiência do mandato jurídico.37 Esta

posição é muito próxima daquela sustentada por Liebman, que também se encontra

a meio caminho, entre concretistas e abstracionistas. Para Enrico Tullio Liebman, o

interesse de agir, uma das condições da ação, diz com a idéia de necessidade do

recurso às vias judiciais e adequação do meio utilizado.38 Para Tullio Delogu, por

sua vez, o interesse de agir é a causa do pedido, pelo que — conclui José Frederico

Marques — ausente o interesse de agir, falta justa causa para a propositura da ação

penal.39 Assim, tal como ocorre no processo civil, a ação penal, conquanto seja um

direito abstrato, está relacionada à pretensão de direito material (causa petendi),

que, neste caso, é o fato criminoso contido na imputação. Quando a acusação é

manifestamente infundada, falta justa causa para o processo penal.40

Coube a Ada Pellegrini Grinover, no Brasil, o mérito de rever essa perspectiva

teórica. A processualista de São Paulo sustenta que

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Cappelietti e Bryant Garth, Acesso à justiça, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris

Editor, 1 .988.

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(37) Giuseppe Sabatini, Il publico ministero nel diritto processuale penale, vol. 11,

Torino, 1 948, p. 1 1 0, apud Giovanni Leone, Tratado de derecho procesal penal,

vol. 1, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa America, 1961,p. 116-118.

(38) Enrico TulIio Liebman, L’azione nella teoria del processo civile in Problemi del

Processo Civile, Napole, 1 962, p. 22 e ss.

(39) Tullio Delogu, Contributo alla Teoria della lnammissibilità nel Diritto Processuale

Penale, 1 938, p. 82, apud José Frederico Marques, Elementos de Direito

Processual Penal, vol. l, Campinas, Bookseller Editora e Distribuidora, 1997, p. 294.

(40) José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, vol. 11,

Campinas, Bookseller, Editora e Distribuidora, 1997, p. 155, 156, 360e361.

Fim da nota de rodapé

Página 103

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

o interesse de agir não tem nenhuma relação com a pretensão de direito material,

pois é condição de admissibilidade da ação e não de procedência do pedido,

conceitos que, sob a ótica abstracionalista, não podem ser confundidos. Ajusta

causa, de outra forma, assim como a fumaça do bom direito no processo cautelar, é

conceito que implica uma cognição provisória sobre o mérito, o que se explica pela

própria natureza do processo penal, que interfere com direitos da personalidade,

espoliando o indivíduo da intimidade e, frequentemente, da dignidade mesma. Daí

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porque, para evitar a lide temerária, necessária a demonstração da plausibilidade do

direito invocado.41

De qualquer forma, quer se identifique justa causa e interesse de agir quer se

sustente que o conceito implica antecipação do juízo de mérito, certo é que o

processo penal se apresenta como campo fértil para o desenvolvimento da teoria do

abuso do direito de demanda, quanto mais quando se considera que aqui vige o

princípio inquisitivo, orientando-se a cognição na busca da chamada verdade real.

No entanto, por paradoxal que possa parecer, são poucas as contribuições da

doutrina e da jurisprudência nessa área dogmática.

Início da nota de rodapé

(41) Ada Pellegrini Grinover, As condições da ação penal— uma tentativa de

revisão, São Paulo, José Bushatsky, Editor, 1977, p. 103-129. Piero Calamandrei

entende que a questão do fumus boni iuris está relacionada com a verossimilhança

do direito e dos fatos alegados. O exame cumpre, assim, urna função eliminatória e

seletiva, permitindo ao juiz, já no nascedouro, prima facie, afastar as demandas

infundadas, as lides temerárias, que representam pesada carga para os tribunais.

Diz que, para a moderna teoria processual, na qual a ação aparece como direito

cívico Constitucionalmente garantido, este exame não pode ser admitido como regra

geral. Todavia, em certos casos, considerado o caráter escandaloso da questão

discutida, o legislador italiano previu um juízo sumário acerca da pretensão

deduzida, a exemplo do que ocorre nas ações de investigação de paternidade ou de

maternidade e nos processos de interdição, pelo qual a demanda pode ser desde

logo rechaçada (Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol. 111, Buenos Aires,

Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 326, 327 e 340-345). Estas idéias,

segundo o processualista italiano, estão fundadas em Wilhelm Sauer, cuja obra,

Allgemeine Prozessrechtslehre (Heymanns, V. 1 95 1), eleva o princípio da

verossimilhança (Wahrscheinlichkeitsprinzip) à condição de uma das categorias

básicas da teoria geral do processo (op. cit., 350).

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Fim da nota de rodapé

Página 104

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Isto se explica por duas razões. Em primeiro lugar, o abuso do direito de demanda é

quase sempre confundido com a denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal

brasileiro). Trata-se de conceitos diversos, porquanto, como foi visto no primeiro

capítulo, há de distinguir-se entre licitude e liceidade. No abuso do direito de

demanda está configurado uso anormal de uma faculdade prevista em lei, o que não

se confunde com prática criminosa. Em segundo lugar, é forçoso reconhecer que,

desde o chamado Período Humanitário do Direito Penal, fruto do jusnaturalismo

moderno, o homem tornou-se muito cioso das garantias fundamentais do processo.

Mas há de se convir em que o processo penal pode servir a práticas abusivas, tanto

por parte do autor como do réu. Doutrina e jurisprudência têm exigido, para a

configuração do abuso do direito de ação, a prova do dolo ou, quando menos, da

culpa.42 Se alguém

Início da nota de rodapé

(42) A propósito, no caso em que companhia de seguro, fiando-se na palavra da ex-

mulher do segurado, requereu instauração de inquérito policial, para apurar incêndio

criminoso no estabelecimento comercial objeto da apólice de seguro, e mais que

isto, ingressou em juízo contra o suposto criminoso, provocando sua derrocada

moral e econômica, decidiu-se que somente intuitos inconfessáveis ou, quando

menos, culpa, poderiam justificar a reparação do dano. O fato de o inquérito ter sido

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arquivado, de a seguradora ter decaído da ação criminal e de ter desisti- do da ação

para reaver o valor da indenização, não implica que se reconheça a existência de

abuso no direito de demanda. De outra forma — no dizer do acórdão — melhor seria

que se fechassem os pretórios (Corte de Apelação do Rio de Janeiro, Terceira

Câmara, acórdão de 21/1 1/1930, proferido nos autos da Apelação Civel 790, e

publicado no Archivo Judiciário, vol. XVII, jan./fev./mar de 1931, Rio de Janeiro,

1931, p. 28- 33). Em outro repositório de jurisprudência, encontra-se comentário de

Estevam Pinto, em que o autor critica a solução dada pelo tribunal. Ainda aqui, o

reparo tem matiz nitidamente subjetivista (Revista Forense, vol. LVI, fasc. 327, BeIo

Horizonte, janeiro de 1931, p. 275-278. Também de orientação subjetivista, exigindo

prova de má-fé ou malícia daquele que dá Iugar à instauração de inquérito policial, é

a jurisprudência mais recente, conforme registra Yussef Said Cahali (Dano e

indenização, São Paulo, RT, 1 980, p. 1 26 e 1 27). A propósito dessa orientação

mais recente ver também Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, São

Paulo, Lex, Ano 27, setembro de 1993, vol. 148, São Paulo, p. 85-89.

Fim da nota de rodapé

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

notícia à polícia a prática de um crime, agindo com leviandade e induzindo a

autoridade em erro, ainda que falte algum requisito para a configuração do crime de

denunciação caluniosa, responderá pelos danos causados.43 Mas na hipótese de

notitia criminis que venha a se mostrar depois, no momento da sentença, infundada,

dando lugar à absolvição por insuficiência de provas, desde há muito se entende

que não cabe cogitar de abuso, a menos que induzido em erro o Ministério Público,

porque é ele o titular da ação penal pública.44

Não se afasta também a hipótese de uso abusivo do poder de denúncia. O exercício

da ação penal, já se disse, não existe para atormentar as pessoas, criar embaraços

e dificuldades, mas sim para a defesa social. Se o resultado da denúncia é a

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sujeição de inocente à ação penal, em princípio está caracterizado o abuso.45 E

certo que

Início da nota de rodapé

(43) J.M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. l, Rio de

Janeiro, Livraria e Editora Freitas Bastos, 1940, p. 103 e 104. O autor, passando

revista na jurisprudência, diz que os julgados têm-se orientado no sentido de que a

lei concede a qualquer cidadão o direito de denunciar os crimes e, para evitar

abusos, pune a denúncia calumniosa. E o caso daquele que provoca a prisão de

uma pessoa, induzindo em erro o magistrado, para o que lança mão de demarches

temerárias e indicações pérfidas.... O mesmo acontece si o denunciante, embora

sem agir com má-fé, procedeu com imprudência, acusando com Ieviandade. Cita

precedente do Tribunal de Paris, datado de 26 de janeiro de 1 884. Claro está —

acrescenta o autor — que do simples fato de a ação ser julgada improcedente não

advém a responsabilidade do denunciante. De outra forma, se a ação é julgada

procedente, ainda que a denúncia tenha sido feita de má-fé, não haverá lugar para

indenização. Por último, desaparece de todo a possibilidade de se julgar temerária a

lide criminal se na decisão da causa houve votos vencidos, dando razão ao

queixoso, prova de que a iniciativa do denunciante não era desarrazoada.

(44) A respeito, ver parecer da Iavra de Pedro Baptista Martins, datado de 1 936 e

publicado na Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano XXXIII, vol. LXVIII, fasc. 599, p.

744-747.

(45) Voto proferido pelo Ministro Victor Nunes Leal em ação de Habeas Corpus

impetrada pelo advogado Heleno Cláudio Fragoso, transcrito na Revista Trimestral

de Jurisprudência, vol. 35, p. 53 1 apud Raimundo Pascoal Barbosa, Abuso de

poder no oferecimento da denúncia, RT, São Paulo, Ano 58, agosto de 1969, vol.

406, p. 357-360. Veja-

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Fim da nota de rodapé

Página 106

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

não se pode exigir do promotor de justiça prova pré-constituída. A instrução criminal

serve exatamente para que a acusação possa pro- var o fato. Impedir o Ministério

Público de fazê-lo, com rejeição da denúncia que aponta conduta típica e

antijurídica, implica cerceamento do exercício do direito de ação, do qual aquele

órgão é titular. 46 Importante, todavia, a noção de justa causa, há pouco

desenvolvida.47 A questão extrapola os limites da teoria do abuso do direito, em

sentido estrito, para encontrar deslinde, mormente nas hipóteses de recebimento da

denúncia, no abuso de poder, tema que transcende os limites do presente trabalho,

justificando, de per si, monografia específica, tamanhas suas implicações e

desdobramentos, inclusive no que concerne à responsabilidade do Estado e de seus

agentes. Quanto mais não fosse, aquilo que o senso comum reconhece como abuso

do direito não tem necessariamente essa extensão.

No que concerne ao abuso na utilização dos meios de defesa, não há como

imaginar possa o réu responder objetivamente pelos seus excessos, exatamente

porque a defesa, por imperativo constitucional, é ampla. Dentro de um viés

subjetivista, caberia indagar dos limites da versão apresentada pelo réu, em seu

interrogatório, naquilo que possa interferir, de forma leviana, com bens jurídicos de

terceiros. Também exigiria exame a fronteira que divide o ânimo de injuriar e o

exercício do poder de convencimento por parte do advogado. Interessa também o

questionamento acerca da conduta daquele que favorece a ocorrência de nulidades

processuais para não ter de enfrentar o mérito, ou mesmo do advogado que

sustenta, na base do princípio da eventualidade, dezenas de teses a fim de colher

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indevido proveito da omissão no exame de uma delas, com a anulação da sentença.

Seria de se indagar, igualmente, da existência

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

se, mais recentemente, Miguel Reale Jr., Denúncia abusiva e crime de calúnia, in

RT, Ano 87, abril de 1998, vol. 750, p. 467-473.

(46) Neste sentido é farta a jurisprudência (RT 237/120; 277/182; 297/166;

Jurisprudência Mineira, 2/355, apud Raimundo Pascoal Barbosa, op. cit. p. 357).

(47) A respeito do trancamento da ação penal por falta de justa causa, ver

jurisprudência citada por Raimundo Pascoal Barbosa (op. cit., p. 358-360).

Fim da nota de rodapé

Página 107

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

de prática abusiva na argumentação capciosa, dirigida ao tribunal do júri, em nome

da amplitude da defesa do réu. O mau vezo de instruir as testemunhas antes do

depoimento é questão que também desafia exame. Sem dúvida, age de maneira

abusiva aquele que pra- tica atos protelatórios visando, exclusivamente, à

prescrição, com o que o processo se desvia de sua finalidade.

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O abuso do direito de defesa também guarda estreita relação com as questões da

dogmática penal. O princípio da ultra-atividade da lei temporária ou excepcional

permite que, mesmo cessada a vigência da norma, sejam os fatos praticados ao

tempo de sua incidência julgados de acordo com a norma temporária ou excepcional

que, assim, continua a regê-los, mesmo quando revogada. Isto impede que a lei

mais benéfica (em tese, retroativa) venha a ser aplicada na fase de julgamento, pois,

de outra forma, ver-se-ia comprometida a finalidade repressiva e preventiva do

Direito Penal. Bastaria que a defesa, através de expedientes astuciosos,

conseguisse procrastinar o feito. 48

Na jurisprudência, há julgados que reconhecem como abusiva a indicação de

testemunhas fictícias ou a substituição do rol com o intuito de procrastinar o

desfecho do processo. A faculdade de produzir a prova é, a princípio, garantida pela

norma (arts. 397 e 405 do CPP), desde que não configure deslealdade processual

(TRF — 4.a Região, 1.a Turma, Autos n. 1998.04.01.031223-0-PR, rel.juiz Vladimjr

passos de Freitas,j. 27. 10.98, v.u., DJU de 25. 1 1 .98, p. 349), pois a defesa não se

confunde com o abuso do direito (STJ, 6a Turma, RHC 94.0004187-8-BA, rel. Min.

Luiz Vicente Cernicchiario, v.u., DJU de 6. l 1 .95, p. 37.594). Atos ou omissões que

buscam dificultar a administração da justiça, interferindo na sua autoridade e

dignidade, são conhecidos pela justiça norte-americana como contempt

Início da nota de rodapé

(48) Cfr. Exposição de Motivos do Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 07/12/40),

item 8. A propósito, v. AníbaI Bruno, Direito Penal, 1, Parte Geral, tomo 1 .°,

Introdução — Norma penal. Fato punível, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 959, p.

257 e 258. Tercio Sampaio Ferraz Jr. entende que se está tratando de norma cujos

efeitos (eficácia) se projetam para além do período de vigência (Introdução ao

Estudo do Direito — Técnica Decisão, Dominação, São Paulo, Atlas, 1 988, p. 1 79-

1 8 1 e 225-228).

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Fim da nota de rodapé

Página 108

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

ofcourt.49 Embora a prática processual, nos sistemas de origem romano-germano-

canônica, seja pródiga em exemplos, falta ainda uma elaboração teórica, em matéria

de abuso do direito de demanda no processo penal.

2.2 As dificuldades do subjetivismo de base psicológica

A capacidade de desvelar a face obscura da natureza humana não é tarefa que se

possa exigir do comum dos homens. Penetrar o recôndito do espírito e da mente,

vasculhando escondedouros e desvãos, é trabalho que se pode esperar do cientista,

mas não do juiz. E certo, como bem o disse Ripert, que o jurista desde há muito

opera com a noção de dolo, componente do ilícito e pressuposto da

responsabilidade, pelo que o juiz não teria maiores dificuldades em identificar a

malícia da parte. Ilusória se mostra — nas palavras do civilista francês — a tentativa

de criar um direito puramente objetivo, que pudesse prescindir do exame das

intenções na análise dos fatos.5° A noção de culpa, em sentido estrito, também é

velha conhecida dos juristas. Ocorre que o conceito de abuso do direito pressupõe,

diferentemente, a prática de ato lícito, com desvio da finalidade para o qual foi

concebido. Mais que isto, não basta a simples intenção de prejudicar, presente em

muitos campos da atividade humana que envolvem concorrência econômica e

social, como lembra Pianiol.51 Faz-se necessário saber — sob a ótica subjetivista —

da

Início da nota de rodapé

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(49) Douglas Fischer, O princípio da ampla defesa e as condutas com intuito

meramente protelatório no procedimento processual penal, in RT, São Paulo, Ano

88, vol. 761, março de 1999, p. 509-512. Como anota Kaethe Grossmann (op. cit., p.

283), o contempt of court (falta de res- peito aos tribunais), na base do dever de

dizer a verdade, foi sempre uma característica do processo inglês, pautado na

sinceridade e Iealdade processual, sem que houvesse necessidade de um preceito

categórico. O direito americano, nas unidades da Federação que adotaram o

contempt of court, a exemplo do Estado de NovaYork, reconhece, sob o mesmo

aspecto, um dever de veracidade.

(50) Ripert, op. cit., p. 167.

(51) Planiol, op. cit., tomo II, p. 337. Assim, segundo a jurisprudência do Tribunal do

Reich, fartamente citada por Ennecerus, a greve, o lock-out

Fim da nota de rodapé

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

intenção única e exclusiva de prejudicar, sem nenhum proveito pró- prio.52 Haveria

aqui um misto de investigação e prudência.

Ulderico Pires dos Santos, escrevendo no ano em que o Código de Processo Civil

de 1973 entrou em vigor, assume posição nitidamente objetivista. Para ele, o novo

Código proscreveu a prática da ação antijurídica no exercício do direito subjetivo,

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contrária às normas do convívio social. Diz que a questão do abuso do direito na

demanda deve ser resolvida na esfera dos princípios gerais do direito e não no

campo da responsabilidade civil. Perfilhando-se à tese sustentada por Roberto

Goldschmidt (vista no capítulo anterior), Ulderico Pires entende que o ponto central

de uma teoria do abuso do direito reside no conceito de antijuridicidade e não de

culpabilidade. Reconhece, entretanto, que à falta de uma orientação unívoca, viriam

à baila novamente discussões acerca da teoria a ser aplicada no caso de

infringência da regra dos arts. 14,16,17 e E a doutrina, a propósito, tomou orientação

subjetivista.54

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

e o boycott, principais armas na luta de classes e salários, não são imorais pelo

simples fato de exercer pressão econômica e provocar danos para o empregador,

pois, se assim fosse, ter-se-ia de proscrever toda luta dos trabalhadores. Somente o

emprego de meios imorais, com a divulgação de informações falsas e provocativas,

ou mesmo a persecução de finalidades reprováveis, tais como a vingança e a

aniquilação econômica do empregador, configurariam o abuso do direito (Tratado de

Derecho Civil, vol. 2, 2a Parte, 3. ed., Barcelona, Bosch, Casa Editorial, 1970, p.

1.085).

(52) Nesse sentido, ver Ripert (op. cit., p. 178) e Planiol (op. cit., p. 337).

(53) Ulderico Pires dos Santos, Ligeiros traços sobre o dano processual no novo

Código de Processo Civil, in Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano 70, abril, maio e

junho de 1974, vol. 246, fascs. 850-852, p. 316-319.

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(54) Moacyr Amaral Santos, Primeiras Linhas de Direito Processual Civil (adaptadas

ao novo Código de Processo Civil), 3. ed., vol. 2, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 277-

281; Hélio Tornaghi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, São Paulo,

RT, 1974, p. 150-155; Caio Mario da Silva Pereira, instituições de Direito Civil, vol. 1,

1 9. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 998, p. 429-43 1; Arruda Alvim, Resistência

injustificada ao andamento do processo, in Julgados dos Tribunais de Alçada Civil

de São Paulo, São Paulo, Ano 1 5, vol. 66, Lex, 2.° bimestre, março

Fim da nota de rodapé

Página 110

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A exposição de motivos do Projeto de Lei que se transformou no Código de 73, ao

tratar das inovações relativas ao deveres e responsabilidades das partes e de seus

procuradores, deixou de tomar posição a respeito da polêmica entre subjetivistas e

objetivistas.55 De qualquer forma, a intenção, como elemento conotativo e

denotativo da má-fé processual, aparece, textualmente, nos incisos 11, 111 e IV do

artigo 17 do Código de 73. Nos incisos I, V, VI e VII, vislumbra-se alusão genérica à

culpa grave ou ao erro grosseiro, equiparado ao dolo, que surge, respectivamente,

nas expressões cuja falta de fundamento não possa razoavelmente desconhecer; 56

resistência injustificada; proceder de modo temerário e provocar incidentes

manifestamente infundados.57

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

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e abril, 1981, p. 13-22. Para Celso Agrícola Barbi, mesmo nas hipóteses em que a

lei deixa de fazer referência à intencionalidade, está implícita a noção de culpa grave

(Comentários ao Código de Processo Civil, 6. ed., vol. I, Rio de Janeiro, Forense,

1991, p. 102). No mesmo sentido alinha-se Yussef Said Cahali (Honorários

Advocatícios, São Paulo, RT, 1978, p. 43). Em verdade, os processualistas, tanto

quanto os civilistas, inspiraram-se na tradição do direito francês (a propósito, vide

nota 15 da seção anterior).

(55) A respeito, v. o Capítulo IV, item 111, alínea a, 1 7, da Mensagem 2 1 0, de 02

de agosto de 1972, encaminhada ao Congresso Nacional.

(56) Entende-se que a expressão fundamento, utilizada pelo Iegislador, faz

referência às questões de fato e também às questões de direito, de onde se conclui

que o erro de direito, se inescusável, é incompatível com a boa-fé.

(57) Hélio Tornaghi (op. cit., p. 152) diz que o Iegislador de 1973 evitou a expressão

lide temerária, porquanto esta não é compreensiva do dolo, preferindo, em seu

lugar, o termo litigância de má-fé. O texto original do Código de 73 (Lei Federal

5.869, de 1 1 de janeiro de 1973), é o seguinte: Art. 16. Responde por perdas e

danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente. Art. ¡ 7.

Reputa-se Iitigante de má-fé aquele que: T — deduzir pretensão ou defesa, cuja

falta de funda- mento não possa razoavelmente desconhecer; 11 — alterar

intencional- mente a verdade dos fatos; 111 — omitir intencionalmente fatos

essenciais ao julgamento da causa; IV — usar do processo com o intuito de

conseguir objetivo ilegal; V — opuser resistência injustificada ao anda- mento do

processo; V1 — proceder de modo temerário em qualquer inci-

Fim da nota de rodapé

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Página 111

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Aliás, como observa Alexandre de Paula, as disposições dos artigos 16 e 17 do

Código de 73, somadas àquela do artigo 18 (que prevê o dever de pagar honorários

advocatícios, além de custas e despesas processuais à parte lesada pela litigância

de má-fé), nada mais fazem do que repetir os preceitos do art. 3.° e parágrafo único,

bem como do artigo 63, § 1 .°, ambos do Código de 3958 Na orientação do

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

dente ou ato do processo; VII — provocar incidentes manifestamente infundados.

Como registra Alcides de Mendonça Lima (op. cit., p. 60 e 6 1), estes artigos não

podem ser dissociados dos preceitos dos arts. 14 e 15. Diz o art. ]4 que Compete às

partes e aos seus procuradores: I— expor os fatos em juízo conforme a verdade; 11-

proceder com lealdade e boa-fé; 111- não formular pretensões, nem alegar defesa,

cientes de que são destituídas de fundamento; IV- não produzir provas, nem praticar

atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito. O artigo 15, por

sua vez, dispõe: E defeso às partes e a seus advogados empregar expressões

injuriosas nos escritos apresentados no processo, cabendo ao iuiz, de oficio ou a

requerimento do ofendido, mandar riscá-las. Segue o parágrafo único: Quando as

expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado

que não as use, sob pena de lhe ser cassada a palavra. Como será possível ver

mais adiante, o texto dos artigos 17 e 18 sofreu algumas modificações,

respectivamente, com o advento da Lei Federal 6.771, de 27 de março de 1980, e

da Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994. Diga-se ainda que a lei Federal 10.358,

de 27/12/01, inseriu mais um inciso, além de um parágrafo único no artigo 14, no

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qual o legislador dispôs sobre a aplicação da multa dc 20% à parte que deixar de

cumprir com exatidão os provimentos mandamentais, criando obstáculo à

antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional. Na época da tramitação do

Anteprojeto, a doutrina já assinalava uma tendência de recrudescimento da

repressão ao abuso do processo (Sidnei Agostinho Beneti, A segunda fase da

reforma processual civil, in Caderno de Doutrina, julho-agosto de 1999 — encarte da

Tribuna da Magistratura, órgão de imprensa da Associação Paulista dos

Magistrados, São Paulo, p. 139-143).

(58) Alexandre de Paula, Código de Processo Civil Anotado, 4. ed., São Paulo, RT,

vol. 1,1988, p. 96-99. No mesmo sentido, v. Alcides de Mendonça Lima, (op. cit., p.

60 e 61 ), Yussef Said Cahali (op. cit., 37) e José Carlos Barbosa Moreira

(Responsabilidade das partes por dano processual, in Revista de Processo, São

Paulo, Ano 111, abril-junho de 1978, ed. 10, p. 21 e 22). Os autores citados

registram que o legislador brasileiro se inspirou no art. 456 do Código de Processo

Civil português. Assinala

Fim da nota de rodapé

Página 112

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Código atual59 também prevalece a diversidade de fundamento, quanto à

condenação ao pagamento das despesas e dos honorários advocatícios, no caso de

sucumbência e litigância de má-fé. Como diz a Exposição de Motivo, lembrando

Chiovenda, o princípio do sucumbimento é o fato objetivo da derrota,6° ao passo

que a litigância de má-fé implica a imposição de sanções processuais.

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Subsiste, portanto, a orientação da doutrina ao tempo do Código de 39,61 mormente

à vista do disposto no artigo 14, 11, do Código

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Alexandre de Paula que o Código de 73 não reproduziu a sanção prevista no artigo

63, § 2.° (condenação no décuplo das custas), e nem a previsão contida no § 3.°

(comunicação à autarquia corporativa), muito embora, quanto a esta última,

houvesse previsão no art. 24 do Projeto enviado ao Congresso Nacional. Arruda

Alvim, bem por isso, sustenta que o artigo 1 6 não se aplica ao procurador das

partes, mas somente aos sujeitos do processo. Se a parte tiver sido lesada pelo

advogado, haverá de voltar-se contra ele em ação própria (Código de Processo Civil

Comentado, São Paulo, RT, vol. 11, p. 147, e Resistência injustificada ao

andamento do processo, in Julgados dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo,

São Paulo, Ano 15, vol. 66, 2.° bimestre, março e abril de 1981, São Paulo, Lex, p.

18 e 19). A atuação abusiva do advogado está disciplinada no Estatuto da

Advocacia (art. 34, incisos VI, IX, X e XIV). Em alguns casos, a conduta abusiva do

advogado dá lugar à responsabilidade civil (art. 32, parágrafo único, da Lei

8.906/94). Por isso, o Código de Ética dispõe que o advogado não deve fazer

alegação grave, quer implique juízo de fato ou juízo de valor, sem autorização, por

escrito, do cliente, sob pena de responsabilidade solidária (Código de Etica

Profissional, Seção IV, inciso 11, alínea c). A propósito destas questões, colhe a

atual redação do art. 14, parágrafo único, do CPC.

(59) O atual art. 1 8 prevê o pagamento de multa e indenização, além do valor dos

honorários e das despesas processuais, no caso de Iitigância de má-fé.

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(60) Capitulo IV, item 111, alínea a, 17, da Mensagem 210, de 02 de agosto de

1972, encaminhada ao Congresso Nacional. O registro quanto à unidade da

orientação, entre os Códigos de 39 e 73, naquilo que diz respeito à diversidade de

fundamentos da condenação com base na sucumbência e na Iitigância de má-fé,

também é feito por Helio Tornaghi (op. cit. p. 1 52) e por Alcides de Mendonça Lima

(op. cit., p. 59).

(61) J. M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1, Rio de

Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 85-1 13

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

de 73. Sucede apenas que este Código foi mais explícito quanto às condutas

abusivas do réu ou interveniente. Tanto quanto o autor, responderão por perdas e

danos nas hipóteses de emulação, mero capricho ou erro grosseiro. Age por espírito

de emulação aquele que, malgrado a convicção do próprio direito, conduz-se no

processo apenas com o objetivo de prejudicar o outro, sem nenhum proveito próprio.

Limítrofe é a noção de mero capricho. Aqui, a caracterização do uso anormal do

processo independe da existência do real proveito que a parte possa retirar de sua

conduta processual. A par- te que desenvolve estratégias de coação, infundindo

temor no espírito do adversário, tanto poderá estar agindo por emulação como por

simples capricho. Pontes de Miranda admite que a noção de mero capricho alude a

estado psíquico que a própria psicologia dificilmente fixaria. Vai da puerilidade à

teimosia, da teimosia à maldade insistente, à crueldade.62 Por último, o erro é ato

involuntário. Quando grosseiro, a doutrina costuma equipará-lo ao dolo. A Iitigância

de má-fé compreenderia, então, as condutas dolosas, acima descritas, e também a

lide temerária, que diz com a conduta culposa.

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Assim, a despeito das dificuldades em estabelecer a intenção abusiva e conquanto o

Código de 73 houvesse sublinhado o caráter publicístico do processo, 63 certo é que

o exame do exercício anormal

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e 268-27 1; Pontes de Miranda, Comentárjos ao Código de Processo Civil, tomo I, 2.

ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1 958, p. 145- 154; Pedro Baptista Martins,

Comentárjos ao Código de Processo Civil — Decreto-Lej 1.608, de 18 de Setembro

de 1939, vol. 1, Rio de Janeiro, Revista Forense, p. 34-49 e I 94-2 1 1.

(62) Pontes de Miranda, Comentárjos ao Código de Processo Civil, tomo I, 2. ed.,

Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 146.

(63) Como diz a exposição de motivos do Projeto, O processo civil é um instrumento

que o Estado põe à disposição dos litigantes, a fim de ad- ministrar ajustiça. Não se

destina a simples definição de direitos na luta privada entre os contendores. Atua,

como já observava Betti (Diritto Processuale Civile, pág. 5), não no interesse de uma

ou de outra parte, mas por meio do interesse de ambos. O interesse das partes não

é senão um meio, que serve para conseguir a finalidade do processo na medida em

que dá lugar àquele impulso destinado a satisfazer o interesse pú- blico da atuação

da Iei na composição dos conflitos. A aspiração de cada

Fim de nota de rodapé

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Página 114

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

do direito de demanda, no sentido lato, pressupõe, no mais das vezes, a

investigação do dolo ou da culpa. O legislador, quiçá impressionado com a acirrada

controvérsia em torno do conceito de boa- fé e de bons costumes, preferiu

estabelecer limites ao poder do órgão jurisdicional que, em tese, somente está

autorizado a ultrapassá-los nas hipóteses expressamente previstas em lei. 64 A

propósito da conduta das partes, é possível falar em abuso processual tanto no que

concerne ao conteúdo das alegações, quanto naquilo que diz respeito à forma por

que as partes atuam no processo.65 Trata-se, respectivamente, do dever de

veracidade e da obediência às chama- das regras do jogo.

A distinção proposta cumpre apenas função metodológica, por- quanto há de se

reconhecer pontos de interseção entre o dever de dizer a verdade e o dever de

respeitar as regras do processo. E certo

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uma das partes é a de ter razão; a finalidade do processo é a de dar razão a quem

efetivamente a tem. Ora, dar razão a quem a tem é, na realidade, não um interesse

privado das partes, mas um interesse público de toda a sociedade (Cap. 111, item 1,

5, da Mensagem 210, de 02 de agosto de 1972).

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(64) Diz-se em tese porque à questão do abuso processual interessa muito mais o

aspecto valorativo do que o psicológico. Esta percepção vê-se confirmada em

alguns trabalhos doutrinários e julgados. José Carlos Pestana de Aguiar Silva, na

base de sua experiência como Titular da 5 a Vara Cível da Comarca do Rio de

Janeiro, diz que age com abuso do direito previsto no art. 3.° do Decreto-Lei 9 1 1/69

o credor fiduciário que apreende o bem extrajudicialmente, cuidando depois para

que o oficial de justiça, através de certidão, em cômoda diligência, ratifique o ato

clandestino. Ainda que não configurado o objetivo ilegal ou a intenção maliciosa, é

certo que esta convalidação, de duvidosa validade, poderá trazer prejuízos ao

fiduciante, no momento da apuração do saldo deve- dor, por exemplo (Do abuso de

direito do credor na alienação fiduciária, Revista Jurídica, Porto Alegre, 92, 1979, p.

89-91).

(65) A tipologia adotada tem como base, com algumas modificações, a classificação

proposta por José Carlos Barbosa Moreira, a quem cabe, na doutrina brasileira, o

mérito de ter desenvolvido um tratamento sistemático da questão relativa ao abuso

do direito no processo civil, como posta pelo Código de 73 (Responsabilidade das

partes por dano processual, in Revista de Processo, São Paulo, Ano 111, abril-junho

de 1 978, ed.l0,p. 15-31).

Página 115

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

que vige, a partir do Código de 73, o princípio dispositivo, reflexo do direito material

das partes, de natureza privada, no andamento do processo. Levado às últimas

consequências, implicaria a impossibilidade de o juiz ocupar-se de fatos que a parte

não quer lhe sub- meter. Todavia, como observa Chiovenda, é impróprio cogitar de

limites estanques entre o princípio dispositivo e o princípio inquisitório, que se

temperam, em proporção diversa, conforme os tempos e os lugares.66

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As regras do processo servem, segundo orientação declarada na Exposição de

Motivos, à atuação da lei na composição dos conflitos. Trata-se de concepção

disposta a conciliar as diversas teorias que buscam explicar a finalidade do

processo. Para alguns, o pro- cesso visa à tutela dos direitos subjetivos ameaçados

ou violados. Outros, sustentam que se destina à atuação do direito subjetivo. O

legislador, de forma eclética, adotou posição segundo a qual o pro- cesso procura a

satisfação do interesse social da paz jurídica, através da aplicação da lei ao caso

concreto; não basta a composição, qualquer que seja, contanto que ponha termo à

lide, como sucedia nos tempos primitivos, na fase embrionária do processo; não se

quer a paz a qualquer custo, mas sim dar razão a quem efetivamente a tem,

segundo os ideais de justiça reconhecidos pela norma.67 As regras processuais,

orientadas à consecução destes objetivos, têm de se guiar pelo dever da verdade.

Os princípios éticos inscritos na norma do artigo 14 e incisos do CPC de 73 são

regras orientadas, precisamente, pelo dever da

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(66) Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 11, São Paulo, Saraiva,

1965, p. 345. Como registra AIcaIá-Zamora y Castilho, será muito difícil, senão

impossível, encontrar códigos que correspondam única e exclusivamente a um

destes rótulos (Estudios de Teoria General e Historia del Proceso, tomo 11, números

1 2-30, México, Universidad Nacional Autónoma de México, Instituto de

Investigaciones Jurídicas, 1974, p. 261 e 262). No mesmo sentido, v. Eduardo J.

Couture, Estudjos de Derecho Procesal Civil, 2. ed., tomo 111, Buenos Aires,

Ediciones Depalma, 1978, p. 246.

(67) Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, vol. 1, São Paulo, Saraiva,

1965, p. 37-46.

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Página 116

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

verdade. Falta com este dever a parte que declara alguma coisa diversa daquilo que

está no seu pensamento, consciente de que assim o faz. Na tradição dos latinos,

importa considerar não só a conformidade de um relato com os fatos, mas a

vontade, o querer. O mentiroso é aquele que burla o intelecto, comunicando algo

diferente daquilo que está em sua mente. Daí o substrato ético das disposições

contidas no art. 17, incisos I, 11, 111, IV, V e VII, do Código de 73, que se orientam

pela veritas dos latinos.68 Neste termos, o que se tem aqui não é propriamente uma

disputa entre realismo (uma coisa é verdadeira porque corresponde à realidade

extema) e idealismo (uma coisa corresponde à realidade externa porque é

verdadeira), mas sim a dimensão da vontade que deseja a verdade ou a mentira, o

que coloca o direito no campo de uma razão prática. Essa orientação viu-se um

tanto alterada pelas modificações que a Lei 6.771, de 27 de março de 1980, operou

em algumas regras contidas naquele artigo.

Assim é que o atual inciso I do artigo 17, no Iugar de fixar-se em um aspecto

subjetivo de difícil apreensão (deduzir pretensão ou defesa, cuja falta de fundamento

não possa razoavelmente desconhecer) coloca a questão da verdade em bases

mais objetivas (deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato

incontroverso). Suprimiu-se o advérbio intencionalmente do texto do inciso 11, com o

que o legislador abandonou o psicologismo contido na fórmula anterior. A regra do

inciso 111 desapareceu, o que implicou a reordenação dos subsequentes. Esta

supressão tem importantes desdobramentos, que serão analisados na última seção

do

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Início da nota de rodapé

(68) Registre-se que o autor do Anteprojeto do Código de 73, citando, en ¡)assant, a

concepção dos gregos (a verdade é a relação entre aquilo que se afirma e o que

está na própria coisa e que assim se apresenta à razão — aletheia) bem como a

concepção dos Iatinos (a verdade não se refere às coisas, mas à conformidade do

relato com os fatos acontecidos, o que também se insere no campo da vontade, do

querer — veritas), consigna que a alteração da verdade, segundo o Iegislador

brasileiro, consiste na inadequação entre a afirmação e a realidade. Sustenta,

entretanto, em diversas passagens, uma concepção subjetivista de verdade (Alfredo

Buzaid, Processo e verdade no direito brasileiro, in Revista de Processo, Ano XII,

47,julho a setembro de 1987, p. 92-99).

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Página 117

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

presente capítulo. Por ora, importante é o registro de que a lei processual, pouco a

pouco, foi-se afastando da prova subjetiva referente ao ânimo emulativo do litigante

(muito embora se tenha de reconhecer que essa orientação ainda subsiste em

alguns dispositivos, do que é exemplo a regra do art. 17, inciso VII, do CPC).

Mas a apreciação da forma pela qual as partes atuam no processo nem sempre está

relacionada ao conteúdo das alegações. Muitas vezes o legislador mostra-se mais

preocupado com a correção for- mal, com a obediência a regras ad hoc — que têm

por escopo a garantia da decisão — do que propriamente com a realidade objetiva.

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Trata-se de normas de correção interna do sistema processual, que desenvolve uma

lógica particular, como acontece nos jogos, que necessariamente têm de ter um

desfecho, por maior que seja o número de Iances ou partidas. Assim sucede nos

casos em que a lei, no lugar de aplicar uma sanção processual, elimina ou

simplesmente desconsidera os efeitos produzidos pela conduta processual incorreta

(arts. 181, 243, 245 e 808, 11, todos do CPC de 73).69 Aqui, não tem sentido cogitar

de responsabilidade. Trata-se de simples ônus processual.70

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(69) Não se há de perder de vista, entretanto, que, se em qualquer dos casos

enumerados, ficar configurada litigância de má-fé, conforme definida no artigo 17 do

CPC, a parte responderá por perdas e danos (art. 16).

(70) José Olímpio de Castro Filho pensa de forma diversa, classificando a nulidade

como uma das formas de sanção (op. cit., p. 193 e 209). Diz o mesmo, quanto à

inexistência dos efeitos da interrupção da prescrição, nos casos em que a citação

deixa de ser feita a certo prazo. O instituto da preclusão, na ótica do processualista

mineiro, também é pena. Parte o autor do pressuposto (diga-se, nem sempre

verificado) de que a parte teria agido com malícia, obstando à celeridade do

processo, pelo que caberia condenação nas penas de litigância de má-fé (op. cit., p.

154). A posição do processualista mineiro, todavia, não está orientada pela moderna

doutrina, que distingue claramente ônus e dever processual. Assim é que o dever

como obrigação que é, limita o livre-querer da parte. Por contrapor-se à noção de

conduta processual antijurídica, o conceito de dever processual está de certa forma

ligado à idéia de sanção (mas não necessariamente). Neste ponto, aliás, reside a

dificuldade de extremar o campo jurídico e o campo moral). De outra parte, o ônus

processual não implica a idéia de obrigação. Trata-se de um encargo,

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Há outras regras processuais — relativas à conduta das partes e cuja infringência

implica sanções de variada natureza— que não estão necessariamente ligadas ao

conteúdo das alegações (arts. 1 13, § 1.0, 161, 268, parágrafo único, e 695, todos

do CPC de 73). Outras existem cuja transgressão, conquanto interfira com o dever

da verdade, implica apenas a incidência de ônus processual (arts. 129, 340, incisos I

e 11, 343, § 2.°, 359, I e 11, todos do CPC de 73).71 A maioria delas, entretanto, diz

com a litigância de má-fé, conceito que traz ínsita a idéia de logro, trapaça, e implica

sanção processual (arts. 14, parágrafo único, 69, incisos I e 11, 233 e parágrafo

único, 529,72 538,

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

de um gravame, cuja inobservância traz consequências jurídicas prejudiciais, mas

não impõe a reparação do dano. A propósito do tema, sobre o qual controverteram

Wieczorek, Rosemberg e Lent, consultar o ver- bete dever de veracidade (processo

civil), elaborado por Elicio de Cresci Sobrinho (Enciclopédia Saraiva do Direito, São

Paulo, Saraiva, 1979, vol. 24, p. 387-4 12), e Alfredo Buzaid (op. cit., p. 95 e 96).

Sob o ponto de vista da teoria geral do direito, ver Carlos Santiago Nino,

lntroducción al análisis del derecho, 2. ed., Buenos Aires, 1 984, mais

particularmente a página 172. Há quem sustente, modernamente, que bastaria o

sistema de ônus processuais para reprimir a má-fé. Qualquer outra disciplina haveria

de ser muito objetiva (Francisco Ramos Méndez, ¿Abuso del derecho en el

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proceso?, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais,

Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 2, 4 e 6).

(71) A indicar o campo cultural em que se move a definição de verdade, vale, com

relação às presunções legais, nos diversos casos de inércia ou omissão da parte,

previstos no Código de 73, a máxima de Paulo, segundo a qual quem cala não

confessa, apenas não nega (D. reg. iuris, XVII, L. 142, apud Roberto Rosas, op. cit.,

p. 1 26).

(72) A regra, conforme redação que Ihe fora dada pela Lei 5.925, de 1 .° de outubro

de 1 973 (Se o agravo de instrumento não for conhecido, por- que interposto fora de

prazo, o tribunal imporá ao agravante a condenação, em benefício do agravado, do

pagamento do décuplo do valor das custas respectivas), não mais subsiste, em face

das alterações feitas pela Lei 9.139, de 30 de novembro de 1995, que modificou, em

vários pontos, o sistema de recursos, atendendo, assim, a antiga aspiração dos

doutrinadores, juízes e advogados, no sentido de tornar mais ágil a prestação

jurisdicional. Para uma crítica a esta alteração, que implicaria o retardamento do

curso do processo, criando novos embaraços, novas tentações e meios de

procrastiná-lo, ver J.J. Calmon de Passos, Direito,

Fim da nota de rodapé

Página 119

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

parágrafo único, 592, V, 599, 11, 600, I, 111 e 1V, 73 601, caput,74 881, caput, e

parágrafo único,75 todos do CPC de 73). A distinção que aqui se faz é diversa

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daquela fundada na dicotomia responsabilidade subjetiva-responsabilidade objetiva.

Com efeito, quem executa uma sentença pendente de recurso (execução provisória)

age em conformidade com o direito. Todavia, suportará os riscos de eventual

inversão no julgamento da demanda, indenizando a parte vencedora de eventuais

prejuízos. O mesmo se passa com aquele que obtém liminar, ao depois afastada,

em face do insucesso na ação principal (art. 811). Não se está tratando, em

qualquer destes dois casos, de litigância de má-fé.76

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

poder justiça e processo: julgando os que nos julgam, Rio de Janeiro, Forense,

2000, p. l 12).

(73) Entende-se que a fraude à execução, prevista no art. 600, I, do CPC, não

caracteriza propriamente abuso do direito. Configura, sim, um ilícito, previsto como

crime (artigo l 79 do Código Penal), tanto quanto a fraude processual (artigo 347 do

Código Penal). A propósito, vide considerações feitas abaixo, na nota 75. Para Celso

Agrícola Barbi, nos incisos 111 e IV do art. 600 do CPC, o Iegislador não supõe

malícia da parte. O caso de resistência injustificada às ordens judiciais (inciso 111),

é hipótese diversa daquela prevista no art. 17, V do Código (atual inciso IV), na qual

está presente a má-fé (op. cit., p. 316 e 317). Entretanto, para Arruda Alvim, o juiz

haverá de pautar-se por um critério objetivo, consistente este em que, diante de

certa conduta, deva ela, objetivamente, ser tida corno caracterizadora de má-fé, por

infração ao artigo 17, 1V,, (Resistência injustificada ao andamento do processo, in

Julgados dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo, São Paulo, Ano 1 5, vol. 66,

2.° bimestre, março e abril de 1981, p. 17). Esta interpretação, como já foi visto,

rompe com a tradição medieval da aemulatio.

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(74) Com a redação que lhe foi dada pela Lei 8.953, de 1 3 de dezembro de 1994.

(75) O atentado (ilícito civjl) e a fraude processual (ilícito penal) não são figuras

necessariamente coincidentes. Basta ver que o delito somente se configura na

dependência da idoneidade da inovação e do emprego de astúcia, capaz de influir

no espírito do julgador. E o que resulta do em- prego da expressão artificiosamente

(art. 347 do Código Penal), que não se encontra na norma processual civil.

(76) A propósito da responsabilidade objetiva, dizia-se que ela somente pode ser

aplicada pelo juiz quando houver expressa previsão legal, a exemplo

Fim da nota de rodapé

Página 120

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

O excesso de penhora ou arresto, por si só, não implica reconhecimento de abuso

do direito, a menos que comprovados a intenção de prejudicar e o efetivo prejuízo,

pois o Código de 73 (art. 685, I), tanto quanto o Código de 39 (art. 1.015), prevê a

possibilidade de redução, avaliados que forem os bens. No regime anterior, a

redução era imperativa, ao passo que, a partir do Código de 73, passou a depender

do prudente arbítrio do magistrado. De qualquer forma, se o legislador condicionou a

possibilidade de reexame dos limites da constrição à avaliação dos bens, isto indica

que não se pode punir o executado, a menos que tenha agido com dolo ou culpa.77

Diversa é a hipótese em que a sentença proferida nos embargos

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Continuação da nota de rodapé da página anterior

das hipóteses dos arts. 588, 1, e 81 1, ambos do Código de 73. Bem por isso,

polêmico o ponto de vista sustentado por José Olímpio de Castro Filho, na vigência

do Código de 39, no que concerne à responsabilidade que pesa sobre aquele que

obtém Iiminar em ação possessória, ao depois revogada por força de provimento

definitivo, nas hipóteses em que a parte contrária tiver experimentado danos. O

processualista mineiro argumenta com a natureza jurídica da Iirninar, que nada mais

se- ria senão uma execução provisória (José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 1

74 e 175). Quer parecer, entretanto, que se está recorrendo à analogia, vedada

quando se trata de normas que estabelecem exceção ou aplicam sanções. Com

efeito, Pontes de Miranda, a propósito de posição inversa (tomar a execução

provisória como medida cautelar), adverte que não se pode confundir provisoriedade

e cautelaridade (Comentários ao Código de Processo Civil, tomo XII, Rio de Janeiro,

Forense, 1976, p. 99 e 100), pelo que só mesmo a título de argumento a simili é que

se pode cogitar desta aproximação de conceitos. Aliás, há autores que sustentam

que as hipóteses previstas nos arts. 588, I (tanto na redação primitiva quanto

naquela atual, prevista na Lei 10.444/02), e 8 I I, ambos do CPC de 73, não são

propriamente de abuso do direito (Pontes de Miranda, Comentários ao Código de

Processo Civil, tomo IX, Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 428 e 429, e tomo XII, Rio

de Janeiro, Forense, p. 99).

(77) Nesse sentido é a posição de J.M. de Carvalho Santos (Código de Pro- cesso

Civil Interpretado, vol. I, Rio de Janeiro, Livraria e Editora Freitas Bastos, 1 940, p.

97 e 98), que, no concernente à penhora, invoca o entendimento de Jorge

Americano (Do abuso do direito, 2. ed., São Pau- lo, 1932, p. 86), que se reproduz,

também na obra deste último autor, nos Comentários ao Código de Processo Civil

do Brasil, vol 1., São

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

de devedor dá por inexistente a obrigação que funda a execução (art. 574). Neste

caso, a doutrina vislumbra mais uma hipótese de responsabilidade objetiva,

porquanto incumbirá ao exequente indenizar os prejuízos experimentados pelo

executado, ainda que não tenha agido com culpa.78

Insta dizer também que o só fato de o processo ter sido extinto sem julgamento do

mérito não implica reconhecer abuso do direito de demanda, porquanto a ação, no

dizer de Degenkolb, é um direito público subjetivo, reconhecido a quem creia, de

boa-fé, ter razão.79 Importa saber se houve dolo, culpa ou, em outras palavras,

intenção de prejudicar, descaso, temeridade no momento de considerar a

propositura da ação.8° Entrementes, José Olímpio de Castro

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Paulo, Livraria Acadêmica, Saraiva & Cia — Editores, 1940, p. 24 e 25. No mesmo

sentido é a posição de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo

Civil, torno IX, Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 425 e 426). Para José Olímpio de

Castro Filho, diversamente, aplica-se o princípio da responsabilidade objetiva aos

casos de penhora e arresto, pois tais atos implicam uma antecipação da execução,

que corre por conta e risco do exequente (op. cit., p. 170-172).

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(78) Celso Agrícola Barbi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. l, Rio de

Janeiro, Forense, 1991, p. 77; Pontes de Miranda, Comentários ao Código de

Processo Civil, tomo IX, Rio de Janeiro, Forense, 1976, p. 145. Para Amílcar de

Castro, o fundamento do ressarcimento, na hipótese do art. 574 do CPC, é o mesmo

da condenação em custas, vale dizer, o fato objetivo da derrota (Comentários ao

Código de Pro- cesso Civil, vol. VIII, São Paulo, RT, 1974, p. 28).

(79) Degenkolb, Principii di diritto processuale civile — Le azioni — il pro- cesso di

cognizione, Napoli, Casa Editríce Dott, Eugenio Jovene, 1 965, p. 56 e 57, apud

Chiovenda, Principii de diritto processuale civile. La azione. 11 proceso di

cognizione, Napoli, Casa Editríce Dott, Eugenio Jovene, 1965, p. 56.

(80) J.M. de Carvalho Mendonça, Código de Processo Civil Interpretado, vol. l, Rio

de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 98-100; Eliezer Rosa, Dicionário

de Processo Civil, Rio de Janeiro, Editora de Direito Angelo de Oliveira Ltda., 1957,

p. 305 e 306; Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 2. ed.,

tomo vI1I, Rio de Janeiro, Forense, 1 959, p. 442 e 443; Arruda Alvim, Código de

Processo Civil Comentado, vol. V, São Paulo, RT, 1979, p. 195.

Fim da nota de rodapé

Página 122

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Filho, escrevendo na vigência do Código de 39, assinala que, em alguns casos, a

inobservância de certas prescrições legais, que rendia ensejo à então chamada

absolvição de instância, é clara manifestação de abuso processual, não se havendo

de cogitar de prova da intenção de prejudicar. Importa aqui considerar apenas as

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hipóteses normativas que encontram correspondência no Código de 73. E o caso da

petição inepta (arts. 267, I, e 295, I) ou da parte que deixa de instruir a inicial com os

documentos indispensáveis (arts. 267, I, e 284, parágrafo único), bem como da

existência de defeito na representação, ausente outorga uxória (arts. 10, caput, e

267, IV) ou instrumento de mandato judicial (art. 13, I, e 267, IV). Assim sucede

também quando a parte se omite em dar regular andamento ao feito (art. 267, 11 e

III).81

As sanções por abuso processual agrupam-se em duas classes que não se excluem

(podendo ocorrer imposição cumulativa), a saber, multas processuais e reparação

dos prejuízos.82 A responsabilidade

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(81) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 120-122. Alcides de Mendonça Lima

entende que a orientação do processualista mineiro tem inteira aplicação ao Código

de 73, máxime no que concerne aos incisos 11, 111, IV,V e VI do artigo 267 (op. cit.,

p. 63).

(82) Neste aspecto, a classificação se afasta daquela proposta por José Carlos

Barbosa Moreira (op. cit., p. 17 e 1 8), que agrupa as sanções em quatro categorias.

Além daquelas ora mencionadas, o processualista carioca vislumbra a restrição ou a

perda de direitos ou faculdades processuais, bem como a punição criminal, no caso

de fraude processual. Diga-se, por primeiro, que o abuso do direito não é crime e

que o crime não é abuso do direito. Trata-se de noções antitéticas, porquanto se há

direito (do qual se possa abusar) não se pode falar em crime. Quem pratica crime

age sem direito. Como bem o diz Jorge Americano, o abuso do direito acoberta-se

formalmente no exercício de um direito do agente (Comentários ao Código do

Processo Civil do Brasil, vol 1, São Paulo, Livraria Acadêmica — Saraiva & Cia —

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Editores, 1940, p. 18). Nas palavras do processualista português, João de Castro

Mendes, o conceito de ação abusiva, em rigor, diz respeito ao autor que tem razão,

e no entanto, age, não para a ver reconhecida, mas fazendo a ação desempenhar

uma função diversa, designadamente a de prejudicar ou incomodar o réu (Direito

Processual Civil, apontamentos de aulas ministradas por João de Castro Mendes,

entre 1973 e 1974, vol. 2, Faculdade de Direito de Lisboa,

Fim da nota de rodapé

Página 123

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

por dano processual, como definida pelo Código de 73, implica a condenação em

perdas e danos e também, como já era da tradição do direito romano, a imposição

de multas e custas agravadas.83

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

1 974, p. 203). A fraude à execução e a fraude processual caracterizam litigância de

má-fé que, nestes casos, não se ajusta à noção de abuso do direito. Quanto à

primeira classificação acima enunciada, já se consignou que a nulidade, a perda de

faculdades ou de direitos, tanto quanto a desconsideração dos efeitos produzidos

pelo ato, são ônus processuais e não penas. Não se pode cogitar também de

sanções cautelares, como quer Carlos Aurélio Mota de Souza (Poderes éticos do

juiz — a igualdade das partes no processo e a repressão ao abuso processual, in

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Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano 82, vol. 296, out.-nov.-dez. de 1986, p. 161-

168). A caução ou depósito, como condição da prática de determinados atos, visam

a garantir o juízo, como é da índole mesma destes institutos, prevenindo a prática de

abuso. Ao mesmo tempo, têm um caráter punitivo (Yussef Said Cahali, op. cit., p.

55). Tem-se entendido que mesmo nas hipóteses de custas agravadas, ou multas

que revertam em favor da parte contrária (art. 488, 11, 494, 538, parágrafo único,

601, 695, caput etc), não se está tratando de indenização, mas sim de sanção penal

prevista na lei processual civil, de caráter punitivo, cuja imposição independe da

ocorrência de dano. De outra natureza é o de- ver de reparar o dano fundado na

responsabilidade aquiliana, como está na regra do art. 35 do CPC, apesar de sua

ambígua redação (Yussef Said Cahali, op. cit., p. 58 e 64).

(83) José Carlos Barbosa Moreira, op. cit., p. 1 8. No mesmo sentido, Yussef Said

Cahali (op. cit., p. 55-58). O processualista carioca também observa que a

indenização, nos casos de execução provisória (art. 588, I) e do requerente de

medida cautelar (art. 81 1), inspira-se em outros princípios e não no propósito de

reprimir a má-fé no comportamento dos litigantes (idem, p.22). De outra forma, José

Olímpio de Castro Filho, escrevendo na vigência do Código de 39, sustenta que a

legislação processual prevê reparação sem dano, diferentemente do que ocorre no

Direito Civil. Invoca a condenação em custas agravadas, prevista no artigo 63, § 2.°

(op. cit., p. 1 91). Importante consignar também que, se a conduta Iesiva couber em

qualquer dos tipos descritos no CPC, a indenização terá natureza processual. De

outra forma, regular-se-á pela lei civil (artigo 159 do Código Civil de 1916; atual

artigo 186), o que pressupõe análise da ocorrência de dolo ou culpa (Yussef Said

Cahali, op. cit., p. 61 e 62). Acerca das discussões, na doutrina estrangeira, sobre o

fundamento e a natureza da responsabilidade reparatória, v. Yussef

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A reforma que se seguiu, nos anos de 1994 e 1995, trouxe importantes inovações

processuais. A um tempo, simplificou os procedimentos e o sistema de recursos,

agilizando a prestação o jurisdicional. Como registra a doutrina, a demora no

andamento do pro- cesso é tanto mais insuportável quanto menor forem as

condições econômicas da parte, o que vem agravar a quase que insuperável

desigualdade substancial no procedimento.84 Inspirado nestas idéias, o legislador

criou dispositivo apto a neutralizar, o quanto possível, a conduta abusiva do réu (aí

compreendidos todos aqueles que podem figurar no pólo passivo da ação, incluindo

o autor- reconvindo e o demandado na ação declaratória incidental). Trata a regra do

artigo 273, 11, do CPC do adiantamento, no todo ou em parte, da tutela demandada,

desde que, diante da prova, convença-se o juiz da verossimilhança das alegações

de abuso do direito de defesa ou

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Said Cahali (op. cit., p. 38-40). Registre-se, ainda a propósito da condenação em

perdas e danos que, para parcela da doutrina, ela dependia de pedido da parte

lesada, diferentemente do que ocorre com o reconheci- mento da má-fé, que não

necessariamente se faz acompanhar de prejuízos (ver a respeito, com farta citação

doutrinária, Alfredo Buzaid, op. cit., p. 97 e 98, Arruda Alvim, op. cit., p. 19, e Yussef

Said Cahali, op. cit., p. 63 e 64). Diversamente (e também com ampla citação

doutrinária), Alcides de Mendonça Lima (op. cit., p. 62) e Hélio Tornaghi, (op. cit., p.

157). A discussão encontra-se superada, à vista da atual regra do artigo 1 8 do CPC,

com a redação que lhe foi dada pela Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1 994, que

adotou a segunda posição. O legislador, outrossim, contornando a dificuldade da

prova do dano, optou pela condenação tarifada. A hipótese de arbitramento,

segundo a doutrina, estará reservada apenas para o caso de prejuízos de grande

monta (Humberto Theodoro Jr., Curso de Direito Processual Civil, vol. l, 19. ed., Rio

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de Janeiro, Forense, 1997, p. 87). Importante que se diga que o fato de o juiz estar

autorizado, independentemente de pedido da parte lesada, a condenar o Iitigante de

má-fé não implica dizer que poderá fazê-lo sem que esteja configurado o dano. O an

debeatur é pressuposto da condenação (Arruda Alvim, Tratado de Direito Processual

Civil, 1.° vol., 2. ed., 1996, p. 476 e 477). Neste sentido, o Iegislador afastou-se da

tese defendida por José Olímpio de Castro Filho.

(84) Luiz Guilherme Marinoni, Efetividade do processo e tutela antecipatória, in RT,

São Paulo, Ano 83, agosto de 1994, vol. 706, p. 56.

Fim da nota de rodapé

Página 125

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

do propósito protelatório do réu.85 Com a inovação consagrada no artigo 273, 11, do

CPC, o legislador obtemperou à crítica que Pontes de Miranda já fazia no regime do

Código anterior, segundo a qual não há no direito brasileiro — afora a possibilidade

de propor ação declaratória para obter pronunciamento judicial quanto à existência

ou inexistência de relação jurídica, autenticidade ou falsidade de documento —

nenhuma regra para prevenir abuso de direito material ou processual.86 Outrossim,

no caso das ações declaratórias — às quais, em tese, a regra do artigo 273, 11, do

CPc também se aplica87 — remanescem algumas dificuldades, porquanto é difícil

cogitar da

Início da nota de rodapé

(85) João Batista Lopes vislumbra a existência, no ordenamento jurídico brasileiro,

de algumas previsões legais de antecipação da tutela jurisdicional, precursoras da

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atual previsão do Código de Processo Civil, a exemplo da concessão de liminar nas

ações possessórias, da fixação de alimentos provisórios e de aluguel provisório, do

despejo liminar, da busca e apreensão realizada com fundamento do Decreto-Lei 91

1, de l .° de outubro de 1969, e da tutela liminar prevista no artigo 84, § 3.°, da Lei

8.078, de 1 1 de setembro de 1 990 (Antecipação da tutela e o artigo 273 do CPC, in

RT, Ano 85, vol. 729, p. 66). Todavia, registre-se que tais previsões não tinham em

mira, especificamente, o combate ao abuso do direito de defesa, como sucede

agora, com a reforma operada pela Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994.

(86) Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, 2. ed., tomo l,

Rio de Janeiro, Forense, 1 958, p. 1 38. A doutrina admite a possibilidade de tutela

antecipada, no momento anterior à contestação, nos casos em que ficar

comprovado, por exemplo, que o réu, a des- peito de diversas notificações, deixou

de honrar a dívida (Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, Código de

Processo Civil Comentado e legislação processual civil extravagante em vigor, 4.

ed., São Paulo, RT, 1998, p. 752 e 753). Entende-se que a apreciação, na hipótese,

não Ievará em conta o conteúdo da lide propriamente dito. Caso a tutela antecipada

viesse a considerar eventual falta de fundamento para a resistência à pretensão do

autor, estar-se-ia não mais cogitando de apreciação de abuso do direito de defesa

(ao qual a lei circunscreve a atuação do julgador), mas sim de abuso do direito

material, que constitui a causa de pedir.

(87) Idem, p. 750. A tutela antecipada é admitida em toda ação de conhecimento.

Não se aplica ao processo de execução e nem tampouco ao processo cautelar

(João Batista Lopes, op. cit., p. 67).

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

antecipação no pronunciamento acerca da existência ou inexistência de relação

jurídica. A regra Iegal não se harmoniza com a finalidade da ação declaratória.88

Aplica-se à antecipação da tutela jurisdicional a norma do artigo 588 do Código de

Processo Civil, por força de remissão expressa (art. 273, § 3.°). Neste aspecto,

confirma-se a orientação de José Olímpio de Castro Filho, ao tempo do Código de

39, para quem as medidas liminares, de maneira geral, têm natureza jurídica de

execução provisória. Afastando-se da tese defendida pelo processual lista mineiro,

entendia o legislador que se a decisão fosse revogada ou modificada, o autor nem

por isso estaria obrigado a indenizar eventual prejuízo sofrido pelo réu, ressalvada a

hipótese de má-fé (arts. 14 e 17 do CPC). Esta orientação, que resultava da omissão

à referência ao inciso 1 do artigo 588, na regra do artigo 273, § 3.°, do Código de

Processo Civil, viu-se alterada a partir da Lei 10.444/02, que faz menção ao artigo

588, sem especificar incisos.

A exposição feita neste tópico, longe da pretensão de esquadrinhar o texto

normativo vigente — o que seria dado esperar de um estudo propriamente

dogmático — serviu apenas para demonstrar as dificuldades que permeiam a

doutrina, quando se trata de estabelecer critérios para a identificação do abuso

processual, expressão sintética que, no senso comum dos processualistas,

compreende não só a litigância de má-fé (como definida nos arts. 14 a 18 do Código

de 73) e as hipóteses de responsabilidade objetiva, mas também o chamado

processo fraudulento (art. 129), cuja

Início da nota de rodapé

(88) João Batista Lopes (op. cit., p. 68 e 69), tanto quanto Nelson Nery e Rosa Nery

(op. cit., p. 750), procura, com certa dificuldade, estabelecer hipóteses de cabimento

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da antecipação da tutela declaratória. Os autores terminam por concluir que se trata,

em verdade, de adianta- mento dos efeitos de uma sentença de carga declaratória,

como se dá no caso da sustação Iiminar do protesto de cambial já paga. A

dificuldade, conforme apontada pela doutrina, também ocorre quando se cuida de

ação constitutiva. A respeito dessas dificuldades, ver também Luiz Guilherme

Marinoni, A tutela antecipatória nas ações declaratória e constitutiva, RT, São Paulo,

Ano 86,julho de 1 997, vol. 74 1, p. 77-87.

Fim da nota de rodapé

Página 127

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

análise interfere com a questão da verdade processual, objeto da próxima seção.89

A apreciação do abuso do direito no processo

Início da nota de rodapé

(89) A propósito do conceito de colusão v. Gian Antonio Micheli, Corso di

dirittoprocessuale civile, vol. 1, Milano, Dott. A. Giuffrè-Editore, 1959, p. 260;

Francesco Carnelutti, Estudjos de Derecho Procesal, vol. 11, Buenos Aires,

Ediciones Jurídicas Europa-América, 1952 (Coleccjón Ciencia del Proceso), p. 67-

79; Francesco Carnelutti, Estudios de De- recho Procesal, vol. 1, Buenos Aires,

Ediciones Jurídicas Europa-Amé- rica, 1 952 (Coleccjón Ciencja del Proceso), p. 97;

Francesco Carnelutti, Nullitá della sentenza derivata da processofraudolento, in

Rivista di dirittoprocessuale civile, Anno 1 934, xII, vol. xI, Parte 11, Padova, Casa

Editríce Dott, Antonio Milani, p. 46-48; Francesco Carnelutti, Proces- so infrode alla

lege, in Rivista di diritto processuale civile, Anno 1 949, vol. IV, Parte 11, Padova,

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Casa Editríce Dott, Antonio Milani, p. 32-44; F.G. Lipari, Appunti sul doloprocessuale

bilaterale, in Rivista di diritto processuale civile, Anno 1 928, vol. V, Parte l, Padova,

Casa Editríce Dott, Antonio Milani, p. 285-304; Guido Calogero, op. cit., p. 129-153;

Chiovenda, instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva,

1 965, 49 e 50; Salvatore Satta, op. cit., p. 1 99 e 200; Adolf Wach, op. cit, p. 89;

ArthurAnselmo de Castro, op. cit., p. 5 1 -67; Eliezer Rosa, op. cit, p. 303 e 304; J.

M. de Carvalho Santos, Código de Proces- so Civil Interpretado, 2. ed., Rio de

Janeiro, Freitas Bastos, vol. 11, 1 940, p. 132 e 1 33; Herotides da Silva Lima, op.

cit., p. 222 e 223; Pedro Baptista Martins, Comentários ao Código de Processo Civil,

vol. 1, Rio de Janeiro, Revista Forense, 1940, p. 346-350; Luiz Antonio da Costa

Carvalho, op. cit., p. 301-306; Celso Agrícola Barbi, Comentárjos ao Cócligo de

Processo Civil, 6. ed., vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1991, p. 3 1 3-3 1 6; Aílton

Stropa Garcia, A colusão, in RT, São Paulo, Ano 82, setembro de 1 993, vol. 695,

p.225 e 226; Hélio Tornaghi, op. cit., p. 153- 200; José Raimundo Gomes da Cruz,

op. cit., p. 33 a 45; Arruda Alvim, Código de Processo Civil Comentado, vol. 5, São

Paulo, RT, 1979, p. 200-203. A respeito da interpretação do tema najurisprudência,

ver Darcy Arruda Miranda Junior et alli, CPC nos tribunais, vol. 111, São Paulo,

Jurídica Brasileira, 1985, p. 2.000-2.002; Arruda Alvim, Juris- prudência do CPC, vol.

XII, São Paulo, RT, 1985, p. 104-112; Arruda Alvim, Jurisprudência do CPC, vol. VIII,

São Paulo, RT, 1984, p. 146- 149; TJSão Paulo, 2. Câm. Civ., Ap. 79.967, rel. A. de

Oliveira Lima, Capital, 1 3.08.57, in RT, São Paulo, Ano 47, março de 1 958, vol.

269, p. 239-244; 1 .° TAC/São Paulo, 2.a Câm., Ap. 362.3 14, Civ., Santo André, rel.

Sena Rebouças, 01.10.86, in RT, São Paulo, Ano 75, novembro de

Fim da nota de rodapé

Página 128

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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judicial, como diz Pedro Baptista Martins,9° exige diferentes atitudes de espírito do

julgador, pois em muitos pontos, como já demonstrado, nem mesmo a doutrina se

entende. Há quem sustente que é abusiva a conduta do autor que, podendo

escolher entre duas ações, acaba optando, sem nenhum proveito objetivo, pela mais

ofensiva e prejudicial à situação da parte contrária, ainda que a opção tenha sido

involuntária, resultante de negligência ou imprudência.9 Outros sustentam que

somente na hipótese de má-fé é que se pode cogitar de abuso. Assim, age

amparado pela lei o autor que, tendo a seu dispor duas ações ou duas vias para

tornar efetivo seu direito, escolhe circunstancialmente a mais gravosa.92 Diferentes

Início da nota de rodapé

1986, vol. 61 3, p. 121 e 122; 1 .°TAC/São Paulo, 2. Câm., Ap. 362.314, rel. Sena

Rebouças, j. 0 1 . 1 0.96, in RT, São Paulo, Ano 75, novembro de 1986,vol.613,fasc.

1,p. 121 e 122;TJSC, 1.aCâm.Civ.,Ap.Civ. 10.714, Seara, rel. Rid Silva, 17.07.75, in

RT, São Paulo, Ano 65, dezembro de 1 976, vol. 494, p. 1 76- 1 79; TAC/São Paulo,

5.° Câm. Esp., Ap. 509.967- 6, Araçatuba, rel. Caio Graccho, in Julgados dos

Tribunais de Alçada Civilde São Paulo, São Paulo, Lex, Ano 27,julho-agosto de

1993, vol. 140, p. 147- 149; TJSão Paulo, 2. Câm. Civ., Ap. Civ. 21 8.053-1, Matão,

rel. Vaconcellos Pereira, 07.02.95, v.u., in Revista de Jurisprudência do Tribunal de

Justiça, São Paulo, Lex, Ano 29, setembro de 1 995, vol. 172, p. 16 1- 1 64;

1 .°TAC/São Paulo,Ap. 367. 1 62, 6.°Câm., Jacareí, rel. Ernani de Paiva, in RT, São

Paulo, Ano 76, maio de 1987, vol. 619, p. 129- 13 1.

(90) Pedro Baptista Martins, O abuso do Direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro,

Forense, 1997, p. 75.

(91) Noé Azevedo, Abuso do direito no exercício da demanda, p. 1 1, apudJ. M. de

Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1, Rio de Janeiro,

Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 95 e 96. Neste mesmo sentido, ainda que

partindo de outros fundamentos, é a orienta- ção de Pedro Baptista Martins (O

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abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., 1 997, p.76 a 78), de Jorge Americano (Abuso

do direito no exercício da demanda, 2. ed, São Paulo, 1932, apud Pedro Baptista

Martins, O abu- so do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 997, p.

76 e 77) e de Oscar da Cunha (O dolo e o direitojudiciário civil, Rio de Ja- neiro,

1936, apud Pedro Baptista Martins, O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de

Janeiro, Forense, 1997, p. 77).

(92) J.M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1, Rio de

Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 96 e 97. Esta

Fim da nota de rodapé

Página 129

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

situações permitem ver que a apreciação do abuso do direito no processo judicial

pressupõe, antes mesmo da análise de questões de foro íntimo, valorações de

ordem social.93

É indiscutível que o exercício inconsiderado do direito de ação pode trazer

consequências tão graves que nem mesmo a aplicação dos princípios de

responsabilidade terá condições de recompor. Daí a importância da atuação

preventiva do juiz. Sem ela, no dizer de Pedro Baptista Martins, indivíduos

economicamente irresponsáveis, pela ameaça e pela intimidação, poderão

impunemente frustrar

Início da nota de rodapé

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Continuação da nota de rodapé da página anterior

também é a posição de Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo

Civil, tomo I, 2. ed., Rio de Janeiro, Revista Forense, 1958, p. 146). O Código de

Processo Civil vigente traz, no seu artigo 620, importante inovação. Assim é que, se

o credor puder promover a execução por vários meios, o juiz mandará que se faça

pelo modo menos gravoso para o devedor (favor debitoris). No caso, está-se

tratando não da escolha entre as diversas espécies de execução, mas da escolha de

atos de execução. A propósito deste dispositivo, José Frederico Marques arrola uma

série de situações, que encontram previsão em outras normas do Código, nas quais

a questão da escolha menos gravosa pode surgir (Instituições de Direito Processual

Civil, vol. 5, Rio de Janeiro, 1958, p. 139, 186, 222, 371 ep assim). Encontram-se

alguns exemplos também em Pontes de Miranda (Comentários ao Código de

Processo Civil, tomo X, Rio de Janeiro. Forense, 1976, p. 41 e 42).

(93) o Código d 73 — como já dispunha o anterior — considera temerária a conduta

daquele que opõe resistência injustificada ao andamento do processo (art. 1 7, IV).

Há quem sustente que certos meios protelatórios muitas vezes se justificam para

evitar mal maior. É o caso daquele que, na esperança de receber numerário,

procrastina, com os expedientes dos quais dispõe, a arrematação em execução

judicial (J. M. Carvalho de Mendonça, Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1,

Rio de Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 112 e 113). Interessante

também é a hipótese daquele que desiste da apelação somente para ver

prejudicado o recurso adesivo. Para Arruda Alvim, a apreciação do ato

procrastinatório tem de ser feita de maneira objetiva, independentemente da real

intenção que teria movido o litigante (Resistência injustificada ao andamento do

processo in Julgados dos Tribunais de Alçada CI- vil de São Paulo, Ano 15, vol. 66,

2.° bimestre, março e abril de 1981, So Paulo, Lex, p. 17).

Fim da nota de rodapé

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Página 130

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

operações de crédito, interromper a formação de certos contratos, afastar, nas

hastas públicas, a concorrência.94 Todavia, o controle dos limites éticos da conduta

processual das partes não pode ser visto como simples exercício de uma vontade

íntima do julgador. Averiguar a intenção do agente, verificar se o dano teria resultado

de culpa sua, é tarefa que deve ser relegada à psicologia. O que, em consonância

com o código, importa examinar é se o indivíduo, ao desencadear o seu poder

jurídico, com o fim de satisfazer um interesse puramente egoístico, deixou de ter em

conta os interesses antagônicos, mas hierarquizados, da coletividade, desvirtuando,

por esta forma, o elemento social que, na formação da regra jurídica, predomina

sobre o elemento individual.95 A questão, como já ad- vertia Jorge Americano, não

se confina no âmbito da psicologia individual, pois que no foro íntimo não é lícito

penetrar, nem é mesmo possível fazê-lo. Incide, porém, no estudo da psicologia das

médias humanas para propor-se de forma a indagar se o ato realizado está em

conformidade com o modo pelo qual os homens costumam

Início da nota de rodapé

(94) Pedro Baptista Martins, O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., Rio de Janeiro,

Forense, 1997, p. 74, e Comentários ao Código de Processo Civil (Decreto-Lei

1.608, de 18 de Setembro de 1939), vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1 940, p. 4 1.

Gabriel Rezende Filho, referindo-se à necessidade de cautela na propositura da

ação, diz que a demanda representa muitas vezes a ruína de famílias. Fonte de

amarguras e inquietações, faz lembrar a maldição dos ciganos, na expressão de

Salvador de La Colina: Deus te dê demandas, ainda que as venças (Direito

Processual Civil, 3. ed., vol. 11, São Paulo, Saraiva, p. 45 e 46). Caio Mario da Silva

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Pereira, em parecer sobre pedido abusivo de falência, citando Savatier, registra que

muitas vezes, é a natureza do processo, pela desonra que causa, pelo abalo que

provoca, pelas consequências sobre o bom nome do réu, que aconselha o autor a

ser mais discreto, a não ir ajuízo senão após maduramente pesar o seu próprio

direito, e não se afoitar, para não provocar a desmoralização do contendor, o seu

des- prestígio público. o abalo no seu crédito. Se assim não age, assume o risco do

desfecho (Revista Forense, Ano 52, vol. 159, fascs. 623 e 624, maio-junho de 1955,

p. 107).

(95) Pedro Baptista Martins, O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed, Rio de Janeiro,

Forense, 1997, p. 96 e 102.

Fim da nota de rodapé

Página 131

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

proceder.96 O direito não pode desconhecer a variabilidade do meio onde deve ser

aplicado.97

Início da nota de rodapé

(96) Jorge Americano, Do abuso do direito no exercício da demanda, 2. ed., São

Paulo, 1 932, p. 34, apud Carvalho Santos, Código de Processo Civil interpretado,

vol. 1, São Paulo, Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 94.

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(97) Jorge Americano, Comentários ao Código de Processo Civil do Brasil, vol. 1,

São Paulo, Livraria Acadêmica — Saraiva & Cia — Editores, 1 940, p. 3 1. Neste

sentido, a teoria do abuso do direito ganha dimensão nova, diversa da doutrina

medieval dos atos de emulação, pois ao magistrado não cabe verificar o animus, a

consciência da má-fé. Sob este aspecto, significativa a atual redação do artigo 1 7,

inciso I, do CPC. Na doutrina haurida no Código de 39, a alteração da verdade

haveria de ser intencional. A propósito, v. Lopes da Costa, numa referência à regra

do artigo 63 (Direito Processual Civil Brasileiro, 2. ed., vol. 11, Rio de Janeiro,

Forense, 1959, p. 124). Para Arruda Alvim,já a redação anterior à alteração

promovida pela Lei 6.771, de 27 de março de 1980 (deduzir pretensão ou defesa,

cuja falta de fundamento não possa razoavelmente desconhecer), apontava para o

critério objetivo (Resistência injustificada ao andamento do processo, in Julgados

dos Tribunais de Alçada Civil de São Paulo, São Paulo, Ano 15, vol. 66, 2.° bimestre,

março e abril de 1981, São Paulo, Lex, p. 17 e 18). Elicio de Cresci Sobrinho,

escrevendo antes da Lei 6.77 1/80, sustenta que o dever de veracidade disciplinado

pelo CPC é dever de veracidade subjetivo (op. cit., p. 400 e 401). Alfredo Buzaid,

escrevendo depois da edição da Lei, defende a mesma posição (op. cit., p. 93 e 96).

Na doutrina estrangeira, Guido Calogero (Probità, lealtà, veridicitànelproceso civile,

in Rivista diDiritto Processuale Civile, voj. xvI — Parte 1 , Ano 1 939 — XVII-XVIii,

Padova, Casa Editríce Dott, Antonio Milani, p. 129-153) e Leo Rosemberg (La carga

de la prueba, Colección Ciencia del Proceso, 30, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas

Europa-America, 1956, p. 59, e Tratado de Dere- cho Procesal Civil, Colección

Ciencia del Processo, 27, tomo I, Libro primero, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas

Europa-America, 1955, p. 382 e 383) foram uns dos primeiros a suscitar a polêmica,

filiando-se à tese da verdade subjetiva. Também de viés subjetivista é a posição de

Cappelletti (Processo, ldeologia, Sociedad, Colección Ciencia del Proceso, ed. 64,

Buenos Aires, Ediciones Juridicas Europa-America, 1974, p. 54 e 55) e de Kaethe

Grossmann (op. cit., p. 289 e 290). Luis Recaséns Siches, a propósito de um

conceito universal de Justiça, diz que um dos seus postulados é a existência de uma

verdade objetiva, vale

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Fim da nota de rodapé

Página 132

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

2.3 As práticas judiciárias e os modelos de verdade

Como foi visto, a noção de abuso do direito no processo judicial está ordinariamente

relacionada ao dever da verdade. Ainda que se possa cogitar de conduta culposa ou

simplesmente de conduta desconforme à finalidade do processo, justifica-se o

enfoque, como ora proposto, senão porque a responsabilidade objetiva depende

sempre de expressa previsão normativa, o que se resolve nos estreitos limites da

tipicidade (fattispecie), pelo só fato de que interessa também o exame da dimensão

social da verdade, da qual se aproxima o conceito de antijuridicidade, desenvolvido

pela dogmática jurídica.

Os estudiosos do direito sempre tiveram muita dificuldade em estremar os diversos

níveis do conhecimento jurídico. Fala-se, com frequência, de uma ciência descritiva,

que se limita à elaboração e sistematização de conceitos, em plano distinto da

atividade prática e política do direito, esta sim voltada à produção de resultados. Em

uma terceira dimensão encontra-se a reflexão filosófica do direito, que se ocupa não

só da descrição da Iinguagem científica, mas também da revisão lógica,

metodológica e epistemológica do trabalho do cientista do direito.98 De pronto, é

possível ver, porém, o quão equivocado seria a concepção de uma ciência alheia

aos pressupostos filosóficos. A simples circunstância de a filosofia ocupar-se de

categorias universais não é empecilho para o exame dos fatos que compõem a

tessitura social, objeto do trabalho do cientista.

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Com efeito, o filósofo, através do emprego de categorias lógico- transcendentais,

examina a gênese, a estrutura e a finalidade da experiência jurídica, indagando

sobre a fundação cognoscitiva do

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

dizer, todas as afirmações sobre fatos e relações devem ser objetivamente

verdadeiras, assim como devem sê-lo também as declarações que fazem as

pessoas implicadas com o direito (lntroducción al Estudio del Derecho, 6. ed..

México, Editorial Porrúa S/A, 1981, p. 320).

(98) Ernesto Grtin e Martin Diego Farrel, Problemas de verijìcación en el de- recho,

in Genaro Carrió et alli, Derecho, Filosofia y lenguaje (homenaje a Ambrosio L.

Giojia), Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, Buenos Aires, 1976, p. 69-73.

Fim da nota de rodapé

Página 133

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Direito (estrutura ôntica e lógica). Esta questão ontognoseológica, por seus

desdobramentos no campo da epistemologia, implica o exame de disputas acerca

da natureza do saber jurídico (ciência, arte ou tecnologia). A par dessas

investigações, busca-se conhecer o fundamento ético do direito o que é objeto da

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deontologia — e o sentido da experiência jurídica através dos tempos, indagação

esta que se encontra nos domínios da culturologia. Este modelo,99 que se está

tomando provisoriamente de empréstimo, por tratar-se de importante paradigma,

permite entender que o direito se move num campo cultural e que, bem por isso, as

categorias jurídicas elaboradas pelo estudioso haverão de ter em conta a realização

social de valores.

A experiência jurídica tanto interessa ao jurista como ao sociólogo, ao historiador

etc. O teórico do direito — conforme observa Miguel Reale — por seu apego à

norma posta, faz abstrações das fontes últimas condicionadoras da experiência

jurídica, para recebê-la com um dado, algo existente e válido em si e por si. Cabe ao

filósofo buscar os fundamentos transcendentais daquela experiência, iluminando o

significado histórico que a dogmática jurídica (como teoria geral do direito aplicada)

recolhe nos diversos estágios da trajetória humana.100 O problema da verdade

judicial, sob este ângulo, insere-se numa dimensão fenomênica que ultrapassa o

mundo platônico das idéias, assim como a concepção de uma inteligência divina,

presente na elaboração da Grécia arcaica e na Alta Ida- de Média,101 procurando

conciliar o idealismo absoluto e o realismo.

Início da nota de rodapé

(99) Trata-se da teoria tridimensional do direito, como desenvolvida por Miguel Reale

(op. cit., p. 84-91).

(100) Miguel Reale, op. cit., p. 89-91.

(101) Veja-se o que sucede na Ilíada, onde controvertem Menelau e Antíloco a

respeito da ocorrência de determinado fato, consistindo a prova da verdade no

desafio do juramento diante de Zeus. No texto, Homero conta que Antíloco, diante

de tal desafio, renunciou à prova, reconhecendo o fato que o desfavorecia. Se

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realmente tivesse aceitado o risco, se tivesse realmente jurado, imediatamente a

responsabilidade da verdade seria transposta aos deuses. E seria Zeus, punindo o

falso juramento, que teria manifestado a verdade (Michel Foucault, A verdade e as

formas jurídicas, Rio de Janeiro, Nau, 1996, p. 32 e 33.

Fim da nota de rodapé

Página 134

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A superação desta dicotomia também se faz presente, de uma outra perspectiva, na

filosofia analftica, onde o significado da verdade se desloca do plano da consciência

para o plano da linguagem.

Enfim, quando os conceitos dogmáticos correm o risco de perder sua

operacionalidade, é preciso buscar formas de legitimação do significado que

transcendam o ordenamento jurídico. É o que ocorre mormente com certos

conceitos vagos, cuja extensão (denotação) é ampla, exatamente porque a intensão

(conotação) é Iimitada. Em outras palavras, quanto menor for o número de

propriedades atribuídas a um objeto, que integram o campo intensional do

significado (conotação), maior será o conjunto de objetos que constituem a extensão

do significado, donde se vê que a conotação (conjunto de propriedades que o termo

designa) é condição necessária para estabelecer a denotação (conjunto de objetos

designados pelo termo). 102

Costuma-se dizer que um termo (ou conceito) é vago quando não se consegue

estabelecer, de maneira precisa, os objetos por ele denotados; a inclusão ou

exclusão de um determinado objeto no

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(102) A análise que segue pertencente ao campo da lógica e da linguagem. A

respeito, vide Leonidas Hegenberg, Definições — termos teóricos e signijìcados,

São Paulo, Cultrix, 1974, p. 15-34; Irving M. Copi, Introdução à Lógica, 2. ed., São

Paulo, Mestre Jou, p. 123-134, 39-62 e 95-99; Wesley C. Salmon, Lógica, 6. ed., Rio

de Janeiro, Zahar Editores, p. 121 a 130; Ferdinand de Saussure, Curso de

Lingüística Geral, São Paulo, Cultrix, 3. ed., 1 995, p. 1 9, 80, 8 1, 1 1 9 e 1 32-141 ;

RolandBarthes, Elementos de Semiologia, 4. ed., 1975; William P. Alston, Filosofla

del lenguaje, Madrid, Alianza Editorial Ltda., 1974, especialmente p. 34, 56, 57, 98,

101 e 102; Marilena Chauí, Convite à Filosofia, p. 136-150 Gofredo Telles Jr., Curso

de Lógica Formal — Tratado da conseqüên- cia, 3. ed., São Paulo, José Bushatsky,

Editor, 1973, p. 323-341; Luis Alberto Warat, A definiçãojurídica e suas técnicas —

texto programa- do, Porto Alegre, Atrium, 1 977; Decio Pignatari, Inforrnação.

Lingua- gem. Comunicação, 48. ed. São Paulo, Perspectiva, 1970, p. 25 a 37;

Edward Lopes, Fundamentos da Lingüística Contemporânea, São Pau- lo, Cultrix,

s/d, p. 234 a 336, e Alaôr Caffé Alves, Lógica — Pensamento e argumentação —

Elementos para o discurso jurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 168-170, 203-210 e

223-228.

Fim da nota de rodapé

Página 135

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

campo extensional do termo não fica suficientemente clara. E o caso das noções de

bem comum, boa-fé, interesse público, urgência, honestidade, intimidade, igualdade

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e abuso, sobre as quais tanto controvertem os juristas. No campo das ciências

matemáticas, físicas e naturais, os significados são muito mais precisos, porquanto

os símbolos são arbitrários. Todavia, como os conceitos jurídicos são elaborados

através de palavras, que integram a Iinguagem natural, com diversas conotações e

denotações, o jurista muitas vezes defronta-se com ambiguidade e vagueza. A

ambiguidade, que pertence à esfera da conotação, quase sempre se resolve como

problema de polissemia. De fato, uma única palavra pode ter diversos sentidos e a

compreensão depende de certas técnicas de definição.

Assim, palavras que encontram referência na realidade, tais como manga e cabo,

conquanto tenham diversas conotações, podem ter seu sentido aclarado por meio

de definições ostensivas (explicação do significado por meio da exibição), que

recorre à denotação, vale dizer, à extensão do termo. Outra técnica extensional ou

denotativa é a definição contextual, em que a explicação do significado surge a partir

da menção a exemplos de diversas situações em que a palavra possa ser

empregada. A sinonímia também ajuda a eliminar ambiguidades. Trata-se de técnica

intensional, relaciona- da ao campo da conotação. As maiores dificuldades

encontram-se, todavia, entre as palavras que não têm referência ao real. Sincate

goremas, como preposições ou conjunções, somente ganham sentido dentro de um

determinado contexto. São termos que relacionam sintaticamente verbos e

advérbios com substantivos, orações ou outros termos da mesma oração, cujo

significado depende exclusivamente destas relações, só com o que passam a ter

importância semântica. Substantivos como sereia e minotauro também não têm

referente na realidade. Por isso, é preciso buscar o sentido em outro plano, no mais

das vezes contextual.

É difícil estabelecer o significado de determinados termos por meio da definição

denotativa, a exemplo do que ocorre com os substantivos abstratos (justiça, verdade

etc), com certos adjetivos (abusivo, mau etc) e com certos advérbios (abusivamente,

erradamente etc). Com efeito, considerando que tais termos não tratam de

realidades

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

sensíveis, é impossível buscar o sentido apontando ou exibindo. A exemplificação,

outrossim, pode confundir, haja vista que se corre o risco de o interlocutor considerar

propriedades (conotação) que não se teve a intenção de destacar. Se, ao tentar

definir humano, aponta-se para a propriedade racional, muitos poderão excluir as

crianças de colo e os deficientes mentais da extensão do termo. Ao mesmo tempo,

há certos macacos que parecem inteligentes, capazes de completar alguns

raciocínios elementares. Essas criaturas, que estão excluídas da denotação do

termo humano, tal como se o entende, ficariam absorvidas pela definição

proposta.103

Por detrás das questões de definição residem problemas centrais da filosofia. A

maneira como se concebe a relação pensamento- signo-referente pressupõe uma

tomada de posição acerca da essência do conhecimento, questão que divide

idealistas e realistas. Intrinsecamente ligada a estas reflexões está a indagação

acerca do sentido da vida, da justiça, da verdade etc. Já se disse que a experiência

jurídica, longe de constituir monopólio do jurista, interessa também a outros

estudiosos, que vão buscar nas reflexões filosóficas o ponto de apoio para a

elaboração de seus conceitos regionais. Com o jurista não se passa diferente.

Embora a dogmática jurídica desenvolva um estilo de argumentação infenso à

problematização, na busca de soluções para o caso concreto, certo é que, no limite,

diante da multiplicidade de significados da norma, o operador do Direito, esgotados

os recursos de legitimação formal existentes dentro do próprio sistema jurídico

(norma, doutrina, jurísprudência), haverá de recorrer às categorias universais da

filosofia.

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O exame da questão da verdade, que guarda estreita relação com a teoria do abuso

do direito processual, não se faz aqui do ponto de vista da tradição filosófica. O que

interessa é surpreender o uso da palavra na prática dos processualistas. Importa

saber como a dogmática processual elabora o conceito de verdade e como os

sujeitos processuais o utilizam, na tentativa de reconhecer significados que indicam

determinadas atitudes culturais. E o processo judicial é campo fértil para toda esta

reflexão, porque nele estão registradas

Início da nota de rodapé

(103) o exemplo é de Wesley C. Salmon (op. cit., p. 127).

Fim da nota de rodapé

Página 137

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

formas particulares de compreensão das coisas, que se revelam no julgamento do

produto cultural de cada época. O processo é, assim, fato social, flagrante de um

determinado momento histórico. Nele, fórmulas e regras ricas de sentido

singularizam o modo de ser e de sentir de um determinado povo. A expressão do

indivíduo na sociedade, o papel do Estado na vida das pessoas, tudo isto está

refletido em dicotomias que, pelo uso corrente, já se tornaram clássicas na doutrina

processual. Fala-se, assim, em concepção individual e social do processo; privada e

pública; em princípio inquisitivo e dispositivo etc.104

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A verdade, como fórmula metafísica, como um ideal de justiça, conspira contra a

exigência social da rápida solução dos litígios. Daí porque os processualistas

entendem que a verdade, dentro de uma perspectiva social do processo, é sempre

relativa e não absoluta. 105

Início da nota de rodapé

(104) A propósito da implicação entre a poiítica e as diversas concepções do

processo, v. Piero Calamandrei, Estudios sobre elproceso civil, Buenos Aires,

Editorial Bibliografica Argentina, 1961, p. 122-130; Eduardo J. Couture, Estudios de

Derecho Procesal Civil, tomo 1, 2. ed., Buenos Aires, Ediciones Depaima, 1978, p.

93- 95 e 169-175; NicetoAlcalá- Zamorra y Castilho, Estudios de Teoria General e

Historia del Proceso, tomo 11, Mexico, Universidad Nacional Autónoma de México

— Insti- tuto de lnvestigaciones Jurídicas, México, 1974, p. 1 15-128, 245, 249, 255-

259, 264, 265 e 279; Mauro Cappelletti, Proceso, Ideologia, Sociedad, Buenos Aires,

Ediciones Jurídicas Europa-America, 1974, p. 33- 1 27; Erich Döhring, La

investigación del estado de los fatos en el proceso. La Prueba, supráctica y

apreciación, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1 972 (Colleción

Ciencia del Proceso, 61), p. 6-9 e 452-453.

(105) Giuseppe Chiovenda (Instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 1,

São Paulo, Saraiva, 1965, p. 43 e 44; na literatura jurídica nacional, veja-se Moacyr

Amaral Santos (Limites às atividades das partes no processo, in RT, São Paulo, Ano

46, outubro de 1 957, vol. 264, p. 22 e 23), Arruda Alvim (Curso de Direito

Processual Civil, vol. 11, São Paulo, RT, 1 972, p. 204-208), João Carlos Pestana de

Aguiar (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. Iv, São Paulo, RT, 1974, p.

51 e 52) e Celso Agrícola Barbi (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Rio

de Janeiro, Forense, I 99 1, p. 1 74). Para J.M. de Carvalho Mendonça não se há de

distinguir entre uma verdade processual

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Há muito mais um juízo de aparência de verdade, de verossimilhança, que se

exaure na obediência à forma e ao rito. E o caso do procedimento das legis actiones

e do formalismo germânico primitivo. Bastava que o litigante deixasse de reproduzir

com absoluta fidelidade as palavras da Iei, ou que deixasse de praticar o ato na

forma prescrita, para que perdesse a A verdade como conceito ideal está presente

na concepção processual individualista. Aqui, age o juiz como se fosse possível

conhecer o exato sentido dos fatos, livre das paixões e dos interesses em jogo. E o

exemplo do pro- cesso formulário, de onde brotaram as grandes codificações de

Teodosiano e Justiniano, as quais operam classificações na base da definição por

gênero e diferença, conforme a lógica apodítica de Aristóteles. Pouco importam os

ritos e fórmulas, como ponto terminal dos questionamentos. Interessa o

conhecimento da verdade mesma, como categoria transcendental aos fatos

sociais.107

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

(pseudo-verdade) e uma verdade real (Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1,

Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1940, p. 108). Este tema será retomado na

última seção do presente capítulo.

(106) A respeito, Michel Foucault registra que um erro de gramática, uma troca de

palavras invalidava a fórmula e não a verdade do que se pretendia provar. A

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confirmação de que a prova, sob esta perspectiva, era uma espécie de jogo verbal,

vem com o fato de que, no caso de um menor, de um padre ou de uma mulher, o

acusado poderia ser substituído por outra pessoa que, mais tarde, como mostra a

História do Direito, tomou- se o advogado, vale dizer, aquele que deveria pronunciar

as fórmulas no Iugar do acusado. Se o terceiro errasse, o réu perdia o processo (op.

cit., p. 59 e 60).

(107) A exposição que segue se inspirou no excelente ensaio de Galeno Lacerda

(Processo e Cultura, in Revista de Direito Processual Civil, São Paulo, Saraiva

Editores, Ano II,janeiro-junho de 1961, vol. 3, p. 74-86). Registre-se, todavia, o

idealismo contido na noção de uma verdade absoluta, acessível somente ao

cientista (em contraponto ao magistrado), que se pode colher naquele artigo (op. cit.,

p. 75 e 81). Em reforço à crítica que ora se apresenta, v. Thomas Kuhn, A estrutura

das revoluções cientificas, São Paulo, Perspectiva, vol. 1 15,1982 (Coleção

Debates); AIan Chalmers, O que é ciência, afinal?, São Paulo, Brasiliense, 1993;

Hilton Japiassu, Introdução ao pensamento epistemológico, 3. ed., São Paulo,

Livraria Francisco Alves Editora S/A, 1979, e

Fim da nota de rodapé

Página 139

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

No direito comum da Idade Média, o processo mostra-se como imperfeita simbiose

entre a concepção social contida na formalidade dos ritos, que coloca a tônica na

verdade relativa, e a concepção individualista, que coloca a tônica na verdade

absoluta. A noção romana da res judicata, mal compreendida, estendeu-se indevida-

mente a toda e qualquer interlocutória. Isto deu lugar a um grande número de

recursos, com pluralidades de instância, tornando as questões infindáveis. Ademais,

qualquer infração formal implicava nulidade insanável. Assim, o processo, que

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deveria ser meio, tor- nou-sefim em si mesmo, situação que perdurou na Europa até

o século XIX e que, no Brasil, até hoje tem repercussões. Explica-se concepção tão

persistente e duradoura porque a noção deforma, a partir da ideologia individualista

do iluminismo burguês, projetou- se sobre o processo de maneira equivocada.108

Com efeito, os revolucionários burgueses pensavam na garantia dos direitos dos

cidadãos. Impressionados com o texto de Montesquieu, que abre o livro 29 do

Espírito das Leis dizendo que As formalidades da Justiça são essenciais para a

liberdade,

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

O mito da neutralidade cientifica, 2. ed., Rio de Janeiro, Imago Editora, 1 98 1 ;

Rubem Alves, Filosofia da Ciência — introdução ao jogo e suas regras, 17. ed., São

Paulo, Brasiliense; Marilena Chauí, Cultura e Democracia (o discurso competente e

outras falas), 3. ed., São Paulo, Moderna, 1982, e Convite à Filosofia, 2. ed., São

Paulo, Atica, 1995, p. 252-262 e 278-285; Regina Lúcia de Moraes Morel, A

pesquisa científica e seus condicionamentos sociais, Rio de Janeiro, Achiamé, 1979;

István Meszáros, Filosofia, Ideologia e Ciência Social: ensaios de negação e

afirmação, São Paulo, Ensaio, 1993; Alvin Gouldner, De los ideólogos a los

tecnólogos, in La dialetica de la ideologia y la tecnologia, Madrid, Alianza, 1978;

Maria José Faria Coracini, Um fazer persuasivo: o discurso subjetivo da ciência,

PontesfEduc, 1991; Pedro Demo, Introdução à Metodologia da Ciência, São Paulo,

Atlas, 1 994; Carlos Lungarzo, O que é ciência, São Paulo, Brasiliense, 1 989, p. 80

a 84 (Coleção Primeiros Passos, 220).

(108) Galeno Lacerda, op. cit., p. 82 a 84. Para uma crítica à recorribilidade das

interlocutórias no Código de Processo Civil atual, que leva ao abuso do direito de

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recorrer, v. J. J. Calmon de Passos, Direito, poder justiça e processo: julgando os

que nos julgam, Rio de Janeiro, Forense, 2000,p. 112.

Fim da nota de rodapé

Página 140

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

esqueceram-se da segunda advertência, contida em outro período, segundo a qual

as formalidades não poderiam ser tantas a ponto de colocar em crise a segurança e

certeza das relações jurídicas. O apego à forma, que lhering tratava por palladium

da liberdade, invadiu o século seguinte, repercutindo no processo judicial brasileiro.

Se esse formalismo bem pode servir a uma racionalidade funcional, voltada às

finalidades sociais da jurisdição, também se presta à chicana e à má-fé processual,

que são a mais egoísta expressão do individualismo.109

É bem de ver que a Reforma de 1994 e 1995, seguindo, neste particular, a

orientação das alterações introduzidas pela Lei 6.771, de 27 de março de 1980,

tratou de sublinhar a concepção social do processo, que tem em conta um modelo

de justiça distributiva. O paradigma do individualismo liberal-burguês, que se inspira

no modelo da justiça comutativa, preso a uma noção idealista de verdade, que não

se confronta com as práticas sociais, foi aos poucos cedendo espaço para um

significado mais compreensivo da realidade social.° Esta orientação se faz sentir no

realismo da civil-law com seus diversos matizes, a exemplo do realismo Linguístico

de Perelman, da pragmática deviehweg e do culturalismo de Recaséns Siches,

Cóssio e Miguel Reale. O processo, como instrumento de

Início da nota de rodapé

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(109) Idem, p. 84.

(110) Acerca da distinção entrejustiça comutativa ejustiça distributiva, v. Ética

Nicomaquea, Livro V, cap. 2 e ss., in Aristóteles-Obras, Madrid, Aguilar S.A de

Ediciones, 1967, p. 1226-1239; J.J Calmon de Passos, processualista de formação

chiovendiana, criticando o apego da dogmática processual civil a fórmulas

engessadas, que se definiram no início do século XX, no contexto da incipiente

sociedade de massas, chama a atenção para o surgimento de uma nova

racionalidade. Citando Habermas e Foucault, dentre outros filósofos

contemporâneos, sustenta que o Direito está situado no universo do discurso e da

ação. Somente existe como discurso e comunicação, Iinguagem, processo, fazer,

operar... (Direito, poder justiça e processo: julgando os que nos julgam, Revista

Forense, 2000, p. 7 a 25; 41-52 e 67-80). A análise pragmática do discurso jurídico

inaugura-se, no Brasil, no início dos anos 70, com a obra de Tercio Sampaio Ferraz

Jr. (Direito, Retórica e Comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso

jurídico, São Paulo, Sarai- va, 1973).

Fim da nota de rodapé

Página 141

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

composição dos conflitos, terá de realizar, a um só tempo, a pacificação social e

ajustiça. Longe do valor mágico da palavra, do simbolismo da forma, o processo

desenvolve-se no terreno da discussão, do debate e da controvérsia, que encontram

limite na regra, posta por convenção. Daí porque a verdade é sempre um construído,

parcial, relativa e limitada à perspectiva das partes.

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A epistemologia de Michel Foucault, que mostra como o pensamento se forma a

partir de uma prática do discurso e de uma prática social, permite entender, a partir

da tensão entre prova e inquérito, como tais práticas engendram novos conceitos e

novas técnicas, o que interfere com o sujeito e com o objeto do conhecimento.

Dentre as novas formas de subjetividade, a praxis judiciária — na linha de análise do

filósofo francês — está entre as mais importantes. O inquérito (enquête), na forma

como foi praticado a partir do século XII, difundiu-se, após o Renascimento, em

muitos domínios do saber. Trata-se de um instrumento de recuperação dos fatos,

sempre fugidios na memória, que tem base no testemunho, diferente da prova.

Com efeito, a verdade, como aparece em Édipo, é o resultado da reunião, do

encaixe, da imbricação de testemunhos diversos e fragmentários. Na obra de

Sófocles, o testemunho de Jocasta e dos escravos, somado às lembranças de

Edipo, é capaz de trazer a verdade não mais em termos de predição ou de

prescrição profética, a exemplo daquela apresentada pelo deus Apolo, mas como

reconstituição de uma história. O processo, na democracia grega, nada mais é do

que a apropriação da verdade pelo povo, que passa a ter o direito de testemunhar.

Não obstante, o método grego do inquérito não chegou à fundação de um

conhecimento racional. Com a invasão

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(111) Esta análise foi desenvolvida por Michel Foucault, num ciclo de palestras

promovido em maio de 1 973 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro. As reflexões do filósofo francês, que serviram como exercício para a

elaboração de Vigiar e Punir, obra editada dois anos depois, foram inicialmente

publicadas nos Cadernos da PUC e depois reunidas em único volume (A verdade e

as formas jurídicas, Rio de Janeiro, Nau Editora, 1 996). As idéias que seguem estão

expostas nas páginas 8, 1 1, 74,75 e 88 desse Iivro.

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Página 142

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

dos povos bárbaros, obscureceu-se, ressurgindo depois, com grande vigor, na AIta

Idade Média.

No período do velho direito germânico os Iitígios, tal qual sucedia no direito grego

arcaico, eram regulamentados pelo jogo da prova.112 A ação, entre os germanos,

não era pública.113 Tratava-se de um duelo, de uma oposição entre indivíduos,

famílias ou grupos. Destarte, a noção de justiça e paz, que se encontra entre os

processualistas modernos, era estranha àquela forma judiciária. No lugar dela, o

processo era uma espécie de ritualização da luta, uma extensão dela, uma

regulamentação dos gestos de vingança. Não havia aqui uma preocupação com a

verdade. Entre os séculos V e X, o direito romano começa a se revitalizar. Sobre as

ruínas do Império Romano, surge o Império Carolíngeo. Entretanto, o direito feudal

ainda é essencialmente de tipo germânico. Subsistem as formas judiciárias arcaicas,

o jogo da prova, o juízo das ordálias, o juramento, que assumia duas configurações,

a mítico-religiosa e a social. Na primeira delas, tal como sucedia na Ilíada de

Homero, pedia-se ao acusado que prestasse um juramento e, caso não ousasse ou

he- sitasse, perdia o processo.4 Na segunda, pessoas vinham ajuízo para jurar que

o acusado não praticara a conduta que lhe era atribuí- da. A despeito de não terem

assistido aos fatos, vinham para dizer da idoneidade do acusado, palavra que

poderia pesar ou não, na dependência da importância social, da influência da

pessoa que tes- temunhava sob juramento.5 Havia também provas do tipo verbal,

Início da nota de rodapé

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(112) Neste sentido também a exposição feita por Giuseppe Chiovenda (lnstituições

de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva, I965,p. I34ess).

(113) Exceção feita aos casos em que a pessoa era acusada de traição ou de

homossexualismo (cf. Foucault, op. cit., p. 56).

(114) A propósito, v. Piero Calamandrei, para quem o juramento implica um exame

preliminar de credibilidade, uma espécie de seleção prévia, com a qual se cerravam

as portas do processo para a lide temerária. Este juízo de verossimilhança encontra,

no processo moderno, outras formas de atuação (Derecho Procesal Civil, vol. 111,

Buenos Aires, Ediciones Juridicas Europa-America, 1973, p. 341 e 342).

(115) Foucault, op. cit., p. 58 e 59.

Fim da nota de rodapé

Página 143

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

baseadas em fórmulas, em um jogo de palavras que, se pronuncia- das

corretamente, funcionavam como indicativo de inocência.

Vê-se, assim, que nesse jogo binário (culpado ou inocente) era a sorte, a destreza, o

vigor, a resistência física ou a agilidade intelectual que decidiam o processo. Não

havia propriamente a figura do julgador, pois estes mecanismos desenvolviam-se

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automaticamente. A noção de processo, como persecução da verdade, surge

apenas — como já se adiantou — no final do séc. XII e no transcorrer do séc. XIII.

As repercussões, no campo científico, dessa nova forma de investigação judicial

refletem a importância do Renascimento, como movimento de retomada dos valores

da cultura greco-romana. Porém, o inquérito dos fins da Idade Média tem traços que

o di- ferenciam da forma que se encontra em Édipo. Subsiste na prática judiciária da

Idade Média a monopolização do processo, como instrumento dos poderosos, tal

qual ocorria no período bárbaro. Entra em cena, então, a figura do procurador do

Rei, que se impõe como poder político e como poder judiciário.

Essa nova figura interfere na forma de solução dos litígios. Surge a sentença, que

tem base no flagrante delito ou na inquisitio. E que, quando a apuração do fato se

dava tempos depois, era preciso reconstituir as coisas. E isto se fazia reunindo

pessoas (sob juramento de dizer a verdade) que tinham visto o fato ou que sabiam

por ouvir dizer. Era através de perguntas, Ionge do espectro da violência, da pressão

ou da tortura, que se buscava a verdade.6 Esse sistema racional de cognição é fruto

de toda uma transformação política, que se reflete em outras instâncias do

conhecimento, a exemplo da Geografia, da Astrologia, da Medicina, da Botânica e

da Zoologia. Dele se valeram ciências novas, tais como a Economia e a Estatística,

entre os séculos XVII e XVIII. Todo o grande movimento cultural que começa a

preparar o Renascimento, a partir do século XI, pode ser definido, em parte, como

desenvolvimento do inquérito, forma geral de saber. Significativa, neste

Início da nota de rodapé

(116) Segundo Foucault, a origem da inquisitio, do saber por inquérito, remonta às

chamadas visitas eclesiásticas que se faziam nas paróquias, dioceses e

comunidades (op. cit., p. 71).

Fim da nota de rodapé

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Página 144

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

sentido, a substituição da Alquimia, baseada no modelo da prova (afrontamento de

forças do bem e do mal) pelas modernas ciências, que buscam a verdade.117 Note-

se que mesmo as formas de tortura, que subsistem até o chamado Período

Humanitário do Direito, do qual Beccaria foi o grande expoente, têm uma

preocupação com a confissão, com a busca da verdade.

A partir deste ponto, Foucault desenvolve reflexões sobre as formas de vigilância e

controle social, estranhas ao campo temático que se pretende aqui desenvolver.

Importa considerar, todavia, a orientação do texto do filósofo francês, que se move

no terreno do discurso e da ação. Discurso não mais como busca da verdade, mas

como exercício do poder. Como diz Foucault, a grande oposição entre o retórico e o

filósofo, como se colhe na tradição platônica, está no desprezo que o filósofo, o

homem da verdade, o homem do saber, sempre teve por aquele que não passava

de orador, o retórico, o homem de discurso, de opinião, aquele que procura efeitos,

aquele que procura conseguir vitórias.118 Se para os sofistas falar, discutir, é

procurar a vitória a qualquer preço, mesmo ao preço das mais grosseiras astúcias, é

porque, para eles, a prática do discurso não é dissociável do exercício do poder.119

Trata-se agora de saber como a dogmática processual constrói o conceito normativo

de verdade. Em que pesem as estreitas relações estabelecidas, no curso de toda a

história do pensamento ocidental, entre a filosofia e a teoria geral do direito, é certo,

como diz Foucault, que o filósofo sempre foi muito refratário à consideração

Início da nota de rodapé

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(117) A disputatio, método marcante da filosofia escolástica, consistente na

apresentação de uma tese que deveria ser refutada ou defendida na base de

argumentos retirados da Bíblia, de Aristóteies, de Platão ou de padres da Igreja

Católica, segue o esquema geral da prova, segundo o entendimento de Foucault, no

que vai se confrontar com o saber enciclopédico do Renascimento, do tipo de Pico

de Mirandola. Não se trata mais de utilizar os autores como autoridade, mas como

testemunho; não interessa citá-los, mas sim tê-los lido, alcançando-Ihes o espírito e

o sentido (op. cit., p. 77).

(118) Idem, p. 142.

(119) Idem, p. 140.

Fim da nota de rodapé

Página 145

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

da prática do direito, das formasjudiciárias.120 A estas observações deve-se

acrescentar que, de sua parte, também o estudioso do direito, impressionado por

uma formação legalista, muitas vezes procura manter-se a distância segura do

filósofo, isto para não ver abalada sua crença numa suposta verdade objetiva da

ciência do direito.121

Início da nota de rodapé

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(120) Idem, p. 142.

(121) o pandectismo, levando às últimas consequências a formalização do

historicismo da Ciência do Direito, acabou por identificar a dogmática jurídica como

teoria do direito vigente. Esta teoria vale-se de algumas regras cuja operação, à

vista do rigor técnico, somente se presta aos iniciados. A primeira regra do jogo

dogmático é a aceitação acrítica do ordenamento vigente. O pressuposto teórico

desta aceitação é a crença num princípio de autoridade. Isto conduz a uma segunda

regra, da qual advêm importantes consequências, qual seja, a crença na

racionalidade do legislador. Em nome desta premissa, o estudioso do direito

abandona a simples descrição do ordenamento e passa a justificar o ponto de

partida dogmático. Como atributos desta racionalidade é possível citar a

singularidade do legislador a sua imortalidade, consciência, onisciência, coerência,

onicompreensão, economia, operatividade e precisão. Imortalidade no sentido de

que as leis continuam válidas mesmo que os legisladores, responsáveis por sua

edição, tenham morrido há muito tempo; singularidade como expressão do fato de

que, apesar de muitas normas serem sancionadas por órgãos colegiados, formados

por uma pluralidade de pessoas, são elas havidas como emanação de uma única

vontade; consciência no sentido de que o legislador racional tem conhecimento de

todas as normas que edita, ainda que, em realidade, isto seja impossível;

onisciência e onipotência para indicar que o legislador conhece todas as

circunstâncias fáticas abarcadas pela lei. A sua vontade, manifestada na edição da

norma, permanece vigente indefinidamente, a menos que o próprio Iegislador

estabeleça um Iimite; coerência na medida em que sua vontade não pode se

contradizer por si própria; onicompreensão no sentido de que nenhuma situação

jurídica deixa de ser regulada; economia como indicativo da ausência de

redundância entre normas; operativídade numa clara referência ao fato de que as

normas expressas pelo legislador são sempre auto-aplicáveis; e, por fim, precisão,

para indicar que a vontade do Iegislador tem uma direção unívoca, expurgada de

imperfeições linguísticas. Em função destes atributos, surgem algumas

consequências de ordem hermenêutica, que serão aqui apenas enunciadas: a) o

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ordenamento jurídico não tem contradições, lacunas ou equívocos; b) o

ordenamento jurídico é operativo,

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

2.4 A verdade no senso comum dos processualistas

Segundo João Mendes Jr., para fazer justiça é preciso aplicar a lei ao fato. A

verdade do fato e o conhecimento da lei são, pois, os elementos primordiais da

administração da Justiça.22 O Código de Processo Civil faz menção à verdade em

diversos de seus dispositivos. Além daqueles já vistos por ocasião do exame das

dificuldades do subjetivismo psicológico, poderiam ser citados os artigos 129, 1 3 1,

273, caput, 282, VI, 302 e incisos, 3 19, 320 e incisos, 332, 334, IV, 339, 343, § 1.°,

348, 357, 359 e incisos, 368 e parágrafo único, 372 e parágrafo único, 404 e inciso I,

415, 469, 485, 111, e 672, § 3•0•123

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

dinâmico e finalista. À vista de tais circunstâncias, o jurista dogmático opera uma

ciência consistente na descrição objetiva das normas jurídicas. A dogmática tem-no,

pois, como transmissor de um corpo de regras onde não é dado inovar; a lei é a

fonte última do direito, pelo que tudo deve se subsumir a ela. Assim, a tarefa do

jurista, na apreensão do significado da Iei, deve limitar-se a um processo lógico-

formal; nem à jurisprudência nem aos juristas se reconhece uma função criadora do

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direito; o aplicador da norma é, como consequência do princípio da racionalidade do

legislador, politicamente neutro, não expressando as suas opiniões pessoais, no ato

de decidir (Carlos Santiago Nino, Consideraciones sobre Ia Dogmática Jurídica —

com referência particular a la dogmática penal, México, UNAM — Instituto de

lnvestigaciones Jurídicas, 1 974, p. 86 e 87). A respeito das regras do jogo

dogmático, ver também Alberto Calsamiglia, Sobre Ia dogmática jurídica:

presupuestos y funciones del saber jurídico, in Anales de la Cátedra Francisco

Suarez, ed. 22-23, Granada, Universidade de Granada, Departamento de Filosofía,

1983.

(122) João Mendes de Almeida Jr., Direito Judiciário Brasileiro, 4. ed., Rio de

Janeiro, Livraria Editora Freitas Bastos, 1954, p. 155.

(123) Artigo 129. Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e

réu se serviram do processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por

Iei, o juiz proferirá sentença que obste aos objetivos das partes; Artigo 131. O juiz

apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos

autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os

motivos que lhe for- maram o convencimento; Artigo 273. O juiz poderá, a

requerimento da parte, antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela

pretendida no pedido inicial, desde que, existindo prova inequívoca, se convença

Fim da nota de rodapé

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

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O Código de Processo Penal também se ocupa da questão da verdade, em diversas

passagens (artigos 66,147, 148, 186 e parágrafo

Início da nota de rodapé

da verossimilhança da alegação; Artigo 282. A petição inicial indicará: inciso VI — as

provas com que o autor pretender demonstrar a verdade dos fatos alegados; Artigo

302. Cabe também ao réu manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na

petição inicial. Presumem-se verdadeiros os fatos não impugnados, salvo: inciso I —

se não for admissível, a seu respeito, a confissão; inciso 11 — se a petição inicial

não estiver acompanhada do instrumento público que a Iei considerar da substância

do ato; inciso 111 — se estiverem em contradição com a defesa, considerada em

seu conjunto. Parágrafo único. Esta regra, quanto ao ônus da impugnação

especificada dos fatos, não se aplica ao advogado dativo, ao curador especial e ao

órgão do Ministério Público; Artigo 319. Se o réu não contestar a ação, reputar-se-ão

verdadeiros os fatos afirmados pelo autor (no mesmo sentido, art. 803). Artigo 320.

A revelia não induz, contudo, o efeito mencionado no artigo antecedente: inciso I —

se, havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação; inciso 11 — se o

Iitígio versar sobre direitos indisponíveis; inciso 111 — se a petição inicial não estiver

acompanhada do instrumento público, que a Iei considere indispensável à prova do

ato; Artigo 332. Todos 05 meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda

que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos,

em que se funda a ação ou a defesa; Artigo 334. Não dependem de prova os fatos:

inciso IV — em cujo favor milita presunção de veracidade; Artigo 339. Ninguém se

exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobri- mento da

verdade; Artigo 342. O juiz pode, de ofício, em qualquer estado do processo,

determinar o comparecimento pessoal das partes, a fim de interrogá-las sobre os

fatos da causa (no mesmo sentido, art. 599, I); Artigo 343. Quando o juiz não o

determinar de ofício, compete a cada parte requerer o depoimento pessoal da outra,

a fim de interrogá-la na audiência de instrução e julgamento. § 1 .° A parte será

intimada pessoalmente, constando do mandado que se presumirão confessados os

fatos contra ela afirmados, caso não compareça ou, comparecendo, se recuse a

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depor; Artigo 357. O requerido dará sua resposta nos cinco dias subsequentes à sua

intimação. Se afirmar que não possui o documento ou a coisa, o juiz permitirá que o

requerente prove, por qualquer meio, que a declaração não corresponde à verdade;

Artigo 359. Ao decidir o pedido, o iuiz admitirá como verdadeiros os fatos que, por

meio do documento ou da coisa, a parte pretendia provar: inciso I — se o requerido

não efetuar a exibição, nem fizer qualquer declaração no prazo do

Fim da nota de rodapé

Página 148

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

único, 187, § 2.0,I,203,206,211,386,I,523,593,IIJ,alíflead, 621, I e JJ).124 Nestas

referências não estão incluídos os dispositivos que

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

artigo 357; inciso 11 — se a recusa for havida por ilegítima; Artigo 368. As

declarações constantes do documento particular, escrito e assinado, ou somente

assinado, presumem-se verdadeiras em relação ao signatário. Parágrafo único.

Quando, todavia, contiver declaração de ciência, relativa a determinado fato, o

documento particular prova a declaração, mas não o fato declarado, competindo ao

interessado em sua veracidade o ônus de provar o fato; Artigo 372. Compete à

parte, contra quem foi produzido documento particular, alegar, no prazo estabelecido

no art. 390, se lhe admite ou não a autenticidade da assinatura e a veracidade do

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contexto; presumindo-se, com o silêncio, que o tem por verdadeiro. Parágrafo único.

Cessa, todavia, a eficácia da admissão, expressa ou tácita, se o documento houver

sido admitido por erro, dolo ou coação. Artigo 404. E lícito à parte inocente provar

com testemunhas: inciso I — nos contratos simulados, a divergência entre a vontade

real e a vontade declarada; Artigo 415. Ao início da inquirição, a testemunha

prestará o compromisso de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado (vide

exceções no artigo 405 e parágrafos); Artigo 469. Não fazem coisa julgada: inciso 11

— a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença. Artigo 485. A

sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: inciso 111

— resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da vencida, ou de colusão

entre as partes, a fim de fraudar a lei. Artigo 672. A penhora de crédito, representada

por letra de câmbio, nota promissória, duplicata, cheque ou outros títulos, far-se-á

pela apreensão do documento, esteja ou não em poder do devedor. § 3.° Se o

terceiro negar o débito em conluio com o devedor, a quitação, se este lhe der,

considerar-se-á em fraude de execução.

(124) Artigo 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil

poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a

inexistência material do fato; Artigo 147. O juiz poderá, de ofício, proceder à

verificação da falsidade; Artigo 148. Qualquer que seja a decisão, não fará coisa

julgada em prejuízo de ulterior processo penal ou civil; Artigo 186. Depois de

devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será

informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer

calado e de não responder perguntas que Ihe forem formuladas. Parágrafo único. O

silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo

da defesa (observe-se que o artigo 5.°, inciso LXIII, da Constituição Federal de

1 .988 garante ao réu o direito de permanecer calado);

Fim da nota de rodapé

Página 149

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

disciplinam a autenticidade material dos documentos, questão alheia ao campo de

investigação do presente trabalho.

A relação entre as noções de justiça e verdade, que já se encontra nas civilizações

antigas, tem importantes repercussões no campo processual, como visto com Michel

Foucault, na seção anterior.25 A finalidade das práticas judiciárias era a descoberta

da verdade. Disto não difere o processo da Idade Moderna, como afirmam Kant 126

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Artigo 187. O interrogatório será constituído de duas partes: sobre a pessoa do

acusado e sobre os fatos. § 2.° Na segunda parte será perguntado sobre: I- ser

verdadeira a acusação que lhe é feita; Artigo 203. A testemunha fará, sob palavra de

honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado, ...

explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa

avaliar-se de sua credibilidade; Artigo 206. A testemunha não poderá eximir-se da

obrigação de depor. Poderão, entretanto, recusar-se a fazê-lo o ascendente ou

descendente, o afim em Iinha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai,

a mãe, ou o filho adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro

modo, obter-se ou integrar-se a prova do fato e de suas circunstâncias; Art. 211. Se

o juiz, ao pronunciar sentença final, reconhecer que alguma testemunha fez

afirmação falsa, calou ou negou a verdade, remeterá cópia do depoimento à

autoridade policial para a instauração de inquérito; Artigo 386. O juiz absolverá o

réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: inciso I —

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estar provada a inexistência do fato; Artigo 523. Quando for oferecida a exceção da

verdade ou da notoriedade do fato imputado, o querelado poderá contestar a

exceção no prazo de dois dias, podendo ser inquiridas as testemunhas arroladas na

queixa, ou outras indicadas naquele prazo, em substituição às primeiras, ou para

completar o máximo legal; Artigo 593. Caberá apelação, no prazo de cinco dias:

inciso 111 — das decisões do tribunal do júri, quando: alínea d: for a decisão dos

jurados manifestamente contrária à prova dos autos; Artigo 621. A revisão dos

processos findos será admitida: inciso I — quando a sentença condenatória for

contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; inciso 11 —

quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou

documentos comprovadamente falsos.

(125) A propósito da influência da noção de verdade no processo civil grego e no

processo civil romano, ver, igualmente, Kaethe Grossmann, op. cit., p. 379-281.

(126) Kant, Metaphysische Anfangsgruende der Rechtslehre, in Obras de Kant, t.

111, § 40, Knaur Nachf, apud Kaethe Grossmann, op. cit., p. 287.

Fim da nota de rodapé

Página 150

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

e Kohler.127 É certo que o processo tem por objetivo a manutenção da paz legal.

Mas isto só pode ser garantido quando o Estado-jurisdição fortalece a confiança dos

jurisdicionados na vitória da causa. o Judiciário, portanto, deve ter em conta não só

a necessidade de colocar fim ao litígio, mas também a necessidade de uma solução

justa,128 que depende do descobrimento da verdade.129

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Como reconhece Kaethe Grossmann, os códigos, via de regra, não incluem, dentre

as finalidades do processo, a persecução da verdade.3° Todavia, não há como

negar que, em numerosos institutos processuais, a preocupação com a verdade

surge na própria letra da regra legal, a confirmar que a racionalidade do processo

moderno está impregnada dessa noção. E o que se pode ver — diz a au- tora — na

possibilidade de o juiz determinar produção de provas de ofício (art. 130 do CPC),

na importância atribuída pelo legislador ao interrogatório das partes (artigo 342 do

CPC) e ao depoimento pessoal (artigo 343 e parágrafos do CPC). Observe-se,

ainda, que a testemunha depõe sob compromisso (arts. 415 do CPC e 203 do CPP)

e que todo o sistema de prova está orientado ao conhecimento da verdade dos fatos

(arts. 282, VI, e 332, ambos do CPC). A preocupação com a verdade também se

reflete na possibilidade de recurso fundado em error injudicando, a exemplo das

hipóteses de julgamento manifestamente contrário à prova dos autos (art. 593, 111,

d, do CPP). Aliás, trata-se de curiosa situação em que a sentença é anulada não por

error in procedendo (como se passa ordinariamente), mas por erro no exame do

mérito.131

Início da nota de rodapé

(127) Kohler, Lehrbuch der Rechtsphilosophie, 3. ed, 1923, § 164, 1, p. 245, apud

Kaethe Grossmann, op. cit., p. 287.

(128) Esta — como visto — também é a posição de Chiovenda (Instituições de

Direito Processual Civil, vol. 1, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 37-46).

(129) Segundo Jorge A. Clariá Olmedo, todo processo judicial persegue como

finalidade específica imediata a fixação dos fatos fundamentais das pretensões das

partes, mediante a busca e aquisição da verdade (Derecho Procesal, vol. 2, Buenos

Aires, Ediciones Depalma, 1983, p. 48).

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(130) Kaethe Grossmann, op. cit., p. 287.

(131) O exame partiu das elaborações da jurista alemã (op. cit., p. 287-289), mas a

referência à legislação brasileira, como exemplo das categorias

Fim da nota de rodapé

Página 151

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Há, nas mencionadas disposições legais, uma preocupação com a racionalidade do

jogo processual, com a garantia da solução da disputa, sem que a qualquer das

partes, com o seu silêncio, por exemplo, seja dado decidir sobre a sorte do

processo. Ao mesmo tempo, revela-se também um senso comum de justiça,

orientado pela expectativa da descoberta da verdade e do direito que nela se funda

(artigo 339 do CPC). A presunção que decorre da revelia, por exemplo (arts. 302 e 3

19 do CPC), inspira-se numa regra de prudência segundo a qual quem cala não

necessariamente admite, mas pelo menos não nega.32 Este é o espírito prudencial

que orienta também as regras relativas ao interrogatório das partes (art. 342 e 599, I,

do CPC), ao depoimento pessoal (art. 343, § 1.0 e 2.°, do CPC), sujeito ao ônus da

confissão (art. 348 do CPC)33 e a todos os casos de presunção Iegal de veracidade

(art. 334, IV, do CPC), na base do silêncio ou da omissão da parte (arts. 357, 359, I,

e 372, do CPC).

Essa tensão dialética entre a verdade como ideal de justiça e a verdade como

imperativo de ordem prática (necessidade de colocar termo à disputa judicial,

evitando que a parte, com sua omissão, impeça a prestação jurisdicional) sugere, à

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primeira vista, uma cor- respondente distinção entre verdade material e verdade

formal. Entretanto, como reconhecem os modernos processualistas, o problema da

prova, no direito processual civil, não se apresenta sob o prisma teórico de

indagação exaustiva da verdade, colocando-se como problema prático, conducente

a se conseguir o que, dentro da teoria da prova, seja definido e havido juridicamente

como verdade...

processuais mencionadas por Kaethe Grossmann, foi feita apenas para que se

pudesse melhor avaliar a pertinência das suas considerações naquilo que diz

respeito ao senso comum teórico dos processualistas.

Início da nota de rodapé

(132) Qui tacet non utiquefatetur sed tamen verum est non negare (Paulo, D. reg.

iuris, XVII, L. 1 42, apud Roberto Rosas, Abuso de direito e dano processual, in

Revista Brasileira de Direito Processual, Uberaba, 3.° trimestre de 1983, vol. 39, p.

126).

(133) A propósito do instituto da confissão, v. o ensaio de Moacyr Lobo da Costa,

Confissão e Reconhecimento do Pedido, in Separata da Revista da Faculdade de

Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, Ano LXII, fasc. 11, p.l67-212.

Fim da nota de rodapé

Página 152

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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A inteligência, quando não comprometida com interesses ou apetites, tende sempre

a considerar a verdade como um fim em si. No entanto, não é esta a posição que

sempre convém ao direito processual, que é, antes de tudo, uma ciência

eminentemente prática.134 Admite-se que a ordem jurídica procura a solução dos

conflitos dentro da justiça e da verdade. Mas, pelas contingências da falibilidade

humana, é possível que a solução judicial não corresponda, na realidade, nem à

justiça e nem à verdade... A sentença injusta é uma fatalidade na vida processual,

mas que, mesmo assim, surte efeitos, não permitindo nem mesmo a ação rescisória,

que é restrita à sentença ilegal.135

Início da nota de rodapé

(134) Arruda Alvim, Curso de Direito Processual Civil, vol. 2, RT, São Paulo, 1972, p.

205; no mesmo sentido, Carlo Furno, Teoria de la Prueba Legal, I 954, p. 42 (Série B

— Monografias de Derecho Privado y Publico, Madrid Editorial Revista de Derecho

Privado), apud Gian Antonio Micheli, La carga de Ia prueba, Buenos Aires, 1 96 1

(Colección Ciencia del Proceso, p. 39), nota 50, p. l 93. Quanto ao caráter prático da

ciência jurídica, v. Theodor Viehweg, Tópica y filosofia del derecho, Barcelona,

Gedisa, 1 997, Colección Estudios Alemanes, pfll -85, e Rodolfo Sohm, op. cit., p. 13

e 14; Cândido Rangel Dinamarco, citando Calamandrei (Veritá e verosimiglianza nel

processo civile, in Rivista di Diritto Pro- cessuale, ed. 3, p. 1 67), observa que o

processualista moderno sabe que a verdade não constitui escopo processual... O

processualista moderno sabe também que a coisa julgada... não se define como

ficção ou presunção da verdade, mas somente cria a irrevocabilidade jurídica do

comando, sem se preocupar em estabelecer se as premissas psicológicas das quais

esse comando nasceu são premissas de verdade ou de verossimilhança (Cândido

R. Dinamarco, A instrumentalidade doprocesso, 2. ed., São Paulo, 1 990, p. 326 e

327). Igualmente, sustenta Tercio Sampaio Ferraz Jr. que a decidibilidade dos

conflitos é o problema cen- tral da ciência dogmática do direito (Introdução ao

Estudo do Direito — Técnica, Decisão, Dominação, São Paulo, Atlas, 1988, p. 88-91;

A ciência do Direito, São Paulo, Atlas, 1980, p. 42-47; Prefácio à tradução brasileira

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da obra de Theodor Viehweg, Tópica e jurisprudência, Brasília, Ministério da

Justiça, 1 979 (Coleção Pensamento Jurídico Contemporôneo);

(135) Celso Agrícola Barbi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. l, Rio de

Janeiro, Forense, 1 973, p.174 e 1 75. Como registra João Carlos Pestana de

Aguiar, citando Carnelutti (La Prueba Civil, Buenos Aires,

Fim da nota de rodapé

Página 153

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Com efeito, o instituto da coisa julgada não interfere necessariamente com a

questão da verdade fática, a despeito daquilo que consta do art. 485, incisos III, VI,

VII e IX, do Código de Processo Civil e do artigo 62 1, I, 11 e 111, primeira parte, do

Código de Processo Penal.136 E que o exercício da ação rescisória está

condicionado

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

1955, p. 25), quando a busca da verdade material está limitada de tal modo que esta

não possa ser conhecida em todo caso e com qualquer meio, o resultado, seja mais

ou menos rigoroso o limite, é sempre o de que não se trata já de uma busca da

verdade material, senão de um processo de fixação formal dos fatos (João Carlos

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Pestana de Aguiar, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 4, São Paulo, RT,

1974, p. 51).

(136) A propósito, assim escreve Chiovenda: Nem sempre são verdadeiros os fatos

que o juiz reputa como tais. A convicção do juiz pode ser efeito de erro, dolo, provas

insuficientes; por vezes, a lei pode, sem mais, prescrever ao juiz que considere

como existentes determinados fatos (fatos não contestados, confessados, jurados),

dispensando-o de pesquisar se são verdadeiros. Nem só: no interesse da paz social,

a lei traça limites à pesquisa da verdade; esgotadas algumas reclamações ou

decorridos certos termos, a sentença passa em julgado, tornando-se resjudicata, isto

é, o bem reconhecido ou negado pela sentença se torna indiscutível, não obstante

erro de fato e de direito que viciaram o raciocínio do juiz (Instituições de Direito

Processual Civil, 2. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva, 1 965, p. 43). Como adverte

Wilson de Souza Campos Batalha, o erro dos que defendem o princípio da coisa

julgada com as teorias deficção da verdade ou presunção de verdade, a exemplo de

Ugo Rocco (Corso di Teoria e Pratica Del Processo Civile, vol. 1, 1 95 1, p.573 e

ss.), está em que a norma individualizada, como toda norma jurídica, não é

verdadeira ou falsa, mas é válida ou inválida. Inclusive os juízos referi- dos a fatos e

que, portanto, são suscetíveis de ser — sob o ponto de vista da teoria do

conhecimento — falsos ou verdadeiros, adverte Maynez (Lógica del Juício, p. 138)

adquirem outra significação quando declaram legalmente provados tais fatos, o que

permite predicar de tais iuízos a validade ou invalidade em sentido normativo. Assim,

a coisa julgada não se estriba numa suposta presunção de verdade, mas na pura e

simples validade da sentença, escoadas que sejam todas as possibilidades de sua

reforma (Introdução ao Direito — Filosofia, História e Ciência do Direito, vol. 1, São

Paulo, RT, 1967, p. 276 e 277). Neste sentido também é a lição de Jorge A. Clariá

Olmedo (op. cit., p.152e 153). Daí porque sem razão aqueles que comparam o

trabalho do juiz à missão do historiador, a exemplo de Antônio Dellepiane (Nova

Teoria

Fim da nota de rodapé

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Página 154

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

à inexistência de controvérsia ou de pronunciamento judicial acerca do fato (art. 485,

§ 2.°, do CPC). Além disto, a ação sujeita-se a prazo decadencial (art. 495). Quanto

ao processo crime, embora o reexame do caso julgado não esteja sujeito a prazo,

certo é que se mostra inconcebível, de acordo com a jurisprudência, revisão de

revisão.37 Também não se cogita da ação revisional (ou recurso, segundo alguns)

quando a prova do fato já tiver sido analisada, limitando-se o pedido a novo exame

da interpretação do fato.138 Algumas Iegislações admitem a revisão de sentenças

absolutórias. No Brasil, entretanto, é vedada a revisão pro societate, circunstância

que vem em detrimento da persecução da verdade fática, à qual preferem razões de

política criminal.139

Observe-se ainda que a verdade dos fatos, estabelecida como funda- mento da

sentença civil, não faz coisa julgada (art. 469, 11, do CPC).140

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

da Prova, Livraria jacintho, 1 942, p. 24), citado por ArrudaAlvim (Curso de Direito

Processual Civil, vol. 2, São Paulo, RT, 1972, p. 206). A pro- pósito ainda desta

comparação, v. notas 159 e 160. A respeito das implicações — do ponto de vista

interno e externo do sistema jurídico — do caráter constitutivo da sentença, v.

Ricardo A. Guibourg, Derecho, sistema y realidad, Buenos Aires, Astrea, 1986, p.

50-55 e 73-77.

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(137) TJSP, 2.° Grupo de Câmaras Criminais, Rev. 1 09.4 1 3-3/0, Santo André, rel.

Silva Leme, j. 3/2/92, in RT, São Paulo, Ano 82,junho de 1993, vol. 692, p. 249-253.

(138) TACrim/São Paulo, 1.° Grupo de Câmaras Criminais, Rev. 271.150/3, Santo

André, rel. Rulli Jr.,j. 23/3/95, in RT, São Paulo, Ano 84,julho de 1995, vol. 717, p.

401.

(139)Apartam-se aqui as noções de justiça e verdade, a demonstrar o idealismo

contido na máxima de Dellepiane, segundo a qual Toda sentença, para ser tida por

justa, deve sem expressão fiel da verdade... verdade e justiça se confundem nas

sentenças (Antônio Dellepiane, Nova Teoria da Prova, trad. Erico Maciel, Livraria

Jacintho, 1942, p. 42, apud José Luiz Vicente de Azevedo Franceschini, Da atuação

dos juízes penais, de ambas as instâncias, na pesquisa da verdade real, in RT, São

Paulo, Ano 58, novembro de 1969, vol. 409, p. 24).

(140) Embora a sentença, sob o aspecto formal, recorra a um silogismo, que tem em

conta o diálogo entre as partes (Francesco Carnelutti, Diritto e Processo, Morano

Editore, 1958, p. 188), mais propriamente a um

Fim da nota de nota de rodapé

Página 155

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

No campo processual civil, em decorrência do princípio dispositivo, é vedado ao

tribunal, em regra, agravar a situação da parte recorrente quando o recurso for

exclusivamente dela, porque, do contrário, estar- se-ia julgando extrapetita. Trata-se

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de limite objetivo da apelação. No processo penal também é vedada a reformatio

inpejus, ainda que sob fundamento diverso, e isto por razões de política processual

penal.141

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

entimema, onde una das premissas está oculta (ou a um polissilogismo, onde a

conclusão do primeiro silogismo funciona como premissa maior de um segundo

silogismo), certo é que a sua elaboração não se dá, as- sim, de forma tão elementar.

Não se nega a existência do recurso a argumentos dedutivos, como ocorre, por

exemplo, no caso da aplicação das presunções, ou mesmo do recurso aos

argumentos indutivos, a exemplo do que ocorre com o exame da prova indiciária

(quase-silogismo) ou com o emprego da analogia. Entretanto, é necessário

considerar que a redução da sentença a um silogismo (em qualquer de suas formas)

implicaria admitir que as categorias jurídicas estão reduzidas a conceitos analíticos,

o que não procede. Já na escolha da premissa maior, vaie dizer, da rotina aplicável

ao caso concreto, é possível identificar um momento valorativo da sentença. Engisch

diz que na argumentação jurídica não há conclusões puramente cognitivas. A

premissa menor é que define a premissa maior, na base de uma orientação

valorativa. Mas também não bastam, por outro Iado, considerações puramente

emocionais. O juiz somente se sentirá justificado quando sua decisão fundar- se na

lei. A subsunção, todavia, não é simples adequação do conceito concreto ao

conceito abstrato. O silogismo jurídico envolve uma razão prática (Karl Engisch,

Introdução ao Pensamento Jurídico, 7. ed., Lis- boa, Fundação Calouste

Gulbenkian, p. 90 e 91). Kelsen, que reduz o direito à norma, sustenta que à ciência

jurídica não interessa a maneira pela qual o juiz decide. Entretanto, não pode deixar

de reconhecer que a sentença não é um ato de conhecimento (diferentemente do

que ocorre com a atividade do cientista), mas sim um ato de vontade, de querer

(Kelsen, 09.06.1965 — Manuscrito Direito e Lógica, in Kelsen-Klug, Normas jurídicas

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e análise lógica — correspondência 1959-1965, Rio de Janeiro, Forense, 1984, p.

60-84). No mesmo sentido é a lição de Chiovenda: a sentença vale como expressão

de uma vontade do Esta- do, e não por suas premissas lógicas. (lnstituições de

Direito Processual Civil, vol. 1, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1965, p. 44). Estas

questões serão retomadas no último capítulo (seção 5.4).

(141) Mesmo entre aqueles que defendem o maior empenho possível do julgador no

conhecimento da verdade real, admite-se que o limite objetivo da

Fim da nota de rodapé

Página 156

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Vê-se, assim, que não há necessária correspondência entre verdade material e ideal

de justiça. Por outro lado, a verdade formal compreende a noção de justiça como

imperativo de ordem prática, mas não se esgota neste conceito. De acordo com o

senso comum dos processualistas, a verdade material é aquela correspondente ao

que efetivamente ocorre. A verdade formal, por sua vez, é aquela que vale no

processo, retrato mais ou menos perfeito da verdade material.142Francesco

Carnelutti pondera, entretanto, que a finalidade do processo é sempre o

conhecimento do fato; outra é a questão relativa aos meios. Há meios que parecem

mais aptos ao conhecimento da verdade. O resultado contrário à verdade é o custo

do sistema processual, ocorrência que se tolera em atenção aos casos em que a

verdade, na base das mesmas regras processuais, é alcançada. O formalismo é um

guia seguro para os juizes, protegendo-os, na base de determinadas proibições, da

falácia de certas provas.143

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Início da nota de rodapé

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apelação do réu, se, de um lado, não constitui óbice à absolvição, impe- de a

reforma em desfavor daquele que recorre (v. José Luiz Vicente de Azevedo

Franceschini, op. cit., p. 26). Em outras palavras, entende-se que, no campo do

processo penal, não se aplica o princípio tantum devolutum quantum appellatum,

pois aqui se busca a verdade real. Este desprendimento em relação à forma não

chega, entretanto, ao ponto de admitir a reformatio in pejus. Novamente aqui se

apartam as noções de justiça e verdade.

(142) Carlo Furno, Teoría de la Prueba Legal, Revista de Derecho Privado, Madrid, 1

954, p. 1 6, apud Arruda Alvim, Curso de Direito Processual Civil, vol. 11, São Paulo,

RT, 1972, p. 206; o processualista italiano, cuja obra é igualmente citada por Gian

Antonio Micheli (op. cit, p. 193), diz que a verdade processual é uma verdade

suficiente, expressão com a qual pretende indicar que, para a realização da

finalidade do processo, basta um grau de aproximação do fato histórico, que é

substituído pela reconstrução legal. João Carlos Pestana de Aguiar fala em uma

fixa- ção formal dos fatos (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. IV, São

Paulo, RT, 1974, p. 51).

(143) Francesco Camnelutti, Estudios de Derecho Procesal, vol. 11, Buenos Aires,

Ediciones Jurídicas Europa-América, 1952 (Colección Ciencia del Proceso, ed. 20),

p.1 14 e 115. Veja-se que, no direito processual

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Página 157

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Conforme distinção corrente, a verdade formal é perfei- tamente adequada ao

princípio dispositivo. Vale dizer, se é certo que a verdade é premissa necessária da

aplicação dajustiça, cer- to também é que ao demandante, segundo o princípio

dispositi- vo, compete dar ao juiz o conhecimento dos fatos (Da mihi factum, dabo

tibijus).144 Daí porque muitos entendem que não se pode negar à parte,

naturalmente parcial, o direito de apresentar os fatos conforme sua ótica e interesse,

diferentemente do que ocorre quando se aplica o princípio inquisitivo, apropriado ao

tratamento das matérias de ordem pública (questões de estado da pessoa, pátrio

poder, tutela e curatela, declaração de ausên- cia, disposições de última vontade

etc),45 em que se procura a

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

brasileiro, determinadas normas realmente restringem a cogniçãojudi- cial; há uma

certa reserva ou prevenção em desfavor de certos tipos de prova. É o caso da

restrição à prova testemunhal (arts. 400, 11, 40 1, do CPC e art. 1 55 do CPP).

Jorge A. Clariá Olmedo sustenta que a verdade é única. Sua busca estará limitada,

contudo, na dependência da adoção do princípio inquisitivo ou dispositivo (op. cit.,

p.152-157). Santiago Sentis Melendo, citando Montesquieu, diz que as formas são o

preço da liberdade (La prueba — los grandes temas del derecho probatorio, Buenos

Aires, Ediciones Juridicas Europa-America, 1978 Colección Ciencia del Processo,

ed. 65), p. 37. Estas limitações se inscrevem no sistema da apreciação livre e

racional da prova, tendência das legisla- ções contemporâneas (Antonio Dellepiane,

op. cit., p.46 e 46, apud Arruda Alvim, Curso de Direito Processual Civil, vol. 2, São

Paulo, RT, 1972, p. 207).

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(144) Moacyr Amaral Santos, Contra o processo autoritário, in Revista da Faculdade

de Direito, São Paulo, 1959, vol. 54, fasc. 1, p. 226.

(145) Moacyr Amaral Santos, Limites às atividades das partes no processo civil, in

RT, São Paulo, Ano 46, outubro de 1957, vol. 264, p. 23; Leo Rosenberg, op. cit., p.

391 e 392. Na base dessa distinção entre verdade material e verdade formal, às

quais corresponderiam, respectivamente, o princípio inquisitivo e o princípio

dispositivo, houve quem sustentasse que a obtenção da verdade, no processo civil,

é um resultado puramente fortuito (Alberto Domenico Tolomei, iprincipiifondamentali

del Processo Penale, 1931, p. 89 apud José Luiz Vicente de Azevedo Franceschini,

op. cit., p. 24).

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

verdade material.46 Assim, sob este ponto de vista, nos proces- sos regidos pelo

princípio dispositivo não se pode cogitar do deverde completude, ou seja, da

obrigação de apresentar emjuízo fatos francamente desfavoráveis à parte.147

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(146) Salvatore Satta, Direito Processual Civil, 7. ed., vol. 1, Rio de Janeiro, Borsoi,

1 973, p.198 e 199; JorgeA. Clariá Olmedo (op. cit., p. 155-157); Gian Antonio

Micheti, op. cit., p. 265-268; Leo Rosenberg, op. cit., p.386-393. Para esse último

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autor, a distinção que se faz entre verdade material, adequada ao principio

inquisitivo, e verdadeformal, adequa- da ao princípio dispositivo, é só aparente,

porque não há oposição entre estas idéias. Não existe mais do que uma noção de

verdade, como já registrava JorgeA. Clariá Olmedo (op. cit., p.152 e 153). O

princípio dispositivo não é um dogma inviolável, senão o resultado de uma con-

sideração de conveniência. Foi introduzido porque se supôs que a ver- dade será

melhor conhecida na versão das partes do que através de uma investigação judicial

(op. cit., p. 386). Note-se que mesmo no campo do processo penal, houve quem

fizesse a distinção entre sistema acusa- tório, que atribui às partes o monopólio da

escolha e oferecimento dos elementos de convicção, e sistema inquisitório, que

atribui ao juiz papel decisivo na colheita da prova (a propósito, com ampla citação

bibliográ- fica, José Luiz Vicente de Azevedo Franceschini, op. cit., p. 33 e 34). Mas

claro está que a distinção entre princípio dispositivo e verdade for- mal, de um lado,

e princípio inquisitivo e verdade material, de outro, revela sérias dificuldades no

campo do processo penal, mormente quanto ao dever de completude, haja vista que

o réu não está obrigado a dizer a verdade e tem inclusive o direito de calar.

(147) A doutrina, de maneira geral, entende que a parte tem de apresen- tar os fatos

como são, porquanto não existe meia verdade (neste sentido, Kaethe Gmossmann,

op. cit,. p. 287; J. M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol.

1, Rio de Ja- neiro, Livraria Freitas Bastos, 1 940, p. 1 08 e 1 09; José Luiz Vicente

de Azevedo Franceschini, op. cit., p. 26; Pontes de Miranda, repor- tando-se à

doutrina alemã, fala em dever de completude — Pflicht Vollständigkeit (Comentários

ao Código de Processo Civil, 2. ed., tomo I, Rio de Janeiro, Forense, 1 958, p. 41 1).

O CPC de 73, antes da Lei 6.771, de 27.03.80, reputava litigante de má-fé aquele

que omitis- se intencionalmente fatos essenciais aojulgamento da causa (art. 17,

111). Essa regra foi suprimida, pelo que nisto alguns poderiam ver hi- pótese de

revogação implícita.

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Alguns autores, entretanto, procuram conciliar a exigência da verdade, como

condição de justiça, e o princípio dispositivo. Pontes de Miranda, sem descer a

maiores considerações, diz que o dever de veracidade não derrogou, como alguns

pretendem, o princípio dis- positivo. É precisamente a coexistência destes dois

institutos proces- suais que dá ao princípio dispositivo contactuação (sic) que não

existiria se não existisse o dever de verdade.48 Menos hermética, mas também

insuficiente, é a explicação de Moacyr Amaral Santos. Para o processualista de São

Paulo, verdade formal é aquela que se obtém através de um procedimento

condicionado a formas, que não podem ser relegadas. Findo o processo, na ordem

do procedimento prede- terminado pelo código, chega-se à verdade jurídica, contra

a qual seriam inúteis as investidas da verdade material. Bem por isso, maior é a

responsabilidade das partes na produção da verdade formal.149

Essas soluções conciliadoras não esclarecem, todavia, qual o sentido de uma tal

prescrição da verdade num sistema em que o espectro de cognição judicial está

limitado por balizas que não po- dem ser ultrapassadas. A posição de Moacyr

Amaral Santos retira o dever de veracidade do campojurídico para colocá-Io numa

arena moral, ainda que o autor não admita isto. Nesse ponto, procede a crítica de

Chiovenda. O juiz não pode ser considerado como figu- ra passiva, quer na

afirmação dos fatos quer na escolha das pro- vas, ressaibo do processo escrito. Daí

se compreende que, nas leis modernas, vá avultando a reação ao princípio

dispositivo, a favor da iniciativa do juiz.150 O interesse que se discute no processo

civil, pelo só fato de ser eventualmente patrimonial, não autoriza a distinção,

ordinariamente feita em relação ao processo penal,151

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(148) Pontes de Miranda, Comentdrio ao Código de Processo Civil, 2. ed., tomo I,

Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 409.

(159) Moacyr Amaral Santos, Limites às atividades das Partes no Processo Civil, in

RT, Ano 46, outubro de 1957, voi. 264, p.23 e 24.

(170) Giuseppe Chiovenda, instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 2, São

Paulo, Saraiva, 1965, p. 351.

(151) Salvatore Satta chega a afirmar que, contrariamente ao processo penal, em

que o juiz é interessado no acertamento da verdade, para o fim de

Fim da nota de rodapé

Página 160

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

porquanto sobreleva a natureza pública do processo judicial, seja ele qual for.152

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Continuação da nota de rodapé da página anterior

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firmar a inocência ou a culpabilidade do imputado, no processo civil, a prova reflete a

contrariedade existente entre os lancesjurídicos.... Daí a regra fundamental

disciplinadora da chamada distribuição do ônus da prova, a sujeição do juízo ao

alvitre da prova produzida pelas partes ou às confissões expressas ou manifestas,

com a coerente restrição de li- berdade de apreço.... (Direito Processual Civil, 7. ed.,

vol. 1, Rio de Ja- neiro, Borsoi, 1973, p. 198 e 199.

(152) Chiovenda, a respeito, diz que a distinção entre o principio inquisitivo e o

princípio dispositivo é abstrata, porquanto, na prática, nenhum deIes se pode

encontrar aplicado na concepção idealizada. Temperam-se, em proporções

diversas, conforme os tempos e os lugares (Instituições de Direito Processual Civil,

2. ed., vol. 2, São Paulo. Saraiva, 1965, p. 345). Nas notas à tradução brasileira,

elaboradas por Liebmann, este processualista destaca que, malgrado o Código de

39 tivesse adotado o princípio dispositivo, é de destacar-se que aumentou os

poderes dojuiz, no confronto com as atividades e as iniciativas atribuídas às partes,

em conformidade, aliás, com a concepção publicística do processo, que presidiu a

elaboração do Código (idem, notas 8 e 9, pp. 345-347). No mesmo sentido são as

considerações de Eduardo J. Couture (Estudios de Derecho Procesal Civil, tomo 11,

2. ed., Buenos Aires, Depalma, 1 .978, p.245 e 246). Jorge A. Clariá Olmedo

observa que se vem dando, no processo civil moderno, tanto sob o enfoque

doutrinário como legis- Iativo, maior extensão aos poderes dojuiz no que concerne à

produção da prova. Trata-se de imperativo da verdade jurídica, que não pode ser

abertamente destruída em nome do formalismo (op. cit., p. 347). L. Pietro-Castro

Fernandiz, por sua vez, registra que o processualista civil já se convenceu de que

sua disciplina ganha prestígio a medida que vai incorporando muitas das velhas

idéias do processo penal, a exemplo da noção de verdade material, que permite a

ampliação dos poderes do juiz, assegurando a seriedade da sentença civil,

escassamente garantida em um procedimento no qual só a atividade das partes,

egoisticamente interessadas, constitui a base do julgado. (Trabajos y orientaciones

de Derecho Procesal, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1 .983, p. 606 e

607. Como registra Amilcar de Castro, claro está que, se a administração dajustiça é

uma função pública, ojuiz deve estarprovi- do de poderes indispensáveis para bem

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administrá-la, de modo ativo, rápido e seguro, senão com prevalência do princípio

inquisitório, com

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Página 161

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Pode-se verificar, a partir das considerações de MoacyrAmaral Santos, o quanto

impressionaram o processualista de São Paulo as relações entre o processo

inquisitivo (ou autoritário) e os regimes de imposição (autocracia, ditadura e

totalitarismo), o que de certa forma se explica pelo fato de que seus escritos,

relativos a um Códi- go gestado na Ditadura Vargas, são de um período de

redemocrati- zação do Estado brasileiro.53 De qualquer forma, Moacyr Amaral

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Continuação da nota de rodapé da página anterior

atenuação do princípio dispositivo. Entende-se modernamente que ainda quando

seja o litígio um negócio privado, o processo é sempre de interesse eminentemente

público. E sem desrespeito à vontade honesta das partes, pode-se inserir no

processo um mínimo de inquisição (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 8,

São Paulo, RT, 1974, p.lO6 e 107).

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(153) É interessante observar, dentre os autores infensos à teoria do abuso do

direito, que as críticas formuladas geralmente se inscrevem num quadro ideológico

de oposição a ideias. socializantes, que são identificadas com as concepções

totalitárias, o que é mostra da arraigada formação individualista nos nossosjuristas,

pelo menos até metade do séc. xx. A propósito da crítica a este espírito

individualista, ver Pedro Baptista Martins, O abuso do Direito e o ato ilícito, 3. ed.,

Rio de Janeiro, Forense, 1997, p. 3, 6, 9,10, 13, 34, 1 14 e 137; mais

especificamente no campo processual, v. Alfredo Buzaid, op. cit., p. 95, e Enrico

Tulio Liebmann, nas anotações que fez à tradução brasileira de Chiovenda

(Instituições de Direito Processual Civil, vol. 11, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 370,

nota 10). Alfredo Balthazar da Silveira, criticando o Decreto 24. 1 50, de 20.04.34,

que visava a tutelar o fundo comercial ou industrial criado peio locatário, diz que,

apadrinhados por esta lei de feição comunista, muitos Iocatários gananciosos, es-

quecidos da parábola de Lázaro — o mau rico — extorquem dos Iocado- res

quantias fabulosas para lhes entregar o imóvel alugado (A lei moral é a ba.se do

direito processual, i n Revista de Direito Processual Civil, Ano 1,janeiro ajunho de

1960, vol. 1, São Paulo, Saraiva S.A. Livrei- ros, p. 1 29). Também entre os

franceses impressiona a marca do indi- vidualismo, como se colhe em Ripert, que

não vê nada de mau no absolutismo dos direitos. Pretender um controle, exercido

pelojuiz, sobre valores econômicos e sociais, equivaleria, sob a ótica do civilista, a

colocar a sociedade sob a ameaça do estatismo ou do comunismo (op. cit., p. 1 82 e

l 83).

Fim da nota de rodapé

Página 162

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Santos acaba por admitir que apesar dos influxos políticos da épo- ca, acabou

prevalecendo, na redação do Código de 39, o aspecto científico, a

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disciplinajurídica.154 E certo que a posição dojuiz no processo é uma resultante das

tendências políticas e filosóficas do seu tempo. O século xIx consagrou o

individualismo e, por isso, a direção do processo era confiada exclusivamente às

partes.155 Surgem, já no final daquele século, os primeiros conflitos de massa, que

acabam repercutindo no campo da dogmática processual. Conquan- to a experiência

histórica do comunismo tivesse resultado numa visão burocrática do direito, outros

dados empíricos permitem di- zer que não há uma relação necessária entre o regime

político tota- litário e o princípio processual inquisitivo. Do fato de tal princípio ter sido

adotado em países comunistas, a exemplo da antiga Alema- nha Oriental e da

extinta URSS, não se exclui a possibilidade de que possa ser aplicado em regimes

liberais. Como registra Erich Döhring, há uma tendência de expansão dos poderes

judiciais mesmo nos países que adotam o princípio dispositivo, a exemplo da

França, Itália e Espanha, de sorte que a perspectiva meramente formal da prova

acha-se em franco declínio.156

O que parece estar na base de uma certa dificuldade da dogmá- tica processual,

quando trata da questão da verdade, é a confusão que se estabelece entre quatro

planos diferentes de conhecimento. A verdade material (processual) não se

confunde com a verdade on- tológica (filosofia), tampouco com a verdade lógica

(ciências ideais)

Início da nota de rodapé

(154) Moacyr Amaral Santos, Contra o processo autoritário, in Revista da Faculdade

de Direito, São Paulo, vol. 54, fasc. 1, São Paulo, 1 959, p. 212-229.

(155) Pedro Baptista Martins, Comentários ao Código de Processo Civil, Decreto-Lei

1.608, de 18 de Setembro de 1939, vol. I, Revista Forense, 1940, p. 338; Amilcar de

Castro, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 8, São Paulo, RT, 1974, p

106.

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(156) Erich Döhring, op. cit., p. 08 e 09. No mesmo sentido, no Brasil, José Luiz

Vicente Franceschini afirma que a concepção autoritária do processo, conceito

publicístico, nada tem de inadequado ao direito das nações onde vige o regime

democrático (op. cit., p. 25).

Fim da nota de rodapé

Página 163

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

ou com a verdade empírica (ciências naturais e históricas).157 Grande parte dos

processualistas modernos, conquanto sensível à primeira e segunda distinções,

apartando a prova judicial da verdade metafísica e da verdade racional, não

demonstra a mesma facilidade em estremá-la da verdade empfrica. Inicialmente,

diga-se que a dogmática processual não se ocupa da prova do fato, mas sim da

afirmação do fato,158 o que retira o processo do campo empírico.159

Início da nota de rodapé

(157) A propósito da distinção entre verdadeprocessual e verdade ontológica, vide

Jorge A. Clariá Olmedo (op. cit., p.149-153). João Mendes de Almeida Jr., invocando

o pensamento de São Tomás de Aquino, diz que a verdade processual busca a

adequação da coisa ao intelecto; a certeza é a firme adesão do intelecto à coisa (op.

cit., p. 155).

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(158) Leo Rosemberg, op. cit., p. 17. No mesmo sentido, também Santiago Sentis

Melendo (op. cit., p. 38). Diz o autor que a distinção não é mero jogo de palavras: os

fatos existem como realidade mesma. A afirmação é um fenômeno intelectual que se

refere à coisa ou ao fato. A parte, antes de afirmar, trata de fazer a averiguação da

existência do fato. Depois, feita a afirmação, cuida de oferecer os elementos que a

provêm. Aqui, já se está no campo da verificação. Não colhe a distinção que se

pretende fazer entre averiguação (processo penal) e verificação (processo civil). A

averiguação (ou investigação) diz com a atividade policial, mas nem por isso se

pode dizer que é categoria adequada ao processo penal, que visa a umiulgamento

(op. cit., p. 58 a 62). Importante registrar que parte responde pelas declarações

relativas a fatos e não a direitos, porque, neste ponto, as dificuldades ligadas ao

campo da in- terpretação avultam (Leo Rosenbemg, op. cit., p. 38 1 ). A discussão

sobre a existência do direito afirmado insere-se em campo técnico, heurístico, que a

parte nem sempre está em condições de avaliar (a respeito, v. também Santiago

Sentis Melendo, p. 70 e 71).

(159) Piero Calamandrei diz que, diferentemente do historiador, que trabalha com

fatos empíricos, formulando sua tese e investigando os fatos (averiguando, diria

Sentis Melendo), ao juiz não é dado escolher a pergunta que tem de responder,

formulada por outras pessoas, que são as partes. Ademais, tem dejulgar nos limites

de certas regras. Neste ponto, o processualista italiano critica a comparação feita

por Calogero, no livro La lógica del giudice e il suo controllo in casazione

(Calamandrei, Eljuiz y el historjador s.p., apud Santiago Sentis Melendo, op. cit.,

nota 1 24, p. 68).

Fim da nota de rodapé

Página 164

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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Ademais, como observa Piero Calamandrei, a prova está voltada à demonstração da

semelhança e não da verdade, o que neste ponto também se aplica à verdade

histórica.160 Ainda que exista concordância entre os diversos testemunhos, acerca

de determinado fato, poderá o juiz quando muito concluir que, diante da

uniformidade dos relatos, é bem possível que as coisas tenham se passado mesmo

daquela forma. Somente em casos excepcionais, como é a hipótese da inspeção

judicial, poderá o magistrado conhecer os fatos na sua dimensão empírica.161

Início da nota de rodapé

(160) Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol 3, Buenos Aires, Ediciones

Jurídicas Europa-America, 1973, p. 319. A respeito, o autor cita Voltaire (Dictionnaire

philosophique, voz Verité), para quem Ies verités historiques ne sont que des

probabilités. A respeito das relações entre verdade histórica e verdade jurídica, ver

também KarI Engisch, Introdução ao pensamentojurídico, 7. ed., Lisboa, Fundação

Calouste Gulbenkian, 1996, p. 90 e 91.

(161) Idem, p. 317-319 e 349. Neste ponto, o processualista italiano diz que, mesmo

diante do fato, será difícil ao magistrado afirmar que está diante da realidade,

porquanto o que vemos é só aparência (idem, p. 319). Calamandrei suscita aqui

(sem aprofundar o debate) uma clássica disputa filosófica, travada entre realistas e

idealistas, questão que será objeto do terceiro capítulo deste trabalho. Ainda a

propósito da distinção entre verdade processual e verdade eínpírica, Calamandrei

observa que a coisa julgada impiica apenas a idéia de uma certezajurídica, diversa

da certeza psicológica. No momento em que a sentença passa em julga- do, a crise

de consciência do juiz perde todo significado. A sentença é um ato de vontade, que

se desprende das premissas lógicas. Editada que for, passa a ser norma jurídica. Os

fatos continuam sendo os mesmos, e não é certo dizer que, cobertos pelo manto da

coisajulgada, haveria quanto a eles presunção de veracidade. A coisa julgada recai

sobre relações jurídicas e não sobre o mundo sensível (idem, p. 320-321). A pro-

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pósito desta discussão, v. nota 1 36. Niklas Luhmann, jurista alemão que desenvolve

reflexões no campo da teoria dos sistemas, estabelece distinção entre expectativas

cognitivas (que são fáticas) e expectativas normativas (que são contrafáticas). A

normajurídica, ainda que manifestamente desconforme às expectativas sociais,

impõe-se sob um critério de racionalidade diverso daquele que preside o processo

de conhecimento

Fim da nota de rodapé

Página 165

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Está claro que todo juízo de probabilidade e verossimilhança tem um caráter

eminentemente relativo. Assim, o direito processual opera com graus de

aproximação progressiva da 162 Isto levaria a crer que a distinção entre verdade e

verossimilhança, muitas vezes feita pelo legislador (art. 273, caput, do cPC, v.g.), é

um nonsens. A doutrina considera, entretanto, que a verossimilhança diz respeito à

alegação da parte, ao passo que o juízo de verdade (ainda que reduzido, em última

análise, a um juízo de semelhança, sob o ponto de vista psicológico e sociológico), é

uma estimativa final, que versa sobre toda a prova produzida. A alegação da parte é

a interpretação que ela retira dos fatos. Serve, no processo dispositivo, para fixação

do themaprobandum. Não é prova, mas delimitação dos fatos a serem provados. O

juízo definitivo de verdade, de outra forma, está pautado no exame da prova que

nestes limites foi produzida.163

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Ainda que convencido de que a natureza humana é incapaz de alcançar a verdade

absoluta — diz Piero Calamandrei — é dever de honestidade empenhar-se com

todas as forças para tentar

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

(Sociologia do Direito 1, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983, Bi- blioteca Tempo

Universitário, vol. 75, p. 45-76). Este modelo de aná- Iise é significativo para que se

possa entender a distinção entre verdade processual e verdade empírica.

(162) Santiago Sentis Melendo, (op. cit., p. 40-59).

(163) Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol. 3, Buenos Aires, Ediciones

Jurídicas Europa-America, 1973, p. 326-330. A propósito, o autor invoca as lições de

Calogero (La lógica del giudice e il suo controllo in cassazione, Padova, Cedam,

1937, p. 57) e de Wilhelm Sauer (Allgemeine Prozessrechtslehre, Heymanns, V.,

195 I). Neste ponto, Calamandrei chama a atenção para as restrições que o sistema

processual estabelece no que diz respeito a certos tipos de prova (op. cit., p.334-

336), a exemplo do que dispõem as regras dos arts. 400, 11, e 401, ambos do CPC,

e a regra do artigo 155 do CPP; no mesmo sentido, Francesco Carnelutti, Estudios

de Derecho Procesal, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1952

(Colección Ciencia del Proceso, 20), p.1 14 e 1 15. A respeito, ver o que foi dito na

nota 22.

Fim da nota de rodapé

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Página 166

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

aproximar-se, o mais possível, desta meta inatingível.164 Neste sentido, a noção de

verdade processual aproxima-se do campo moral. Probatio, a exemplo do verbo

probare vem de probus, que quer dizer bom, reto, honrado.165 Estas considerações

remetem novamente à questão do dever de lealdade processual. Aqui, dentre outras

indagações, retoma-se a discussão acerca do dever de completude, que consiste

em saber se a parte estaria obrigada a apresentar até mesmo fatos contrários à sua

pretensão, reflexões que se inscrevem em um campo mais abrangente e

compreensivo, sugerindo a distinção entre argumentação, adequada às ciências

culturais, e demonstração, adequada às ciências ideais, físicas e naturais.

Com efeito, o senso comum dos processualistas orienta-se no sentido de que todos

os atores processuais têm o dever de colaborar para que se aplique com exatidão e

justiça o direito objetivo. Impregnado, pois, o processo de acentuado sentido ético. E

de se ressaltar, porém, que a relação processual, quando se forma, encontra as

partes conflitantes em situação psicológica pouco propícia para manter um clima de

concórdia.166 Há um senso de disputa que faz lembrar umjogo, na referência de

diversos processualistas. Mas na competição, em que pese uns serem mais hábeis

do que os outros, também não são permitidas trapaças.167 Entretanto, como

reconhece

Início da nota de rodapé

(164) Piero Calamandrei, Derecho Procesal IIL Buenos Aires, Edicionesju- rídicas

Europa-América, 1973, p. 351.

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(165) Santiago Sendes Melendo, op. cit., p. 33.

(166) José Frederico Marques, Instituições de Direito Processtial Civil, vol. 11, Rio

de Janeiro, Forense, 1958.

(167) Francesco Carnelutti, Diritto e Processo, Milano, Morano Editore, 1 958, p.

203-205; no mesmo sentido, Guido Calogero, Probità, lealtà, veridicità nelprocesso

civile, in Rivista di Diritto Processuale Civile, vol. 1 6, Parte 1, Ano 1 939, XVII-XVIII,

Padova, Cedam-Casa Editríce Dott, Antonio Milani, p.1 36- 1 38, e Piero

Calamandrei (op. cit., p. 267-279). Também utilizando-se da figura de linguagem,

que fez escola na doutrina italia- na, Amíicar de Castro diz que no período do

liberalismo, o iuiz não participava do processo: limitava-se a assistí-lo, como se

fosse um ár- bitro esportivo, assinalando as faltas dos contendores e controlando as

Fim da nota de rodapé

Página 167

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Calamandrei, principalmente no processo do tipo dispositivo, é muito difícil

estabelecer o limite entre uma sagaz defesa e o logro, a trapaça.168

A deslealdade, em seus diversos matizes, tem como ponto comum o objetivo de

conseguir provimento jurídico sem que estejam presentes os pressupostos, de fato e

de direito, previstos em lei.169 Couture entende que a parte está em juízo para dizer

o que

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Início da nota de rodapé

regras dojogo, paraafinai proclamaro vencedor (op. cit., p. 106). Esta metáfora é

comum na doutrina (Gian Antonio Micheli, op. cit., p. 169; Francisco Ramos Méndez,

¿Abuso de derecho en el proceso?, in José Carlos Barbosa Moreira, org., Abuso dos

direitosprocessuais, Rio de Janeiro, Forense, 2.000, p. 6; Humberto Theodoro Jr.,

Abuso de direito processual no ordenamentojurídico brasileiro, in José Carlos

Barbosa Moreira, org., Abuso dos direitosprocessuais, Rio de Janeiro, Forense,

2.000, p. 101 e 1 10).

(168) Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol. 3, Buenos Aires, Ediciones

Jurídicas Europa-America, 1 973, p. 267-269. Diz o processualista que alguns

estudiosos, considerando o fato de que, no pro- cesso dispositivo, é a iniciativa das

partes que dá o ritmo da sucessão dos atos, consideram as tergiversações, as

molestações, os diferimen- tos, vale dizer, toda sorte de chicana, como refinado de

boa prática fòrense (idem, p. 275 e 276). Francisco Ramos Méndez sustenta que o

processo não é um jogo de crianças nem um instrumento acadêmi- co, mas sim um

instrumento para criação do direito. Não há razão nenhuma para implantar neste

campo normas de cortesia ou compor- tamento distinto daqueles que regem outros

campos sociais. No pro- cesso, que encarna a luta pelo direito, refletem-se as

mesmas tensões do resto da sociedade. O razoável é assumi-las (op. cit., p. 6).

Susten- ta ainda o autor que não há Iugar para uma ação autoritária dojuiz pois o

processo não é uma disputa entre cavalheiros, cheia de flores e mesuras (idem,

ibidem). Contra este chamado liberalismo proces- sual está a Escola Eficientista do

Processo Civil (Jorge W. Peyrano, Abuso de los derechos procesales, in José Carlos

Barbosa Moreira, org., Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense,

2000, p. 75 e 76).

(169) Idem, p. 270. Pedro Baptista Martins diz que, de acordo com a orienta- ção do

Código de 39 (que prevalece no atual), é indiferente a perda ou êxito da ação, para

que fique ou não configurado o abuso do direito do

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Fim da nota de rodapé

Página 168

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

sabe, ainda que isto não venha ao encontro daquilo que efetiva- mente queira. Na

base da distinção entre saber e querer, diz que nada impede, dentro da

racionalidade do sistema dispositivo, que a parte diga o que sabe para depois, em

continuação, tentar convencer o juiz do acerto do seu direito, vale dizer, daquilo que

quer.170 Sustenta que o dever de dizer a verdade é um princípio implícito,

independente de previsão normativa, porque a realiza- ção da justiça, fim perseguido

pelo processo, não pode se apoiar na mentira.171

Assim argumentando, o processualista uruguaio coloca a questão da verdade no

campo moral. Sugere dois exemplos. O marido promove ação de divórcio, alegando

incompatibilidade de gênios, muito embora a infidelidade fosse o verdadeiro moti- vo

da ruptura conjugal. E assim o faz para preservar o equilíbrio emocional dos filhos.

Estaria, ao faltar com a verdade, proceden- do de maneira desleal? O outro exemplo

está no campo do chamado dever de completude. Uma parte pode conduzir o

proces- so dizendo objetivamente a verdade e subjetivamente a mentira. Basta que

apresente fatos que a favoreçam, omitindo outros que lhe sejam desfavoráveis.

Haveria deslealdade processual? Para contornar estas dificuldades, o texto definitivo

do Código de Processo italiano, no lugar do dever de dizer a verdade — como

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

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autor. Conta o caso de uma parte que alterou a via do instrumento de contrato que

tinha consigo, supondo que assim melhor consolidaria seu direito. O fato não

interferiu no resultado da demanda, da qual se sagrou vencedora. Contudo, mesmo

assim, configurada restou a má-fé, pela qual haveria de responder (Comentários ao

Código de Processo Civil — Decreto-Lei 1.608, de 18 de seteinbro de 1939, vol. l,

Rio de Janeiro, Revista Forense, 1940, p. 200).

(170) Eduardo J. Couture, Estudios de Derecho Procesal Civil, tomo 111, 2. ed.,

Buenos Aires, Ediciones Depalma, p. 246 e 247.

(171) Idem, p. 249-250. Diz Amílcar de Castro que ninguém dirá que seja uma

perfeição processual esgravatar uma demanda, urdir uma cavilação, sutiiizar uma

trampa, inventar um engano, fazer uma rede de burlas... para, no seu malvado

interesse, enganar o iuiz, sem que este o possa desmascarar (op. cit., p. 107).

Fim da nota de rodapé

Página 169

O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

previsto no Projeto Solmi — estabeleceu: As partes, seus procuradores e defensores

têm o dever de atuar com probidade e lealdade. 172 Há aqui uma referência à

questão da boa-fé, com a qual se encerrou o primeiro capítulo.

Início da nota de rodapé

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(172) Idem, p. 252-253; a propósito da dificuldade da doutrina em conciliar a base

ética do processo com a necessidade da solução prática, v. J.Ramiro Podetti, Teoria

y técnica de proceso civil y trilogia estructural de Ia ciencia delproceso civil, Buenos

Aires, Ediar, S. A. Editores, 1963, p.142-150. Francesco Carnelutti, tratando do

anteprojeto do Código Alemão, não faz referência expressa às dificuldades tão bem

aponta- das, acima, por Couture (Estudios de Derecho Procesal, vol. 50, Buenos

Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1952, p. 171 e 172). E cer- to, todavia,

que, integrando comissão também composta por Redenti e Calamandrei, tratou de

aiterar a redação do Projeto do Ministro Solmi, comojá registrado (Eduardo J.

Couture, op. cit., p. 253). É igualmente certo que, nessa mesma obra (Estudos),

Carnelutti adverte para a difi- culdade que o dever de verdade oferece ao construtor

do processo civil. Diz que o problema técnico desemboca em um problema ético

(idem, p.185e 186).

Fim da nota de rodapé

Página 170- Em Branco

Página 171

3

A TEORIA DO SIGNIFICADO

SUMÁRIO: 3.1 A cosmovisão da Antiguidade — 3.2 A teoria representativa — 3 .3 A

superação da dicotomia idealismo e realismo — 3.4 A consciência reflexiva e a

razão alargada.

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3.1 A cosmovisão da Antiguidade

Nos dois primeiros capítulos, buscou-se conhecer o senso co- mum teórico dos

juristas acerca do abuso do direito, saber como a doutrina e ajurisprudência, na base

do caso concreto, constroem esse conceito operacional visando à solução dos

conflitos. A elaboração dogmática não se resume a um sistema de conceitos, a uma

atividade heurística. Por trás dela estão representações do mundo, imagens que o

operador do direito tem de si próprio e do trabalho que produz. Por isso, mais

importante que perguntar sobre o conceito de abuso do direito é indagar acerca das

diversas concepções, dos diversos empregos que se faz dessa expressão, fórmula

sintética, aglutinadora de um sentido que ultrapassa a esfera das definições

universais, o plano da consciência, para colocar-se no campo da linguagem. Não se

persegue a natureza do conceito de um ponto de vista representativo, como

entidade existente fora da prática discursiva, buscando-se entender, isto sim, como

as partes utilizam essa categoria jurídica para alcançar determinados objetivos.

O discurso jurídico, como já reconhecia Michel Foucault, move-se muito mais no

campo da persuasão do que propriamente no terdo conhecimento. Às vezes, torna-

se difícil separar teoria e prática porque, tanto no campo da elaboração teórica

quanto na esfera da praxis, está-se diante de enunciados que não se Iimitam a

descrever, prescrevendo, outrossim. A análise lingüística do abuso

Página 172

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

do direito processiiale o uso desse conceito na prática jurídica implicam uma

distinção entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação. Não interessa

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investigar o itinerário percorrido pela mente dos sujeitos processuais para saber

como eles elaboram a noção de abuso, nem tampouco vasculhar sua consciência

para saber de uma vontade orientada para a verdade ou para a mentira. Em lugar

disso, importa conhecer o significado construído pelas práticas sociais, pela situação

comunicativa concreta, vale dizer, a maneira pela qual os sujeitos processuais

argumentam para justificar uma determinada conduta.

As premissas da crítica ora enunciada serão desenvolvidas neste e nos dois tópicos

seguintes. O fio condutor da exposição, como já se fez sentir no cotejo das práticas

judiciais com os modelos de verdade, é a dicotomia ernpirismo-racionalismo, que diz

com a origem do conhecimento, e realismo-idealismo, que tem a ver com a essência

do conhecimento. Para os empiristas, a experiência é a origem única do

conhecimento, que só é válido quando verificado por fatos metodicamente

comprovados. De outra forma, os racionalistas entendem que a razão tem papel

preponderante no processo cognoscitivo. Os fatos, isoladamente, não oferecem

condições de certeza. Na concepção realista da razão e do conhecimento, o objeto

tem prioridade sobre o sujeito, ao passo que na concepção idealista, a prioridade é

do sujeito, ou seja, do pensamento sobre o objeto.

A discussão acerca do significado surge mais propriamente com Platão, muito

embora o tema não fosse novo. Dele trataram os sofistas,

Início da nota de rodapé

(1)Ajustiflcação é questão de ordem lógica e é feita por meio de um argu- mento, no

qual o enunciado, que deve serjustificado, figura como con- clusão. A descoberta do

enunciado, em contraste, é um processo psi- cológico que Ieva à sua concepção,

defesa e aceitação (Wesley Salmon, Lógica, 6. ed., Rio de Janeiro, Zahar, p. 25). No

mesmo sentido, Irving Marmer Copi (lntrodução à Lógica, 2. ed., São Paulo, Mestre

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Jou, 1 978, p. 20 e 2 1 ). A respeito dessa distinção no campo do direito, ver

Recaséns Siches, Tratado General de Filosofia del Dei•echo, 2. ed., México, Edi-

torial Porrúa, S.A., 1 96 1, p. 385 e 387, e Manuel Atienza, As razões do direito, São

Paulo, Landy, 2000, p. 22-26, 50-52, 84, 177 e 213.

Fim da nota de rodapé

Página 173

A TEORIA DO SIGNIFICADO

além de Heráclito, Demócrito e Antístenes. Segundo os comentaristas, o que mais

impressiona em Crátio, obra na qual Platão se dedicou ao exame das origens da

linguagem, é a veia artística do filósofo ateniense, a sua dialética impecável, que

bem se mostra no colóquio entre Crátilo, Hermógenes e Sócrates. A conversa entre

eles serve, como sempre, de pretexto para que Platão possa exercitar seu rcfinado

espírito de investigação. Trata-se de um diálogo da alma consigo mesma. No lugar

de lançar, ex cathedra, princípios e doutrinas, a forma dialogada permite-lhe

despertar as idéias que dor- mem no fundo da alma.2 Sócrates é quem dá o tom da

conversa. Como sucede nos outros diálogos platônicos, é ele quem conduz o

assunto, ouvindo com parcimônia, mas sempre interferindo, quando necessário

reconduzir os polemistas às questões que realmente importam.

Crátilo considera que os nomes são exata representação dos objetos, estabelecidos

em conformidade com a natureza das coisas, ao passo que Hermógenes, fiel

discípulo de Sócrates, sustenta que a linguagem é resultado de uma convenção.

Platão, na palavra de Sócrates, inicia fazendo uma defesa da tese do realismo.

Chega ao ponto de afirmar que as letras e sílabas incorporarn a forma de cada

objeto, muito embora reconheça a influência do tempo e do uso na alteração dessas

formas. Depois, faz cair sobre a tese realista todo o peso de sua argumentação,

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passando à defesa do nominalismo. O nome e o objeto nomeado são coisas

distintas. Sendo o nome uma

Início da nota de rodapé

(2) A propósito, ver o prefácio de Dias Palmeira à tradução portuguesa da obra de

Platão (Crátilo — diálogo sobre (ijusteza dos nomes, 2. ed., Coleção de Clássicos

Sá da Costa, Lisboa, Livraria Sá da Costa Edito- ra, 1994, p. 70, 71, 83, 87 e 104).

Nele, o teólogo e filósofo português esclarece a interessante relação entre a

maiêutica, forma da qual primeiramente se utilizou Sócrates, e o idealismo platônico,

que tem na teoria da reminiscência, na tese da transmigração das almas, seu

postulado in- dispensável (idem, p. 54, 55 e 57). Segundo registro de Aristóteles,

Platão fora discípulo de Crátilo, antes de conhecer Sócrates (Aristóteles, Obras,

Metafísica, Livro 1, Cap. 6, 986b/1 987b, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1967, p.

919). Anota Francisco de Paula Samaranch, responsável pela tradução das obras de

Aristóteles diretamente do grego para a Iíngua espanhola, que Crátilo, por sua vez,

foi um dos discípulos de Heráclito e um dos primeiros mestres de Platão (idein,

ibidem).

Fim da nota de rodapé

Página 174

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

imitação do objeto, há possibilidade de o homem se enganar, atri- buindo a um

objeto uma imagem que não lhe convém, vale dizer, um nome inexato, falso. Assim,

o nome não passa de uma imagem e como tal não pode ser uma reprodução exata

do objeto. Segue-se daí que não podemos prescindir das convenções lingüísticas.3

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Segundo interpretação de Dias Palmeira, que traduziu o Crátílo para a Iíngua

portuguesa, é difícil saber até que ponto Platão expõe sua firme convicção acerca da

origem da linguagem, ou até que ponto exercita sua veia humorística, presente

sobretudo nas referências irônicas à conformação dos nomes às coisas, a propósito

das quais acumula as mais engenhosas e absurdas explicações.4 De qualquer

forma, o estudo lingüístico desenvolvido por Platão guarda a marca de seu

idealismo, ou também chamado realismo, variações que podem confundir, se não se

atentar para o fato de que, na concepção platônica, existe um nome ideal, próprio,

natural de cada coisa. A justeza do nome tem em conta, portanto, a coisa em si,

como exis- tente no mundo das idéias, na morada da razão, composta de formas

eternas e imutáveis, e não o fenômeno da natureza, pertencen- te ao mundo dos

sentidos, que está em contínua mudança e que, por isso, é incognoscível.5 Neste

ponto, pode-se dizer que Crátilo é

Início da nota de rodapé

(3) Platão, Crátilo — diálogo sobre ajusteza dos nomes, 2. ed., Coleção de Clássicos

Sá da Costa, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1994, p. 18-80, l 12-154.

(4) Dias Palmeira, Prefácio a Crátilo — diálogo sobre ajusteza dos nomes, 2. ed,

Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1994, p. 107. Estas explicações ba- seiam-se na

correspondência entre a estrutura gramatical e a estrutura ontológica, donde resulta

que a construção da Iíngua não é arbitrária (Manfredo Araújo de Oliveira, Reviravolta

lingüístico-pragmática na filosofia contelnporânea, Coleção Filosofia, São Paulo,

Loyola, 1996, p. 20).

(5) A propósito, v. Platão, A República, Livro VII, S.R, Atenas, 1 958, espe- cialmente

p. 245-252, e Livro X, especialmente p. 386-394. Esta interpretação, segundo Dias

Palmeira (op. cit., p. 26, nota 10), vem ao en- contro de uma passagem do Hipias

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Maior onde se lê: Responda-me, Sócrates: todas as coisas que tu chamas belas

seriam elas tais, se não existisse o belo em si? De fato, há um idealismo

gnoseológico (moderno) e um idealismo ontológico (transcendente). A teoria das

idéias

Fim da nota de rodapé

Página 175

A TEORIA DO SIGNIFICADO

percursor de Parmênides.6 Entrementes, como dito há pouco, Platão não prescinde

da importância das convenções, no que se afasta da pretensão a um isomorfismo

entre linguagem e ser, entre estrutura gramatical e estrutura ontológica.7

A reflexão lingüística em Arístóteles não pode ser dissociada do profundo desprezo

que nutria pelos sofistas, cujos paradoxos — segundo ele — estavam fundados

precisamente na confusão estabelecida entre linguagem e objeto. E certo que

Platão, no Górgias, também critica a retórica sofística, pondo a descoberto sua

incon- sistência e aparência inofensiva.8 Porém, a compreensão da função

designativa e da natureza instrumental da linguagem, que emerge da obra de

Platão, coloca as críticas do filósofo em bases diferentes daquelas que orientam o

pensamento de Aristóteles. O acesso ao mundo das idéias, na concepção platônica,

dá-se independentemente da linguagem, ou seja, ser e linguagem são coisas

distintas. Para Aristóteles, em que pese a distinção, certo é que o homem não tem

acesso imediato ao ser, que é sempre mediado pela linguagem. Nesse passo, os

estudiosos reconhecem uma certa ontologia. Isto porque, conquanto Aristóteles

sustente que a linguagem não é a manifesta- ção do real, mas apenas um símbolo,

que não toma o lugar da coisa, também admite que os estados da alma, mediadores

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da linguagem e do ser, têm correspondência com o real. A palavra é símbolo — e

não signo — exatamente porque a convenção em torno dela é doadora

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

de Platão implica o reconhecimento de que a prévia existência das idéias é que

condiciona a possibilidade de ser e conhecer no mundo empírico. Na perspectiva do

idealismo moderno, de outra forma, o homem se eleva ao plano das idéias a partir

de processos de conhecimento. Em Platão, o idealismo reduz o real ao ideal, o ser à

idéia. As idéias passam a ser realidades últimas (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1

1. ed., 1 986, p. 1 1 9). No mesmo sentido, ver Alaôr Caffé Alves, Lógica —

pensamen- toformal e argumentação — elementos para o discurso jurídico, São

Paulo, Edipro, 2000, p. 53 e 54.

(6) Dias Palmeira, op. cit., p. 109.

(7) Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 21

(8) Platão, Górgias, o de la retórica, 457b, in Platão, Obras, Madrid, Aguilar S.A.,

Ediciones, 1969, p. 364.

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

de sentido. Todavia, há nas proposições, compostas de nomes, uma referência à

existência daquilo que está sendo nominado, às coisas em si mesmas.9 Não por

outro motivo, Aristóteles faz uma distinção entre sentença e proposição. Na primeira,

importa a convenção em torno do significado das palavras, ao passo que nas

proposições há implícito o juízo de verdade e de falsidade. A proposição representa

o juízo. Uma súplica, por exemplo, é uma sentença ou expressão, que não implica o

juízo verdadeiro/falso. Por isso, está no campo da retórica ou da poética e não no

campo da lógica.10

A maneira por que os juristas elaboram o conceito de abuso do direito processual

revela a marca impressiva da concepção on- tológica do significado, dessa visão das

essências, que está em Platão e Aristóteles, ainda que de prismas diferentes. A

expressão abuso do direito processual é o conteúdo de múltiplas formas de

consciência que têm em comum a mesma essência. Estabelece-se uma relação

unívoca entre palavra e coisa, de forma tal que os sujeitos processuais assumem

uma participação passiva no pro- cesso de elaboração do significado. Quando a

dogmática recorre a conceitos dicotômicos a exemplo do lícito e ilícito, jurídico e

antijurídico, obrigatório e proibido, supõe a existência de cate- gorias universais,

representadas por estes conceitos, que são a expressão mesma da realidade

jurídica. Por isso, o paradoxo de Planiol. Mas como Mario Rotondi já advertia no

primeiro capítu- lo (seção 1.4), é importante entender que a discussão acerca do

abuso do direito interfere com o problema dos limites da ordem jurídica, ou seja,

importa considerar o significado jurídico do es- paço deixado entre aquilo que é

obrigatório e aquilo que é proibi- do. A conduta descrita como obrigatória ou proibida

não tem um significado unívoco. Existe cntre essas condutas um espaço va- zio que

há de ser preenchido com um conteúdo significativo. A

Início da nota de rodapé

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(9) Aristóteies, De la expresión o interpretación, Cap. 4, 16a/17a, in Aristóteles,

Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1 967, p. 256 e 257. A análise crítica, como

se seguiu, é feita pòr Manfrerdo Araójo de Oliveira (op. cit., p. 25-34).

(10) Aristóteles, De Ia expresión o interpretación, Cap. 4, 16a117a, in Aristóteies, op.

cit., p. 257 e 258.

Fim da nota de rodapé

Página 177

A TEORIA DO SIGNIFICADO

pluralidade de sentidos do texto legal remete, assim, ao campo das valorações, pelo

que se tem de reconhecer que as proposições não são sempre descritivas. O direito

está, assim, no campo de uma razão prática e não de uma razão teórica.

Mas o jurista segue propondo classificações que supostamente refletem a natureza

intrínseca das coisas. Tanto na argumentação dogmática como na argumentação

zetética, a discussão acerca do abuso do direito reflete uma disputa em torno da

verdadeira classificação, uma falácia metafísica que vem alimentando o pensamen-

to jurídico desde a chamada elaboração científica do direito, em contraste com a

jurisprudentia dos romanos. Daí porque se diz que a questão do abuso, como se

coloca hoje para os juristas, é legado do racionalismojurídico, da pretensão de

desenvolver o direito como um sistema cerrado e autárquico, que se esboroa ao

menor contato com a realidade social. Foi precisamente essa consciência dos limites

entre a norma e a realidade, entre o racional e o real, que inau- gurou a reflexão

problematizadora em torno da possibilidade de uma conduta abusiva, trazendo de

volta a ciência prática dos romanos, isto a partir da segunda metade do século xx.

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Aristóteles, é certo, desenvolve a questão da verdade no terreno da chamada lógica

apodítica, onde surge a clássica distinção entre juízos universais e juízos

particulares, juízos afirmativos e juízos negativos, bem como o quadro de oposição e

as regras de distribuição. Trata-se não só de categorias lógicas, mas também

ontológicas, pois se mostram como condição da possibilidade do conhecimento.11

Mas a par da distinção que Aristóteles estabelece entre juízos apodíticos e juízos

dialéticos, entre episteme, conhecimento racional, e doxa, simples opinião,

aparência, importa chamar a aten- ção para as relações que o filósofo estabelece

entre a Primeira Analítica e os Tópicos. A crítica aos sofistas — quejá se vê em

Platão e lsócrates — consistia no fato de se utilizarem da erística, vale dizer, de

raciocínios especiosos. Para Aristóteles, contudo, a argúcia dos

Início da nota de rodapé

(11) Aristóteles, De la expresión o interpretación, Caps. 5-14, 17a/24b, e Analítica

Primera, 24b/70b, inAristóteles, Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1967, p. 258-

349.

Fim da nota de rodapé

Página 178

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

sofistas, no sentido pejorativo, consiste ern desenvolver a retórica trapaceando as

regras formais do silogismo. Busca o filósofo a aproximação entre doxa e ontos, com

o que a retórica passa ser vista como técnica. O orador não precisa

necessariamente recorrer a premissas verdadeiras, contanto que respeite as regras

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internas do silogismo, expostas na Primeira Analítica. O importante é, pois, a

verossimilhança, o que permite vislumbrar a utilidade da retórica, principalmente no

campo pedagógico e no terreno das controvérsias, no qual se inserem as disputas

judiciais e a próprias disputas filosóficas.12 Com isto, Aristóteles reabilita a retórica,

colocando-a no mesrno plano da dialética, tão estimada por Platão.13

Estas reflexões preparam o terreno para uma gradativa superação da dicotomia

realismo-nominalismo, que começa a se delinear quando o pensamento se desloca

da esfera de contemplação do ser verdadeiro, em que se movem os gregos, para o

campo da ação social. Com isto, a concepção mentalista, própria das teorias repre-

sentativas do significado, cede espaço para um sentido intersubjetivo da linguagem,

que surge das práticas sociais, e não antes delas, como se fosse lícito supor a

existência de uma força misteriosa por trás das palavras. O redescobrimento da

retórica aristotélica foi em grande parte responsável por esta alteração dos rumos da

filosofia da linguagem. A filosofia e a teologia medievais sempre se guiaram pelas

doutrinas do realismo e do nominalismo, como é possível ver nas obras de Roger

Bacon, Duns Scotus e Willian Ockham. A marca impressiva dessa díade também

pode ser reconhecida na herme- nêutica cristã medieval, fruto do interesse dos

pensadores daquela

Início da nota de rodapé

(12) Aristóteles, Retórica, Livro I, Caps. 1, 2, 5 e 15, 1354a11358a; 1359b/ 1362a;

1375a11377b, e Tópicos, Livro I, Cap. 2, e LivroVIII, Caps 5- 1 1, 1 OOb, 1 Olb; 1

59a11 61 a, inAristóteles, Obras, Madrid,Aguillar S.A., Ediciones, 1967, p. 1 16-122,

124-127, 419, 420, 516-523 e 146-150. A propósito, v. Olivier Reboul, Introdução à

retórica, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 21-41, Sergio Paulo Rouanet,A razão

cativa—As ilusões da consciência; de Platão,a Freud, 3. ed., São Paulo, Brasiliense,

p. 37 e 38, e Chaïm Perelman, Etica e Direito, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p.

469-473.

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(13) Olivier Reboul, op. cit., p. 34 e 35.

Fim da nota de rodapé

Página 179

A TEORIA DO SIGNIFICADO

época na apreensão do sentido do texto bíblico.14 Entretanto, antes de tratar desta

mudança de orientação, convém o exame de outras concepções representativas

acerca do significado das palavras.

3.2 A teoria representativa

A filosofia grega estava muito mais preocupada com o objeto do que com o sujeito.

Para Platão, que desenvolve uma estrutura semiótica triádica (nome-idéia-coisa), o

significado das palavras surge a partir do referente, da coisa a que as palavras se

referem, por elas nomeada. E o que também se vê na teoria dos signos dos epicu-

ristas, que é, entretanto, diádica (signo-objeto), e mais, materialista.15 Convém

esclarecer essa diferença. Enquanto o real, em Platão, são as idéias imutáveis, as

essências, os seres exemplares, o objeto, na elaboração dos epicuristas, é a

entidade física, palpável, da qual emanam as imagens captadas pelo receptor. De

qualquer forma, tanto em uma como em outra concepção, o significado surge a partir

da coisa, do ser. Isto é o que se chama de uma teoria referencial. Com os

Início da nota de rodapé

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(14) Note-se que a teoria dos signos, no período medieval, era parte da Iógica, como

se pode colher na obra de Leonino de Pádua, Logica estdoctrina principaliter de

signis. Data daquela época a distinção entre conotação e denotação, examinada no

segundo capítulo (seção 2.3), mais tar- de retomada por Stuart Mill. Estudando a

bíblia, os semioticistas escoiásticos adotaram um modelo exegético depois aplicado

a outros campos do conhecimento, inclusive na Renascença, que reabilitou práticas

até então vistas como magia ou bruxaria, a exemplo da astrologia e da alquimia. E

conhecida, também nesse período renascentista, a doutrina das assinaturas,

estudada pelo médico e sábio suiço Paracelsus, que reconheceu a existência de

signos naturais, deixados por Deus, pelo homem, por um principio interior do

desenvolvimento, chama- do archaeus e pelas estrelas ou planetas (astra). Estes

signos, deixados como traços indexicais no mundo, eram chamadas assinaturas e

podiam ser descobertos na face humana, no corpo humano, nas Iinhas visíveis da

superfície da planta etc. Daí a quiromancia, a astrologia, que têm em comum essa

visão pansemiótica (Winfried Nöth, Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce,

Annablume, 1995, Coleção E-3, São Paulo, p. 36-41).

(15) Winfried Nöth, op. cit., p. 32 e 33.

Fim da nota de rodapé

Página 180

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

sofistas, a tônica desloca-se do objeto para o sujeito, perspectiva que tem

continuidade em Descartes e depois em Kant. Para Protágoras, o homem é a

medida de todas as coisas. A verdade, o certo e o errado, o bem e o mal, sempre

têm de ser avaliados sob o ponto de vista do homem. Entre os estóicos, que

desenvolviam um modelo triádico do signo (signo-significado-objeto), o papel

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daquele que reconhece o signo é fundamental. E esta recepção somente se mostra

possível porque o homem tem capacidade de antecipar o enten- dimento da coisa.

Na mente humanajá existem conceitos que per- mitem elaborar previamente a

imagem das coisas.16 Isto é o que se chama de uma teoria idealista, que identifica o

significado da pala- vra com a idéia que o signo evoca, com o conceito, que está no

cam- po do pensamento.

Filósofos tais como Santo Agostinho e Ludwig Wittgenstein (este na primeira fase,

correspondente ao seu Tratactus), trabalham toda a questão linguística do ponto de

vista referencial, a exemplo dos gregos. Outros, dentre eles John Locke,

desenvolvem uma visão idealista, acentuando o papel da interferência mental no

processo de seiniose, vale dizer, no processo significativo. Uns e outros incluem-se

dentro de uma perspectiva que se convencionou chamar de concepção

representativa (o signo representa a coisa; o signo representa o pensamento).17

Além da teoria referencial e da teo- ria idealista, a concepção representativa da

linguagem também inclui uma teoria comportamental, que ficou conhecida como

behaviorisrno. Sob este enfoque, o significado das palavras tem origem naquilo que

fazem os seres humanos quando delas se utilizam. Existe aqui uma identificação do

significado com as situações em que as palavras são empregadas ou com o tipo de

resposta que as palavras estimulam. Há mesmo quem sugira a substituição do ter-

mo linguagem por coinportamento verbal. Skinner sustenta que saber o que ocorre

quando um homem fala ou responde é questão que deve ser tratada no campo da

psicologia, ciência experimental

Início da nota de rodapé

(16) Ide,n, p. 31-33.

(17) William P. Alston, Filosofía del Lenguaje, Madrid, Alianza Editorial, S. A., 1974,

p. 38-45.

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Fim da nota de rodapé

Página 181

A TEORIA DO SIGNIFICADO

do comportamento.18 Na linha da tradição de J.B. Watson, que inaugurou a escola

behaviorista, Skinner procura minimizar a importância dos mecanismos mentais na

formação do significado das palavras. O tema da psicologia passa a ser o

comportamento ou as atividades do ser humano e não a consciência, conceito que

substituiu a noção de alma, como existente entre os gregos. E isto porque a

consciência não é algo que se possa observar, experimentar. Ao lado da crítica à

teoria idealista, Skinner também faz objeções à tese referencialista. Esse esquema

semântico — diz ele — não permite captar propriedades importantes do objeto, a

exemplo das dimensões da coisa. Ademais, não oferece a possibilidade de

surpreender a intenção dofalante.19

Diante das objeções de Skinner — e antes que se possa empreender uma análise

crítica da concepção representativa — é importante fazer um reconhecimento do

terreno filosófico em que se deu a pas- sagem de uma reflexão ontológica, como

desenvolvida por Platão e Aristóteles, para uma filosofia da consciência, que se

inicia com Descartes, prosseguindo depois com Husserl. Para Descartes, as coisas

só existem pela intermediação do pensamento. Sendo assim, o objeto mesmo se

torna intangível. Por isso, o filósofo racionalista passa a duvidar de tudo. Mas não se

trata, como diz no Discurso sobre o Método, de duvidar por duvidar, à moda dos

céticos, e sim de uma dúvida metódica, que afasta a areia movediça e a terra, para

desco- brir a rocha ou a argila, vale dizer, para adquirir a certeza.20 Nessa mesma

obra, Descartes lança algumas regras para a direção do es- pfrito, retiradas de seu

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Tratado sobre o universo, com o que pretendia fundar as bases para uma ciência

universal.21

Início da nota de rodapé

(18) Burrhus Frederic Skinner, O comportamento verbal, São Paulo, Cultrix- Edusp,

1978, p. 15-20.

(19) Idern, p. 20-24.

(20) René Descartes, Discurso sobre o método, São Paulo, Hemus Editora Ltda.,

Quarta Parte, p. 58.

(21) Idem, Primeira e Terceira Partes, p. 13-25; 56-61; no mesmo sentido, René

Descartes, Meditações, Meditação Quarta, do Verdadeiro e do Falso, § 2.°, in

Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983 (Coleção Os Pensadores), p. 1 15.

Fim da nota de rodapé

Página 182

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Do ponto de vista semiótico, ao postular a prioridade do intelecto sobre as

experiências, Descartes acabou alijando o aspecto referencial da teoria dos signos.

Dentro de sua obsessiva busca pela verdade, reconhece que apenas o ato de

pensar, a capacidade de duvidar, é a certeza da própria existência. Eis aqui o cogito,

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funda- do na única certeza fundamental, ponto de partida para o reexame de tudo

aquilo de que duvidara.22 Não há negar que o racionalismo de Descartes, ao rejeitar

o conhecimento fundado nos sentidos, descrevendo o processo semiótico

exclusivamente na base de catego- rias mentais, acaba conduzindo a uma

concepção idealista, que tem como pressuposto, precisamente, o papel

preponderante da cons- ciência no processo de conhecimento. O dualismo

cartesiano (de um lado, a mente, o sujeito que observa o mundo, e de outro o mun-

do observado, os objetos materiais) Ieva também ao solipsismo, presente nas

formas extremadas do idealismo. Assim, se é certo que o sujeito não pode conhecer

os outros homens a não ser pelas próprias idéias, é ele, então, o único a existir. O

problema da certeza, em Descartes, tem também repercussões na esfera moral. É

que inteligência e vontade andam a par, em uma reflexão que se inaugura, na

Antiguidade, de uma perspectiva ética e que em Descartes tem conseqüências

também no processo cognitivo.23

Início da nota de rodapé

(22) René Descartes, Meditações, Meditação Quarta, Do Verdadeiro e do Falso, § 1

1, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983 (Coleção Os Pensadores), p.

1 1 9.

(23) A vontadejá fora objeto de discussão entre os gregos, mas sempre submetida à

razão, como faculdade superior da alma. E o que se vê em Platão (Fedro, o de Ia

belleza, XXXIV, in Platão, Obras, Madrid, Aguilar S. A., Ediciones, 1969, p. 868 e

869) e em Aristóteles (Etica a Nicômaco, Livro VI, Cap. 1, 1 1 38b1 1 1 39a, in

Aristóteles, Obras, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1 967, p. 1 .240). Também os

estóicos radicalizaram a concepção de uma razão hegemônica, encarregada de

suprimir ou controlar os impuisos. No estoicismo, a recusa das paixões adquire um

sen- tido diretamente cognitivo, abrindo caminho para o conhecimento ver- dadeiro.

Com Santo Agostinho, a vontade passa a desempenhar papel central no processo

cognitivo. A percepção só se torna consciente por um ato de vontade. A esta

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concepção voluntarista opõe-se São Tomás de Aquino, para quem é a inteligência

que indica à vontade os bens que

Fim da nota de rodapé

Página 183

A TEORIA DO SIGNIFICADO

Embora Descartes seja a negação da Escolástica, decidido que se encontrava a

conhecer os fundamentos da razão, certo é que Deus estava presente em toda a

sua filosofia, o que tem implicações na sua maneira de conceber a relação entre

conhecimento e vontade, ponto em que se cruzam o saber e a moral. A inteligência,

para Descartes, não alcança tudo, é finita, ao passo que a vontade, esta sim, é infini-

ta. Os erros são precisamente o resultado do descompasso entre o conhecimento e

a vontade, entre o poder de conhecer e o poder de escolher. O poder da vontade,

que o homem recebe de Deus, não é em si mesmo a causa dos erros, nem

tampouco o poder do entendi- mento, que é conferido à criatura pelo próprio Criador.

Porém, como a vontade é muito mais ampla e extensa que o entendimento, o

homem não a contém em seus limites, estendendo-a também às coisas que não

entende. Como a vontade é livre, e mais, como se põe a atuar sobre coisas que não

entende, perde-se muito facilmente, escolhendo o mal pelo bem, ou o falso pelo

verdadeiro. Isto faz com que o homem se engane e peque.24

Na concepção de Descartes, vontade e entendimento são duas espécies de

pensamento. Sentir, imaginar e mesmo conceber coisas,

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Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

devem ser buscados, vale dizer, a vontade se move em função dos fins propostos

pela razão (Sergio Paulo Rouanet, A razão cativa, 3. ed., São Paulo, Brasiliense, p.

16-19).

(24) René Descrtes, Meditações, Meditação Quarta, Do verdadeiro e do Falso, § 9 e

10, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1 983 (Coleção Os Pensadores),

p. 1 1 7- 1 1 9; no mesmo sentido, René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa,

Edições 70, 1 997 (Coleção Textos Filosóficos, ed. 42) Primeira Parte, Artigo 35, p.

39. Nas reflexões cartesianas, Deus acaba sendo inocentado dos erros que suas

criaturas cometem (René Descartes, Meditações, Meditação Quarta, Do Verdadejro

e do Falso, § 1 1 a 1 3, in Descartes, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983, Coleção

Os Pensadores, p. 1 19-121), porquanto não sendo Deus enganador, a faculdade de

conhecer que nos deu não pode- ria falhar, nem mesmo a faculdade de querer,

desde que não a amplie- mos além do que conhecemos... A razão dita-nos,

naturalmente, que nada devemos julgar, a não ser que, antes de julgar, conheçamos

o objeto distintamente (René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa, Edições 70,

1 997, Coleção Textos Filosóficos, ed. 42, Primeira Parte, Artigos 43 e 44, p. 42).

Fim da nota de rodapé

Página 184

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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são formas diferentes de apreender enquanto desejar, ter aversão, duvidar, são

formas diferentes de querer Parajulgar é preciso aplicar a vontade e o livre arbftrio.

Aliás, é a existência de uma vontade livre que torna o homem digno de louvor ou de

censura.25 As elaborações de Eduardo Couture, examinadas no segundo capftulo

(seção 2.4) são um exemplo dessa influência idealista, dessa implicação entre

inteligência e vontade que se desenvolve ainda no plano de umafilosofia da

consciência. Na visão jusnaturalista de Couture, a vontade também está submetida

à razão. A parte tem de dizer ao juiz o que sabe para depois fazer valer aquilo que

quer. A razão está orientada para o conhecimento dos fatos enquanto a vontade

está orientada para os valores. Nisto consiste a justiça inspirada pela verdade. Esta

relação entre conhecimento e vontade tem duas outras perspectivas diversas. Uma

delas, que surge na elaboração do positivismojurídico, é inspirada no criticismo

kantiano, como será visto no próximo tópico, e a outra, é fruto das incursões de

Perelman no campo da Tópica, da Retórica e das Refutações sofísticas de

Aristóteles, como também será visto mais adiante.

Na linha que descende diretamente das reflexões cartesianas, importa considerar o

idealismo de John Locke, que é, a bem dizer, um realismo representativo.26 O

filósofo inglês emprega a palavra idéia no sentido em que Descartes utiliza a

expressão cogitatio. No Livro Primeiro de seu Ensaio sobre o entendimento humano,

começa por negar a existência de idéias inatas.27 No Livro Segundo,

Início da nota de rodapé

(25) René Descartes, Princípios da Filosofia, Lisboa, Edições 70, 1 997 (Coleção

Textos Filosóficos, ed. 42), Primeira Parte, Artigos 32, 34 e 37, p.39e40.

(26) A propósito, v. John Hospers, lntroducción al análisisfilosófico, 2. ed., Madrid,

Alianza Editorial, 1984, p. 603-618. Contrariamente ao que sustentava o inatismo

cartesiano (as idéias inatas, que não advêm da experiência, são inteiramente

racionais, colocadas em nosso espírito por Deus, que não nos engana), o empirismo

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advoga a tese de que a razão, a verdade e as idéias racionais são adquiridas pelo

homem através da experiência.

(27) John Locke, Ensayo sobre eI entendimiento humano, Bogotá, Fondo de Cultura

Económica, Sección de Obras de Filosofia, p.17-79.

Fim da nota de rodapé

Página 185

A TEORIA DO SIGNIFICADO

sustenta que a alma passa a ter idéias a partir da percepção.28 Neste aspecto —

segundo Manuel Garcia Morente — a teoria do conhecimento em Locke coloca-se

sob o signo da psicologia.29 Ainda sob este aspecto, também é possível reconhecer

no idealismo do filósofo inglês uma base empírica. Isto porque, segundo exposição

feita especialmente nos Capítulos 1 a IX do Livro Segundo, ao lado das qualidades

secundárias, que não são produzidas pela coisa, mas que têm capacidade de

provocar experiências sensoriais (idéias, no sentido que o filósofo passa a

empregar), Locke reconhece a existência de qualidades primárias, inerentes às

coisas mesmas.30 Nesta medida, só é possível ter conhecimento direto das

sensações e nunca das coisas mesmas. Delas só temos cópias, que são

modificações subjetivas do espírito, operceber-se a consciência a si mesma, na feliz

expressão de Morente.31

No campo da linguagem, John Locke desenvolve uma teoria da designação, exposta

nos Capítulos I e 11 do Livro Terceiro de seu Ensaio sobre o entendiinento, na qual

se afasta dos pressupostos cartesianos. É que Descartes, ao postular a prioridade

do intelecto sobre a experiência, acabou por desconsiderar o aspecto referencial.

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Para Locke, existem duas classes de signos, vale dizer, as idéias e as palavras. As

idéias representam as coisas na mente daquele que contempla, ao passo que as

palavras nada mais representam senão as idéias na mente de quem as emprega. As

palavras, assim, são signos das idéias do emissor, sinais sensíveis dessas idéias,

ao passo que as idéias do emissor são signos das coisas.32 A linguagem seria,

assim, simples instrumento de idéias particulares, cuja existência independe da

palavra, mas que só podem ser manifestadas através dela. Longe de uma conexão

natural entre sons e idéias, Locke sustenta que a linguagem é arbitrária, ou seja, o

uso prolongado de uma

Início da nota de rodapé

(28) Idem, p. 83-99.

(29) Manuel Garcia Morente, op. cit, p. 1 82. No mesmo sentido, Miguei Reale, op.

cit., p. 120 e 121.

(30) John Locke, op. cit., p. 83-128.

(31) Manuel Garcia Morente, op. cit., p. 183.

(32) John Locke, op. cit., Livro Terceiro, Cap. ¡ e Cap. 11, § 2-6, p. 39 1 -396.

Fim da nota de rodapé

Página 186

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

palavra, numa determinada comunidade, passa a provocar nos ho- mens certas

idéias de maneira tão pronta e constante, que eles se põem a supor a existência de

um vínculo natural.33

A semiótica moderna, entretanto, faz restrições a esse ponto de vista. A separação

entre idéias e palavras, como se aquelas pudessem existir independentemente

destas, desconsidera o fato de que a significação não vem apenas da percepção

das coisas. Ela é, sim, o resultado da conjugação entre significante (palavra) e

signficado (idéia).34 Na Semiologia de Sausurre, por exemplo, a palavra arbitrário

não significa que o plano de expressão dependa da livre escolha do falante, visto

que nenhum indivíduo pode mudar o signo estabelecido pelo seu grupo lingüístico.

Arbitrário quer dizer imotivado, já que o significante não guarda nenhum vínculo

natural

Início da nota de rodapé

(33) John Locke, Ensayo sobre el entendimiento humano, Bogotá, Fondo de Cultura

Económica, 1994, Livro Terceiro, Cap. 11, § 8, p. 397 e 398.

(34) A crítica é feita por Winfried Nöth (op. cit., p. 47), na base da semiótica de

Sausurre. A semiologia de Sausurre vem exposta no seu Curso de Linguística Geral,

obra póstuma que reúne apontamentos das aulas que ministrou na Universidade de

Genebra, como compilados por alguns de seus discípulos. Para ele, a Iíngua é um

sistema de signos que, por sua vez, exprimem idéias. A relação entre significante

(palavra) e significado (idéia) é estabeiecida com base em um sistema de regras

(língua). O signo é, assim, uma coisa dupla, constituída de dois termos. Todavia, a

idéia que o signo exprime não tem um sentido metafísico, como aquele que se pode

encontrar em Platão. Ela não é anterior à palavra. O signo é um artifício

comunicativo, do qual se valem dois seres humanos, dentro de uma determinada

sociedade (Ferdinand de Saussure, Curso de Lingüística Geral, São Paulo, Editora

Cultrix, s/d, Introdução, Cap. 3; Primeira parte, Cap. 1, p. 1 5-25 e 79-84). Para

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Umberto Eco, Saussurrejamais definiu claramente o significado, deixando-o a meio

caminho entre uma imagem mental, um conceito e uma realidade psicológica; em

compensação, sublinhou energicamente o fato de o significado ser algo relacionado

à atividade mental de indivíduos no seio da sociedade. Contudo, segundo

Saussurre, o signo exprime idéias e, mesmo aceitando-se que ele não estava

pensando numa acepção platônica do termo idéia, persiste o fato de que suas idéias

eram eventos mentais em uma mente humana (Umberto Eco, Tratado Geral de

Semiótica, São Paulo,Editora Perspectiva, 1976, ColeçãoEstudo, p. 10).

Fim da nota de rodapé

Página 187

A TEORIA DO SIGNIFICADO

com o significado, nem mesmo na Iinguagem onomatopéica.35 A dimensão social

do uso da linguagem aparece, em Sausurre, na referência ao símbolo dajustiça. A

balança não poderia ser substituí- da por um objeto qualquer, um carro, por

exemplo. Daí porque o símbolo nunca é completamente aleatório.36 A mais disto,

conquanto Locke houvesse acentuado o aspecto referencial em sua teoria do

conhecimento, certo é que ele não cuidou de diferenciar com muita clareza a

experiência sensual e a experiência racionaL Não se sabe se os conceitos são

resultado de processos lógicos ou percebidos pela intuição. E difícil dizer o que se

tem na mente ao pronunciar determinada expressão. Não há como conceber uma

idéia da palavra de ou do, independente da palavra mesma, das funções gra-

maticais que ela desempenha. Ao sustentar que o aparecimento da idéia de abuso

do direito dá lugar à emissão da expressão abuso do direito (e vice-versa) o

idealismo empirista de Locke não consegue explicar a hipótese de a expressão estar

sendo enunciada fora do contexto usual. Neste caso, ficaria difícil saber a que idéia

corres- ponderia a expressão.

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Berkeley e Leibniz foram dois críticos do Ensaio sobre o en- tendimento humano.

Todavia, o idealismo de suas teorias também não permitiu ultrapassar as

dificuldades acima apontadas. Leibniz sustenta que Deus não só inspirou o desejo

dos homens de relacio- nar-se como também lhes deu o dom da palavra, faculdade

que os une, instrumento do qual se servem para representar e explicar as idéias.

Fruto dessa sociabilidade, a palavra foi formada e aperfeiçoada progressivamente.

Há povos, contudo, a exemplo dos chineses, que variam suas palavras, em número

reduzido, através de tons e acentos. Por isso, um célebre matemático, Gólio,

acreditava que a língua dos chineses é artificial, ou seja, inventada pelo homem para

Início da nota de rodapé

(35) Saussure, op. cit., p. 81-84.

(36) Idem, p. 82. Ao sustentar que a escolha do significante tem condicionamentos

sociais, Saussurre afasta-se da concepção platônica, que se pode ver em Crátilo,

vale dizer, de um convencionalismo radical, fundado em uma petição de principio,

pois não se concebe como o homem poderia ter estabelecido convenções

lingüísticas sem antes conhecer a linguagem (William P. Alston, op. cit., p. 89).

Fim da nota de rodapé

Página 188

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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que as diversas nações daquele país pudessem comunicar-se. Enfim, na concepção

idealista de Leibniz, as palavras também são si- nais das idéias. Tanto quanto

Locke, ele acredita que o sentido não brota de um nexo natural, pois, fosse assim,

haveria uma única língua entre os homens. Trata-se de uma convenção arbitrária,

na expressão do filósofo alemão. Como sinais das idéias, as palavras não se

aplicam às coisas mesmas, que às vezes o homem nem co- nhece. Deus possui as

idéias das coisas antes de criar os objetos dessas idéias e nada impede que ele

possa comunicá-las aos seres dotados de inteligência. Aliás, não há nem sequer

demonstração de que os objetos dos sentidos estão fora de quem os percebe.37

Para Berkeley, não se pode falar na existência de um mundo físico independente

das idéias, na existência de coisas anteriores às experiências sensoriais, como

supunha Locke. Daí porque é in- sustentável a afirmação de que ao homem só é

dado perceber a cópia dos objetos, mas nunca os objetos reais. A tese de Locke traz

ínsito o germe da contradição, pois ao defender que é impossível conhecer o

mundo, está fazendo afirmações sobre ele. O que existe é uma série ordenada de

percepções (conhecida comofamília de ex- periências sensoriais), que permite ao

homem conhecer o objeto.

Início da nota de rodapé

(37) Wilhelm Leibniz Gottfried, Novos ensaios sobre o entendimento huina- no, Livro

111, As palavras, São Paulo, Abril Cultural (Coleção Os Pen- sadores), 1980, p. 2 1

l, 212, 215, 218, 222, 231, 235 e 236. Conforme anota Luiz João Baraúna, que

traduziu a obra para o português, Jorge Dalgarno, autor de Arte dos Sinais,

Característica Universal e Língua Filosófica (1661), e John Wilkins, que escreveu um

manual de corres- pondência codificada, intitulado Mercury (1641), ambos citados

por Leibniz, exerceram influência indiscutível sobre o seu projeto de uma língua

universal (Leibniz, op. cit., p2 1 5). Quanto à onomatopéia, Leibniz sustenta, na base

de diversos exemplos da língua alemã, do francês e do espanhol (os quais fazem

lembrar as elucubrações de Platão, em Crátilo), que haveria boas razões para supor

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algo de natural na origem das palavras. Todavia, um estudo etimológico mais

aprofundado permitiria concluir — ainda segundo Leibniz — que devido a muitos

percalços e mudanças, as palavras, em sua maioria, estão profundamente alteradas

e se acham bem longe da sua pronúncia e da sua significação primor- diais (Leibniz,

op. cit., p. 215 a223).

Fim da nota de rodapé

Página 189

A TEORIA DO SIGNIFICADO

As alucinações são experiências sensoriais desconectadas, soltas, não ordenadas,

razão pela qual as pessoas beliscam o próprio cor- po, na tentativa de saber se

estão acordadas. Neste aspecto, o mem- bro do tato, na expressão de Berkeley, é

fundamental para que se possa falar em experiência verídica. O espelho pode

enganar quanto à imagem que reflete, mas ao tocá-lo será possível saber que ali

não está a mesa inicialmente reconhecida na base do sentido visual. Enfim, para

essa forma de idealismo, a existência de um objeto não percebido é uma

contradição. Daí porque esse estpercipi.38 Berkeley admite a existência de uma

causa para as experiências sensoriais. É graças a Deus que as experiências

ocorrem de maneira ordenada e não caótica, a exemplo do que sucede nas

alucinações. A esta altu- ra, tem-se de indagar como podem os homens, limitados a

conhe- cer apenas as experiências sensoriais, atribuí-las a Deus. Vê-se que

Berkeley fundou sua teoria em urna entidade, que trata por espírito, distinta da

experiência. Não é difícil reconhecer aqui o solipsismo presente nas formas

extremas do idealismo, pois se é certo que nada existe senão no meu espírito, seria

eu o único a existir, já que não conheço os outros a não ser pelas minhas próprias

idéias.39

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O idealismo ontológico de Berkeley, como desenvolvido nos Princípios do

conhecimento humano, implica, sob o ponto de vista da teoria da linguagem, uma

posição nominalista. Como as sensa- ções não existem a não ser na mente de quem

as percebe, tudo o que se dá no mundo interpretado como processo de semiose.

Em vez de estabelecer relações de causa e efeito, Berkeley vê apenas rela- ções

entre signos e coisas significadas. Com isto, todo o mundo natural é permeado de

signos, de forma tal que o barulho que se ouve na rua não é causado pelo ruído dos

automóveis, mas é apenas um signo dele.4° O empirismo radical do filósofo inglês

irnplica reco- nhecer que tudo aquilo que não possa ser conhecido através das

Início da nota de rodapé

(38) George Berkeley, Três Dkílogos entre Hilas e Filonous em oposição aos céticos

e ateus, in Berkeley, 3. ed., São Paulo, Abril Culural (Coleção Os Pensadores),

1984, p. 51-75.

(39) John Hospers, op. cit., p. 639-643, e Georges Politzer, op. cit., p. 44-54.

(40) Winfried Nöth, op. cit., p. 45 e 46.

Fim da nota de rodapé

Página 190

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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sensações é destituído de significado, o que leva a admitir que a expressão abuso

do direito, empregada pelos juristas no decorrer de vários séculos, como visto nos

capítulos anteriores, não tem nenhum sentido.

Nas suas Investigações acerca do entendimento humano, Hume persegue o firme

propósito de demonstrar a impossibilidade de conhecer as coisas. Não se trata

apenas de reduzir ao absurdo a teoria de seus predecessores, mas de demonstrar

que até mesmo o eu que experimenta as coisas, como concebido por Berkeley, é

um feixe de sensações. Igualmente, a existência de Deus, como inteligência

planejadora, é inferencial, indireta e vaga, porque em se tratando a existência de

uma questão de fato, só pode ser resolvida através da observação. Hume

desenvolve um procedimento metodológico fundado em dois princípios. O primeiro

deles diz que todas as idéias derivam, mediata ou imediatamente, de suas

impressões correspondentes. Assim é que a percepção surge no espfrito humano a

partir das impressões e das idéias, estas cópias daquelas. As idéias são pálidas

imagens das sensações, das paixões, das emoções, enfim, das impressões.41

Apenas no caso das percepções simples é que as idéias guardam profunda

semelhança com as impressões. As percepções simples não comportam divisões,

mas podem compor percepções complexas. As idéias simples são cópias

semelhantes das percepções simples; as idéias complexas, combinação de idéias

simples (a exemplo de montanha de ouro), nem sempre guardam tal semelhança

com as impressões correspondentes. Isto conduz a certas dificuldades, que acabam

colocando em dúvida a própria validade das inferências lógicas. Assim, se é certo

que todo efeito é distinto da causa, toma-se impossfvel localizar a impressão

originária da idéia de causalidade. Enfim, jamais se poderia ter idéia de uma coisa

que nunca se revelou aos sentidos.42

O empirismo solipsista de Hume recorre, todavia, a um segun- do princfpio, que

consiste na liberdade da imaginação de transpor

Início da nota de rodapé

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(41) David Hume, Investigação acerca do entendimento humano, São Paulo,

Nacional e Edusp, 1 972 (Biblioteca Universitária, Série Primeira, Filosofia, 13), p. 15

e 16.

(42) Idern, ibidem.

Fim da nota de rodapé

Página 191

A TEORIA DO SIGNIFICADO

e mudar stias ideias. Esta Iiberdade não é obra do acaso, mas expressão de

princípios universais que permitem uma sequência de ideias mais ou menos

ordenada (associação). Estes principios universais são a semelhança (um retrato

evoca a pessoa retratada), a contiguidade (à aproximação de sua casa, o homem

sente mais próximas as coisas que se relacionam com ela) e a causalidade (na base

da experiência, o homem desenvolve inferências).43 Decerto, nenhum objeto

presente imediatamente à memória e aos sentidos permite uma inferência causal,

uma idéia de conexão necessária entre eventos. Mas, ao observar a semelhança

entre certo número de casos, o homem experimenta um sentimento que leva o

espfrito a passar de um objeto àquele que usualmente o acompanha (transição de

catisa e efeito).44 Vê-se que Hume se orienta por um idealismo subjetivo, ao

transpor o problema da fundamentação da indução do plano do objeto para o plano

do sujeito. Sob o ponto de vista lingüístico, este subjetivismo pode ser reconhecido

na tese segundo a qual o significado das palavras está no plano das associações

intramentais.45

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Vê-se assim que para o idealismo apriorista, o abuso dos direitos processuais surge

como puro pensamento, inserido no contexto de um direito natural, expressão

permanente de uma razão subjetiva que dirige a conduta prática, de um moralismo

jurídico no qual se guiam as normas e as decisões. As disputas animadas pela con-

cepção subjetivista, que giram em torno de uma vontade orientada para prejudicar o

outro no exercfcio inconsiderado de um direito, a

Início da nota de rodapé

(43) Idem, p. 20 a 56.

(44) Idem, p. 59 a 75.

(45) William P. Alston, op. cit., p. 1 00. Em outra passagem, o autor observa que

este subjetivismo, comum a Locke, Berkeley e Hume, em que pesem as distinções

que separam estes filósofos, pode ser resumido da seguinte forma: todas as idéias

são cópias ou transformações de cópias das impressões dos sentidos. Portanto uma

palavra somente tem significado quando se possa estabelecer uma associação entre

essa palavra e uma idéia derivada da experiência sensorial. Neste sentido, todo

significado deriva necessariamente da experiência dos sentidos (op. cit., p. 97).

Fim da nota de rodapé

Página 192

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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exemplo do que se vê na chamada teoria das imissões, presente no primeiro

capítulo (seção 1.1), guardam a marca desse apriorismo, que foi superado

inicialmente por John Locke. No idealismo empi- rista todo significado deriva da

experiência, com o que certas categorias jurídicas, a exemplo do abuso dos direitos

processuais, ca- recem de sentido. O idealismo empirista de Hume é também

ceticismo. Como a existência do abuso do direito não pode ser observada enquanto

realidade sensível, o que existe é simples ficção. Quanto a Locke, é certo, como dito

há pouco, que ele considera o objeto, diferentemente do que se dá com Descartes,

no que se pode- ria enxergar uma concepção referencial. Todavia, o seu realismo

representativo é um idealismo genético, psicológico. Como observou Horkheimer, a

teoria do conhecimento de Locke é exemplo de uma traiçoeira lucidez de estilo, que

concilia as diferenças simplesmente apagando as nuanças. Nesse sentido, curioso

observar que a doutrina política do filósofo inglês, longe de buscar um fundamento

empírico para o estado de natureza do qual derivou o direito natural, procura uma

compreensão racionalista, no que inspirou Rousseau, seu discípulo direto, e o

próprio iluminismo.46 Bem por

Início da nota de rodapé

(46) Max Horkheimer, Eclipse da razão, São Paulo, Centauro, 2000, p. 35 e 36. O

empirismo ingiês deitou raízes na elaboração de outros fïlósofos. Condillac, em seu

Ensaio Sobre a Origem dos Conhecimentos Huma- nos, descreve a semiose como

um processo que se desenvolve primitivamente a partirda experiência sensual

imediata, alcançando níveis mais complexos através da percepção, consciência,

atenção, reminiscência, imaginação, interpretação, memória e reflexão. Para

Condillac, o uso dos signos é o princípio que revela a fonte de todas as nossas

idéias. Tal como Locke, defende que a base da vida mental é constituída pelos

signos. Mas esta gênese da cognição permite reconhecer, ao lado dos signos

causais, que estabelecem a conexão entre o objeto e a idéia, a existência de signos

naturais, que expressam sentimentos, e de signos institucionais, que são escolhidos

arbitrariamente para representar as coisas na idéia (Etienne B. de Condillac, Essai

sur lorigene des connaissances humaines, in E. B. de Condillac, Oeuvres

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philosophiques, vol. 1, Paris, Presses Université de France, 1 947, p. 1 . 1 1 8,

Introdução, apud Winfried Nöth, op. cit., p. 5 1). E fácil identifïcar no sensualismo do

fïlósofo fran- cês uma concepção referencial da linguagem, pois o signifïcado surge

a partir da coisa real. A teoria da linguagem formulada por Condillac

Fim da nota de rodapé

Página 193

A TEORIA DO SIGNIFICADO

isso, o empirismo moderado de Locke, se bem não possa admitir um conceito de

abuso como expressão da experiência, consente numa elaboração muito próxima do

jusnaturalismo racional. Ao mesmo tempo em que desenvolve a noção de um direito

subjetivo, fruto do individualismo liberal-burguês, o homem moderno ganha

consciência da distinção entre direito e fato, com o que a teoria do

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

inspirou um movimento que fïcou conhecido como ldéologie, cujo sentido prende-se

ao exame das faculdades psicológicas, que tinha a fina- lidade de elucidar a origem

e a formação das idéias, como propedêutica de todas as disciplinas científicas.

Destutt de Tracy e o círculo de intelectuais ligados ao lnstitut de France buscavam,

assim, fundar uma his- tória natural da mente, ou seja, pretendiam investigar e

descrever a forma pela qual se dá o pensamento. Este é o único ponto que os une à

tradição racionalista de Descartes, vale dizer, a busca de um método. No mais, os

filósofos liberais do lnstitut afastam-se diametralmente dos postulados cartesianos,

infensos que se mostravam a todo preconceito metafísico e religioso (Condillac,

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Helvétius, Degérando — Vida e obra, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1984,

Coleção Os Pensadores, p. 7). A respeito do significado de idéologie para os

integrantes do lnstitut, ver Anthony de Crespigny e Jeremy Cronin, Ideologias

Políticas, Brasflia, UnB, 1 98 1, Coleção Pensamento Político, vol. 37, p. 6. Uma das

principais características da filosofïa francesa do séc. XVII, além da oposi- ção a um

racionalismo abstrato, fundado na razão inata, é a estreita Iigação que os filósofos

iluministas mantinham com a vida pública. Embora os filósofos do século XVIII, a

exemplo de Montesquieu, Voltaire, Diderot, DAlembert e Rousseau, também fossem

racionalistas, eles o eram em medida diferente. Concebiam a razão como força que

parte da experiência sensível, desenvolvendo-se juntamente com ela (Condillac,

Helvétius, Degérando — Vida e obra, 3. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1984,

Coleção Os Pensadores, p. 7). Diderot, por exem- p1o, diferentemente do que

sustentava o racionalismo cartesiano, dava particular importância à Iinguagem dos

gestos, mais expressiva que a linguagem verbal, dada a sua tridimensionalidade,

que difere da estrutura unidimensional da palavra. Para o semiólogo

contemporâneo, Winfried Nöth, professor de Lingüística da Universidade de Kassel,

é possível concluir que na perspectiva de Diderot, a Iinguagem provoca uma

distorção da realidade. Esta distinção entre linguagem verbal e linguagem não-

verbal terá repercussões na elaboração da semiótica moderna, refletindo, sobretudo,

no conceito de ícone (Winfried Nöth, op. cit., p. 52).

Fim da nota de rodapé

Página 194

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

abuso se desprende das suas bases morais, às quais estava ligada por força do

idealismo transcendente (Platão) e do idealismo apriorista (Descartes).

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O mérito do idealismo moderno está em haver superado a concepção ontológica da

Antiguidade, onde as idéias existem por trás das coisas, independentemente do

sujeito cognoscente. Mas tem- se de reconhecer que há uma relação entre

significante e significado que não inclui necessariamente a coisa real (teoria

referencial) ou a idéia, como expressão sensorial carregada de materialidade (teoria

idealista). As palavras são doadoras de um sentido que não brota delas próprias,

mas sim do uso social que delas se faz. O signo abuso do direito não aponta para si

próprio e tampouco para uma realidade empírica, que possa ser experimentada

através dos sentidos, mas sim para outros signos, tais comojustiça, lealdade,

correção, construídos de acordo com as práticas sociais. O significado, tal qual

sucedia na retórica clássica, tem em conta a alteridade, a relação entre as pessoas.

Esta passagem, que vai de uma concepção representativa para um sentido

intersubjetivo da linguagem, exige o exame de outros pressupostos, que estão na

fenomenologia.

3.3 A superação da dicotomia idealismo e realismo

Diferentemente do que supõe uma concepção representativa do significado, o

pensamento não é uma atitude solitária. Esta crítica tanto vale para a perspectiva

idealista como para o realismo ingênuo, que parte da possibilidade de uma perfeita

correspondência entre o ser real e o ser pensado. A teoria referencial falha ao identi-

ficar significado e coisa real, porque há categorias ideais que não têm

correspondência no mundo sensível. A idéia de número não se confunde com o som

da palavra um ou com a marca um, que se deixa sobre o papel. A idéia de Deus, por

sua vez, não tem referência empírica. Há também categorias gramaticais,

conhecidas como sincategoremas, que isoladamente não têm nenhuma referência, a

exemplo das conjunções e dos verbòs auxiliares. Elas só ganham sentido no

contexto de uma oração. Outrossim, é certo que duas expressões, a despeito de

diferentes significados, podem ter o mesmo referente. E o que sucede, no clássico

exemplo de Gottlob Frege,

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Página 195

A TEORIA DO SIGNIFICADO

com Estrela da Manhã e Estrela da Tarde, expressões que ape- sar da diversidade

de significados possuem o mesmo referente, qual seja, o planeta Vênus.47 As vezes

ocorre de o significado ser o mes- mo, mas diversos os referentes. O pronome

pessoal eu tem um único significado, mas referentes distintos, conforme seja a

própria pessoa quem o emprega ou pessoa diversa.48 Bem por isso, o crité- rio de

verdade não está na simples adequação do enunciado ao fato, vale dizer, em uma

relação meramente semântica.49

A teoria idealista também é passível de críticas. Há aqui duas vertentes. Uma delas

admite a existência da realidade objetiva, que é ideal por natureza, e outra concebe

a razão como força que parte da experiência sensível.50 Se as pessoas

guardassem seus pensamen- tos, seria bem possível prescindir das palavras. Trata-

se, é claro, de uma hipótese cerebrina, porque o homem é um ser social. Mas é

Início da nota de rodapé

(47) Gottlob Frege, Lógica e filosofia da linguagem, São Paulo, Cultrix — Edusp,

1978, p. 67.

(48) O exemplo é de William P. Alston (op. cit., p. 30).

(49) Os realistas recorrem à noção de sinonimia, na tentativa de demonstrar a tese

que estabelece uma relação direta entre palavras e coisas. Mas o fato de duas

expressões designarem o mesmo objeto, conquanto necessário para dizer que são

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sinônimas, não autoriza a substituir uma por outra em contextos diferentes. Rosa de

Hiroshima e bomba atômica, aparecem, no famoso poema de Vinicius de Moraes,

com um único referente. Todavia, cada uma das palavras que compõem a

expressão tem significados diferentes. Para Iembrar Shakespeare, na fala de Julieta,

aquilo a que chamamos rosa não teria menos perfume se utilizássemos outra

palavra. Enfim, não se pode confundir o signo com o referente. A propósito, v. Alaôr

Caffé Alves, Lógica — pensamentoformal e arguÍnentação — elementos para o

discursojurídico, São Paulo, Edipro, 2.000, p. 50-57.

(50) A distinção também é conhecida pelas expressões idealismo objetivo (existe a

realidade objetiva, que é ideal por natureza) e idealismo subjetivo (a realidade é uma

construção da mente). Esta última, é uma forma extrema de idealismo. O sentido da

palavra idéia, que aparece na pri- meira definição, varia muito, de filósofo para

filósofo (Adam Schaff, lntroducción a la semántica, México, Fondo de Cultura

Económica, 1 992, p. 70). Berkeley está filiado ao idealismo subjetivo, ao passo que

Locke, por exemplo, sustenta um idealismo objetivo.

Fim da nota de rodapé

Página 196

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

preciso ver, comojá se disse na seção anterior, que há uma relativa independência

entre signo e idéia. Ao ouvir uma palavra, diferen- temente do que supõe o

radicalismo mentalista, o receptor nem sem- pre tem a mesma imagem, a mesma

idéia. Cada pessoa possui uma concepção própria de casa, rua, cidade. E possível,

de outra forma, ter imagens mentais idênticas, acompanhadas de palavras distintas,

com significados bastante diferentes. Assim, à imagem de uma rua poderia vir ligada

a palavra rua, como também outras, a exemplo de caminho, sentido, percurso.

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Entretanto, estas palavras, em determinada hipótese, podem estar sendo

empregadas com o mesmo sentido.

A teoria comportamental também é passível de críticas. A tese comum entre os

comportamentalistas consiste em que, tendo os indivíduos uma estrutura física e

mental análoga, sucede daí que possam comunicar-se, entender uns aos outros,

mutuamente. Assim, alguém experimenta uma determinada sensação e age, por

meio dela, de modo que outras pessoas tenham experiências semelhantes.

Diferentes mentes têm, desta forma, experiências parecidas.5 E certo que a tese

refuta o transcendentalismo contido nas diversas formas de idealismo lingüístico, já

examinadas. Outros behavioristas, a exemplo de Alan Gardiner, acrescentam, com

um toque de realis- mo, que a coisa da qual se fala, comum às duas pessoas que se

co- municam, também participa desta ação comunicativa.52 Todavia, a objeção a

essas construções está em que elas partem de uma falácia conhecida como circulus

in demonstrando. Em outras palavras, instados a demonstrar a possibilidade da

comunicação, os behavioristas dão como pressuposta essa possibilidade, passando

a afirmar, então, que os homens se comunicam graças à semelhança de seus or-

ganismos. Ao admitir a existência de sujeitos e mentes separadas, não haveria

como explicar a possibilidade da comunicação senão recorrendo a algum princípio

supra-empírico, o que aproxima os

Início da nota de rodapé

(51) I. A. Richards, Principles ofLiterary Criticism, London, Routledge & Kegan Paul,

Cap. XXI, apudAdam Schaff, op. cit., p. 141.

(52) Alan Gardiner, The Theory ofSpeech and Language, Oxford, The Claredon

Press, 1951, p. 18 e ss., apudAdam Schaff, op. cit., p. 143.

Fim da nota de rodapé

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Página 197

A TEORIA DO SIGNIFICADO

comportamentalistas das teses do idealismo lingüístico. Também os que recorrem à

noção de realidade comum àqueles que se comuni- cam incidem na mesma falácia,

porquanto a possibilidade da comu- nicação na base da existência desta realidade é

exatamente a questão que tem de ser demonstrada, mas que fica somente

pressuposta.53

Aos lógicos deve-se a elaboração de uma teoria auto-referen- cial do signo, que se

inaugura com Port Royal, para quem o signo não tem vínculo com uma mente

exterior. Trata-se de uma visão autopoiética, onde o processo de comunicação é

gerado por si próprio, dentro de um mesmo sistema, fechado e exclusivamente

mental. Este mentalismo semiótico radicalizou a teoria diádica, postulando que tanto

o significado como o sígnificante são categorias ideais. O signo verbal (significante)

não seria a expressão acústica da palavra pronunciada, mas a representação ou o

modelo mental daquele som e daquela articulação no momento da recepção. Como

Início da nota de rodapé

(53) Adam Schaff, op. cit., p. 141-145 e 148. Alston também faz críticas à teoria

comportamental. O signitïcado não varia em uma relação direta com os fatores que

os comportamentalistas põem em relevo. Como as anteriores (teoria referencial e

teoria idealista), a teoria comportamental baseia-se em uma idéia importante, que se

deforma, entretanto, pelo seu simplismo: Assim como o uso significativo da

linguagem tem algo a ver com a referência ao mundo, assim como, de algum modo

expres- samos e comunicamos nossos pensamentos ao usar a linguagem, cons-

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tituiu também um fato significativo que as unidades de linguagem adquiram seu

significado ao serem usadas pelas pessoas em diversos tipos de situações. As

teorias comportamentais erram ao conceber esta implicação comportamental em

termos excessivamente simplistas. Supõem que uma palavra ou sentença tem

determinado significado em virtude de estar envolvida, como resposta e/ou corno

estímulo, cm conexões estímulo-resposta basicamente sernelhantes, exceto no que

diz respeito a sua complexidade, a um simples reflexo, como o da extensão do

joelho. Infelizmente, estas conexões nunca foram encontradas, exceção feita às que

não são obviamente determinantes do significado, como sucede com o grito

cuidado! que geralmente provoca o afastamento. Alston conclui que é necessária

uma teoria mais adequada, sob o ponto de vista do comportamento lingüístico, uma

teoria que defina as unidades de conduta que são decisivas para estabelecer o

significado das palavras (William P. Alston, op. cit., p. 52 e 53).

Fim da nota de rodapé

Página 198

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

esse significante mental excita um significado que é igualmente mental, a semiose

fica completamente confinada à mente, desde a recepção até a compreensão final

do signo. Este modelo semiótico acabou influenciando a concepção de Saussure e é

reconhecido como o antecedente mais remoto do chamado construtivismo radi- cal,

uma das correntes das ciências cognitivas.54

Início da nota de rodapé

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(54) No campo da biologia, o construtivismo radical de Humberto Maturana e

Francisco Varela é um importante paradigma. Postulam estes estudiosos que os

signos percebidos por um observador nunca podem vir de fora de sua própria

mente. Não circulam entre fonte e receptor; daí sua auto-referencialidade

(Autopoiesis and cognition, Dordrecht, Reidel, 1972, apud Winfried Nöth, op. cit., p.

43 e 44). As ciências cognitivas são um conjunto de disciplinas — que se uniram

sem perder as suas ca- racterísticas e metodologias próprias — voltadas para a

investigação do conhecimento. Surgem com a cibernética, por volta dos anos 40 (ver

Norbert Wiener, Cibernética e Sociedade — o uso humano de seres humanos, 5.

ed., São Paulo, Cultrix, s/d, especialmente p. 14, 16, 57, 72, 82,95, 110, 115, 134,

149, 168, 178e 184a 190),o que permitiu que a investigação puramente especulativa

abrisse espaço para a experimentação. Uniram-se, então, a psicologia cognitiva, a

inteligência artificial, a lingüística, a filosofia, a neurobiologia e a antropologia, na

base da analogia entre a mente e o computador. Na área da lingüística, os

estudiosos estavam ocupados em tentar a validação psicológica da gramática

gerativa de Noam Chomsky (Aspectos de la teoria de Ia sintaxis, Madrid, Aguilar

S.A. Ediciones, Coleção Cultura e História, 1 97 1), que se funda na tese de que

todo ser humano é dotado de uma certa competência sintática, proveniente de

mecanismos psicológicos inatos, o que Chomsky busca comprovar recorrendo à

estrutura profunda das orações. As elaborações do lingüista inglês, que têm a marca

do racionalismo de Descartes e de Leibniz, dentre outros, foram objeto de diversas

investi- gações no campo da psicologia e também do direito, dentre as quais se

destaca a contribuição de Roberto Jose Vernengo (La interpretación literal de Ia ley,

Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1 97 1, p. 77-89). A propósito ver também Luiz Sergio

Fernandes de Souza, Opapel da ideolo- gia nopreenchimento das lacunas no direito,

2 ed., São Paulo, RT, 2005, p. 99-1 10. O modelo sistêmico-funcionalista também

discute os sistemas autopoiéticos, como se vê em Luhmann e Talcott Parsons. No

Bra- sil, assinala-se a discussão inovadora de Tercio Sampaio Ferraz Jr., no finai da

década de 70 (Teoria da Norma Jurídica: ensaio de pragmática da comunicação

normativa, Rio de Janeiro, Forense, 1 978, especialmente

Fim da nota de rodapé

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A TEORIA DO SIGNIFICADO

A possibilidade de uma linguagem artificial, simbólica, livre das imperfeições da

linguagem natural, às quais se fez menção no segundo capítulo (seção 2.3),

inscreve-se também no campo da Lógica. Este foi o ideal concebido por Leibniz, que

desenvolveu re-gras para a combinação de signos, com vista à construção de uma

Iinguagem científica e universal, de um sistema racional pautado na representação

isomórfica das coisas do mundo.55 O tema da pro- cura de uma língua universal

encontra-se igualmente em George Dalgarno, em John Wilkins56e, sob outra

perspectiva, não isomórfica, na obra de Friedrich Ludwig Gottlob Frege, cujas

elaborações inau- guram a filosofia analítica. Tal como Leibniz, Frege pretendia de-

senvolver uma linguagem artificial, que permitisse exprimir com exatidão todas as

formas lingüfsticas. Essa ideografia substituiria a linguagem ordinária no campo

científico, permitindo, outrossim, uma crítica da linguagem natural.57 Antes mesmo

de Husserl, Frege extremou Lógica e Psicologia, buscando um critério de

objetividade.58

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

p. 140-149). Mais recentemente, em defesa da tese da autopoiese no direito, no

contexto de uma economia globalizada, v. Willis Santiago Guerra Filho, Autopoiese

do Direito na Sociedade Pós-Modernas in- trodução a uma teoria social sistêmica,

especialmente, p. 1 8, 1 9, 22, 39-73 e 91.

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(55) Leibniz, op. cit., p. 32 1 -327. Consta que, antes dele, Raimundus Lullus já

esboçara unia tentativa de conduzir todo o conhecimento humano a conceitos

univocos, que se exprimiam através de uma espécie de alfa- beto de símbolos,

aplicados matematicamente (Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 23).

(56) George Dalgarno, Ars signorum, vulgo character universalis et lingua

philosophica, Menston, Scolar, 1 968, apud Winfried Nöth, op. cit., p. 44, e John

Wilkins, Mercury, the secret and swiftrnessenger Amsterdam, Benjamins, 1 984,

apud Winfried Nöth, op. cit., p. 44.

(57) Gottlob Frege, op. cit., p. 131-152.

(58) Paulo Alcoforado, Introdução à edição brasileira de Gottlob Frege, Lógica

efilosofia da linguagem, São Paulo, Cultrix — Edusp, 1978, p. 1 3. A respeito da

distinção entre o campo da investigação lógica e o campo da psicologia v. Irving

Copi (op. cit., p. 1 9-26) e Wesley Salmon (op. cit., p. 13-29).

Fim da nota de rodapé

Página 200

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Eo fez na base da distinção entre sinal ou signo (a); objeto ou denotação (b); sentido

(c).59

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A denotação, na linguagem natural, pode ser estabelecida através de várias

palavras, sinônimas, portanto. Ademais, há diversas palavras com o mesmo sentido.

Contudo, a linguagem científica, rigorosa, logicamente exata, exige uma relação

biunívoca entre sinal e sentido. Mais que isto, todo sinal deve ter um sentido

determinado, preciso, o que nem sempre ocorre na linguagem natural. Os

enunciados científicos, outrossim, têm de evitar o emprego de nomes que tenham

sentido, mas não denotação, sob pena de não ser possível lhes atribuir um juízo

veritativo. Destarte, uma linguagem rigorosa postula a existência de denotação e

sentido. O sentido, para Frege, não é a idéia e nem tampouco o objeto,

diferentemente do que se passa na teoria representativa. A representação é sempre

subjetiva: a representação de um homem não é a mesma de outro. Todo enunciado

contém um pensamento (proposição), que é o sentido da frase. A denotação é

aquilo que permanece no enunciado, ainda que se altere o seu sentido, vale dizer, é

ela a referência ao objeto. O valor de verdade está naquilo que permanece, ou seja,

na denotação. O conhecimento pleno só existe quando se tem tanto o sentido (a

proposição, o pensamento), como a denotação (o valor de verdade). Mas Frege

reconhece que há casos em que se mostra impossível alterar o sentido sem que

isso também altere o valor de verdade, ou seja, a denotação do enunciado. E o caso

das frases João disse que viu Maria e João viu Maria. A alteração do sentido

interferiu na possibilidade de se predicar o juízo falso/verdadeiro a estes enunciados.

Eis o esforço de Frege para expulsar as línguas naturais da lógica formal, que seria,

então, universal, sem necessidade de tradução.

As elaborações de Frege são importantes para que se possa entender o rompimento

com a dicotomia entre realismo e idealismo. Nelas, o sentido surge como algo

diferente da referência. Estrela da Manhã e Estrela da Tarde, comojá se disse

anteriormente, têm o

Início da nota de rodapé

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(59) Gottlob Frege, op. cit., p. 59-86. A respeito, ver também Manfredo Araújo de

Oliveira (op. cit., p. 62-69), no qual também se inspirou a presente exposição.

Fim da nota de rodapé

Página 201

A TEORIA DO SIGNIFICADO

mesmo referente. Isto implicaria afirmar, de uma perspectiva representativa, que o

significado destas duas expressões é o mesmo, já que elas denotam o mesmo

objeto. Frege observa, entretanto, que, ao se considerar o conteúdo dessas

expressões, o modo como elas denotam, suas significações se afiguram

diferentes.60 Da mesma forma, o enunciado Walter Scott é o autor de Waverley

apresenta duas vezes a mesma referência (Walter Scott e autor de Waverley), com

sentidos diferentes. Já nas frases O atual rei da França é calvo e Perseu matou o

minotauro, vê-se que a despei- to da ausência de um referente, há um sentido.61 Ao

mesmo tempo em que Frege introduz no estudo semântico, a partir da noção de

referência, um objeto da realidade fenomênica, extralingüística, faz a significação

dependcr de um valor de verdade. A crítica que se costuma fazer a esta perspectiva

semântica é que ela coloca o pro- blema da significação no terreno da verdade,

pertencente à Lógica, quando é certo que para apreender o sentido da frase O atual

rei da França é calvo ninguém precisa saber se a França tem ou não um rei na

atualidade. A questão que se coloca, neste ponto, é de compe- tência lingüística,

tão-só.62

As contribuições de Frege no campo da linguagem valem mais por aquilo que está

nas suas premissas do que propriamente na conclusão. O projeto de uma relação

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biunívoca entre signo e sentido — que também foi perseguido pelo positivismo

lógico, como será visto no capítulo seguinte — implica dificuldades que a teoria

semântica do significado não está em condições de resolver. As elaborações de

Frege apontam precisamente para esses problemas. Uma teoria cientifica sempre

contém algum termo que denota coisas que não podem ser observadas. O id, o

superego e o ego, na teoria freudiana, são exemplos disto. Estas expressões têm,

entretanto, um

Início da nota de rodapé

(60) Gottlob Frege, op. cit., p. 87-103. A respeito, v. Adam Schaff, op. cit., p. 231.

(61) A propósito, v. ManfredoAraújo de Oliveira (op. cit., p.65 e 66) e Edward Lopes

(Fundamentos da Lingüística Contemporânea, São Paulo, Cultrix, s/d, p. 245 e 246).

(62) Edward Lopes, op. cit., p. 247 e 248.

Fim da nota de rodapé

Página 202

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

significado que permite explicar diversos fenômenos psicológicos.63 Como resultou

claro, poucos anos depois, a partir das elaborações do positivismo lógico, nem a

verificabilidade nem afalsificabilidade, como critérios de significação, conseguem

estabelecer um parâmetro de verdade fundado numa relação necessária entre sen-

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tido e denotação. Como admitiu Popper, até mesmo enunciados basicos (asserções

sobre a existência de algum estado de coisas observável num lugar e tempo

determinados), por se revestirem de um caráter hipotético, dependem de uma

teoria64. Com isto, afasta- se a tese daqueles que sustentam que o discurso

jurídico, fazendo referência a categorias que não pertencem à realidade objetiva,

seria destituído de sentido. Conquanto o abuso dos direitos processuais não seja

uma realidade palpável, as teorias que se desenvolvem em tomo dessa questão têm

um inegável sentido prático, como se teve oportunidade de ver nos capítulos

anteriores.

Enfim, conquanto o abuso do direito não seja uma figura, uma imagem da realidade,

também não se pode cogitar de uma categoria metafísica. O significado do abuso do

direito não é um objeto platônico, existente antes mesmo da palavra abuso do

direito, mas sim uma ferramenta, que cumpre determinadas funções sociais, no que

se reconhece o seu sentido. Adam Schaff observa que apesar do relevo que os

lógicos deram ao problema da linguagem, as questões centrais da filosofia são

outras. Os questionamentos acerca da linguagem refletem uma preocupação

epistemológica que a análise estritamente lógica não está em condições de

apreender. O proble- ma da linguagem não pode ser reduzido a aspectos formais,

pres- cindindo dos aspectos ontológicos e também da Iigação do homem com o

mundo. Esta síntese tem de ser alcançada de um prisma so- ciológico.65 O

criticismo kantiano é o ponto de partida de algumas

Início da nota de rodapé

(63) John Hospers, op. cit., p. 296-298.

(64) A propósito, v. A. J. Ayer, Linguagem, verdade e lógica, Lisboa, Pre- sença,

1991, p. 13-29, 52-53, 70-78, 105-126, 145-147, eAs questões ceutrais dafilosofia,

Rio de Janeiro, Zahar, 1 975, p. 37-45; John Hospers, op. cit., p. 326-343; William P.

Alston, op. cit., p. 105-123.

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(65) Adam Schaff, op. cit., p. 121-124.

Fim da nota de rodapé

Página 203

A TEORIA DO SIGNIFICADO

perspectivas filosóficas que buscaram a superação e síntese da dicotomia razão

subjetiva-razão objetiva.

A fenomenologia de Kant procura conciliar concepções filosóficas que dividem

racionalistas e empiristas, realistas e idealistas, tratando de demonstrar a

insuficiência das reflexões até então desenvolvidas. Kant impressionou-se do

ceticismo demolidor de Hume, que o moveu à construção de um novo sistema

metafísico, na Crítica da Razão Pura.66 E certo que não se pode cogitar de idéias

inatas à moda de Descartes e Leibniz. Todavia, também não se pode fundar o

conhecimento exclusivamente na experiência. Como foi visto, Hume chega à

conclusão de que a ciência baseada na causalidade é metafisica. Esta possibilidade

não é empírica e, portanto, não pode ser provada — dirá o filósofo inglês. Segundo

Kant, o conhecimento está fundado não só em dados sensíveis mas também nos

conceitos puros, que são necessários para um trabalho de síntese. Enfim,

conquanto importante a realidade sensível, é certo que o conhecimento não pode

prescindir dos elementos racionais que ordenam os dados empíricos. Estes, quando

desligados dos con- ceitos próprios do entendimento, são desprovidos de

significado. Por outro lado, os conceitos seriam vazios se não recebessem o con-

teúdo dos dados sensoriais. Enfim, o espírito condiciona a expe- riência ao mesmo

tempo em que ela o desperta para a consciência

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Início da nota de rodapé

(66) As considerações que seguem têm lastro na Crítica da Razão Pura, cuio

refinamento de conceitos — como reconhecido pelos filósofos que sucederam Kant

—exigiu também segundas leituras (Johannes Hessen, op. cit., p. 7-23, 54-57, 78-

80, 108- 1 1 1; Manuel Garcia Morente, op. cit., p. 229-263; Nicola Abbagnano,

Diccionario de Filosofía, Colômbia, reimpresión, Fondo de Cultura Económica, 1997,

p. 718 e 973; Rafael Gómez Pérez, História bósica dafilosofia, São Paulo, Nerman,

1988, p. 1 83- 1 90; André Lalande, op. cit., p. 378-382: Gilles-Gaston Granger, A

Razão, 28 ed., São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1969, coleção Saber Atual, p.

1 8-20 e 61 -63; Emiie Bréhier, op. cit., vol. 11, Madrid. Tecnos, 1988, p.I7O-2l3;

Miguel Reale, Introdução à Filosofia, 3. ed. São Paulo, Saraiva, I994,p. 1 19-169,

Marilena Chauí, Convite à Filo- sofia, 2. ed., São Paulo, Atica, 1995, p. 76-80, e

Hermes Lima, Intro- dução à ciência do direito, 3 1 . ed., Rio de Janeiro, Freitas

Bastos, 1 996, p. 214-217).

Fim da nota de rodapé

Página 204

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

de si próprio.67 No criticismo kantiano, o método (sujeito) cria o objeto, pelo que

inexistente a coisa em si mesma. A razão é sempre razão subjetiva. As formas a

priori da sensibilidade (matéria) encontram algo que está no espfrito anteriormente à

experiência, vale dizer, os conceitos a priori do entendimento (forma). Assim, dife-

rentemente do que supõem o inatismo cartesiano e o empirismo de Hume, tempo e

espaço são estruturas da razão. A realidade em si não é espacial, temporal,

qualitativa ou causal.

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Dito de outra forma: o sujeito do conhecimento é a razão uni- versal e não uma

subjetividade pessoal e psicológica. A estrutura da razão universal é inata e não

depende da experiência. A razão universal é apriori, vale dizer, anterior a toda

experiência. Os conteúdos da razão, que variam no tempo e no espaço, dependem,

todavia, da experiência e são organizados por um conjunto de elementos chamados

categorias, condições a priori do conhecimento. Com as categorias, que tornam

possível o conhecimento intelectual, o sujeito formula conceitos. Os juízos, relação

entre conceitos, são analíticos (tautológicos e universais) e sintéticos (ampliativos e

particulares); empíricos (derivados da experiência) e puros (não derivados da

experiência). O criticismo de Kant, como superação e síntese da díade razão

subjetiva — razão objetiva, concebe também juízos sintéticos a priori (conteúdo da

razão que depende da experiência). São doze as categorias originárias: a) segundo

a quantidade: totalidade, pluralidade e singularidade, às quais correspondem,

respectivamente, o juízo universal, o iuízo particular e o juízo singular; b) segundo a

qualidade: realidade, negação e limitação, às quais correspondem, respectivamente,

os iuízos afirmativos, os juízos negativos e os juízos indefinidos; c) scgundo a

relação: inerência, causalidade e comunidade, às quais correspondem,

respectivamente, os juízos categóricos, os iuízos hipotéticos e os juízos disjuntivos;

d) segundo a modalidade: possibilidade, existência e necessidade, às quais

correspondem, res- pectivamente, juízos problemáticos, juízos assertóricos e juízos

Início da nota de rodapé

(67) Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1985, Introdução, I - 111, p. 36-42.

Fim da nota de rodapé

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A TEORIA DO SIGNIFICADO

apodíticos.68 A filosofia e a ciência são a síntese que a razão realiza entre

umaforma universal e necessária (juízo a priori) e um conteúdo particular e

contingente (juízo a posteriori). As categorias, vale dizer, o conjunto de elementos

que organizam o conteúdo empírico, não são hábitos psicológicos associativos, mas

instrumen- tos racionais que permitem conhecer o mundo. Não são estas categorias

a realidade mesma, mas estruturas a priori, pelo que a razão não está nas coisas,

mas no homem que as conhece (razão subjetiva).69

Mas ao lado de uma razão pura teórica está uma razão pura prática, que não

contempla uma causalidade externa necessária, criando, isto sim, sua própria

realidade. Aqui está o reino humano da paixão, bem como o campo da Etica, que

postula a existência de leis morais das quais decorrem deveres para a liberdade do

homem. O dever ser não é uma imposição externa à vontade e à consciência, mas

expressão de uma lei moral em nós. O homem, como ser natural, é movido por

interesses, pela necessidade de satisfazer apetites, impulsos e desejos. A

verdadeira liberdade não é aquela causalmente determinada, mas sim a que permite

a passagem das motivações do interesse para o dever.70 Repetindo Kelsen, o

homem só é livre a partirda norma. O homem é livreporque sua condutaé umponto

terminal de imputação, embora seja causalmente determinada. Por

Início da nota de rodapé

(68) Idem, Introdução, IV e V, p. 42-49, Estética Transcendental, p. 61-87, e

Analítica Transcendental, Cap. 1, Segunda e Terceira Seção, p. 103-1 17.

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(69) Idem, Introdução, Iv - vII, p. 42-57. Veja-se que, diferentemente do que supunha

o realismo representativo de Locke, nem mesmo as qualida- des primárias

pertencem à própria coisa. Forma, extensão, movimento e, por conseguinte, todas

as propriedades espaciais e temporais estão na consciência. Mais que isto, as

relações de causalidade, o conceito de possibilidade e necessidade, tudo se funda

em certas formas e funções a priori, as quais, excitadas pelas sensações, entram

em ação, independentemente da nossa vontade. Enfim, o mundo em que o homem

vive é formado por sua consciência, por suas formas a priori. E a isto se chama

mundo fenomênico. Esta, pois, a perspectiva fenomenológica em Kant (Hessen, op.

cit., p. 108 a 1 I 1).

(70) Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1 979, p.

1 39- l 48, eAjustiça e o direito natural, 2. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p.

124-136.

Fim da nota de rodapé

Página 206

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

isso, não existe qualquer contradição entre a causalidade da ordem natural e

aliberdade sob a ordem moral oujurídica.71 Kantrecusa o direito natural (na

concepção clássica) por entender que a lei posta vincula-se ao Estado. Mas o

conceito de direito transcende o empirismo da lei positiva, buscando fundamento na

razão prática, que procura conter a vontade sem limites. O dever, que vale para

todos e para qualquer ação, é uma forma universal categórica, Age sempre de tal

modo que a máxima do teu agir possa por ti ser querida como lei universal 72

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A matriz da Teoria Pura do Direito é kantiana, como se pode ver da distinção entre

as categorias do ser e do dever ser. Mas para Kelsen a razão não é legisladora, pois

sua função é conhecer e não querer. Ao considerar que a norma é posta por um ato

de vontade, Kelsen afasta a possibilidade da existência de uma norma imedia-

tamente evidente, que pressupõe a razão prática. Isto lhe dá condições para

estabelecer a distinção entre o ato do conhecimento (ciência do direito) e o ato de

vontade (norma), numa perspectiva diversa daquela concebida por Kant, que acaba

identificando es- tas duas esferas.73 E que o direito, na visão kantiana, está no

campo da razão prática, orientada pela lei moral que impera na cons- ciência do

homem, ao passo que o imperativo categórico, do ângulo da Tcoria Pura do Direito,

serve apenas para separar o mundo da natureza, causalmente determinado, do

mundo espiritual das normas, as quais Kelsen também concebe como imperativos,

mas apenas na formulação do legislador. Esse empirismo da lei positi- va, não

considerado por Kant, permite uma aproximação entre Kelsen e os neoempiristas. A

norma nasce de um ato de vontade (lei, sentença etc.), mas se desprende dela,

ganhando um sentido objetivo, quando se torna norma posta. Kelsen reivindica,

então, uma dimensão lógica para o direito, que estaria no nível da proposição

jurídica. Esta, entretanto, é uma situação complicada do

Início da nota de rodapé

(71) Hans Kelsen, Teoria purci clo dij•eito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979,p.

148.

(72) Kelsen, Ajustiça e o direito natural, 2. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p.

24 e 25.

(73) Ide,n, p. 124-136.

Fim da nota de rodapé

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A TEORIA DO SIGNIFICADO

ponto de vista do positivismo lógico, porque, como será visto mais adiante, a

proposição jurídica, na Teoria Pura do Direito, é também um dever ser, que tem um

sentido descritivo.74

Enfim, uma teoria do abuso do direito processual, na perspectiva kelseniana, mais

não poderia fazer senão identificar possíveis significações da sentença que apreciou

a questão do abuso como posta pelas partes. Com isto, Kelsen busca fugir do

embaraço de uma linguagem lógica sem referente, de um sentido sem denotação,

di- ficuldade que teria de enfrentar caso admitisse a possibilidade de uma relação

direta entre o campo do conhecimento e o campo da vontade, dos valores. Com a

intermediação da norma, que aparece como esquema de interpretação (e não como

estrutura de sentido), a Teoria Pura procura contornar o problema. Contudo, está

claro que as teoriasjurídicas não são simplesmente descritivas. Elas participam do

processo de criação do direito, o que será mais tarde enfatizado pelas correntes

jusfilosóficas que acentuam o papel da argumentação no campo da produção

jurídica, a exemplo da nova retórica de Perelman.75

Início da nota de rodapé

(74) Kelsen, Teoria pura do direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1 979, p. 1 16.

(75) Perelman, segundo se sabe, dedicou-se inicialmente à lógica formal,

escrevendo sua tese, em 1938, sobre Gottlob Frege. Tentou aplicar o método

positivista de Frege à idéia dejustiça, com o que supunha poder eliminar desse

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conceito todojuízo de valor. Sucede que Perelman não resolveu a questão

consistente em saber como se raciocina a respeito de valores. Esse problema foi

resolvido, de uma outra ótica, anos mais tarde, quando teve contato com a dialética

aristotélica (Manuel Atienza, op. cit., p. 8 1 -83). A crítica de Perelman ao

positivismojurídico kelseniano está bem representada na seguinte passagem:

Parece-me que todos os paradoxos da Teoria Pura do Direito, assim como todas as

suas implicações fllosoficas, derivam de uma teoria do conhecimento que só dá

valor a um saber não controverso, inteiramente fundado nos dados da experiência e

da prova demonstrativa, desprezando totalmente o papel da argumentação. Com

efeito, nem a experiência nem a demonstração Iógica permitem a passagem do ser

para o dever-ser, da realidade para o valor, de comportamentos para normas. Por

conseguinte, como toda justificação racional das normas parece excluída na

perspectiva kelseniana, estas dependem efetivamente de imperativos religiosos, de

revelações

Fim da nota de rodapé

Página 208

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A fenomenologia de Kant exerceu influência notável nos filósofos que se seguiram.

Particularmente importante, no campo da semântica, foi Husserl, cujo pensamento,

na senda aberta pelo criticismo Kantiano, coloca a tônica no sujeito do

conhecimento, na consciência reflexiva. O homem não é um ser puramente

intelectual. Ao lado da razão está a vontade dirigida para a ação. A questão da

essência do conhecimento desloca-se de uma postura receptiva e passiva — que se

encontra na dicotomia idealismo-realismo — para colocar-se no plano da ação e da

produção. Sob este prisma, a consciência é uma energia criadora, pois o homem, no

lugar de desco- brir o mundo que está em sua volta, passa a produzir a realidade.

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Essa nova orientação permite colocar a questão do abuso do direito em novas

bases. É o que se passará a ver.

3.4 A consciência reflexiva e a razão alargada

Husserl, nas suas Investigações Lógicas, começa por distinguir o campo da

epistemologia e o campo da psicologia, a exemplo do quejá fizera Kant. Uma coisa

são as regras de correção dos enun- ciados que exprimem o pensamento e outra,

diversa, é a gênese do pensamento. As leis psicológicas são empfricas, vagas,

limitadas à comprovação de fatos, ao passo que as leis lógicas são certas, pre- cisas

e normativas. A apreensão do objeto, do ponto de vista gené- tico-psicológico, dá-se

através do método indutivo, ao passo que, sob o ponto de vista lógico, tem-se de

aplicar a dedução, adequada

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

sobrenaturais. As metafísicas racionalistas que buscaram fundamento puramente

humano para nossas normas e para nossos valores não são de fato senão

ideologias, que se esforçam em vão para substituir-se ao fundamento religioso não-

racional... Para constituir uma ciência do direito tal como ele é, e não como deveria

ser, é preciso, ao que me parece, renunciar ao positivismojurídico, tal como

concebido por Kelsen, para se consagrar a uma análise detalhada do direito positivo,

tal como se manifesta efetivamente na vida individual e social e, mais

particularmente, nas cortes e tribunais. Esta revela, de fato, que o dualismo

kelseniano não corresponde nem à metodologia jurídica nem à prática judiciária.

(Chaïm Perelman, Etica e Direito, São Paulo, Martins Fon- tes, 1996, p. 476 e 477).

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Fim da nota de rodapé

Página 209

A TEORIA DO SIGNIFICAD

à evidência apodítica.76 Com isto, Husserl afasta-se do naturalismo sensualista, do

realismo pscicologista que se vê em Locke e Hume, pois a noção de objeto,

segundo sua visão fenomênica, estende-se além da simples objetividade sensível.77

Neste aspecto, também se afasta de Kant, pois as coisas, em sua essência, não são

formas subjetivas nem funções transcendentais da mente. A fenomenologia de

Husserl amplia o mundo a priori para nele incluir essências transcendentais ao

sujeito.78

Husserl é cartesiano, pois admite, da perspectiva do sujeito, que a consciência é a

única coisa de cuja existência não se pode duvidar. Assim, tudo o mais tem de ser

examinado, porque não se pode

Início da nota de rodapé

(76) Edmund Husserl, Investigaciones Lógicas, Madrid, Alianza Editorial, S .A.,

Colección Ensayo — Filosofía y Pensamiento, 1 999, Prolegomenos a la lógicapura

— lntroducción, p. 35-38, Cap. 2, § 1 3, po.53 a 59 e Cap. 8, po. 1 39- 1 63; ldem,

investigaciones para lafenomenologia y teoria del conocimiento, § 1-3, p. 215-222;

Recaséns Siches, Estudios de Filosofía del Derecho, in Del Vecchio e Recaséns

Siches, Filosofía del Derecho, tomo I, México, Union Tipografica Hispano-

Americana, 1 946, p. 617-620; Emile Bréhier, Historia de la Filosofía, vol. 2, Madrid,

Editorial Tecnos S.A., 1988, p. 630-635; Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 35-

40.

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(77) Edmund Husserl, idem, vol. 1, Segunda Investigação, Cap. 2, § 7-12, p. 307-

317; Segunda Investigação, Cap. 5, § 37, p. 362-368; Recaséns Siches, Estudios de

Filosofla del Derecho, in Del Vecchio y Recaséns Siches, Filosofía del Derecho,

tomo I, México, Union Tipografica Edi- torial Hispano-Americana, 1946, p. 70, 153 e

154; Emile Bréhier. op. cit., vol. 2, p. 63 1 e 632.

(78) Recaséns Siches, Estudios de Filosofia del Derecho, in DeI Vecchio y Recaséns

Siches, Filosofia del Derecho, tomo I, México, Union Tipografica Editorial Hispano-

Americana, 1946, p. 70; Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 40-42; Emile

Bréhier, op. cit., vol. 2, p. 632-635 e 669-670. Emile Bréhier explica que Kant retira o

sujeito do objeto. O sujeito é somente condição para experiência de um objeto

previamente determinado pela ciência. Ao contrário, Husserl entende que se tem de

fazer uma abstração do objeto para empreender uma análise adequada do sujeito,

que, ademais, não deve ser psicológica e sim fenomenológica. Por conseguinte, só

em Husserl se mantém o subjetivismo como racionalismo (op. cit., vol. 2, p. 670),

uma espécie de empirismo

Fim da nota de rodapé

Página 210

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

fazer suposições sobre a existência de qualquer outra coisa.79 Afastando-se da

polêmica acerca da existência de objetos fora da consciência — discussäo que

considera estéril, por envolver problemas insolúveis — Husserl parte da única

certeza, vale dizer, da existência de objetos da consciência. Sugere, a partir daí, que

aquelas per- guntas irrespondíveis, alvo das intermináveis disputas entre o realismo

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e o idealisino epistemológico, sejam colocadas entre parênteses. Desta forma, a

fenomenologia husserliana busca, a exemplo das idéias platônicas, as essências

imutáveis das coisas, que são conhecidas por uma intuição particular. A intuição das

essências, que é a priori, independente de toda a experiência, afasta do objeto tudo

que é acidental, contingente, para atingir aquilo que é universal, o eidos.80 Este,

pois, é o método da fenomenologia, que permite à filosofia elevar-se à categoria de

ciência.

A redução eidética (epoché) consiste precisamente nessa transformação dos

fenômenos em essências, o que se dá através de um movimento de transcendência

daquilo que é puramente fático e particular no objeto. Não se trata de uma oposição

entre sujeito e objeto, mas de uma relação necessária, por meio da qual a coisa é

dada ao sujeito, à sua consciência, através de uma intuição intelectiva. A

consciência, para Husserl é sempre consciência de alguma coisa (intenção), de

modo que não se pode falar em consciência separada da coisa, em sujeito separado

do objeto. O papel da intuição é realizar (cumprir na linguagem de Husserl) a

intenção. Em outras palavras, pode-se dizer que a intuição, fonte última do

conhecimento humano, permite revelar, dentre os diferentes modos pelos quais o

objeto se apresenta à consciência, aquilo que ele tem de mais consistente, como a

priori material,

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

transcendental, pois nele a intuição aparece como fonte última do conhecimento.

(79) Emile Bréhier, op. cit., vol. 2, Madrid, p. 634 e 635; Miguel Reale, Filo- sofici do

Direito, 1 1. ed., São Paulo, Saraiva, 1995, p. 362 e 363; João MaurícioAdeodato,

Filosofia do Direito — uma crítica à verdade na ética e na ciência (através da

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ontologia de Nicolai Hartmann), São Paulo, Saraiva, 1996, p. 69. Edmund Husserl,

op. cit., vol. 2, Quinta Investigação, p. 473 a 527.

Fim da nota de rodapé

Página 211

A TEORIA DO SIGNIFICADO

distinto do a priori racional de Kant. Dentro de uma análise pro- gressiva, de uma

seleção gradual, que faz lembrar a dúvida metódica cartesiana, buscam-se aquelas

notas essenciais, aquilo quejá não se pode mais colocar entre parênteses, sob pena

de perder-se o objeto, conceito que, por ser universal, aplica-se a cada uma das

coisas individualizadas.81

Posto o conceito, é necessário partir para a recuperação do mundo natural, que não

se encerra no sujeito cognoscente, como supu- nha Descartes. O volver à

subjetividade transcendental tem em conta a bipolaridade sujeito-objeto, o olhar e a

coisa. Na primeira atitude (redução eidética), suprime-se o sujeito, com o

afastamento, com a neutralidade. Significativo, neste sentido, o étimo de epoché, do

grego abster-se. Nesta intuição da essência, não importa indagar sobre a existência

extramental do objeto. Em uma segunda atitude filosófica, volta-se, então, a tecer a

relação cognoscitiva dentro da qual o sujeito está preso ao mundo. O mundo está

diante do sujeito não só como inundo das coisas, mas também como mundo dos va-

lores, mergulhado na temporalidade e na historicidade. Este é o ponto de vista de

quem se dirige para o mundo e, ao mesmo tempo, de quem está situado nele,

descortinando um horizonte de coisas que não são simples corpos, mas objetos de

valor.82

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Início da nota de rodapé

(81) Edmund Husserl, op. cit., vol. 2, Quinta investigação, Caps. 1 e 2, p. 475a526.

(82) A propósito dessa exposição de Husserl, que se encontra em suas Meditações

Cartesianas, vale citar o breve e compreensivo resumo de Lalande: a fenomenologia

procura esclarecer o princípio último de toda a realidade. Como ela se situa sob o

ponto de vista da significação, este princípio será aquele pelo qual tudo ganha um

sentido, o ego transcendental, exterior ao mundo, mas virado para ele. Aliás, este

sujeito puro não é o único, porque faz parte da significação do mundo oferecer-se

para uma pluralidade de sujeitos. A objetividade do mundo aparece assim como uma

intersuhjetividade transcendental. O reconhecimento do domínio transcendental e

sua descrição exigem que se adote uma atitude difícil de tomar e muito diferente da

atitude natural; o momento essencial é aquilo que Husserl chama de redução

fenomenológica transcendental (André Lalande, Vocabulário — técnico e crítico —

da Filosofia, 10. ed., voi. 1, Porto, Rés Editora, Ltda., s/d, p. 471).

Fim da nota de rodapé

Página 212

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

o exame do abuso do direito das partes no processo judicial implica dificuldades que

não passaram despercebidas à análise fenomenológica. Trata-se de uma categoria

jurídica, de um símbolo, cuio sentido é sempre uma aproximação na base do

significado de outras expressões, a exemplo de ilícito, uso anormal do direito,

litigância de má-fé, conduta temerária, deslealdade ou improbidade processual.83 A

dificuldade está em eliminar a vagueza do termo. Na tentativa de restringir o campo

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extensional da definição, para apurar o conceito, aprofunda-se o campo intensional,

delimitando o conjunto de propriedades que o termo designa, com o que se corre o

risco de formular uma definição muito restrita. De outro lado, se não se aprofundar o

campo intensional, escolhendo propriedades que possam reduzir a extensão da

palavra, corre-se o risco de produzir definições muito amplas, que se perdem na

vagueza do termo.84 A idéia, em si mesma, é incomunicável. A linguagem, por sua

vez, padece de vicissitudes que comprometem o conhecimento do objeto. A redução

eidética do abuso processual procura exatamente fugir a este impasse, deixando em

suspenso, entre parênteses, os dados empíricos e acidentais daquele objeto

cultural, libertando-o de tudo quanto possa ser contingente, individual, para que dele

somente reste aquilo sem o que o objeto desapareceria. A dificuldade, neste

Início da nota de rodapé

(83) Na explicação de José Ferrater Mora, a essência ou a unidade ideal de

significação desses standards não está radicada em uma forma ontológica, mas em

atos intencionais que, executados (cumpridos), engendram outros sentidos, outras

realidades, característica própria do processo cultural. Ferrater Mora sugere a figura

de uma árvore, dizendo que ela representa, em diversos graus de aproximação, uma

árvore real. Porém, a figura dá à arvore figurada um sentido que esta

originariamente não tem. Cada nova figura vai aumentando o espectro de sentidos

possíveis de árvore. EIa pode ser entendida como símbolo de fortaleza, objeto de

adoração, símbolo do Iugar onde se realiza ajustiça ou debaixo da qual os amantes

juram fidelidade eterna um ao outro. Com isto, vai-se deixando o sentido como

intenção para ingressar em outras formas de sentido, que não são, todavia,

completamente independentes da trama originária de árvore. (Ferrater Mora,

Fundamentos de Filosofia, Madrid, Alianza Editorial S.A., 1987, op. cit., p. 173).

(84) A propósito das noções de conotação, denotação, ambigüidade, vague- za,

intensão e extensão, ver o segundo capítulo (seção 2.3).

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Fim da nota de rodapé

Página 213

A TEORIA DO SIGNIFICADO

ponto, reside em buscar a essência, o conceito universal, escoimando o objeto das

impurezas, de suas notas secundárias, acidentais.

A primeira vista, o embaraço é o mesmo que se apresenta sob a ótica do a priori

formal, do racionalismo kantiano que inspirou a obra de Kelsen, desde que a

natureza do Direito, não se fundando naquilo que empiricamente se realiza, nem

tampouco nos motivos interiores ou puramente morais, revela-se, de outra parte, na

razão pura.85 Aliás, diga-se de passagem que as polêmicas dogmáticas em torno

da noção de abuso do direito, como demonstrado nas seções anteriores deste

capítulo, alimentam-se, na subjacência, de dispu- tas filosóficas, de questões

aporéticas, o que explica as dificuldades. Incumbe à teoria geral do direito —

sobretudo a uma teoria crítica — trazer à tona do debate estas questões latentes.

Entretanto, como já dito, o método fenomenológico supera aquele percalço apontado

de início exatamente porque o seu a priori é material, ou seja, precisamente porque

Husserl entende que as essências são captadas não mais por uma estrutura

apriorística do espírito, mas através da intuição, maneira pela qual o conceito de

experiência se expande além do horizonte do empírico, já que as essências tam-

bém são desta forma experimentadas.86

Com a reflexão da consciência intencional sobre si mesma, o conceito universal vai-

se impregnando do mundo da vida. O sujeito transcendental conserva apenas um

caráter abstrato, na medida

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Início da nota de rodapé

(85) o racionalismo consiste na tendência a considerar verdadeiro apenas o

conhecimento que esteja fundado em dados racionais. Por isso, toda experiência

tem de ser racionalizada para que o conhecimento obtido através dos sentidos

possa ser considerado verdadeiro; a descoberta da verdade por procedimentos não-

racionais, a exemplo da intuição e da revelação, é enganosa, pois seus resultados

sempre têm de se submeter ao crivo da razão.

(86) Recaséns Siches, Estudios de Filosofía del Derecho, in Recaséns Siches e De1

Vecchio, Filosofía del Derecho, Tomo I, México, Union Tipografica Editorial Hispano-

Americana, 1946, p.70 e 7 1, e Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 40-42. Ver

também, no mesmo sentido, Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1. ed., São Paulo,

Saraiva, 1986, p. 365, e Luiz Fernando Coelho, op. cit., p. 5,1 1 1,1 12.

Fim da nota de rodapé

Página 214

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

em que se faz sujeito concreto, sujeito no mundo.87 A fenomenolo- gia vê

ajuridicidade como uma atividade consciente, um conjunto de experiências de ordem

prática que constitui o mundo vivido. E na análise sistemática da experiência que se

pode buscar a certeza, embora apenas como fenômeno.88 Mas o que importa,

afinal, é que é este exatamente o mundo em que se vive, aquele que todas as

pessoas experimentam. Por isso, é na realidade revelada pela experiência prática do

processo judicial que está a verdade objetiva do direito. O conceito de abuso

somente pode ser compreendido nesse contexto, que permite explicar a

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singularidade da ciência jurídi- ca, uma hibridação de saber descritivo e prática

prescritiva, um campo em que a atividade do estudioso vai sendo aos poucos

incorporada ao seu próprio objeto de estudo. Daí a dificuldade, sob outro ponto de

vista (dicotomia sujeito-objeto), de tentar justifi- car uma ciência que descreve e, ao

mesmo tempo, modifica o próprio objeto da descrição.89

Exemplo da dificuldade acima apontada pode ser visto na Teo- ria Pura do Direito,

quando Kelsen estabelece a distinção entre

Início da nota de rodapé

(87) Emile Bréhier, op. cit., p. 670.

(88) A fenomenologia husserliana, que se aplica a todos os campos do co-

nhecimento humano, como são as artes, as ciências, a matemática, admi- te que,

sob o ponto de vista fïiosófico, é possível o conhecimento das coisas puras, da

idealidade. Assim, a Filosofia da Matemática, porexem- pio, trata dos fundamentos

lógicos da aritmética, ao passo que a feno- menologia da matemática irá tratar das

experiências envolvidas na práti- ca da aritmética, nas operações que se realizam

com os números, por exem- p1o (Husseri, op. cit. voi. l, introducción, cap. 2, § 1 3, p.

57, investigaciones para lafenomenologia y teoria del conocimiento, introducción, § 2

e 3, p. 217-222). Assim também se passa com o Direito.

(89) A propósito destas dificuldades, ver, particularmente, Luís Alberto Warat, E1

derecho y su lenguaje, Buenos Aires, Cooperadora de Dere- cho y Ciencias

Sociales, 1976, p. 171; Alberto Casalmiglia, op. cit., p. 244. Karl Larenz, op. cit., p.

177-241, TheodorViehweg, Tópicayfilo- sofia del derecho, Barcelona, Gedisa

Editorial, p. 1 5-28, 77-85, e Carlos Santiago Nino, introducción alanálisis del

derecho, 2. ed., BuenosAires, Editorial Astrea, p. 338-347. Ver, outrossim, o que foi

dito no segundo capítulo (seção 2.3).

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Fim da nota de rodapé

Página 215

A TEORIA DO SIGNIFICADO

Proposição jurídica (enunciado que descreve a norma) e norma jurídica (objeto da

ciência normativa). E que para ojusfilósofo aus- tríaco, a proposição jurídica também

é normativa, por descrever normas do dever-ser. Apesar disto, a proposição jurídica

não tem um sentido prescritivo, mas sim descritivo.90 Husserl, de outra for- ma,

sustenta que o conteúdo teorético está separado da idéia de normação, do dever-ser

que é objeto de investigação das disciplinas teóricas. As disciplinas normativas

cuidam sobretudo de vaIorações práticas.9 Enquanto Kelsen concebe a norma

fundamental como categoria formal a priori, pressuposto de validade do or-

denamento jurídico, a fenomenologia husserliana permite entender que o dever-ser

da norma fundamental é a priori material, de con- teúdo axiológico, integrante da

essência mesma da ordem normati- va, à qual se tem acesso por intuição.92 Nisto

consiste o giro fenomenológico que permite contornar as dificuldades

epistemológicas de uma ciência que descreve prescrevendo.

Trazendo estas reflexões para o campo do abuso do direito no processo, tem-se de

concluir que o significado do uso anormal do direito de demanda, que está no plano

das realizações culturais, é intuitivo. A análise, hic et nunc, de uma prática abusiva,

embora singular, contigente e transitória, permite construir, a partir daquilo que é

particular e específico, um conceito universal.93 Neste sentido, a fenomenologia,

fonte de inspiração da teoria egológica de Carlos Cossio e da teoria tridimensional

de Miguel Reale, permite superar as críticas freqüentemente formuladas contra a

pretensão de fundar o Direito em bases científicas, críticas estas que se orientam

exata- mente no sentido de que, partindo da casuística, não é possível produzir um

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conhecimento científico. Isto faz Iembrar a máxima de Poincaré, segundo a qual

uma acumulação defatos não é ciência, assim como um amontoado de pedras não é

uma casa. E certo que

Início da nota de rodapé

(90) Hans Kelsen, op. cit.. p. 1 15 e 1 16. Husserl, op. cit., vol. 1, Cap. I, § 14 e 15, p.

60 a 64.

(92) Luiz Fernando Coelho, op. cit., p. 1 l 1 e ¡ 12.Miguel Reale, Filosofia do Direito,

1 l. ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p.366e367.

Fim da nota de rodapé

Página 216

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

o pensamento do matemático e filósofo francês tem em conta outra questão, ou

seja, oproblema da interpretação na investigação científica, que não está limitada à

coleta dos dados. Mas aqui também é inovadora a fenomenologia jurídica.

Com efeito, toda significação reclama uma verificação intuitiva. Isto não é outra coisa

senão dizer, com Kelsen, que um mínimo de eficácia é condição de validade.94

Daíporque inconcebível a existência de uma normajurídica como simples categoria

mental. O significado da normajurídica surge, precisamente, no momento em que

coincidem aquilo que é simplesmente pensado e a intuição. Isto se dá através de um

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ato de cumprimento (na terminologia de Husserl), que é a realização da intenção.95

O texto da norma não é expressão de um caso concreto, mas uma categoria mental.

Somente quando o juiz aplica a norma ao caso concreto revela-se o significado. Já

na escolha mesma da norma jurídica que integra o primeiro enunciado do silogismo

condicional (Sep, então q; p; q), há uma intuição valorativa. Muitas vezes o juiz

prefere uma regra legal à outra. Esta

Início da nota de rodapé

(94) Hans Kelsen, op. cit., p. 29 a 3 1. A propósito desta relação entre verifi- cação

intuitiva e eflcácia, v. Carlos Cossio, op. cit., p. 109.

(95) A propósito da noção de cumprimento, v. Edmund Husserl, op. cit., vol. 2, Sexta

investigação, introducción, p. 597-601; Sexta investigação, Primeira Seção, Cap. 1,

§ 8-10, p. 621-627; Sexta investigação, Pri- meira Seção, Cap. 3, § 16 a 18, p. 645-

650; José Ferrater Mora, Fundamentos de Filosofía, Madrid, Alianza Editorial S.A.,

1987, p. 172- 175. Segundo exposição feita por Carlos Cossio, o juízo, em razão de

sua imanente intencionalidade, reclama uma intuição que possa verificá- Io.

Somente através dela o juízo completa-se, deixando de ser mero pensamento. Eis

aqui o ato de cumprimento, a coincidência entre aquiIo que está na mente e aquilo

que está na intuição. Por isso, a existência das normas depende da existência dos

fatos. Este o sentido do chamado Princípio da Efetividade. Isto quer dizer que uma

norma jurídica não é verdadeira norma se não tem uma verificação intuitiva, que lhe

dá significado (Carlos Cossio, op. cit., p. 108 e 109). Para Husserl, a lógica pura não

trata de juízos propriamente ditos, mas sim de estruturas de juízos. Aqui reside a

crítica husserliana à indiferença da Iógica formal em relação à verdade (op. cit., vol.

I, Prolegomenos a la lógica pura, Cap. 1 1, § 66-72, p. 1 99-2 1 1; Investigaciones

para lafenomenologia y teoria delconocimiento, § 1, p. 215 e 216).

Fim de nota de rodapé

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Página 217

A TEORIA DO SIGNIFICADO

opção, que está por trás da primeira premissa de um argumento de- dutivo, é

orientada por uma convicção pessoal dojulgador. Não basta o fato empírico.

Também não basta a norma como pensada pelo legislador. As vivências

intencionais, a consciência voltada para o caso que é objeto do processo,

constituem o ato que confere significado às categorias jurídicas. Em outras palavras,

é da interpretação que nasce o significado.96

Tomando de empréstimo a classificação proposta por Carlos Cossio,97 pode-se

dizer que o julgamento (e isto se aplica ao pro- cesso judicial como um todo) encerra

diversos tipos de verdade: a) a verdade apodítica, aplicada às relações necessárias

entre os con- ceitos, a exemplo da sanção, do ilícito e do deverjurídico; b) a ver-

dade assertiva, que é expressão de um silogismo dedutivo no qual

Início de nota de rodapé

(96) Idem, p. 1 88 a 208. A respeito, ver também KarI Engisch, op. cit., p. 75 a 1 05,

Karl Larenz, op. cit., p. 265 a 27 1, Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o

sistema do direito positivo, São Paulo, RT-Educ, 1977, p. 245 a 248. Para Cossio,

por exemplo, o enunciado universal da nor- ma (Todos os S devem ser P) não é

senão enunciado particular (A1- guns S devem ser P), uma vez que, ao cotejar a

regra legal com o caso concreto, o juiz tem em conta aqueles a quem se aplica a

norma. A ciência jurídica, para Cossio, conhece sempre a partir da ótica do julgador.

O direito posto é o direito aplicado: não é a norma (pensamento), mas a aplicação

da regra à situação concreta (existência). Interessa aojuiz não o conceito (norma) e

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sim a conduta (caso concreto). Neste sentido, a ciência do direito só conhece

singularidades, com o que Cossio repete Husserl, dizendo que só há experiência

direta das coisas singulares, nunca das coisas universais. Por isso, para saber o que

é direito, em vez de recorrer à norma, tem-se de verificar a conduta. O ser do direito

não é a norma. Nela está apenas o modo de ser do direito. Em outras palavras, o

que ao jurista não é dado saber sem que recorra à norma é se tal ou qual conduta

está proibida ou permitida. Esta perspectiva, segundo ojusfilósofo argentino, concilia

a tão polêmica antinomia, suscitada pelo realismo jurídico, entre fato e norma, O

racionalismo só enxerga a vali- dade do pensamento (norma) enquanto o

sociologismo só vê a validade da conduta (fato). A conciliação egológica permite

falar de uma validade normativa em uma ciência de realidades (Carlos Cossio, op.

cit., p. 128-139, 183-187, 199-201).

(97) Carlos Cossio, op. cit., p. 193.

Fim de nota de rodapé

Página 218

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

uma das premissas é construída a partir de dados empiricamente verificáveis, a

exemplo do que ocorre com a provajudicial.98 Há uma terceira forma (c), que é a

verdade assertiva do tipo empírico- dialético, fundada nas valorações jurídicas, o

que mais de perto interessa para os propósitos da presente exposição.

Sob o enfoque da verdade apodítica, é impossível revelar a essência

fenomenológica do uso anormal do direito de demanda. Assim, se é certo que o uso

anormal de um direito deve ser impedi- do, tem-se de buscar o fundamento desta

proibição. Se ela está na norma, há de se indagar se a regra é provida de sanção.

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Em caso positivo, já não se está mais em condições de separar o ilícito do abuso.

Em caso negativo, fica a dúvida quanto ao caráter normati- vo da proibição, que

mais se assemelharia a uma exortação, a um conselho ou a uma diretriz, vale dizer,

a uma regra deontológica, mas não jurídica. Mas se a proibição não está na norma

posta, necessário indagar acerca de outro fundamento jurídico qualquer, recorrendo

a uma justificativa teórica, a uma ratio, que não integra o sistema.

A reflexão sobre o fundamento jurídico da proibição do uso anor- mal do processo

encontra lugar, sob uma perspectiva fenomenológica,

Início da nota de rodapé

(98) Para ilustrar a verdade assertiva, veja-se a seguinte série de argumentos: 1 —

Todos os policiais, ao depor contra o réu emjuízo, mentem; O policial Ticio depôs

contra o réu em juízo; O policial Ticio mentiu. A conclusão deste quase-silogismo,

que tem forma dedutiva, por sua vez, pode ser utilizada como uma das premissas

que compõem o silogismo condicional empregado na sentença judicial: 2 — Todas

as testemunhas que mentem devem ser condenadas a cumprir pena de reclusão; O

poli- cial Ticio mentiu; Tício deve cumprir pena de reclusão. Trata-se de um

silogismo condicional válido, no qual se afirma o antecedente. Importante observar

que a primeira premissa do argumento i é prévia conclusão de um argumento

indutivo. Neste tipo de argumento, a conclusão sempre diz mais do que dizem as

premissas. Por isso, ainda que verdadeiras as premissas, a conclusão não

necessariamente o será. Vale dizer, examinados vários casos particulares,

constatou-se que os policiais mentem em juízo, tentando incriminar o réu, com o que

buscam legiti- mar o trabalho desenvolvido na fase do inquérito. Partindo do

particular, do empírico, chegou-se à generalização indutiva: Todos os policiais, ao

depor contra o réu em juízo, mentem.

Fim da nota de rodapé

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Página 219

A TEORIA DO SIGNIFICADO

no a priori material, de conteúdo axiológico. O exame da forma como atuam as

partes no processo, além da análise dos dados empíricos, implica

valoraçõesjurídicas. No segundo capítulo, viu-se que existem certos standards,

núcleos significativos em torno dos quais gravita a questão do abuso do direito no

processo. O significado surge de um ponto de vista estimativo, por meio de uma

intuição intelectiva. Assim, além do significado que nasce das relações necessárias,

das relações sintáticas entre conceitos do a priori formal, o sentido das expressões

jurídicas surge também dos valores prudenciais, que implicam uma tomada de

posição dante do caso concreto. Para poder situar-se, o julgador terá em conta a

finalidade do processo, condicionada às possibilidades históricas e sociais de sua

realização. Dele também se espera que não se deixe enganar por um utilitarismo

perverso, e mais, que esteja em condições de prever o resultado de sua decisão.99

O dever da verdade processual, por exemplo, é conceito bastante polêmico. De um

lado, há os que entendem que, além da desconformidade entre o fato e aquilo que

está na mente de quem descreve o fato, necessário seria examinar, para saber da

infringência a esse dever, o querer, a vontade de burlar o intelecto por parte de

quem apresenta o relato desconforme (subjetivismo). De outro lado, existem aqueles

que prescindem da existência do ânimo emulativo do litigante (objetivismo). Mas a

distinção, no campo concreto, coloca em pauta a necessidade de critérios dejustiça,

razão por quejá se entendeu que certos meios protelatórios muitas vezes se

justificam para evitar mal maior. E o caso do devedor que, na esperança de receber

numerário, procrastina o desfecho da execução judicial.100

Início da nota de rodapé

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(99) Recaséns Siches, Introducción al estudio del derecho, México, Porruá, 1 98 1,

p. 254-260. A respeito dos standards jurídicos, ver o que foi dito no primeiro capítulo

(seção 1.4). A propósito de uma visão utilitarista do processo, v. a nota 1 12, Iogo à

frente.

(100) o exemplo, já utilizado no capítulo anterior (seção 2.2), é de Carvalho de

Mendonça (Código de Processo Civjl Interpretado, vol. 1, Rio de Janeiro, Livraria

Editora Freitas Bastos, 1940, p. 112 e 113). Sobre os expedientes procrastinatórios,

assim disse Piero Calamandrei: este abuso da finalidade dilatória dos meios

processuais é tão comum e tradicional,

Fim da nota de rodapé

Página 220

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

O chamado dever de completude também coloca em discussão a necessidade de

critérios axiológicos no exame da verdade processual. A propósito, citava-se, no

capítulo anterior (seção 2.4), um exemplo de Couture, ao figurar a hipótese de ação

de divórcio, na qual o litigante esconde o real motivo da ruptura conjugal, para

poupar a prole da desdita do cônjuge adúltero, contra quem a demanda foi

proposta.101 E aquilo que as pessoas costumam tratar por meia verdade.

Para a fenomenologia, a verdade é a evidência com que os objetos se apresentam a

partir da epoché, que deixa entre parênteses os dados empíricos e acidentais do

objeto, libertando-o do que é contingente, individual. Assim chega-se à essência, ao

conceito univer- sal, captado não mais por uma estrutura apriorística do espírito,

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mas através da intuição, de uma razão alargada. Com a reflexão da cons- ciência

intencional sobre si mesma, o conceito universal vai-se impregnando do mundo da

vida. A verdade processual passa a ser vista, então, como um conjunto de

experiências de ordem prática que constitui o mundo vivido. Neste sentido, a arte

tem a sua verda- de, que é estética, assim como o direito também a tem. O processo

judicial busca a acomodação dos conflitos na base de regras de procedimento

adrede conhecidas, dentre as quais está aquela que diz que ao julgador compete, à

luz da prova produzida, aplicar ao fato, como reconstruído pelo discurso dialético

das partes, determinada norma jurídica. Outra regra do jogo processual consiste em

dizer a verdade. A verdade, entretanto, não é mais que verossimilhança, não é mais

do que aproximação dos fatos empíricos, assim como tam- bém o é a verdade

histórica.102

que se tornou mesmo objeto de estudo, considerando-se-o não como uma

degeneração patológica, mas sim como refinado virtuosismo de boa prática forense.

(Estudios sobre el Proceso Civil, in Derecho Procesal Civil 111, Buenos Aires,

Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 276). E, em outro ponto da mesma

obra, colhe-se: a lealdade prescrita, é lealdade nojogo; ojogo, isto é, a competição

de habilidade, é lícito. Porém não se permite a trapaça (idem, p. 268 e 269).

Início da nota de rodapé

(101) Eduardo J. Couture, Estudios de Derecho Procesal Civil, tomo I, 2. ed.,

Buenos Aires, Depalma, 1978, p. 249-253.

(102) Piero Calamandrei, Estudios sobre el Proceso Civil, in Derecho Procesal Civil,

vol. 3, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1 973,

Fim da nota de rodapé

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Página 221

A TEORIA DO SIGNIFICADO

A legislação brasileira pune, com pena de reclusão, a testemunha que falta com a

verdade. Por questões éticas ou pragmáticas,

Início de nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

p. 3 1 9. Neste ponto, e ainda a propósito do policial Ticio, que foi condenado por

haver mentido em juízo, veja-se que a conclusão do argumento indutivo (Todos os

policiais, ao depor contra o réu em juízo, mentem), que serviu de base para o quase-

silogismo (cuja conclusão é O policial Ticio mentiu), bem demonstra como o julgador

é influen- ciado por sua particular visão de mundo. Experiências particulares, fa- tos

isolados que Ihe impressionaram o espírito podem contribuir para uma indevida

generalização indutiva (a propósito do valor do depoimento de policial é farta a

jurisprudência, como se pode ver em Julio Fabbrini Mirabete, Código de Processo

Penal interpretado — referências dou- trinárias, indicações legais, resenhas

jurisprudenciais, 5. ed., São Pau- lo, Atlas, 1 987, p. 282). Carlos Cossio, depois de

afirmar que o direito é uma ciência das singularidades, dirá que há uma pluralidade

de circunstâncias que compõem o caso concreto. Para ver esta totalidade como

conjunto, é necessário examiná-la em perspectiva, tal qual se contempla um Iago

sempre de um ou outro ponto de suas margens. Isto quer dizer que haverá sempre a

escolha de uma circunstância como clave ou meridiano para hierarquizar o conjunto,

escolha esta baseada na intuição axiológica do caso. A circunstância que assim

serve de guia para a compreensão do conjunto tanto pode ser uma daquelas que

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estão na norma, tal qual pensada, como também uma outra que não a integra,

porque, afinal, todas intuem a mesma conduta, com a mesma possibilidade de

apresentá-Ia em perspectiva. O problema da verdade jurídica está, precisamente,

em determinar a melhor perspectiva, dentro de certas exigências de objetividade.

Trata-se de uma verdade axiológica, porquanto as circunstâncias do caso são

percebidas onticamente pela intuição sensível, mas ontologicamente compreendidas

e, assim, valoradas. O trabalho de subsunção é uma verdadeira integração de

sentido, que se dá em uma vivência complexa, na qual aparecem refundidos o

sentido mental da norma e o sentido efetivo da conduta. O conhecimento do juiz é

um ato de compreensão pelo qual, ao aplicar o conceito ao caso concreto, terá de

recriar o sentido da conduta, vivenciando-o novamente (Carlos Cossio, op. cit., p.

185 a 187, 196 a 198). A dogmática penal mesmajá incorporou estas reflexões

jusfilosóficas: o Juiz, ao solucionar a questão penal — definição jurídico-penal

positiva ou negativa — conheceu-a. O conhecimento, como pode parecer no

primeiro lanço, não parte de pura descrição do fato, imerso em suas

circunstancialidades e emergente na acusação, ou em outra simples afirmação do

dever-ser. O julgador vai ao

Fim da nota de rodapé

Página 222

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

tanto na esfera civil como na esfera penal, dispensa certas pessoas do compromisso

de dizer a verdade. Assim sucede no caso de testemunhas suspeitas ou impedidas,

a exemplo, respectivamente, do cônjuge da parte e daquele que tiver interesse no

litígio. Veja-se que a parte também está no dever de dizer a verdade (art. 14, I, e 17,

11, do CPC), exceçäo feita ao réu no processo-crime, que tem o direito de

permanecer calado (art. 5.°, LXIII, da C.F.).103 Se o autor da ação penal mentir,

imputando falsamente a prática de crime ao réu, res- ponderá pela prática de

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denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal).104 No processo civil, a parte

que se recusar a depor ou mesmo que tergiversar a respeito dos fatos estará sujeita,

em qual- quer dos casos, ao ônus da confissão (art. 343, § 2.°, do CPC). Fal- tando

com a verdade, poderá ser condenada ao pagamento das des- pesas e dos

honorários advocatícios, o que não a dispensa do dever de indenizar a parte

contrária (arts. 16 e 18 do CPC).

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

fato, posto em Juízo, mas já antes aprestado com o modelo legal de conduta... Não

é tudo, porém. A cognição consiste em estado de consciência intencional. Sentença

adveio de sentir. Conhecer, entretanto, está em agir, vendo uma realidade — não a

realidade.... O fato, aí não é mera re- presentação ou simples imagem mental,

porém o existente, o concreto, tanto que desvendado pelos meios de prova (Sergio

Marcos de Moraes Pitombo, O juiz penal e a pesquisa da verdade material, in

Hermínio Alberto Marques Porto e Marco Antonio Marques da Silva [org.], Processo

Penal e Constituição Federal, São Paulo, EditoraAcadêmica, l 993 [Coleção Temas

de Direito e Processo Penal], p. 72 e 73).

(103) O Supremo Tribunal Federal, aplicando o texto da Constituição, tem entendido

que o direito de permanecer calado inclui, implicitamente, a prerrogativa processual

de o réu negar, ainda que falsamente, a prática da infração penal (HC 68.929-9, DJU

de 28.08.92, p. 1 3.453, apud Julio Fabbrini Mirabete, op. cit., p. 265). O réu só não

pode mentir quanto a sua identidade ou autoacusar-se falsamente, porque estas

práticas encontram punição no Código Penal, caracterizando crime, portanto (arts.

307 e 341).

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(104) o Promotor de Justiça também comete o crime de denunciação caluniosa

quando age com interesses subalternos, imputando a alguém crime de que o sabe

inocente (Vicenzo Manzini, Trattato di Diritto Penale Ita- liano, vol. 5, Torino, Unione

Tipografico-EditríceTorinese, 1 950, s. l 624 e I 632, p. 683 e 705).

Fim da nota de rodapé

Página 223

A TEORIA DO SIGNIFICADO

Há hipóteses, entretanto, nas quais a parte, tanto quanto a testemunha (art. 347 e

incisos do CPC; art. 208 do CPP), não tem o dever de dizer a verdade. E o caso do

sigilo de profissão, ministério ou função (art. 406, 11, do CPC; art. 207 do CPP) e

também, no campo do processo civil, do depoimento acerca de fatos que possam

acarretar graves danos à própria testemunha ou à própria parte (art. 406, I, do CPC;

art. 347 do CPC). Mesmo que se mostre imprescindível ao conhecimento dos fatos,

à falta de outras provas, as testemunhas suspeitas ou impedidas não podem ser

obrigadas à verdade (art. 405, § 4.°, do CPC; art. 214 do CPP). Diversamente, as

partes, no processo civil, em determinadas ações de estado, têm o dever de dizer a

verdade (art. 347, parágrafo único, do CPC).105

René Popesco sustenta que a parte, no processo civil, também tem o direito de

calar, isto em decorrência da liberdade de não se apresentar em juízo. Mas, em

contrapartida, o outro litigante tem o direito de ouvir a parte. O magistrado, por sua

vez, tem o poder e, às vezes, até o dever de interrogá-la. Por isso, aquele que se

recusa a depor, sob simples alegação de que tem o direito de permanecer calado,

abusa deste direito, opondo-se ao próprio interesse social, que tem em conta a

rápida solução dos litígios.106 Daí o ônus da con- fissão, há pouco mencionado.

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Este ponto de vista dá a exata dimen- são das dificuldades que envolvem o tema da

verdade processual e do abuso do direito.

Com efeito, a parte tem o dever de dizer a verdade (art. 14, I, do CPC). Conduzindo-

se de forma diversa, pratica um ilícito, pois,

Início da nota de rodapé

(105) Durante a tramitação do Projeto de Lei, o Senador e civilista baiano Nélson

Carneiro propôs a supressão da obrigação de dizer a verdade, nas circunstâncias

previstas no artigo 347 do Código de Processo Ci- vil, mesmo no caso das ações de

estado (parágrafo único). Todavia, o texto manteve-se inalterado (Aiexandre de

Paula, Código de Processo CivilAnotado, 4. ed., vol. 2, São Paulo, RT, 1988, p.

1.293).

(106) René Popesco, Le silence créateur dobligation et l abus du droit, apud J. M. de

Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, 7. ed., vol. 3, Rio de Janeiro,

Livraria Freitas Bastos, 1 958, p. 369 e 370, apud Moacyr Amaral Santos, Prova

Judiciária no Civel e Comercial, 5. ed., vol. 2, São Paulo, Saraiva, 1983, p. 237-239.

Página 224

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

neste caso, a lei prevê sanção (arts 16, 17 e 18 do CPC). Ocorre que o silêncio é

uma atitude ambígua. Dele já se disse que implica consentimento (qui tacet

consentire videtur). Mas esta presunção não está livre de controvérsias, porquanto,

segundo a regra de Paulo, quem cala nem por isso confessa, sendo certo apenas

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que não nega (qui tacet, non utiquefatetur sed tantum verum est eum non negare).

Muitas vezes, o silêncio revela-se como forma perversa de obstar à fruição de um

direito, exatamente porque imobiliza. Para fugir ao impasse, para impedir que a

parte, com sua omissão, pudesse decidir sobre a sorte do processo, recorreu o

legislador ao ônus da con- fissão. Não se trata de buscar a verdade, mas de garantir

a aplicação dajustiça, dentro de determinadas regras, adrede conhecidas.

Sob este enfoque, o dever de dizer a verdade (cuja infringência implica imposição de

sanção e não simples ônus processual) aplica-se somente àquele que fala, de onde

é dado concluir que não se há de exigir da parte a revelação de fatos que possam

favorecer o outro litigante. Calando, não estará sujeita a pena, mas apenas a um

ônus processual, exatamente porque não se admite que abuse do direito de

permanecer em silêncio.107 De qualquer forma, esta confissão tácita não é uma

presunção absoluta. Cabe ao juiz apreciar o conjunto probatório, saber da

verossimilhança e coerência dos de- mais elementos de convicção existentes nos

autos, como constava da norma do artigo 229, § 2.°, do Código de 39. Ademais,

nem sempre o silêncio da parte é abusivo. O que se vê é que o Iegislador, mesmo

no processo penal, em que vige como regra o principio

Início da nota de rodapé

(107) Neste aspecto, não deve impressionar o uso da expressãopena de confissão,

já que as definições são contextuais. Em outras palavras, não há um vínculo natural

entre as palavras e as coisas, como sustentam os realistas, apegados ao idealismo

platônico. A relação que se estabelece entre as palavras e aquilo que elas

pretendem significar é convencional. No sistema adotado pelo Código, há uma

presunção de manifestação da vontade de confessar. Giuseppe Chiovenda explica

que, tal como sucede com a revelia, a presunção visa a tornar o processo mais

célere, com o que se cumpre um interesse social. A confissão tácita, assim, não tem

o caráter de sanção, como ocorria na elaboração dos antigos (Instituições de Direito

Processual Civil, vol. 2, 111, São Paulo, Saraiva, 1 965, p. 368).

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Fim da nota de rodapé

Página 225

A TEORIA DO SIGNIFICADO

inquisitivo, quis poupar partes e testemunhas, em certas situações, do

constrangimento da verdade.108 Como bem o disse Couture, a verdade é muitas

vezes dramática, para não dizer patética.109 Por isso, crê-se que não se tem o

dever de dizê-la quando dela possa resultar notório dano pessoal.

Assim, diante da multifacetada significação da verdade processual, há quem prefira

falar na existência de um dever de probidade processual, por abranger também os

aspectos axiológicos, o que envolve a questão da boa-fé.110 Em outras palavras, a

verdade não é tim objetivo que se deva alcançar a qualquer preço, não porque o

processo seja propriamente um jogo de habilidades e astúcia, mas pelo só fato de

que nem tudo a todos se diz. 111 O significado do uso

Início da nota de rodapé

(108) A jurisprudência, sensível à realidade social, tem entendido, com base no art.

226, § 3.° da Constituição Federal, que a exceção ao dever de dizer a verdade

também se estende àquelas testemunhas que, sem ter parentesco com a parte, por

consangüinidade ou afinidade, acham-se socialmente e sentimentalmente ligadas a

ela por laços resultantes de união estável entre a parte e um dos parentes da

testemunha.

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(109) Conta Couture que umajovem e abnegada advogada do Estado patroci- nou

ação de investigação de paternidade cuja prova pericial (exame hematológico) foi

negativa. Por insistência da mãe da autora — que dizia ter sido o réu o único homem

de sua vida — as partes submeteram-se a novo exame, com o mesmo resultado.

Desconsolada e descrente na justiça, a representante legal da criança pediu que

fosse realizado um terceiro exame, quando então se soube que tampouco era ela a

mãe da criança, porcerto, trocada na maternidade. (Eduardo J. Couture, Estudios de

Derecho Procesal Civil, 2. ed., tomo 111, Buenos Aires, Ediciones Depalma, 1978, p.

257 e 258).

(110) A questão da boa-fé também se presta a diversas interpretações. Há quem

cogite de um dever objetivo e outros de um dever subjetivo.

(111) Para a dogmática penal, a verdade material deve ser entendida de duas

formas: no sentido de uma verdade subtrafda à influência que, através do seu

comportamento processual, a acusação e a defesa queiram exercer sobre ela, mas

também no sentido de uma verdade que. não sendo absoluta ou ontológica, há de

ser antes de tudo uma verdade judicial, prática e, sobretudo, não uma verdade

obtida a todo preço, mas processualmente válida (Jorge de Figueiredo Dias, Direito

Processual Pe- nal, Coimbra, Coimbra Editora, vol. 1, 1974, p. 193 e 194).

Fim da nota de rodapé

Página 226

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

normal do processo, sob o ponto de vista fenomenológico, sob o ângulo de uma

intuição estimativa, está na conformidade da conduta das partes aos padrões sociais

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e morais vigentes, àquilo que o senso comum reconhece como certo, enfim, ao

mundo da vida,112 que nada tem a ver com a verdade metafísica ou com a verdade

empírica.

Não faltam, porém, críticas à fenomenologia husserliana, da qual se diz ser idealista,

pois que a realidade, para Husserl, é ideal por natureza, como ocorreu a Platão.113

O significado surge, assim, como uma entidade ideal objetiva, conforme resulta da

sua concepção de

Início da nota de rodapé

(112) Por isso, não existe no método fenomenológico qualquer referência a um

utilitarismo à moda de Bentham, segundo o qual verdadeiro é aquilo de que se pode

extrair conseqüências práticas, aquilo que é útil, que pode ser colocado a serviço da

ação humana com vista a maior soma de felicidade (Johannes Hessen, op. cit., p. 50

a 54). A propósito de uma teoria utilitarista do abuso do direito remete-se o leitor à

nota 39 do primeiro capítulo, seção 1.1. Como dizAlfRoss, uma coisa é o útil, a

vanta- gem, e outra ojusto, aquilo que deve ser. As considerações acerca da

utilidade são importantes, mas não se confundem com as exigências de justiça.

Muito embora fosse o intento de Bentham refutar a concepção da idéias inatas, das

verdades a priori, que se vê no idealismo subjeti- vista de Locke, tanto quanto

rechaçar o jusnaturalismo, é certo que o utilitarismo está preso à ilusão de construir

uma teoria dajustiça sobre bases morais, na natureza racional do homem, cujo

conhecimento é dado por uma intuição intelectual (Alf Ross, Sobre el derecho y

Iajusticia, 2. ed, Buenos Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1 997, p. 357-

364). A propósito, para Sergio Marcos de Moraes Pitombo, o problema da verdade

processual não guarda relação com a utilidade do processo, com o seu custo-

benefício, ou algo semelhante. Daí advertir o autor acerca dos perigos de se fazer

prevalente a idéia de instrumentalidade sobre a dejustiça (Sergio Marcos de Moraes

Pitombo, op. cit., p. 73). Registre-se que a tese da instrumentalidade processual,

como desen- volvida pela moderna processualística, guarda estreita relação com o

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pragmatismo utiiitarista. Nessa terceira fase metodológica do process0, há uma

preocupação com a efetividade da tutela jurisdicional. A propósito, ver o que foi dito

no segundo capítulo (seção 2.1). Esta anáIise será retomada no último capítulo.

(113) Adam Schaff, op. cit., p. 233 a237.

Fim da nota de rodapé

Página 227

A TEORIA DO SIGNIFICADO

atos intencionais. Com efeito, Husserl diz que a significação cons- titui uma classe

de conceitos em sentido universal, que a despeito de não terem existência concreta,

possuem um ser, uma essência. Por isso, os objetos ideais existem e assim como é

certo que acerca deles se pode falar (como se fala do número 2 e do princípio da

con- tradição), certo também é que tais objetos são apreensíveis intelectivamente. A

lógica pura, quando trata dos conceitos, dos juízos, dos argumentos, ocupa-se

precisamente das unidades ideais que Husserl chama de signiflcação. Uma coisa é

o significado, uma entidade ideal, e outra coisa são as experiências concretas, as

vivências que surgem do significado, as quais podem ser exprimidas de diversas

maneiras.114

A evidência com a qual o significado surge a partir da epoché não é senão

atransformação de uma consciencia individual, talqual concebida pelo psicologismo,

em uma consciência supra-individual. Parte-se do singular, do contingente, daquilo

que é comum às experiências individuais acerca de um determinado significado,

para depois rechaçar (colocando entre parênteses) tudo aquilo que é particular,

secundário, com o que se encontra o sentido ideal das palavras. A referência ao

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objeto intencional — que é experimentado, ainda que não exista na realidade

objetiva — dá-se através de uma visão direta da essência das coisas, que não é

intersubjetiva, vale dizer, que não se presta a demonstrações. Esta é a principal

crítica que o positivismo lógico formula contra a fenomenologia, à qual também se

seguiu a crítica do materialismo dialético.115

Início da nota de rodapé

(114) Edmund Husserl, op. cit., vol. I, Primeira Investigação, Cap. 1, § 1 1, p. 246,

Cap. 3, § 29, p.281, Cap. 4 § 3 1, 32 e 35 p. 287, 288 e 309; Segun- da investigação,

Cap. 2, § 8, p. 309, Cap. 4, § 31, p. 352.

(115) A propósito das formulações desenvolvidas neste parágrafo, ver, mais

amplamente, Adam Schaff, de onde as referências foram retiradas (op. cit., p. 241 -

248). Como registra Alaôr Caffé Alves, nós não nascemos humanos primeiramente,

perfeitos e acabados (essência humana), para depois transformar o mundo, pois o

humano se dá precisamente no pro- cesso de transformação do mundo e do próprio

homem, no transcorrer da história. Isso não reclama apenas a cognição, a teoria, o

pensamento Iógico, mas principalmente a ação prática, o mundo em movimento, a

Fim da nota de rodapé

Página 228

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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Estas objeções, que têm repercussão no exame do abuso dos direitos processuais,

levaram a uma reformulação do conceito de mundo da vida, como será visto no

último capítulo.

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

vontade e o interesse... A Lógica Formal é uma lógica pura, uma lógica de

identidade abstrata, do pensamento puro, não localizado no tempo e no espaço. Por

isso que ela é muito usada por Husserl, ao buscar essências ideais, imóveis

perfeitas, eternas, imutáveis. E a razão lógica, a razão formal (Alaôr Caffé Alves,

Lógica — Pensamento formal e argumentação — Elementos para o discuso jurídico,

São Paulo, Edipro, 2000, p. 388).

Fim da nota de rodapé

Página 229

4

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

SUMÁRIO: 4. 1 O paradoxo de Wittgenstein — 4.2 A superação da teoria

representativa — 4.3 Razão teórica versus razão prática — 4.4 A Iinguagem e a

construção da realidade.

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4.1 O paradoxo de Wittgenstein

A possibilidade do apriori material, em Husserl, tem como pressuposto a evidência

com que os objetos se apresentam a partir da epoché. Em outras palavras, a

pluralidade de significados da experiência, dos diversos níveis de realidade,

pressupõe um momento em que as coisas possam ser conhecidas como elas

mesmas são, vale dizer, como se apresentam à consciência, ao eu transcendental.

No dizer de Remo Bodei, a perda do mundo da vida, ou seja, a sua suspensão por

meio da epoché, torna-se a premissa de sua reconquista.1 Todo idealismo

husserliano reside precisamente nessa con- sideração do fenômeno como absoluto.

Com efeito, a redução fenomenológica revela uma profunda fratura entre a atitude

teórica que busca essências não acessíveis ao conhecimento humano e aquela

outra, que volta a compor a trama de relações cognoscitivas e afetivas, às quais o

sujeito, personagem do mundo da vida, está preso. Quando a decisão judicial dispõe

acerca da prática de abuso no processo há, por detrás dela, uma série de

indagações, avaliações, sentimentos e motivações que se materializam na

intervenção concreta do julgador. A decisão não pode ser concebida, assim, fora das

circunstâncias do caso em exame, das

Início da nota de rodapé

(1) Remo Bodei, Afilosofia do século XX, Bauru, Edusc, 2.000, p. 168.

Fim da nota de rodapé

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Página 230

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

suas particularidades, e não vale senão dentro daquele território (limites subjetivo e

objetivo da coisa julgada). Os conceitos normativos e as definições jurídicas não

são, pois, fruto da intuição intelectual de uma natureza intrínseca dos fenômenos

denotados.

Não se pode negar a existência de conceitos universais, como estrutura de unidade

de tudo aquilo que é singular, contingente. Fosse de outra forma, as

decisõesjudiciais seriam expressão de um total subjetivismo. Daí a dizer que esta

unidade possa ser alcança- da por essências dadas na intuição, vai uma distância

que não se pode percorrer senão fazendo algumas concessões ao idealismo

jurídico. Não se concebe uma definição pura de abuso dos direitospro- cessuais

exatamente porque é impossível lançar um olhar neutro sobre o fenômeno jurídico e,

depois, voltar à realidade para vê-la com outros olhos. Seria de se indagar, a

propósito da redução eidética, que fenômeno estaria em condições de impor-se à

consciência do sujeito sem se deixar impregnar dos valores, da maneira de ser de

uma determinada sociedade.2

Como já se teve oportunidade de ver no segundo capítulo (seção 2.3), o processo

judicial está impregnado de historicidade. A legitimação do discurso jurídico dá-se

através de uma rede de estereótipos culturais, traduzidos em formas e fórmulas, que

são garantidos e reforçados pela linguagem. E se é certo que a verdade não está no

universo estável e tangível de sons, cores, espaços e movimentos, não menos certo

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é também que não se pode buscar o significado das práticas processuais em uma

razão universal ou em uma intuição da essência do fenômeno jurídico. Tanto quanto

o racionalismo, o transcendentalismo fenomenológico de Husserl é idealista. A

dogmática processual (como de resto toda a dogmática jurídica) inspira-se

precisamente neste movimento pendular, que ora se inclina mais para o

racionalismo jurídico e ora se aproxima mais desta concepção ontológica, deste

intuicionismo intelectivo, à moda de Platão, Descartes e Husserl.

Início da nota de rodapé

(2) Neste mesmo sentido desenvolve-se a análise de Michel Miaille (Uma introdução

crítica ao Direito, Lisboa, Moraes Editores, 1979, p. 282).

Fim da nota de rodapé

Página 231

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Rechaçando a metafísica contida tanto no idealismo como no realismo, alguns

filósofos-cientistas do início do século XX, na base da análise lingüística dos

enunciados, sustentam que cabe ao filósofo contribuir para o progresso da ciência,

principalmente das ciências formais, a exemplo da Matemática, e das ciências da

natureza, a exemplo da Biologia. O positivismo lógico, que se desenvolveu a partir

do Círculo de Viena, afasta-se de todas as considerações relativas às coisas em si,

à causa última do mundo, ao imperativo categórico e aos valores últimos, objetos

fictícios que constituem o campo de investigação da metafísica, da filosofia dos

valores e da ética. Com isto, o positivismo lógico reduz a filosofia à lógica das

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ciências, voltada à análise da linguagem natural, ao exame das vicissitudes e

impropriedades que a tornam inadequada à formulação dos enunciados científicos.3

Ao desprezo que os empiristas nutriam pela metafísica o positivismo lógico somou

as descobertas da lógica contemporânea, sobretudo da lógica simbólica, no intento

de conhecer o significado dos enunciados da ciência. Não é de se estranhar, assim,

que ao lado das contribuições de Frege, Peano e Russell, possam ser encontrados

alguns pontos em comum com Hume e Leibniz, ressalvada, quanto ao primeiro, a

concepção segundo a qual o significado das palavras surge das associações

intramentais (idealismo subjetivo) e observado, no que concerne ao segundo, o seu

interesse pela investigação lógica e não pela metafísica. Para os positivistas, as

proposições significativas dividem-se em formais ou fáticas, vale

Início da nota de rodapé

(3) É o que se pode encontrar no ensaio de Carnap, Signficado e sinonímia nas

linguagens naturais, in Moritz Schlick, RudolfCarnap — Coletâ- nea de Textos, 2.

ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pen- sadores), p.129-142. A

respeito, v. A. J. Ayer, Introducción del compi- lador, in A. J. Ayer (org.), El

positivismo lógico, México, l. ed., Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 30-34; A. J.

Ayer, Linguagem, verdade e lógica, Lisboa, Presença, 1991, p. 9-23; A. J. Ayer,

Questões Centrais da Filosofia, Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 37-39; William P.

Alston, ob cit., p. 105-110; Adam Schaff, op. cit, p. 72 e 73; Enrico Pattaro, Filosofia

del derecho. Derecho. Cienciajurídica, Madrid, Instituto Editorial Reus, S.A., p. 58 e

71, e Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 87-92.

Fim da nota de rodapé

Página 232

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

dizer, analíticas ou empíricas. As primeiras, tratando de verdades necessárias, são

tautológicas, ao passo que as outras, que têm um referente no mundo empírico, são

passíveis de verificação. Mas é precisamente no que concerne a este segundo tipo

de enunciado que surgem as primeiras dissensões dentro do positivismo lógico.4

A verificação não é uma possibilidade empírica, mas lógica. Alguns positivistas

cogitam da comparação entre enunciados e fa- tos, como é o caso de Schlick.

Outros, a exemplo de Neurath e Carnap, buscando afastar-se de uma metafísica

realista, sustentam que, sob uma perspectiva lógica, um enunciado somente pode

manter relação com outro enunciado. Há, pois, dois critérios de verificação do

significado das proposições empíricas, quais sejam, o crité- rio de correspondência

(relação entre enunciados e fatos) e o critério de coerência (relação entre

enunciados). Ayer, depois de apresentar uma série de objeções a este último

critério, diz que mesmo Carnap, em suas obras mais recentes, influenciado pelo

Iógico polonês Tarsky, acabou por reconhecer a legitimidade da semântica, muito

embora restrita à eleição de formas lingüísticas, sem se aperceber de que os fatos

denotados sugerem problemas mais sérios.5

Início da nota de rodapé

(4) A. J. Ayer, lntroducción del compilador, in A. J. Ayer (org.), Elpositivismo lógico,

México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 15 e 16. A respeito dessas

divergências, ver também John Hospers, op. cit., p. 326-343. A propósito do

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idealismo subjetivo de Hume, v. William P. Alston, op. cit., p. 97 e 100, eAdam

Schaff, op. cit., p. 70.

(5) A. J. Ayer, lntroducción del compilador in A. J. Ayer (org.), El positivismo lógico,

México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 26 e 32; igualmente, Manfredo

Araújo de Oliveira, op. cit., p. 82 e 83 e Moritz Schlick, RudolfCarnap — Coletânea

de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pensadores), p. 14 e

15. Sobre a distinção entre verdade como correspondência e verdade como

coerência, v. ainda John Hospers, op. cit., p. 148-158. A propósito das objeções ao

critério de coerência, v. A. J. Ayer, Verijìcacióny experiencia, in A. J. Ayer (org.), El

positivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica. p. 236- 248). Para o

exame da distinção entrepossibilidade empírica epossibi- lidade lógica, ver Carnap,

Testabilidade e significado, in Moritz Schlick, Rudo1fCarnap — Coletânea de Textos,

2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pensadores), p. 171-213. A

propósito, ver também

Fim da nota de rodapé

Página 233

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Com efeito, Carnap, tanto quanto os demais positivistas lógicos, entende que é

impossível conhecer a constituição e as leis do

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Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

A. J. Ayer, lntroducción del compilador in A. J. Ayer (org.) Elpositivis- ,no lógico,

Madrid, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 26, William P. Alston, op. cit., p. 106-

1 10 e 14 a 123, eJohn Hospers, op. cit., p. 326- 343. Diga-se, a esse respeito, que a

contrastabilidade, como critério de signitïcado, não exige a verificação real do fato,

mas sim a possibilidade de verificação ou confirmação, que não é técnica nem

empírica, mas Iógica. Neste sentido, como observa Alston, a teoria da

verificabilidade coincide com o atomismo lógico desenvolvido por Russell, segundo o

qual a Iinguagem tem níveis de estratificação, o mais simples deles re- velado nas

chamadas orações observacionais, vale dizer, orações básicas que simplesmente

relatam a própria experiência de quem fala. A partir deste nível seria possível atingir

outras estruturas sintáticas que permitiriam orações mais elaboradas, a exemplo dos

enunciados científicos. Existe, entretanto, muita polêmica em torno do critério de ve-

ritïcação. Para Neurath, as proposições da ciência não podem se referir a dados

sensíveis, que fazem parte da experiência privada de cada um, a exemplo da dor.

Os enunciados que se referem a experiências e elaborações mentais, próprias ou de

outrem, são todos enunciados físicos. A linguagem fisicalista da ciência há de ser

intersubjetiva. Schlick, para fugir da acusação de solipsismo, sustenta que a

linguagem referida a dados sensíveis é incomunicável quanto ao conteúdo destes

mesmo dados, mas não quanto a sua estrutura. Embora as sensações sejam pri-

vadas — tanto assim que duas pessoas podem experimentar sensações diversas

em relação à palavra vermelho — é certo que essa palavra é usada nas mesmas

situações, no que se pode reconhecer as mesmas relações entre as impressões a

ela ligadas. Isto bastaria para assegurar a objetividade de proposições que

contenham vermelho. Ayer dirá que a concepção de estrutura faz Iembrar as

qualidades primárias de Locke (idealismo objetivo). Se não posso saber se o meu

vizinho diz o mesmo que eu quando emprega determinada palavra, tampouco tenho

meios para saber se quer dizer o mesmo que eu com o emprego daquela palavra.

Há apenas uma harmonia em nosso comportamento (A. J. Ayer, lntroducción del

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compilador in A. J. Ayer (org.), Elpositivismo lógico, México, Fondo de Cultura

Económica, 1 993, p. 24 e 25). Carnap tentou desqualificar as críticas ao solipsismo,

sustentando que sua escolha por uma linguagem solipsista revela um interesse

epistemológico, consistente na explicação da maneira como os conceitos científicos

mantêm conexões Iógicas com a experiência, e não uma descrição da maneira

Fim da nota de rodapé

Página 234

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

mundo real por meio da pura reflexão, sem qualquer controle empírico. A existência

de sentenças gramaticalmente inquestionáveis mas carentes de significado (pseudo-

sentenças) explica-se pela ausência de convenções que garantam o conhecimento

verdadeiro. Não basta a sintaxe gramatical; é necessária uma sintaxe lógica,

exatamente para fugir às especulações metafísicas. As ciências empíricas

pesquisam fatos apresentados por meio da linguagem natural (L). A linguagem-

sistema da ciência (L) é construída a partir daquelas formações Iingüísticas (L).

Assim como L é Iingua- gem-objeto em relação a L, a Iinguagem da ciência é

linguagem- objeto em relação à filosofia, à qual compete garantir que a lingua- gem

ideal da ciência, artificialmente constituída, imune à ambigüi- dade e à vagueza da

linguagem natural (L), esteja em condições de desenvolver conceitos que possam

ser aplicados na análise empíri- ca da confirmação.6

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Carnap registra que a filosofia tradicional tem-se envolvido em pseudodisputas,

porquanto, do ponto de vista do significado científico, tanto a tese realista quanto a

tese idealista não exprimem afirmações sobre fatos. Trata-se, portanto, de pseudo-

enunciados, destituídos de conteúdo, acerca dos quais não se pode falar de

correção ou incorreção. O geógrafo não tem dúvida quanto à existência física de

uma montanha. A divergência entre realistas e idealistas não ocorre no domínio

empírico. Saber se a montanha, além do que se

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

como eles são psicologicamente obtidos pelo sujeito individual. No dizer de Ayer,

isto é pouco mais do que umajustificativa da pureza das in- tenções de Carnap, mas

em nada diminui as objeções a sua teoria. A respeito, v. Ayer, lntroducción del

compilador, in A. J. Ayer (org.) El Positivismo Lógico, México, Fondo de Cultura

Económica, 1 993, p. 24, e Moritz Schlick, Rudolf Carnap — Coletânea de Textos,

28 ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pensadores), p. 13.

(6) Carnap, Testabilidade e significado, in Moritz Schlick, RudolfCarnap — Coletânea

de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os Pensadores),

particularmente p. 1 74 e 1 98-200; Camap, Pseudopro- blemas na Filosofia, in

Moritz Schlick, Rudolf Carnap — Coletânea de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril

Cultural, 1985 (Coleção Os Pensado- res), Carnap, Logische Syntax der Sprache, 2.

ed., Viena, Nova York, 1968, apud Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 73-83.

Fim da nota de rodapé

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

afirma sobre ela, é real, ainda que não se possa conhecer a realidade mesma

(realismo), ou se, de outra forma, somente as percepções ou processos conscientes

são reais (idealismo), é indagação que transcende o campo da experiência para

colocar-se na esfera das lucu- brações metafísicas. Por isso, Camap diz que

nenhuma destas teses pode ser considerada cientificamente significativa.7

Assim, na concepção do positivismo lógico, a filosofia opera como metalinguagem,

que busca identificar, de um ponto de vista puramente sintático (formal), as pseudo-

sentenças metafísicas, verdadeiros non-sens que habitam grande parte das

discussões filosóficas tradicionais. Aplicando a matemática, fundada em axiomas

(estes em si mesmos não dedutíveis, mas a partir dos quais, por inferência, é

possível extrair novas fórmulas), Carnap desenvolveu uma espécie de teoria geral

da estrutura formal dos textos científi- cos. Neste contexto, o critério de verificação

do significado das relações empíricas não poderia ser outro que não o critério de

coerência. Mas se é certo que esta posição permite a Carnap garantir a

intersubjetividade e a objetividade do discurso científico, elaborado em uma língua

universal e indiferente às impressões sensíveis que cada uma das pessoas possa

associar a uma determinada palavra, não menos certo é também que o ideal

empirista de uma ciên- cia unificada sugere uma série de percalços.8

Não se ajusta aos propósitos deste trabalho enunciar os proble- mas que emergiram

daquela concepção fisicalista de Carnap, mas apenas mostrar que ele próprio,

convencido da insuficiência de uma linguagem unilateral, entendeu que o confronto

dos aspectos for- mais da linguagem com a realidade, vale dizer, com o campo

exten- sional dos conceitos e das definições elaboradas pelo cientista, põe em

relevo questões filosóficas das quais a simples análise sintática

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Início da nota de rodapé

(7) Carnap, Pseudoproblemas na Filosofia, in Moritz Schlick, Rudolf Carnap —

Coletânea de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural, 1985 (Coleção Os

Pensadores), p.157 e 161-163.

(8) A respeito da influência dessa concepção empírica na chamada filoso- fia

analítica, ver Alaôr Caffé Alves, Lógica — Pensamentoformal e argumentação —

Elementos para o discursojurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 320-321.

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

não dá conta. A supor que a filosofia, na perspectiva do positivismo lógico, esteja

limitada ao estudo dos fundamentos e métodos da ciência, e mais, que assim sendo,

nada possa dizer acerca da realidade mesma (que é objeto do conhecimento das

ciências empíricas), há de se convir em que, tal qual a teoria do conhecimento, a

filosofia vive um impasse, porquanto faz afirmações sem sentido.9 Wittgenstein

também enfrentou a mesma aporia e a exemplo de Schlick acabou por concluir que

a filosofia é uma atividade e não uma teoria.

No Tractatus, Wittgenstein revela a disposição de estudar a natureza dos

instrumentos do conhecimento, visando a saber se as pretensões da filosofia, no

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que excedem o conhecimento empfrico, são ou não Iegítimas. Parte para a

empreitada munido do arsenal

Início da nota de rodapé

(9) Em outras palavras, se é certo que a filosofia se ocupa unicamente da estrutura

semiótica da linguagem científica, examinando os procedimentos utilizados pelo

cientista na elaboração dos conceitos, das hipóteses e teorias, e se é certo também

que o conhecimento empírico do real está reservado apenas às ciências

particulares, há de se perguntar, então, sobre o signitcado de uma tal teoria da

ciência, voltada ao conhecimento dos fundamentos do mundo, mas não ao

conhecimento do mundo mesmo. Isto coloca em pauta outro problema da

metaiinguagem filosófica, con- sistente em saber qual o sentido da proposição que

afirma a validade do principio de verificação. Este princípio não é uma sentença

empírica, tampouco tautológica. Ou bem se reconhece que não só os enunciados

fáticos e formais são dotados de sentido, ou se tem de admitir que o fundamento

óltimo de toda certeza científica é uma sentença metafísica, destituída de sentido.

Schlick, fugindo ao dilema, diz que o princípio de verificação não é uma sentença. A

explicação acerca das proposições da ciência, que é papel da filosofia, não pode

constituir uma nova proposição pois, a ser assim, isto obrigaria um regresso ao

infinito. Está se diante de uma atividade fllosófica — dirá Schlick. Carnap, de outra

forma, sustenta que as proposições filosóficas também se submetem ao critério de

verificação. Elas não seriam proposições significativas sobre o mundo, mas

proposições significativas sobre a Iinguagem utiliza- da para falar do mundo. (Moritz

Schlick, Rudolfcarnap — Coletônea de Textos, 2. ed., São Paulo, Abril Cultural,

1985, Coleção Os Pensado- res, p. XV-VIII; A. J. Ayer, lntroducción del compilador in

A. J. Ayer — organizador — E1 positivismo lógico, México, Fondo de Cultura

Económica, 1 993, p. 20, 2 1 e 29; Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 85-9 1;

John Hospers, op. cit., p. 328.

Fim da nota de rodapé

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

lógico de Frege e de Russell, fazendo, naquilo que alguns reconhecem como

antipsicologismo militante, total abstração das faculdades subjetivas do

conhecimento (Tractatus, 5.641).10 Pondo de lado as elaborações que se

desenvolvem através das funções proposicionais — reflexão que demandaria um

exame mais aprofundado da tradição lógica — é importante registrar que o Tractatus

parte da noção de fatos atômicos, que correspondem às proposições unitárias de

uma linguagem formal idealizada, mostrando depois como a significação das

proposições mais complexas pode, pelo menos em tese, ser analisada por métodos

próprios das funções de verdade. A linguagem é reduzida aqui a sua função

descritiva, o que somente se torna possível porque linguagem e mundo têm a

mesma forma lógica (isomorfismo)11

Início da nota de rodapé

(10) Luiz Henrique Lopes dos Santos, inApresentação e estudo introdutório à 2.

edição brasileira de Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico- Philosophicus, São

Paulo, Edusp, p. l 1-24 (a tradução brasileira do Tractatus orientará a exposição que

se segue, com simples menção do número dos aforismos no próprio corpo do texto).

No mesmo sentido são as considerações de Pilar López de Santa María Delgado,

para quem Wittgenstein está preocupado não com a dimensão psicológica do

pensamento, mas sim com o conteúdo do pensamento como retrato de um mundo.

Não importam os processos psicológicos realizados no pensamento, mas sim o

resultado deles. Não interessa ao Tractatus estabelecer as capacidades e limites do

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cérebro humano, senão os limites absolutos do pensamento (lntroducción a

Wittgenstein — sujeto, mente y conducta, Barcelona, Herder, 1986, Coleção

Biblioteca de Filosofia, ed. 22, p. 47 — sobre o mesmo tema, prossegue a autora

nas pp. 61, 62, 68,69e72).

(11) A propósito, Luiz Henrique Lopes dos Santos, op. cit., p. 68, 80 e 84; Allan Janik

e Stephen Toulmin, A Viena de Wittgenstein, Rio de Janei- ro, Campus, l 99 l, p. 249

e 250; Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 20-36. Ferrater Mora

apresenta um resumo compreensivo desta concepção. Explica que o mundo é a

totalidade dos fatos atômicos e não de coisas. Um fato atômico é composto de

coisas ou entidades, que, por sua vez, são nomeadas por substantivos, pronomes,

adjetivos etc., de modo que se estabelece uma relação entre coisas e palavras.

Assim como uma combinação de coisas é umfato atômico, uma combinação de

palavras é uma proposição atômica, estabelecendo-se uma relação isomórfica entre

um e outro. A combinação de proposições

Fim da nota de rodapé

Página 238

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A partir daí, Wittgenstein passa a discorrer acerca da maneira pela qual a

proposição descreve o mundo (Tractatus, 5.4711). Dirá que a proposição é uma

figuração lógica da realidade (Tractatus, 2.063-2.2; 4.001. 4.01, 4.014, 4.0141,

4.021, 4.023 e 4.03). O sinal proposicional, composto de palavras articuladas, é o

lado sensível da proposição (Tractatus, 3.1, 3.11, 3.12, 3.14, 3.32, 3.321,4.0312 e

4.442), mas nem por isso se pode sustentar um realismo platônico porque os

nomes, per se, são destituídos de sentido. Denominam mas não descrevem.

Somente no contexto das relações lógicas da proposição é que têm referência,

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tornando-se inteligíveis (Tractatus, 3.141, 3.202, 3.221 e 3.3). A aplicabilidade das

proposições lógicas às proposições fatuais implica reconhecer a capacidade de

exibir relações internas entre proposições fatuais. Também as proposições lógicas

(que são tautológicas) e as contradições mostram propriedades e relações internas

(Tractatus, 4.023, 4.032, 4.122 e 6.124). Porém, a tautologia e a contradição não

dizem nada, pois a tautologia, sendo incondicionalmente verdadeira, não tem

condições de verdade, enquanto a contradição é incondicionalmente falsa

(Tractatus, 4.461 e 5.142). A verdade da tautologia é certa; a da proposição é

possível; a da contradição é impossível (Tractatus, 4.464). A tautologia deixa à

realidade todo o infinito espaço Iógico; a contradição preenche todo o espaço lógico

e não deixa nada à realidade (Tractatus, 4.463). Nelas não há figuração da

realidade, pois não representam situações possíveis (4.462).

Do exposto decorrem alguns enunciados importantes. Assim é que só as

convenções humanas permitem o entendimento da linguagem natural, com a qual o

homem é capaz de exprimir todo o sentido (Tractatus, 4.002). A filosofia mais não é

do que a crítica dessa linguagem (Tractatus, 4.003 1). Cabe a ela identificar toda a

ambi- güidade decorrente da polissemia e das diversas funções sintáticas

desempenhadas pela mesma palavra (símbolos diferentes), na tentativa de apurar a

linguagem da ciência, delimitando ao mesmo temp o o seu território, vale dizer, o

limite entre o pensável e o impensável

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

atômicas constitui as chamadas funções de verdade. A linguagem converte-se,

assim, em um mapa da realidade (Ferrater Mora, Diccionárjo de Filosofïa, 5. ed., vol.

4, 1986, Madrid, Alianza, p. 3.495-3.500).

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Fim da nota de rodapé

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

(Tractatus, 3,318, 3.321-3.325; 4.1 13 e 4. 1 14). O resultado da filosofia, entretanto,

não são proposições, mas esclarecimentos acerca das proposições. Neste sentido,

como já registrado parágrafos acima, a filosofia não é uma teoria, mas uma atividade

que busca o esclarecimento lógico dos pensamentos (Tractatus, 4.112 e 4.122). A

proposição pode apenas mostrar a forma lógica, mas nunca dizê-la. Nem a forma

lógica da linguagem nem o seu isomorfismo com o mundo são exprimíveis

(Tractatus, 4. 1 2 1, 4. 12 1 2 e 5.6 1), precisamen- te porque, sendo as proposições

da lógica tautológicas (Tractatus, 6. 1 e 6.12), não dizem nada (Tractatus, 6.11).

Somente é possível mostrá-los, como condições formalmente necessárias da

linguagem, cuios limites não podemos transcender. Quando o Tractatus enun- cia

que os limites de minha linguagem são também os limites de meu mundo (Tractatus,

5.6), acaba em um paradoxo, pois a filosofia, ao tratar da maneira como as formas

lógicas das proposições mode- lam o mundo, está incluída entre as coisas que não

podem ser ditas mas apenas mostradas (Tractatus, 6.53).12

Início da nota de rodapé

(12) Ferrater Mora prossegue dizendo que a linguagem natural não atende à

depuração que se exige da linguagem cientffica. No fundo dela tem-se de descobrir

um esqueleto lógico, que constitui sua função essencial. Este esqueleto Iógico é a

Iinguagem ideal. As proposições através das quais o esqueleto lógico é descoberto

não são nem proposições atômicas nem funções de verdade. Por isso, elas carecem

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de sentido. Wittgenstein, assim, longe de dizer alguma coisa sobre a Iinguagem,

apenas mostra. A filosofia está fora dos limites da minha Iinguagem e também do

meu mundo. Não é uma teoria da ciência, mas uma atividade (Ferrater Mora,

Diccionário de Filosofia, vol. IV, 5. ed., Madrid, Alianza, 1 986, p. 3.495- 3.500).

Como registram Janik e Toulmin, em Wittgenstein assim como em Kant, o

entendimento cria a ordem da natureza. A lógica torna possível o mundo, que é

modelado pelas formas lógicas de proposições. Ocorre que um modelo não pode

modelar a forma de modelagem, apenas a mostra. As proposições são capazes de

modelar e descrever a realidade, mas não simultaneamente descrever como a

descrevem sem se tornarem auto-referenciais e, por conseguinte, destituídas de

significado (Tractatus, 4.1 1 13 e 4.1212). A conseqüência disto é a impossibilidade

de se elaborar uma teoria do significado (op. cit., p. 216-220). O isomorfismo entre

Iinguagem e mundo, que faz do místico o indizível, porque está fora do mundo,

implica indagar acerca da completude do

Fim da nota de rodapé

Página 240

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Enfim, o que a filosofia quer dizer existe e importa considerar. Apenas não se pode

fazê-lo da maneira como postula a filosofia tradicional, ou seja, dizendo o que não

pode ser dito (Tractatus, 7). Isto inclui o religioso, o místico e o ético, que existem

mas são inexprimíveis. (Tractatus, 6.421, 6.432, 6.522, 6.53). Vê-se neste aparente

sem-sentido do Tractatus uma crítica à concepção racional da ética. Ela está fora do

mundo, tal qual a Iógica, porque é uma condi- ção da existência dele (Tractatus,

6.42 1). A metafísica é inefável não por absurda, mas porque é importante. Ao

mesmo tempo, o Tractatus revela as limitações de uma teoria do significado pautada

na repre- sentação, visto que é impossível para o filósofo descrever como as

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proposições descrevem o mundo. Isto abre horizontes para uma crítica da teoria do

abuso. A filosofia, ao tratar do bem, da verdade

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

mundo que conhecemos. Na concepção tractariana, nada se pode dizer do alógico

porque para sair dos domínios da Iógica seria necessário ultrapassar os Iimites do

pensamento. Esta perspectiva faz lembrar o pen- samento de Parmênides (fora do

ser nada existe; o ser não tem limites, pois se houvesse existiria o não ser).

Iguaimente, no Tractatus, o não ser não existe. Nada fica de fora do campo lógico. A

Iógica, o mundo e a linguagem são completos. Assim, o ilógico é impensável, vale

dizer, não pode ser tïgurado. E sendo a linguagem a expressão do pensamento, não

se pode dizer o que não se pode pensar. Isto conduz ao solipsismo, que o próprio

Wittgenstein admite correto, mas do qual nada se pode dizer. O solipsismo só pode

ser concebido do ponto de vista do eu metafísico. Aqui, Wittgenstein recorre à

relação entre o olho e o campo visual, que não contém o olho que o vê (Tractatus,

5.-5.641). O eu metafisico nada mais é do que o ético, que somente se pode

mostrar, nunca dizer (a respeito das diversas interpretações do solipsismo

deWittgenstein, v. Pilar Lópes de Santa María. op. cit., p. 54-76). Aqui reside a

aporia da reflexão filosófica, a qual desemboca num idealismo subjetivo que o

Tractatus teve de admitir. Adam Schaff considera que o idealismo do positivismo

lógico consiste precisamente na redução da filosofia à aná- lise da Iinguagem,

quando é certo que a linguagem é somente um dos objetos dos estudos filosóficos.

Este reducionismo é reflexo do empirismo imanente contido na possibilidade de uma

linguagem científica convencional, livre das impurezas da linguagem natural,

expressão do idealismo subjetivo que concebe a construção da realidade pela mente

(Schaff, op. cit., p. 73 e 74).

Fim da nota de rodapé

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Página 241

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

e do justo não pode mais do que apontar para estes conceitos. Além disto, não está

em condições de dizer como as proposições jurídicas modelam o mundo do dever-

ser. A dogmática jurídica, por sua vez, também mais não faz do que mostrar o

significado do abuso dos direitos processuais. Neste ponto reproduz-se o paradoxo

de Wittgenstein, como será possível agora demonstrar.

É certo que a definição de abuso do direito de demanda é contextual, ou seja, ela

surge no mais das vezes na menção ou na amostragem dos casos concretos,

contida nos repositórios de jurisprudência, de forma que nem sempre a extensão do

termo pode ser fixada a partir da mera especificação de notas individualizadoras. A

simples conotação não é suficiente para que se possa estabelecer a multiplicidade

de sentidos que a prática forense incorpora ao conceito de abuso do direito no

processo. Todavia, tem-se de reconhecer que as teorias dogmáticas não se

resumem ao fatual. A experiência aponta apenas algumas situações, que bem

demonstram como aquela definição pode ser ou muito ampla ou muito restrita.13 Em

outras palavras, não se está diante de um conceito empírico, que possa ser

construído por uma linguagem teórica formal e intersubjetiva, como concebida pelo

Círculo de Viena e por Wittgenstein. Aliás, as dificuldades apontadas no capítulo

anterior (seção 3.4), quando se buscava identificar o fundamento jurídico da

proibição do abuso do direito processual, dão a exata dimensão da inviabili- dade de

uma linguagem fisicalista no campo da teoria do direito. Definições estipulativas tais

como sanção, ilícito, norma, embora destinadas a eliminar as imprecisões de

significado, não conseguem cumprir este objetivo no campo ético e cultural. Em

outros termos, a teoria do direito não logrou desenvolver regras de coerência que

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Início da nota de rodapé

(13) Com efeito, doutrina ejurisprudência divergem a respeito das notas que

integram o conceito de abuso do direito no processo. Conforme maior ou menor a

intensão, menor ou maior, respectivamente, em uma proporção inversa, será o

campo extensional. A consideração do aspecto subjetivo, por exemplo, poderá

afastar muitos casos da incidência da teoria do abuso. De outra forma, e sob outro

aspecto, a obrigação de trazer aos autos todos os fatos dos quais a parte tem

conhecimento implicará ampliação do conceito de abuso.

Fim da nota de rodapé

Página 242

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

pudessem vincular as diversas categorias que compõem o universo jurídico. Mesmo

em Kelsen, conquanto se possa reconhecer a exis- tência de um critério de

coerência, precisamente em sua estática jurídica, há um recurso ao critério de

correspondência, que se re- vela na difícil relação entre validade, eficácia e

efetividade.14

Início da nota de rodapé

(14) A propósito, v. Roberto José Vernengo, Normajurídica y esquema reerencial, in

Derecho, Filosofía y lenguaje — homenaje a Ambrosio L. Gioja, Buenos Aires,

Astrea, 1976 (Colección Filosofía y Derecho, 3), p. 213-223. Luís Alberto Warat

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chama a atenção para o fato de que Kelsen, ainda que sem fazer referência ao

positivismo Iógico ou a Wittgenstein, foi o primeiro autor a utilizar-se, no campo

jurídico, da distinção entre linguagem objeto e metalinguagem. Mesmo assim, a

perplexidade metodológica no direito é muito grande, porquanto a teoria não só

descreve como também interfere diretamente na programação de comportamentos

que nem sequer existem (El Derecho y su Lenguaje, Buenos Aires, Cooperadora de

Derecho y Ciencias Sociales, 1 976, p.7 1 -72). Como apontaAntônio Graça Neto

(Kelsen e Wittgenstein: as interfaces da lógica, Revista do Curso de Pós-Graduação

da Uni- versidade Federal de Santa Catarina, Estudos Jurídicos e Políticos,

Seqüência 32, julho de 1996, p. 115-123), Hans Kelsen, na Teoria Pura do Direito,

tanto quanto Wittgenstein, no seu Tractatus, tarnbém perseguiu o propósito de uma

linguagem formalizada, longe da ambigüida- de e vagueza próprias da Iinguagem

natural. E importante ressaltar, fazendo coro com o autor, que malgrado Kelsen não

concebesse a aplicação da Lógica à norma mesma, admitia fosse aplicada às

proposições da ciência constitutiva do Direito, outro traço que o aproxima do

positivismo lógico (a respeito, v. Kelsen, Normasjurídicas e análise lógica—

correspondência trocada entre Hans Kelsen e Ulrich Klug, Rio de Janeiro, Forense,

1 984, p. 80). Mas um dos pontos em que a Teria Pura do Direito se afasta do

Tractatus — segundo observa Graça Neto — diz precisamente com a possibilidade

de uma linguagem lógica cujo referente, ou seja, a norrna, não é lógico. Em outras

palavras, a norma surge corno estrutura de sentido sem referente, o que é, do ponto

de vista wittgensteiniano, pura metafísica. A proposição jurídica, cujo referen- te é a

norma, apesar do sentido descritivo, não é um enunciado apofântiCo, colocando-se,

isto sim, no mundo do dever ser (Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4. ed, Coimbra,

1979, p. 1 16). A propósito da dificuldade, do ângulo da filosofia analítica, dejustificar

enunciados científicos pres- critivos, ver Tercio Sampaio Ferraz Jr., Direito, retórica e

comunicação, São Paulo, Saraiva, 1973, p. 163.

Fim da nota de rodapé

Página 243

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

A norma jurídica não se confunde com o fato social precisamente porque é

expressão de valores da sociedade e não um retrato ou um flagrante do mundo

empírico. A teoria do direito, como metalinguagem jurídica (cuja linguagem-objeto é

a norma) não estaria, assim, em condições de cumprir o papel que o positivismo

lógico reserva à linguagem-sistema da ciência, pois no lugar de afastar toda a

ambigüidade e vagueza, a dogmáticajurídica, no mais das vezes, vale-se da

indefinição para ampliar ou restringir o leque de aplicações da norma (interpretação

extensiva, interpretação analógica e interpretação restritiva). Mais que isto, as

normas de conteúdo impreciso dão lugar a complexos argumentativos — conhecidos

na dogmática jurídica como teorias — que nada mais são do que elaborações

retóricas voltadas à legitimação das decisões, como é o caso do abuso dos direitos

processuais.15

Início da nota de rodapé

(15) A respeito da distinção entre teoria e complexos argumentativos, v. Tercio

Sarnpaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito, técnica, decisão, dominação,

São Paulo, Atlas, 1988, p. 84-88; Alaôr CafféAlves, op. cit., p. 378-382, 372-374,

323, 324 e 397-399; Luís Alberto Warat, Mitos e Teorias na Interpretação da Lei,

Porto Alegre, Síntese Ltda., 1979, p. 143-154. A respeito da importância dos

conceitos imprecisos no Direito é vasta a bibliografia. Na linha de reflexão

desenvolvida no presente trabalho, v. Luís Alberto Warat, A Definiçãojurídica — suas

técnicas; texto programado, Porto Alegre, Atrium, 1 977, p. 14, 41, 45, 47 e 48; Luís

Alberto Warat, El Derecho y su Lenguaje, Buenos Aires, Cooperadora de Derecho y

Ciencias Sociales, 1976, p. 1 19-139; Luís Alberto Warat, Mitos e Teorias na

Interpretação da Lei, p. 91-154; Juan Ramon Capella, El derecho como lenguaje —

un análisis lógico, Barce- lona, Ariel, 1968, p. 246-275; Carlos Santiago Nino,

Introducción al análisis del derecho, 2. ed., Buenos Ames, Astrea, 1984, p. 245-272;

Perelman, La logicajurídica y la nueva retorica, Madrid, Civitas S. A., 1979, p. 73-91;

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KarI Engisch, Introdução ao Pensamento Jurídico, 7. ed., Lisboa, Fundação

Calouste Gulbenkian, 1996, p. 205-274; Karl Larenz, op. cit., p. 292; Alaôr Caffé

Alves, op. cit., p. 170 e 171; Luiz Fernando Coelho, op. cit., p. 204-207 e Tercio

Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito — técnica, decisão, dominação,

São Paulo, Atlas, 1988, p. 268-270. Para uma crítica acerca da existência de

conceitos indeterminados no campo do Direito Constitucional, v. Dirnitri Dimoulis,

Moralismo, positismo e pragmatismo na interpretação do Direito Constitucional, in

RT, São Paulo, Ano 88, novembro de 1999,

Fim da nota de rodapé

Página 244

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

No capítulo inicial do presente trabalho, buscou-se demonstrar, precisamente, como

a dogmática jurídica foi incorporando as novas tendências da sociedade, fruto do

desenvolvimento das relações de produção, para inscrever a chamada teoria do

abuso do direito não mais nos quadros da aemulatio, como concebida desde os ro-

manos, mas na esfera de um exercício anormal do direito, concepção que buscava

temperar, mantida a aparência de legalidade, o excessivo egoísmo liberal-burguês.

Os reflexos destas elaborações logo se fizeram sentir no movimento de codificação,

a um ponto tal que, hoje, são muitas as disposições normativas que se ocupam dos

chamados abusos do direito, inclusive no campo do processo judicial, como se

tratou de demonstrar no segundo capítulo. Estas regras legais, apesar de fornecer

algumas notas do conceito de abuso processual, acabam deixando espaço para a

interpretação da doutrina e também para a interpretação judicial.

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Não bastasse, a possibilidade de construir linguagens formais e artificiais,

adequadas a cada um dos campos da ciência, revelou- se, segundo um novo

paradigma da lógica matemática, inviável. O modelo axiomático-formal da

matemática, desenvolvido por David Hilbert, que tanto influenciou a Viena do início

do século passado, não resistiu à crítica demolidora de Kurt Gödel, que em 1931

publicou um artigo intitulado Sobre as Proposições lndecidíveis dos Principia

Mathematica e Sistemas Correlatos. O jovem matemático, integrante do chamado

Círculo de Viena, refutou a tese da for- malização absoluta da matemática. Até

então, acreditava-se que a partir de axiomas, proposições inquestionáveis, era

possível derivar todas as demais proposições do sistema, dando lugar a um

teorema. Gödel, em seu trabalho, mostrou que tal pretensão é insustentável,

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

vol. 769, p. 1 1-27. José Eduardo Faria, a propósito de outras questões, que têm em

conta o direito incremental, registra que os conceitos jurídicos indeterminados

colocam ojurista diante de um dilema, pois se de um lado atendem à necessidade de

definir o sentido da norma a partir da singularidade do caso concreto, de outro, à

medida que se disseminam no sistema normativo, aumentam o grau de incerteza e

insegurança jurídica (O direito na economia globalizada, São Paulo, Malheiros,

1996, p. 131-140).

Fim da nota de rodapé

Página 245

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

porquanto grande parte das classes de sistemas dedutivos não tem consistência

lógica interna. Os sistemas onde a aritmética pode ser desenvolvida são

essencialmente incompletos, visto que há enunciados aritméticos verdadeiros que

não podem derivar do conjunto.16 Por isso, o projeto filosófico do

positivismojurídico, que busca dotar a ciência do direito de uma linguagem precisa e

auto-suficiente, é equivocado, tanto quanto equivocada também é a idéia de que o

cientista do direito opera dentro de um sistema cerrado de normas, no qual

inexistem inconsistências ou lacunas.17

Início da nota de rodapé

(16) A respeito da influência de David Hilbert sobre o Círculo de Viena e sobre o

pensamento de Wittgenstein, v. AlIan Janik e Stephen Toulmin, A Viena de

Wittgenstein, Rio de Janeiro, Campus, 1 99 1, p.1 1 5, 209, 2 1 0, 2 1 7, 2 1 8 e 248.

A propósito da refutação de Gödel à formalização absoluta da matemática, v. Ernest

Nagel e James R. Newman, Prova de Gödel, 2. ed., São Paulo, Perspectiva, 1 998

(coleção Debates, ed. 75), p. 1 3-38 e 65-85; mais especificamente sobre o teorema

da incompletude, v. p. 56-63. A propósito de um paralelo entre o Teorema de Gödel

e a questão da unidade e coerência do ordenamentojuridico, v. Tercio Sampaio

Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito, São Paulo, Atlas, 1 988, p. 1 99, Juan-

Ramon Capella, E1 derecho como Ienguaje, Barcelona, Ariel, 1 986 (Colección

Zetein), p. 276-279 e 288-290, e Luiz Sergio Fernandes de Souza, O papel da

ideologia no preenchimento das lacunas no direito, 2 ed., São Paulo, RT, 2005, p.

241 e 242.

(17) Kelsen, em diversas passagens da Teoria Pura do Direito, acaba revelando

estas fisuras, não sem antes dizer que se trata de um problema de ordem prática,

que não cabe ao estudioso considerar. Assim, a existência de lacunas no direito, por

exemplo, justifica-se de um ponto de vista operacional, permitindo que o juiz possa

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contornar uma situação que entenda injusta. Trata-se de uma ficção, que cumpre um

objetivo ideológico (Hans Kelsen, op. cit., p. 338-343 e 472). Aqui se insere a

clássica distinção entre lacuna técnica e lacuna axiológica. Para uma anáiise mais

detalhada do tema, v. Amedeo Conte, Saggio sulla completezza degli

ordinamentigiuridici, Torino Giappichelli, 1 962, p. 47-60; Bobbio, Teoria

dellordinamento giuridico, Turim, Giappichelli, 1960, p. 158; Karl Larenz, op. cit., p.

363-373; Karl Engisch, op. cit, p. 275-361. Outrossim, Kelsen entende que ojuiz, ao

proferir uma sentença, efetua uma escolha entre as possíveis significações da

norma, como também apontadas pela ciência do direito, de sorte que não se há de

falar em interpretação correta. Entretanto, editada a norma, a interpretação passa

Fim da nota de rodapé

Página 246

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Mas se as categorias jurídicas não são tautológicas nem tam- pouco empíricas,

estar-se-ia então diante do indizível, do inefável. Com efeito, se é certo que à ciência

do direito mais não é dado senão apontar a ambigüidade e a vagueza dos conceitos

jurídicos, a exemplo do abuso do direito, tem-se de concluir que o direito, assim

como a ética, a estética, a poesia e a teologia, é utilizado não como descrição de

relações necessárias ou mesmo descrição de fa- tos sensíveis, mas apenas para

exprimir certos sentimentos e evocar reações, através de juízos aos quais não faz

sentido atribuir validade objetiva.18 Ou seja, se os enunciados da ciência do direito

mais

Início da nota de rodapé

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Continuação da nota de rodapé da página anterior

a vincular, porque autêntica. À ciência do direito cabe apenas apontar esta

pluralidade, porquanto não lhe é possível, quer do ponto de vista lógico quer do

ponto de vista científico objetivo, estabelecer um significado unívoco. A tese da

univocidade é uma ficção, que apresenta como verdade científica aquilo que é

apenas um juízo de valor político. Neste ponto, Kelsen critica ajurisprudência dos

conceitos, que no afã de con- solidar o ideal da segurançajurídica, desconsidera a

plurissignificação da maioria das normas jurídicas (Hans Kelsen, op. cit., p. 469-

473). Importante registrar que a unidade e coerência do ordenamento jurídico, na

perspectiva de Kelsen, não resulta do fato de tratar-se de um sistema lógico. Neste

ponto, Kelsen afasta-se de Ulrich Klug, defendendo a tese de que a coesão do

direito sejustifica de um ponto de vista hierárquico. Uma coisa são as antinomias,

que podem ser desfeitas com recursos que o próprio sistema oferece, e outra coisa

a contradição, que ocorre quando há dois enunciados, com o mesmo sujeito e o

mesmo objeto, um deles verdadeiro e outro falso (Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4.

ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p. 277 a 289 e Normas jurídicas e análise

lógica — correspondência trocada entre Hans Kelsen e Ulrich Klug, Rio de Janeiro,

Forense, 1984, p. 68). A propósito da distinção entre conflitos normativos e

contradição, em Kelsen, v. Juan- Ramon Capella, op. cit., p. 64 a 67.

(18) A. J. Ayer, Linguagem, Verdade e Lógica, Lisboa, Presença, 1991, p. 99.

Schlick entende que a ética é uma ciência fática. Não pelo só fato de ser uma

ciência normativa deixa de ter relação com o real. Para ele, as valorações são fatos

que existem na realidade da consciência humana (Moritz Schlick, Quepretende la

Etica? in A. J. Ayer, organizador, El Positivismo Lógico, México, Fondo de Cultura

Económica, 1993, p. 262 e 263). Carnap sustenta que os enunciados éticos não são

juízos de fato, mas imperativos disfarçados. A. J. Ayer (lntroducción del compilador

in

Fim da nota de rodapé

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Página 247

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

não podem senão descrever como as normas regulam, de maneira não fatual, a

realidade concreta, claro está, do ponto de vista do positivismo lógico, que são

destituídos de significado, tanto quanto a filosofia do direito. Assim, a verdade —

seja ela epistemológica, lógica ou semântica — não é atributo do direito.

Por certo, o que os positivistas do Círculo de Viena, à diferença de Wittgenstein, não

foram capazes de compreender é que as questões da ética, dos valores, enfim, do

significado da vida, situando-se fora dos limites da linguagem descritiva— sem

possibilidade, portanto, de demonstração — mostram situações que, a despeito de

transcendentais, haveriam de ser de alguma forma consideradas. O que importa na

vida humana, no dizer de Wittgenstein, é precisamente aquilo sobre o que se deve

silenciar. Daí o lado místico do Tractatus, que o positivismo lógico fingiu ignorar.19

No mundo dos fatos, nada existe

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

El Positivismo Lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1 993, p. 27 e 28) e

William P. Alston (Filosofía del lenguaje, Madrid, Alianza Universidad, 1974, p. 1 1 1

e ss.) sustentam que essa teoria imperativa da ética é uma versão da chamada

teoria emotiva, a qual, nos trabalhos de filósofos ingleses e americanos, viu-se

muitas vezes associada ao positivismo lógico.

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(19) Neste sentido, as interpretações de Janik e Toulmin, op. cit, p. 232 e 249- 259;

Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 27, 28 e 95, e Paul Strathern, op.

cit., p. 44 e 45. Merece registro a tese de Carnap no senti- do de que o metafísico é

um artista frustrado, com pretensões de trans- ferir para o campo teorético da

ciência enunciados que mais não são do que atitudes emotivas diante da vida.

Observa que um poeta não trata de invalidar o poema do outro, porque sabe que

está no terreno da arte e não da teoria. Curiosamente, os metafísicos envolvern-se

em disputas acerca de coisas das quais nada se pode afirmar. (Carnap, L

superación de la metaflsica mediante el análisis lógico del lenguaje, in A. J. Ayer —

organizador, Elpositivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1 993, p.

84-87). Carnap não se apercebeu, entretanto, do misticismo e da poesia existentes

no Tractatus, do que são mostra os aforismos (Janik eToulmin, op. Cit., p. 1 3, 1 94,

1 95, 23 1 , 232, e PilarLópezde SantaMaría Delgado, op. cit., p. 78 e 84-95). Não se

deu conta de que o aforismo nunca postula a verdade. Talvez caibam também aqui

as observações que Carnap faz em relação a Zarathustra: Nietzsche, nesta obra,

não buscou a forma teorética, assumindo abertamente a forma da arte, do

Fim da nota de rodapé

Página 248

ABUSO DE DJREITO PROCESSUAL

de valor; o sentido do mundo deve situar-se fora do mundo (Tractatus, 6.41). A

linguagem pode apresentar a experiência, mas também pode impregnar a

experiência de significado. Embora a poesia, os valores, não possam ser reduzidos

a proposições — como sustentam os integrantes do Cfrculo de Viena — isto não

quer dizer que se deva renunciar totalmente à tentativa de expressar o inefável.20

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Vê-se assim que se abre,já no Wittgenstein do Tractatus, uma possibilidade para a

compreensão do caráter cultural do Direito. Osj uízos de valor não podem ser

relegados, como entendia Carnap, a simples condição de imperativos de forma

gramatical desviada 21 ou “imperativos disfarçados”. 22 O que a linguagem mostra

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

poema (Carnap, La superación de la metafísica mediante el análisis lógico del

lenguaje, in A. J. Ayer — organizador, El positivismo lógico, México, Fondo de

Cultura Económica, l 993, p. 87). Sobre a relação entre o poeta e o metaffsico ver

também, no mesmo sentido, A. J. Ayer, Lin- guagem, verdade e lógica, Lisboa,

Presença, 1991, p. 21-23.

(20) Allan Janik e Stephen Toulmin chamam a atenção para o fato de que

Wittgenstein, a despeito do isomorfismo de suas concepções, foi capaz de voltar os

olhos para os grandes problemas existenciais, numa atitude que os autores

reconhecem como afaçanha ou aproeza ética do Trcctatus. Esta preocupação com o

indizível, na interpretação de Janik e Toulmin, revela-se nas correspondências que o

filósofo de Viena trocava com Waisman e Schlick. Ela está impregnada da própria

experiência de vida de Wittgenstein, um homem inclinado às artes, que também se

aproximou da religiosidade, sob influência, em ambos os campos, das obras de

Tolstói, especialmente de seus Contos e da Breve explicação dos Evangelhos. Janik

e Toulmin, procurando situar o pensamento de Wittgenstein naViena do inicio do

século XX, entendem que uma coisa é a filosofia que o Tractatus contém (a teoria do

mundo, a critica de Frege e Russell etc.) e outra, bem distinta, é a mundivisão

(Weltanschauung), a crença na existência de coisas de natureza superior (Tractatus,

6.42), que somente podem ser mostradas, nunca ditas. Na ciência, queremos

conhecer os fatos; nos problemas da vida, os fatos não são importantes. Na vida, a

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coisa importante é responder ao sofrimento de outrem (AlIan Janik e Stephen

Toulmin, op. cit., p. 219-226).

(21) Carnap, Philosophy andLogicalSyntax, London, Routledge, 1954, p. 24, apud

Juan-Ramon Capella, op. cit., p. 92.

(22) A. J. Ayer, lntroducción del compilador in A. J. Ayer (org.), Elpositi- vismo lógico,

México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 27.

Fim da nota de rodapé

Página 249

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

(sentimentos, emoções, valores) é muito superior àquilo que ela diz (Tractatus,

6.42). Assim como o andaime lógico do mundo é apriori, também a ética, como

condição do mundo, é transcendental. Entretanto, os valores não estão no campo da

razão, mas sim na esfera da poética. Por isso, ética e estética são uma coisa só

(Tractatus, 6.42 1). O poeta, o artista, quando insiste em dizer o indizível, atinge o

homem na sua subjetividade, permitindo-lhe entrar em contato com a fantasia, que é

o manancial do valor. Para o homem bom, a ética é um modo de vida, não um

sistema de proposições. Só a arte pode expressar a verdade moral e só o artista

pode ensinar as coisas que mais interessam na vida.23

Nesta perspectiva reaberta porWittgenstein, que remete a Kant, é necessário

transpor os limites que a linguagem objeto e a metalinguagem da ciência impõem ao

conhecimento do homem. E esta necessidade de ir mais além, de ultrapassar a

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barreira daquilo que pode ser dito, revela precisamente a atitude ética que aproxima

o direito da poesia, da retórica, fazendo lembrar o ars boni et aequi dos romanos, a

doxa da democracia ateniense, em contraste com a episteme, com o conhecimento

racional e especulativo. E a capacidade de imaginar que permite ao homem a

elaboração de modelos para conhecer aquilo que não é sensório. É através da

imaginação que o homem pode projetar-se para além do presente, desenvolvendo

técnicas que lhe permitam interferir na trajetória

Início da nota de rodapé

(23) Janik e Toulmin, op. cit., p. 226 e 228. A importância que Wittgenstein atribuia

às fábulas, ao imaginário, como expressão do sentido da vida, pode ser

exemplificada — de acordo com o registro de Paul Engelmann — na forma como os

filmes defar-west impressionaram o espírito do filósofo, que os considerava alegorias

de fundo moral (Lettersfrom Ludwig Wittgenstein, With a Memoir B.F. Mc Guinness,

Oxford, Basil Blackweli, l 967, p.92 e 93, apudJanikeToulmin, op. cit., p. 226). Conta-

se também que os filmes de Carmem Miranda exerceram grande fascínio sobre

Wittgenstein (Caetano Veloso, Verdade Tropical, São Paulo, Companhia das Letras,

1 997, p. 268). Acerca da disposição criativa que se revela nos diversos jogos de

linguagem, os quais contrapõem o pensamento ambíguo e o pensamento lógico, ver

Alaôr Caffé Alves, op. cit., p. 348-351.

Fim da nota de rodapé

Página 250

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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da humanidade.24 Mas é importante dizer que enquanto a arte, na poesis

aristotélica, é concebida como técnica voltada para a ação, para o resultado, a ética

tractariana é vista por alguns como atitude de simples contemplação daquele que

reconhece os limites da linguagem e, portanto, do mundo.

Se é certo, de um Iado, que expressões retóricas, a exemplo de abuso do direito,

acabam atingindo um certo grau de emancipação à luz do Tractatus, não menos

certo é também que tal qual ocorre com as próprias elaborações desenvolvidas

porwittgenstein (as quais estão no campo do indizível, diante do reducionismo

descritivo de sua teoria), aquele que as compreende, após ter escalado através

delas, haverá de jogar fora a escada (Tractatus, 6.54). Com efeito, só se pode falar

acerca daquilo que está fora do mundo de uma perspectiva ex- terna. Cabe à

Filosofia, demarcando o território da ciência, limitaro impensável de dentro, através

do pensável. Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo. O

que estiver além destes limites é impensável e indizível (Tractatus, 4.113, 4.114, 5.6,

5.6 1). Bem por isso, o abuso dos direitos processuais surge, na perspectiva de

Wittgenstein, vale dizer, na ótica de um sujeito metafísico absoluto, como alguma

coisa desprovida de sentido. Esta abordagem tem desdobramentos de suma

importância para o desenvolvimento das idéias que seguirão nas próximas seções.

Cabe apenas fazer uma breve referência às implicações do reducionismo

wittgensteiniano.

Início da nota de rodapé

(24) A respeito da concepção científica, técnica e filosófica de Aristóteles, v. a seção

3. ¡ do presente trabalho. A propósito da importância da imaginação na formulação

dos modelos científicos, v. Rubem Alves, Filo- sofia da Ciência — introdução aojogo

e suas regras, 17. ed., São Paulo, Brasiliense, p. 120, 136 e 144-163. Sobre a

importância da chamada ficção científica para as reflexões acerca do princípio da

causalidade v. CarI Sagan, O romance da ciência, 4. ed., São Paulo, Francisco

Alves, 1985, p. 153-162. A respeito do poder da imaginaço no campo do direito, v.

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Jesús lgnacio Martínez Garcia, La imaginaciónjurídica, Madrid, Dykinson, 1999, p.

71-91. A propósito da relação entre direito e arte, ver Tercio Sampaio Ferraz Jr.,

Notas sobre o Direito e a Arte, o Senso de Justiça e o Gosto Artístico, in Revista da

Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, volume 2,

Porto Alegre, Síntese (Coleção Acadêmica de Direito, v. 20), p. 35-45.

Fim da nota de rodapé

Página 251

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

É inegável que a elaboração abstrata da doutrina jurídica, assim como a norma, só

ganha sentido na aplicação ao caso concreto. Antes disto, o que existe é a

idealidade, a letra fria da lei, uma previsão hipotética ou — para usar expressão

amplamente empregada na filosofia analítica — umafunção proposicional. Todavia,

no momen- to em que o direito se materializa, no momento em que se revela na

existência humana, há um significado que, é certo, não se identifica com o fato

empírico. Vista sob o prisma do reducionismo descritivo do Tractatus, a apreciação

do abuso do direito processual poderia ser identificada com a realidade concreta, à

moda de um realis- mo jurídico ingênuo. Ocorre que a teoria do abuso, como com-

plexo argumentativo, tem compromisso com a ação e, portanto, com critérios de

razoabilidade, conveniência, utilidade, não se prestando à aplicação da díade

verdadeiro-falso, própria do critério de verificação.25

Mas a obra de Wittgenstein é polêmica. Há quem sustente que o paradoxo foi mal

compreendido. O indizível (que não tem sen- tido porque não tem referente), apesar

de absurdo, porque se aplica à própria lógica e à filosofia, é mesmo assim mais

importante que tudo aquilo que pode ser dito. Não se pode postular, na com-

preensão do Tractatus, a clássica distinção entre linguagem objeto e

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metalinguagem, feita pela filosofia analítica, sobre a qual o próprio Wittgenstein

discorre. As proposições do Tractatus não são enunciados científicos. A filosofia

nele contida, outrossim, é precisamente uma crítica à espécie de racionalismo que

aprisiona o espírito humano, impedindo que se distinga as duas esferas da

totalidade do mundo, quais sejam, a esfera dos fatos e a esfera dos valores. O

metafísico surge assim como um território proibido mas ao mesmo tempo inevitável.

Os valores não são algo passível de

Início da nota de rodapé

(25) A propósito do critério de verificação no campo do Direito, v. Ernesto Grün e

Martín Diogo Farrel, Problemas de verificación en el derecho, in Derecho, Filosofia y

lenguaje — homenaje a Ambrosio L. Gioja, Buenos Aires, Astrea, 1976 (Colección

Filosofia y Derecho, 3), p. 55- 73; Martín Diogo Farrel, Hacia un criterio empírico de

validez, Buenos Ames, Astrea, (Colección Ensayosjurídicos, 9), 1972.

Fim da nota de rodapé

Página 252

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

debate, mas de ação.26 Não existem proposições éticas mas apenas ações

éticas.27

Aparentemente, Wittgenstein parecia ter renegado a filosofia, ao atingir os confins da

linguagem e do mundo. Mas ao fechar-se em longo silêncio, trabalhando alguns

anos como professor primário, arquiteto e jardineiro, convenceu-se de que talvez

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não fosse preciso jogar fora a escada; bastava construir outra. Foram precisamente

a sua atividade na escola fundamental e as conversações com Ramsey e Sraffa que

o levaram a entender como a linguagem está pragmaticamente relacionada a

contextos extralingüísticos de comportamento. Esta segunda fase do pensamento de

Wittgenstein terá importantes repercussões para a compreensão da assim chamada

teoria do abuso dos direitos processuais.

4.2 A superação da teoria representativa

Na concepção tractariana, os problemas filosóficos e o sem sentido surgem da

transgressão dos limites da linguagem, que cum- pre um papel exclusivamente

descritivo. Conta-se que em uma de suas conversas com o italiano Piero Sraffa,

professor de Economia em Cambridge, Wittgenstein discorria sobre a identidade da

forma lógica entre a proposição e o fato descrito, quando seu interlocutor,

discordando desta que era a tese central do Tractatus, fez um gesto trivial, muito ao

gosto dos italianos, para demonstrar sua insatisfação, ao mesmo tempo em que

perguntava: qual

Início da nota de rodapé

(26) A interpretação segundo a qual a ética, em Wittgenstein, é simples con-

templação, sem compromisso com a ação, pode ser encontrada na obra de Pilar

López de Santa María Delgado (op. cit, p. 82 e 83). Outra interpretação é proposta

por Allan Janik e Stephen Toulmin, na base sobretudo da influência que a crítica da

Iinguagem, desenvolvida pelo escritor KarI Kraus, exerceu sobre o espírito de

Wittgenstein. Na leitura feita por aqueles autores, o Tractatus procurou proteger as

fantasias das incursões da razão, impedindo que o sentimento espontâneo fosse su-

focado pela racionalização (op. cit., p. 220-223, 228, 229 e 231).

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(27) PauI Engelmann, Überden tractatus Logico-Philosophicus von Ludwig

Wittgenstein, in Bei der Lampe, p. 1 5, apud, Janik e Toulmin, op. cit., p.

Fim da nota de rodapé

Página 253

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

a forma lógica disto?.28 Embora esta passagem encontre versões diferentes, nas

próprias narrativas que Wittgenstein teria feito a pessoas mais próximas, entre as

quais von Wright, ela não deixa de ser significativa, porque aponta os novos

caminhos que o levaram às Investigações Filosóficas, isto depois de uma fase de

transição, na qual Wittgenstein procurou conciliar aquela tese referencial com uma

nova perspectiva filosófica.29

Mantém-se, no segundo Wittgenstein, a preocupação com os limites da linguagem,

mas de uma perspectiva diversa, que incumbe à filosofia descrever. E esta

descrição, ainda que não tenha referência à realidade empírica, é dotada de sentido.

Em outras palavras, sentido e referência deixam de ser mutuamente dependentes.

Às proposições filosóficas, assim como às expressões elaboradas no modo

imperativo, não se aplica o princípio da verificação, segundo o qual compreender o

sentido de uma proposição equivale a conhecer suas condições de verdade

(Investigações, § 117, 136, 137, 531- 533). Nas Investigações Filosóficas,

Wittgenstein está inclinado a considerar que os problemas filosóficos têm origem na

falta de re- conhecimento dos problemas da linguagem (Investigações, § 1 19, 123,

132 e 133). Aqui, tal qual lhe ocorrera anteriormente, a filosofia é uma crítica da

linguagem (Tractatus, 4.0031). Todavia, nesta segunda fase de suas elaborações

teóricas, por força de um novo reconhecimento das fronteiras da linguagem,

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Wittgenstein é levado a incorporar o indizível. Não existe mais uma cidadela do

místico, do inefável. Agora, aquilo que Wittgenstein considerava ser o

Início da nota de rodapé

(28) Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 100.

(29) Exemplo destas obras de transição, segundo Pilar López de Santa María

Delgado (op. cit, p. 101 e 102), são as Philosophische Bemerkungen e a

Philosophische Grammatik. Servirão para a compreensão desse assim chamado

segundo Wittgenstein, as suas Philosophische Untersuchungen (Ludwig

Wittgenstein, Investigações Filosóficas 2. ed., Petrópolis, Vozes, 1 996 — Coleção

Pensamento Humano, vol. 1 5). Tal como foi feito na seção anterior, onde as

referências ao Tractatus aparecem no próprio corpo do texto, com o número do

aforismo, as citações ora serão feitas com remissão aos parágrafos que dividem a

Parte I das Investigações Filosóficas.

Fim da nota de rodapé

Página 254

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

mais importante, a exemplo da filosofia, da ética, da poesia, passa a integrar o

campo da linguagem. As palavras são ações e como tais inscrevem-se nasformas

de vida (Investigações, § 7 e 23).

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Asformas lógicas, o isomorfismo entre linguagem e mundo — que, na concepção do

Tractatus, autorizam a aplicação das tabelas de verdade — dão lugar, no segundo

Wittgenstein, às formas de vida. A linguagem deixa de ser um instrumento

secundário, uma maneira de descrever a estrutura ontológica do real, conhecida

através da razão, para transformar-se em condição de possibilidade do próprio

conhecimento (Investigações, § 100, 101-104, 379, 380, 584 e 737), de modo que

não se cogita mais da existência de uma consciência sem a linguagem

(Investigações, § 32, 330, 342, 416-432). As palavras, por sua vez, não têm função

exclusivamente designativa, como reconhecida 110 Tractatus por força de um

reducionismo descritivo (Investigações, § 27, 40, 49, 57-59). Assim como é certo que

as proposições possuem outros modos verbais, além do indicativo, certo também é

que as palavras comportam usos diversos. Quem diz Não está esplêndido o dia

hoje?, muitas vezes faz uma afirmação e não uma pergunta. Quem dá uma ordem,

muitas vezes pode fazê-lo na forma interrogativa: Você gostaria de fazer isto?.

Trata-se de formas retóricas e nem sempre se pode reconhecer a asserção, a

pergunta e a ordem em uma gramática superflcial (In- vestigações, § 21-26).30

Wittgenstein sugere expressões tais como

Início da nota de rodapé

(30) Importante registrar, neste ponto, que a expressão gramática, nas Investigações

Filosóficas, está sendo utilizada em um sentido especifico, que não tem em conta o

exame das relações internas da palavra e das relações entre palavras, orações e

frases, sob o ponto de vista formal (sintaxe), mas sim a descrição das regras de

combinação dos símbolos, considerado o sentido (semântica). A propósito desta

distinção, ver Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 1 14. Manfredo Araújo

de Oliveira esclarece que a gramática superficial, para Wittgenstein 11, é aquilo que

normalmente se chama de gramática (normas de construção correta de frases)

enquanto que a gramática profunda é o conjunto de regras que constitui

determinado jogo de linguagem (op. cit., p. 140 e l 4 1). Há uma crônica bem-

humorada de Luiz Fernando Verissimo que ajuda a entender essa distinção: Quatro

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ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa

mesma missão, de-

Fim da nota de rodapé

Página 255

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

“Água!”, ‘Fora!”, “Ai!”, “Socorro!’, “Lindo!”, “Não!”, para depois perguntar: Você ainda

está inclinado a chamar estas palavras de denominação de objetos? (Investigações,

§ 27). Mas para entender a questão dos novos limites da linguagem, como foi posta

nas Investigações Filosóficas, é necessário aprofundar o exame deste caráter social

e pragmático da linguagem.

Por detrás da aparência externa de uma frase (e encoberta por ela) estão os

diversos jogos de linguagem, os diversos sentidos da expressão, que não derivam

da intenção do usuário, de modo que para entender o que alguém diz, longe de

procurar saber o que ele tem em mente, é necessário voltar a atenção para o uso da

linguagem, que insere o homem no contexto das relações sociais (Investigações, §

19, 22, 23, 33-35, 95, 107, 143-156, 178, 187, 188, 321, 322, 507-510, 540-541,

665-682, 687-693).Ao rechaçar a identificação entre linguagem e pensamento,

Wittgenstein afasta-se também da tese idealista, do solipsismo epistemológico ou

lingüístico,

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

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signada por seu Professor de Português: saber se eu considerava o estudo da

Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua...

Respondi que a Iinguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que

deve serjulgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas de

Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A

sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro,

não necessariamente certo. Por exemplo: dizer escrever claro não é certo, mas é

claro, certo? O importante é comunicar (E quando possível surpreender, iluminar,

divertir, comover... Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a

ver com a Gramática). A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas

Iínguas mortas, e aí é de inte- resse restrito a necrólogos e professores de Latim,

gente em geral pou- co comunicativa... E o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas

ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua mas sozinha não

diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura (Luís

Fernando Veríssimo, O gigolô das palavras, Coleção Nova Leitura, vol. 8, 9. ed.,

Porto Alegre, L&PM, 1 982, p. 10 a 12). A propósito, o segundo Wittgenstein entende

que não há palavras corretas ou incorretas, mas apenas palavras apropriadas ou

inapropriadas, considerando o que se quer significar com o emprego delas (Pilar

Lópes de Santa María Delgado, op. cit., p. 121).

Fim da nota de rodapé

Página 256

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

resultado do idealismo extremo. As categorias do pensamento não são as categorias

da linguagem, que é intersubjetiva e social (Investigações, § 243-315). Ademais, o

ideal de uma linguagem perfeita, sem imprecisões, é visto pelo segundo

Wittgenstein como pura metafísica (Investigações, § 97-109 e 116). Não se nega a

importância da linguagem artificial no campo das ciências da natureza, mas este não

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é um paradigma lingüístico, como supunha a concepção tractariana (Investigações,

§ 81 e 88). Importa entender como a linguagem é utilizada nas diversas situações

sociais, nos diversos campos da atividade humana (Investigações, § 7 e 23). Por

isso, tem-se de analisar as diversasformas de vida, conceito de matiz nitidamente

sociológico, que serve como uma espécie de pano de fundo sobre o qual se

desenvolve toda a teoria do significado no segundo Wittgenstein.31

As formas de vida, diferentemente do mundo da vida, em Husserl, não surgem como

um conceito analítico, fechado. Tal qual osjogos de linguagem, que fazem parte das

atividades cotidianas das pessoas, o conceito deformas de vida é necessariamente

fluido, vago, impreciso. Longe da metafísica tractariana, que buscava uma essência,

una propriedade comum a todas as coisas designadas pelo mesmo termo, a

perspectiva da linguagem comojogo significa uma série inumerável daquelas

atividades do dia-a-dia, daquelas varia- dasformas de vida (Investigações, § 18, 97-

116). Assim como o conceito dejogo não é unívoco, o mesmo se pode dizer da

lingua- gem. A palavrajogo não designa nenhuma propriedade que seja por si só

necessária para seu emprego, como bem mostram os fatos que são denotados por

ela, a exemplo do xadrez, dos dados, dos jogos de bola, de roda, dosjogos de

palavras etc. (Investigações, § 65- 75). Assim, é o uso das palavras, nos diversos

contextos lingüísti- cos e extralingüísticos, que decide sobre as diversas

significações das expressões lingüísticas (Investigações, § 43 e 423). Apren- der

uma língua é dominar uma técnica, o que exige em cada situa- ção da vida um

adestramento específico (Investigações, § 90, 188 e 206). Para saber o que é a

linguagem humana, basta observar o

Início da nota de rodapé

(31) Pilar López de Santa María Deigado, op. cit., p. 1 17.

Fim da nota de rodapé

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

funcionamento da linguagem concreta dos homens (Investigações, § 120, 432 e

435).32

Os limites da linguagem, no segundo Wittgenstein, dizem respeito não mais à

separação entre o que pode ser dito (proposições

Início da nota de rodapé

(32) Wittgenstein diz que as crianças aprendem não propriamente através de

definições ostensivas (porque ainda não podem perguntar por uma denominação),

mas através de um ensino ostensivo, que estabelece uma relação associativa entre

as palavras e as coisas. Porém, não se trata de uma função designativa das

palavras e sim de uma função de uso (Investigações, § 9 e 10). A definição

ostensiva é limitada, porque pressupõe conhecimento prévio de uma língua.

Ademais, a simples exibição de um objeto designado pela palavra não garante a

compreensão do significado, que surge, sim, nos jogos de Iinguagem, nas situações

de uso da linguagem (Investigações, § 2 e 31). Wittgenstein abandona assim a

metáfora da pintura, por ele utilizada no Tractatus, para recor- rer à ilustração da

ferramenta. Uma parte grita a palavra (pedindo que se lhe entregue alguma coisa), e

a outra age de acordo com a instrução (Investigações, § 2-22). Exemplo deste

processo de uso das palavras são os jogos através dos quais as crianças aprendem

a língua materna. Wittgenstein lembra também as brincadeiras de roda, que têm

uma racionalidade própria (Investigações, § 7). A propósito dos diversos jogos de

linguagem, que exigem adestramento especifico, considerada cada uma dasformas

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de vida, veja-se o poema Trem de Ferro, de Manuel Bandeira: Café com pão/ Café

com pão/ Café com pão//Virge Maria que foi isto maquinista?/ Agora sim/ Café com

pão/ Agora sim/ Voa, fumaçal Corre, cerca/ Ai seu foguistal Bota fogoi Na fornalhal

Que eu preciso/ Muita forçal Muita forçaì Muita força// Oô.../ Foge, bicho/ Foge,

povo/ Passa ponte/ Passa poste/ Passa pasto/ Passa boi/ Passa boiadaì Passa

galho/ De ingazeiral Debruçadal No riacho/ Que vonta- de/ De (Manuel Bandeira,

Estrela da Manhã, in Poesia e Prosa, vol. 1, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1 958, p.

255 e 256). Aqui, o poeta modernista abre mão da sintaxe, dispensando regras de

ortografia e pontuação em nome do ritmo e da melodia dos versos, que mostram o

movimento de uma locomotiva subindo e descendo o morro. Como observa

Wittgenstein, falamos da compreensão de uma frase em dois sentidos. Em um

deles, ela pode ser substituida por uma outra que diz o mesmo que ela; mas

também no sentido de que ela não pode ser substituída por nenhuma outra, tal qual

um tema musical é insubstituível. No primeiro caso está o pensamento da frase, o

que é comum a diversas frases; no segundo, algo que somente essas palavras,

nessas posições, a exemplo de um poema, exprimem (Investigações, § 531).

Fim da nota de rodapé

Página 258

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

tautológicas e empíricas) e o que não pode ser dito (proposições axiológicas e

metafísicas), mas sim aos diferentes contextos de uso, aos diferentes jogos de

linguagem, que se multiplicam conforme as necessidades humanas. (Investigações,

§ 7 e 18). O significado de uma peça é seu papel no jogo (Investigações, § 563).

Pode-se dizer, assim, que as regras de uso da palavra variam de acordo com o

regramento do jogo, que é estabelecido pela gramática, esta orientada

primordialmente para os aspectos semânticos da linguagem. As regras gramaticais

são estabelecidas arbitrariarnente, mas uma vez convencionadas, obrigam aqueles

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que utilizam a linguagem, pois o acordo firmado em torno das regras supõe um

acordo em torno das formas de vida (Investigações, § 199, 241 e 497). O sem

sentido surge, no segundo Wittgenstein, não na transgressão de supostos limites

externos da linguagem, mas sim no emprego de uma pala- vra estranha a um

determinado jogo de linguagem.

Esta nova interpretação dos limites da linguagem, no segundo Wittgenstein, tem

importantes desdobramentos. A linguagem é expressão da praxis comunicativa

interpessoal, de modo que tão variados quanto asformas de vida existentes são

também os jogos de linguagem (Investigações, § 23). A linguagem é uma espécie de

ação (Investigações, § 340 e 351) e os mal-entendidos surgem quando regras de

uso apropriadas a determinadas situações lingüísticas são empregadas em

contextos comunicativos diversos (Investigações, § 90). Não há, nas Investigações

Filosóficas, um sentido de transgressão aos limites internos da linguagem. A

obrigação de perma- necer dentro dos limites de um jogo lingüístico é condicional,

porque nem todos estão obrigados a jogar um determinado jogo. Cabe à filosofia

uma tarefa puramente descritiva, qual seja, examinar o funcionamento da linguagem

em cada contexto de atividades (pois, como visto, não há uma essência comum aos

diversosjogos de lin- guagein). A atividade filosófica é urn tratamento para as

doenças da filosofia, atormentada por dificuldades que a colocam também em

questão (Investigações, § 1 1 1, 133 e 255).33

Início da nota de rodapé

(33) A propósito, v. Pilar López de Santa María Delgado, op. cit., p. 121 e 1 22 e

Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 1 33, l 37 e 1 38

Fim da nota de rodapé

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Para o segundo Wittgenstein, a pugna entre realistas e idealistas, que serviu como

fio condutor das noções desenvolvidas no capítulo anterior, não passa de um mal-

entendido a respeito dos limi- tes da linguagem. O mental e o corporal

constituemjogos lingüisticos distintos, que têm funções e regras de uso diferentes.

Diante deste dualismo, ao desconsiderar que o mental e o material têm status

lógicos que não se confundem, os filósofos envolvem-se ern questões sem sentido.

Não pode haver oposição entre conceitos pertencentes ajogos de linguagem

distintos, de sorte que, quando os filósofos buscam uma resposta exclusiva,

esquecem-se de que dois conceitos de tipos diferentes não se excluem. O equívoco

está na formulação de questões amplas acerca da origem e da essência do

conhecimento, que deveriam ser recusadas, no lugar de serem res- pondidas.34

Entende-se que o mesmo se passa quando os teóricos do direito buscam definir

abuso do direito na base da dicotomia lí- citoilícito, apegados a umjogo de linguagem

binário, legalista, que exclui as demaisformas de vida.35

Com efeito, há de se reconhecer que o direito trabalha com jogos de linguagem

diferentes uns dos outros. O significado dos termos saber e prática jurídica consiste

na totalidade de seus usos possíveis, o que afasta, a um só tempo, a tese realista do

significado

Início da nota de rodapé

(34) Ludwig Wittgenstein, The BIue and Brown Books, Preliminary Studies for the

Philosophical Investigations, New York, 1 960, apud Pilar López de Santa María, op.

cit., p. 206.

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(35) Allan Janik e Stephen Toulmin (op. cit., p. 327) entendem que o avilta- mento da

linguagem, objeto das críticas de Wittgenstein, é engendrado pela invenção dejogos

de linguagem espúrios, como tentativa de fugir aos problemas sociais e políticos, tal

como ocorreu na Viena dos Habsburgos, ambiência que muito influenciou a obra do

filósofo. Os problemas da comunicação e da expressão nascem do divórcio entre as

condições efetivas de vida e a os jogos de linguagem, o que equivale, em termos

marxistas, à noção defalsa consciência. A respeito de um conceito pragmático

dafalsa consciência, que está mais próximo do modelo desenvolvido no presente

trabalho, v. Lelio Lantella, Prathiche definitorie e proiezione ideologiche nel discorso

giuridico, in Andrea Belvedere, Mario Jori e Lelio Lantella, Definizioni Giuridiche e

Ideologie, Milano, Dott. A. Giuffrè Editore, 1979, p. 175-185.

Fim da nota de rodapé

Página 260

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

fixo das palavras e a tese que reduz o significado ao pensamento, própria do

idealismo. A dogmática jurídica é expressão das diversas formas de vida, dos

contextos específicos de ação. Longe de uma suposta estrutura ontológica, base

das classificações por gênero e diferença, muito utilizadas pelos juristas, os

conceitos jurídicos só podem ser compreendidos nos diversos contextos lingüísticos

e extra lingüísticos nos quais são empregados. Os delineamentos da noção de

abuso do direitoprocessual surgiram a partir do caso concreto. O conceito foi

ganhando configuração normativa, já nas Ordenações, sem que houvesse uma

preocupação propriamente sistemática. A medida que asformas de vida foram-se

tornando mais complexas, sentiu-se a necessidade de abandonar a velha

concepção romanística da aemulatio, que vai sendo substituída, pouco a pouco, pela

fórmula do uso anormal do processo, mais adequada ao modelojurídico do Estado

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Social, que surge no final do século XIX, fruto da esgarçadura das solidariedades

tradicionais.

Esta transição, como está no segundo capítulo, implicou verdadeira reviravolta,

sobretudo diante da chamada teoria abstracionista, que marca a emancipação do

processo civil em relação ao direito privado. Titular do direito de ação não

necessariamente é aquele que tem o direito material, mas sim todos quantos de

boa-fé acreditam tê-lo. E para os objetivistas, desde Josserand e Saleilles, o

conceito de boa-fé tem em conta aquilo que é conforme às exigên- cias sociais e

não o que está no pensamento, na intenção da parte. Com isto, a teoria do abuso

deixou de serum simples desdobramento da teoria dos atos ilícitos. Ocorre que essa

nova demarcação colocou os processualistas diante de um outro problema. É que a

esta altura, por força da concepção reinante no século XIX (que bem se mostra no

pandectismo, na EscolaAnalítica e na Escola da Exegese), o direito passa a ser visto

como corpo ordenado de regras, objeto de uma ciência que também tem uma

pretensão sistematizadora. Ao lado do método dedutivo de Savigny, está a

orientação indutiva de lhering, que se faz sentir nas diveisas classificações dos

conceitos jurídicos. A crítica que Planiol lançou contra o conceito de abuso do direito

(quando saímos dos limites das normas agimos sem direito) insere-se precisamente

na disputa em torno da verdadeira

Página 261

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

classificação, uma falácia metafísica que supõe um universo jurí- dico povoado de

entidades com existência própria.36

Como já se adiantou, no final do primeiro capítulo, o conceito de abuso do direito

não é unívoco. Seu campo intensional e extensional é bastante amplo. Daí porque

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não se lhe aplicam as classificações dicotômicas, os jogos de linguagem que

operam no terreno da lógica formal, onde vigem o princípio da contradição e o

princípio do terceiro excluído. As diversasformas de vida explicam, assim, que ao

lado do lícito e do ilícito existem outros jogos de racionalidade que as categorias

jurídicas tradicionais, presas a uma gramatica superficial, não conseguem

apreender. E a imprecisão do conceito de abuso do direito processual, tal qual

sucede com a pa- lavrajogo, que garante a operacionalidade da expressão. O

significado dejogo, assim como o significado do abuso do direito processual, é dado

pelo uso da palavra. Nos jogos de bola, há ganhar e perder; mas se uma criança

atira a bola na parede e a agarra nova- mente, neste caso este traço desapareceu

(Investigações, § 66). Compreender uma expressão é establecer parentescos, numa

complicada rede de semelhanças que se sobrepõem umas às outras e se

entrecruzam (Investigações, § 66). Você pode estabelecer limites? Não... Mas

istojamais o incomodou ao empregar a palavrajogo (Investigações, §67).Veja-se que

muito mais importante que a função designativa é a capacidade da linguagem de

estabelecer o sen- tido através das ações humanas.37

A propósito, não deixa de ser significativo, como já se acentuou no final do segundo

capítulo, o fato de 05 processualistas buscarem a compreensão da conduta abusiva

na semântica do jogo (fair play processual), onde freqüentemente aparecem

metáforas como regra,

Início da nota de rodapé

(36) Sobre a falácia metafísica no campo das classificações jurídicas, v. Lantella, op.

cit., p. 263-265.

(37) Descrevemos jogos dizendo isto e coisas semelhantes são chamados jogos

(Investigações, § 69). Mas um conceito impreciso é, por acaso, um conceito? Uma

fotografia desfocada é, por acaso, O retrato de uma pessoa? Pode-se substituir

sempre com vantagem um retrato desfocado por um nítido? Freqüentes vezes, não

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é o retrato desfocado precisamente aquilo de que mais precisamos? (Investigações,

§ 71).

Fim da nota de rodapé

Página 262

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

ataque, defesa, adversário, disputa, competição, habilidade, trapaça, deslealdade

etc. Significativo também, como registrado naquela mesma oportunidade, que os

processualistas até hoje não tenham chegado a um consenso quanto aos limites que

dividem o campo da sagaz defesa e o terreno da trapaça. Carnelutti identificou esta

dificuldade como um problema técnico que desemboca em um problema ético.38 De

outra forma, entende-se que o conceito de abuso do direito é sócioprático (sic),39

cuja significação tem de levar em conta o contexto social em que está sendo

utilizado. Em vão juristas têm buscado classificações, que se mostram sempre

artificiais, pois assim como acontece com o jogo, o conceito não designa nenhuma

propriedade que seja comum às diversas situações em que o abuso do direito de

demanda é discutido. Como já se teve oportunidade de demonstrar no segundo

capítulo (seção 2.2), o ele- mento subjetivo da conduta abusiva nem sempre é

requisito para a configuração do abuso processual, cuja repressão, outrossim, inclui

não só sanções (no que o abuso estaria identificado com o ilícito), como também a

aplicação de ônus e a desconsideração dos efeitos produzidos pela conduta

processual.40

Início da nota de rodapé

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(38) Francesco Carnelutti, Estudios de Derecho Procesal, vol. 1, Buenos Aires,

Ediciones Jurídicas Europa-América, 1952, p. 185 e 186.

(39) A expressão é utilizada porManfredoAraújo de Oliveira (op. cit., p. 1 3 1).

(40) Expressivo, neste sentido, o seguinte fragmento da doutrina processual

argentina contemporânea claro está que às vezes afloram nos tribunais situações

que o legislador não concebeu como conduta abusiva. Porém, dado que a realidade

é mais rica que as abstrações que se possam con- ceber no âmbito do poder

Iegislativo, pode suceder, frente ao impacto das novas complexidades

sócioeconômicas que irrompem na vida, que se imponha uma recriação, mudanças

ou adaptações para rernover os obstáculos ou suprir os vazios da dimensão

normativa. Neste caso, a solução dos conflitos em nossa sociedade exige do órgão

judicial a modernidade de enfoque dos temas momentosos. A seu turno, a realidade

sociológica deve orientar o juiz, com vista às flexibilizações próprias da evolução do

pensamento, que requerem a harmonização dos valores axiológicos com a

realização da justiça, imperativo maior dos tempos de incerteza, os quais exigem

respostas adequadas ao realismo das. circunstâncias (Gualberto Lucas Sosa, Abuso

de Derechos Procesales, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos Direitos

Fim da nota de rodapé

Página 263

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Os limites entre o ilícito e o abuso, como resulta do segundo Wittgenstein, não

podem ser traçados de forma estanque, mesmo porque, tal qual o conceito de jogo,

o abuso do direito processual não tem contornos precisos. E como se o sujeito

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buscasse — em outra figura de linguagem wittgensteiniana — traçar limites entre

cores que se mesclam. Se alguém traçasse um limite preciso, eu não poderia

reconhecê-lo como o que também sempre quis traçar ou que tracei em espírito.

Pode-se dizer então: seu conceito não é igual ao meu, mas tem parentesco com ele

(Tractatus, § 76) …E nesta situação se encontra, por exemplo, quem na Estética ou

na Ética busca por definições que correspondam aos nossos conceitos

(Investigações, § 77). Há certos standards que orientam o intérprete na

compreensão do sentido histórico e social do abuso do direito, como reconhecidos

no final do primeiro capítulo, mas não um conceito como idealidade. O significado do

abuso processual tem de ser recolhido nas diversas formas de vida. Ao lado do uso

representativo das palavras está o uso funcional, que se revela nos diversos níveis

de calibração do sistemajurídico, o qual ora recorre ao padrão da legalidade ora ao

padrão da legitimidade ou da efetividade, na tentativa de buscar a adesão do

endereçado da norma.41

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 45). Bem por isso, outro conhecido

autor argentino, também contemporâneo, sustenta que a figura do abuso do direito

não deve ser exaustivamente regulada pelo Iegislador. Pelo contrário, exceção feita

a hipóteses muito pontuais, o melhor será consagrar um conceito plástico e pouco

rígido, que permita apreender todas as formas de conduta que possam caracterizar

abuso (Jorge W. Peyrano, Abuso de los Derechos Procesales, in José Carlos

Barbosa Moreira, op. cit., p. 76).

(41) A propósito desta visão pragmática e sistêmico-funcionalista, ver o modelo

desenvolvido por Tercio Sampaio Ferraz Jr. (Teoria da Norma Jurídica: ensaio de

pragmática da comunicação normativa, Rio de Janeiro, Forense, 1 978,

particularmente p. 1 27- 1 59). A análise sistêmico-funcionalista revela, igualmente,

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que o direito, operando códigos binários do tipo lícito-ilícito, válido-inválido, corre o

risco de cair no isolamento, caso não consiga estabelecer um acoplamento

estrutural com outros sistemas, que têm em seu repertório códigos mais inclusivos, a

exemplo do que ocorre com a política, com as artes, com a comunicação. Aqui está,

inclusive, a importância da interdisciplinariedade

Fim da nota de rodapé

Página 264

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

As dificuldades no reconhecimento do campo do abuso processual surgem, em

resumo, quando os juristas não se apercebem de

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

(Gunther Teubner, Juridificação: noções, características, Iimites e soluções, in

Revista de Direito e Economia, Coimbra, 1988; André-NoëI Roth, O Direito em

crise.• fim do Estado Moderno, e Vittorio Olgiati, Direito positivo e ordens sócio-

jurídicas; um engate operacional para ¿ima sociologia do direito européia, ambos in

José Eduardo Faria (org.), Direito e globalização econômica, São Paulo, Malheiros,

1996, respectivamente a p. 15-27 e 81-1 03; Willis Santiago Guerra Filho,

Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna, Porto Alegre, Livraria do

Advogado Editora, 1 997, particularmente, p. 57, 58, 70, 71, 72, 82). Há um acórdão

do Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (hoje, extinto), em que foi relator o

Juiz Sena Rebouças, muito signiticativo daquilo que Wittgenstein desenvolve nos

parágrafos 76 e 77, acima reproduzidos no texto. O julgamento diz respeito a uma

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alegada invasão de espaço aéreo, atribuída ao proprietário do prédio confinante,

onde funcionava conhecida casa de lanches, que nele insta- lou painel publicitário

de considerávei dimensão, a ultrapassar em doze centímetros — e a considerável

altura — a linha divisória dos imóveis. A Câmara decidiu que se mostrava abusiva a

invocação do direito ao espaço aéreo, independentemente de eventual análise dos

motivos de foro íntimo que a tivessem suscitado, diante da inexistência de lesão

econômica que pudesse justificar a pretensão à tutela jurisdicional. Em certo ponto,

o acórdão, reproduzindo fragmento das contra-razões, consigna que A tinta sempre

tem uma espessura qualquer e, assim, também invadiria o espaço aéreo do espaço

contíguo... Ademais — prossegue o acórdão — é muito difícil equacionar a estética,

como teoria do belo e filosofia da arte... As pessoas cultivam valores diferentes e,

neste campo, estabelecem suas hierarquias segundo a cultura, vivência e

sensibilidade individual. O Ietreiro luminoso não se distingue de outros que, no

mesmo local, compõem o que se pode chamar, sem ferir suscetibilidades, de

paisagem urbana americana, uma transposição (às vezes melhorada, às vezes

piorada) de Times Square que não se limita a São Paulo, mas também se vê, com

as cores locais, em Las Vegas, em Londres (Piccadilly Circus), em Berlim (no lado

ocidental da Porta de Brandenburg, especialmente no Kurfürstendamm), no centro

de Colônia, bem ao lado da famosa catedral gótica e do Römisch-Germanisches

Museum, onde havia, em 1 985, uma casa Mc Donalds (TACSão Pau- lo, 2. Câm.,

Ap. 426.6 17-3, 27.2.9 1, in RT, São Paulo, Ano 80, vol. 665, março de 1991, p. 96-

99).

Fim da nota de rodapé

Página 265

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

que as diversasformas de vida ou de cultura exigem uma compreensão gramatical

adequada a cada um dos contextos sociais. Quem quiser entender a significação,

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por exemplo, do sistema de canalização de água em uma casa terá de ver que uso é

dado a esse sistema. Wittgenstein, como engenheiro que era, não se opunha ao

cálculo matemático, desde que inserido no jogo de linguagem apropriado. Fora disto,

importava considerar a matemática aplicada, demonstrar não só que os cálculos

envolvidos eram formalmente impecáveis, mas também que cumpriam uma tarefa,

acima e além de sua própria elaboração formal.42 Coube a von Wright, discípulo de

Wittgenstein e um dos responsáveis pela publicação póstuma de suas Investigações

Filosóficas, o mérito de ter ressaltado a importância do contexto em que as

expressões são utilizadas, quando se trata de entender o conceito de norma jurídica,

que não está funda- do em elementos gramaticais, mas no uso comunitário.43

O lógico finlandês von Wright reconhece três tipos de normas principais (a) e três

tipos de normas secundárias (b). Das três primeiras espécies são as regras (a.a), a

exemplo daquelas desenvolvidas pela Gramática e das que estabelecem os

movimentos de um jogo; as diretrizes (a.b.), que dispõem acerca das técnicas e

meios empregados com vista a uma determinada finalidade, a exemplo das

orientações contidas em um manual de instalação; as prescrições (a.c), que são as

ordens, proibições ou permissões dadas pela autoridade que promulga a norma e

impõe sanções. Ao lado destas espécies, estão as normas secundárias (b), que têm

aspectos em comum com aqueles tipos principais. São elas as normas ideais (b.a),

que estão entre as regras e as diretrizes, pois ao mesmo tempo em que

estabelecem um padrão, um modelo dentro de uma determinada classe de objetos,

orientam o caminho a seguir para alcançar uma

Início da nota de rodapé

(42) Estas comparações são feitas por Allan Janik e Stephen Toulmin. A primeira

delas parte das idéias do arquiteto Adolf Loos, intelectual da geração vienense que

influenciou o pragmatismo das Investigações de Wittgenstein (op. cit., p. 300-307).

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(43) A propósito da exposição que segue, v. Georg Henrik von Wright, Norma y

acción — una investigación lógica, Madrid, Tecnos, 1974, p. 63- 92e 109-121.

Fim da nota de rodapé

Página 266

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

situação diferenciada dentro de uma determinada classe; os costumes (b.b.), hábitos

orientados por certas pressões sociais, que têm pontos em comum com as

prescrições, mas que, à diferença delas, não emanam de qualquer autoridade com

poderes para impor sanção. Assemelham-se também às regras, pois os costumes

diferen- tes permitem distinguir os grupos sociais; as normas morais (b.c), dispersas

nos diversos agrupamentos sociais, sem possibilidade de uma definição precisa, e

que têm pontos de contato com as regras, porque definem uma determinada

instituição (as promessas religiosas, v.g.). Algumas das normas morais encontram

fundamento no costume, a exemplo da monogamia.

Acrescenta Wright que os operadores deônticos obrigatório, proibido e permitido são

interdefiníveis e que as prescrições ora podem assumir a forma de enunciados

imperativos, ora a forma de enunciados condicionais. Com base nessas noções,

Wright passa a demonstrar que as normas jurídicas muitas vezes estão ocultas por

uma gramática superficial. Só mesmo o exame das semelhança e do parentesco das

formas e modos verbais utilizados permite reconhecê-Ias. Assim é que as orações

imperativas não necessariamente se identificam com a formulação de normas. É o

caso de uma prece ou imprecação (Venha a nós o vosso Reino), de um conselho ou

de uma advertência (Não faça isto). Por outro lado, nem todas as normas são

formuladas no modo imperativo ou na forma condicional. E o caso das permissões

(ainda que se possa falar da obrigação, imposta a terceiros, de respeitá-las). Há

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permissões, outrossim, que são formuladas em termos imperativos. A luz verde,

dirigida ao pedestre, diz atravesse agora. Porém, no uso comunitário, que é o que

importa considerar segundo Wittgenstein (Investigações, § 241), seu significado é

pode atravessar agora.

Acrescente-se que as diretrizes muitas vezes são também formuladas de maneira

imperativa ou condicional. Isto implica reconhecer a possibilidade de usos não-

normativos de expressões como você deve, você tem. Ademais, os funtores

deônticos dão lugar a formulações muito mais ricas que as sentenças imperativas,

pois além da obrigação e da proibição contam com a instância da permissão,

categoria deôntica que sugere uma série de questões no

Página 267

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

âmbito da teoria jurídica, igualmente exploradas por Wrigth.5 As normas jurídicas

também podem ser formuladas com emprego do modo verbal indicativo, a exemplo

da regra do artigo 15, parágrafo Único, do Código de Processo Civil (Quando as

expressões injuriosas forem proferidas em defesa oral, o juiz advertirá o advogado

que não as use, sob pena de lhe ser cassada a palavra), ou do artigo 129

(Convencendo-se, pelas circunstâncias da causa, de que autor e réu se serviram do

processo para praticar ato simulado ou conseguir fim proibido por lei, o iuiz proferirá

sentença que obste aos objetivos das partes.).

Enfim, abstraindo de um maior aprofundamento no campo da lógica deôntica, que

excederia as pretensões desta sumária exposição, pode-se dizer que o jogo de

linguagem das normas jurídicas não é a lógica das sentenças indicativas nem das

sentenças imperativas, nem tampouco das sentenças condicionais ou hipotéticas. E

isto porque o significado da norma não está preso a elementos gra- maticais, mas

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relacionado ao uso, ao emprego da expressão norma- tiva, dentro de um

determinado contexto histórico e social.45 Isto

Inicio da nota de rodapé

(44) A propósito, v. a distinção entre permissãofraca e permissão forte, que interfere

com a questão do direito subjetivo (G.H. von Wright, op. cit., p. 100-107). Em última

análise, o espaço dapermissão também interfere com o tema do abuso do direito,

pois o que se discute são os limites do ordenamento jurídico.

(45) Neste sentido, a questão do racionamento de energia elétrica no País é

ilustrativa. O que está no centro da regulação feita pela Medida Provisó- ria 2. 1 52,

de 1 0.06.200 1 (muito embora a norma não faça esta referência) é o abuso do

direito do consumidor diante de uma crise dos recursos hídricos, perspectiva que

acaba coiidindo com a Lei 8.078/90, cuja ótica é precisamente inversa (defender o

consumidor contra o abuso do for- necedor). Entretanto, o Supremo Tribunal Federal

(ADC 9-6 — DF, j. 28.06.2001, Tribunal Pleno, rel. Néri da Silveira, maioria de

votos), à vista do grau de institucionalização do Código de Defesa do Consumidor e

sem condições de argumentar no campo da estrita constitucionaIidade, diante da

norma dos artigos 5 .°, inciso XXXII, 1 70, inciso V, 1 75, incisos 11 e IV, da

Constituição Federal, preferiu manter-se no campo da efetividade da norma (uma

decisão contrária ao Executivo poderia comprometer o plano de racionamento, com

sérias conseqüências sociais, o que o povo brasileiro parece entender, tanto assim

que os jornais

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

explica porque se buscou apontar, no primeiro e segundo capítulos, a maneira como

a chamada teoria do abuso do direito funciona, de que forma os juristas e

operadores do direito procuram conciliar a verdade como imperativo ético com a

verdade como imperativo prático. Esta tensão dialética, que alimenta as discussões

em torno do abuso dos direitos processuais, revela-se no segundo Wittgenstein

como um falso dilema, uma polêmica sem sentido, exatamente por- que não se pode

buscar o significado de expressões deslocadas do uso, fora dapraxis social. Nessa

mesma perspectiva, a polêmica entre subjetivistas e objetivistas, desenvolvida nas

duas primeiras seções do segundo capftulo, também se revela destituída de sentido,

pois para saber o que alguém diz não é necessário investigar o que tem em mente.

Basta ver como as partes empregam as palavras nos di- versos contextos do

processo, que é uma das diversasformas de vida.

4.3 Razão teórica versus razão prática

Como foi visto, o positivismo lógico coloca os enunciados descritivos em posição

privilegiada, porquanto somente a eles se pode aplicar o conceito de verdade. Do

ponto de vista do positivismo metodológico, ou também chamado conceitual, ainda

que se pudesse conceber o direito como ciência dos valores, certo é que ao cien-

tista não seria dado mais do que descrever a norma, cujo sentido objetivo independe

das condições psicológicas e das condições sociais que possam ter orientado sua

edição. A propósito, como já se disse anteriormente, o pressuposto de Kelsen,

comum a todo neopositivismo, é o caráter descritivo da ciência, que não se coaduna

com o aspecto prático ou emocional dos juízos de valor.46

Início da nota de rodapé

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Continuação da nota de rodapé da página anterior

noticiam a redução no consumo de energia elétrica em praticamente to- dos os

Estados membros). Outrossim, a decisão da suprema corte, ao deferir o pedido de

medida cautelar deduzido nos termos do art. 21 da Lei 9.868/99, utilizou-se também

de um padrão axiológico que contra põe os critérios dejustiça comutativa ejustiça

distributiva, distinção feita por Aristóteles no Livro V da Etica a Nicômaco

(distribuição dos ônus na proporção do consumo de cada um dos consumidores).

(46) Ver, neste sentido, a análise de Nicolás Abbagnano, Historia de la Filosofía,

tomo 111, 3. ed., Barcelona, Montaner y Simón, S. A., 1978,

Fim da nota de rodapé

Página 269

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Entretanto, a dualidadefato e valor à luz da exigência da objetividade científica,

acabou ganhando novos contornos, que foram traçados pelo próprio positivismo

lógico. Para Schlick, incumbe à ética, integrante das ciências sociais, a descrição de

fatos, vale dizer , a investigação acerca das condições em que os conceitos bom e

mal, por exemplo, são realmente utilizados, e não a produção de valores. A ética

busca apenas o conhecimento e não a expressão de sentimentos, desejos,

esperanças etc... Fugindo àperspectivakantiana, Schlick defende a tese de que a

ética não justifica uma atitude mental, uma ação, não lhes atribui um valor moral,

mas apenas descreve sob que circunstâncias, sob quais regras atitudes e ações são

efeti- vamente avaliadas como boas. A validade de uma valoração encontra

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fundamento em normas mais elevadas, as quais, por sua vez, são extraídas dos

fatos, da consciência e da natureza da vida humana, regras últimas que são

princípios morais. A ética não é, pois, uma ciência normativa, e ncm tampouco uma

ciência que descreve nor- mas (como é o caso do direito, sob a perspectiva

kelseniana), mas uma ciência causal, que indaga da razão pela qual o homem reco-

nhece certas condutas como boas ou más. A descrição ética, além da teoria da

norma (que determina o conteúdo dos conceitos bem e mal), tem em conta os

fundamentos de validade da norma moral, que transcendem os princípios morais

para alcançar as causas psicológicas das atitudes e ações.47

O Círculo de Viena não se interessou muito pela ética, limitan- do-se a desqualificar

os juízos de valor do ponto de vista de uma ciência descritiva. Como foi visto (seção

4.1), Carnap dizia tratar- se de imperativos de forma gramatical desviada ou de

imperati- vos disfarçados. Na concepção do positivismo conceitual de Kelsen, as

normas jurídicas, como formuladas pelo cientista do

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

p. 685 e 686. Ver também Carios Santiago Nino, Introducción al análisis del derecho,

Buenos Aires, Editorial Astrea, 1 984, p. 37-43, Norberto Bobbjo, Contribución a la

teoria del derecho, Valencia, Fernando Torres Editor, S.A., 1980 (Colección Derecho

y elEstado), p. 105-110 e 1 19-124 e Enrico Pattaro, op. cit., p. 67-82.

(47) Moritz Schlick, ¿Quepretende la ética?, in A.J. Ayer (org.), Elpositivismo lógico,

México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 251-268.

Fim da nota de rodapé

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Página 270

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

direito, não são imperativos ou ordens, masjuízos hipotéticos. Graças a esta

elaboração, que encontrou seqüência e aprofundamento na teoria egológica de

Cossio, cogitou-se da possibilidade de uma lógicajurídica aplicada não à norma

mesma, que é imperativa, mas aos enunciados que a descrevem, às proposições

jurídicas.48

Com efeito, as tentativas de adequação dos funtores deônticos (obrigatório, proibido,

permitidofazer e permitido nãofazer) à estrutura dos enunciados apofânticos,

próprios da lógica elementar, revelaram alguns paradoxos. E isto porque a validade

é uma categoria que não se insere nas relações lógicas, como bem o demonstrou

Kelsen nas correspondências trocadas com Ulrich Klug.49 A aplicação dos juízos

universais da lógica aristotélica às normas mesmas, juízos imperativos que não

podem ser verdadeiros ou falsos, somente seria possível se houvesse um conceito

em condições de desempenhar, no campo da lógica deôntica, o mesmo papel que

Início da nota de rodapé

(48) Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, 1979, p.

110-116. A respeito destas elaborações, ver a análise desen- volvida por Antônio

Luís Machado Neto, Teoria da ciênciajurídica, São Paulo, Saraiva, 1975, p. 140-146.

(49) Hans Kelsen, Normasjurídicas e análise lógica (correspondência trocada entre

Hans Kelsen e Ulrich Klug), Rio de Janeiro, Forense, 1984. Mais particularmente a

págs. 60-69, Kelsen refuta a posição defendida por Klug, no sentido de que duas

normas seriam contraditórias quando não pudessem ser simultaneamente válidas,

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dizendo que a verdade de uma afirmação está no campo do pensamento, ao passo

que a validade de uma norma está no campo da vontade. A vontade é o imperativo,

o preceptivo, enquanto a verdade pertence à esfera do indicativo, do descritivo.

Querer e conhecer (ou pensar) são duas coisas distintas. O conhecer precede o

querer do qual a norma é o significado, não lhe sendo imanente, como supõe o

jusnaturalismo. Só Deus pode querer enquanto conhece. A existência da norma

(validade) é deversercorrelato auma vontade. Assim, como não há analogia entre

verdade de um enunciado e validade de uma norma, um conflito de normas não

pode ser visto como uma contradição lógica. E tanto não o é que o ordenamento

jurídico dispõe sobre regras para a solução do conflito, que se dá quer através da

derrogação de uma ou de ambas as normas, quer da perda de eficácia. O conflito

não pode ser resolvido pela ciência do direito (conhecimento), mas apenas pelo ato

de vontade do Iegislador.

Fim da nota de rodapé

Página 271

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

está reservado à verdade na esfera da lógica formal. Esta tentativa também se

mostrou frustrada, pois, no limite, acabava por reduzir o campo da validade ao

campo da eficácia da norma. Em outras pala- vras, a existência da norma estaria

condicionada ao seu cumprimento irrestrito por parte de todos os endereçados. A

própria experiência demonstra, entretanto, que as coisas não se passam bem assim

e é esta, precisamente, a crítica que se pode fazer às diversas formas de

sociologismoiurídico.50 Estas mesmas dificuldades se reproduzem,

Início da nota de rodapé

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(50) Uma das tentativas, empreendidas pela lógica deôntica, de desenvolver

enunciados e argumentos nas mesmas bases dos enunciados apofânticos, a partir

dos operadores obrigatório, proibido epermitido, pode ser resumida, a grosso modo,

da seguinte maneira: S é P (universal atirmativa) corresponde a Todo S está

obrigado a P; S é não P (uni- versal negativa) corresponde a Todo S está proibido

de P; Algum S é P (particular afirmativa) corresponde a Alguns S podem fazer P;

Alguns S não sãoP (particular negativa) corresponde a Alguns S não podem fazer P.

A verdade dos primeiros enunciados categóricos corresponderia a satisfatoriedade

dos segundos, conceito que designa a condição de realização dos termos sujeito e

predicado, os quais, por sua vez, referem-se a classes de objetos. Sabe-se que o

enunciado S é P não implica a existência de elementos na classe S, pois é

perfeitamente Iícito fazer referência a uma classe que não tenha elementos, enfim a

uma classe vazia. Parafraseando Wesley Salmon (op. cit., p. 55), pode ser

verdadeiro o enunciado A classe de notas de cem reais em meu bolso é uma

fortunp, ainda que esta classe seja vazia. Isto também se aplica à universal

negativa, pois dizer Nenhum S é P é o mesmo que dizer Todo s é não P. Disto

decorre que, assim como um enunciado cate- górico é verdadeiro se e somente se

não existir qualquer elemento da classe em que se realize somente o sujeito (ou

seja, realizando-se o sujeito, tem-se de realizar também o predicado), uma norma

jurídica que obriga é satisfatória se e somente se não existir qualquer pessoa,

integrante da classe dos destinatários da norma, que deixe de realizar a conduta

descrita na norma. De igual modo, uma normajurídica que proíbe é satisfatória se

não existir qualquer pessoa, integrante da classe dos destinatários da norma, que

realize a conduta descrita na norma. Em qualquer dos casos, pois, se a classe dos

destinatários da norma for vazia, a norma é sempre satisfatória. A satisfatoriedade,

assim, consiste na ausência de qualquer ação ou abstenção que implique o

descumprimento da norma (PauI Snyder, Modal logic and its apllications, New York,

van Mortrand Reinhols Company, p. 75,193 e 220).

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

do ponto de vista do positivismo conceitual, no nível da teoria da norma, pois a

proposiçãojurídica, para Kelsen, também é um dever ser, ainda que de sentido

descritivo.51

Não cabe enfrentar, considerados os propósitos da presente investigação, os

desafios que essas questões lógicas sugerem, mas apenas apontar para as

limitações desse ângulo de análise, cujas dificuldades deixam entrever problemas de

natureza epistemológica e metodológica. Como vem-se tratando de demonstrar, a

chamada teoria do abuso do direito exprime de maneira significativa todos estes

embaraços. Não se pode conceber a existência de um sistema fechado, que opera

na base de códigos binários do tipo lícito/ilícito, proibido/não proibido, e ao mesmo

tempo dinâmico. Eo contato com o sistema social que aponta os limites, as lacunas

e os con- flitos do sistema jurídico. Mas, paralelamente, é este mesmo contato que

garante a unidade e a consistência do sistema. Os paradoxos, a exemplo daquele

apontado por Planiol, revelam que grande parte das categorias jurídicas somente

pode ser concebida no contexto de uma lógica dinâmica, o que abre espaço para o

aspecto cultural do direito.

Dessa perspectiva, acima desenvolvida, há de se considerar que o direito tem

existência real, finalidade e valores próprios. Como qualquer instituição social, ele se

apropria de maneira seletiva da realidade dos fatos, reconstruindo-os na base de

estereótipos e ficções, para devolvê-los, como fatos institucionalizados, ao meio

social. Daí porque também não se pode cair no extremo oposto ao formalismo

jurídico, que é o realismo ingênuo, pois o juiz, autoridade competente, aprecia

osfatos provados — de acordo com um procedimento também previsto na norma —

e não o fato mesmo, como fenômeno social. Isto explica determinadas concessões

às exigências da verdade, feitas pela teoria do abuso do direito em nome de uma

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instrumentalidade processual, como foi visto no segundo capítulo (seções 2.2 e 2.4).

Assim, a parte só é apenada, ou somente suporta determinado ônus pela prática da

trapaça, quando o seu

Início da nota de rodapé

(51) Hans Kelsen, Thoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra, Arménio Amado, I979,p.

116.

Fim da nota de rodapé

Página 273

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS,

comportamento tiver influenciado a decisão da causa.52 No mais, não há abuso.

Tem-se entendido, igualmente, que o dever de lealda- de e boa-fé, que engloba

todas as figuras do artigo 14 do CPC, não impõe ao litigante a obrigação de deduzir

todos os elementos des- favoráveis a ele próprio e nem todos os que sejam

favoráveis ao adversário.53

Diga-se, ainda a propósito destas questões epistemológicas, que embora os

processualistas insistam em buscar o fundamento da teoria do abuso do direito nos

princípios morais, claro está que o apelo a certos standards mais vale como

estratégia retórica do que propriamente como fundamentação. E, neste particular, há

de se lem- brar a distinção feita, no final do segundo capítulo, entre argumentação,

adequada ao campo das ciências culturais, e demonstração, que tem curso no

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campo das ciências ideais, físicas e naturais. Como foi visto, coube a Wittgenstein

revelar que o indizível — do que são exemplo os valores — é muito mais importante

do que aquilo que pode ser dito. Charles Stevenson também defende a tese

neoempirista do caráter não-racional e sim emotivo dos valores morais. Os

enunciados éticos nada descrevem. No entanto, cumprem determinadas funções,

pois a par de exprimir a aprovação ou desaprovação daquele que fala, são um

convite para que os ouvintes venham com- partilhar desta atitude do emissor.

Em um artigo da revista Mind, publicado em 1937, que antecede a edição de sua

clássica obra, Ethics and Language, Charles

Início da nota de rodapé

(52) Sebastián Soler, Derecho Penal Argentino, Tipografia Editora Argentina,

Buenos Aires, tomo Iv, p. 301, apud Eduardo Oteiza, Abuso de los derechos

procesales en América Latina, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos

Direitos Processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2.000, p.28e29.

(53) Humberto Theodoro Jr., Abuso do direito processual no ordenamento jurídico

brasileiro, in José Carlos Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio

de Janeiro, Forense, 2000, p. 101. Eduardo Couture, como visto no segundo

capítulo, entende de maneira diversa. Segundo o processualista uruguaio, que se

baseia na distinção entre saber e querer, nada impede que a parte diga tudo aquilo

que sabe para depois tentar convencer ojuiz do acerto de seu direito, ou seja,

daquilo que quer (Eduardo J. Couture, op. cit., p. 246 e 247).

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Stevenson começa por reconhecer a vagueza e ambigüidade de conceitos como

bom, na base das definições de Hobbes e de Hume, que servem de pretexto para

uma nova formulação. O sentido mais importante de bom pressupõe três requisitos:

a) o desacordo acerca do que é ser bom; b) uma mudança de atitude diante do reco-

nhecimento da qualidade bom, que passaria a exercer, assim, um certo magnetismo

sobre aquele que fala (ao reconhecer que certo homem é bom, a pessoa terá uma

tendência a ajudá-lo); c) o valor bom é algo que pode ser verificado de outras formas

e não somente através do método científico. A seguir, o autor diz que sempre há um

aspecto descritivo nos juízos éticos. Todavia, sua função mais importante não é

descrever fatos, mas sim exercer influência sobre as pessoas. Neste sentido — diz

Charles Stevenson — os termos éticos são instrumentos utilizados na complicada

interação e ajusta- mento dos interesses humanos.54

Tomando de empréstimo alguns exemplos de Charles Stevenson,55 na tentativa de

adaptá-Ios ao campo do processo judicial, é possível dizer que, quando ojuiz afirma

que tais e quais condutas constituem abuso do direito, não só as está desaprovando

como também influenciando o comportamento das partes. O mesmo vale para a

relação entre as partes e também para arelação entre as partes e o juiz, quando 05

litigantes, neste último caso, procuram convencê-lo de que o adversário está agindo

mal, na esperança de que o julgador também compartilhe da desaprovação da

conduta. Daí porque doutrina e jurisprudência consideram que a prática de abuso

processual tem de ser analisada caso a caso.56 Desnecessário dizer que a

argumen- taçãojurídica é instrumento fundamental nessa dinâmica de persua- são,

que muitas vezes recorre a falácias formais e materiais, na ten-

Início da nota de rodapé

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(54) Charles L. Stevenson, E1 signijïcado emotivo de los términos éticos in A. J.

Ayer (org.), Elpositivismo lógico, México, Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 269-

273. Particularmente, quanto à passagem re- produzida no final do parágrafo, ver p.

275.

(55) ldem, p. 274.

(56) Gualberto Lucas Sosa, Abuso de derechos procesales, in José Carlos Barbosa

Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio de Janei- ro, Forense, 2.000, p.

45.

Fim da nota de rodapé

Página 275

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

tativa de convencer o interlocutor processual.57 Pode suceder que o juiz não se

impressione com a argumentação da parte, naquilo que diz respeito às

conseqüências do abuso processual que um litigante imputa ao outro, precisamente

porque a conduta abusiva não teria o condão de alterar os rumos do processo.

Nestes casos, como foi visto há pouco, doutrina ejurisprudência não reconhecem

prática de abuso do direito.

Ao lado do uso descritivo das palavras, está o uso dinâmico, que se reconhece nas

interjeições que expressam sentimentos, na poesia que embevece, criando um

estado de ânimo, e na oratória, que estimula ações e atitudes, funções que não se

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excluem. Quando o juiz diz a uma das partes, que teria agido de maneira temerária,

Por certo, o senhor não incorrerá novamente nesse erro, pode estar fazendo uma

predição (uso descritivo), ou uma sugestão, a fim de estimulá-la e, em

conseqüência, impedi-la de cometer o mesmo erro (uso dinâmico). Esta

classificação tem em conta o propósito

Início da nota de rodapé

(57) O juiz pergunta à parte, que presta depoimento pessoal: em que mo- mento o

senhor mentiu? Hoje, ao dizer que não se envolveu nos fatos, ou no processo

anterior, quando disse categoricamente que sabia de toda a trama?. Está claro aqui

o emprego da falácia conhecida como per- gunta complexa, pois o magistrado está

partindo do pressuposto de que a parte em algum momento mentiu. Presente

também está a falácia con- sistente em confundir tipos diversos de incompatibilidade

de enuncia- dos, quais sejam contraditórios e contrários. No caso de enunciados

contraditórios, a verdade de um deles implica a falsidade do outro e a falsidade de

um deles acarreta a verdade do outro. Trata-se de p ou nãop , tertium non datur.

Cuidando-se de enunciados contrários, mostra- se impossível a verdade de ambos,

embora possível a falsidade simultânea. Versões diferentes sobre o mesmo fato,

como sucede na hipótese em exame, nem sempre implicam contraditoriedade.

Saber de toda a trama não necessariamente implica envolvimento nos fatos. A am-

bigüidade e a vagueza das palavras, somadas à carga emotiva, instau- ram, no

campo dos signos providos de conteúdo semântico, controvér- sias que não podem

ser resolvidas, comojá se disse, na base de códigos binários, resultantes da

aplicação dos princípios racionais (identidade; contradição; terceiro excluído).

Dependendo do contexto, e considerada a relação de hierarquia entre as partes e o

juiz, poder-se-ia cogitar também de um argumentum ad baculum.

Fim da nota de rodapé

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Página 276

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

de quem fala e não necessariamente o significado da palavra, que pode se manter

inalterado apesar da variedade de experiências que acompanham o uso do signo.

Entretanto, há uma classe de signifi- cado que tem uma relação íntima com o uso

dinâmico, a saber, o signijïcado emotivo, já reconhecido por Ogden e Richards,

autores de um livro clássico sobre a teoria do significado.58 Charles Stevenson,

partindo da elaboração destes lingüistas, sustenta que o significa- do emotivo é uma

tendência de produzir reações afetivas nas pes- soas, tendência esta relacionada à

história de uso da palavra.59

Início da nota de rodapé

(58) No Iivro de C. K. Ogden e I. A. Richards (The Meaning ofMeaning, 5. ed.,

NovaYork, Harcourt, Brace & World, Inc., 1938) os autores desenvolvem o chamado

triângulo semiótico. O pensamento (também conhecido como referência, idéia,

conceito) está no vértice superior do triângulo, ao passo que o símbolo (signo,

palavra) ocupa, na base da figura geométrica, o ângulo esquerdo. O ângulo direito

está reservado ao objeto (coisa). Este clássico diagrama busca demonstrar a

relação causal entre os diferentes elementos do significado. No livro, os autores

desen- volvem um estudo sobre a influência da linguagem no pensamento e na

ciência do simbolismo, estabelecendo a distinção, comum aos neoempiristas, entre

significado cognoscitivo e significado emotivo das palavras. A função cognoscitiva ou

simbólica compreende a simbolização da referência da palavra à coisa e sua

comunicação ao ouvinte. A função emotiva, que encontra na poesia a sua forma

suprema, compreende a expressão das emoções, das atitudes, dos humores, das

intenções de quem fala, bem como sua comunicação ao ouvinte. A propósito

daelabo- ração de Ogden e Richards, v. Nicolás Abbagnano, Historia de la Filosofia,

tomo 111, 3. ed., Barcelona, Montaner y Simón S. A., 1978, p. 684, Adam Schaff, op.

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cit., p. 222-230, Enrico Pattaro, op. cit., p. 79, Umberto Eco, Tratado Geralde

Semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1 980 (Coleção Estudos, vol. 73), p. 50 e 51,

Umberto Eco, O signo, 3. ed., Lisboa, Presença, 1985, p. 21-26, e Decio Pignatari,

Informação. Lin- guagem. Interpretação, 4. ed., São Paulo, Perspectiva, Coleção

Deba- tes, 1970,p.30e31.

(59) Charles Stevenson, op. cit., p. 276-278. O autor esclarece também que certas

palavras, em razão de seu significado emotivo, são mais apropriadas para

determinados tipos de uso dinâmico, como é o caso de democracia, na esfera da

oratória, e de amor, na esfera dos sentimentos e da poesia. O Código Civil de 1916,

nos seus 1.807 artigos, utiliza-se uma única vez da palavra amor (art. 1 .338), não

reproduzida no Código Ci vil atual (art. 868).

Fim da nota de rodapé

Página 277

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Quanto mais acentuado o significado emotivo da palavra, menos provável se mostra

que as pessoas a utilizem de um modo puramente descritivo.60 E o que ocorre com

a palavra abuso, que remete à intromissão, mau uso, injustiça etc. A teoria do abuso

do direito, tanto de viés subjetivista como objetivista, revela não só a desaprovação

desta ou daquela conduta processual, como também o objetivo de influenciar a

conduta das partes. Daí porque não basta a ela- boração do conceito, como previsto

na norma, a pura idealidade, no pressuposto de que as pessoas passem a observar

a regra legal pelo simples fato de ela existir. Há, inegavelmente, uma certa mítica da

lei, em razão das associações existentes em torno deste símbolo. Todavia, para

além da idéia, é necessário reconhecer, comojá fazia o segundo Wittgenstein, a

importância do uso, das práticas sociais, na fixação do significado. Isto remete —

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como vem-se acentuando a todo momento — a uma questão epistemológica, pois

ao mesmo tempo em que a teoria do direito interfere na produção social, deixa-se

influenciar por ela.

É inegável que, quando o estudioso do direito desenvolve seus complexos

argumentativos (que a dogmáticajurídica conhece como teoria), apresentando juízos

de valor como se fossem juízos descritivos, busca em verdade estabelecer um certo

consenso em torno de determinados significados, que passam a ser vistos como se

fossem a expressão da realidade mesma. Os estudos desenvolvidos a propósito da

relação entre direito e linguagem têm apontado para o caráter veladamente

ideológico das chamadas definições reais. Em outras palavras, o intérprete, ao

recorrer às definições reais de abuso, buscando como que um sentido indisputável,

propõe em termos de essência aquilo que reputa importante de um ponto de vista

prático.61

Início da nota de rodapé

(60) Idern, p. 278.

(61) A propósito desse caráter ideológico das definições reais, v. Luis Alberto Warat,

A definição jurídica — suas técnicas, texto programado, Porto Alegre, Atrium, 1977,

p. 18. De um ponto de vista funcional, v. Lelio Lantella, op. cit., p. 244-253. Como

escreve Alaôr Caffé Alves, a norma jurídica não quer conhecer o mundo das ações

humanas e sim modificá-lo (op. cit., p. 194).

Fim da nota de rodapé

Página 278

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Fechando o seu círculo teórico, Charles Stevenson volta à discussão acerca dos

requisitos necessários ao reconhecimento do sentido mais importante dos iuízos

éticos. Quanto ao primeiro requisito, distingue entre desacordos de crença e

desacordos de interesse.62 As partes podem estar certas das conseqüências da

omissão da verdade no processojudicial. Mas ainda assim, é possível que uma delas

reconheça esta prática como boa e a outra como má. Ou seja, não há entre elas

desacordo de crença e sim desacordo de interesses, fruto de uma particular

cosmovisão, de uma determinada mundividência. Isto interfere com o terceiro

requisito, mencionado por Charles Stevenson no começo do seu trabalho. O

desacordo de crenças pode ser resolvido na base do método empírico. Basta

verificar os fatos. Supondo que as partes divergentes a respeito da existência de

conseqüências da omissão da verdade no processo, cuidar-se-ia de observar a

realidade. Contudo, o desacordo de interesses não comporta o emprego de qualquer

método racional.63

A discussão travada na doutrina e najurisprudência, como vista nos capítulos iniciais

do presente trabalho, a propósito da existência de limites à atuação das partes no

processo, revela mais pro- priamente um desacordo de interesses, que pode ser

identificado nas dicotomias processo autoritário versus processo científico; processo

inquisitivo versus processo dispositivo; verdade formal versus verdade real. Todos

reconhecem que a omissão da verdade pode interferir nos rumos da prestação

jurisdicional. Quanto a isto não há divergência. Entretanto, há quem sustente que

não existem razões para exigir dos litigantes comportamentos distintos daqueles

existentes em outros setores da vida social. O processo, sob essa ótica, encarna a

luta pelo direito, refletindo as mesmas tensões existentes no resto da sociedade. Os

verdadeiros protagonistas dos lití- gios são os cidadãos, não os tribunais, pelo que

se tem de deixar as

Início da nota de rodapé

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(62) idern, p. 281 a 285.

(63) Idem, ibidern.

(64) A propósito destas questões, v. o segundo capítulo 2, seção 2.4.

Fim da nota de rodapé

Página 279

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

partes livres para desafogar suas ansiedades e angústias.65 Está-se aqui diante de

um desacordo de interesses.

Bem se vê, desta forma, que os termos e enunciados éticos não se prestam à

verificação científica. Nesse terreno, a questão da verdade, de um ponto de vista

cognoscitivo, não se coloca. Mas ainda que não se possa cogitar de um método

para a solução do desacordo de interesses, é possível falar em um modo de

promover o acordo, que depende do alcance emocional das palavras, isto é, do

significado emotivo, de sua força retórica, de uma metáfora apropriada, de um bom

tom de voz, da intensidade dos gestos etc.66 Este aspecto interfere com o segundo

requisito mencionado por Charles Stevenson no início de seu trabalho. A mudança

de atitude diante do reconhecimento de uma determinada qualidade, de um

determinado valor, predispõe a pessoa à ação, vale dizer, a conduzir-se em

conformidade com aquilo que passou a ver como certo, como bom.

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Muitas vezes, desacordos de interesses (atitudes) são apresen- tados como se

fossem desacordo de crenças (juízos). Genaro Carrió, examinando a pseudodisputa

travada em torno da questão consistente em saber se ojuiz cria direito, chega à

conclusão de que não se trata de um juízo descritivo, mas sim valorativo, cuja

resposta depende das diversas concepções quc se possa ter acerca da função

jurisdicional e do sistema jurídico.67 No caso do chamado abuso do direito, passa-

se o mesmo. O paradoxo proposto por Planiol é a mais clara demonstração de que

toda controvérsia em tomo da possibilidade de

Início da nota de rodapé

(65) Francisco Ramos Méndez, ¿Abuso de derecho en elproceso?, in José Carlos

Barbosa Moreira (org.), Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense,

2.000, p. 6.

(66) Charles Stevenson, Ethics and Language, New Haven, Conn, Yale University

Press, 1944, p. 138, apud Nicolás Abbagnano, Historia de Ia Filosofía, tomo 111, 3.

ed., Barcelona, Montaner y Simón S.A., p. 682 e 683. No mesmo sentido, Charles

Stevenson, op. cit., p. 284 e 285.

(67) Genaro Carrió, Notas sobre derecho y lenguaje, 4. ed., Buenos Aires, Abeledo-

Perrot, 1990, p. 105-1 14. Esse trabalho também se encontra reproduzido, sob o

título igiudici creano diritto — esame di unapolernica giuridica, in Uberto Scarpelli

(org.), Diritto e Analisi del linguaggio, Edjzjon di Comunità, Milão, 1976.

Fim da nota de rodapé

Página 280

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

exercer abusivamente um direito mal esconde um desacordo de interesses (atitudes)

em torno do estatuto teórico do direito, que longe de operar com enunciados

descritivos, interfere na realidade, deixando-se também influenciar por ela. Mas claro

está que a operacionalidade das teorias jurídicas reside precisamente em não se

mostrar como complexo argumentativo. Isto revela uma faceta ideológica que

cumpre, no campo do direito, determinadas funções sociais. Comojá se adiantou, há

uma série de falácias formais e materiais que visam à legitimação do discurso

jurídico como instância imparcial na solução dos conflitos. O encobrimento da atitude

permite ao teórico, reconhecendo a subjetividade da posição sustentada, apresentá-

la como se fosse expressão do fato real.68

Início da nota de rodapé

(68) Assim, a classificação binária, lícito e ilícito, revela uma falácia meta- física, pois

pressupõe um universojurídico povoado de entidades com existência própria. A

esfera do permitido, entretanto, acaba denunciando o caráter idealista desta

formulação, pois ao mostrar que existe um terceiro modo deôntico, abre espaço para

a discussão dos limites do sistema jurídico em contraste com o sistema social (a

propósito, veja- se o que foi dito na seção 4.1, particularmente a nota 17). Ao lado da

falácia metafísica, acham-se a construçãoforçada do gênero e diferença e afalácia

metodológica do recurso à metáfora. A tentativa de elaborar o conceito de abuso do

direito como espécie do gênero ilícito, na base da semelhança e de uma diferença

específica, herança da lógica clássica, desconsidera o aspecto cultural das

construções jurídicas, tal qual como foi visto no primeiro capítulo (seção 1.4). E

significativo o poder das metáforas no campo do direito, as quais, ao buscar uma

aproximação com o real, acabam por empreender uma reconstrução do objeto, sob

aparência de simples substituição das palavras, da mera comparação. O objetivo,

entretanto, é prático, operacional (Lantella, op. cit., p. 220, 263-265, 275 e 292; ver

ainda Alaôr Caffé Alves, op. cit., p. 35 1). A respeito da comparação entre o

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processo judicial e o jogo, vale o que foi dito no segundo capítulo (seção 2.4).

Eduardo Angel Russo crítica, contudo, essa analogia, pois a teoria do jogo aponta

para um modelo matemático, onde nenhuma variável externa pode incidir no

desenvol vimento e no resultado. O trapaceiro é colocado para fora do jogo. Os

jogadores não agem em colusão para beneficiar terceiro, estranho ao jogo. O

objetivo dos jogadores é ganhar. Por último, observa que as regras dojogo

permanecem inalteradas durante a disputa. No proces- so judicial, de outro modo, as

trapaças muitas vezes fazem parte das

Fim da nota de rodapé

Página 281

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

De tudo que foi dito, resulta claro que a compreensão de uma teoria do abuso dos

direitos processuais demanda um modelo epistemológico um pouco mais amplo, que

ultrapasse as rígidas mol- duras de uma ciência supostamente descritiva. A

chamada investigação pura, mormente no campo das humanidades, entrou em crise

no pós-guerra e nos anos sessenta viu-se confrontada com as reivindicações de

envolvimento na solução dos problemas econômi- cos e sociais. As exigências do

desenvolvimento tecnológico e a crescente transformação da ciência em força

produtiva puseram em xeque a própria validade da distinção entre investigação

básica e aplicada, passando a exigir novos paradigmas. Nessa ordem de idéias, foi

preciso repensar a racionalidade cognitiva das ciências, ruptura epistemológica que

se mostra ainda mais significativa quando se está tratando do direito, dividido entre

uma racionalidade

Início da nota de rodapé

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regras (a respeito, ver seção 2.4). Nem sempre as partes visam a ganhar. Movem-

nas, em certas circunstâncias, um ideal dejustiça ou afã de vingança, pelo que não

importa o próprio fracasso, contanto que se consiga prejudicar o outro. Muitas vezes,

também, prefere-se a solução menos vantajosa do ponto de vista econômico, em

nome da rápida solução do litígio. E possível cogitar, outrossim, da modificação das

regras no curso do processo, tal como sucede com a reforma das normas proces-

suais, que incide de pronto, alcançando o processo em curso, ou com a alteração do

direito material, que pode interferir na estratégia das partes. Assim — acrescenta o

autor — à incerteza estratégica própria de todos os jogos, soma-se, no caso do

proceso judicial, uma incerteza nor- mativa, que decorre também dos problemas de

interpretação da lei, dos conflitos entre normas e porque não dizer, da

discricionariedade judicial, segundo assinalava Frank Jerome. Diga-se ainda que o

fim do pro- cesso não necessariamente coincide com o fim do jogo, pois há de se

considerar a liquidação do julgado, sua execução, a prescrição, a abolitio criminis, a

retroatividade da Iei penal mais benigna etc. Por último, importa considerar que os

teóricos do direito também realizam suas Jogadas quando aparentam apenas

descrever o fenômeno jurídico de fora, com o que, consciente ou inconscientemente,

influem no comportamento dos outros jogadores (Eduardo Angel Russo, Derecho y

la teoria delosjuegos, in JoséAlcebíades de Oliveirajr. (org.), Opoderdas metóforas

— homenagem aos 35 anos de docência de LuisAlberto Warat, Porto Alegre,

Livraria do Advogado Editora, 1998, p. 256-261).

Fim da nota de rodapé

Página 282

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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coguinitivo-instrumental e uma racionalidade moral-prática.69 Não há condições

ainda de avançar no campo desta transição paradigmática,

Início da nota de rodapé

(69) Boaventura de Sousa Santos, Da Idéia de Universidade à Universida- de de

idéias, in Revista Crítica de Ciências Sociais, vols. 27 e 28, Coimbra,junho de 1989,

p. 25, 27, 51 e 52. Esse pensador português, ao tratar da dicotomia racionalidade

cognitivo-instrumental e racionalidade moral-prática, está-se referindo mais

exatamente ao campo das ciências sociais. Entretanto, entende-se que estas

categorias também se aplicam à esfera do direito, sobretudo no contexto das

chamadas sociedades modernizantes, que coincide com o pós-guerra, com o

chamado welfare state, período no qual a teoria do abuso do direito encontrou largo

desenvolvimento, como foi visto no primeiro capítulo. A respeito desta epistemologia

crítica, que substitui a ética da neutralidade científica pela ética da responsabilidade

social do cientista, ver os trabalhos de Hilton Japiassu, Introdução ao pensamento

epistemológico, 3. ed., Rio de Janeiro, FranciscoAlves, 1979, e O mito da

neutralidade cientifica, 2. ed., Rio de Janeiro, Imago Ltda., 1981. Sobre o conceito

de paradigma no âmbito das ciências, ver Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções

científicas, São Paulo, Perspectiva, 1982, Coleção Debates, vol. 1 1 5. Nessa obra,

surgida no final da década de sessenta, Kuhn critica o modelo da ciência universal e

desinteressada, desenvolvido pelo cientificismo positivista. Confronta a produção

científica com o ambien- te social que nela se reflete. A ciência não cresce

necessariamente de maneira acumulativa e contínua. A ciência caminha por saltos

qualitativos, de forma que a descoberta das verdades dá-se através de um processo

de normalidade e crise, onde se alternam períodos de consolidação e substituição

de axiomas, hipóteses, princípios, categorias e interpretações,

chamadosparadignias. Enquanto a elaboração científica não é reconhecida pela

comunidade dos cientistas, está-se diante de um estágio de pré-ciência, em um

momento de construção do paradigma, que, uma vez aceito na base da

unanimidade, instaura um período de ciência normal, madura. Contudo, existem

momentos em que os paradigmas, incapazes de dar uma explicação para fatos

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novos, entram em crise, exaurindo-se. Paralelamente, outros paradigmas vão

surgindo 110 horizonte das ciências, com o que se iniciam as chamadas revoluções

cientijìcas, que só se consolidam quando um novo consenso se estabe lece em

torno de outro paradigma, dando lugar a um novo período de ciência normal. Kuhn

deixa claro, assim, que as alterações de rumo no campo científico não são resultado

da ruptura de uma lógica inteffla dos padrões científicos. A escolha entre os

paradigmas que começam a

Fim da nota de rodapé

Página 283

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

mas já é possível reconhecer que a preocupação dos filósofos com o uso da

linguagem (isto a partir de Wittgenstein), ao colocar em crise o modelo

representativo da teoria do significado, aponta para as necessárias relações entre o

discurso teórico e a prática cotidiana. Esta reviravolta filosófica, com repercussões

sobretudo no campo da teoria da ciência, permitirá melhor compreender o caráter

praxeológico das elaborações jurídicas, particularmente das formulações relativas ao

abuso dos direitos processuais.

4.4 A linguagem e a construço da realidade

Os processualistas nunca levaram a questão da verdade tão a sério quanto o

fizeram os filósofos. E certo que as discussões acerca da imanência ou da

transcendência da verdade, que orientam, respectivamente, o idealismo e o

realismo, tiveram algumas repercussões na polêmica entre subjetivistas e

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objetivistas, como foi visto no segundo capítulo, particularmente na seção 2.2.

Porém, Iogo os

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

emergir no estágio pré-cientffico não está fundada em supostos crité- rios universais

e comunais, a exemplo do critério de falsificabilidade, proposto por Popper. A

história mostra que não há critérios lógicos ou metodológicos no discurso científico.

Na realidade, o cientista está mais preocupado em preservar paradigmas do que

propriamente em falsificá-los. Como observou Wittg9nstein, as proposições em si

mesmas não guardam nenhum sentido. E necessário ver como funcionam. Por isso,

é importante verificar o que os cientistas fazem e procurar entender até que ponto o

contexto dajustificação passa a interferir no contexto da descoberta. Enfim,

alterando-se as condições sociais, as atitudes dian- te dos fatos, altera-se o campo

científico. O modelo dos paradigmas, desenvolvido por Kuhn, permite entender que

essa interdependência entre sujeito e objeto também tem repercussões nos diversos

níveis do conhecimento jurídico (direito/ dogmática jurídical teoria do direito). E disso

exemplo a interferência recíproca entre os complexos argumentativos desenvolvidos

pela doutrina jurídica e a prática judicial. Vale dizer, a teoria influi na prática e a

prática é incorporada pela teoria. O confronto entre diversos paradigmas conduz a

um processo de persuasão que envoive argumento de autoridade, argumento de

força e outras estratégias de convencimento, as quais têm em conta fatores sociais,

Políticos, econômicos e culturais. A verdade da ciência é mediada pela llnguagem

que, por sua vez, é um produto cultural.

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

doutrinadores perceberam que a dogmática processual, envolvida com a solução

dos conflitos, longe de buscar a essência do conhecj mento, haveria sim de mostrar

(no sentido wittgensteiniano) como o conceito de verdade funciona. Trata-se, pois,

de jogos de linguagem diferentes. No mundo da filosofla não se há de cogitar de

dogmas, de pontos de partidas inquestionáveis, ao passo que no mundo

doprocessojudicial algumas regras já estão postas e outras surgem no desenrolar do

jogo.

Ao defender a verdade como concordância do relato com os fatos ocorridos

(veritas), os subjetivistas enveredaram por um terreno coberto de dificuldades. A

sentença, fundada em evidências psicológicas ou subjetivas, não pode ser objeto de

um enunciado univer- salmente válido. Atrelar a noção de abuso processual, por

exemplo, à intenção de enganar implica a produção de uma sentençajudicial que

opera na base das valorações, da intuição emocional e volitiva. Pondo de parte a

polêmica em torno da objetividade ou subjetividade dos enunciados éticos, é certo

que a norma individual e con- creta não pode, do ponto de vista do neopositivismo,

dar lugar a um conhecimento de validade universal, pois a linguagem teórica, que é

lógica, também tem de ter um referente Iógico. Ocorre que a sen- tençajudicial não

descreve fatos, fazendo apenas estimativas. Como o ato dejulgar tem conteúdo

voluntarístico, não se esgotando na pura atividade do intelecto, disso resulta

também a inadequação de um critério de verdade fundado na evidência racional.70

Início da nota de rodapé

(70) A Ciência do Direito, especialmente no Brasil, ainda está muito imbufda de

racionalidade abstrata, no sentido de que a experiência jurídica possa toda ela ser

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reduzida a uma sucessão de silogismos ou de atos atribuíveis a uma entidade

abstrata, ao homo juridicus. A técnica jurídica, operando com meros dados lógico-

formais, vai, aos poucos, firmando a convicção errônea de que ojuiz deve ser a

encarnação desse mundo abstrato de normas, prolatando sentenças como puros

atos de razão. Na rea- lidade, sabemos que o juiz, antes de ser juiz, é homem

partícipe de todas as reservas afetivas, das inciinações e das tendências do meio

social, e que nós não podemos prescindir do exame dessas circunstâncias, numa

visão concreta da experiência jurídica, por maior que deva ser necessa riamente a

nossa aspiração de certeza e de objetividade (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1.

ed., São Paulo, Saraiva, 1 986, p. 1 36).

Fim da nota de rodapé

Página 285

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

A posição adotada pelos objetivistas, ficasse somente na refutação ao idealismo e

ao empirismo psicologista, não resolveria as dificuldades acima apontadas. Com

efeito, os objetivistas sustentam que a verdade consiste na concordância do relato

com o objeto, pouco importando saber se a alteração dos fatos resulta ou não de um

ato deliberado das partes. Sucede que a verdade judicial, como já visto, não tem

compromisso com o mundo sensível, mas sim com a decisão, que o discurso

jurídico, na base de elementos irracionais e estimativos, busca legitimar. Entretanto

(e aqui está a diferença), o objetivismo, tal qual desenvolvido pela dogmática

processual, não se deixa confundir com um realismo ingênuo, avançando também

no campo cultural. Há em toda interpretação um fazer persuasivo, que reconstrói o

objeto. Não basta a convicção íntima dojulgador (psico- logismo) e tampouco uma

investigação puramente lógica (intelectualismo). Necessário se faz aquilo que os

processualistas chamam de persuasão racional, a qual se desenvolve no campo da

retórica.71

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Início da nota de rodapé

(71) Aristóteles divide a classe das orações em duas sub-classes, a saber aquelas

que comportam a atribuição dos juízos verdadeiro efalso e aquelas que não

comportam. As primeiras correspondem à lógica e as segundas à poética, à retórica.

Ao Iado das orações apofânticas, o filósofo grego distinguiu as súplicas, as ordens,

as respostas, as ameaças (Aristóteles, De la expresión o interpretación, Cap. 4,

16a/17a, in op. cit., p. 256 e 257; Aristóteles, Poética, Cap. 19, 1456b, in op. cit., p.

95). A argumentação, em Aristóteles, surge como uma das partes da arte retórica,

voltada ao convencimento. O discurso forense tem a aparência de um silogismo.

Entretanto, nele se coloca a questão da verossimiIhança, que não se confunde com

a verdade. A partir de entimemas, os litigantes desenvolvem um discurso tópico,

pautado em noções comuns, que recorre à dialética, capaz de conciliar os

contrários. A apresenta- ção das provas desenvolve-se, então, na base de

argumentos de autoridade, do apelo aos sentimentos e à piedade do ouvinte, sem

deixar de Iado os indícios, documentos e testemunhos (Aristóteles, Retórica, Livro I,

Caps. 1 e 2, 1354a/1359a, in op. cit., p. 1 16 a 122). Miguel Reale re- gistra que a

realidadejurídica... não pertence à esfera dos objetos ideais, nem à esfera ou ao

âmbito dos objetos psíquicos, pois lhe corresponde uma estrutura própria, a dos

objetos culturais... (Filosofia do Direito, 1 1.ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p. 302).

Em outro ponto, acrescenta: “Sentenciar não é apenas um ato racional, porque

envolve, antes de mais

Fim da nota de rodapé

Página 286

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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Ainda que o processo não mais esteja preso à chamada prova legal, certo é que o

conhecimento do fato empírico exige formas e fórmulas pelas quais se toma fato

pertinente, fato processual. Apenas na ausência de regulação específica pode o juiz

aplicar as regras da experiência (art. 335 do CPC); assim mesmo, o fato empírico só

terá relevância se subsumido a uma norma jurídica. Ademais, nem todas as provas

são permitidas (arts. 332, 401, 405 e parágrafos do CPC). O silêncio do réu, no

processo penal, é uma faculdade prevista na Constituição (art. 5.°, LXIII).

Diferentemente, no processo civil, o silêncio pode muitas vezes constituir prova

contra aquele que permaneceu calado (arts. 343, § 2.°, 359, I, do CPC), sendo

admitido apenas em certas circunstâncias moralmente rele- vantes (art. 363 e

incisos do CPC). Estas particularidades, somadas às regras do ônus da prova, da

preclusão e da coisa julgada, bem demonstram que a verdade é uma condição

retórica de sentido, um lugar comum que permite às partes e aojulgador estabelecer

o con- senso em torno deste ou daquele significado.72

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

nada, a atitude de estimativa do juiz diante da prova. O bom advogado sabe

perfeitamente da importância dos elementos emocionais na condução e na

apreciação dos elementos probatórios. Tais fatores de convicção adquirem

importância muito grande em certos setores do Direito, como, por exemplo, no júri

popular. A convicção dojurado não é mera resultante de frias conjeturas racionais,

pois vem animada sempre de cargas emotivas... (idem, p. 136).

(72) Nas palavras de Karl Engisch, o chamado ônus da prova é uma das figuras de

pensamento mais ricas de sentido que a razão dos juristas tem elaborado. O ônus

da prova relaciona-se com a hipótese de, apesar de todas as atividades probatórias,

subsistirem dúvidas na questão de fato. O juiz tem de resolver o Iitígio, muito

embora não possa resolver a dúvida. Qual a decisão que ele há de proferir em tais

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circunstâncias, eis precisamente o que lhe vem dizer o ônus da prova, mais

exatamente a regulação do ônus da prova. O complexo de todos os fatos é dividido

em fatos cuja prova se encontra a cargo do autor e fatos cuja prova compete ao

demandado. O ônus da prova, do ponto de vista de uma lógica jurídica, é uma

injunção ao juiz sobre como ele deve decidir sempre que não possa afirmar ou negar

com segurança fatos juridicamente relevantes. Diferentemente do que sucede no

silogismo lógico, a ausência de prova do fato (e, portanto, do fato), resulta em uma

conclusão, qual seja,

Fim da nota de rodapé

Página 287

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

O processo judicial, impregnado do sentido ético e prático, exige dos litigantes e do

juiz um envolvimento em torno da construção de significados, que não são conceitos

puros e tampouco expressão de uma realidade tangível, como faz crer a teoria

representativa do significado. Há entre as partes, e também na relação das partes

com o juiz, um controle persuasivo, pois os limites entre a conduta ilícita e a conduta

abusiva estão no mundo da vida. Como salienta Tercio Sampaio Ferraz Junior,

provar significa não apenas demonstrar um fato (sentido objetivo) mas também

aprovar ou fazer aprovar (sentido subjetivo). Isto se dá através de uma espécie de

simpatia, capaz de sugerir confiança, ou através de argumentos que permitam a

fixação de um sentido favorável àquele que fala e argumenta.73

Está claro que um objeto assim tão multifacetado, como é a experiência jurídica,

reclama uma compreensão teórica em condições de romper as amarras com o

conceito de representação. Este passo foi dado a partir de Wittgenstein,

notadamente em suas Investigações Filosóficas, quando se tornou possível

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compreender que certos enunciados declarativos, conquanto nada descrevam,

podem ter um sentido.74 Coube a John Langshaw Austin dar um tratamento mais

ordenado aos conceitos que Wittgenstein propositadamente apenas rnostrou, a

começar por duas grandes classificações, que serão daqui a pouco examinadas.

Antes é necessário analisar alguns pressupostos da chamada teoria dos atos defala,

objeto de

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

o julgamento de improcedência da ação (Karl Engisch, op. cit., p. 102- 104). A

questão do ônus da prova envolve complicados problemas de ordem prática. Um

deles consiste em saber a quem compete provar o fato negativo, cuja ocorrência é

afirmada no processo. Atualmente, em conseqüência do reconhecimento dos

chamados interesses transindividuais, característicos da sociedade pós-moderna, a

legislação prevê, em certos casos, a inversão do ônus da prova em favor do

coIegitimado para o exercício da ação que tem em conta a defesa dos interesses

metaindividuais. Vê-se aqui a tentativa de facilitar a proteção de interesses que a

sociedade pós-industrial considera relevantes.

(73) Tercio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão,

dominação, São Paulo, Atlas, 1988, p. 291.

(74) A propósito, v. Aristóteles, Poética, Cap. 19, 1456b, in op. cit., p. 95.

Fim da nota de rodapé

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Página 288

ABUSO DE DIREITO PROOESSUAL

publicação póstuma, na base de apontamentos e anotações de estudiosos

(recolhidos porJ. Urmson e Marina Sbisá) que tiveram a opor tunidade de ouvir a

série de conferências proferidas porAustin, em 1955, na Universidade de Harvard.75

Austin, como caudatário da tradição pragmática, critica a teoria filosófica centrada no

significado semântico, pontos de vista que, mais tarde, John Searle tentará conciliar.

Sua análise representa um novo paradigma na teoria do conhecimento, pois a partir

dos conceitos centrais de cada uma das ciências, confrontados com seu uso na

linguagem ordinária, torna-se possível esclarecer o sentido das elaborações

científicas. Particularmente importantes são as contribuições da teoria dos atos de

fala no campo do conhecimento jurídico. A teoria do direito está no nível da

metalinguagem, pois seu objeto trabalha com a linguagem natural. É precisamente

esta linguagem que constitui a realidade, de onde se pode dizer que linguagem é

ação e não mera representação do real. O significado de uma sentença não pode

ser estabelecido através de seus elementos cons- titutivos, vale dizer, através do

nome (sentido) e do predicado (referência). De outra forma, são as condições de uso

das sentenças que determinam seu significado. Assim, a verdade passa a ocupar

um segundo plano no campo das ciências e da teoria do conhecimento. No Iugar

dela importa considerar a eficácia do ato, que Austin conhece comofelicidade. Com

isto, o próprio conceito de significado se dissolve, no que dá Iugar a uma nova

concepção de linguagem, qual seja, um feixe de relações que envolvem o contexto,

as con- venções de uso e a intenção dos falantes.76

Início da nota de rodapé

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(75) O trabalho foi publicado sob o título How to do things with words, ern 1962. Há

tradução brasileira, de Danilo Marcondes de Souza Filho, a quem também coube al

apresentação (Quando dizer éfazer Palavras e ação, Porto Alegre, Artes Médicas, 1

990).

(76) A propósito, ver as considerações feitas por Danilo Marcondes de Souza Filho

na apresentação à tradução brasileira das conferências de Austin (Quando dizer

éfazer. Palavras e Ação, Porto Alegre, Artes Médicas, 1 990, p. 7- 1 7). Ver também

Eduardo Rabossi (Actos de habla, in Marcelo Dascal — org., Filosofía del lenguaje

11. Pragmática, Consejo Superior de lnvestigaciones Científicas, Editorial Trotta, 1

999,

Fim da nota de rodapé

Página 289

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

O pressuposto desta reviravolta filosófica, com repercussões na esfera da teoria da

ciência, está na distinçäo entre sentenças declaratil as (ou constatativas) e

sentenças performativas, que Austin estabelece já na sua primeira conferência. A

distinção remonta, de certa forma, a Aristóteles, que reconhece a existência de um

sentido em perguntas, exclamações, ordens, desejos, autorizações, tal como

também admite Wittgenstein. O próprio Charles Stevenson, como foi visto, defende

a tese de que as chamadasproposições éticas cumprem um propósito, têm um

objetivo, enfim, são proferidas não para relatar um fato, mas sim para despertar

sentimentos ou reações. Austin diz que muitas perplexidades filosóficas surgem do

erro consistente em confundir declarações fatuais com pro- ferimentos que ou são

sem sentido ou então foram feitos com pro- pósitos bem diferentes. O disfarce

destes proferimentos, entretan- to, nem sempre surge numa roupagem declarativa.

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Era de se esperar — diz ele — que os juristas, mais do que ninguém, se apercebes-

sem disto.77

Início da nota de rodapé

Enciclopédia Iberoamericana de Filosofía, vol. 1 8, particularmente p. 53-60), José

Ferrater Mora (Fundamentos de Filosofía, Madrid, Alianza Editorial, 1 987, p. 82-85),

Carlos Vogt (Linguagem, Pragmática e Ideo- logici, 2. ed., São Paulo, Editora

Hucitec, 1989, particularmente p. 20- 23, 50, 51 e 95-102), Eduardo Roberto

Junqueira Guimarães, (Sobre alguns caminhos da pragmática, in Sobre pragmática,

Uberaba, Cen- tro de Ciências Humanas e Letras das Faculdades Integradas de

Uberaba (Série Estudos), p. 15-27), Alaôr Caffé Alves (op. cit., p. 352-358) e

Manfredo Araújo de Oliveira (op. cit., p. 149-169). Registre-se que a expressão

sentença, aqui utilizada, não tem relação com ojulgamento de um caso. A sentença,

para Austin, é uma unidade lingüística, dotada de estrutura gramatical e de um

significado.

(77) J. L. Austin, op. cit., p. 2 1 -23. A frustração dessa expectativa de Austin pode

ser ilustrada com o fato de que a dogmática processual ainda hoje concebe a

existência de sentenças meramente declaratórias, quando é certo que há nelas um

proferimento performativo (para Austin, proferimento é a emissão concreta e

particular de uma sentença). A propósito dos proferimentos performativos no direito,

ver também Alberto Cal samigl ia, Sobre la dognicítica juridica: presupuestos y

funciones del saber jurídico, in Anales de la Cátedra Francisco Suarez, 22, Granada,

1983, p. 257.

Fim da nota de rodapé

Página 290

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Assim, Austin quer dizer que uma declaração de direito não é uma declaração de

fato. Expressões como dôo (os meus bens a fulano, v.g.), aceito (a doação, v.g.),

declaro (nulo o ato, v.g.), prome- to (devolver o preço, v.g.), dentre outros verbos na

primeira pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa, são operativas.

Usá-las, dentro de um determinado contexto, não é descrever o ato praticado, mas

sim realizá-lo (daí o neologismo performativo, do inglês to perform). E de uma ação

não se diz que é verdadeira ou falsa, mas sim feliz ou infeliz, conforme essa ação

seja ou não eficaz. Afelicidade dos proferimentos performativos é explorada por

Austin na segunda, terceira, quarta e quinta conferências.78 Na base desse conceito

o autor sugere inclusive um novo modelo para a teoria da nulidade dos atos

jurídicos. A questão, sem maior interesse no campo do abuso processual, será

examinada apenas com o propósito de melhor compreender o paradigma austiniano.

Para que um proferimentos performativo seja feliz há de se observar certas

condições assim enunciadas: a) existência de determinado procedimento

convencionalmente aceito ou de determinado ritual, envolvendo palavras; b) as

pessoas e circunstâncias, em cada caso, devem ser adequadas ao procedimento

invocado; c) o procedimento deve ser executado de maneira correta e completa por

todas as pessoas nele envolvidas; d) a pessoa que participa do procedimento,

buscando influir na atitude ou na conduta de outro participante, deve fazê-Io de

maneira sincera, e mais, deve realmente conduzir-se desta maneira

subseqüentemente. Se qualquer destas regras for transgredida, o proferimento será

malogrado, infeliz. Nos casos a e b, a burla às condições implica nulidade do ato. No

direito romano, como foi visto no segundo capítulo (seção 2.2), qualquer infração

formal implicava nulidade insanável (condição a). Outros- sim, uma sentença

proferida por juiz incompetente ou um ato prati- cado sem mandato judicial, se não

ratificado pela parte, é nulo (condição b). Nestes casos, o ato não se concretiza, não

surte efeitos, muito embora possa haver resultados ou efeitos no campo

fenomênico.79

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Início da nota de rodapé

(78) idem, p. 29-56.

(79) Austin dá o exemplo do bígamo que, a despeito do nome, não se casa duas

vezes, haja vista que o novo casamento é nulo (op. cit., p. 32).

Fm da nota de rodapé

Página 291

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

A burla à condiçäo c, de outra forma, não interfere com a concretização do ato, do

qual não se pode dizer que seja nulo, mas apenas não-consumado, vazio.

O interessante desta classificação, no campo processual, consiste em que o relato

vale como prova (tem força legal) não pelo que foi dito mas porque a testemunha, ao

assumir o compromisso de dizer a verdade — um substituto do juramento, de origem

remotíssima — está praticando uma ação, vale dizer um ato processual. Mais do

que a descrição de um fato, a testemunha está agindo, interferindo na construção de

um objeto que não é aquele mesmo do mundo fenomênico. Por isso, como insiste

Austin, não há o menor sentido em cogitar da verdade ou da falsidade destes atos,

que apenas podem ser felizes ou infelizes, caso observem ou não as condições que

há pouco foram sucintamente expostas. Quando se diz prometo dizer a verdade,

sem a intenção de cumprir a promessa, é certo que houve a promessa, mas o ato foi

vazio, na expressão de Austin, porque insincero, proferido sem seriedade. Não se

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trata de ato nulo, mas malogrado, um caso de infelicidade que o autor trata por

abuso, para diferenciá-lo dos casos de desacerto, onde o ato infeliz é nulo. Fal- sa

promessa, feita por má-fé, deslealdade, não é um proferimento falso, porque a ação

de prometer existe. Não se diz que a instrução do processo é falsa ou que a

sentença fundada em prática proces- sual abusiva o seja. A expressão “falso”, no

contexto das provas, têm um âmbito ético e institucional que não se confunde com a

exatidão entre o relato e a realidade ou entre o relato e o que se tem no

pensamento. Como diz Austin, bastará ao mentiroso voltar atrás no seu testemunho,

dando as razões de seu deslize.80

Início da nota de rodapé

(80) J. L. Austin, op. cit., p. 22 e 26-35. A distinçao entrefato bruto efato institucional

será feita mais tarde por Searle (a propósito, v. Jesds lgnácio Martínez García, op.

cit., p. 25 e 26). Austin, nas conferências 4 e 5, tratará de explicar, entretanto, que

há alguns pontos de contato entre proferimentos performativos felizes e sentenças

declarativas verdadeiras. Assim é que ao dizer prometo estou realmente pro-

metendo. Em outras palavra, é verdadeiro, e não falso, que estou fazendo. Ademais,

é verdadeiro, e não falso, que aquelas condições a, b e c foram satisfeitas.

Fim da nota de rodapé

Página 292

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Ao lado dos performativos explícitos (primeira pessoa do sin- gular do presente do

indicativo da voz ativa) estão OS performativos implícitos. Ao dizer faça, está-se

ordenando que alguém realize alguma coisa. Mas é possível também que se esteja

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dando um conselho a esta pessoa, o que não se confunde com uma ordem. Estarei

lá amanhã não necessariamente é uma promessa. Estas infelicidades podem

resultar da falta de observância de qualquer das condições enunciadas em a, b e c,

conforme classificação vista parágrafos atrás. Os exemplos servem, segundo Austin,

para demonstrar que a classificação por ele proposta não é exaustiva e que os

critérios nela adotados não são estanques, de sorte que admitem sobreposições e

zonas de imprecisão. Deve-se evitar a todo custo a simplificação excessiva. Aliás,

como foi visto na seção 4.2, coube a von Wright o mérito de ter ressaltado a

importância do contexto em que as expres- sões são utilizadas, quando se trata de

entender o conceito de nor- ma jurídica, que está fundado no uso e não nas regras

gramaticais.

Mas os exemplos acima mencionados, segundo Austin, servem igualmente para

demonstrar o quão precária é a distinção entre performativos e constatativos (ou

declarativos) na base de um critério puramente gramatical ou lexicográfico. Assim, o

emprego da segunda e terceira pessoas, na voz passiva, também se presta a enun-

ciados operativos, a exemplo da expedição de autorizações (“está a parte autorizada

a deixar o lar conjugal”) ou da realização de advertências (“adverte-se o executado

de que a prática configura ato atentatório à dignidade da justiça”). Outrossim, o

modo verbal é indiferente porque, ao lado do indicativo, pode-se usar o imperati-vo

para ordenar que alguém faça alguma coisa. O tempo verbal tampouco importa, pois

além do presente, admitem-se, nas decisões judiciais, construções como “a parte foi

desleal” no lugar de “consigno que a parte foi desleal”. Importante também é o

contexto. Assim, quando o juiz pergunta à parte, cujo comportamento se mostra

inconveniente, “o senhor poderia se retirar?”, está claro que não espera uma

resposta. No lugar disto, tem a expectativa de que a parte, em respeito àquela

ordem, deixe o recinto.81

Início da nota de rodapé

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(81) J. L. Austin, op. cit., p. 57-63. Na sua sexta conferência, o autor susteflta que os

perforinativos explícitos resultam de “proferimentos mais

Fim da nota de rodapé

Página 293

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Austin, na scxta e sétima conferências, buscou ainda diversos critérios para salvar a

distinção entre performativos e constatativos, com a qual iniciou suas preleções.

Mas como não resultassem precisos, acabou concluindo que as diferenças são

mesmo artificiais, pois têm em conta só as proposições e não a situação em que

estas são empregadas. Ocorreu-lhe, a partir de diversas tentativas frustradas, que

necessário seria analisar a totalidade da ação lingüística, em todas as suas

dimensões,fonética (emissão de ruídos),fática (conformidade às regras da

gramática) e rética (aquilo que é dito), conceitos que passa a aprofundar na sua

oitava conferência. A partir destas noções, Austin deixa clara a insuficiência do

modelo referencial, pois sentenças como haverá uma sanção, conquanto possam

ser entendidas sem maiores problemas, tanto podem ter o sentido de uma

declaração como de uma advertência ou de uma ordem. E isto porque, ao dizer algo

(ato locucionário), aquele que diz também está fazendo alguma coisa (ato

ilocucionário), ou seja, declarando um fato, advertindo, dando uma ordem. Importa,

assim, entender o sentido em que a fala está sendo usada nesta ou naquela

ocasião.82

Em outras palavras, no nível locucionário, a língua apresenta- se como produção de

sons pertencentes a um certo vocabulário, cuja organização se faz segundo regras

da gramática, aos quais se atribuem um certo sentido e uma certa referência. Mas é

preciso reconhecer que a língua também cumpre outras funções, outros atos.

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Quando o juiz manda riscar palavras nos autos, aplicando a regra do artigo 15,

caput, do cPc, tal ordem pode realizar ações como

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

primários, muitos dos quais deram lugar a performativos implícitos. Eu o farei, por

exemplo, é anterior a Prometo que o farei. Aquele caráter vago e ambíguo da

Iinguagem primitiva pode ter suas vantagens, mas a sofisticação e o

desenvolvimento de formas e procedimentos sociais, diz Austin, exige maior clareza

(op. cit., p. 69 e 70). Diga-se ainda que nem todas as declarações são descrições.

Por isso, Austin prefere a expressão constatativo, no lugar de descritivo (op. cit., p.

23 e 1 16).

(82) Idem, p. 85-94. A respeito do abandono definitivo da distinção consta-

tativos/performativos, ver a conferência 1 2, particularmente o que o autor diz na

página 122 da sua obra.

Fim da nata de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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amedrontar, intimidar, inibir novos abusos etc. Este efeito, produzido ou não,

depende de fatores outros que não são propriamente lingüísticos e cuio testemunho

só o endereçado da ordem pode dar. Está-se aqui no nívelperlocucionário, que

consiste em se obter certos efeitos pelo fato de se dizer algo. Mais importante, do

ponto de vista lingüístico, é o nível ilocucionário da linguagem, onde se encontra o

conjunto de atos que se realizam, específica e imediata- mente, pelo só exercício da

fala. Ao dizer advirto, além de anunciar a advertência, o juiz estará realizando a ação

prevista na norma geral e abstrata, como por exemplo na regra do artigo 599, 11, do

cPc.83

A partir deste novo paradigma, voltado para os efeitos provocados pelos atos de fala

nos sentimentos, nas atitudes e ações das pessoas, a lingüística desloca-se da

esfera do enunciado para o camp o da práxis simbólica. Embora se admita a

importância da função referencial da linguagem, é forçoso reconhecer também que o

as- pecto denotativo e cognitivo nem sempre é aquilo que mais interessa quando se

trata de saber como a ciência constrói seu objeto. Esta reflexão se mostra sobretudo

importante no campo das chamadas ciências praxeológicas, a exemplo da

dogmática processual, cujas teorias são muito mais um arsenal de lugares comuns,

topoi e con- dições retóricas de sentido do que propriamente um sistema de

princípios explicativos. Como registra Austin, não importa a realização do ato de

dizer algo (nível locucionário), mas sim o ato realizado ao dizer algo (nível

ilocucionário).84 A distinção, dentre outras coisas, denuncia a falácia descritiva

contida no imaginário da ciência neutra, desprovida de conteúdos ideológicos, pois

quando se afirma alguma coisa está-se conjuntamente realizando atos locucionários

e ilocucionários.

Raramente as mensagens verbais preenchem uma única função, vale dizer,

possuem um único sentido. As palavras têm de ser até certo ponto explicadas pelo

contexto em que são utilizadas na troca

Início da nota de rodapé

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(83) Nesse exato sentido, v. Carlos Vogt, op. cit., p. 21 e 22.

(84) J. L. Austin, op. cit., p. 89. A distinção, aliás, dá título à décima conferência de

Austin.

Fim da nota de rodapé

Página 295

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

lingüística (ao dizer X, estava fazendoY ou fizY). Por isso, mesmo diante de

sentenças constatativas, nem sempre se tem condições de dizer se determinada

asserção é falsa ou verdadeira. É que na vida real, diferentemente das situações

mais simples, consideradas na teoria lógica, há de levar-se em conta os fins, os

propósitos da afir- mação. O enunciado A França é hexagonal talvez seja

suficientemente claro para um general, mas não o será para um cartógrafo. Trata-se

de uma declaração esquemática, de uma descrição aproxi- mada e não de uma

descrição verdadeira ou falsa. O mesmo se passa quanto a dizer ou não a verdade,

na condição de parte, em um processojudicial, pois o que sejulga verdadeiro em um

tribunal pode não ser considerado do mesmo modo no mundo dos fatos reais.85

Início da nota de rodapé

(85) Exemplo disto é o caso do pai e da filha que movem, um contra o outro, ação

revisional de alimentos (na qual a filha figura como ré), e ação de execução de

alimentos (na qual o pai figura como executado). Na ação de execução, a filha,

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representada por sua mãe, declinou domicílio na Cidade de ltapecerica da Serra,

onde a genitora exerce o comércio, figurando como sócia com poderes de gerência

(arts. 98 e 100, 11, do CPC e art. 36, caput, do CC de 1916). Entretanto, citada por

hora certa na ação revisional, a menor suscitou a incompetência do Juízo da

Comarca de Itapecerica da Serra, alegando, para os fins previstos no art. 94 do

CPC, ser domiciliada em Curitiba, cidade na qual inclusive residia em companhia da

mãe, O autor requereu fosse a filha condenada como litigante de má-fé, pois faltara

com a verdade na ação de execução, ao declinar seu domicílio em Itapecerica.

Defendeu-se a menor, dizendo que já na época da propositura da ação de execução

de alimentos residia em Curitiba, local de onde sua genitora administrava a

empresa, valendo-se dos recursos da informática. Disse que abriu mão do foro

especial, na execução de alimentos, declinando domicílio na Cidade de Itapecerica,

porque nesta localidade sua mãe exerce atos de comércio. Seguiu-se decisão no

sentido de que, ainda que não se possa cogitar de pluralidade de domicílios (pois

não há de se falar em domicílio necessário daquele que pratica atos de comércio), e

muito embora não se justificasse a declaração de domicílio na Cidade de Itapecerica

da Serra, pois o foro especial é estipulado em favor de quem promove a execução

de alimentos (no caso, a filha), certo é que a exeqüente não abusou do seu direito

quando propôs a demanda no domicílio do pai, ainda que sob desnecessária e

ambígua justificação. Outrossim, está provado, por farta documentação, que a

menor reside mesmo, comojá residia, em Curitiba,

Fim da nota de rodapé

Página 296

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Em outros termos, os enunciados jurídicos tem de ser interpretados no nível

ilocucionário. Não basta o aspecto locucionário, a noção supersimplificada de

correspondência com os fatos. Quando a parte, ou seu advogado, faz uma

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afirmação nos autos, é necessário estabelecer, a propósito por exemplo da

aplicação do dispos- to no artigo 14, I, do cpc ou do disposto no artigo 34, XV, da Lei

8.906/94, a relação entre aquilo que foi dito e os diversos tipos de atos

ilocucionários. Em resumo, não basta saber o que a parte ou o advogado disse, mas

sim o que fizeram ao dizê-lo (uma petição, um protesto, um registro, um desafio,

uma exortação, uma reclamação, um desabafo, uma advertência, uma declaração,

uma descrição, um relato, uma interpretação, uma estimativa etc.).86

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

em companhia da mãe, foro competente para a ação revisional de alimentos — art.

94 do CPC (TJSão Paulo, 7. Câmara de Direito Privado, AI 2 1 1 .370-4/6, ReI. Julio

Vidal, . 3 1 . 1 0.200 1). Como diz Austin, é necessário entender que verdadeiro e

falso, assim como livre e não Iivre, não designam, de forma alguma, algo simples.

Tais palavras só representam uma dimensão geral de que, nas circunstâncias

dadas, em relação a um determinado tipo de ouvinte, para certos fins e com certas

intenções, o que foi dito era adequado ou correto, em oposição a algo incorreto.

Neste ponto, Austin deixa claro que não há aqui qualquer referência às teorias

pragmáticas de verdade, definidas por filósofos americanos como Peirce e William

James, segundo as quais, a grosso modo, o critério de verdade de uma sentença

são os resultados de sua aplicação prática. Tampouco se está sustentando um

ponto de vista utilitarista (verdadeiro é o que dá bons resultados). O que Austin

sustenta é que a verdade ou a falsidade de uma declaração não depende

unicamente do significado das palavras, mas também do tipo de atos que, ao proferi-

las, estamos realizando e das circunstâncias em que os realizamos (J, L. Austin, op.

cit., p. 1 19). O significado também não depende de ser falsa ou verdadeira a

expressão. Duas sentenças, com o mesmo sujeito e o mesmo predicado, uma

verdadeira e outra falsa, são contraditórias. Não obstante, pode ocorrer que as duas

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tenham sentido. O contexto dos fatos dirá qual delas é verdadeira e qual é falsa

(Alaôr Caffé Alves, op. cit., p. 355 e 356).

(86) Dispõe o artigo 14, I, do CPC: Compete às partes e aos seus procuradores

expor os fatos em iuízo conforme a verdade. Outrossim, dispõe o artigo 34, XV, da

Lei Federal 8.906/94: Constitui infração disciplinar fazer, em nome do constituinte,

sem autorização escrita deste, im-

Fim da nota de rodapé

Página 297

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Veja-se que a infelicidade não é atributo exclusivo dos proferi- mentos performativos,

aplicando-se também aos constatativos, às declarações. Por isso, a burocracia e a

justiça são muito ciosas do emprego de determinadas fórmulas tais como pelo

presente advirto, pelo presente declaro, pelo presente consigno. No dizer de

Austin,87 estas expressões introdutórias servem para indicar de maneira clara a

realização do ato de advertir, declarar, consignar, etc. Contudo, estes performativos

explícitos e altamente formais não são regra no direito. No mais das vezes, um certo

grau de ambigüi- dade e de vagueza faz parte do discurso jurídico. Há um vasto

leque de interpretações desse espaço retórico no campo do direito, que vão desde a

impostura, expressão da manipulação flagrante e grosseira promovida pelas

instituições burguesas, até o chamado realismo jurídico, sob cuja denominação

encontram-se as diversas vertentes do psicologismo (a exemplo do realismo

americano de Jerome Frank), da linguística e do culturalismo.88

O próprio curso da presente exposição deixa entrever o mecanicismo contido nas

leituras marxistas que reduzem o direito à pura

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Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

putação a terceiro de fato definido como crime. Austin, particularmente na sétima

conferência (aqui ainda na base da dicotomia constatativos/ performativos) e na

décima segunda conferência, tenta formular uma classificação de verbos com base

na sua força ilocucionária. Chega, assim, a cinco classes: veriditivos, exercitivos,

comissivos, comportamentais e expositivos, mencionando, com relação a cada um

deles, uma série de exemplos (Austin, op. cit., p. 77 a 83 e p. 121 a 132). Registra o

autor que uma teoria geral dos atos de fala haverá de prescindir da noção da pureza

dos performativos, com o que se desfaz a dicotomia há pouco mencionada.

(87) J. L. Austin, op. cit., p. 60.

(88) Q realismo psicológico representa uma das formas de superação da Escola da

Exegese, processo que se iniciou com as críticas que a Escola do Direito Livre

(Ehrlich e Zitelmann) e a Escola da Livre Investigação Científica (Geny) lançaram

contra ajurisprudência dos conceitos. O realismo psicológico, deixando de lado o

eiemento normativo e axiológico da experiência jurídica, acaba reduzindo o sentido

da norma à vontade do juiz. Este reducionismo implica a recusa do reconhecimento

de qualquer aspecto racional na elaboração das sentençasjudiciais, orientadas tão

só por fatores irracionais, sentimentos e preconceitos.

Fim da nota de rodapé

Página 298

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

dominação. Outrossim, o corte epistemológico que vem sendo delineado desde o

início do presente trabalho exclui considerações que estão no campo do

psicologismo. Não basta saber o que se passa no âmago do julgador, indagar dos

seus sentimentos e preconceitos. Esta análise é ainda parcial, pois substitui a mítica

da razão pelo subjetivismo do julgador. De outra forma, é preciso entender de que

maneira as partes e o juiz interagem no processo, na base de fórmulas tópicas

orientadas para a decisão. E apraxis, desenvolvida atra- vés de uma linguagem

intersubjetiva, que permitirá identificar os limites entre o uso normal e o uso abusivo

do direito de demanda. A verdade processual, tal qual sucedia na retórica clássica,

tem de ser procurada na alteridade, na relação entre os atores do processo. Os

critérios para distinguir ilícito e abuso estão no mundo da ação prática, pelo que a

significação do abuso processual somente pode ser mostrada e não demonstrada.

Hägerström, fundador do chamado realismo escandinavo, uma das correntes do

realismo lingüístico, sustenta, de um ponto de vista antimetafísico e empirista, que

certas categorias jurídicas, a exemplo do direito subjetivo e do dever jurídico, são

palavras ocas porque não podem ser identificadas com nenhum fato. Sem embargo,

devido a certas razões psicológicas (que não cabe aqui explicar) as pessoas têm a

ilusão de que esses conceitos estão ligados, de alguma forma mística e

sobrenatural, àrealidade. Vilhelm Lundstedt, partindo da investigações de

Hägerström, Iançou uma vigorosa crítica à teoriajurídica, também de um ponto de

vista da teoria refe- rencial do significado. Desqualificou o direito como ciência,

enveredando por uma análise psicologista da coação, a partir da qual busca explicar

o sentido social do direito subjetivo e do dever jurídico. Mas o que a análise da

chamada Escola de Upsala revela de significativo é que as categorias jurídicas,

destituídas de referência à realidade, cumprem determinadas funções na aplicação

do direito. Neste sentido se desenvolve a reflexão de Karl Olivecrona, que seguindo

as trilhas da filosofia analítica, mostra como determinadas palavras e conceitos

jurídicos acabani estimulando ações e atitudes.89

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Início da nota de rodapé

(89) Karl Olivecrona, Lenguajejurídico y realidad, Buenos Aires, Centro Editor de

América Latina S.A,, BuenosAires, 1 968 (Colección Filosofia

Fim da nota de rodapé

Página 299

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Com efeito, certos conceitos, apesar de não terem referência, dão a impressão de

transmitir informações acerca do real, estimulando ações, omissões, provocando

sentimentos. As chamadas palavras ocas, para usar a expressão de Hägerström,

cumprem im- portantes funções sociais, do que é exemplo a unidade monetária,

categoria que permite todo tipo de intercâmbio de bens e serviços.90 No campo

jurídico, a locução abuso do direito processual é típico exemplo de uma expressão

semanticamente vazia. A tentativa de buscar seu sentido em uma álgebra booleana

do tipo verdadeiro/ falso ou lícito/ilícito leva àquilo que Austin chamou de perplexi-

dade. A expressão abuso do direito não descreve nada. Em vão, seguem os

processualistas analisando-a como se fosse utilizada para descrever fatos. De outra

forma, é preciso reconhecer que, quando ojuiz declara abusiva uma determinada

conduta, está realizando um ato de criação. Aqui, dependendo do contexto, a

prestação jurisdicional pode inclusive transpor os limites objetivos da demanda, frus-

trando a expectativa das partes (art. 129 do CPC). Mas é necessário que o julgador

esteja atento às condições de uso dos proferimentos, que determinam o significado.

Não importa a verdade do que se passou no mundo fenomênico, contanto que o

editor da norma consiga legitimar o conteúdo da sentença que declarou abusiva a

con- duta das partes, garantido, assim, a eficácia do ato, aquilo que Austin

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Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

y Derecho, vol. 2), p. 20-59. Diga-se que o autor segue os lineamentos do

positivismo lógico, ao considerar que apenas as expressões que fazem referência à

realidade fática têm sentido. Mas é inegável que alguns enunciados metafísicos,

destituídos de base empírica, acabam justificando decisões judiciais de um ponto de

vista supostamente racional, como será visto no próximo capitulo.

(90) Assim funciona a economia e nunca ocorreu a quem quer que fosse perguntar

acerca dos supostos objetos designados pela palavra Real ou Libra. Como diz

Olivecrona, a função da palavra que designa a unidade monetária é técnica,

interferindo com outros conceitos que transcen- dem o aspecto semântico, a

exemplo do cheque, das letras de câmbio, dos contratos bancários etc. (Olivecrona,

op. cit., p. 37 e 38). A forma como os recentes planos econômicos brasileiros

interferiram na vida das pessoas, sob todos os aspectos, é a mais clara

demonstração do sigflificado das chamadas palavras ocas.

Fim da nota de rodapé

Página 300

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

conhece comofelicidade. De outra forma, corre-se o risco de criar uma questão

recorrente, onde as partes passam a acusar o juiz de abuso de poder ou, o que se

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revela ainda mais desagregador, passam a investir contra a própria autoridade

judicial.91

Ao lado do caráter mágico das formas e fórmulas processuais, que remontam aojogo

daprova, aojuízo das ordálias e ao juramento, expressões do processo arcaico tão

bem retratadas na Ilíada, como visto no segundo capítulo, é importante reconhecer o

caráter intersubjetivo das expressões jurídicas performativas, que transforma

simples ações do cotidiano, ou um jogo de palavras destituído de sentido, em

condutas juridicamente relevantes, das quais decorre uma série de conseqüências,

quando praticadas ou proferidas dentro de um determinado contexto. Embora não se

possa cogitar da verdade dos enunciados jurídicos, que não são analíticos e nem

podem ser comprovados empiricamente, é perfeitamente possível falar em uma

relação de conformidade do uso desses enunciados com regras jurídicas e sociais.

Os conceitos jurídicos, a exemplo do abuso dos direitos processuais, funcionam,

pois, como núcleos aglutinadores de sentido que operam paráfrases e redefinições

de um ponto de vista realizativo (para usar o neologismo empregado por Austin).

Desse ponto de convergência partem, em numerosas linhas, regras sobre

responsabilidade civil, responsabilidade penal etc. Sem esta perspectiva, seria

necessário construir numero- sas linhas diretas, numa espécie de teia de relações

de significado,

Início da nota de rodapé

(91) Tercio Sampaio Ferraz Jr., em sua pragmática da comunicação normativa,

reconhece aqui duas atitudes: a rejeição, que se coloca ainda no campo das regras

institucionais, desafiando soluções que podem ser encontradas no âmbito do

sistemajurídico, e a desconfirmação, que coloca em crise a própria autoridade e, por

via de conseqüência até mesmo o sistema (Teoria da Norma Jurídica: ensaio de

pragmática (da comunicação normativa, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 56 e 57).

Olivecrona considera que não há sentido na indagação acerca da verdade ou da

falsidade dos cnnceitos jurídicos, das chamadas palavras ocas. Importante, isto sim,

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é a crença das pessoas na realidade de um direito de propriedade, de um

deverjurídico, enfim, a crença na função informativa do discurso jurídico.

(Olivecrona, op. cit., p. 50 e 52).

Fim da nota de rodapé

Página 301

AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

o que dificultaria sobremaneira o consenso em torno de determinadas questões.92

O modelo epistemológico sugerido pela teoria dos atos de fala desemboca,

entretanto, em um dilema, pois propõe o exame dos pob1emas filosóficos na base

da análise do uso das palavras envolvidas nesses mesmos problemas, o que coloca

a teoria da ciência na rnira das críticas que ela se propôs a formular. Em outras

palavras, torna-se difícil a distinção entre a metalinguagem epistemológica (teoria

crítica da ciência) e a ciência empírica da linguagem, o que em última análise revela

a dificuldade em estabelecer a fundamentação última do pensar e do agir.93 Estas

reflexões têm um grau de

Início da nota de rodapé

(92) Karl Olivecrona, op. cit., p. 57 e 58. Alf Ross sugere a mesma imagem, em um

texto curioso, no qual procura reproduzir, na base da alegoria de uma tribo primitiva

(cujo suposto nome é o anagrama de fantasia, habitante de uma ilha cuja

denominação, por sua vez, é o anagrama de ilusão), o tema das chamadas palavras

ocas. Apresenta o caso como verídico, dizendo que a tribo fora descoberta por um

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missionário sueco, que ficou impressionado com o poder mágico das palavras

utilizadas pelos primitivos, capazes de desempenhar as mesmas funções da língua

natural, muito embora tais palavras (a exemplo de tû-tû, que dá nome ao texto)

fossem destituídas de qualquer referência semântica. Depois de esclarecer que tudo

não passava de uma fábula, diz que o tal missionário era uma alusão a Lundstedt, a

quem se deve o mérito de ter acentuado este poder operacional das palavras ocas

no campo do direito. A fonte de inspiração para a alegoria foi reconhecidamente a

analogia que Olivecrona estabelece entre essas palavras ocas e o pensamento

mágico primitivo. A partir daí, Alf Ross passa a analisar as diversas ligações que se

pode estabelecer entre cada um dos conceitos jurídicos, semanticamente

esvaziados, e uma pluralidade de consequências jurídicas, chegando à conclusão

de que aquelas cumprem, dentro da ciência jurídica, o objetivo de simplificar as

relaçõesjurídicas, a exemplo do que ocorre com núcleos significativos tais como

crédito, território, propriedade, os quais têm a rnesrna função da palavra tû-tû (Alf

Ross, Tû-Tû, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1 976). Ainda sobre o papel dos núcleos

significativos, v. Tercio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito —

técnica, (lecisão e dorninação, São Paulo, Atlas, 1988, p. 104-109.

(93) Esta questão é levantada por Danilo Marcondes de Souza Filho, Filosofia,

Linguagern e Comunicação, São Pauio, 1 984, p. 1 7, apud Manfredo Araújo de

Oliveira, op. cit., p. 169.

Fim da nota de rodapé

Página 302

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

refinamento do qual ainda não se aperceberam os juristas. Aliás, o problema do

conhecimento jurídico já se coloca no nível da relação ciência-objeto, que embora

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seja anterior à relação teoria da ciência-ciência, com ela muitas vezes se confunde.

E o que se vê, por exemplo, na Teoria Pura do Direito. Está claro, entretanto, que

uma teoria instrumental da linguagemjurídica sugere as mesmas dificuldades

enfrentadas por Austin, as quais abrem caminho para a análise dos pressupostos de

uma teoria processual dentro do agir comunicativo.

Página 303

5

A RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA DO ABUSO DOS DIREITOS

PROCESSUAIS

SUMÁRIO: 5. 1 A razão instrumental e os direitos absolutos — 5.2 A racionalidade

instrumental e as novas demandas sociais — 5.3 A retórica no campo da ação

estratégica e da ação comunicativa — 5.4 A possibilidade do agir comunicativo no

processo judicial.

5.1 A razão instrumental e os direitos absolutos

A discussão acerca do abuso do direito, desenvolvida pela dogmática jurídica, tem

nítida feição instrumental, que se insere no contexto do pensamento jurídico da

sociedade industrial como cálculo do dissenso generalizado, uma espécie de

désarmer dos conflitos sociais que se revelam como exprssão das contradições do

modo de produção capitalista. A chamada teoria do abuso do direi- to surge, assim,

no cenário das grandes cidades que integram o pro- jeto do controle econômico e

político da classe burguesa, vale di- zer, da classe dos capitalistas modernos, que

possuem os meios de produção social e os empregados assalariados. Com o

surgimento dos grandes centros urbanos — dizem Marx e Engels — a burguesia

coloca obstáculos cada vez maiores à dispersão da população, dos meios de

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produção e da propriedade, com o que promove a centralização política. Províncias

independentes, províncias com interesses, leis, governos e sistemas de impostos

separados foram aglomeradas em um bloco, em uma nação com um governo, um

código de leis, um interesse nacional de classe, uma fronteira e uma tarifa

alfandegária... A burguesia subjugou o país às leis das cidades. Criou cidades

enormes; aumentou em grande escala a população urbana,

Página 304

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

se comparada à rural, e assim resgatou uma considerável parte da população da

idiotia da vida rural. 1

O nascedouro dessa dominação legal é o ideário liberal-burguês do Estado de

Direito. Ajttstiça que os iluministas perseguem tem pontos de contato com a

concepção marxista. No Manifesto Comunista colhe-se a idéia de que os homens

são propensos à cooperação, desde que não submetidos a relações alienantes, O

proletaria- do, como classe universal, seria capaz de superar a sociedade de

classes, rumo à sociedade comunista, despida de qualquer forma de alienação. Para

Marx, a idéia de justiça excluía o direito posto, porque ele está submetido à estmtura

econômica. O direito, para serjus- to, tem de ser universalmente válido e etemo. De

outra forma, o direi- to posto é particular, realizando apenas interesses das classes

domi- nantes Vê-se, pois, implícita em Marx, a noção de um direito natural, que

também é o ponto de partida das elaborações iluministas.2

Início da nota de rodapé

(1) KarI Marx e Friedrich Engels, O manifesto comunista, Coleção Leitura, 3. ed, Rio

de Janeiro, Paz e Terra, 1998, p. 15 e 16.

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(2) Essa concepçãojusnaturalista do direito pode-se colher em diversas pas- sagens

do Manifesto, a exemplo daquela que se vê logo ao início, quando Marx e Engels

tratam dos burgueses e proletários. Há, entretanto, no mesmo Manisfesto,

fragmentos que parecem desautorizar essa interpretação, dando a entender que a

visão de um direito eterno é pura metafísica. Ao tratar, no segundo capítulo, dos

meios para conduzir o proletariado à condição de classe governante, os autores

assim se expressam: Sem dúvida, dir-se-ia, as idéias religiosas, morais, fiiosóficas e

jurídicas foram modificadas no curso do desenvolvimento histórico. Mas a religião, a

moralidade, a filosofia, as ciências políticas e a Iei sobreviveram, com firmeza, a esta

mudança. AIém disto, existem verdades eternas como a liberdade, a justiça etc., que

são comuns a todos estados da sociedade. Mas o comunismo proscreve as

verdades eternas, proscreve toda religião e toda moralidade, em vez de constituí-las

sobre uma nova base. Portanto, age em contradição a todas as experiências

históricas do passado (Marx e Engels, op. cit., p. 40 e 41). O certo é que não há, nas

obras de Marx, uma refiexão mais detida sobre o direito. Ao que se vê, na Crítica ao

Prograina de Gotha, por exemplo, Marx se volta con- tra o direito burguês. Como

sustenta Alan Stone (The place oflaw in the marxian structure-superestructure

archetype, in Law & Sociely Review, Colorado, vol. 19, ed. 1, 1985, p. 39-67), há

interpretações economicistas

Fim da nota de rodapé

Página 305

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

Em Rousseau, quer no Contrato Social3 quer na Origem da Desigualdade,4

defende-se a tese de que o homem nasce livre e depois, com o surgimento da

propriedade, que traz consigo as desigualdades, acaba tendo de outorgar ao Estado

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seus direitos naturais, como forma de garantir suas liberdades, o qual os devolve em

for- ma de direitos civis. Embora Rousseau considerasse a democracia uma forma

utópica de governo,5 nele se inspirou a idéia do Estado Democrático de Direito,

fundado no respeito à Iei, como expressão da razão humana manifestada pela

vontade geral, e na independência do juiz. Mas se é certo que a distribuição

antissocial da proprie- dade privada, tão bem retratada na descrição que Rousseau

fez das ruas de Montpellier — bordejadas de soberbos palácios e de choças

miseráveis, cheias de barro e de esterco — leva ao reconhecimento da necessidade

de recompor o contrato social, não menos certo é também que na Revolução, uma

vez vitoriosa, predominou o es- pírito reformista da burguesia, sem espaço para a

idéia de justiça social.

Intensificou-se, assim, o movimento de codificação, processo que se cristalizou na

edição do Código de Napoleão (1804) e do

Início da nota de rodapé

acerca da visão que Marx e Engels tinham do direito. Em muitas passagens do

Prefácio da críticcl ò Economia Política, lê-se que os elementos da superestrutura

estão separados da base econômica. Neste exato sentido, ver também a posição de

Engels, na carta que escreveu a J. Bloch, datada de 2 1 /22 de setembro de 1 890,

nas cartas endereçadas a Starkenburk (25 dejaneiro de 1894), e a Conrad Schmidt

(27 de outubro de 1890), bem como na missiva endereçada a Franz Mehring, em 14

dejulho de 1 893 (Marx/Engels, Obras Escolhidas, vol. 3, São Paulo, Alfa-Omega,

s.d., p. 284-285). A propósito do tema, ver também Roberto Lyra Filho, Karl, ineu

amigo: diálogo com Marx sobre o Direito, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor,

1 983 (particularmente importante é a síntese desenvolvida na página 70, onde o

autor enumera as razões da decepção de Marx em relação ao direito).

(3) Jean-Jacques Rousseau, Contrato Social, Bauru, Edipro, 2000 (Coleção

Princípios de Direito Positivo), Livro 1, p. 25-43.

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(4) Jean-Jacques Rousseau, E1 origen de Ia desigualdad, México, Fondo de Cultura

Económica, 2.000, Primeira Parte, p. 5-44.

(5) Rousseau, Contrato Social, Livro 111, Capítulos 111 e IV, p. 85-90.

Fim da nota de rodapé

Página 306

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Código Alemão (1896), ambos orientados por uma espécie de de- formação da

Escola Histórica, que prescindindo de toda a historicidade do direito, pôs a tônica no

aspecto sistemático, do que é prova a preocupação de Savigny, ao reunir sob forma

ordenada os textos do direito romano. Paulatinamente, acentuou-se também o

individualismo, marca comum ao liberalismo político e ao liberalismo econômico, nos

quais só há espaço para uma liberdade negativa, como já se acentuava no primeiro

capítulo (seção 1.3). Corolário do egoísmo liberal-burguês é a noção de direito

subjetivo, havida como poder de impor aos demais o respeito à vontade do sujeito

jurídico. Não tardaram a surgir respostas a esta concepção, a princípio tímidas, na

base dos conflitos meta-individuais de vontades e interesses, como se vê em Léon

Duguit.6 Mas mesmo sob esta ótica — orientada para uma filosofia do sujeito, na

qual historicamente se alternam a transcendência dojusto (jusnaturalismo) e a

imanêncía dojusto (relação homem-consciência) —já começa a se esboçar a idéia

de uma liberdade-função para substituir a liberdade-direito.7

É nesse contexto, como acima delineado, que ressurge a discus- são acerca do

abuso do direito, agora orientada por uma visão inter- subjetiva, que tem em conta a

alteridade, a existência não só do outro, mas da sociedade, de forma que não se há

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mais de indagar de uma intenção de prejudicar (aemulatio). As necessidades do

homem ultrapassam a esfera daquilo que é simplesmente físico ou fisiológico para

se inscrever no campo cultural. Paralelamente, o interesse juridicamente protegido,

com as repercussões que o conceito tem no campo processual, ganha uma

dimensão política, que diz com o direito de estar em juízo, provocando a tutela

jurisdicional do Estado, o que também exige dos atores processuais a consciência

da inter- subjetividade, e mais, dos deveres impostos pela convivência social. Ocorre

que a essa razão ética contrapõe-se uma razão funcional,

Início da nota de rodapé

(6) Léon Duguit sustenta que não se pode cogitar da noção de direito subje- tivo, de

ordem metafísica, mormente em uma época de realismo e positivismo filosófico (Las

transformaciones del derechoprivado, Buenos Aires, Heliasta, 1975, p. 173-176).

(7) Idem, p. 189.

Fim da nota de rodapé

Página 307

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

que tem um substrato muito mais sociológico do que propriamente ontológico ou

epistemológico.8

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Aquela razão libertária dos iluministas, voltada à emancipação do homem, por um

paradoxo, conduziu a humanidade a um cres- cente processo de dominação, que se

faz através de uma razão tec- nocrática, totalitária, como denuncia Max Horkheimer

em Eclipse da Razão.9 Ao lado dessa razão instrumental está a razão crítica, como

desenvolvida pelos filósofos da chamada Escola de Frankfurt, dentre eles

Horkheimer, que vê na superação dos diversos modelos de racionalidade (antiga,

medieval, moderna) o movimento dos conflitos, das contradições sociais e políticas

de cada época. A razão não determina a sociedade. De outra forma, é a sociedade,

fruto de uma evolução histórica contínua, que determina e condiciona a razão. Com

isto, os adeptos da teoria crítica afastam tanto o idealismo proclamado em nome de

um espírito absoluto quanto o naturalismo contido na noção de uma natureza

absoluta. Em outras palavras, a tensão entre razão subjetiva e razão objetiva, entre

sujeito e objeto, que se revela na filosofia tradicional desde Platão às ciências

modernas, ao mesmo tempo em que mostra a indiferença do pensamento tradicional

à dimensão histórica dos fenômenos, dos indivíduos e da sociedade, aponta —

agora de uma perspectiva críti- ca — para a necessidade de resgatar a razão

iluminista, vale dizer, a esfera da realização da autonomia e da autodeterminação do

homem.10 Trata-se, assim, de refazer o caminho que levou à deformação do

Início da nota de rodapé

(8) José Ferrater Mora, Diccionario de Filosofía, vol. IV, 5. ed., 1986, Madrid,

Aiianza, p. 2785.

(9) o texto, publicado inicialmente em inglês (1947), foi inserido em uma obra mais

abrangente, editada na Alemanha sob o titulo Crítica da Razão instrumental (1967).

Há tradução em espanhol, com este mesmo título. A exposição que se segue tem

em conta a tradução brasileira (Max Horkheimer, Eclipse da Razão, São Paulo,

Centauro Editora, 2000).

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(10) Horkheimer, op. cit., p. 1 70- 1 87. Como observa Barbara Freitag, na in-

terpretação de Horkheimer, a teoria tradicional preocupa-se em formar sentenças

que definem conceitos universais. Para tanto procede na base da lógica formal,

defendendo o principio da identidade, da contradição e do terceiro excluído. É a

tradição de Descartes aplicada às ciências

Fim da nota de rodapé

Página 308

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

saber produzido pelo iluminismo, e de indagar, nos limites do presente trabalho,

sobre as repercussões da razão instrumental no campo do direito e do abuso do

direito, mormente numa época em que a ética da eficiência e o desterro dos valores

da tradição acabam por reduzir as questões da justiça, da eqüidade e do bem

comum à relação meio-fim, própria das sociedades utilitaristas.

O movimento de codificação, que se iniciou com o Estado Moderno, coincide com a

necessidade de garantir a crença nos valores fundamentais, proclamados pela

civilização burguesa. Com a era industrial, o individualismo, aquilo que é particular,

acabou por assumir o papel antes desempenhado por aqueles princípios universais,

que se diziam fundados na razão objetiva.11 A lógica da reprodução ampliada

acabou por interferir sensivelmente nas condições de vida daquela legião de

pessoas atraídas para os grandes centros urbanos. Assim, a pretexto de garantir o

contrato social, numa sociedade marcada por acentuados contrastes e diferenças,

desenvolveu-se um processo de regulamentação generalizada da vida, que acabou

rompendo com aqueles preceitos do direito natural, nos quais se fundavam os

chamados direitos civis do Estado Liberal burguês.

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Início da nota de rodapé

modernas, em que os fatos se tornam casos singulares, exemplos ou concretizações

do conceito ou da lei gerai. De outra forma, para a teoria critica, é certo que existem

conceitos gerais, a exemplo das categorias marxistas mercadoria, valor, dinheiro,

acumulação etc., com as quais Horkheimer inicialmente trabalha. Todavia, a relação

entre realidade e conceitos não é, por isso mesmo, análoga à que existe entre casos

particulares e uma categoria ou espécie. Mais que isto, a esta relação não se aplica

simplesmente os elementos da lógica formal. A teoria crítica procura integrar um

dado novo ao corpo teóricojá elaborado, relacionando-o sempre com o

conhecimento quejá se tem do homem e da natureza naquele momento histórico.

Ou seja, na base do conceito geral de troca simples de mercadoria, por exemplo,

procura mostrar, a partir de novas pesquisas, próprias e alheias, como a economia

de troca nas condições atualmente dadas conduz necessariamente ao agravamen-

to das contradições na sociedade, o que leva a guerras e revoluções (Barbara

Freitag, A teoria crítica: ontem e hoje, São Paulo, Brasiliense, 1986, p. 38-39).

(11) Horkheimer, op. cit., p. 28 e 29.

Fim da nota de rodapé

Página 309

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

Paralelamente à arbitrária redução do conteúdo da razão iluminista, reduziu-se

também a esfera da liberdade das pessoas. A razão objetiva, antes ocupada em

preencher a função intelectual que de- sempenhava a religião — esta destronada

pelos revolucionários — perdeu sua autonomia, cedendo lugar para uma razão

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formalizada, cujo caráter operacional tornou-se único critério de avaliação. Assim, na

chamada sociedade de massas a razão subjetiva e o utilitarismo perverso

substituíram as raízes intelectuais dos valores inspirados na justiça, igualdade,

felicidade, tolerância, pela funcionalidade dos significados. Se o conceito de verdade

é significativo, só o é em função de suas conseqüências. O direito, a arte e a religião

foram apartados da verdade à medida que se tornaram algo inteira- mente

aproveitado no processo social.12

Enfim, nada vale por si mesmo e nenhum objetivo como tal é melhor que o outro.

Destas razões superiores da funcionalidade o pensamento moderno tentou extrair

uma filosofia, tal como se apresenta no pragmatismo de William James. Nele, a

razão subjetiva apresenta um caráter instrumental. No lugar de conceitos analíti-

cos, buscam-se simples abreviações de itens aos quais o conceito se refere, meros

auxiliares do processo produtivo. Assim, quanto

Início da nota de rodapé

(12) Horkheimer, op. cit., p.29 3 1 , 32, 39,44,48, 49, 50e 176. MaxHorkheimer trata,

neste ponto, da reificação. O conceito, originalmente utilizado por Marx quando

¿studa a mercadoria, designa o processo pelo qual o caráter humano das relações

sociais permanece oculto, apresentando-se, na sua aparência, àqueles que

participam dessa relação, como algo totalmente independente de suas vontades.

Segundo Horkheimer, a origem desse processo deve ser buscada nos começos da

sociedade organizada e do uso de instrumentos. Contudo, a transformação de todos

os produtos da atividade humana em mercadorias só se concretizou com a

emergência da sociedade industrial. As funções outrora preenchidas pela razão

objetiva, pela religião autoritária ou pela metafísica têm sido ocupadas pelos

mecanismos reificantes do anônimo sistema econômico (Horkheimer, op. cit., p. 48).

Para melhor compreensão teórica do conceito de reificação, ver Karl Marx, Capital

— A critique of Political Economy, vol. 1 (Oprocesso deprodução do capital),

Moscow, Progress Publishers, 1977, Parte I, Capítulo I, Seção 3, D, p. 75, e KarI

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Marx, op. cit, vol. 3 (Theprocess of capitalista production as a whole), Parte vI,

Capítulos XL a XLVII, p. 614-813.

Fim da nota de rodapé

Página 310

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

mais as idéias se tomam automatizadas, instrumentalizadas, menos as pessoas

vêem nelas pensamentos com um significado próprio. São consideradas como

coisas, máquinas. A razão subjetiva também serviu, sob outro aspecto, ao

desenvolvimento do positivismo moderno, do fisicalismo, onde a linguagem aparece

apenas como mero instrumento no gigantesco aparelho de produção da sociedade

moderna. Para a filosofia analítica, herdeira das elaborações do positivismo lógico,

as sentenças performativas, ainda que não tenham significado do ponto de vista dos

proferimentos constatati- vos, revelam um sentido ligado a sua operacionalidade.13

Precisamente neste ponto é que se pode colher a relevância estratégica de um

direito descolado da realidade, das tradições e dos valores.

Se é certo que a sociedade do século XX está enredada por teias organizacionais,

fruto da burocracia crescente das economias planificadas e do dirigismo econômico,

certo também é que a razão instrumental assume, nesse cenário de desumanização

do pensamento e de atrofia da capacidade crítica, um importante papel de homo-

geneização de conteúdos, que se revela na esfera do direito através da noção de

uma justiça social ampliada, própria do welfare state, do chamado Estado

Providência. O direito, nos quadros de uma sociedade utilitarista, é posto por

decisão, legitimando-se através de procedimentos que se revelam na eleição dos

governantes, na votação das leis, na solução judicial dos conflitos. Trata-se de

decisões técnicas, que variam na dependência dos fins e do resultado, cuja validade

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está diretamente relacionada ao bom desempenho do sistema jurídico. Essa

tecnicização do direito, que se opera nas

Início da nota de rodapé

(13) Horkheimer, op. cit., p. 29, 30 e 49. A propósito das funções da linguagem, ver o

que foi dito no capítulo anterior, na base das idéias do segundo Wittgenstein, de

Charles Stevenson e de Austin. Para Horkheimer, a funcionalização da linguagem

acaba com a distinção entre pensamento e ação. Todo pensamento ou palavra se

transforma em instrumento. Como nos tempos da magia, cada palavra é

considerada uma força poderosa que pode destruir a sociedade e pela qual aquele

que fala deve ser responsabilizado (idem, p. 31). A propósito da operacionalidade

jurídica que se retira deste caráter mágico das chamadas palavras ocas, ver o que

foi dito, na base de AIf Ross e Olivecrona, no capítulo anterior (seção 4.4).

Fim da nota de rodapé

Página 311

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

mãos de engenheiros,14 não pode recusar, entretanto, um certo contato com a

razão objetiva.

É fato que nas sociedades pragmáticas do século XX tudo é posto por decisão.

Mesmo os fundamentos desta decisão são também postos, o que faz pensar,

sobretudo na esfera das correntes forma- listas do direito, que o sistemajurídico está

fundado em verdadeiros axiomas. Contudo, os engenheiros têm de manter um certo

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controle sobre essas estruturas de poder, o que a simples ética instrumental muitas

vezes não está em condições de prover. Opera-se, assim, uma passagem da razão

objetiva para a razão subjetiva, com ligeiras adaptações, que visam a facilitar a

pragmatização da vida e a formalização do pensamento. No dizer de Horkheimer —

referindo-se, nesse passo, às relações entre filosofia e religião 15— as adaptações

da filosofia absoluta à sociedade pragmática preenchem uma função útil para os

poderes constituídos. Assim, por exemplo, a humanização do positivismo francês, na

base da idéia de solidariedade, inspirada no racionalismo cognitivista da ilustração,

cumpre determinadas funções sociais. Os reflexos de uma tal adaptação, no campo

do direito, podem ser encontrados no conceito de consciência jurídica coletiva,

desenvolvido por Léon Duguit, noção que orientou várias gerações de juristas, na

tentativa de rever a teoria do abuso do direito no contexto da sociedade de massas.

A partir da metade do século XX, como foi visto no primeiro capítulo (seção 1 .4),

alguns autores buscam fundamentar uma teoria

Início da nota de rodapé

(14) Para Horkheimer, engenheiros seriam todos os técnicos e profissionais que

compõem a moderna tecnocracia, a exemplo dos industriais, administradores,

políticos etc. (Horkheimer, op. cit., p. 156). Assim como Platão queria transformar os

filósofos em governantes, os tecnocratas querem transformar os engenheiros em

componentes do quadro de diretores da sociedade (idem, p. 66). O engenheiro não

está interessado em compreender as coisas por si mesmas ou em função do en-

tcndimento em si mesmo, mas sim em função de ajustá-las dentro de um esquema...

A mente do engenheiro é a mesma mente do industrial em forma tecnológica. O seu

comando decidido transformará os homens num conjunto de instrumentos sem

objetivos próprios (idem, p. 152-153).

(15) Horkheimer, op. cit., p. 68 e 69.

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Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

objetiva do abuso do direito, desligada da concepção individualista da aeinttlatio

(que ainda sobrevive no século xvIII, como forma de contornar o egoísmo dos

direitos absolutos), utilizando-se, para tanto, da idéia de uma consciência jurídica

coletiva, que ora se revela na noção de princípios gerais de direito ora em preceitos

extraídos das opiniões culturais dominantes.16 A consciência, como categoria

filosófica, é a mais viva expressão do racionalismo. Entretanto, numa sociedade

premida pela industrialização e urbanização crescentes, não são mais os fatos

interpretados a partir de uma abstração qualquer. Ao inverso, os conceitos passam a

ser elaborados para atender às necessidades ditadas por uma ética da eficiência.

Assim, a idéia da consciência mesma, de um dado apriori que condiciona a

experiênciajurídica, passa por algumas reformulações.

Em verdade, as primeiras elaborações acerca de uma consciência coletiva surgem

com Durkheim, que desenvolve um naturalismo social fundado na metodologia

positivista. Sob este enfoque, os fatos sociais são tratados como se fossem coisas,

que têm de ser estudadas a partir dos mesmos métodos, de natureza empírica,

aplicados às ciências físicas e às ciências naturais.17 Todavia, Durkheim não é

propriamente um materialista. Na sua concepção, a sociologia deve voltar os olhos

não apenas para as formas materiais, mas também para os estados psíquicos. E por

meio de suas consciências que os homens estabelecem relações. Depois de afastar

uma interpretação psicofisiológica da vida mental, Durkheim sustenta que a

consciência coletiva não é simples somatório das

Início da nota de rodapé

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(16) A propósito, ver as elaborações de Mario Rotondi (Instituiciones de Derecho

Privado, México, Editorial Labor, S.A., 1953, p. 99-101), de Roberto Goldschmidt (A

teoria do abuso do direito e o anteprojeto bra- sileiro de um código de obrigações, in

Revista Forense, vol. 97, Ano 4 1, fasc. 487, janeiro de 1 944, p. 27-30), de Paulo

Dourado de Gusmão (Pressupostos filosóficos da noção de abuso do direito, in

Revista Forense, Rio de Janeiro, voi. 1 20, Ano 45, fasc. 545, p. 374-377), de Martín

Bernal (Elabuso delderecho, Madrid, Editorial Montecorvo, S. A., 1 982, p. 1 43) e de

Luis Alberto Warat (Abuso del derecho y lagunas de la ley, Buenos Aires, Abeiedo-

Perrot, 1969, p. 60, 66 e 83).

(17) Émile Durkheim, As regras do método sociológico, 10. ed., São Paulo. Nacional,

1982, cap. 2, p. 13-40.

Fim da nota de rodapé

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

consciências individuais. O ato humano tem valor porque visa a uma finalidade

superior ao indivíduo. Daí porque a sociologia não pode ser confundida com a

psicologia.18 Léon Duguit, embora

Início da nota de rodapé

(18) Para Durkheim, o conhecimento daquilo que se passa nas células cerebrais não

constitui a chave das representações individuais. A demonstração desta assertiva

pode ser feita tomando como exemplo a faculdade da memória. Segundo os que

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defendem tratar-se de simples fenômeno físico de retenção, certa idéia pode deixar

de existir, mas a impressão orgânica que precedeu essa representação não

desapareceria completamente. Restaria uma certa modificação do elemento

nervoso, que o predisporia a vibrar de novo. Mas se o passado, tudo aquilo que

sobrevive no curso dos anos, tal como os hábitos, preconceitos, tendências, não é

senão um fenômeno orgânico, está claro que, alteradas as condições físicas,

desfeitos os elementos nervosos em que se baseia determinada representação, as

próprias idéias desapareceriam. Em verdade — dirá Durkheim — as coisas não se

passam bem assim, como demonstram os próprios fatos. Se as representações

desaparecessem totalmente, desde que saíssem da consciência atual, se

sobrevivessem apenas sob a forma de um vestígio orgânico, as semelhanças que

pudessem ter com uma representação surgiriam do nada, uma vez que não pode

haver nenhuma similaridade, direta ou indireta, entre esse vestígio, do qual se

admite a sobrevivência, e o estado psíquico agora considerado. Durkheim

prossegue, tratando do inconsciente — o que não interessa aqui desenvolver —

para depois afirmar que o conhecimento do que se passa nas consciências

individuais não constitui a chave das representações coletivas. A consciência

coletiva é a resultante das consciências individuais, que as ultrapassa, contudo,

assim como o todo ultrapassa a parte. Eis aí como o fenômeno social não depende

da natureza pessoal dos indivíduos. Neste ponto, o sociólogo positivista combate —

no seu próprio modo de dizer — tanto a metafísica materialista (explicação do

complexo pelo simples, do todo pela parte) como a metafísica idealista (que faz

derivar a parte do todo, vale dizer, que retira do nada, do todo sem a parte, aquilo de

que a parte necessita para existir). A teoria política e moral desenvolvida por

Durkheim guarda as impressivas marcas desta particular maneira de conceber a

relação entre o individual e o coletivo: a vida coletiva não é mais vista como

epifenômeno da vida individual, assim como a representação indivi- dual não é mais

vista como epifenômeno da vida física. E isso porque a personalidade coletiva é algo

mais que a totalidade dos indivíduos que a compõem. A moral começa, portanto,

onde começa a vida em

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

fiel à metodologia positivista, dá à noção de consciência coletiva interpretação

diversa.

Partindo do conceito durkheimiano de solidariedade, Léon Duguit sustenta que ela

está fundada no sentimento de sociabilidade e no sentimento de justiça, realidades

recolhidas a partir da observação dos fatos. Para ele, a formulação de Durkheim é

causalista, visto que, embora a norma social resulte do fato, assim como a lei

biológica resulta do organismo vivo, certo é que os indivíduos, aos quais a primeira

se aplica, têm consciência de seus atos. Não bastasse, a norma social cumpre uma

finalidade.9 Léon Duguit entende

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

grupo. Diga-se mais: se existe uma moral, um sistema de obrigações, é preciso que

a sociedade seja uma pessoa moral qualitativamente distinta das pessoas

individuais. Poderá ocorrer, no entanto, que a par da moral constituída, que se

mantém pela força da tradição, novas tendências surjam. A ciência dos costumes

permite tomar partido entre elas, porquanto é possível que os velhos costumes

correspondam a um esta- do de coisas que desapareceu, ou que está prestes a

desaparecer, situação em que as idéias novas passam a representar as mudanças

ocorridas nas condições da existência coletiva. O homem não é, pois, obrigado a

submeter-se docilmente à opinião moral. Entretanto, de forma alguma poderá aspirar

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a uma moral diferente daquela que é exigida pelo estado social (Emile Durkheim,

Sociology and Philosophy, New York, The Free Press, 1974, p. 4-6, 12,13,24,27, 29,

32, 51,52,60 e 61).

(19) Léon Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, troisième édition, Paris, Ancienne

Librairie Fontemoing & Cia, Editeurs, tome premier, 1927, p. 66, 67, 78, 79, 82 e 84-

89. A crítica de Duguit procede, do que são prova algumas passagens da obra de

Durkheim: Nada pois de mais estranho que o desprezo com que nos censuram,

algumas vezes por um certo materialismo. Muito pelo contrário, do ponto de vista em

que nos colocamos, se chamamos de espiritualidade a propriedade distintiva da vida

representativa no indivíduo, deveremos dizer, com relação à vida social, que ela se

define por uma hiperespiritualidade; entendemos com isso que os atributos da vida

psíquica aí se encontram, mas elevados a uma potência bem mais alta, constituindo

algo de inteiramente novo. Apesar de seu aspecto metafísico, a palavra não designa

nada mais que um conjunto de fatos naturais, que devem ser explicados por causas

igualmente naturais. Mas ela nos indica que o mundo novo que assim se abre à

ciência ultrapassa todos os outros em complexidade; que não é simplesmente uma

forma ampliada dos reinos inferiores, mas que nele

Fim da nota de rodapé

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

também que os grupos sociais não são distintos das vontades individuais que os

compõem. A crença na existência de uma vontade coletiva superior às consciências

individuais, e a elas irredutível, só pode estar fundada em um princípio superior, em

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uma concepção metafísica. Assim, se o causalismo, por um lado, desconsidera a

evidente diferença entre fatos sociais e fatos físicos, a crença em uma vontade

sobrenatural, por sua vez, desconsidera os valores que cada indivíduo tem.20

Não faltou quem reconhecesse nas elaborações do jurista francês o mesmo viés

metafísico por ele identificado nas teorias de Durkheim. Para François Geny — cujas

críticas foram expostas pelo próprio Léon Duguit, em seu Tratado — a noção de

sentimento de sociabilidade e de sentimento dejustiça é um conceito a priori, que

recorre a princípios superiores da razão pura, com o que se garante a passagem do

fato à norma. Duguit responde às objeções dizendo que a interpretação de Geny,

sim, está fundada em pressupostos metafísicos, deixando entrever que o sentimento

de justiça e o sentimento de sociabilidade, dois elementos que concorrem para a for-

mação da massa dos espíritos, teriam um sentido hegeliano, idealista. As críticas —

segundo a réplica de Duguit — partem de um mal entendido. A justiça não é um

ideal racional, absoluto, revelado pela razão humana, o que não impede dizer que

todos tenham pelo menos uma idéia aproximada do justo.21

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

há forças das quais ainda não suspeitamos e cujas leis não podem ser descobertas

exclusivamente pelos processos de análise anterior (Sociology and Philosophy, New

York, The Free Press, 1 974, p. 34).

(20) Léon Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, troisième édition, Paris, Ancienne

Librairie Fontemoing & Cia, Éditeurs, tome premier, 1927, p. 82-89.

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(21) Idem, p. 75-77, 80-82 e 116-121. Miguel Reale, a propósito da noção de massa

dos espíritos, diz que o conceito revive a idéia de espírito do povo de Savigny, um

retorno ao eu coletivo de Rousseau (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1. ed., São

Paulo, Saraiva, 1986, p. 447). Embora Duguit insista em que os princípios que

fundamentam o direito são consagrados pela sociedade, não resultando apenas da

natureza humana, entende-se — no dizer de Miguel Reale — que suas elaborações,

longe de uma construção puramente naturalistica e positivista do direito, acabam

Fim da nota de rodapé

Página 316

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Bem se vê que a noção de consciência coletiva — quer resultante ou não da

combinação das consciências individuais — evocando a idéia de uma faculdade

originária, não advinda da experiência, está muito próxima do

racionalismojusnaturalista.22 Como bem o disse Horkheimer, os direitos do

indivíduo, expressão da racionalidade humana, concebida como conjunto de

percepções intelectuais fundamentais, inatas ou desenvolvidas pela especulação,

conquistaram gradativamente o primeiro plano nas sociedades industriais, com a

conseqüente supressão de outras categorias fundamentais no universo da razão

objetiva. Mas o mesmo processo trouxe à superfície as contradições entre esses

direitos absolutos e a idéia de nação. A lógica de uma razão formalizada não pode

conviver com as conseqüências anárquicas do individualismo exacerbado. Isto

explica por que a crise da razão objetiva representa também a crise do indivíduo.23

O recurso a uma cons- ciênciajurídica coletiva, ao mesmo tempo em que resgata

noções

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readaptando, com roupagens novas, velhas teses da concepção metafí- sica do

direito. De fato, não há como refutar, na teoria de Duguit, a aproximação cada vez

maior a certas doutrinas que exageram a contribuição de certas forças irracionais

(Miguel Reaie, op. cit., p. 452).

(22) Não deixa de ser significativo, neste sentido, que um autor de inclinação

jusnaturalista, como Giorgio DeI Vecchio, tivesse sustentado, na virada do século

xIx, uma tal idéia de consciência coletiva, como sentimento do justo e do injusto.

Para o jurista e filósofo italiano, a consciência coletiva mais não é senão a evolução

de uma forma espontânea e irrefletida da elaboração do direito (que fixa regras de

convivência de maneira difusa, em bases tácitas) para uma fase de elaboração

deliberada, reflexiva e consciente. A evolução jurídica dá-se através da passagem

de motivos psicológicos inferiores, impulsos imediatos e instintivos, como são o

medo, a agressividade, para motivos psicológicos superiores, a exemplo do respeito

e da solidariedade, com o que se Iimita o arbítrio individual. Por isso, o direito é fato

do espírito humano, resultante de estratégias de persuasão, pelas quais se

estabelecem a obediência e o consenso geral (DeI Vecchio, Lições de Filosofìa do

Direito, 2. ed., Coimbra, Arménio Amado Editor, 1 95 1, p. 22 a 24; 130, 285, 297,

383-386, 394 e 395; DelVecchio,Ajustiça, São Paulo, Sarai- va, 1960, p. 73 e 74).

(23) Horkheimer, op. cit., p. 29.

Fim da nota de rodapé

Página 317

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

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como justiça, igualdade e democracia, permite entrever — de uma perspectiva

crítica — o quão triviais se mostram esses slogans, cuja vacuidade se revela assim

que se busca indagar do seu significado específico na sociedade de massas.24

Quando as grandes concepções filosóficas estavam vivas — observa Horkheimer —

as pessoas não exaltavam o amor fraternal, a justiça e a humanidade porque era

realista manter tais princípios, extravagante e perigoso desviar-se deles. Como nos

jogos infantis e nas fantasias de adultos, os homens acreditavam numa verdade

suprema, que aos poucos foi sendo esvaziada de seu conteúdo objetivo, em nome

de necessidades artificiais, que são confundidas com utilidades.25 Não por acaso,

as primeiras concessões a uma concepção individualista do abuso do direito, como

foi visto no primeiro capítulo (seção 1 . 3), têm em conta a conformidade do exercício

do direito a sua finalidade econômica. O progresso tecnológico e a inserção das

ciências no processo de produção do capitalismo industrial geram novas

expectativas sociais. Dentro deste quadro, o fetiche da verdade ontológica, que fazia

parte do lúdico, do imaginário coletivo, foi substituído por uma verdade

procedimental, própria das organizações burocráticas, de início fundada em um

princípio metafísico, como se vê no positivismo metodológico, e mais tarde em um

pacta sunt servanda, como é próprio do jusnaturalismo implícito das teorias

baseadas em um consenso ético.

Início da nota de rodapé

A indagação que orienta as reflexões finais do presente traba- Iho prende-se

precisamente à possibilidade de conciliar o princípio constitucional da

inafastabilidade da jurisdição com a garantia da efetividade do processo de um

ponto de vista ético. Em outras palavras, trata-se de saber se ainda existe na

sociedade pragmática, orientada por um procedimentalisrno que faz do respeito às

próprias regras o critério último de aplicação dajustiça, espaço para um significado

que não se revele apenas na dimensão da sua utilidade, lugar para um processo

judicial que longe de ser a expressão de um

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Início da nota de rodapé

(24) A propósito dessas idéias, v. Horkheimer, op. cit., p. 40, 155-159.

(25) Horkheimer, neste ponto, trata da perda de conteúdo dos conceitos, dis-

correndo também sobre o padrão utilitarista (op. cit., p. 34, 40-44).

Fim da nota de rodapé

Página 318

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

instrumentalismo orientado pela relação meio-fim, seja ele próprio um momento de

integração entre os diversos atores sociais, interagindo comunicativamente. Em

resumo seria de se indagar se uma revisão crítica da teoria dos abuso dos direitos

processuais — longe de rejeitar a razão subjetiva em nome de um individualismo

histori- camente obsoleto, que leva ao desprezo pelas massas, ao cinismo e à

confiança em forças obscuras26 — estaria em condições de garantir o

desenvolvimento das potencialidades do indivíduo, de assegurar os interesses

destoantes da maioria conduzida pela mídia eletrônica capitalista, na base de uma

razão dialógica, em que os significados sejam consensualmente elaborados e

reciprocamente respeitados. Fala-se aqui de um agir comunicativo, em contraste

com uma razão instrumental.

5.2 A racionalidade instrumental e as novas demandas sociais

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No modelo do Estado minimalista a questão da justiça distributiva praticamente não

aparece. O processo judicial, identificado com a pretensão de direito material, revela

uma relação comutativa na qual o Estado não interfere senão para garantir as regras

dojogo, as relações de troca. O aumento da complexidade social e a progressiva

funcionalização dos conceitos deram lugar a novas fórmulas

Início da nota de rodapé

(26) Eis aqui a crítica que Horkheimer dirige a um heróico individualismo metafísico

com que certos autores buscam neutralizar os estragos produzidos pela razão

instrumental. Nesse passo, cita Aldous Huxley, que escrevendo em 1 932, já antevia

um futuro no qual o homem seria transformado em simples peça da engrenagem

tecnológica. O Admirável mundo novo não teve a pretensão de ser mais que um

romance de ficçäo científica. Mas se outro valor não tem, serve quando menos como

testemunho de que às vezes a vida realmente imita a arte, do que é prova a maneira

com a qual Huxley retrata um mundo em que o domínio quase integral das técnicas

e de uma determinada concepção do saber científico acaba por dar origem a uma

sociedade totalitária e desumana. A crítica de Horkheimer dirige-se ao fato de que o

romance, ao mesmo tempo em que ataca uma organização mundial, um capitalismo

mono- polista que está sob a égide de uma autodissolvente razão subjetiva, exalta a

figura de um homem cultivado, não contaminado pela civilização total (Horkheimer,

op. cit., p. 63 e 64).

Fim da nota de rodapé

Página 319

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

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de composição dos conflitos, do que resultou a autonomia do processo, que se

desprende daquela base material. Esta emancipação insere-se no contexto da

própria instrumentalização do direito, como foi visto na seção anterior, permitindo ao

Estado interferir na frag- mentação dos conflitos, que agora ganham uma expressão

coleti- va. Mas é inegável que essa neutralização do conteúdo, se de um lado

permite a realização de umajustiça distributivaprocessual, que se legitima a partir da

simples observância de formas e fórmulas, por outro, não pode recusar, em

situações-limite, o confronto com as questões valorativas. Está posta, assim, em

outros termos, a di- cotomia razão subjetiva — razão objetiva.

Os horrores da Segunda Grande Guerra, as manipulações técnicas e científicas

abriram lugar para os chamados direitos sociais de terceira e quarta gerações.

Conforme observa Horkheimer, a natureza hoje é concebida como um simples

instrumento do homem, cuja insaciabilidade é fruto de necessidades impostas pelos

próprios padrões de acumulação capitalista. Mas a tentativa de um retorno à

natureza, por uma revivescência das velhas doutrinas ou pela criação de novos

mitos, não representa propriamente a negação de uma razão formalizada. 27 Cada

vez menos algo é feito por si mesmo, independentemente de sua ligação com outros

fins. Uma inclinação que tire um homem da cidade e o leve para as margens de um

rio ou para o topo de uma montanha seria irracional, se julgada pelos padrões

utilitaristas. Segundo o ponto de vista de uma razão formalizada, uma atividade só é

racional quando serve a outro propósito, como, por exemplo, a saúde ou o

descanso, que ajude a recuperar a energia produtiva.28 Em poucas palavras, os

valores objetivos foram instrumentalizados.29

Início da nota de rodapé

(27) Horkheimer, p. ¡ 12-130.

(28) Idem, p. 44.

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(29) As discussões acerca da relação custo-benefício, que orientam a polêmica em

torno da pena de morte, da pena privativa da liberdade, dão a exata dimensão do

trágico contexto em que estão inseridos os valores humanos. A teoria da reparação

do dano moral também é significativa, pois mostra que valores corno dignidade e

felicidade podem ser mensurados economicamente. E o chamado preetium doloris.

Fim da nota de rodapé

Página 320

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A formalização da razão permite entender assim como se opera aquilo que os

processualistas conhecem como terceirafase metodológica do processo civil, que

tem em conta a noção de instrumentalidade. Assim, o mesmo processo judicial que

serviu para arbitrar as relações meta-individuais, próprias de uma sociedade liberal-

burguesa, volta-se hoje para a solução de conflitos transindividuais, característicos

das sociedades pós-industriais, numa tentativa de garantir a hegemonia do direito

como forma de controle social. A transmigração do individual para o coletivo altera

os padrões de argumentação jurídica, mas não interfere com a função principal da

linguagem, mormente da linguagem utilizada no processo judicial, que é a de

determinar as formas de comportamento que a parte assume ao falar emjuízo, o

conjunto de atos que se realizam, específica e imediatamente, pelo simples

exercício da fala.

A chamada terceira fase metodológica do processo civil está voltada para o

desenvolvimento de mecanismos de institucionalização dos conflitos de larga escala.

Partindo da tradicional concepção de que o processo visa à realização da paz

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através do direito, os processualistas buscam a domesticação das condutas desa-

gregadoras, pautando-se pela idéia de um Estado Democrático de Direito. Assim, O

processojudicial deve promover o equilíbrio das forças sociais, servindo como efetivo

instrumento dejustiça social. Esta nova perspectiva implica uma releitura das noções

de interesse de agir e de legitimidade para a causa. (art. 3.° do CPC), à vista dos

interesses coletivos, dos interesses difusos e dos interesses individuais

homogêneos. Alterou-se também o instituto da coisa julgada.30 A par da legislação

esparsa, visando à tutela dos valores

Início da nota de rodapé

(30) o acesso universal à justiça tem previsão no texto constitucionaI de 1 988 (art.

50, LXXIV), tanto quanto a ampliação da Iegitimatio ad causam (art. 5•0, XXI). As

previsões do artigo 8.°, 111, que estabelece a Iegitimidade do sindicato para a

defesa dos interesses da categoria, do artigo 129, 111, e § 1.0, que cuida das

funções do Ministério Público, e do art. 1 34. que institui a defensoria pública,

também participam, indiretamente, da idéia de um acesso universal à justiça.

Alterou-se também a disci- plina da coisajulgada que, em regra, passa a ter eficácia

erga omnes, estendendo-se a todos os interessados. No caso de improcedência da

ação por falta de provas, os efeitos da coisa julgada não se comunicam

Fim da nota de rodapé

Página 321

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

sócio-culturais (Lei 7.347/85), dos direitos do consumidor (Lei 8.078/90), do

administrado (Lei 8.429/92) do deficiente físico (Lei 7.953/89), da criança e do

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adolescente (Lei 8.069/90), do investidor no mercado de valores mobiliários (Lei

7.913/89), do solo urbano (Lei 6.766/79), do patrimônio genético (Lei 8.974/95), há

uma série de outros dispositivos legais voltados à realização desses direitos, a

exemplo do mandado de segurança coletivo (art. 5•0, LXX, da C.E) do mandado de

injunção (art. 50, LXXI, da C.F) e da ação popular (Lei 4.717/65), que teve alterado o

seu campo de incidência (art. 50 LXXIII).

Como se teve oportunidade de registrar no primeiro e segundo capítulos, o abuso do

direito de demanda tem lugarprivilegjado em toda essa legislação recente, voltada

para o alargamento das vias de acesso ao judiciário. E isto porque conquanto a idéia

de efetividade do processo esteja comprometida com a universalização da justiça,

com o desenvolvimento de uma legislação mais inclusiva, há também um apego à

noção de utilidade. Com efeito, a máquina judiciária não pode ser movimentada sem

que haja um resultado socialmente útil.31 Nisto se revela o interesse de agir. A

alteração da

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

aos demais colegitimados. Tratando-se de interesses individuais homogêneos,

oiulgamento de improcedência, seja qual foro seu fundamento, não tem efeito erga

omnes (art. 16 da Lei 7.347/85 e art.103, I, 11 e 111, da Lei 8.078/90). O sentido

dejustiça distributiva faz-se sentir, outrossim, na inversão do ônus da prova, que se

coloca como possibilidade, à vista dos interesses da parte presumidamente mais

fraca (art. 6.°, VI1I, da Lei 8.078/90), ou até mesmo como imperativo, na hipótese de

acidentes de consumo, por exemplo (arts. 1 2 a 1 7 da Lei 8.078/90).

(31) A doutrina, quando se ocupa dos escopos sociais, políticos ejurídicos do

processo, diz que fixá-Ios equivale a revelar o grau de sua utilidade (Cândido Rangel

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Dinamarco, op. cit., p. 207). A propósito, já se decidiu que aquele que abusa do

direito de petição consagrado no art. 5•0, XXXIV, a, da Constituição Federal, agindo

sem interesse, fica obrigado a indenizar (TJ São Paulo, AI 280.992- 1, Tupã, 6.

Câmara de Direito Privado, ReI. Ernani de Paiva, 08.02.96, v.u.). Interesse de agir

nessa perspectiva instrumentalista, traduz-se em utilidade. Carece de ação o

demandante, por falta de legítimo interesse, quando, a juízo do Estado, o custo

social e individual das atividades que preparam o provimento jurisdicional não traz a

perspectiva de retorno que, do

Fim da nota de rodapé

Página 322

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

disciplina da coisajulgada civil, que interfere com o ideário liberal burguês da certeza

e segurança jurídica, também segue uma orientação instrumental, pois permite

estabelecer um controle sobre a par. ticipação das massas no campo dos interesses

transindividuais. Nessa medida, um mal desempenho da atividade processual não

pode prejudicar os demais co-Iegitimados, que não participaram do processo.32

Essa visão pragmática também vem-se desenvolvendo na esfera do processo penal.

Assim, por exemplo, diante da perspectiva da prescrição, considerada a pena em

concreto, tem-se entendido que não há utilidade no provimento jurisdicional, pelo

que injustificada a instauração de um processo.33 Isto, de certa forma, interfere com

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Continuação da nota de rodapé da página anterior

ponto de vista da utilidade pública, seja compensador (Cândido Rangel Dinamarco,

op. cit., p. 244 e 245). A análise econômica do direito, levada a cabo nesses últimos

anos, também de um prisma instrumentalista, tem ressaltado o custo social como

critério fundamental para a solução dos conflitos sociais (Posner, EconomicAnalysis

ofLaw, 2. ed., Boston Toronto, Little Brown and Co., 1 977).

(32) Cogita-se, na doutrina, até mesmo da possibilidade de colusão entre as partes,

de sorte que a disciplina da coisa julgada secundum eventum litis viria então para

impedir que o interesse dos demais co-Iegitimados pudesse ser atingido pelo abuso

do direito de demanda (a respeito, v. Rodolfo de Camargo Mancuso, Manual do

consumidor emjuízo, São Paulo, Saraiva, 1994, p. 102). A ser assim, veja-se que o

regime legal das demandas coletivas inovou em relação à disciplina do Código de

Processo Civil (art. 129 do CPC). A propósito do conceito de colusão ver o segundo

capítulo (seção 2.2). O conceito de legitimidade adequada, desenvolvido pela

doutrina a partir da regra do art. 5.° da Lei 7.347/ 85 e do art. 82 da Lei 8.078/90,

revela também a preocupação de prevenir o abuso do direito de demanda (Ada

Pellegrini Grinover et alii, C6 digo brasileiro de defesa do consumidor: comentado

pelos autores do anteprojeto, Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 513).

(33) De duas uma: ou o Iegisiador reformula a idéia de prescrição retroati va ou o

aplicador da norma terá de ceder às evidências, impedindo que pretensões

natimortas ocupem o espaço da produção judiciária socialmente útil (Luiz Sergio

Fernandes de Souza, A prescrição retroativa e a inutilidade do provimento

jurisdicional, in RT, São PauloAno 8 l ,junho de 1 992, vol. 680, p. 435-438).

Também a respeito do assunto, com far-

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

a questão do abuso do direito de demanda. Também as críticas às teorias de

deslegitimação do direito penal orientam-se por um discurso que tem sempre em

conta afinalidade. Argumenta-se que a sentença penal condenatória opera efeitos na

esfera civil, e mais, que o suspeito ou acusado teria direito de ver-se absolvido, pelo

que não seria jurídico declarar prescrição que ainda não ocorreu. No fundo, aqueles

que se voltam contra a tese de um direito penal mínimo temem o afrouxamento da

persecução criminal. Mais que isto, apostam no fetichismo do processo, que por si

só já serviria como uma espécie de expiação da culpa.34

Enfim, a dimensão ética do direito, e particularmente do processo judicial, vê-se

cada vez mais funcionalizada. As grandes ques- tões filosóficas, expressão da razão

objetiva, são resgatadas pelos processualistas apenas como lugares comuns,

condições retóricas de sentido que animam uma particular racionalidade do

processo. Essa formalização da razão explica o novo caráter mitológico da

Iinguagem processual. Como foi visto no segundo capítulo, o direito, na sua origem

histórica, está atrelado à questão da verdade; a princípio, a uma verdade revelada

pelos deuses, como se vê nallíada, e depois, à verdade como reconstrução dos

fatos, através do teste- munho, como está em Édipo. Nestas duas perspectivas, as

fórmulas processuais, o proferimento das palavras da lei, ganham uma dimensão

muito importante. Do emprego exato de uma expressão, da observância estrita de

um procedimento passa a depender o resultado da demanda.35

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

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ta citação bibliográtïca nacional, ver Maurício Antonio Ribeiro Lopes,

Reconhecimento antecipado daprescrição dapretensãopunitiva, in RT, São Paulo,

Ano 85, fevereiro de 1996, vol. 724, p. 522-536 e o acórdão pioneiro do Juiz Walter

Theodósio (RT, São Paulo, Ano 80, junho de 1991, vol. 668, p. 289-291).

(34) A respeito das diversas teorias de deslegitimação do discurso jurídico penal,

como resposta à criminologia tradicional, ver Eugenio Raúl Zaffaroni, Em busca das

penas perdidas: a perda de legitimidade do sistemapenal, Rio de Janeiro, Revan,

1991.

(35) Como observa Horkheimer, no contexto da funcionalização das idéias e da

verdade, a linguagem, considerada como mero instrumento, retor-

Fim da nota de rodapé

Página 324

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

O individualismo liberal-burguês — como também foi visto no segundo capítulo —

deixou-se impregnar daquele apego à forma, com o que supunha garantir a

liberdade, a segurança e a certeza das relações jurídicas. Em bem pouco tempo, a

razão iluminista e a verdade deixaram-se subjugar pela racionalidade das massas. O

poder de imaginação e as formas ricas de significado cederam lugar para uma lógica

funcional, que se bem se presta à consecução de finalidades socialmente úteis,

também dá lugar à chicana e à má-fé processual. A absoluta separação entre fatos e

valores e a correspondente distinção entre o uso representativo e o uso

argumentativo da linguagem traduzem-se, no campo jurídico, também pela

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emancipação do processo judicial, que se desprende das relações jurídicas

materiais. As proposições éticas, como ressaltado pelas correntes neoposititivistas,

cumprem um propósito, têm uma finalidade, O significado delas, então, está

diretamente ligado a certas situações de uso. O sucesso dos proferimentos

performativos, o êxito daquilo que se faz enquanto se diz, passa a depender da

adequação da conduta dos atores processuais a um determinado procedimento. Isto

explica o es- vaziamento do conteúdo ético das normas processuais, que cumprem

uma função operacional.36

A expressão abuso do direito processual é muito mais uma fórmula sintética, uma

abreviação de itens aos quais o conceito se re- fere — na expressão de Horkheimer

— do que propriamente uma idéia,

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

na ao seu estágio mágico, aos tempos em que cada palavra era considerada uma

força poderosa, capaz de destruir a sociedade e pela qual aquele que fala deve ser

responsabilizado (Horkheimer, op. cit., p. 31).

(36) A classificação feita pela doutrina, no segundo capítulo (seção 2.2), a propósito

dos diversos tipos de conseqüência do abuso processual, é ilustrativa daquilo que

Austin desenvolve quando trata das condições de felicidade do ato defala (seção

4.4). Assim é que, dependendo da forma de transgressão das condições de sucesso

dos proferimentos performativos, pode-se cogitar de nulidade ou de simples

inexistência do ato. Com efeito, algumas condutas abusivas da parte implicam não

propriamente a imposição de sanção, mas a nulidade do ato (art. 13, I, do CPC) ou

mesmo a desconsideração dos efeitos produzidos pela conduta abusiva (arts. 181,

243, 245 e 808, 11, todos do CPC). São hipóteses de injlicidade do ato de fala.

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Fim da nota de rodapé

Página 325

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

um pensamento dotado de sentido próprio. Aqui está um flagrante do aspecto

ideológico do processojudicial, que se revela na funcionalização daforina de vida

voltada para as questões éticas, na colonização da razão objetiva por uma razão

formalizada. Por detrás do conceito de abuso do direito processual, dessa “palavra

oca”, para lembrar Hägerström, mostram-se, de um prisma crítico, múltiplas relações

ocultas que a simples aparência não permite apreender.37 Veja-se, a propósito do

senso comum dos juristas acerca do abuso do direito, quantas incursões foram

feitas, no primeiro e segundo capítuos, até que se pudesse chegar à apreensão

dessa fórmula sintética, operacional, que mais não é senão um feixe de amplas

relações sociais, cuja trama mais se entretece à medida do avanço tecnológico.

Resta saber, repetindo Georges Bernanos, na França contra os robôs, se um mundo

ganho para a técnica está efetivamente perdido para a liberdade, ou seja, se há

espaço, nessa textura pragmática, para considerações de ordem ética.

Início da nota de rodapé

(37) Nesse passo, Alaór Caffé Alves diz que ver o Direito como uma expressão

ideológica que não tenha somente um conteúdo operacional para a solução dos

conflitos intersubjetivos que surgem na superfície do corpo social, tal como o

concebe a consciência ingênua, compreende e exige um ato de uitrapassagem

crítica do momento aparentemente concreto da vida jurídica cotidiana, que só se

torna possível, a nosso ver, com a perspectiva de uma análise dialética onde os

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elementos empíricos e teóricos sejam explorados de forma a fazer sobressair seu

conteúdo latente vinculado organicamente às condições estruturais do processo

social... O estudo da ordem jurídica ou de quaisquer outras manifestações

institucionais pelas quais o Estado se objetiva não pode, em nosso entender, ser

feito tendo como ponto de partida a idéia de que a inteira realidade se expressa ao

nível de nossa experiência imediata. No entanto, é exatamente isso que ocorre com

o senso comum dos juristas e de outros cientistas sociais quando imaginam

conhecer todo o seu objeto de aná- Iise na precisa forma e expressão de sua

manifestação concreta, aplicando apenas a razão analítica, pela qual conseguem,

não raro com sofisticação, uma sondagem de superfície dos elementos

desdobráveis em puro encadeamento lógico de conceitos, coerentemente dispostos

segundo as conexões visíveis oferecidas pela experiência imediata (Alaôr Caffé

Alves, Estado e ideologia: aparência e realidade, São Paulo, Brasiliense, 1987, p.

339-340).

Fim da nota de rodapé

Página 326

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

As escolas jusnaturalistas acentuam o aspecto axiológico da teoria do abuso do

direito processual, como se vê nas elaborações de Eduardo Couture, desenvolvidas

no segundo capítulo (seção 2.4). Entretanto, como dito há pouco, a consciência

individual e a verdade ontológica, que se inserem no campo da razão objetiva, vão

sen. do capturadas por uma razão instrumental à medida que a sociedade se torna

cada vez mais complexa. Os juízos de valor, que antes faziam referência a

princípios morais genuínos, à abstração idealizada, ganham novo significado no

contexto dos problemas e das situações da vida real, onde as coisas só têm sentido

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se orientadas para uma finalidade. O direito, reduzido à norma, passa a compor um

organismo cibernético, bem descrito pelas teorias sistêmicas de Talcott Parsons e

de Niklas Luhmann, estas últimas influenciadas pela concepção da Biologia,

particularmente pelo modelo desen- volvido por Humberto Maturana.38

Início da nota de rodapé

(38) Maturana, Henrique e Francisco Varela, Autopoiesjs and Cognitions, Dordrecht,

Reidel, 1 983. Niklas Luhmann, formado em Direito e Administração, fixou seu

campo de interesse na sociologia, influenciado pelo funcionalismo de Talcott

Parsons (1920-1979). A teoria sistêmica parte do ponto de vista de um terceiro

observador, procurando aplicar os conceitos da cibernética ao estudo da ação

social. A sociedade aparece então Como um sistema sócio-cultural que se diferencia

do meio através de mecanismos de seleção das possibilidades existentes nos

sisternas complexos. A estrutura do sistema social Composta destes mecanismos,

que permitem reduzir a complexidade do sistema, garantido assim a sua

estabilidade. Cada um destes mecanismos pode ser concebido como sistemas

parciais que integram o sistema comunicativo global, que é a sociedade. O direito,

por exemplo, aparece como um dos sistemas funcionais do sistema global, com a

tarefa de reduzir a com- plexidade do ambiente, absorvendo a contingência do

comportamento dos atores sociais. A redução da complexidade do sistema social

dá-se através de dois mecanismos estruturais, quais sejam, a expectativa cognitiva,

que é fática, e a expectativa normativa, que é contrafática. Estas formas de controle

social, das quais o direito participa (como integrante do sistema global que é a

sociedade) permitem exercero controle sobre as representações e interpretações do

mundo (Niklas Luhmann, Sociologia do Direito I, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro,

1983, Coleção Biblioteca Tempo Universitdrio, vol. 75, p. 48-66 e 167-224). A

propósito dos conceitos desenvolvidos pela cibernética, v. Norbert Wiener,

Fim da nota de rodapé

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Página 327

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

O direito, visto dessa ótica, mostra-se como um sistema aberto — em permanente

contato com o sistema social — cujo repertório é composto por normas obrigatórias,

postas por uma autoridade, e cuja estrutura é formada por um conjunto de regras

que permitem estabelecer relações entre os diversos elementos daquele repertório.

A performance do sistema está na dependência da sua capacidade de controlar as

contingências, vale dizer, a incerteza quanto à realização ou frustração das

expectativas sociais. O esvaziamento do conteúdo, o corte em relação à realidade,

próprio de umajustiça distributiva processual, que se legitima na base da simples

observância das regras procedimentais, tem, entretanto, seus limites. Por isso,

quando o simples controle exercido através de atitudes cognitivas e normativas se

revela deficitário, o próprio sistema desenvolve mecanismos para dispersão do

dissenso, que se revelam precisamente nas palavras ocas, naquelas expressões

que não se confrontam com a realidade, mas que funcionam como código doador de

sentido.

Dessa perspectiva funcional, a concepção do abuso do direito fundada numa

consciênciajurídica coletiva, que por sua vez busca alicerce em princípios gerais de

direito, faz lembrar a referência de Horkheimer à hipocrisia da sociedade industrial,

onde a mesma voz que prega sobre as coisas superiores da vida, tais como a arte e

a amizade, exorta o ouvinte a escolher uma marca de sabão.39 José

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

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Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos, 5. ed., São Paulo,

Cultrix, 1 978. Como será possível analisar na seção seguinte, o modelo sistêmico-

funcionalista tem uma indisfarçável marca conservadora, que nem mesmo a

tentativa de substituir o conceito de informação porsignificado consegue contornar. E

que o significado aparece aqui não como construção dialógica, mas como expressão

de valores e normas internalizados, padrões de comportamento institucionalizados

monologicamente.

(39) Nesse ponto, Horkheimer lembra a anedota do menino que, olhando a Lua,

pergunta ao pai o que ela está anunciando. Assim, a natureza foi despojada de todo

seu valor ou significado intrínseco...Quando pedem a um homem que admire algo,

que respeite um sentimento ou atitude, que ame uma pessoa por ela mesma, ele

fareja sentimentalismo e sus- peita que estão querendo Ievá-Io na conversa ou

tentando vender alguma coisa (op. cit., p. 1 05 e 1 06). Em outro trecho, o autor

observa:

Fim da nota de rodapé

Página

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Carlos Barbosa Moreira, tratando dos interesses difusos e coletivos, diz que se

enganam aqueles que menosprezam a dimensão técnica do direito, tanto quanto os

que o reduzem a essa mesma dimensão. Diversamente do que sonha um

romantismo ingênuo, o ordenamento jurídico não se reduz à manifestação de

princípios éticos... Mas tampouco seria reconhecível uma imagem do direito que o

figurasse totalmente estranho a inspirações da moral... Pouco importa que princípios

morais sejam a cada passo hipocritamente invoca- dos para justificar manobras do

egoísmo, da ânsia de dominação, do medo de perder privilégios ou de sofrer abalo

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em posição de mando. Que se abuse de uma idéia não é o bastante para contestar-

lhe a validade.40

O movimento pela desburocratização da justiça, que se inscreve no modelo da

instrumentalidade do processo, vem ao encontro da crítica formulada por Galeno

Lacerda, no segundo capítulo (seção 2.3), contra uma formalidade perversa, que no

lugar de servir a finalidades sociais, pode comprometer a efetividade da prestação

da tutela jurisdicional. Esse empenho em libertar o conteúdo da forma também tem-

se mostrado numa certa tendência de aproximação entre o direito processual e o

direito material.41 A par dessas orientações, que revelam uma tentativa de legitimar

a razão instrumental em termos de uma ordem justa, assiste-se a uma crescente

politização dojurídico e a uma juridicização do político.42 Tudo isto

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

“Outrora era o esforço da arte, da literatura e da filosofia para expressar o significado

das coisas e da vida, para ser a voz de tudo que é mudo.... Hoje, a língua da

natureza foi arrancada. Outrora pensava-se que cada expressão, palavra, grito ou

gesto tivesse um significado intrínseco; hoje é apenas um incidente” (op. cit., p.105).

(40) José Carlos Barbosa Moreira, Direito e ética no Brasil de hoje — aula inaugural

proferida na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ein 9 de março de

1994, in Temas de direito processual (sexta série), São Paulo, Saraiva, 1997, p. 302

e 303.

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(41) José Roberto dos Santos Bedaque, Pressupostosprocessuais e condições da

ação, in Justitia, São Paulo, Ano 53, vol. 1 56, outídez. de 1 991, p. 54•

(42) Essa tendência, que tem lugar diante da crise da democracia represeflt tiva,

pode ser resumida como um processo de substituição das instancias

Fim da nota de rodapé

Página 329

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

é expressão da angustia do homem contemporâneo, sobretudo nos momentos de

grave crise social, econômica e política, diante de um direito cujo sentido se esgota

nas utilidades que produz.43

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

políticas, tal qual concebidas pelo modelo da tripartição dos poderes, cujas funções

passam a ser desenvolvidas pelo judiciário. O chamado governo dos juizes pode

gerar, entretanto, graves distorções, muito bem apontadas pela doutrina. Como

escreve Celso Fernandes Campilongo, de um ponto de vista sistêmico-funcionalista,

As instituições representativas podem criar direito novo, desde que, no processo

legislativo, respeitem os limites impostos pelo próprio direito. Os tribunais também

podem tomar decisões de cunho político inovador, desde que, no processo judicial,

observem os balizas estabelecidas pelo sistema político (Celso Fernandes

Campilongo, A crise da representação e a judicialização da política, in Diálogos &

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Debates; da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, Ano 1, ed. 1, setembro de

2000, p. 26-32). José Reinaldo de Lima Lopes, ainda que de outro prisma

metodológico, também aponta as dificuldades com as quais o judiciário se defronta

para realizar a justiça distributiva, que exige a implementação de práticas concretas,

próprias da atividade do Executivo (José Reinaldo de Lima Lopes, Direito subjetivo e

direitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito, in José Eduardo

Faria, org., Direitos humanos, direitos sociais e justiça, São Paulo, Malheiros

Editores, 1994, p. 113-143). De uma perspectiva dogmática, Calmon de Passos

critica o modelo escolhido pela atual legislação naquilo que diz respeito às

chamadas ações coietivas. Considera que, em um Estado Democrático de Direito, a

institucionalização de soluções jurisdicionais para conflitos que ultrapassam os

Iimites do conflito individual (os quais se revestem de uma significação macro, que

só desafia, em tese, soluções políticas), somente é admissível dentro de um

universo bem delimitado e desde que haja legitimação política dos órgãos

incumbidos da solução jurisdicional desses conflitos em termos de composição e

responsabilidade (J. J. Calmon de Passos, Direito, poder,justiça e processo:julgando

os que nos julgam, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 9 1 e 92). A propósito

dajudicialização da política e da politização dajustiça é rica tam- bém a bibliografia

estrangeira (C. Neal Tate e Torbjorn Vallinder, The global expansion ofjttdicial power,

New York, New York University Press, 1985).

(43) San Tiago Dantas, já na década de 40, apercebera-se de que a política, no

século XX, havia recuperado seu incontrastável império, colocando para o jurista

problemas que ele não estava preparado para resolver. Em

Fim da nota de rodapé

Página 330

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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José Joaquim Calmon de Passos vê com certa reserva a posição daqueles que

sustentam a instrumentalidade do processo, a deformalização dajustiça e a

diferenciação da tutela como formas de garantir a efetividade do direito. Entende que

o procedimento é mais do que um instrumento de garantias individuais e sociais,

revelan-do-se ele próprio como expressão do direito produzido por uma determinada

sociedade: Se o direito é apenas depois de produzido, o produzir tem caráter

integrativo, antes que instrumental. O direito não é algo que possa ser dissociado do

processo de sua produção e do produtor, porque ele só consegue existir, como

realidade

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

aula magna proferida na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil,

comemorativa do cinqüentenário daquela instituição, San Tiago Dantas Iança uma

pergunta que até hoje gera discussão: pode qualquer política criar um Direito, ou o

Direito em sua natureza técnica está comprometido com determinados princípios

éticos e sociais que colidem com certos sistemas políticos e com outros se

harmonizam? (Renovação do Direito, in Encontros da UnB — ensino jurídico, Brasí-

lia, UnB, 1979, p. 39-45). Na aula inaugural do ano de 1955, na mesma Faculdade,

San Tiago Dantas sustenta que a cultura representa a subjugação do mundo físico

pela técnica. Mas a par desse controle, que o homem exerce sobre a natureza, há

de se cogitar também de um controle do homem sobre a razão técnica. A cultura é

composta, assim, de um controle técnico e de um controle ético, de cuja adequada

relação depende a expansão ou a decadência de uma civilização, de um grupo

social. A falta de criatividade dos juristas tem levado a sociedade a buscar novas

formas de composição dos conflitos. O direito, como técnica de controle da

sociedade, vem perdendo terreno e prestígio para outras técnicas, menos

dominadas pelo princípio ético, e dotadas de grau mais elevado de eficiência, a

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exemplo da econômica. Nesse conflito entre um critério ético e um critério

puramente pragmático, o jurista assume o papel de força reacionária, de elemento

resistente, que os órgãos do governo estimariam contornar para poderem promover

por meios mais imediatos e diretos o que lhes parece ser o bem comum (A

educação jurídica e a crise brasileira, in Encontros da UnB — ensino jurídico,

Brasília, UnB, 1979, p. 49-54). Foi precisamente a desconfiança da tecnocracia na

eficiência do direito como técnica de controle social que deu lugar à elaboração de

novas categorias jurídicas, voltadas para a inserção dos interesses transindividuais

nos mecanismos jurídicos de composição dos contlitos.

Fim da nota de rodapé

Página 331

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

(praxis), associado a um e outro. Só a ação humana dá a dimensão do poder e não

o arquétipo, a idealidade. O direito é decisão que somente se legitima na base de

formas de organização e regulamentação procedimental apropriadas. Daí o

equívoco da Constituição de 1988 — acrescenta o processualista — ao haver

enunciado gene- rosamente direitos fundamentais sem ter disciplinado

adequadamente a sua dimensão procedimental.44 Essa visão desafia a

possibilidade de se conceber o processo como agir comunicativo, onde as próprias

partes e o juiz estariam em condições de fixar, intersubjetivamente, o significado de

suas ações. O sentido do abuso do direito processual parece assim orientar-se por

um fazer persuasi- vo, por uma relação dialógica na qual todas as pessoas

envolvidas têm a sua hora e a sua vez.

O processo judicial, assim concebido, participa de um novo conceito de razão, como

elaborado por Jürgen Habermas em sua teoria da ação comunicativa, conceito que

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nada tem em comum com a visão instrumental, mas que também ultrapassa a visão

kantiana assimilada por Horkheimer, isto é, a concepção de uma razão subjetiva,

autárquica, capaz de conhecer o mundo e de conduzir o destino da humanidade. O

significado do abuso dos direitos processuais seria, pois, o resultado de uma razão

comunicativa, que busca o consenso e respeita a reciprocidade daqueles que

participam do procedimento argumentativo. Resta saber se a dogmática jurídica

pode compartilhar dessa nova orientação ou, de outra forma, se um rnundo ganho

para a técnica está efetivamente perdido para a liberdade, como prenunciava

Georges Bernanos.

5.3 A retórica no campo da ação estratégica e da ação comunicativa

A racionalidade instrumental, como foi visto, resulta de uma deformação da razão

cognitiva. E certo que as ciências não se limitam a um papel meramente descritivo,

deitando raízes em contextos não-científicos, apropriadas por estratégias de poder.

Os cien-

Início da nota de rodapé

(44) J. J. Calmon de Passos, Direito, poder, justiça eprocesso: julgando os que

nosjulgam, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 23, 68, 76-80.

Fim da nota de rodapé

Página 332

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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tistas que colaboraram com o nazismo, por exemplo, hoje se justificam falando em

nome do progresso tecnológico. Wernher von Braun, que em 1942 desenvolveu os

foguetes do tipo A4/V2, lança- dos pelos nazistas sobre Londres, matando cinco mil

pessoas, tem P05 depois mudou-se para os Estados Unidos, onde se tornou um dos

diretores da agência espacial norte-americana. Lá desenvolveu o foguete Saturno 5,

que em 1969 levaria a Apolo 1 1 para a Lua. O químico Paul Schlack, cujas

pesquisas deram lugar à produção de uma fibra sintética mais barata do que o

nylon, própria para a produção de pára-quedas, finda a Grande Guerra, passou a

trabalhar como consultor na árca têxtil. O engenheiro Heinrich Nordhoff, que

aperfeiçoou os caminhões militares utilizados pela SS e pelo exército alemão nas

suas ofensivas-relâmpago, assumiu em 1948 a direção de uma das maiores

multinacionais do mundo, quando colocou em prática o velho plano de fabricar um

carro do povo. Sete anos depois a empresa já comemorava a fabricação do

milionésimo automóvel. Nordhoff ganhou notoriedade e fama, recebendo dezenas

de condecorações.45 Enfim, não se pode isolar a produção intelectual do homem,

como se ela fosse um estomo das relações sociais.

Está claro, outrossim, que o contexto da justficação das teorias científicas, da

validação delas, acaba se confundindo um pouco com

(45) Essas reflexões foram tema de uma exposição realizada no Museu de

Transportes e Técnica de Berlim, na qual se reuniu o trabalho de profissionais que

colaboraram com os nazistas, cujo título era Eu servi só à técnica. A frase, que é

uma referência à justificativa apresentada pelo ex-ministro para Armamento e

Munição da Alemanha nazista, a propósito do trabalho que desenvolveu na Segunda

Guerra Mundial, dá a tônica das desculpas utilizadas por muitos técnicos e cientistas

que, de- pois de terem colaborado, direta ou indiretamente, com a política de

extermínio executada pelos nazistas, foram recrutados para trabalhar nos países

aliados. Nessa mostra, conta-se que von Braun, hoje considerado o pai da

astronáutica, procurou mão-de-obra no campo de concentração de Buchenwald,

onde foram mortas mais de 55 mil pessoas. Segundo o organizador do evento,

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Alfred Gottwaldt, o tema, técnica, poder e guerra continua atual, o que pode se

confirmar com o fato de hoje a Alemanha exportar armamentos sob a alegação de

que isso gera empregos (Silvia Bittencourt, Ciência afavor da guerra, Folha de São

Paulo, Ciência, 21.05.1995, p. 5-17).

Fim da nota de rodapé

Página 333

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

o contexto da descoberta, ou seja, com as causas, com os fatores sociais,

econômicos e psicológicos que levaram à construção de um determinado modelo

científico. No campo das chamadas ciências humanas, e mais particularmente no

campo do direito, o condicio- namento ideológico é patente. A ciência aqui reproduz

claramente o conflito de classes, o choque de culturas e de gerações, de forma que

se tem de reconhecer que a razão monológica, a razão apofântica, adequada às

chamadas ciências teóricas, não se ajusta à multiplicidade de significados que se

pode retirar das fórmulas e expressões jurídicas, as quais além de descrever,

prescrevem condutas.

Michel Foucault, conforme registro feito no segundo capítulo (seção 2.3), chama a

atenção para o desprezo que o filósofo, homem da verdade e do saber, sempre teve

por aquele que não passava de orador, o homem do discurso, que procurava

conseguir vitórias valendo-se de meia dúzia de palavras de efeito. Essa associação

entre a prática do discurso e o exercício do poder, que aqui ainda é concebida sob a

ótica da filosofia do sujeito, abre espaço, de uma pers- pectiva interdisciplinar, para

uma aproximação entre a teoria social e a filosofia, para uma nova relação entre o

retórico e o filosófico. Em Jürgen Habermas, que também se dedica à análise das

relações sociais a partir do advento da técnica, há uma crítica ao domínio da razão

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instrumental, como concebido por Horkheimer. Mas Habermas, partindo de uma

nova teoria da sociedade e da modernidade, além de denunciar essa razão

atrofiada, que se limita ao aspecto cognitivo-instrumental, propõe a superação do

paradigma, a substituição da razão subjetiva por uma razão intersubjetiva. Esta nova

orientação da chamada Escola de Frankfurt, que se aproxima da filosofia

pragmática, tem importantes repercussões na analise do abuso dos direitos

processuais, como se passará a ver.

Habermas, que pertence à segunda geração de integrantes do Instituto de Pesquisa

Social de Frankfurt, inicialmente composto por Adorno, Horkheimer Marcuse e Erich

Fromm, procurou salvar a teoria crítica do pessimismo em que parecia mergulhada,

buscando uma reconciliação entre sujeito e objeto do ponto de vista de uma ação da

teoria comunicativa. Entende que a modernidade produziu uma certa perda de

sentido, provocada pelo esvaziamento das

Página 334

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

grandes visões de mundo, a par de uma perda da liberdade, resultante do avanço

daburocracja. Distancia-se, contudo, davisão de Horkheimer ao defender a tese de

que esta modernização, 110 campo da cultura e das artes, acabou liberando o

potencial da razão comunicativa, até então sufocado pelas religiões e pela

concepção metafísica do mundo. Aqui, os processos de produção dependem cada

vez mais dos próprios homens e não da tradição e da autoridade. Sucede que a

sobrecarga da capacidade comunicativa no mundo modemo acabou criando

condições para uma disjunção entre o mundo vivido, onde as ações, de caráter

intencional, são presididas pelo entendimento, e o sistema, que é indiferente às

intenções dos atores sociais. Com isto, a racionalidade instrumental, até então

circunscrita ao campo administrativo e econômico, foi-se estendendo a outros

segmentos da vida social.46 Importante registrar, contudo, que o modelo

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hermenêutico de Habermas implica uma reconstrução do conceito de mundo da

vida, que o distancia da elaboração desenvolvida por Husserl, presa ao paradigma

da consciência.47

início da nota de rodapé

(46) Sergio Paulo Rouanet, As razões do lluminismo, São Paulo, Companhia das

Letras, 2000, p.158-164e 340-345. No mesmo sentido, v. Barbara Freitag, op. cit., p.

62-65.

(47) Nesse passo, Habermas contrapõe o mundo da vida, conceito assim

reformulado, à concepção sistêmica, adequada à figura de um observador externo.

O modelo sistêmico explica a racionalidade instrumental, avessa ao diálogo,

enquanto a noção de mundo da vida permite entender a sociedade da perspectiva

interna dos atores, inseridos em situações concretas do cotidiano. Diferentemente

do que sucede no conceito husserliano, o mundo da vida, na pragmática-formal dos

pressupostos do agir comunicativo, surge na perspectiva de participação e

reconstrução dos falantes, compartilhado intersubjetivamente. Esta reformula- ção

permite contornar as criticas formuladas,já ao final do terceiro capitulo (seção 3.4), à

fenomenologia husserliana, da qual se disse ser ideaIista. Na visão habermasiana, o

mundo da vida é composto de três planos estruturais: a) a cultura, que se apresenta

como uma espécie de estoque do saber da comunidade, depósito dos conteúdos

semânticos da tradição, onde os participantes se abastecem dos modelos

interpretativos necessários ao processo comunicativo; b) a sociedade, no sentido

estrito, composta dos ordenamentos legítimos que regulam a solidariedade dos

participantes com determinados grupos sociais; c) a personalidade, que

Fim da nota de rodapé

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

Com efeito, o capitalismo passou a interferir cada vez mais na esfera do mundo

vivido, fazendo-se presente em terrenos até então reservados à ação comunicativa,

como é o caso da familia, da educação, do lazer. Surgem, assim, as patologias do

mundo vivido, como conseqüência da sua colonização, seja pelo sistema político

(burocratização) seja pelo sistema econômico (monetarização), num universo

totalmente sistêmico, tal qual descrito na seção anterior, quando se fez referência às

teorias de Parsons e de Luhmann. Enfim, a ruptura com a tradição e a autoridade se

de um lado possibilitou a emancipação de certas esferas da atividade humana, de

ou- tro trouxe a possibilidade de um instrumentalismo perverso.48 Embora

compartilhando em boa medida o diagnóstico crítico sobre a racionalidade

instrumental, feito por Horkheimer, Habermas procura uma alternativa à crítica global

da razão, que também refoge ao conceito sistêmico de Luhmann, caracterizado por

princípios normativos e instâncias auto-regulatórias da integração social.49

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

constitui um conjunto de competências que qualificam um sujeito para participar das

interações, permitindo-lhe construir e consolidar sua identidade Quando entra em

cena o agir estratégico, o mundo da vida vê-se neutralizado, com o que perde sua

força coordenadora da ação, deixan- do de ser fonte de garantia do consenso

(Jürgen Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro,

Tempo Brasilei- ro, I 990, Coleção Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série

Estu- dosAlemães, p. 86-101).

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(48) Sergio Paulo Rouanet, As razões do lluminismo, São Paulo, Companhia das

Letras, 2000, p. 1 58- I 64. Para o autor, a anexação do mundo da vida por parte do

sistema, governado pela razão instrumental, conduziu ao que Max Weber chamou

de perda de liberdade do homem, crescentemente aprisionado numa armadura de

ferro, ou ao que, mutatis mutandis, Lukács denominou de alienação (idem, p. 341-

342). Neste exato sentido, ver também Barbara Freitag (op. cit., p. 62).

(49) Habermas entende que o modelo sistêmico é uma descrição adequada das

formas de legitimação tradicional, das relações estratégicas, que visam ao poder.

Mas nem tudo está perdido para esta racionalidade sistêmica. Há valores, normas e

processos de entendimento mútuo que têm de ser analisados sob outro ângulo. A

esperança está em reconquistar para o mundo vivido os espaços usurpados pelo

sistema, ou seja, contrapor a comunicação à violência, passar de uma ação

instrumental para

Fim da nota de rodapé

Página 336

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

A teoria da ação comunicativa situa-se no campo dos atos de fala. Partindo do

modelo desenvolvido por Austin e Searle, Habermas passa a distinguir entre ações

no sentido estrito e ações Iingüísticas. Nestas, pessoas se comunicam visando a um

entendimento acerca de alguma coisa que está no mundo. Na ação não-Iingüística,

vale dizer, nas atividades simplesmente orientadas para um fim, o terceiro

observador está impossibilitado de dizer acerca das intenções dos falantes, pois ela

não revela a partir de si própria o modo como foi planejada. Somente os atos de fala

preenchem essa condição. Assim, quando alguém diz condeno, o ouvinte tem a

possibilidade de inferir do conteúdo semântico do proferimento o modo como a sen-

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tença proferida está sendo utilizada. Enfim, as ações lingüísticas são auto-

referenciais; nelas o componente ilocucionário determina o sentido do que é dito

através de uma espécie de comentário pragmá- tico. Ao dizer alguma coisa, faz-se

algo e ao realizar-se uma ação de fala, algo também é dito.50

Habermas registra que somente uma segundapessoa, que abandone a posição de

observador extemo, está em condições de captar o sentido performativo de uma

ação de fala. Só aqueles que comparti- lham intersubjetivamente a mesma

linguagem, o mesmo mundo da

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

uma ação comunicativa (op. cit., p. 83-87). Segundo Pietro Barcellona, Habermas

tenta reagir ao processo de dessubstanciação, desenvolvido pela teoria sistêmica de

Luhmann (no qual o direito é posto por decisão, sem qualquer compromisso com a

verdade), buscando um apriorido entendimento, que não é, todavia, confiado à

intimidade da consciência mas à vocação universalista da Iinguagem, que nos impõe

co- municar segundo o princípio da verdade. Com isto, Habermas opõe-se ao

decisionismo de Luhmann (Pietro Barcellona, O egoísmo maduro e a insensatez do

capital, São Paulo, Icone, 1 995, p. 65-68). Ver também, nesse sentido, a propósito

dos pressupostos da teoria da ação comuni- cativa, as considerações de Sergio

Paulo Rouanet (As razões do ilumi- nismo, São Paulo, Companhia das Letras, 2000,

p. 164-166 e 185-187) e de Barbara Freitag (op. cit., p. 62 a 65).

(50) Jürgen Habermas, op. cit., p. 65, 66, 1 i3-122. Para Habermas, a força

ilocucionária, diferentemente do que ocorre a Austjn, é um componente racional do

ato de fala. O elemento racional não se Iimita à proposição assertórica (Idem, p. 81 e

l24).

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Fim da nota de rodapé

Página 337

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

vida podem entender a reflexibilidade da linguagem natural. Nesse sentido, dá um

importante passo na transição de uma filosofia do sujeito, onde a razão está limitada

ao aspecto cognitivo-instrumental, para uma filosofia comunicativa. Trata-se de

abandonar aquela perspectiva da razão monológica para recompor a trilogia

kantiana (razão cognitiva, razão normativa e razão das vivências subjetivas) na base

do reconhecimento de uma comunidade lingüística, que pressupõe a

intersubjetividade de pelo menos dois atores voltados para o entendimento mútuo. O

sucesso do ato ilocucionário ultrapassa a simples compreensão do que é dito,

dependendo do assen- timento racionalmente motivado do ouvinte. Em outras

palavras, os fins ilocucionários só podem ser atingidos através da coopera- ção do

inter1ocutor.51

Mas afelicidade da ação lingüística, vale dizer, o sucesso dos proferimentos, varia

conforme se esteja cuidando de um agir estratégico ou de um agir comunicativo.

Trata-se de modos pelos quais os falantes empregam seus conhecimentos visando

a uma finalidade, mas de óticas diferentes. No agir comunicativo, o saber é

empregado com vista ao entendimento, ao passo que no agir estratégico tem-se em

conta a simples ação orientada para um fim, na qual não importam o entendimento,

a convergência intersubjetiva. Neste último caso, ingressa-se no universo das

relações de poder, onde o interlocutor obedece cegamente a imperativos a fim de

evitar sanções. Aqui não se cogita de composição entre os falantes, pois aquilo que

se obtém através da força, da ameaça, não é acordo. Quando uma relação de poder

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é rejeitada, entra em cena um contrapoder, sem que se tenha critério para dizer

dajustiça deste ou daquele.52

Início da nota de rodapé

(51) Idem, p. 67-70.

(52) No agir estratégico, as influências externas à Iinguagem assumem o papel de

coordenação antes exercido pelos atos de fala. Há uma emasculação da força

ilocucionária e a linguagem, assim debilitada, passa a preencher apenas as funções

de informação que restam quando se retira do entendimento lingüístico a formação

do consenso. Nesse contexto, a ameaça cumpre um papel instrumental. Ela não é

propriamente um ato ilocucionário porque não visa à tomada de decisão

racionalmente motivada por parte do destinatário (Habermas, op. cit., p. 74 e 75).

Fim da nota de rodapé

Página 338

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Diversamente, no agir comunicativo, hápretensões de validade que podem inclusive

ser rejeitadas, criticadas. No agir estratégico, o sucesso da ação depende de uma

racionalidade dos planos individuais de ação, ao passo que no agir comunicativo o

entendimento depende de uma racionalidade que se manifesta nas condições

requeri- das para um acordo obtido comunicativamente.53 É importante dizer, no

entanto, que o agir estratégico não se confunde com a ação instrumental. A ação

estratégica busca exercer influência sobre as outras pessoas na base de regras

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racionais de escolha. Na ação instrumental, diferentemente, o objetivo é transformar

o mundo por meio de regras técnicas.

Há certas sociedades em que as relações de poder predominam sobre as relações

comunicativas e isto por força de um desvio do paradigma da comunicação. Assim

como Wittgenstein concebia a figura dos jogos de linguagem espúrios, distorções

consistentes em confundir diferentes formas de vida, Habermas entende que a in-

cursão das relações de poder no campo da argumentação gera deformações

ideológicas, pois trata-se de jogos de racionalidade distintos, deforrnas de vida

diversas. E inconcebível conter a riqueza de significações da argumentação no

espartilho das demonstrações lógicas ou empíricas. No agir estratégico a linguagem

natural é utilizada apenas como meio para transmitir informações, ao passo que na

interação comunicativa ela se mostra também como fonte de integração social.

Aqueles que interagem no processo de argumentação tem de estar atentos às

armadilhas do poder, à possibilidade de manipulações de toda sorte, às falácias.54

A compreensão disto exige que se entenda uma noção até aqui apenas enunciada,

qual seja, o conceito de pretensão de validade.

As questões de significado, no campo da pragmática universal de Habermas, não

podem ser dissociadas das questões de validade.

Início da nota de rodapé

(53) Idem, p. 70, 72, 128 e 130. Também nesse mesmo sentido, Habermas,

Consciência Moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro, Tempo BrasiIeiro, 1 989,

Biblioteca Teinpo Universitário, vol. 84, Estudos Alemães, p. 79.

(54) Idem p. 7 1.

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Fim da nota de rodapé

Página 339

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

o entendimento possui um conteúdo normativo que ultrapassa o nível da

compreensão de uma expressão gramatical. A compreensão de um proferimento

implica entender-se com alguém sobre algo com o auxílio de uma expressão havida

como válida. Assim, não é possível saber o que significa uma expressão lingüística

sem que se saiba também como utilizá-la para entender-se com outrem. Dessa

forma, a teoria da ação comunicativa rompe com aquela visão representativa,

própria da filosofia do sujeito, que enxerga o problema da validade do proferimento

como relação entre a linguagem e o mundo, com o que a validade fica reduzida à

verdade. Na linha do neopositivismo, Habermas reconhece que os enunciados não

ser vem apenas para representar fatos. Rompendo com aquele reducionismo, diz

que a representação constitui apenas uma das três funções originárias da

linguagem, que é utilizada também para expressar intenções do falante e firmar

relações com o destinatário do proferimento.55

Início da nota de rodapé

(55) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, 1990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos

Alemães), p. 75 e 77, e Consciência Moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, 1989 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 84, Série Estudos

Alemães), p. 79-84. Habermas observa que as teorias do significado mais

conhecidas prendem-se a uma única função da Iinguagem, impregnada da relação

sujeito-objeto, que só permite pensar o aspecto cognitivo e instrumental do processo

comunicativo. A tradição da teoria ontológica da verdade (teoria da

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correspondência), que se encontra desde a semântica de Frege até o primeiro

Wittgenstein, é rompida pela teoria do significado enquanto uso, inaugurada pelo

segundo Wittgenstein. Mas a teoria dos atos de fala, segundo Habermas, ao mesmo

tempo em que supera a filosofia do su- jeito, ressalta a importância das relações

interpessoais, no que transcende também a visão do segundo Wittgenstein, presa

ao campo dos jogos particulares de linguagem (Habermas, Pensamento pós-

metafísico: estudos filosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1 990, Biblioteca

Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Alemães, p. 74-79, 109- 1 13). Como

observa Manfredo Araújo de Oliveira, opera-se em Habermas uma reconstrução da

análise lógica, que tem em conta não só a experiência sensória, a observação (à

qual ficou Iimitado o positivismo lógico), mas também a experiência comunicativa, a

compreenção O intérprete,

Fim da nota de rodapé

Página 340

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Há de considerar-se, pois, além do aspecto cognitivo e instrumental da linguagem,

os aspectos normativo e estético-expressivo. A cada um deles corresponde

determinado tipo de proposição, que os locutores invocam visando ao entendimento

mútuo: a) aquela que se refere ao mundo objetivo das coisas; b) aquela que diz com

o mundo social das normas; c) aquela relativa ao mundo subjetivo das vivências e

emoções. O agir comunicativo envolve, portanto, ações de fala nas quais o locutor,

valendo-se daforça do argumento, busca convencer o outro não só da verdade da

proposição (a), como também de sua correção (b) e de sua veracidade subjetiva (c).

No dizer de Habermas, a guinada epistêmica da semântica da verdade está em que

não se pode mais considerar a questão da validade de uma proposição como nexo

objetivo entre linguagem e mundo. A argumentação não se reduz à tentativa de

convencer o outro da verdade daquilo que se afirma (a), envolvendo igualmente uma

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pretensão de reconhecimento dajustiça das normas invocadas (b) e da sin- ceridade

da expressão dos sentimentos do falante (c). Esta nova concepção da verdade, que

pressupõe o consenso entre aqueles que participam da ação comunicativa, não

decorre de constrangimen- tos lógicos ou empíricos, mas sim da força do melhor

argumento, da sua motivação racional.56

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

compreendedor do sentido, faz sua experiência fundamentalmente como

participante de uma comunicação na base de uma relação intersubjetiva com outros

indivfduos (ManfredoAraújo de Oliveira, op. cit., p. 324).

(56) Habermas, Pensamento pós-metaflsico: estudosfilosóficos, Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, 1990, (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos

Aleinães), p. 80-82, e Consciência moral e agir co- municativo, Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, 1989, (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 84, Série Estudos

Alemães), p. 79-84. Como ob- serva o autor, essas pretensões de validade podem

ser aceitas inques- tionavelmente (nesse caso, o entendimento consensual pode

dar-se de imediato), ou ser recusadas (nesse caso, o Iocutor tem de apresentar

novas provas para justificar suas dúvidas, cabendo ao outro apresentar contraprovas

parajustificar suas afirmações originais). Inicia-se, assim, um jogo de argumentação,

com recíprocas interferências, no qual a posição dos participantes vai-se ajustando

até que cheguem a um consenso (Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos,

Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série

Estudos

Fim da nota de rodapé

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

A reviravolta pragmática de Habermas, assim, busca suas bases num conceito

bidimensional de sociedade, considerada em seu sentido amplo. No mundo vivido,

tem-se o espaço das interações espontâneas, no qual a verdade é fruto do

consenso, este obtido por meio da discussão, onde todos os falantes participam em

igualdade de condições. A força do argumento reside na capacidade de convencer

os participantes, vale dizer, na capacidade de motivá-los a aceitar uma pretensão de

validade, que tanto se pode colocar no nível do discurso teórico (verdade das

proposições), do discurso prático (justiça das normas de ação), como também no

campo da crítica estético-expressiva (sinceridade dos proferimentos), como vis- to

há pouco. Na esfera sistêmica, por sua vez, as ações são regidas por uma

racionalidade instrumental, própria da moderna burocra- cia, que foi anexando

aquela razão comunicativa, à medida que as sociedades se tornaram mais e mais

complexas. A teoria do agir comunicativo, segundo a figura de linguagem utilizada

por Barcellona, é o antídoto mais poderoso à lógica funcionalista e à teoria sistêmi-

ca, ambas expressão do agir instrumental, que opera segundo o esquema meio-fim,

prescindindo, por isso, de qualquer recurso à motivação racional.57

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

Aleniães, 1 990, p. 80-82). Diga-se que a princípio seriam cinco as pretensões de

validade, que incluem, além daquelas enunciadas, as seguintes: o falante deve

escolher um expressão inteligível, visando ao entendimento mútuo — inteligibilidade;

o falante deve demonstrar as razões da preferência de um determinado valor em

relação a outro — adequação dos padrões de valor (Haberinas, Teorías de la

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verdad, 1 972, in Haberinas, Teoría de la acción comunicativa: complementosy

estudios previos, 4. ed. Cátedra, 1 984, Colección Teorema-Serie Mayor p. 1 33- 1

58). Todavia, como observa Manuel Atienza (op. Cit., p. 306-307), citando José M.

Mardones (Razón comunicativa y teoría crítica, Universidad del País Vasco, 1985,

págs. 1 10 e ss.), estas duas pretensões de validade acham-se inseridas no

contexto da tríade validade-correção veracidade. A inteligibilidade diz com o caráter

prévio da situação ideal de fala e a adequação dos padrões defala, que está no

campo da critica estética, também se insere como expressão de vivências

subjetivas, a par da sinceridade (ou veracidade).

(57) Pietro Barcellona, op. cit., p. 67.

Fim da nota de rodapé

Página 342

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Como já assinalado, ateoria do agircomunicativo tem um novo enfoque da ação

instrumental, que se revela no conceito do agir estratégico, também voltado para o

sucesso, no que difere da ação comunicativa, que tem em conta o entendimento

mútuo. Na interação estratégica busca-se exercer influência sobre as outras

pessoas na base de supostas regras racionais de escolha. De outra forma, a ação

instrumental, não-interativa e não necessariamente social, prescinde de qualquer

recurso à motivação racional. O que importa é a adequação entre meio e flm, a

eficácia de um expediente qualquer para influir sobre o comportamento humano. No

agir estraté- gico, as deformações induzidas pela ideologia surgem na forma de

influências externas à linguagem, as quais assumem o papel de coor- denação

antes exercido pelo entendimento nos atos de fala. Há uma emasculação da força

ilocucionária e a linguagem, assim debilitada, passa a preencher apenas as funções

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de informação que restam quando se retira do entendimento lingüístico a formação

do consenso. O ator social, a pretexto de levantar pretensões de validade em

relação ao mundo objetivo das coisas (verdade), ao mundo social das normas

(correção) e ao mundo subjetivo dos afetos (sinceridade), desenvolve um discurso

ideológico que acaba se legitiman- do na atitude passiva do interlocutor, incapaz de

fazer a crítica. Resta saber, a esta altura, se o discurso judicial é meio de ação

comuni- cativa ou de ação estratégica.

Habermas entende que o direito integra a esfera cultural, um compartimento do

mundo vivido que está preservado da ameaça da esfera sistêmica. Neste aspecto,

sua visão destoa do ponto de vista weberiano — que vê na dominação legal a

estrutura modema do Estado e da empresa capitalista privada —, tanto quanto da

análise desenvolvida pelas teorias sistêmico-funcionalistas. Habermas acredita que

é possível estabelecer pretensões emancipatórias para os atores sociais na base da

ação comunicativa, no que também se liberta da visão pessimista de Horkheimer.

Aliás, desta perspectiva instrumental, desenvolvida ao início do presente capítulo,

vinculada quase sempre a teorias jurídicas que se proclamam não-ideológicas, a

exemplo do formalismo kelseniano, o processo judicial revelou-se campo fértil para a

prática da violência simbólica. A ideologia tecnocrática também se faz presente na

dogmática processual

Página 343

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

da chamada terceirafase metodológica, que em nome do Estado Democrático de

Direito e da finalidade social do processo, desenvolveu formas de controle da

participação das massas no interior do Estado. A burocratização e a expansão

crescente do direito levaram a uma regulamentação generalizada da vida. O preço

do bem-estar generalizado, de uma justiça social ampliada revela-se, no campo do

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processo judicial, no enfraquecimento do estereótipo da imparcialidade do juiz, que

passa a interferir cada vez mais na relação entre as partes.

Na ação comunicativa, o esquema justificativo da ação está pautado em outro tipo

de racionalidade, que busca a solução dos conflitos na base da comunicação e da

integração dos atores sociais. O que as partes fazem, ao manifestar-se nos autos,

revela fins ilocucionários que não podem ser atingidos por outro caminho que não

seja o da cooperação. O sucesso ilocucionário, que ultrapassa o nível da

compreensão daquilo que é dito, depende da concordância racionalmente motivada

do ouvinte, de forma que a identificação de uma prática abusiva estará sempre na

dependência de uma verdade estabelecida consensualmente. Assim, o universo

simbólico produzido pelas partes, com recurso a expressões vazias de conteúdo

referencial (palavras ocas), mostra-se não mais como exercício da violência, do

poder, mas sim como campo de interação, onde o sentido do que se diz e do que se

faz é estabelecido de maneira cooperativa. Por isso, se a parte, depois de ter

levantado pretensões de validade em relação a sua manifestação processual, for

confrontada com críticas do interlocutor, terá de apresentar novos argumentos

parajustificar sua posição inicial. Suponha-se que o executado apresente embargos

à arrematação, dizendo que não lhe pertence o bem penhorado. Suponha-se,

outrossim, que o embargado impug- ne a afirmação fatual (propriedade ou posse do

bem), a justiça da alegação (suscitando ocorrência de preclusão) e a sinceridade do

proferimento (suscitando o uso de expediente protelatório). Caberá ao embargante

apresentar contraprovas a fim de convencer não só o juiz, mas também o

embargado, da verdade fatual, da justiça normativa e da verdade subjetiva, com o

que estará buscando afastar a pecha de litigante de má-fé.

Página 344

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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Assim, longe de discutir as intenções da parte, aquilo que está nos desvãos de sua

consciência, à maneira de um psicologismo de base subjetivista, como visto no

segundo capítulo (seção 2.2), importa mesmo considerar a motivação discursiva.58

Todo proferimento deve estar em condições de justificar-se criticamente com base

no confronto com argumentos e razões comunicativas. As proposições são racionais

não porque correspondam a uma verdade objetiva ou subjetiva, mas sim porque os

proferimentos ilocucionários atendem a critérios de argumentação convincente,

capaz de estabelecer o consenso em torno de símbolos que não têm uma referência

à realidade física. A retórica move-se, pois, num campo social, na esfera de uma

razão ampliada, que não se funda mais na relação sujeito-objeto e sim na relação

entre sujeitos. O reconhecimento da existência de uma comunidade Iíngüística, da

intersubjetividade dos atores processuais, na qual o significado de um proferimento

ilocucionário (dizer/fazer processual; manifestação/prática processual) não é posto,

mas sim discutido, permitirá compreender de que

Início da nota de rodapé

(58) Essa distinçäo vem ao encontro do corte epistemológico traçado nas últimas

páginas do capítulo anterior, quando se disse que o realismo psicológico, deixando

de lado o elemento normativo e axiológico da experiênciajurídica, acaba reduzindo o

sentido da norma à vontade do juiz, com o que fecha os olhos para a existência de

aspectos racionais da atividade judicial, cuja análise não pode ficar circunscrita às

idiossincrasias do julgador. Como adverte Manuel Atienza, a propósito de realismo

jurídico de Jerome Frank, confunde-se aqui o campo da descoberta com o campo

dajustificação. E possível que as preferências, os aborrecimentos pessoais, os

preconceitos e o estado de ânimo do juiz possam interferir na decisão judicial. Mas

isto não afasta a necessidade de justificar a decisão e tampouco converte esta tarefa

em alguma coisa impossível (Manuel Atienza, As razões do direito — teorias da

argu- mentação jurídica, São Paulo, Landy Editora, 2000, p. 26). A lógica ocupa-se

do campo da justitïcação e não do campo da descoberta (a respeito, v. Wesley

Salmon, op. cit., p. 25, e Irving Copi, op. cit., p. 20 e 2 1). Na esfera da lógicajurídica

ou da chamada teoria da argumentação jurídica, v. Manuel Atienza, op. cit., p. 84,

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Karl Engisch, op. cit., p. 84 e 85, e Alaôr Caffé Alves, Lógica — pensamento formal e

argumentação — elementos para o discursojurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 58,

59,61,73,78, 103, 104, 142e 143).

Fim da nota de rodapé

Página 345

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

forma se dá a legitimação discursiva das decisões judiciais. A fixação do significado

de uma conduta abusiva não se resume à obser- vância das regras procedimentais,

a formas de integração sistêmica. Há outras instâncias de legitimação, que dizem

com questões dejus- tiça e com a subjetividade, que estão no campo da integração

social.

O conceito de consciênciajurídica coletiva, como expressão das opiniões culturais

dominantes, que informa a noção de antijuridacidade (mais ampla que ilicitude)

debaixo da qual estaria o abuso do direito, como visto flO primeiro capítulo (seções

1.2 e 1.4), ganha aqui uma outra interpretação, que o liberta do movimento pendular

do pensamentojurídico, ora inclinado à transcendência do justo (jusnaturalismo) e

ora à imanência do justo (relação homemconsciência). Na concepção

habermasiana, a compreensão da realidade não se dá através do universal, dos

princípios, daquilo que é eterno, do gênero e da diferença. Tampouco a razão

fraturada de Kant, desmembrada nas esferas autárquicas da razão pura, da razão

prática e da crítica do juízo, permite compreender a inserção das produções teóricas

no contexto do uso, da ação e da comunicação. A mediação para as objetivações

histórico-culturais do espírito humano está localizada nO campo da linguagem e não

nos fenômenos da consciência. São as práticas materiais que estabelecem o sentido

e não a consciência.59 Importa considerar não um suposto fundamento ontológico

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dos princípios gerais de direito, mas sim a utilização desses chamados princípios

como condição retórica de sentido, invocados para contornar a estrita legalidade,

como se dis- se no primeiro capítulo (seção 1.4).60

Da perspectiva de um agir comunicativo, as partes processuais, ao invocar

pretensões de validade, apresentam mais que fatos. Submetem à apreciação do juiz

um caso, alegando que suas afirmações

Início da nota de rodapé

(59) Neste sentido, v. Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit, p. 338-348, e Sergio

Paulo Rouanet, As Razões do iluminismo, São Paulo, Compa- nhia das Letras,

2000, p. 173.

(60) A teoria do direito identifica diversos focos de significação para a palavra

princípios. Cada um deles cumpre uma determinada função retórica (a respeito, ver

Genaro Carrió, Princípios jurídicos e positivismo jurídico, Buenos Ayres, Abeledo-

Perrot, s.d., p. 33-38).

Fim da nota de rodapé

Página 346

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

sobre os fatos são verdadeiras e que suas formulações são justas e sinceras. A

verdade consensual está no confronto dessas versões e cada versão depende de

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um particular interesse de quem vê o fato e da maneira como o caso é exposto.

Ojuiz, por sua vez, não se limita a contemplar o caso, pois embora aquela situação

possa ser subsumida a determinada norma, reina entre as partes discordância

acerca da subsunção. Assim como a argumentação da parte está institu- cionalizada

por regras que dizem com o ônus da prova, o julgador também está sujeito a regras

de avaliação da prova, de sorte que a versão dos fatos vai sendo reconstruída

diversas vezes, tal como apresentada pelas partes e tal como se coloca na

decisãojudicial da primeira e das demais instâncias.6

A força ilocucionária de uma declaração sobre fato inexistente revela, no campo do

processo judicial, a impossibilidade de reduzir a argumentação jurídica à lógica dos

enunciados. Ao manifestar-se nos autos, a parte pratica um ato cujo significado será

estabe- lecido na base da interação dos sujeitos processuais. Existe aqui uma

passagem do plano do discurso para o plano da ação. Como foi visto no segundo

capítulo (seção 2. 2), a reforma ao Código de Proces- so Civil, instituída pela Lei

6.771/80, ao alterar as regras do artigo 17 e incisos, afastou-se mais e mais dos

limites éticos orientados pela dicotomia verdade objetiva e verdade subjetiva. Ao

fazê-lo, aproximou-se de um conceito social de verdade, orientação que se foi

aprofundando na reforma dos anos 90 e 2.000. O paradigma da ação comunicativa

permite entender, então, como uma declaração sobre fato inexistente, na base das

pretensões de validade invocadas pelas partes, é incorporada por esse processo

argumentativo, que mais não visa senão ao consenso, ou seja, à satisfação do

interesse social da paz jurídica, através da aplicação da lei ao caso concreto,

conforme está na Exposição de Motivos do Código.62 A ameaça de

Início da nota de rodapé

(61) Neste sentido, vale lembrar a advertência de Jan Schapp, quando afirma que a

máxima da mihifactum, dabo tibi ius não dá uma imagem exata do quadro

processuai (Jan Schapp, Problemasfundamentais da metodo- logiajurídica, Porto

Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 42).

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(62) A teoria do agir comunicativo é o pano de fundo da recente elaboração teórica

de J. J. Calmon de Passos, que refuta a visão instrumental do

Fim da nota de rodapé

Página 347

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

sanção à parte que não estiver em condições de refutar as objeções (dos outros

sujeitos processuais) quanto à verdade, a correção e a sinceridade daquela

declaração, coloca, entretanto, a delicada al- ternativa entre discernimento e

violência, uma vez que as ações de fala não podem ser realizadas com a dupla

intenção de chegar a um acordo com o destinatário e, ao mesmo tempo, produzir

algo nele de maneira causal.63 Isto implica considerações acerca da própria

fundamentação do direito moderno, que encontra em Hobbes e Locke, ainda que de

prismas diversos, explicações contratuaistas. 64

O direito, na visão de Habermas, é uma grande reserva de racio- nalidade

comunicativa. Sua dimensão retórica é o mais expressivo testemunho de sua

capacidade de resistência ao poder de expansão dos subsistemas de ação

instrumental. A elaboração de uma teoria do abuso do direito surgiu precisamente

nesse contexto do imperialismo individualista, como forma de oposição à

colonização cres- cente de segmentos cada vez mais amplos do mundo da vida.

Capturada pela racionalidade instrumental da sociedade de massas — que passou a

desenvolver códigos mais inclusivos, além do binário lí- cito-ilícito, diante do desafio

das novas demandas sociais —, vê-se agora recuperada para a filosofia. E inegável,

contudo, que a dinâmica do moderno processo judicial, conquanto orientada para a

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conciliação (haja vista a regra do artigo 125, Iv, do CPC), não pode prescindir da

obediência. Esgotadas as tentativas de entendimento, o sentido é imposto por

decisão. Mas a imposição nem sempre é sinônimo de puro arbítrio. O sentido

pragmático da expectativa de obediência à ordem estabelecida está no

reconhecimento da au- toridade, ou seja, no reconhecimento dajustiça da norma

invocada,

Início da nota de rodapé

Continuação da nota de rodapé da página anterior

processo, ao dizer que o direito só existe depois de produzido e enquan- to

produzido (op. cit., p. 22, 55, 56, 58, 69, 74, 76, 89, 91, 98 e 100).

(63) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóflcos, Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, 1 990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos

Aleniãe.s), p. 7 1 e 1 29.

(64) É o que Habermas, citando Parsons, reconhece como problema hobbesi ano

(Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1

990, Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Alemães, p. 83).

Fim da nota de rodapé

Página 348

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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critério que integra as pretensões de validade do agir comunicati- vo. Por mais

fracos que sejam os contextos normativos — diz Habermas — eles são suficientes

para autorizar um falante a ter uma expectativa de comportamento, que pode ser

criticada pelo ouvinte. O destinatário do ato de fala pode desobedecer aos

comandos que ele não considere legítimos, desde que estas ordens sejam

proferidas no contexto da ação comunicativa.65

A dissolução do fundo normativo, segundo Habermas, mostra-se sintomaticamente

na estrutura se, então da ameaça, que no agir estratégico assume o lugar da

seriedade e da sinceridade do falante... A expressão mãos ao alto!, proferida pelo

assaltante de banco que aponta o revólver para o caixa, exigindo a entrega do di-

nheiro, mostra de modo dramático que as condições de validade normativa foram

substituídas por condição de sanção... Somente no caso-limite do agir

manifestamente estratégico é que a pretensão de validade se encolhe,

transformando-se numa crua pretensão de poder, apoiada num potencial

contingente de sanção, não mais re- gulado convencionalmente e não mais

deduzível gramaticalmen- te.66 Mas esta regulação convencional também exige

uma res- posta à questão da legitimidade do direito, que consiste em saber quem

decide sobre as regras de convivência. A resposta de Habermas parece apontar

para a imagem de um direito institucionalizado, posto por decisão. O que diferencia

a ordem de um gângster, para que lhe seja entregue uma determinada soma em

dinheiro, da ordem de um funcionário de finanças, que exige o pagamento de um

tributo, é o caráter normativo.67 Qualquer semelhança entre Habermas e Kelsen,

garantem alguns, não é simples coincidência.68 A solução haber- masiana, de fato,

não parece ser muito diferente da resposta que

Início da nota de rodapé

(65) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóficos, Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, I 990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90,Série

EstudosAlemães), p. 1 16 e 134.

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(66) ldem, p. 134.

(67) Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra Arménio Amado, 1979, p.

26.

(68) Ver, neste sentido, João Bosco da Encarnação, Filosofia do direito em

Habermas: a hermenêutica, 1997, p.121, 196, 197e 203.

Fim da nota de rodapé

Página 349

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

os juristas costumam dar ao problema jusfilosófico do fundamento de validade das

normas. Entretanto, ao fundar a expectativa de obediência numa razão discursiva,

Habermas aproxima-se mais da explicação de Hart, que recorre à noção de uma

norma de reconhecimento, nem válida nem inválida, mas que simplesmente existe

como ponto de partida para a argumentação jurídica. Aqui se pode identificar a

dimensão do uso.69

Quando o ouvinte compreende e aceita a oferta contida num ato de fala que se

desenvolve no contexto da ação comunicativa, é possível dizer que o ato

ilocucionário foi bem sucedido. Além disto, pode ocorrer também que o ouvinte seja

influenciado a comportar- se de acordo com o ato de fala (sucesso perlocucionário).

Entretan- to, se as pretensões de validade levantadas pelo falante estão mina- das,

configura-se aqui um rompimento unilateral dos pressupostos do agir orientado ao

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entendimento. Essa ação estratégica parasitária do uso convencional da linguagem

fracassa tão logo o destina- tário do ato de fala se aperceba de que o falante visava

a uma finalidade que não estava posta consensualmente. Em outras palavras, havia

um suposto consenso, fruto da dissimulação daquele que invocou as pretensões de

validade O abuso dos direitos processuais, na visão de uma teoria crítica, nada mais

é que a contaminação de um agir comunicativo por um agir estratégico. O

significado ilocu- cionário do ato acaba se desfigurando no momento em que cumpre

função perlocucionária diversa. E o caso, por exemplo, da colusão, uma das formas

de uso anormal do processo, em que os litigantes, previamente combinados,

praticam atos processuais (força ilocu- cionária) com vista à produção de efeitos

(força perlocucionária) diversos daquele que resultava da manifestação mesma das

partes. Nesta situação perversa, os atos de fala das partes não são propria- mente

ilocucionários, pois não visam a uma escolha racionalmente motivada por parte do

julgador, que decide na errônea suposição de

Início da nota de rodapé

(69) Herbert L.A. Hart, O conceito de direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,

1986, p. 1 l 1-121 Diga-se de passagem que J. L. Austin, no quai se inspirou

Habermas, tinha Hart como um dos seus interlocuto- res, como expressamente

mencionado por Austin em nota de agradecimento (J. L. Austin, op. cit., p. 25, nota

9).

Fim da nota de rodapé

Página 350

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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uma ação comunicativa. Quando o iuiz, convencendo-se de que as partes querem

se servir do processo para a prática de ato simulado, obsta ao uso anormal do

processo (art. ¡ 29 do CPC), está rejeitando as pretensões de validade invocadas

pelos supostos litigantes.70

No discurso processual o agir estratégico é quase sempre latente. As partes nunca

dizem tudo até o fim, o que lhes permite voltar atrás quando pilhadas em alguma

situação que possa comprometer as pretensões de validade inicialmente

invocadas.71 Os sujeitos processuais, além disto, utilizam-se de palavras ocas

como se elas tivessem uma dimensão cognitiva. A disputa em torno de uma ver-

dade subjetiva ou de uma verdade objetiva, como limite ético da conduta processual

das partes, levanta pretensões de validade que

Início da nota de rodapé

(70) Idem. p. 72-75, 96 e 97. O exemplo típico que bem ilumina o assunto é o do

devedor que, para fraudar os credores, simula débito a um comparsa, em favor do

qual assina promissórias. O processo para a cobrança do débito simuiado, nesse

caso, visaria a frustrar o pagamento dos credores ou, pelo menos, a aviltá-lo (Hélio

Tomaghi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, São Paulo, RT, 1974, p.

401). E o caso também da parte que confessa dívida, numa ação que lhe é

promovida pela companheira, comprometendo, assim, a meação da esposa na sa-

tisfação do suposto débito (TA Rio de Janeiro, 1 a Câmara Civil, Ap. 95.677, rel. Juiz

Perlingeiro Lovisi, 22.1 1.83). Também é o caso da si- mulação fraudulenta entre

exeqüente e executado para penhorar bens da pessoajurídica em que a maioria das

quotas pertence ao executado, em razão de dívida que por ele já fora paga (1 .° TAC

São Paulo, 8. Câ- mara, Ap. 358.690, rel. Costa de Oliveira, 16.09.86). Ambos

acórdãos estão em Darcy Arruda Miranda Jr. et alii, CPC nos tribunais, vol. 3, São

Paulo, Jurídica Brasileira, p. 2001-2002.

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(71) ParaMarilena Chauí, o discurso ideológico é feito de espaços em bran- co. E

graças a essas lacunas que o discurso se apresenta como coerente. Se o discurso

disser tudo que pretende dizer ele se autodestrói como ideologia (Marilena Chauí,

Cultura e democracia: o discurso compe- tente e outrasfalas, 3. ed, São Paulo,

Moderna, São Paulo, p. 21-22). E comum na doutrina jurídica o argumento de que o

advogado não está obrigado a dizer toda a verdade, mas apenas aquela porção da

verdade que possa estar contida nas razões de seu cliente (neste sentido, v. Ruy de

Azevedo Sodré, A ética profissional e o estatuto do advogado, São Paulo,LTr,

1975,p. 110).

Fim da nota de rodapé

Página 351

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

não se sustentam senão na base da ocultação do uso performativo da linguagem

processual, vale dizer, do seu contexto pragmático. O sucesso ilocucionário de um

testemunho, por exemplo, pode ver- se comproinetido pela desconsideração de uma

simples formalidade. Um uso estratégico parasitário do agir comunicativo consistiria,

neste caso, em plantar alguma nulidade na colheita da prova oral desfavorável à

parte, para depois, invocando o error in procedendo, poder tirar vantagem da

anulação do ato processual. Essa prática abusiva alimenta-se das pretensões de

validade pressupostas no agir comunicativo.

A esta altura, impõe-se retomar o desafio de dar resposta a uma questão que está

presente no primeiro e segundo capítulos e que consiste em saber se a ação

orientada para finalidades individuais, na base de estratégias de influência, que

Habermas vê como desvio do paradigma da comunicação, como deformação

ideológica, não seria ela mesma expressão de uma particular racionalidade do di-

reito, em vez de simples irracionalismo oportunista e parasitário. Afinal, a decisão

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judicial é um ato de poder, que se revela não ne- cessariamente numa relação de

força, mas num conjunto simbólico por meio do qual se procura influenciar a ação

dos participantes na base da ameaça da sanção (poderjurídico). A violência

simbólica estaria na própria gênese do discurso jurídico, não se revelando apenas

em contextos de frustração do entendimento. No dizer de Francisco Ramos Méndez,

o processo não é uma disputa entre ca- valheiros, cheia de flores e mesuras.... Nele

se refletem as mesmas tensões do resto da sociedade.72 Avalizar esta interpretação

implicadia reconhecer que o abuso do direito processual, como agir estratégico, não

é parasitário do agir comunicativo e tampouco uma alternativa para a ação

comunicativa fracassada. Engendrado nas relações de poder constitutivas do próprio

direito da sociedade moderna, o abuso dos direitos processuais somente ganha

sentido no processo de produção concreta do direito. Ainda aqui Habermas

vislumbra vestígios de mundos da vida compartilhados intersubjetivamente,

Início da nota de rodapé

(72) Francisco Ramos Méndez, Abuso de derecho en el proceso?, in José Carlos

Barbosa Moreira (org.) Abuso dos direitos processuais Rio de Janeiro, Forense,

2000, p. 6.

Fim da nota de rodapé

Página 352

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

base imprescindível até mesmo para as interações estratégicas.73 Com ser um ato

impositivo, a decisão judicial não pode prescindir da referência a certos valores, e

tampouco da utilização da função expressiva da linguagem.

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Habermas sustenta que somente uma metalinguagem crítica, ou seja, só mesmo

uma teoria crítica da ideologia, desenvolvida do ponto de vista da gênese e da

validade, estará em condições de de- nunciar a contradição interna do discurso

ideológico, fazendo-o explodir. Esta atitude teórica dialética implica uma crítica das

pre- tensões de validade do ponto de vista um terceiro observador, o que acaba

resgatando o lugar privilegiado da relação comunicativa.74 Ao mesmo tempo, ela

recupera a dignidade do campo retórico, que deixa de ser espaço do puro arbítrio,

como faria supor uma filosofia centrada no sujeito. Esta perspectiva, aliás, é também

uma resposta às dificuldades em que a teoria dos atos de fala acabou

desembocando no final do capítulo anterior, mais precisamente à dificuldade con-

sistente em fundar umal teoria crítica da ciência na base do uso de uma linguagem

que é, ela própria, objeto daquela reflexão proble- matizadora. Todavia, como

apontado no segundo capítulo (seção 2.3), não se pode desconsiderar as

dificuldades em estabelecer limites entre a metalinguagem epistemológica (teoria do

direito) e a linguagem da ciência prática (dogmática jurídica). Diante disso, resta

saber da possibilidade desse distanciamento entre teoria e ciên- cia prática do

direito, como proposto por Habermas.

5.4 A possibilidade do agir comunicativo no processo judicial

Diz a fábula de Esopo que o vento e o sol discutiam para saber qual dos dois era o

mais forte, quando avistaram um viajante andando pela estrada. Combinaram,

então, que aquele que conseguisse fa- zer o homem tirar o casaco seria

considerado o mais forte dos dois. O vento deu um sopro tão intenso que quase

arrebentou as costuras

Início da nota de rodapé

(73) Habermas, Pensamento pós-metafísico.. estudos filosóficos, Rio de Ja- neiro,

Tempo Brasiieiro, 1990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos

Alemães), p. 98.

(74) Idem, p. 87, 88, 102 e 103.

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Fim da nota de rodapé

Página 353

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

do casaco. Mas como o viajante segurasse firme suas vestes, de nada adiantou o

vento continuar soprando até se cansar. Chegou a vez do so1. Primeiramente ele

afastou as nuvens das redondezas e depois apontou seus raios mais ardentes para

a cabeça do viajante. Em pouco tempo, frouxo de calor, o homem arrancou o casaco

e correu para a sombra mais próxima, concluindo, assim, Esopo que mais pode a

persuasão que a força.75 Na linguagem figurada dessa personagem possivelmente

lendária da tradição grega, a retórica surge como forma de interferir na vontade das

pessoas, como ação voltada ao convencimento. ParaAristóteles, tanto quan- to a

poética, a retórica se move no campo do imaginário, com a só diferença da sua

finalidade específica, que é a persuasão. Nessa medida — e como foi dito no início

do terceiro capítulo — a retórica se aproxima da técnica, cumprindo importantes

funções na esfera das controvérsias.

Na alegoria de Esopo, os argumentos que levam o homem à ação sugerem um

plano racional (o sol apontou seus raios para a cabeça do viajante), diferente, é

claro, do paradigma da racionalidade ló- gico-formal, que se esgota nos conceitos

analíticos e nos conceitos empíricos. A união entre ciência (episteme) e técnica

(techne), como delineada pelo modo de produção capitalista, coloca sobretudo para

o direito a necessidade de compreensão da ação prática de um pon- to de vista

diverso daquele situado na filosofia do sujeito. A dog- máticajurídica, como técnica

institucional, assume o papel de uma razão que produz conhecimento ao mesmo

tempo em que procura interferir na sociedade, O sentido dessa produção, por certo,

não pode ser encontrado na razão pura, numa forma de conhecimento que

desconsidera o agir social, a maneira como as pessoas usam palavras, definições e

teorias, O pensamento jurídico da segunda metade do século XX, compartilhando o

caminho trilhado pela fi- losofia analítica, deixou-se influenciar pelo paradigma da

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razão prática. Não se trata apenas de denunciar a razão instrumental, as

conseqüências trágicas da cibernética, mas também de voltar os

Início da nota de rodapé

(75) Esopo, O vento e o sol, in Russell Ash e Bernard Higton (compiladores),

Asfábulas de Esopo, São Paulo, Companhia das Letras, 1994,

p. 28 e 29.

Fim da nota de rodapé

Página 354

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

olhos para uma nova racionalidade, construída por aqueles que participam do

processo de comunicação.

A concepção tópica do direito, a nova retórica de Perelman e a lógica informal de

Toulmin, revelam uma nova atitude epistemoló- gica diante de um saberjurídico

dividido entre necessidade de sistematização conceitual e necessidades práticas.

Essa tensão, insustentável de um ponto de vista da razão tradicional, acaba

conduzindo o direito a um dilema. Sob o prisma do positivismo metodológico, o

medo da contaminação ideológica faz com que o espaço da decisão jtirídica seja

relegado à esfera da política — com total isenção da responsabilidade social do

operador do direito — campo fértil para o decisionismo, para a tirania da imprevisão.

De outro lado, sob o prisma do realismo jurídico, a decisão judicial, produto da

vontade do julgador e não da razão, também surge como alguma coisa

essencialmente arbitrária.76 A teoria da argumentação jurídica coloca-se, contudo,

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como uma terceira via, com perspectiva cognoscitiva, prática e política diversa

daquela que tem orientado o debate em torno da natureza e das funções do direito.

Importa conhecer, mais do que o campo da descoberta, as formas dejustficação das

decisões judiciais.

A dificuldade de entender a conjugação entrejuízos assertóricos e juízos valorativos

sobre o direito (de uma proposição do ser não

Início da nota de rodapé

(7) A propósito do positivismo metodológico, ver a crítica de Enrique Zuieta Puceiro,

Racionalidady objetividad cientifica en la teoría pura del derecho, in Agustin Squella

et alii, Apreciación critica de la teoría pura del derecho, Vaiparaiso, Edeval, 1 982, p.

89 e 90. A respeito da critica ao realismojurídico (mais especificamente ao realismo

sustentado por AIf Ross), e também da crítica ao decisionismo, ver Manuel Atienza,

op. cit., p. I 72, I 97 e 299. O movimento de politização dojurídico e da juridicização

do político, como apontado no final da seção 5.2, busca ocupar esse espaço de

irracionalidade, perdido para uma razão instrumental, que se revela no

democratismo e nas práticas assembleístas, deformações das democracias

parlamentares ocidentais. Em termos habermasianos, trata-se de resgatar a

concepção emancipatória da razão. A dificuldade, conforme será visto, consiste em

saber qual é o novo padrão de racionalidade jurídica. A respeito, v. Calsamiglia, op.

cit., p. 261 e 262.

Fim da nota de rodapé

Página 355

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

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se pode retirar uma proposição do dever ser) nasce de uma limitação imposta pelo

pensamento lógico-formal. A falácia naturalística, o sofisma denunciado pelo

positivismo conceitual, dissolve-se quando a reflexão jurídica se dá conta de que a

argumentação, no nível epistemológico, prático e político, não se esgota no

encadea- mento de enunciados, num processo dedutivo onde a verdade da

conclusão é decorrência necessária da verdade das premissas. Com efeito, nem

sempre a premissa normativa contém todas as informações necessárias à

conclusão. A premissa menor, o enunciado de fato, não é categórico, pois faz

referência a termos que não indicam classes. Poder-se-ia cogitar de um argumento

condicional do tipo Se p, então q; p; q, de uma hipótese de afirmação do

antecedente, como é apresentado o argumentojurídico nas elaborações mais usuais.

Sucede que o enunciado de fato é resultado de uma complicada cadeia

argumentativa, não necessariamente linear, que envolve não só argumentos

indutivos, como demonstrado no terceiro capítulo (seção 3.4), mas também

justificativas de conteúdo axiológico. Demais, a argumentaçãojurídica não se dá

apenas no campo semântico, mas também na esfera pragmática, o que envolve a

avaliação do peso do argumento consideradas as pretensões de cada um dos

falantes.

O interesse pela argumentação jurídica ressurgiu nos anos 50, particularmente com

a obra de Theodor Viehweg, Tópica e juris prudência. Nela revive a dialética

aristotélica — depois do ocaso experimentado na Idade Moderna — numa releitura

que é também orientada pela Ciência Nova de Giambattista Vico. Na dialética aris-

totélica opõem-se osjuízos apodíticos e osjuízos dialéticos; de um lado, as longas

cadeias dedutivas (sorites), de outro, os argumentos que partem apenas do

verossímil, do provável e não do verdadeiro. Vico busca conciliar o antigo, o retórico,

com o moderno, com o modo de pensar cartesiano. Na dedução, o ponto de partida

não pode ser eliminado e nem posto em dúvida. De outro modo, na tópica, o senso

comum, aquilo que parece certo, é o mote da descoberta de diversos pontos de

vista, de uma trama de opiniões a partir da qual se desenvolve uma rede de

silogismos, argumentos contra e argunentos afavor Viehweg busca então examinar

de que forma se dá a argumentação no direito romano, chegando à conclusão de

que as disputas eram orientadas pela endoxa, proposições verossímeis

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

senão aos olhos de todos, dos sábios, dos mais conhecidos e famosos. Parte depois

para a classificação destas opiniões reconhecidas, desses topoi, a fim de entender

como se relacionam, particularmente na retórica ciceriana. O Iegado dessas

elaborações revela-se, já ao final da Idade Média, nas chamadas artes liberais, quer

dizer, na gramática, na retórica, na dialética, na aritmética, na geometria, na música

e na astronomia. A tópica está presente, no trivium que a Idade Média recebeu e

cultivou como escolástica, nas três primeiras delas.77

Diferentemente da razão lógico formal, a tópica está orientada para o problema, de

onde se vê a incorporação do estilo mental dos sofistas e dos retóricos na

elaboração aristotélica. As aporias, as questões sem saída, conduzem a um modo

de argumentar que é a negação do estiolamento da fantasia e da imaginação, da

pobreza da linguagem. Para buscar o consenso em torno das opiniões é preciso

ultrapassar o pensamento sistemático, ao qual se contrapõe o pensamento

problemático, o que não implica negar a existência de relações entre esses dois

sistemas. Numa visão sistemática, remanescem problemas insolúveis, que não são,

porém, desprezados pela tópica, estilo de argumentação que coloca a tônica no

problema e não no sistema. Cícero desenvolveu uma espécie de catálogo de tópicos

(tópica de segiindo grau), sempre provisórios e elásticos, lugares comuns que

permitem chegar às conclusões e que variam segundo o ramo do conhecimento de

que se esteja tratando. Este aspecto funcional não se concilia com longas cadeias

conceituais, que levariam a conclusões extensas e absolutamente corretas (ars

iudicandi). Em vez disto, cumpre deixar sempre presente o problema, a busca das

premissas, que estimula a ars inveniendi. As diver- sas formas de analogia, ainda

hoje muito utilizadas na argumentação jurídica, são exemplo desse estilo de

argumentar onde o senso comum, a noção de semelhança e não de identidade,

orienta as diversas soluções possíveis para o mesmo caso concreto.78

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Início da nota de rodapé

77) Theodor Viehweg, Tópica ejurisprudência, Brasília, Departamento de Imprensa

Nacional e Editora Universidade de Brasília, 1979 (Coleção Peiisamento Jurídico

Contemporâneo, 1), p. 17-32.

(78) ldem, p. 33-41.

Fim da nota de rodapé

Página 357

RAZÃO COMUNTCATIVA E A PRAGMÁTICA

Está claro, como acentua o próprio Viehweg, que a tópica abre um amplo espaço

para a hermenêutica, do que não se pode cogitar quando a argumentação se

desenvolve no plano da lógica dedutiva. A interpretação na base do senso comum

move-se não só no campo semântico, monológico, como também na esfera

pragmática, dia lógica, pois as premissas do argumento se legitimam pela aceita-

ção do interlocutor. O debate, a controvérsia, orienta-se por premissas que se

consideram relevantes, irrelevantes, admissíveis, inadmissíveis, aceitáveis ou

inaceitáveis, sempre a caminho do consenso. Viehweg considera que, quando se

trata de estabelecer um sis- tema dedutivo, a que toda ciência, do ponto de vista

lógico, deve aspirar, a tópica tem de ser abandonada... Valores como defensável,

ainda defensável, diflcilmente defensável, indefensável etc. care- cem aqui de

sentido. Talvez na seleção de proposições centrais — acrescenta ele — a tópica

possa conservar alguma importância.79 Estas reflexões permitem distinguir duas

perspectivas importantes do conhecimento jurídico, quais sejam, ajustificação

interna e ajustificação externa. Ao mesmo tempo, permitem responder a uma crítica

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geralmente endereçada à concepção tópica do direito, da qual se diz que elabora

conceitos vagos, fazendo afirmações ingênuas sobre a justiça.8°

A lógica dedutiva possibilita uma justificação do direito do ponto de vista interno.

Todavia, quando se trata dejustificar a escolha da premissa normativa (o que

envolve problemas de subsunção e de interpretação) e de avaliar a prova (o que

envolve regras institucionais, como é o caso do ônus da prova, das presunções e da

preclusão), há de se recorrer a uma justificação externa, que vai além da lógica em

sentido estrito. A par das dificuldades na fundamentação das premissas e na

apreciação da prova, tem se de considerar que a argumentação jurídica é dialógica,

o que interfere com o con- teúdo pragmático do ato de fala. Viehweg — ao que se

entende — buscou ressaltar a importância do lugar-comum nos mais variados

campos do conhecimento. Os diversos sentidos de um topoi (que

Início da nota de rodapé

(79) Idem, p. 42 e 43.

(80) Manuel Atienza, op. cit., p. 70-72 e 74, e Luis Alberto Warat, Mitos e

teorias na interpretação da lei, Porto Alegre, Síntese, p. 86 e 87.

Fim da nota de rodapé

Página 358

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

os críticos apontam como vagueza do conceito) lembram a referência que

Wittgenstein faz aos distintos jogos de lingtLagem, que se alteram na conformidade

das diversas situações sociais, dos diferentes campos da atividade humana, de

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mundos da vida contrastantes. Lembre-se que asformas de vida não surgem como

um conceito analítico, fechado. O ser vago, impreciso, é aquilo que permite a

utilização do conceito neste ou naquele contexto comunicativo. Mais importante que

a função designativa é a capacidade de estabelecer o sentido através das ações

humanas. Bem por isso, os topoi ora aparecem como conceitos doutrinários, ora

como princípios gerais de direito ou máximas da experiência, mas sempre como

fórmulas de procura, no dizer de Tercio Sampaio Ferraz Jr.,8 necessariamente

ambíguas e vagas, como convém aos instrumentos de composição dos conflitos.

Mas assim como a filosofia analítica, em um determinado momento das elaborações

em torno da Iinguagem, sentiu que era ne- cessário estabelecer instrumentos de

análise mais precisos — o que levou ao desenvolvimento da teoria dos atos de fala

— igualmente, no campo da argumentação jurídica, faz-se sentir a necessidade do

desenvolvimento de uma teoria da argumentação que não só descreva como o

discurso jurídico efetivamente ocorre, mas que também estabeleça regras,

procedimentos de argumentação racional. Uma tal perspectiva, ao mesmo tempo,

permite demostrar a falsi- dade do dilema entre o racional e o irracional, embaraço a

que a teoria do direito foi conduzida pelas mãos do positivismo jurídico, do

decisionismo e do realismo psicológico. Esta superação de paradigmas não é

monológica, mas dialógica. Ao debater sobre a argumentação (discurso sobre o

discurso), os cientistas discutem até chegar a um consenso. Desenvolvem-se aqui

argumentos com vista à formação do paradigma, que uma vez aceito na base da

unanimidade, instaura um período de ciência normal, madura. Incapaz de dar

explicações para fatos novos, o paradigma entra em crise.

Início da nota de rodapé

(81) Tercio Sampaio Ferraz Jr., Prefáci à tradução brasileira da obra de Theodor

Viehweg, Tópica e jurisprudência, Brasília, Departamento de Imprensa Nacional e

Universidade de Brasília, 1 979 (Coleção Pensa- mentojurídico conteinporâneo, ed.

1), p. 5.

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Fim da nota de rodapé

Página 359

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

Paralelamente, outros paradigmas vão surgindo no horizonte da ciência, com o que

se iniciam as chamadas revoluções científicas, as quais só se consolidam quando

um novo consenso se estabelece em torno do outro paradigma, dando lugar a um

novo período de ciência normal. Enfim, o significado da ciência é convencional. A

estrutura das revoluções cientifìcas, a que se fez referência no quarto capítulo

(seção 4. 3), permite entender, dessa forma, como se entre cruzam as elaborações

de Thomas Kuhn e Habermas, agora no plano da metalinguagem científica. A teoria

do direito, sob este enfoque, somente poderá responder aos desafios colocados no

final da seção anterior caso se mostre capaz de articular o consenso.82

A teoria do direito desenvolve instrumentos conceituais para a representação do

conhecimentojurídico. Analogamente, a teoria da argumentação desenvolve

instrumentos para que se possa entender o papel da inferência na argumentação

jurídica. Ambas cumprem uma função descritiva e prescritiva. A tentativa de buscar

uma teoria da argumentação que atenda às demandas cognoscitivas, práticas e

morais do direito mais não é que reivindicar uma racionalidade jurídica fundada nas

pretensões de validade do agir comunicativo.83 A nova retórica de Perelman, que

parte do mesmo campo de

(82) A respeito de uma aplicação da teoria do paradigma ao campo do direito, ver

Enrique Zuleta Puceiro, Teoriajurídica y crisis de legitimacion, in Anuário de Filosofia

Jurídica y Social, Associación Argentina de Derecho Comparado — Sección Teoría

General, Buenos Aires, Abeledo- Perrot, 1 982, p. 289-306.

Início da nota de rodapé

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(83) A análise do discurso científico de uma perspectiva do agir comunicativo lança

um novo olhar sobre o problema da cientificidade, tal como proposto pela

epistemologia tradicional. As tradições metafísica e positivista da ciência têm

reivindicado critérios inflexíveis de demarca- ção entre aquilo que deve ou não ser

considerado como ciência. Contrapõem o conhecimento científico às representações

ideológicas e às configurações metafísicas, distinguindo a verdade do erro, o sentido

referencial das alusões conotativas, a doxa da episteme. A verdade consensual,

como visto na seção anterior, compõe essas dicotomias na base de outros critérios

de racionalidade (ver, num sentido muito próximo, Luis Alberto Warat, Esboçospara

uma epistemologia das signijìcações e suas projeções sobre o direito, mimeo, s.d.,

p.4).

Fim da nota de rodapé

Página 360

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

investigação descoberto por Viehweg, também se mostra como tentativa de resgatar

a dignidade da razão prática, no que se pode identificar, igualmente, diversos pontos

de contato com Habermas. Depois de empreender uma frustrada tentativa de

resposta às questões dajustiça de um ponto de vista referencialista, Perelman se

apercebeu da aporia dessa empreitada, que envolve além do valor ético social de

proporcionalidade, critérios de justa proporção.84 Essas reflexões, que já estão em

Aristóteles, na Etica a Nicômaco (Livro V), estimularam Perelman ao confronto entre

raciocínios dedutivos (os dos Primeiros e Segundos Analíticos) e dialéticos (que

estão na Tópica, na Retórica e nas Refutações sofisticas). A nova racionalidade de

Perelman orienta-se, então, por uma razão prática, que encontra no campo do

direito uma espécie de modelo.

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Importa aqui, considerados os propósitos do presente trabalho, a breve análise de

dois conceitos desenvolvidos por Perelman, em conjunto com Lucie Olbrechts-

Tyteca, no Tratado da Argumentação, seguida de algumas considerações que darão

apenas um panorama de sua retórica geral. O primeiro deles, auditório, faz

referência ao conjunto daqueles que o orador quer influenciar com sua

argumentação.85 O segundo conceito é menos preciso e diz com a noção (mais

propriamente) de auditório universal,86 vale dizer, o conjunto de todos os seres

dotados de razão, diante do qual se argumenta. Apesar de não se tratar de um

conceito empírico, mas sim ideal, é certo que o auditório universal varia de orador

para orador e também de acordo com os propósitos do mesmo orador.87 A argu-

mentação persuasiva é válida para um auditório particular, enquanto a

argumentação convincente é aquela que tem em conta o auditório

Início da nota de rodapé

(84) Segundo registro de Manuel Atienza, essas reflexões foram desenvolvidas por

Pereiman em uma obra intitulada Da justiça, publicada em 1945, na qual este autor,

partindo das elaborações de Frege, tenta desenvolver uma idéia racional, uma

noção válida dejustiça, isenta de valor (Manuel Atienza, op. cit, p. 81).

(85) Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da Argumentação: a nova

retórica, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 22.

(86) Idem, p. 34-39.

(87) Idem, p. 7 e 8, 22-28.

Fim da nota de rodapé

Página 361

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

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universal.88 Perelman, aproximando-se mais e mais do eixo pragmático de

Habermas, ressalta que a argumentação prescinde da ameaça e do uso da violência

física,89 partindo de premissas que são postas consensualmente, ainda que a

escolha dos objetos de acordo, dos elementos e da forma de argumentação, possa

ter a iniciativa do orador, que tratará de usar noções imprecisas o bastante para

gerar o convencimento. Na apresentação das premissas, outrossim, o orador

cuidará de utilizar determina das figuras de argumentação, que os lingüistas e

gramáticos conhecem como figuras de estilo (figuras de palavras, de construção e

de pensamento), tudo com vista a criar uma comunhão em torno de determinados

significados, já de certa forma reconhecidos pelo auditório, os quais tratará de

ampliar e valorizar.9°

Perelmam e Olbrechts-Tyteca passam a desenvolver, na última parte do Tratado,

uma minudente classificação de técnicas argumentativas, cuja insuficiência eles

mesmos reconhecem, e à qual atribuem uma importância de certa forma relativa. E

que ao orador caberá estabelecer a interação dos argumentos. Vários deles podem

servir a um mesmo propósito. A escolha haverá de ter em conta a situação

argumentativa, o que exige do orador a capacidade de avaliar a força dos

argumentos. Esta é uma noção que os próprios autores admitem como confusa, mas

também indispensável.9 Há, em diversos momentos da obra, uma tentativa de

aproximação do significado, na base de Iugares comuns, de recomendações

voltadas ao bem argumentar, o que confere ao Tratado uma feição descritiva (o

argulnento forte é aquele eficaz, que determina a adesão do auditório) e prescritiva

(o argumento forte é aquele válido, que tem de seguir regras para a adesão do

auditório). Perelman sustenta que não é possível uma dissociação absoluta desses

dois pontos de vista, pois tanto a eficácia quanto a validade se definem em relação a

um determinado auditório, cujas reações dão a medida daquilo que

Início da nota de rodapé

(88) Ideni, p. 29-34.

(89) Idem, p. 61-70.

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(90) Idem, p. 73-208.

Ideni, p. 524.

Fim da nota de rodapé

Página 362

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

convence e os fundamentos das normas de convencimento. A eficácia, por vezes,

fornece o critério de validade do argumento e a idéia que se faça da validade influi

sobre a eficácia das técnicas de convencimento, o que se vê, por exemplo, na

hipótese em que a outra parte, diante da recusa do orador em justificar suas

afirmações, diz mas você deveria dar razões para isso.92

Essas considerações têm importante significado no direito, um dos campos de

aplicação específica da retórica geral, alterando a concepção da lógica jurídica. Não

se trata mais de desenvolver regras de correção interna do argumento, relacionando

evidências e conclusão, como ocorre na lógica formal, mas sim de mostrar o peso

das premissas. Segundo Perelman, nada impede que a argumentação jurídica se

desenvolva em forma de silogismo, o que não garante, contudo, a verdade da

conclusão. A argumentação aqui é dialética, mas num sentido diverso daquele que

Aristóteles atribui a esta expressão. A decisão judicial supõe sempre a possibilidade

de decidir de outra maneira. Muitas vezes o julgador forma seu convencimento na

base de considerações extra jurídicas e depois sai em busca das premissas

adequadas para fundamentar a conclusão. A demais, o juiz não atua de maneira

solitária, pois haverá de conciliar os argumentos apresentados pelas partes.93

Entende-se, neste ponto, que tanto o julgador desempenha o papel de auditório

universal em relação às partes, que buscam convencê-lo de suas razões, como as

partes também desempenham o papel de auditório universal em relação ao juiz. A

relação é dialógica, o que aproxima Perelman e Habermas.94

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Início da nota de rodapé

(92) Idem, p. 523-529.

(93) Perelman, La lógicajurídicay la nueva retórica, Madrid, Editorial Civitas, S. A., p.

10, 1 1, 165, 166, 201 e 232. Para Perelman, tem-se de admitir, como sustenta

Kalinowski, que não há mais que uma lógica formal. Nela, entretanto, não se esgota

o pensamentojurídico (ide,n, p. 12-14).

Habermas utiiiza-se da noção de auditório universal, fazendo expressa menção a

Perelman, ao falar dos acordos racionalmente motivados, da teoria consensual da

verdade (Habermas, Teoría de la acción comuni- cativa, 2. ed., vol. 1, Madrid,

Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, S. A., 200 1 (Colección Humanidades-Filosofía), p.

48-50. A noção de audi-

Fim da nota de rodapé

Página 363

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

Mas a idéia de um auditório ttniversal, de um consenso habermasiano, naquilo que

envolve a relação dialógica entre o iuiz e as partes, não deixa de suscitar alguns

problemas, que ferem preci- samente a possibilidade de um agir comunicativo no

processo judicial. Com efeito, as especificidades da controvérsia judicial, as regras

institucionais do debate, implicam uma decisão imposta pela autoridade

constituída.95 Todavia, de outra parte, segundo Perelman, o juiz tem de buscar a

adesão das partes. Não basta di- zer que a decisão foi tomada com base neste ou

naquele dispositivo legal. Há de demonstrar que ela é justa, oportuna e socialmente

útil. Aqui, o julgador haverá de ter em conta o ramo do direito de

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Início da nota de rodapé

tório universal suscita, entretanto, alguma polêmica, porquanto ambígua. NeIa, ora

se encontra referência a uma categoria ideal, uma construção do orador, e ora a

uma categoria que Iembra o imperativo de Kant, o que evoca a idéia de acordo

como ratio decidendi. Por isso Atienza sustenta que o auditório universal

perelmaniano é não propriamente um conceito, mas uma intuição feliz (Manuel

Atienza, op. cit., p. 1 15 e 1 1 6). Robert Alexy, por sua vez, reconhecendo esta

mesma diversidade de sentidos, sustenta que o apelo à razoabilidade da audiência

envolve a idéia de um acordo entre todos os homens razoáveis, conforme se retira

de Kant. Por isso, o auditório universal é a humanidade iluminada, composta de

seres razoáveis, ou seja, em princípio, qualquer pessoa acima dos limites da

imbecilidade. Aliás, nos discursos práticos, a participação dos pouco capazes é

obrigatória, quando menos porque seus interesses também são afetados. Um tal

estado de coisas, na interpretação de Alexy, corresponde à situação de discurso

ideal de Habermas (Robert Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do

discurso racional como teoria dajustificaçãojurídica, São Paulo, Landy Editora e

Distribuidora Ltda., 2001, p. 132-135).

(95) Não deixa de ser significativa uma distinção corrente na dogmática processual,

segundo a qual as partes argumentam, enquanto oiuiz apenas fundamenta as

decisões e sentenças. Longe de um simples jogo de palavras ou de uma disputa

semântica, a distinção mal esconde uma relação de poder, de assimetria, da qual o

direito romano já dava seu testemunho: Aliud est postulate, et aliud consulere et

aliud domi et aliud corain ,nagistratibus. Aliás, foi necessário que o Estatuto dos

Advoga- dos deixasse claro que não há hierarquia nem subordinação entre

advogados e magistrados (art. 6.°).

Fim da nota de rodapé

Página 364

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

que está tratando, e mais, o tipo de auditório a que se dirige.96 Esta idéia de

adaptação ao auditório, que já se vê no Tratado, aplica-se igualmente ao discurso

desenvolvido pelas partes, que se valem de topoi, a exemplo da noção de abuso do

direito, na tentativa de despertar a adesão do auditório.97 A escolha do argumento

adequado implica atribuir presença98 a este ou àquele elemento do discurso,

obscurecendo outros que possam não interessar. A questão da completude da

verdade, discutida no segundo capítulo (seção 2.4) in- terfere com essa

circunstância de dar-se preferência a uma versão em detrimento da outra, para o

que o orador (seja ele a parte ou o juiz) haverá de desenvolver técnicas

argumentativas adequadas. Ressaltar valores que servem aos objetivos da

argumentação, eclipsando outros, invocar um princípio geral do direito em prejuízo

de outro, utilizar a analogia a contrário senso, no caso de uma lacuna normativa,

quando em tese também caberia a analogia por semelhança, são formas de dar

presença a determinados elementos da discussão. Nos dois últimos exemplos, trata-

se de técnicas que podem conduzir o argumento a teses ou decisões opostas, o que

bem demonstra o especial significado da justificação externa nas argumentações

jurídicas.

Aquele que argumenta perante o tribunal do júri, por exemplo, muitas vezes utiliza a

retórica como expediente. O emprego

Início da nota de rodapé

(96) Pereiman, La Lógica Jurídica y Ia nueva retórica, Madrid, Editorial Civitas S. A.,

p. 142, 201 e 207. Perelman, a propósito, ressalta a importância da fundamentação

da sentença, fazendo um ligeiro escorço histórico acerca das razões que deram

origem à necessidade de o juiz motivar a sentença, ligadas à desconfiança que os

revolucionários franceses nutriam em relação aosjuízes da época, fiéis ao antigo

regime (idem, p. 202-206).

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(97) Perelman, cuidando especificamente da noção de abuso do direito, diz tratar-se

de uma construção jurídica que serve para guiar a ação dos tribunais,

proporcionando aojulgador uma adequadajustificação das premissas. Nessa medida,

cumpre papel análogo ao das teorias filosóficas, morais e políticas (idem, p. 109-1 1

1).

A propósito do conceito de presença, ver Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca,

Tratado da Argumentação. A nova retórica, São Pau- lo, Martins Fontes, 1996, p.

558.

Fim da nota de rodapé

Página 365

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

da simulação, das lágrimas insinceras e dos cumprimentos excessivos, dos artifícios

para apiedar ou para lisonjear, revelam receitas estereotipadas que muitas vezes

convencem, na dependência da qualificação do auditório e do tipo de adversário que

se tem pela frente. A repetição de fórmulas consagradas coloca em presença

determinados valores, instintos e atitudes morais do auditório. O mesmo mecanismo

de presença intervém quando se repete uma afirmação do adversário para contestá-

la. Entretanto, a maioria dos oradores prefere relegar ao silêncio uma objeção à qual

só se poderia opor uma fraca refutação, ainda que a abstenção da fala possa sugerir

concordância com a tese do adversário ou inconsistência das razões inicialmente

invocadas por aquele que agora se cala.99 O que pode impressionar, quando se

indaga da possibilidade da argumentação processual como agir comunicativo, não é

tanto a banalização dos sofismas, 05 quais obedecem a certas regras de validade

da argumentação, mas a existência de regras institucionais que interferem

diretamente com as pretensões de validade do discurso. No caso do júri

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— para ficar nesse exemplo — aos jurados não é dado expressar suas atitudes, sob

pena de nulidade do julgamento. Nem todo tipo de informação pode ser introduzida

no discurso, pois há regras legais, no direito brasileiro, que impedem o uso de

documentos em plenário caso eles não tenham sido juntados aos autos com certa

antecedência.

As regras de validade do discursojudicial e as regras de validade da teoria da

argumentação demandam, entretanto, alguns aprofundamentos. As críticas

endereçadas à retórica de Perelman versam não só acerca da imprecisão dos

conceitos como também sobre uma certa indefinição epistemológica, que está no

plano da separação entre razão dialética (raciocínio prático) e razão científica

(raciocínio teórico), aparentemente inconciliável com sua afirmação no sentido de

que é impossível assinalar com clareza o limite entre o campo cognitivo e o campo

axiológico do saber jurídico. A vagueza do conceito de auditório universal (ainda que

se possa reconhecer nele um núcleo de sentido ligado à idéia do consenso), dificulta

o desenvolvimento de padrões de avaliação do discurso, o

Início da nota de rodapé

(99) Idem, p. 5 1 1, 546 e 562.

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

que também tem repercussões, considerado o significado convencional da ciência,

no plano epistemológico. A teoria da ação comunicativa, ao sustentar que a verdade

daquilo que é afirmado depende dajustificação da afirmação (e não ao contrário,

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como supõem as teses referencialistas), postula, de um ângulo pragmático, a exis-

tência de um valor verdade também para os proferimentos normativos. A tarefa

seguinte consiste em fundar regras de justificação desse tipo de enunciado, com o

que Habermas dá um passo decisivo no plano da racionalidade jurídica.

A lógica da argumentação, em Habermas, é uma lógica do dis- curso pragmático,

onde importam não as sentenças mesmas, mas a atitude que cada um dos falantes

assume ao falar. O consenso está baseado naforça do melhor argumento. Assim,

cada uma das partes sustenta umapretensão, que varia segundo os contextos de

ação, vale dizer, de acordo com as instituições onde se desenvolve o discurso (um

tribunal, uma assembléia, um congresso científico etc.). Se ela for questionada, o

proponente haverá de dar suas razões, fundadas em fatos relevantes e suficientes.

Mas não bastam os fatos, o caso concreto. Se o oponente exigir que a outra parte

justifique a passagem das razões para a pretensão, aquele que a invocou haverá de

apresentar garantias, cujo grau de sustentação varia na base de qualificadores

modais, a exemplo de provavelmente, presumivelmente, ao que parece, e sempre

na dependência de existirem ou não condições de refutação específicas. As

garantias são e nunciados que descrevem regras. No caso da argumentação

jurídica, trata-se de regras gerais e abstratas, que tanto podem ser um princípio

quanto uma norma costumeira ou escrita. A validade da regra, por sua vez, diz com

o conceito de respaldo, que somente se torna explícito se a garantia é questionada.

A Iei posta, a noção de um direito natural, seriam critérios de justificação última. O

argumento nada mais é que ajustificação de uma pretensão de validade levantada

pelo falante.

Início da nota de rodapé

(I (10) Para o aprofundamento dessas críticas — e também para uma crítica ideo-

lógica — ver Manuel Atienza, op. cit., p. 86, 87, 109-130.

(101) Este modelo de argumentação, que recorre aos conceitos depretensão,

razões, garantia e respaldo, desenvoivido por Stephen Toulmin (Toulmin

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Fim da nota de rodapé

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

Apoiando-se na lógica informal de Stephen Toulmin, Habermas susteflta que a

argumentação haverá de ter em conta a empresa racional dos falantes, ou seja, o

campo ou as esferas da vida, com seus diferentesjogos de linguagem, em que se

desenvolve o discurso. A verdade consensual pressupõe uma situação ideal defala.

Assim, toda pessoa que puder falar pode tomar parte no discurso (a). Seguem-se a

esia regra de universalidade, regras de ausência de coerção (b), que garantem uma

comunicação livre de restrições externas e também internas (da própria estrutura da

argumentação). Isso pressupõe uma distribuição simétrica de oportunidades entre

todos os participantes do debate, aos quais se tem de garantir a iniciativa do

discurso e sua condução dialógica, com perguntas e respostas. Assim, toda pessoa

pode problematizar uma afirmação (b.a); toda pessoa pode introduzir qualquer

afirmação no discurso (b.b); toda pessoa pode expressar suas atitudes, desejos e

necessidades (b.c). Por último, tem de haver uma regra de proteção (c), que garanta

que nenhum orador possa ser impedido de exercer os direitos estabelecidos

anteriormente. 2

Início da nota de rodapé

et alii, An jntroduction to reasoning, NewYork, 1 979), foi expressamente adotado por

Habermas, que a ele se refere como investigação pioneira. Para Habermas, a

argumentação não pode ficar reduzida à lógica dedutiva e à lógica indutiva. Há

outras formas de argumentação Iegítima, de persuasão discursiva, que não podem

ser relegadas ao campo do irracional. A respeito dessa exposição, que reproduz as

idéias de Toulmin, v. Habermas, Teoría de la acción conunicativa, 2. ed., vol. 1,

Page 542: pergamum.unisul.brpergamum.unisul.br/pergamum/pdf/000004/00000462.docx · Web viewSOUZA, Luiz Sérgio Fernandes de. Abuso de direito processual: uma teoria pragmática. São Paulo:

Madrid, Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara S. A., 2001 (Colección Humanidades

Filosofía), p. 45-54, e Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, Rio de

Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989 (BibliotecaTempo Universitário, 84, Série Estudos

Alemães), p. 83 e 84. Ainda a respeito da relação entre a teoria da ação

comunicativa e a lógica informal de Toulmin, ver Manuel Atienza, op. cit., p. 163-166

e Robert Alexy, op. cit., p. 77-86 e 98-1 17.

(02) A elaboração de Habermas foi assim reproduzida porRobertAlexy (op. cit., p. I

12), como registra o próprio Habermas (Consciência moral e agir comunicativo, Rio

de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1989, Biblioteca Tempo Universitário, 84, Série

Estudos Alemães, p. 1 12). Consigne-se, outrossim, que ao falar das condições que

caracterizam a situação ideal de fala, Habermas remete à sua Wahrheitstheoriefl,

onde ele se dedica ao tema de maneira mais minudente (Teoría de la acción

comunicativa,

Fim da nota de rodapé

Página 368

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Toulmin desenvolve uma teoria com pretensões normativas e descritivas, na qual

Habermas, entretanto, reconhece uma certa inconsistência, quando se trata de

estabelecer a mediação entre os planos de abstração que representam o lógico e o

empírico. A crítica de Habermas tem em conta o fato de que Toulmin, distinguindo

os diversos campos de argumentação de acordo com as correspondentes

instituições (o político, o jurídico, o científico), acaba buscando a lógica da

argumentação num terreno externo. Não se pode confundir, como faz Toulmin, os

contextos em que são reconhecidas as pretensões de validade com o contexto de

constituição dessas pretensões.103 Mas não há negar que a lógica informal,

comparada à tópica de Viehweg e à nova retórica de Perelman, oferece um aparato

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analítico mais refinado, que permite melhor situar a argumentação no contexto da

racionalidade pós-metafísica, à qual se reporta a teoria da ação comunicativa. A

princípio, como observa Manuel Atienza, as categorias respaldo, garantia, condição

de refutação e qualificador parecem não dizer muito mais do que já havia sido

demonstrado na lógica jurídica tradicional, desde Kalinowski. A distinção entre

garantia e respaldo mostra, dentre outras coisas, a conhecida ambigüidade entre

normas e proposições normativas. A distinção entre garantia e condição de

refutação, por sua vez, aponta para o fato de que as normas são e nunciados

hipotéticos e não categóricos.4 O qualificador por último, mostra que a passa- gem

das premissas para a conclusão nem sempre tem caráter neces- sário. Habermas,

além de reconhecer que o esquema de Toulmin está de certo modo mais próximo da

argumentação real que as propostas formais que ele critica, admite tratar-se de uma

forma de argumentação correta.5

Início da nota de rodapé

2. ed., voi. 1, Madrid, Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara S.A., 2001, Colección

Hurnanidades-Filosofía, p. 46).

(L()3) Habermas, Teoría de Ia acción cornunicativa, 2. ed., vol. 1, Madrid, Aguilar,

Altea, Taurus, Alfaguara S.A., 2001 (Colección Hurnanidades- Filosofía), p. 56-68.

° Manuel Atienza, op. cit., p. 158-162.

(105) Habermas, Teoría de Ia acción cornunicativa, 2. ed., vol. 1, Madrid, Aguilar,

Altea, Taurus, Alfaguara S.A., 200 1 (Colección Humanidades- Filosofía), p. 49.

Fim da nota de rodapé

Página 369

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

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Todo esse debate guarda estreita relação com o tema da possibilidade do agir

comunicativo no processo judicial. O reconhecimento do caráter constitutivo dos

campos institucionais, no que concerne às pretensões de validade da

argumentação, não isenta os sujeitos do processo, pelo menos no enfoque de

Toulmin, do dever de respeitar o esquema da argumentação correta, fundado

naque- las regras vistas há pouco. Robert Alexy, que se inspirou nas elabo- rações

de Toulmin e de Habermas, chega a sustentar que esse esquema pode servir de

orientação aos argumentos que se desenvolvem na praxis forense.6 Mas por tudo e

em tudo que foi visto nos dois primeiros capítulos, pesa uma fundada desconfiança

acerca da existência de uma situação ideal defala no processo judicial, onde to- dos

tenham direito à palavra, em iguais condições, longe de qualquer tipo de

constrangimento. Como ressalta o próprio Habermas, a argumentação diante de um

tribunal, como de resto ocorre com todo discurso jurídico, distingue-se dos discursos

práticos em geral por sua vinculação ao direito vigente e também por outras

restrições especiais impostas pela ordem processual, as quais explicam a

necessidade de uma decisão dotada de autoridade e a faculdade de as partes

orientarem-se com vista ao êxito. Por isso, a princípio, Habermas viu-se inclinado a

admitir que o processo judicial, como todo e qualquer tipo de discurso jurídico, é

uma ação estratégica. Nessa passagem da Teoria da ação comunicativa, ele se

reporta à posição adotada na Teoria da sociedade ou tecnologia social, obra em que

critica as limitações e contradições da teoria sistêmica. Mas foi o contato de

Habermas com a teoria da argumenta- çãojurídica de RobertAlexy que alterou,

segundo ele próprio admi- te, o rumo de suas reflexões.7

Robert Alexy desenvolve uma teoria da argumentação que se pretende descritiva e

analítica, em estreita relação com a teoria da ação comunicativa, da qual pode ser

vista como reinterpretação,

Início da nota de rodapé

(I0 Robert. Alexy, op. cit., p. 1 13.

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(07) Habermas, Teoría de Ia acción comunicativa, 2. ed., vol. 1, Madrid, Aguilar,

Altea, Taurus, Alfaguara S.A., 2001 (Colección Hu,nanidadesFilosofía), p. 60.

Fim da nota de rodapé

Página 370

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

segundo assinala Manuel Atienza.8 Para Alexy, o problema da fundamentação

última de uma determinada proposição pode ser resolvido pela exigência de uma

atividade dejustificação do debate, pautada em regras semânticas e pragmáticas

que são condição de possibilidade da comunicação lingüística. Todo discurso tem de

partir de convicções normativas dos participantes, as quais são variáveis e

historicamente delimitadas. Saber o que é certo não impli- ca necessariamente

consenso e nem disposição para segui-lo.9 Daí a necessidade de um sistema

jurídico que possa suprir esse déficit de racionalidade, cuja justificação, que também

se dá de forma discursiva, ocorre tanto na dimensão normativa (regras e princípios)

como na dimensão coativa, impondo-se àqueles que não se mostram dispostos a

observar as normas. As regras são normas que exigem cumprimento pleno (ou é o

lícito ou o ilícito), sugerindo a idéia de subsunção, ao passo que os princípios são

mandamentos de otimização que se caracterizam pela possibilidade de cumprimento

em diferentes graus, sugerindo a idéia de ponderação. Os princípios jurídicos que

informam a noção de abuso do direito seriam, assim, mais que um inventário de

topoi. Embora não se possa falar propriamente de uma teoria de princípios, há uma

ordenação entre eles, orientada por uma regra de estrutura (quanto mais alto for o

grau de desconsideração de um princípio, tanto maior deverá ser a importância do

cumprimento do outro), que estabelece uma ponderação de prioridades. As partes

podem modificar essa ordem, assumindo, então, o ônus da prova da inversão.

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O direito é composto de três tipos de procedimento: criação legislativa; discurso ou

argumentação jurídica em sentido estrito; processo judicial. Cada um deles atende a

um determinado déficit de racionalidade. As normas legislativas, por si sós, não

garantem a solução de todos os casos, diante da impossibilidade de total previsão e

à vista das vicissitudes da linguagem. A simples argumentação (dogmática jurídica)

também tem seus limites

Início da nota de rodapé

(108) Manuel Atienza, op. cit., p. 250.

((09) Robert Alexy, op. cit., p. 200.

(110) Idem, p. 218-274.

Fim da nota de rodapé

Página 371

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

porque é incapaz de dar uma única resposta correta para cada caso. Daí o processo

judicial, que se move numa esfera institucionalizada, submetendo-se a regras que

asseguram uma solução, mais propriamente uma decisão, a qual não prescinde,

contudo, do caráter argumentativo. A argumentação jurídica, no sentido amplo, é um

caso especial do discurso prático em geral, pois nela as partes sustentam

pretensões cuja racionalidade depende do fato de encontrarem fundamentação no

ordenamento vigente. Assim, além das regras do discurso prático em geral, há

aquelas específicas do discurso jurídico, de justificação interna e externa, que dizem

com a sujeição à lei, aos precedentes e à dogmática.2 Anote-se que a observância

dessas regras implica uma solução racional, mas não a única possível. Nem mesmo

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numa situação de discurso ideal (tempo e participação ilimitados; ausência absoluta

de coação e preconceitos; total clareza lingüística e conceitual; informação empírica

Início da nota de rodapé

l) As regras do discurso prático em geral foram expostas por Alexy (op. cit., p. 293-

296) no apêndice de seu livro. Trata-se de cinco regras (excluídas as formas de

argumentação), a seguir enunciadas sumariamente: a) regras básicas (não

contradição dos enunciados; sinceridade dos enunciados; universalidade dos

enunciados; aplicação analógica dos enunciados; vedação da anfibologia); b) regras

de racionalidade (são aqueias desenvolvidas por Habermas, a partir das

elaborações de Toulmin, como foi visto parágrafos acima); c) regras para alterar o

encargo da argumentação (ônus dajustificação da diversidade de tratamento

dispensado aos participantes; ônus da justificação da extrapolação do tema; ônus da

resposta; ônus da coerência de atitudes); d) regras de justificação (aceitação

consensual das conseqüências da regra; aceitação da aplicação geral e irrestrita das

conseqüências da regra; clareza e possibilidade de entendimento universal da regra;

justificação da gênese histórica e individual das regras morais que informam o

discurso do orador; consideração dos limites atuais de realização); e) regras de

transição (transitividade do discurso teórico para o empírico; transitividade para o

discurso Iingtiístico analítico; transitividade para a teoria do discurso).

(l 2) o discurso jurídico é orientado por regras dejustificação interna (lógicas) e de

justificação externa (empíricas, hermenêuticas, dogmáticas e regras de aplicação do

precedente) cuja enunciação demandaria algu- mas digressões, o que refoge aos

objetivos deste trabalho. A respeito, v. Robert Alexy, op. cit., p. 296-299.

Fim da nota de rodapé

Página 372

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

completa; capacidade de disposição para troca de papéis) seria possível assegurar

o consenso, pelo que se tem de admitir a possibilidade de respostas díspares e até

mesmo contraditórias para as mesmas pretensões de correção.113

Todavia, essas dificuldades, segundo Robert Alexy, não desqualificam a teoria do

discurso jurídico como argumentação racional. O que importa é assinalar Iimites

para o universo de respostas possíveis — e racionalmente fundamentadas — diante

de uma determinada pretensão normativa. Os três níveis de argumentação

(legislativo, dogmático e judicial) visam a tornar factível o discurso racional, tanto

quanto possível também no campo valorativo. Cumprem uma idéia reguladora,

permitindo cobrir lacunas de justificação segundo o modelo do Estado Democrático

de Direito. Há, nas elaborações de Alexy, uma relação necessária entre a teoria do

direito e a teoria do Estado, a qual também se pode identificar nas reflexões de

Habermas, que estabelece um nexo conceitual intrínseco entre Estado de Direito e

democracia, propondo um novo paradigma do direito racional, distante tanto da

posição empirista, que nega qualquer tipo de legitimidade que ultrapasse a

contingência da norma posta, como também da concepção platônica de um direito

superior.

O direito moderno, para Habermas, está fundado num sistema de normas positivas e

impositivas, voltadas para a garantia da liberdade, as quais contanì com pretensão

de legitimidade, pois existe a expectativa de que possam salvaguardar

simetricamente a autonomia de todos os sujeitos de direito. Essa legitimidade, que

justifica a ameaça de sanção para garantir o cumprimento da norma, está presente

não só no momento da criação, como também no processo de aplicação do direito.

Por isso é que se admite o constrangimento imposto àquele que estrategicamente

tenta fugir às ordens legais. O fundamento de legitimidade da decisão que põe a

primeira norma, antes inserido no contexto de um direito natural, metafísico ou

religioso, é o processo democrático de criação do direito, orientado pela ação

comunicativa, única fonte pós-metafisica da legitimidade.

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Início da nota de rodapé

(13) RobertAlexy, op. cit., p. 218-262.

Fim da nota de rodapé

Página 373

RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

Com isso, substitui-se a teoria contratualista por um modelo do dis- curso ou da

deliberação.114 Para Habermas, o conceito de norma válida pressupõe não só a

criação de acordo com as regras institu- cionais como também a obediência da

maioria das pessoas.115 O direito deve proteger, de forma simétrica, todos os

participantes afetados,6 o que remete à noção de eqüidade.7 Esta proteção faz- se

por meio de regras institucionalizadas que têm por conteúdo os próprios

pressupostos comunicativos, além dos procedimentos de formação da opinião e da

vontade, aos quais é possível aplicar o principio do discurso (são válidas as normas

de ação com as quais poderiam concordar, enquanto participantes de discursos

racionais, todas as pessoas possivelmente afetadas).8 Por esse caminho, o princípio

do discurso assume a figura jurídica de um princípio de democracia, do que é lícito

concluir que os sujeitos processuais podem desatender determinações baseadas em

normas que eles não considerem, sob esse prisma, legítimas.

Mas o caráter processual da razão comunicativa encontra, no campo do direito,

sérias dificuldades. As pretensões de validade do discurso jurídico parecem

constituídas por âmbitos de ação estra- tégica. O processo civil tem em conta

interesses econômicos e o processo penal serve à domesticação de conflitos que se

alimentam da questão social. Ademais — e por razões que estão também rela-

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cionadas a essas constelações de poder — não se pode cogitar de uma situação de

igualdade entre os sujeitos processuais, e tampouco da participação universal.

Quanto ao primeiro aspecto, veja-se que os prazos, para as partes, são próprios,

mas para o iuiz são impróprios. O iuiz pode voltar atrás em suas manifestações,

ressalvada a coisa julgada, ao passo que às partes se aplica o princípio da

estabilização

Início da nota de rodapé

(l 4) Habermas, Direito e democracia: entrefacticidade e validade, vol. 2,

Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, p. 307-310. (115) Idem, p. 308. )ll() Idem, p.

310.)71 Idem, p.312,313e316.

Idein, p.319e321.

119 (Idem, p. 320.

Fim da nota de rodapé

Página 374

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

do processo (art. 264 do CPC). Quanto ao segundo aspecto, veja-se o que foi dito, a

propósito da proteção dos interesses difusos e coletivos, sobre o controle da

participação das massas no interior do Estado (seção 5.2). A sinceridade também

não parece ser constitutiva de qualquer comunicação Iingüística e muito menos da

comunicação processual. Fosse de outra forma, o iuiz, no processo penal, não

poderia se comunicar com o réu, que tem direito de mentir.2 A propósito ainda da

sinceridade, diga-se que mesmo a testemunha, em determinadas situações, como

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foi visto no final do terceiro capítulo, está dispensada do dever de dizer a verdade.

Isto também se aplica às partes, no processo civil.

Enfim, ao sustentar a existência de pretensões de validade no processo judicial, a

teoria da ação comunicativa parece desconsiderar não só a desigualdade dos

sujeitos e as limitações impostas pelas regras institucionais, como também o fato de

que as partes têm motivações nem sempre orientadas para a busca cooperativa da

verdade. O que as anima é no mais das vezes não o julgamento justo ou correto,

mas sim um resultado que lhes seja vantajoso.2 Além do resultado, os sujeitos

processuais vislumbram muitas vezes consequências, que não se colocam na linha

de argumentação das partes ou do juiz, e que vão além da simples produção de

uma norma válida.22 Quando os sujeitos processuais se sentem à vontade para

enunciar essas conseqüências (ainda que efetivamente não o façam), isto é sinal de

que o argumento conseqüencialista está fundado em

Início da nota de rodapé

(120) Otaweinberger, LogischeAnalyse als Basis derjuristchenArgumentation, in

Krawietz & Alexy (org.), Metatheorie juristcher Argumentation, Berlim, Duncker-

Humblot, 1983, p. 195, apud Manuel Atienza, op. cit., p.272e273.

(121) Ver, nesse sentido, a crítica de Manuel Atienza (op. cit., p. 291).

(122) As elaborações desenvolvidas nesse parágrafo inspiraram-se na distinção feita

pr Neil MacCormick, entre resultado da ação e conseqüências da ação

(MacCormick, On legal decisions and their consequences; fron Dewey to Dworkin,

New York, New York University Iaw Review, vol. 58, ed. 2, p. 239-258, apud Manuel

Atienza, op. cit., p. 1 93-203). Para MacCormick, são os argumentos

conseqüencialistas, ao lado dos princípios, que permitem estabelecer o contato

entre o sistema e o mundo.

Fim da nota de rodapé

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

valores aglutinadores (justiça, moralidade pública, interesse social etc). É o que

ocorre quando se fala dos efeitos danosos da decretação da falência ou da

condenação à pena privativa da liberdade. Embora se possa cogitar aqui de uma

orientação utilitarista, certo é que o sentido difere daquele que se pode encontrar na

tradição do utilitarismo. A propósito, colhem os fundamentos da decisão do Supremo

Tribunal Federal, na ação direta de constitucionalidade relativa à medida provisória

que dispôs sobre o racionamento de energia elétrica, mencionados no capítulo

anterior (seção 4.2). A dogmática jurídica também se utiliza de argumentos

conseqüencialistas, quer na tentativa de temperar o rigor da lei, quer com o objetivo

de alcançar um fim social. Disso é exemplo a chamada terceira fase metodológica

do processo civil (seção 5.2). Mas nem sempre os argulnentos conseqiiencialistas

podem ser apresentados. A questão do abuso dos direitos processuais pode ser

localizada exatamente aqui. A força do argumento das partes está em nunca dizer

aquilo que não pode ser dito até o fim.

Habermas sai em defesa da teoria de Robert Alexy, dizendo que ela não deve levar

à errônea suposição de que todos os discursos efetivamente preencham as regras

da argumentação racional, pois estas não são constitutivas no mesmo sentido em

que as regras do xadrez determinam uma prática de jogo fatual. A situação ideal de

fala pode ou não ser contrafática, pois representa pressuposições pragmáticas de

uma prática discursiva privilegiada. Habermas admite que os discursos da vida real

estão submetidos a limitações de espaço e de tempo, a injunções sociais e a

motivações estranhas à busca cooperativa da verdade. As limitações empíricas, as

influências internas e externas devem ser neutralizadas por dispositivos

institucionais, de tal sorte que as condições idealizadas, já pressupostas pelos

participantes, possam ser preenchidas pelo menos numa aproximação suficiente.23

O próprio Alexy, no posfácio da sua obra, respondendo às críticas que lhe foram

dirigidas, admite que a relação

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Início da nota de rodapé

(123) Habermas, Consciência moral e agir comunicativo, Rio de Janeiro,

Tempo Brasileiro, 1 989 (Biblioteca Tempo Universitário, 84, Série

Estudos Alemães), p.1 14 e 1 15.

Fim da nota de rodapé

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

entre as partes processuais nem sempre é simétrica. Além disso, há limitações de

ordem institucional (tempo, pressão etc.) e o que conta, no mais das vezes, é ganhar

a causa. Sustenta, entretanto, que isso não desqualifica sua teoria. O ponto decisivo

é que os interessados exijam argumentar de forma racional. Ao menos devem fingir

que seus argumentos são constituídos de tal forma, que se encontram em condições

ideais para obter o acordo de todos.24 As partes têm de sustentar suas pretensões

de correção, ainda que por outras razões entendam necessária e conveniente uma

decisão que lhes seja favorável. Se não o fizerem, não terão observado a condição

do jogo. Isso mostra — arremata Alexy — que a argumentação em juízo não só

deve ser interpretada no sentido de uma teoria do discurso, mas também precisa ser

interpretada dessa maneira.25

A interpretação sugerida por Habermas e por Robert Alexy levanta pretensões de

validade que não se sustentam. A situação ideal defala, que leva a um acordo válido

para todos os sujeitos racionais, é sabidamente um conceito não contrastável com a

realidade empírica. Mas essa idealização acaba cumprindo uma função ideológica,

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pois, em certas circunstâncias, permite justificar um modelo de democracia

meramente formal, onde as reais barreiras de comunicação são simplesmente

desconsideradas.26 Uma coisa é argumentar diante de um auditório crítico, que

esteja em condições de rejeitar pretensões engendradas no contexto da ação

estratégica; outra, consiste em falar para um auditório cuja atitude passiva e não

contestadora qualifica-o muito mais como assistência. Universalidade da

comunicação sem igualdade de oportunidades para o diálogo é pura retórica. Por

outro lado, o processo judicial revela limitações quando se trata de trabalhar com

códigos mais inclusivos, a exemplo daqueles que compõem a esfera política, do que

são mostra os problemas enfrentados pelo processo civil, na sua chamada

terceirafase inetodológica, que interferem com ajudicialização da

Início da nota de rodapé

(124) Robert Alexy, op. cit., p. 324.

(125) Idein ibidem.

(126) Ver, também nesse sentido, a crítica de Manuel Atienza (op. cit., p. 273 e 274).

Fim da nota de rodapé

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

política e com a politização do jurídico. Conflitos de classe, movimentos grevistas e

outras formas de mobilização social não podem ser relegados ao campo das

decisões e atitudes emocionais cegas. Porém, a racionalidade da decisão também

tem de ser avaliada na base da decisão possível, o que pressupõe controle. Esse é

o grande desafio de uma teoria do discurso racional, quer no nível prático da

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argumentação jurídica (dogmática jurídica, processo judicial), quer no nível de uma

teoria argumentativa da argumentação (teoria do direito).

Por último, se é certo, como sustenta Robert Alexy, que as partes têm de fingir que

seus argumentos atendem às condições do discurso racional, há de se indagar,

então, acerca do sentido de uma teoria do abuso dos direitos processuais. Se a

insinceridade faz parte da ação comunicativa, subsiste aparentemente insolúvel a

questão da existência de limites e dos critérios para estabelecer um mau uso, um

uso excessivo, impróprio ou injusto do processo. Por outro lado, admitindo-se que já

não se possa mais falar de um agir comunicativo, mas apenas de um agir

estratégico, ainda assim subsistiria a dúvida, pois a vontade humana não conhece

limites senão na própria razão ou na razão do mais forte. A conclusão do presente

trabalho será uma tentativa de apontar caminhos para resolver este dilema.

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Página em branco

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CONCLUSÃO

É preciso que alguém tenha a última palavra. Senão, a toda razão pode opor-se

outra: nunca mais se acabava. A força, pelo con- trário, resolve tudo. Levou tempo,

mas conseguimos compreendê- lo. Por exemplo, deve tê-Io notado a nossa velha

Europa filósofa, enfim, da melhor maneira. Já não dizemos, como nos tempos ingê-

nuos: Eu penso assim. Quais são suas objeções? Tornamo-nos Iúci- dos.

Substituímos o diálogo pelo comunicado. Esta é a verdade, dizemos. Podem ainda

discuti-la, isso não nos interessa. Mas, den- tro de alguns anos lá estará a polícia

para lhes mostrar que tenho razão. Albert Camus via o homem como um sol

diferente daque- le que aparece na fábula de Esopo. Violento, o sol vai projetando

na terra o esplendor da luz. Mas sua trajetória deixa também na paisa- gem uma

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geografia de sombras. Como no Mito de Sísfo, onde Camus expõe a contradição

entre o homem e sua situação irracional no mundo, é preciso enfrentar a tragédia,

romper o dilema entre uma razão comunicativa aparente e uma razão abertamente

estratégica, na qual a ação orientada para o êxito acena sempre com a ameaça de

sanção. Enfrentar o dilema não significa resolvê-lo, mas apenas não ser devorado

por ele.

O projeto de uma teoria do discursojurídico como discurso racional não é senão uma

tentativa de fugir ao impasse entre racio- nalidade e irracionalidade. Porém, tem-se

de reconhecer que uma teoria crítica do processo judicial ainda está por ser

construída. As elaborações até agora desenvolvidas não foram capazes de estabe-

lecer o consenso em torno das pretensões de verdade (campo cog- nitivo), correção

(campo prático) e sinceridade (campo subjetivo)

Início da nota de rodapé

Albert Camus, A queda, Lisboa, Edição Livros do Brasil (ColeçãoAutores de

sempre), s.d., p. 75 e 76.

Fim da nota de rodapé

Página 380

ABUSO DE DJREITO PROCESSUAL

levantadas pelos juristas. Ordinariamente, essas pretensões não são questionadas.

O que importa, considerado o pragmatismo dos operadores do direito, é resolver o

conflito. E aqui os juristas seguem produzindo uma forma de saber que se pretende

descritiva e prescritiva, na qual se orientam e se legitimam as decisões judiciais.

Mas o direito não se esgota no sistema. Ele somente ganha sentido em contato com

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o mundo. Há situações limite, tanto na esfera da subsunção do fato à norma, como

no âmbito da interpretação e da prova. Por isso, se um dos sujeitos do processo

problematiza as pretensões de validade levantadas pelo outro, se a

comunidadejurídica passa a questionar as pretensões de validade suscitadas pela

dogmática, tem- se de passar para o discurso, para o campo dajustificação.

Quando a dogmática jurídica ou os sujeitos do processo buscam estabelecer o

sentido do abuso processual, pode se dizer, para fraseando Robert Alexy, que eles

fingem argumentar no plano da racionalidade, naquelas três esferas de pretensão de

validade. A verdade é simples aparência, verossimilhança. No plano da sinceridade,

é difícil estabelecer uma distinção clara entre saber e querer sobre tudo quando a

igualdade entre os participantes, pressuposta pelas regras institucionais do debate

(correção), nem sempre se verifica na situação comunicativa concreta. Se é certo

que nisto se consente do ângulo do discurso prático, como Alexy deixou claro no

posfácio da sua obra, certo também é que não se pode admitir tal impostura no

plano de uma teoria que se pretenda científica. Mas uma coisa é o ethos científico e

outra a prática científica, um fazer persuasivo.2 Ao admitir que o processo não é

uma disputa de cavalheiros, cheia de flores e mesuras, já que nele se refletem as

mesmas tensões do resto da sociedade, a teoria processual, assumindo aqui o

papel de uma teoria crítica, acaba desvelando essa faceta ideológica da

argumentação jurídica, que consiste em

Início da nota de rodapé

(2) A expressão foi tomada de empréstimo de Maria José Coracini (Um fazer

Persuasivo: o discurso subjetivo da ciência, Campinas, Pontes-Educ, 1991).

Calsamiglia, num sentido bem próximo daquele sustentado por Alexy, diz que a

dogmática inventa teorias que servem para resolver conflitos sociais. Os juízes,

juristas e legisladores so educados nesse contexto e se vêem fortemente

influenciados por ele (op. cit., p. 252).

Fim da nota de rodapé

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Página 381

CONCLUSÃO

ocultar o uso performativo da linguagem jurídica, em esconder o contexto

pragmático.

A concepção subjetivista do abuso dos direitos processuais, ao postular que a

qualificação do ato praticado no processo está vinculada ao exame da intenção da

parte, levanta pretensões de validade que não se justificam. Verdade subjetiva e

verdade objetiva são questões que até hoje não alcançaram consenso, muito menos

no campo praxeológico, onde se impõe decidir. A disputa em tomo da verdade

processual desenvolve-se, assim, num contexto retórico, que busca acudir esta ou

aquela decisão. Como diz Alexy, as partes têm de fingir que as movem o ideal de

justiça, objetivos nobres, para que possam ser admitidas ao jogo processual. A

máxima segundo a qual não se pode alegar a própria torpeza em juízo vale aqui,

analogamente, em um sentido muito próximo. Assim como na política ninguém fala

em nome da autocracia, admitindo interesses inconfessáveis, também no processo

judicial há situações que fogem às regras do debate, podendo sugerir uma

contradição pragmática. E o caso daquele que opõe embargos de declaração,

orientado por uma ação estratégica, apenas para ganhar tempo na elaboração do

recurso de apelação. Claro está que as razões dos embargos não poderão ser

estas. Tanto quanto improvável se mostra uma regulação normativa da publicidade

enganosa no campo da política, também na esfera judicial é difícil confrontar o

abuso com o direito na base das intenções da parte.

O controle judicial do abuso dá se sempre no contexto da justificação da conduta da

parte, da força dos argumentos por ela apresentados em abono ao seu

procedimento, e também da repercussão que a conduta possa ter para a decisão da

causa. Dependerá, outro sim, da reação do ex adverso diante da falta, ou dito de

outro modo, da importância que a parte contrária possa dar àquela conduta. Enfim, a

alteração do eixo do debate em torno do abuso dos direitos processuais, que se

desloca do campo semântico para o campo pragmático, permite entender que

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importam não tanto os motivos da ação ou uma escala de valores absolutos nos

quais possa ela se inspirar, mas sim a justificação da conduta da parte, que deve ser

razoável. Essa justificação é dialógica. Por isso, além da razão

Página 382

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

compreensiva, como vislumbrada por Recásens Siches,3 interessa considerar a

razão discursiva.

Sob esse enfoque, perde sentido a discussão acerca de uma verdade real ou formal,

de um princípio inquisitivo ou dispositivo, tanto quanto de uma respectiva e suposta

relação entre estes conceitos e um regime autoritário ou democrático, totalitário ou

liberal. Todos os participantes do processo podem tudo, desde que se conformem às

regras da argumentação racional, que se pressupõe editadas de acordo com um

procedimento democrático. Mas claro está, como já se adiantou, que esse

paradigma da razão comunicativa encontra problemas de justificação. O

pressuposto democrático é um deles. As críticas feitas à instituição do tribunal do júri

revelam, numa microescala, o circulo vicioso ou a petição de princípio a que pode

conduzir a idéia de democracia. A comunicação presume capacidade para o diálogo,

que é pressuposta pela lei. Mas o pressuposto nem sempre condiz com a realidade

política e social, o que torna o homem refém do populismo e das decisões

emocionais, que nem mesmo têm de ser justificadas (nem o eleitor nem ojurado

fundamentam seu voto). Nesse contexto, não há um paradigma racional para

estabelecer o sentido do abuso. Contudo, o aprendizado do diálogo só é possível no

ambiente democrático. Talvez esse seja o legado da teoria da ação comunicativa,

revelar por detrás daquela petição de princípio um círculo virtuoso.

Mas não se confundem o discurso político e o discurso processual. Numa situação

perversa, em que o eleitor e o político estejam mancomunados para fraudar a lei,

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não se pode falar em ação comunicativa. O discurso desenvolvido no processo

judicial é, entretanto, como consideram Jürgen Habermas e Robert Alexy, um caso

especial do discurso prático, pois a sinceridade aqui deve ser entendida num sentido

muito específico, como já se disse. Esse enfoque, consideradas as regras de

transição do discurso prático em geral,4 que permitem a passagem de um discurso

prático para um

Início da nota de rodapé

(3) Recaséns Siches, Introducción al e.studio del derecho, Buenos Aires, Editorjal

Porruá, S.A., p. 254-260.

(4) A propósito das regras do discurso prático em geral, ver o que foi dito na nota 1 1

1 do quinto capítulo.

Fim da nota de rodapé

Página 383

CONCLUSÃO

discurso teórico, coloca a dogmática jurídica numa posição incômoda, ao ter de

aceitar a colusão como agir comunicativo. Assim, convencendo-se o juiz dos

argumentos que as partes simulam, adrede combinadas para ludibriá-lo, estará

consumado o logro, o embuste. Por isso, Habermas inicialmente sugeria a

possibilidade de um agir estratégico parasitário do agir comunicativo, do que o

abuso do direito processual parece ser um bom exemplo.5 Mas aqui

Início da nota de rodapé

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(5) Tercio Sampaio Ferraz Jr. também vê momentos irracionais na discussão

jurídica. No processo judicial, a discussão dialética revela-se como discussão contra,

onde as partes não são homólogas, o que é próprio dos discursos que envolvem o

problema da decisão, e mais, onde predomina a regra do dever de prova, diante da

reação questionadora do ouvinte, como visto em Perelman (e também em

Habermas, acrescenta-se). O dever de prova faz do processo judicial um discurso

racional, uma forma de contornar as dificuldades do recurso a uma justificação

óltima, contida em princípios ou num ideal romântico da verdade como eterna

discussão. A liberdade processual pressupõe que as partes tenham interesse em

buscar a verdade, mas pressupõe também que elas possam mentir. Se o processo

fosse discussão com (homologia entre as partes), o discurso judicial seria um

procedimento de busca da verdade, conforme orientação da dogmática processual,

que aproxima a noção de verdade da noção de justiça. Mas não é isso que ocorre e,

assim, a noção de verdade tem de ser relativizada, institucionalizada por regras, o

que simplifica a estratégia do discurso judicial, permitindo conciliar premissas por

vezes incompativeis. O controle discursivo da decisão dá se através de um conjunto

de prescrições interpretativas de natureza tópica. Na tentativa de influenciar o

receptor da mensagem, os participantes mostram-se convincentes e confiantes.

Com astúcia tática, eles procuram esconder o modo de sua comunicação. Na dis-

cussão contra judicial, portanto, os participes perdem a sua eventual ingenuidade. O

advogado deve aparecer como defensor de um interesse Iegítimo, o iuiz como figura

neutra e imparcial, enquanto as partes têm de se mostrar como homens de bem,

pessoas de boa fé, tudo isto permeado por uma tópica formal, que impõe a

observância de certas regras à atividade probatória, orientada por uma retórica

ciceriana. Considerado, porém, o sentido partidário das ações, as partes nem

sempre buscam uma decisão ótima (verdadeira), mas apenas satisfatória, aquela

possível para colocar termo ao processo. E precisamente o caráter ambíguo da

verdade que explica o aparecimento do juiz como terceiro comunicador nesse

processo dialógico. E ele quem garante a

Fim da nota de rodapé

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Página 384

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

ainda subsiste a questão dos limites para distinguir o agir comunicativo do agir

estratégico.

Não se pode, do prisma de uma teoria pragmática do abuso dos direitos

processuais, buscar um critério a prioridos limites entre a trapaça e o regular

exercício, nem mesmo um critério empírico. A razão discursiva, orientada por

valores sociais relevantes, permitirá aos sujeitos processuais orientar-se em cada

situação concreta. No agir estratégico, seja ele manifestou ou parasitário, sempre

ha- verá vestígios do mundo da vida, como diz Habermas, aquele resto de

lembrança do que foi um dia um mundo orientado pelos valores, aos quais não se

pode sobrepor qualquer interesse, numa forma de utilitarismo perverso. Se a

dogmática jurídica e o processo judicial atendem às expectativas de certeza,

igualdade e justiça, tem se de reconhecer que ambos são elementos de integração

social, não se confundindo com a irracionalidade de uma vontade arbitrária.6 Muito

além de uma justificação interna, da coerência de seus princípios, conceitos e

procedimentos, a razão prática tem de prestar contas à humanidade. Dela se espera

que seja capaz não só de compreender o homem e suas circunstâncias, como

também de interferir para a solução dos conflitos sociais, com o que se dá um

sentido à vida. Mas ainda que a verdade e o sentido da vida sejam coisas muito

graves para serem confiadas à pesquisa

Início da nota de rodapé

seriedade do discurso. Enquanto a autoridade está argumentando, mantém-se o

caráter racional do discurso jurídico, já que a persuasão implica a idéia de

fundamentação e critica. A autoridade fica, por assim dizer, suspensa. Mas essa

homologia — que se dá quando as partes são racionais, dotadas de iguais

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condições de verificar intersubjetivamente suas ações lingüísticas, e mais, quando o

discurso fundamentado está aberto à critica — vê-se rompida pela fundamentação

monológica da norma posta, que implica uma atitude passiva do ouvinte. A

heterologia é artificialmente desconsiderada, através de uma série de ficções

comunicativas, o que coloca em pauta o momento ideológico do direito (Tercio

Sampaio Ferraz Jr., Direito, retórica e comunicação: subsídiospara uma pragmática

do discurso jurídico, São Paulo, Saraiva, 1 973, p. xii, xiii, 31-37, 61-95, 159-189).

(6) Calsamiglia, op. cit., p. 273 e 274.

Fim da nota de rodapé

Página 385

CONCLUSÃO

da melhor argumentação, como sustenta Barcellona,7 há de se reconhecer que o

discurso é sempre preferível à brutalidade do comando, que não deixa espaço para

o dissenso. Daí porque mesmo nos contextos de agir manifestamente estratégico,

como são as guerras civis, os conflitos bélicos, procura-se apelar para uma instância

normativa, como lembra Habermas.8 E o mundo contemporâneo vem dando

testemunho disto.

Início da nota de rodapé

(7) Barcellona, O egoísmo maduro e a insensatez do capital, São Paulo, Ícone

Editora, p. 77.

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(8) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóficos, Rio de Ja- neiro,

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Fim da nota de rodapé

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agosto e setembro de 1933, vol. XXVII, fascículo 03, pp. 168-170.

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Côrte de Appelação, Câmara, Aggravo de Petição 8.087 — Rio de Janeiro, relator

André Pereira, 26.01. 1933 in Archivo Judiciario — Publicação Quinzenal do Jornal

do Commercio, Rio de Janeiro, ano 1933, de 02 dejaneiro de 1933, vol. XXV,

fascículo 01, pp. 446-447.

Côrte de Appelação, 2. Câmara, Appelação criminal 4.452 — Rio de Janeiro, relator

Galdino Siqueira, 09.02. 1 933 in Archivo Judiciario Publicação Quinzenal do Jornal

do Commercio, Rio de Janeiro, ano

1933, de 02 dejaneiro de 1933, vol. XXV, fascículo 01, p. 447.

Côrte de Appelação, 2. Câmara, Appelação criminal 4.607 — Rio de Janeiro,

relatorArthur Soares, 25.04.1933, inArchivo Judiciario — Publicação Quinzenal do

Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 1933, julho, agosto e setembro de 1 933,

vol. XXVII, fascículo 03, p. 1 68.

Supremo Tribunal Federal, Appelação cível 5.537 — Rio de Janeiro, relator

Edmundo Lins, 19.05.1933, inArchivo Judiciario — Publicação Quinzenal do Jornal

do Commercio, Rio de Janeiro, ano 1 934, outubro, novembro e dezembro de 1933,

vol. XXVIII, pp. 79-83.

Côrte de Appelação, 3.a Câmara, Appelação cível 3.879 — Rio de Janeiro, relator

Leopoldo de Lima, 25.05.1933, inArchivo Judiciario — Ptiblicação Qtiinzenal do

Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano

1933, julho, agosto e setembro de 1933, vol. XXVII, fascículo 03, p. 170.

Côrte de Appelação, Câmaras Conjuntas de Appelações Civeis, Appelação 4.469 —

Rio de Janeiro, relator Nabuco de Abreu, 14. 01. 1935, in Archivo Judiciario —

Publicação Quinzenal do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 1936, 05 dejulho

de 1936, vol. XXXIX, fascículo 01, pp. 296-297.

Página 425

REFERÊNCIAS

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de Janeiro, relator Afranio Costa, 27.04.1936, in Archivo Judiciario Publicação

Qtiinzenal do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 1936, 05 de outubro de

1936, vol. XL, fascículo 01, pp. 446-447.

Côrte de Appelação do Districto Federal, 2. Câmara, Appelação criminal 7.259. Rio

de Janeiro, relator Vicente Piragibe, 28.04. 1 936, in Archivo Judiciario Publicação

Quinzenal do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 1936, 05 de outubro de

1936, vol. XL, fascículo 01, p. 446.

Côrte de Appelação do Districto Federal, Recurso de Revista 934 na Appelação cível

5.253. Rio de Janeiro, relator José Linhares, 19.08.1936, in Archivo Judiciario

Publicação Quinzenal do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 1936, 05 de

outubro de 1936, vol. XL, fascículo 01, pp. 444-445.

Côrte de Appelação do Districto Federal, Recurso de Revista 967 na Appelação cível

5.357. Rio de Janeiro, relator José Linhares, 19.08. 1936, in Archivo Judiciario —

Piiblicação Quinzenal do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 1936, 05 de

outubro de 1936, vol. XL, fascículo 01, p. 445.

Côrte de Appelação do Districto Federal, Conselho de Justiça, Reclamação 851 —

Rio de Janeiro, relator Arthur Soares, 10.09.1936, in Archivo Judiciario — Publicação

Quinzenal do Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, ano 1936, 05 de outubro de

1936, vol. XL, fascículo 01, p. 444.

Comarca de Ouro Fino, sentença proferida nos autos de acção ordinaria pelo Juiz

José Alcides Pereira, 19.02.1938 in Revista Forense, Rio de Janeiro, ano XXXV,

julho de 1938, vol. LXXV, fascículo 42, pp. 184-187.

Tribunal de Apelação. Câmara, Apelação 897 — Santos, relator Meirelles dos

Santos, 09.03.1938 in RT, São Paulo, ano XxVII, maio de 1938, vol. CXIII, fascículo

456, pp. 717-724.

Página 426

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

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Tribunal de Apelação, 2. Câmara, Apelação 2.837 — São Paulo, relator Antão de

Morais, 25.04. 1 938, in Revista Forense, Rio de Janeiro, ano XXXV, outubro 1938,

vol. 76, fascículo 424, pp. 78-79.

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1938, in Revista Forense, Rio de Janeiro, ano xxxv, outubro 1938, vol. 76, fascículo

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Tribunal de Apelação, 5. Câmara, Apelação cível 1 .3 1 6 — Barretos, relator Paulo

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vol. 76, fascículo 79, pp. 79-81.

Tribunal de Apelação, 3. Câmara, Agravo de Petição 2.121 — Piratininga, relator

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Tribunal de Apelação, 5. Câmara, Appelação cível 2.094 — Rio de Janeiro, relatorA.

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relatorManuel Carlos, 23.04.1945 in RT, São Paulo, ano 34 novembro de 1945, vol.

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relatorA. de OliveiraLima, 13.08.1957, in RT, São Paulo, ano 47, março de 1958, vol.

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REFERÊNCIAS

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Santo André, relator Sena Rebouças, 01. 10. 1986, RT, São Paulo, ano 75,

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Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, Câmara, Apelação 362. j 1 6 — Mogi

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Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 6.a Câmara, Apelação 367.162 —

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Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 7. Câmara, Agravo de Instrumento

367 .856- 1 — São Paulo, relator Régis de Oliveira, 03.02.1987, RT, São Paulo, ano

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Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 3. Câmara, Apelação 370.796-7 —

Sumaré, relator Toledo Silva, 05.03.1987, in RT, São

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Paulo, ano 76, maio de 1987, vol. 619, pp. 136-137.

Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 2. Câmara, Apelação 370.456-2 —

São Paulo, relator Jacobina Rabello, 1 1.03.1987, fl RT, São Paulo, ano 76, maio de

1987, vol. 619, pp. 133-136.

Página 428

ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 2. Câmara, Apelação com Revisão

248.736-0 — São Paulo, relator Oscarlino Moeller, 25. 10. 1 989, in RT, São Paulo,

ano 78, outubro de 1989, vol. 648, pp. 152-154.

Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 2. Câmara Civil, Apelação 426.617-3

São Paulo, relator Sena Rebouças, 27.02.1991, in RT, São Paulo, ano 80, março de

1991, vol.665, pp. 96-99.

Tribunal de Justiça de São Paulo, 2. Grupo de Câmaras, Revisão l 09.41 3-3/0 —

Santo André, relator Silva Leme, 03.02. 1992, in RT, São Paulo, ano 82, junho de

1993, vol. 692, p. 249.

Tribunal de Justiça de São Paulo, 6. Câmara, Apelação 1 10.743-3. 9 — Diadema,

relator Reynaldo Ayrosa, 30.09.1992, in RT, São Paulo, ano 82, junho de 1993, vol.

692, pp. 249-253.

Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, 5 Câmara Especial, Apelação

509.967-6 —Araçatuba, relator Caio Graccho, 06.01. 1993, in Jurisprudência dos

Tribunais de Alçada Civil de São Paulo, São Paulo, Lex, ano 27, julho e agosto de

1993, vol. 140, pp. 147-149.

Tribunal de Justiça de São Paulo, 1 a Câmara Civil, Apelação 1 96.274 São José

dos Campos, relator Guimarães e Souza, 31.08.1993, in Ju- risprudência do Tribunal

de Justiça, São Paulo, Lex, ano 27, setembro de 1993, vol. 148, pp. 85-89.

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Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, Câmara, Apelação 499.844-3 São

Paulo, relator Luiz Sabbato, 29.09.1993, in RT, ano 83, maio de 1994, vol. 703, pp.

88-89.

Tribunal de Justiça de São Paulo, 2. Câmara Civil, Apelação Cível 218.053-1 Matão,

relator Vasconcellos Pereira, 07.02.1995, in Juris prudência do Tribunal de Justiça

de São Paulo, São Paulo, Lex, ano 29, setembro de 1995, vol. 172, pp. 161-164.

Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, 1 Grupo de Câmaras, Revisão

27 1.1 50.3 Santo André, relator Rulli Junior, 23.03.1995, in RT, São Paulo, ano 84,

julho de 1995, vol. 717, p. 401.

Página 429

REFERÊNCIAS

Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, 3.a Câmara de Direito Privado, Agravo

de Instrumento 194.421-4/8 — São Paulo, relator Ênio Santarelli Zuliani, 24.04.200

1, mimeografagem.

Supremo Tribunal Federal, Pleno, Ação Direta de Constitucioflalidade n. 9.6 —

Distrito Federal, relator Néri da Silveira, 28.06.2001, mimeografagem.

Tribunal de Justiça de São Paulo, 7. Câmara de Direito Privado, Agravo de

Instrumento 2 1 1 .370-4/6 — Itapecerica da Serra, relator Júlio

Vidal, 3 1.1 0.200 1, mimeografagem.

Página 430

Página em branco.

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Página 431

Diagramação eletrônica

Textos & Livros Proposta Editorial S/C Ltda.

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Impressão e acabamento

Gráfica e Editora Alaúde

CNPJ 01.856.174/0001-13

Página 432

Página em branco.

Página 433

Abuso de Direito e Má-Fé Processual Rui Stoco

Filosofia do Direito e lnterpretação

2.a edição

David Schnaid

Introdução à Ciência do Direito

26. a edição

André Franco Montoro

Teoria Pura do Direito

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3.a edição

Hans Kelsen (Tradução de Agnes Cretella e

José Cretella Júnior)

Editora

REVISTA DOS TRIBUNAIS

ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR

TeL: 0800-702-2433

www.rt.combr

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