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Entre apolticae apoticado texto cultural -
A produo das diferenasna Revista Nova Escola
Gilcilene Dias da Costa
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAO
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
Entre apolticae apoticado texto cultural -
A produo das diferenasna Revista Nova Escola
Gilcilene Dias da Costa
Dissertao apresentada ao Programa de
Ps-Graduao em Educao da Faculdade
de Educao da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, como requisito parcial
para obteno do ttulo de Mestre em
Educao.
Orientadora:
Prof. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira
Porto Alegre
2003
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Ao meu marido, Valdinei,
com todo o meu amor e gratido!
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Suas belssimas aulas me proporcionaram viajar pelo universo foucaultiano em seus
cruzamentos com a pedagogia, o currculo, a msica, as artes...
Ao Carlos Skliar, professor de cujos conhecimentos e dinamismo intelectual so
elogiveis. Agradeo a amizade e a disponibilidade em contribuir com este trabalhodesde a defesa da Proposta da Dissertao. Ressalto suas instigantes aulas que me
lanaram, com entusiasmo, nesse universo de diferenas.
Marisa Costa, por ter aceitado o convite em participar da avaliao final desta
Dissertao. Seus textos bem escritos e inteligentes muito me ajudaram a percorrer o
campo das pedagogias culturais.
Ao Jorge Larrosa, a quem devo a honra de ter como avaliador externo desta Dissertao.Agradeo a gentileza do aceite e ressalto a importncia de seus textos e teorias
provocativas sobre diferenas e narrativas para esta pesquisa. Atravs deles, fui levada a
pensar de muitos modos a questo da diferena na educao.
Aos/s amigos/as que conheci e com quem convivi alegremente neste percurso: Ruth,
Fabiana, Eracy, Luis Fernando, Sara, Ique, Mrcia, Madalena, Srgio, Regina, Ftima,
Orestes, Sandra, Carin, Dbora Alves e Dbora Stumpf (que disponibilizou o acesso a
todas as edies da revista Nova Escola ao longo da pesquisa). No tenho palavras para
expressar a amizade e o carinho que sinto por vocs. Alegro-me por nossas divertidas
conversas, encontros e jantares culturais paraenses e gauchescos. Alguns de vocs me
ensinaram que chorar nas dificuldades faz bem, mas s de vez em quando!
minha famlia (me, irm, marido, primos-irmos, sobrinhas/o, afilhados, tios...),
amigos/as e colegas conterrneos, com todo o meu amor e saudades. Em especial,
agradeo s trs pessoas que do sentido e razo minha existncia: Minha me,
Irades, mulher incansvel, lutadora e solidria. Sua f em Deus lhe ajuda a caminhar,
sempre nos ensinando a valorizar os estudos e a encontrar beleza nas coisas simples davida. Agradeo suas oraes, amor, dedicao e incentivo, que jamais deixaram me
sentir sozinha. Minha irm, Ghislaine, amiga de todas as horas, sempre disposta a me
acompanhar e auxiliar com sua maturidade e afeto. Meu marido, Valdinei, por seu amor
e companheirismo incondicional. Suas contribuies, apoio e amizade tornaram
possvel a realizao deste trabalho. A vocs todos/as, meu eterno amor e gratido!
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Ver-se de outro modo, dizer-se de outra maneira, julgar-se
diferentemente, atuar sobre si mesmo de outra forma, no
outra forma de dizer viver ou viver-se de outro modo, seroutro? E no uma luta indefinida e constante para sermos
diferentes do que somos o que constitui o infinito trabalho de
finitude humana e, nela, da crtica e da liberdade?
(LARROSA, 1994, p. 84).
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RESUMO
Ao partir de discusses que tomam como eixo central a temtica da
diferenana educao, a presente Dissertao busca problematizar o multiculturalismo
e a retrica da diversidade cultural em suas respostas ao problema da diferena, bem
como suas formas de entrada na educao. Situando a Revista Nova Escola corpus
de estudo desta pesquisa no campo das pedagogias culturais e suas conexes com o
currculo, analisa aproduo cultural, os modos de vere de narraras diferenas, e os
processos deproduo/interaoentre a revista e seu pblico leitor, estabelecendo, para
tanto, uma articulao entre apolticae apoticado texto cultural. Os aportes tericos
da pesquisa partem das contribuies dos Estudos Culturais, do Ps-Colonialismo e de
autores/as que transitam por diversas teorias da diferena na educao, onde se busca
dialogar sobre multiculturalismo, identidade, diferena, alteridade, cultura, currculo,
pedagogias culturais, texto, discurso, imagem. As anlises da pesquisa apontam
percepes amplamente ambguas a respeito da presena/ausncia do outrona revista:
por um lado, as imagens e narrativas do outro aparecem como invenes e fabricaes
culturais e discursivas institudas a partir de determinados espaos de referncia e/ou
normalidade; por outro lado, tais invenes se mostram permanentemente perturbadas
pela presena do outro na revista que emerge como linguagem outra e/ou de
resistncia. Ao finalizar, aponta a existncia de uma multiplicidade de modos de
produzir e nomear os diferentes na revista, ressaltando-se que essa produo no
acontece independente de complexos jogos de poder e espaos de disputasem torno de
significados e modos de ver, os quais precisam estar sempre abertos a incertezas e
negociaes. Tal reconhecimento torna possvel, portanto, pensar as diferenas culturais
para alm das rgidas dicotomias entre identidade/diferena, eu/outro, ns/eles,norma/desvio... que freqentemente povoam o pensamento educacional moderno.
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ABSTRACT
From discussions that have differencein education as their central axis, this
dissertation tries to problematize the multiculturalism and the rhetoric of cultural
diversity in its answers to the problem of difference, as well as its forms of access
to education. By locating the magazineNova Escola corpusof this study in the field
of cultural pedagogies and their conections with curriculum, it analyses the cultural
production, the ways of seeing and narrating differences, and the processes of
production/interaction between the magazine and its readers, thus establishing an
articulation between both the policy and poetics of the cultural text. The theoretical
grounds of this research come from the contributions of Cultural Studies, Post-
Colonialism and authors who work with several theories of difference in education
which seek to set a dialogue about multiculturalism, identity, difference, otherness,
culture, curriculum, cultural pedagogies, text, discourse, image. The analyses point to
widely ambiguos perceptions concerning the presence/absence of the other in the
magazine: on the one hand, the images and narratives of the other appear as cultural,
discoursive inventions and productions instituted from certain reference and/or
normality spaces; on the other hand, such inventions appear to be permanently
disturbed by the presence of the other in the magazine, which emerges as the others
and/or resistance language. At the end, this research points to the existence of a
multiplicity of ways of producing and naming the different ones in the magazine,
emphasizing that this production does not occur independently on complex power
games and dispute spacesabout meanings and ways of seeing, which need to be always
open to uncertainties and negotitations. Therefore, such recognition makes it possible to
think about cultural differences beyond the rigid dichotomies betweenidentity/difference, I/other, we/they, norm/deviation that often inhabit the modern
educational thought.
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SUMRIO
INTRODUO 10
I- A ENTRADA DO MULTICULTURALISMO NA EDUCAO
BRASILEIRA 18
II- CURRCULO E PEDAGOGIA CULTURAL CONEXES 29
2.1- Currculo: prtica de significao 30
2.2- Aspectos culturais do currculo e da pedagogia 32
2.3- A RevistaNova Escolacomo artefato cultural 37
III- AS TRILHAS METODOLGICAS DA PESQUISA 41
IV- NAS MALHAS DA PEDAGOGIA CULTURAL: A PRODUO DAS
DIFERENASNA REVISTA NOVA ESCOLA 50
Parte I: Dos aspectospolticos: a produo cultural das diferenas 50
4.1- Viva a diferena! (?) 50
4.2- Abaixo o preconceito! (?) 69
Parte II: Dos aspectospoticos: os modos de ver e de narrar as diferenas 84
4.3- Sala dos Professores: visitando os espaos de interao da revista 84
4.3.1.Sobre asimagens... olhar (-se) 92
4.3.2.Sobre aspalavras... narrar (-se) 108
V- OUTRAS ESCRITAS... SOBRE APERGUNTAQUE NO QUER CALAR 120
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 128
ANEXOS
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INTRODUO
Como nos situamos?
Ultimamente, as discusses em torno das polticas de identidade e diferena
cultural tm emergido como eixo central em importantes fruns e debates de natureza
intercultural e internacional, num crescente nmero de estudos e pesquisas em
educao, envolvendo perspectivas tericas as mais diversas. Talvez uma das razes
pelas quais a problemtica da diferena venha conquistando destaque no cenrio
internacional, esteja ligada especialmente constncia de intensos conflitos de natureza
tnico-cultural, religiosa, poltica, econmica etc. em dimenses mundiais.
Paradoxalmente, tais embates traduzem a emergncia de crescentes manifestaes de
sentimentos de dio e abjeo em relao aos nomeados outros(grupos, povos, culturas,
religies...), ao mesmo tempo em que se vem aumentadas as tentativas de se buscar
compreender a alteridadedo ponto de vista do respeito e da valorizao das diferenas.
Diante desses novos cenrios culturais, uma das sensaes mais aparentes
talvez seja a de que nossa contemporaneidade caminha descompassada em meio
insurgncia de sentimentos de incerteza, desorientao eperplexidade diante do mundo
e de ns mesmos. Alm de tudo, nem sabemos bem que mundo queremos, muito menos
para onde iremos... Vivemos provavelmente numa poca onde o mundo se converte em
incio permanente, onde o suposto conhecimento de si e o fortalecimento das
identidades esto sendo abalados num ritmo acelerado, e onde as lutas polticas e
culturais pela afirmao das diferenas no acontecem dissociadas de infindveis
conflitos e revoltas.
As observaes que Silva (2001) faz oportunamente a respeito de nossa
contemporaneidade apontam para um tempo paradoxalmente constitudo. Para este
autor, vivemos paradoxalmente um tempo onde novas identidades emergem, se
afirmam, apagando fronteiras, transgredindo proibies e tabus identitrios, um tempo
de deliciosos cruzamentos de fronteiras, de um fascinante processo de hibridizao de
identidades. um privilgio, uma ddiva, uma alegria, viver num tempo como esse,num tempo assim... (p. 7). Sob esse aspecto, estamos diante de um mundo onde
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coexistem perspectivas as mais diversas de emancipao humana e identitria -
responsveis, em boa parte, pela emergncia/transgresso de diferentes modos de viver
as culturas, as religies, as sexualidades...
Contudo, e sob um outro aspecto, vivemos tambm num tempo-mundo
marcado por incansveis tentativas de afirmao/fixao de identidades hegemnicas
que insistem em fazer do outroum corpo dcil a ser conformado e enquadrado em
rgidos sistemas de normalizao. Trata-se, nesse caso, para Silva (op. cit.), de um
mundo onde zelosos guarda-fronteiras tentam conter a emergncia de novas e renovadas
identidades e coibir a livre circulao entre territrios os geogrficos e os simblicos.
uma desgraa, uma danao, uma tristeza, viver num tempo como esse, num
tempo assim... (p. 8).
Durante algum tempo, mesmo antes de comear a atuar como professora de
Currculo e Didtica no Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Par, tenho
acompanhado o quanto a escola e um conjunto heterogneo de artefatos culturais
operam de modo a influir diretamente na constituio de sujeitos, identidades e
diferenas, sem que se nos demos conta, muitas vezes, dos seus efeitos em boa parte de
nossas prticas educativas e culturais. Contudo, diante das ambigidades dos novos
mapas culturais que caracterizam nosso tempo-espao e dos desafios pedaggicos
considerados mais urgentes ou de ordem prtica amplamente proclamados pela
educao de nossos dias -, parece que a pergunta sobre o sentido que colocamos no
mundo, que damos s coisas do mundo1, sobre os modos de produo de identidades e
diferenas com os quais opera o currculo escolar e os artefatos culturais, fica silenciada
frente busca incessante por solues prticas aos problemas complexos de nosso
tempo e sob os quais se assenta a prpria educao.
Nesse cenrio, muitos educadores/as se perguntam: No seria razovel
pensarmos, portanto, em primeiro encaminhar as solues para nossos imensos
desnveis sociais e econmicos para, depois, pensarmos no multiculturalismo, no ps-
moderno, nas discriminaes ligadas a etnias, gnero etc.?2. Na contramo desses
discursos, como poderia justificar que a busca por solues educacionais (por exemplo,
1Idem, ibidem, p. 48.2VEIGA-NETO, 2002b, p. 49.
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a elaborao de propostas pedaggicas culturalmente orientadas para as sociedades
multiculturais) caream de aprofundamentos tericos a partir dos quais se possa
entender os contextos e os mecanismos de produo dos saberes institudos como
parmetros para uma educao nacional?
Talvez uma das formas de se justificar a importncia dessas questes e
discusses que se colocam no cruzamento entre cultura e educao, esteja no
tratamento relacional que passamos a dar a elas. A literatura educacional brasileira, por
exemplo, tem convivido ultimamente com discusses tericas as mais diversas
inspiradas nos movimentos ps (ps-modernista, ps-estruturalista, ps-colonialistas,
ps-feministas dentre outros) e nos Estudos Culturais, que fazem estremecer as bases do
pensamento moderno sobre as quais se assentam inmeras concepes de educao. De
modo geral, essas teorias afirmam que os velhos esquemas baseados na oposio
binria opressores-oprimidos so insuficientes para dar conta de uma realidade que
multifacetada e muito complexa3, sendo necessrio, por isso, investir em estudos e
pesquisas que busquem produzir discursos contrrios a certas falcias predominantes
no campo educacional os quais afirmam existir realidade realmente real versus
teorias abstratas, reconhecendo que tais dicotomias no passam de representaes
que construmos sobre isso que chamamos de real e que, at h pouco, pensvamos ser
to estvel e seguro4.
Entretanto, so bem poucas as pesquisas brasileiras que se dedicam a
discutir as influncias e contribuies das teorias ps para a educao, considerando-
se o grande volume de publicaes anualmente feitas na literatura educacional. A esse
respeito Veiga-Neto (2002b) chega a considerar que
A impresso que se tem de que a imensa maioria [de pesquisadores/as] est
preocupada com os aspectos mais urgentes de nossas misrias sociais eeducacionais, de modo que ou no conhece essas discusses que se do no
limite da Modernidade ou, quando as conhecem, consideram-nas prprias deum outro contexto social e econmico, estranho ao nosso. Ao lado disso,
ouve-se dizer que de nada adianta discutir assuntos to abstratos, enquanto
que a nossa realidade educacional (e social) se desagrega e se deteriora cadavez mais; ouve-se dizer que isso prprio de tericos de gabinete (p. 49).
3
Idem.4Idem, ibidem, p. 50.
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Na contramo desses argumentos, este autor nos lembra que teorizar
pressupe, sim, uma prtica-intelectual que estabelece um amplo envolvimento com o
social e o poltico, e que, toda prtica de teorizao e problematizao sempre
condio necessria se buscamos nos situar e entender melhor o mundo em que
vivemos. Nesse sentido, procuro referir-me aos aspectos que denotam a importncia
desta pesquisa para a educao, tomando emprestadas de Veiga-Neto (2002a) duas
razes importantes que assim como outras impulsionaram esta pesquisa sobre
multiculturalismo, identidadese diferenas.
Uma das razes refere-se ao fato de que, ns, educadores e educadoras,temos de lidar direta e cotidianamente com um mundo onde a diferena
assume cada vez maior relevncia e que, bem por isso, se nos apresenta comoum mundo sempre estranho. A outra razo: o prprio discurso pedaggico
parece estar se afastando rapidamente do programa homogeneizante pensado
por muitos idelogos da Modernidade os quais preconizavam umasociedade sem diferenas de qualquer ordem -, e parece estar se deslocando
no sentido de reconhecer e at defender as diferenas (p. 11).
Delimitando o campo da pesquisa
Considerando que o corpus de estudo desta pesquisa a revista Nova
Escola se caracteriza como um importante peridico na educao que exerce
influncia sobre um nmero significativo de professores/as em todo o pas, instigou-me,
especialmente, o modo com que essa revista vem contribuindo, atravs de uma cadeia
de validao discursiva que age com tamanha rapidez e eficincia, para a produo de
determinados padres de referncia identitria e de novas [e velhas] formas de
nomear o outro, o diferente na educao. Nesse espao miditico procurei, portanto,
analisar os aparatos imagticos, textuais e discursivos produzidos pela revista Nova
Escola no perodo de 19975 a 2001, que estivessem relacionados tematicamente
questo dos diferentes na educao. Esse aparato produtivoenvolve inmeras sees,
matrias, reportagens, depoimentos, narrativas, sugestes pedaggicas etc., que se
encontram materializadas, na revista, ao longo de 48 ediespublicadas mensalmente
no perodo acima mencionado.
5
Ano em que os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental foram elaborados,no Brasil, pelo Ministrio da Educao (MEC) e, consecutivamente, distribudos para professores/as eescolas em todo o pas.
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Os aportes tericos da pesquisa partem de contribuies dos Estudos
Culturais, do Ps-Colonialismo e de autores/as que transitam por diversas teorias da
diferena na educao, buscando, com isso, estabelecer um amplo e aberto dilogo a
partir de temticas como: multiculturalismo, identidade, diferena, alteridade, cultura,
currculo, pedagogias culturais, texto, imagem, narrativa. Dentre esses/as autores/as,
destaco: Durval ALBUQUERQUE Jr., Jean BAUDRILLARD, Zigmunt BAUMAN,
Homi BHABHA, Nstor CANCLINI, Marisa COSTA, Helouise COSTA, Silvia
DUSCHATZKY, Rosa FISCHER, Michel FOUCAULT, Stuart HALL, Martn
HOPENHAYN, Jorge LARROSA, Guacira LOURO, Alberto MANGUEL, Peter
McLAREN, Nuria PREZ DE LARA, Tomaz T. da SILVA, Rosa SILVEIRA, Carlos
SKLIAR, Alfredo VEIGA-NETO, Eugnia VILELA.
Ressalto, entretanto, que, embora haja distines e especificidades tericas
nos modos de se conceber a temtica da diferena, algumas aproximaes e articulaes
entre esses/as autores/as e campos de estudo me parecem possveis sobretudo do ponto
de vista cultural, uma vez que tais perspectivas, ao seu modo, pem em suspenso uma
srie de certezas tradicionalmente afirmadas sobre as polticas de fixao de identidades
e apontam para o confronto destas com sua diferena, com seu outro. De outra parte,
cabe mencionar que uma articulao entre autores/as de perspectivas diferentes se faz
absolutamente possvel, uma vez que suas abordagens apresentarem certas
caractersticas comuns e com as quais concordo: 1) procuram situar-se forade qualquer
enquadramento moderno de estabelecimento de um modelo de mundo e de linguagem
aprioristicamente definido por metadiscursos; 2) rejeitam dualismos e oposies
binrias em suas anlises; 3) enfatizam que a linguagem e os discursos so elementos
constituidores de realidades, de significaes e sentidos, e no meros instrumentos
representativos do pensamento; 4) proclamam a morte do referente no jogo dalinguagem pela afirmao da inexistncia de umasignificao anterior ou definidora de
outras significaes; 5) sustentam que os discursos institucionalizados constituem
grandes redes de poder que se especializam em categorias, de modo a classificar e
regular os corpos, os espaos e as prticas sociais dos sujeitos em suas diferentes
relaes; 6) no pretendem instituir-se como campos de estudo auto-suficientes ou
dogmaticamente constitudos em torno de paradigmas prprios e absolutos.
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Essas articulaes tambm se justificam considerando-se que os
intercmbios tericos podem ser bastante produtivos tanto para aprofundar o
entendimento que se tem sobre cada um deles, quanto para retirar, dessas aproximaes,
novas maneiras de ver, descrever, problematizar, compreender e analisar e de dar
sentido ao mundo6. Alis, o intercmbio entre diferentes perspectivas culturais e ps-
estruturalistas serve tanto para reteorizar as prticas educacionais quanto para se
repensar as prticas pedaggicas como discursosa partir dos quais os artefatos culturais
possam ser compreendidos em suas particularidades.
Com base nas perspectivas tericas acima mencionadas, procurei analisar a
produtividade da revista a partir de alguns questionamentos: Quem so os outros da
educao no discurso multicultural e como esto sendo apresentados/narrados na
revista? Como a diferena produzida nesse artefato cultural e, conseqentemente,
como a alteridade tem sido representada? Que novas/outras enunciaes sobre as
diferenas relativas cultura, etnia, raa, ao gnero e sexualidade tm sido
produzidas e veiculadas pela revista? De maneira geral (ou hipoteticamente falando),
questiono: ser que os referenciais tericos e polticos do multiculturalismo -
amplamente difundidos na revista -, ao apontarem para o respeito diversidade
cultural e para a valorizao das diferenas no remetem apenas a uma designao
dos conflitos culturais? O apelo tolerncia cultural significa, de fato, um
rompimento com a histria da violncia frente aos nomeados outros? No seria o
multiculturalismo uma inveno elegante da modernidade (Duschatzky e Skliar,
2000) utilizada para apaziguar a brutalidade de suas prticas de dominao em relao
ao outrocolonizado?
Os propsitos de tais questionamentos e das anlises desenvolvidas ao longodesta Dissertao consistem no apenas em colocar em suspenso a retrica multicultural
e suas estratgias de produzir diferencialismos na educao conforme veremos mais
adiante , mas, sobretudo, abordar a produo das diferenas relativas cultura, raa,
etnia, ao gnero e sexualidade sob o ponto de vista de umapolticae umapoticado
texto cultural, ou seja, fazer dos textos da revista espaos de leituraabertos a mltiplos
modos de ver e de narrar os diferentesna educao, problematizando sua produtividade
6VEIGA-NETO, 2000, p. 37-38.
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atravs dos aparatos textuais, imagticos e discursivos que a revista Nova Escola faz
circular e nos modos de recepo/interao com seu pblico leitor.
Quando penso no investimento dessa pesquisa sobre as construes culturais
das diferenas num influente peridico da educao brasileira a revista Nova Escola
penso que isso tambm significa remexer ou dar vazo s minhas prprias construes
culturais. Penso que tal esforo de nada valeria se, em minhas prprias vivncias, no
abrisse espao para confluncias culturais, para um hibridismo sem fronteiras. E,
considerando o curso que esta pesquisa tomou e tomar daqui a diante , gostaria de
acreditar que as questes que perpassam nossa contemporaneidade e, por extenso, a
prpria pesquisa estejam ligadas no a sentimentos nostlgicos e de lamentao, mas a
uma viso de perplexidade (Larrosa e Skliar, 2001) que nos leve a encarar o presente
[...] como aquilo que nos d o que pensar; [como] um tom catico no qual o
incompreensvel do que somos se nos mostra disperso e confuso, desordenado,
desafinado, em um murmrio desconcertado e desconsertante, feito de dissonncias, de
fragmentos, de descontinuidades, de silncios, de casualidades, de rudos (p. 8).
Alis, se as discusses aqui apresentadas forem julgadas relevantes ou
pertinentes frente aos propsitos aos quais se prope, talvez elas possam contribuir para
o redimensionamento de prticas educativas e culturais que se pautam na manuteno e
no enquadramento de ns mesmos/as e, dessa forma, poder desafiar concepes
tradicionais da pedagogia, do currculo e da cultura, passando a conceb-los como
territrios de disputas sempre abertos contestao e negociao. Por ora, cabe, ento,
lanar algumas pistas sobre o conjunto desta Dissertao em torno da qual circulam
temas como multiculturalismo, currculo,pedagogias culturais,polticas e poticas da
diferena.
Noprimeiro captulo, apresento algumas discusses em torno da entrada
do multiculturalismo na educao brasileira, bem como desse vasto campo terico.
Apoiando-me em diversas perspectivas tericas, busco problematizar as respostas
multiculturais ao problema da diferena na educao. Situando o currculo como
territrio de no-lugar e como prtica de significao, chamo ateno, no segundo
captulo, para o fato de que as conexes entre currculo e artefatos culturais estodiretamente implicadas em processos de significao e de constituio de
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subjetividades, identidades e diferenas. Fao destaque, tambm, para a revista Nova
Escola - corpus de estudo desta pesquisa - como um influente artefato cultural
amplamente envolvido nesses processos de produo. No terceiro captulo, apresento
alguns aportes terico-metodolgicos que contriburam para o desenvolvimento
analtico da pesquisa, especialmente os que se referem a texto, discurso, escrita e
imagens, bem como seu percurso metodolgico. No quarto captulo, apresento as
anlises desenvolvidas a partir dos aparatos pedaggicos da revista Nova Escola, atravs
de duas dimenses da produo das diferenas: a dimenso poltica que trata
especificamente de sua produo cultural, e a dimenso potica referente aos modos
de ver e de significar a irrupo das diferenas na educao. Finalmente,apresento as
consideraes finais da pesquisa, onde retomo algumas perguntas que se fizeram
presentes desde o seu incio, j no com o intuito de respond-las, mas como forma de
expressar minhas prprias impresses e olhares sobre a temtica da diferena na
educao, procurando inclusive apontar algumas perspectivas de estudos que sugiram
neste caminhar.
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I- A ENTRADA DO MULTICULTURALISMO NA EDUCAO
BRASILEIRA
Atualmente, questes relacionadas pluralidade de culturas, etnias, raas,
sexualidades, religiosidades e outras dimenses identitrias, vm ocupando um
considervel espao em debates educacionais, pesquisas e eventos de natureza
cientfica, fruns sociais e cursos de formao docente em todo o Brasil. E um dos
motivos da recorrncia dessas discusses na educao est ligado, a meu ver,
especialmente implementao dos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) pelo
Ministrio da Educao e Cultura (MEC), em 1997, que, em suas diretrizes e
orientaes gerais para o Ensino Fundamental (inscritas no Tema Transversal
Pluralismo Cultural), destaca a importncia de um conjunto de saberes, valores e
atitudes (a serem trabalhados por todas as escolas do territrio nacional), visando,
simultaneamente, valorizao da diversidade cultural, o respeito e tolerncia s
diferenas, e consolidao dos valores democrticos da sociedade brasileira para o
alcance da cidadania.
A entrada dos PCN na educao brasileira motivou e ainda motiva
duras crticas dirigidas especialmente por pesquisadores/as e professores/as que, alm
de no concordarem com as pretenses universalistas para a educao nacional
inscritas no documento, contestam as estratgias impositivas utilizadas pelo governo
no processo de sua elaborao deixando de fora a participao de pessoas, grupos,
instituies sociais, e privilegiando os interesses mercadolgicos da economia global.
Por outro lado, tambm h um reconhecimento, por parte de muitos estudiosos dessa
poltica, quanto s possveis vantagens e contribuies trazidas pelos PCN,especialmente no que diz respeito proposio de temas transversais. Na opinio de
Veiga-Neto (2002a), embora sejam pensados por vrios idelogos da globalizao,
Podemos considerar que os temas transversais fazem bem mais do que seproclama; alm de introduzirem, no currculo, assuntos da atualidade que no
deixam de ser da maior importncia como as relaes tnicas, os problemasambientais etc. -, eles podem estar operando no sentido de criar ou facilitar
novas percepes espaciais que, ao mesmo tempo em que reconhecem os
lugares especficos os lugares epistemolgicos e simblicos traados pelas
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disciplinas -, eles pressupem, num outro plano, uma continuidade sem
barreiras, capaz de servir de amplas vias para a fantasmagoria7 (219).
A partir da entrada dos PCN na educao, o multiculturalismo tem sido
retrica constante entre variadas teorias educacionais, artefatos e movimentos culturais,propostas pedaggicas etc. constituindo, dessa forma, um importante campo terico que
se prope a discutir criticamente os processos de produo de identidades culturais, com
vistas efetivao de uma prtica pedaggica multiculturalmente orientada (Moreira
e Macedo, 2001) no interior de propostas educacionais politicamente comprometidas
com as lutas e reivindicaes histricas de grupos e culturas socialmente excludos.
Por tratar-se de um campo de estudo bastante diversificado em seus matizesterico-prticos, considero relevante, para fins de um melhor entendimento, apresentar
algumas das caractersticas mais recorrentes do multiculturalismo presentes em boa
parte da literatura da rea. Tal esforo no consiste em pretender construir uma
trajetria histrica detalhada do multiculturalismo, mas, to somente, levantar
aspectos tericos e polticos desse campo, de modo a estabelecer nexos importantes com
as discusses em torno das quais versa esta pesquisa.
De modo geral, pode-se dizer que o multiculturalismo teve incio na primeira
metade do sculo XX em pases cuja diversidade cultural provocada, em grande
parte, por fenmenos migratrios que se intensificavam em todo o mundo -
representou um srio problema social para a consolidao das unidades nacionais.
Desde a sua origem, o multiculturalismo aparece como princpio tico que tem
orientado a ao de grupos culturalmente dominados, aos quais foi negado o direito
de preservarem suas caractersticas culturais8.
No incio, os movimentos multiculturalistas expressavam apenas as reivindicaes
de grupos tnicos, mas, em decorrncia dos inmeros confrontos culturais que
ocasionavam preconceitos e discriminaes raciais, de classe, de gnero, de
7Nesse mesmo texto, Veiga-Neto utiliza o termo fantasmagoriapara dizer que as recomendaes dosPCN por serem pretensamente mais abertas e flexveis e mesmo os prprios parmetros podem serlidos como espaos abertos fantasmagoria, ou seja, como os lugares cuja lgica e cuja retricapermitem e at chamam a entrada de outros saberes, outras prticas, outras realidades que vm de
contextos distantes e estranhos e que, mesmo permanecendo, digamos, invisveis, acabam por model-lossub-repticiamente (p. 216).8GONALVES E SILVA, 2000, p. 20.
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sexualidade, o multiculturalismo passa, a partir da segunda metade do sculo
passado, a abarcar um universo cultural mais amplo. Contando inicialmente com a
aliana dos movimentos sociais, de negros, de mulheres e de outros grupos
culturalmente organizados, os movimentos multiculturalistas solidificam uma luta
poltica, institucional e jurdica em favor dos direitos humanos e civis. Nesse
sentido, importante frisar que, apesar da grande evidncia e repercusso do
multiculturalismo como retrica da moda no mundo contemporneo, ele no pode
ser visto como um fenmeno recente ou exclusivo desses tempos, pois as culturas
sempre foram plurais e os debates em torno das diversidades culturais datam de
longas pocas9. Contudo, bem verdade que a exploso multicultural, atualmente,
um acontecimento. Isso em decorrncia de, pelo menos, trs importantes fatores: a)
as constantes guerras e conflitos interculturais que colocam em jogo hegemonias
nacionais e a sobrevivncia de povos e culturas; b) as lutas institudas, h mais de
duas dcadas, pelos movimentos feministas, gays, negros, indgenas etc., e que a
cada dia ganham novos adeptos em prol dos direitos humanos, do respeito s
diferenas e contra o apartheid cultural; e c) a exploso miditica, que passa a
assumir grande participao nesse processo, considerando-se a visibilizao ao
menos parcial dessa multiplicidade de diferenas.
Como campo terico, o multiculturalismo se prope a discutir criticamente os
processos de produo de identidades culturais; analisar formas de conhecimento
tradicionalmente corporificadas em diversas instncias produtoras de cultura (tais
como: escolas, televiso, cinema, jornais, revistas, publicidades etc.);
identificar/combater etnocentrismos, preconceitos e vises estereotipadas de
determinados grupos tnico-culturais; buscar, em diferentes espaos educativos e
sociais, abertura para a incorporao de uma pluralidade de vozes e de gruposculturais, com vistas construo democrtica da sociedade.
9 A respeito dessa suposta novidade que o multiculturalismo traria para o mundo contemporneo,Santamara (1998) observa que o termo culturaocupa um lugar central nas sociedades contemporneas atal ponto que se chega a sustentar que estamos assistindo ao nascimento de uma sociedade multicultural,como se antes no houvesse existido diversidade no seio das sociedades agora ditas multiculturais, e
como se estas tivessem transmutado da noite para o dia em sociedades totalmente distintas, nas quais osconflitos sociais seriam produto exclusivo e excludente da dialtica entre grupos tnicos ou civilizatrios(p. 62).
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No campo educacional brasileiro, o multiculturalismo apresenta-se como buscando
contribuir para uma educao que tenha por princpio o respeito s diversidades
culturais e tolerncia ao diferente, que esteja vinculada s demandas de
reivindicao de grupos historicamente excludos e ao incentivo de prticas
pedaggicas e culturais que possibilitem dar voz aos chamados grupos oprimidos
e s polticas afirmativas das identidades desses grupos. Enfim, uma educao
multicultural que alimente o sonho de construo de uma sociedade sem injustias,
discriminaes e desigualdades sociais.
Dada a existncia de concepes e abordagens um tanto divergentes que
percorrem os matizes tericos do multiculturalismo, recorro a McLaren (1997)
influente autor em assuntos multiculturais para destacar, resumidamente, pelo menos
quatro verses do multiculturalismo (em parte, distintas, em parte, estritamente
relacionadas), no campo educacional: o multiculturalismo conservador, o
multiculturalismo humanista liberal, o multiculturalismo liberal de esquerda e o
multiculturalismo crtico.
O multiculturalismo conservador corresponde s vises coloniais e
imperialistas compartilhadas por poderosos grupos, pases e sociedades que,
historicamente, tm desfrutado de posies polticas e econmicas satisfatrias. Em
geral, essa perspectiva fundamenta-se em atitudes auto-elogiosas, autojustificatrias,
assimilacionistas das chamadas outras culturas e marcadamente imperialistas de
europeus e norte-americanos. Suas principais caractersticas podem ser apresentadas da
seguinte forma: a) recusa tratar a branquidade como uma forma de etnicidade e, ao faz-
lo, situa a branquidade como uma norma invisvel atravs da qual outras etnicidades so
julgadas; b) utiliza o termo diversidade para encobrir a ideologia de assimilao quesustenta sua posio; c) essencialmente monoidiomtico e adota a posio de que o
ingls deveria ser a nica lngua oficial no mundo; d) favorece a produo elitista do
conhecimento para a qual o sistema educacional direcionado.
Uma segunda verso constituda pelomulticulturalismo humanista liberal
filho nobre das sociedades capitalistas. De acordo com tal perspectiva, existe uma
considervel igualdade natural entre pessoas brancas, afro-americanas, latinas,asiticas e outras populaes raciais que permite com que haja competies mais
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equilibradas entre grupos e raas em uma sociedade capitalista. Entretanto, a aparente
idia de igualdade acaba mascarando acirradas disputas e formas de poder que
perpassam as relaes sociais, tornando-as desiguais. McLaren (1997) chega a advertir
que esta viso resulta freqentemente em um humanismo etnocntrico e opressivamente
universalista, no qual as normas e regulaes morais que governam o funcionamento
dessas sociedades so identificadas mais fortemente com as comunidades poltico-
culturais anglo-americanas.
A terceira verso refere-se ao multiculturalismo liberal de esquerda
amplamente fortalecido por grupos empresariais que buscam, na segmentao dos
grupos socioculturais e de suas respectivas demandas de reivindicao, garantir margens
mais lucrativas no consumo diferenciado dos bens e produtos culturais. Ao atribuir
considervel importncia s diferenas culturais, tal perspectiva adverte que as lutas em
torno da igualdade entre grupos, raas, etnias e culturas podem suprimir importantes
diferenas culturais em termos de comportamentos, valores, atitudes, estilos cognitivos
e prticas sociais. Advoga a favor das diferenas relativas raa, classe, gnero e
sexualidade dentro do multiculturalismo, porm, essencializa-as ao compreend-las
como formas de significao retiradas de sua situacionalidade histrica e cultural.
O multiculturalismo crtico10 e de resistncia constitui a quarta verso
multicultural. Trata-se de uma perspectiva poltica e cultural de grande simpatia entre
grupos, movimentos sociais e sindicais, partidos polticos, escolas, propostas
pedaggicas etc., que comungam dos ideais por justia social, buscando denunciar e
combater formas de saber/poder que conduzem subjugao de povos, raas e culturas
historicamente marginalizadas. A partir de uma perspectiva crtica e ps-estruturalista
de resistncia, enfatiza o papel que o discurso e a representao desempenham naconstruo de significados e identidades. Compreende as representaes de raa, classe
e gnero como resultantes de lutas sociais mais amplas sobre signos e significaes e
enfatiza no apenas o jogo textual e retrico como formas de resistncia, mas,
10Apesar de haver, atualmente, outras nomeaes para esta verso - como o caso de McLaren (2000)que tem argumentado a favor de um multiculturalismo revolucionrio -, estarei utilizando, na presente
proposta de estudo, a nomeao multiculturalismo crtico,devido sua ampla utilizao entre a maioriados/as autores/as no campo educacional.
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sobretudo, a tarefa central de transformar as relaes culturais e institucionais nas quais
os significados so gerados.
Embora aparentemente distintas, acredito que essas quatro verses do
multiculturalismo possuem aproximaes tericas bastante visveis o que torna
possvel, por exemplo, algum esforo de sntese em dois grandes grupos, consideradas,
obviamente, suas especificidades tericas e polticas. So eles: o multiculturalismo
conservador oufolclricoe o multiculturalismo crtico.
No primeiro grupo estariam as concepes multiculturais conservadoras ou
folclricas. Nessa perspectiva, a no problematizao das relaes desiguais de poder
ou dos mecanismos discriminatrios que inferiorizam identidades culturais especficas,
acaba conduzindo relaes e prticas culturais a uma espcie de pluralismo cultural
benevolente, uma vez que apenas convoca as diversas culturas a compor o mosaico
multicultural das sociedades capitalistas, mantendo, com isso, as distncias culturais
desejadas. Ao meu ver, tal abordagem restringe o multiculturalismo a formas
folclricas11. de apresentao cultural, ao enfatizar, de forma episdica e extica, as
vivncias culturais colocadas margem daquilo que se convencionou chamar de
Cultura. Alm disso, o multiculturalismo conservador ou folclrico limita-se a
promover atitudes de tolerncia e de reconhecimento das diversidades culturais,
porm, ignora os mecanismos pelos quais se estabelecem as diferenas culturais, as
discriminaes, as excluses sociais.
No segundo grupo estariam as perspectivas crticas do multiculturalismo,
em cujo enfoque e com base em aportes de teorias crticas e ps-crticas -, as relaes
entre cultura e poderso amplamente analisadas, buscando-se, com isso, abrir espaopara as vozes e culturas historicamente silenciadas nos currculos e nas prticas
pedaggicas, a fim de promover um horizonte social emancipatrio e transformador. Tal
perspectiva defende que, diante dos cenrios multiculturais contemporneos, j no h
como sustentar a suposta existncia de uma Cultura, mas sim culturascada vez mais
interrelacionadas, disputando entre si significados os mais variados em torno de suas
11
Uma leitura mais detalhada acerca da entrada folclrica do multiculturalismo na educao foidesenvolvida na Parte I do captulo IV desta Dissertao.
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vivncias culturais e de valores ticos e estticos. Nesse sentido, o reconhecimento do
carter incompleto das culturas apresenta-se como ponte para o dilogo e o
hibridismo cultural.
No obstante as crticas e tenses que perpassam as diversas abordagens
tericas e polticas do multiculturalismo, observa-se que ele tem se constitudo,
atualmente, como um dos caminhos mais percorridos em busca do
redimensionamento de valores e prticas pedaggicas e culturais, e como retrica
autorizada para dar voz s culturas e povos historicamente silenciados, para
denunciar/combater as formas de poder que os sujeitam e os oprimem, para falar, enfim,
dos sonhos compartilhados entre aqueles/as que lutam por um mundo onde reine a
justia social e a dignidade humana.
Entre os argumentos favorveis ao multiculturalismo, Moreira (2001)
esclarece que as tenses e as crticas a ele dirigidas [ao multiculturalismo] podem tanto
favorecer o avano do conhecimento na rea, como estimular propostas curriculares
renovadas que visem preparar cidados e docentes capazes de bem viver e atuar em
sociedades cada vez mais multiculturais (p. 17). De outra parte, registra-se tambm
que, no campo educacional brasileiro, tm se travado slidas discusses tericas sobre
os modos de se conceber a resposta multicultural ao problema da diferena na
educao, procurando-se evitar simplificaes e redues apressadas do campo terico
das diferenas ao domnio pluralista da diversidade cultural.
Com o propsito de incitar um debate em torno das respostas do
multiculturalismo sobre temticas como cultura, identidade e diferena cultural,
destacarei algumas crticas levantadas por autores de diferentes teorias culturais, asquais aparecem com bastante freqncia na educao:
1) Embora haja um considervel distanciamento poltico e terico entre o
multiculturalismo crtico e as perspectivas multiculturais conservadoras ou
folclricas, tais abordagens apiam-se em noes demasiado etnocntricas e
essencialistas de cultura - entendida como consenso cultural - e de identidades
tomadas como unidade ou consistncia cultural. Nessa perspectiva, as identidadesculturais so vistas geralmente como parte de um universo de existncia pacfica e
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consensual, ou seja, uma espcie de mosaico multiculturalonde o diverso se
converte na fonte luminosa de um projeto multicultural pretensamente homogneo e
regulador que diminui e obstaculiza as possibilidades de as diferenas existirem
como vivncias singulares no interior dos prprios grupos e movimentos culturais.
Como conseqncia, mantm-se as distncias culturais e obstaculizam-se os
cruzamentos interculturais;
2) De modo geral, o multiculturalismo, ao abordar questes relativas s polticas de
identidade cultural, atribui s diferenas culturais, de classe, gnero, sexualidade,
raa, etnia etc., uma mesma origem sociale sob uma perspectiva excessivamente
negativa, isto , como sinnimo e conseqncia das desigualdades e excluses
que subjugam as prticas e vivncias culturais de grupos dos deixados s margens
das polticas sociais. Talvez seja com base nesses argumentos que o
multiculturalismo busca preconizar que o direito diferena deva estar articulado ao
direito igualdade social, de modo a ampliar as possibilidades de dignidade
humana. Nesse sentido, um dos princpios do multiculturalismo apontado pelo
socilogo Boaventura de Souza Santos tem sido bastante aclamado: as pessoas e os
grupos tm o direito de serem iguais quando a diferena os oprime, e tm o direito
de serem diferentes quando a igualdade os descaracteriza.
3) Ao apoiar-se em posies socialmente aceitas e pedagogicamente recomendadas de
apelo tolerncia cultural, o multiculturalismo chega, muitas vezes, a encobrir uma
ideologia de assimilao12que pretende simplesmente autorizar os outros a que
continuem sendo apenas outros, porm, sob a gide de uma convivncia
multicultural regulada. Ao meu ver, por mais edificante que isso possa parecer, a
tolerncia impede o reconhecimento de que as identidades e as diferenas soprodues culturais e histricas extremamente conflitantes, disputadas, imersas em
complicadas relaes de poder. Nesse sentido, talvez um dos paradoxos mais
marcantes das sociedades multiculturais esteja no fato de que, ao mesmo tempo em
que os indivduos so convocados tolerncia e convivncia mtua, fica
decretada a impossibilidade de a diferena ultrapassar as fronteiras da designaoe
12McLaren (2000) chama ateno para o fato de que o discurso da diversidade e da incluso , muitas
vezes, predicado com afirmaes dissimuladas de assimilao e consenso, que servem como apoio aosmodelos democrticos neoliberais de identidade (p. 18).
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da retrica da diversidade cultural frente ao problema da diferena, pois a idia de que
as culturas so diversas - devendo ser respeitadas e toleradas -, cria a falsa iluso de
uma convivncia pacfica e acaba suprimindo, no prottipo do caldeiro
multicultural, as diferenas existentes entre as culturas. Nesse sentido, embora haja
uma certa acolhida e estmulo diversidade cultural, h sempre, e paradoxalmente,
uma correspondente conteno da diferena cultural atravs de uma norma
transparente - instituda e administrada pela prpria sociedade que hospeda essas
culturas - servindo para mascarar os etnocentrismos dentro dos prprios circuitos
culturais.
Buscando encontrar outros modos de pensar as culturas contemporneas
para alm do multiculturalismo e das relaes pautadas na explorao antropolgica
do outro cultural, Hopenhayn (2001) nos fala de formas de relaes transculturais14
estabelecidas do ponto de vista da auto-exprerimentao e da viagem transcultural
com o outro, ou seja, trata-se de um processo em que o sujeito busca transcender a si
mesmo atravs do culturalmente-outro, e onde ambos se permitem compartilhar
afinidades e conflitos, recriando-se com particular intensidade.
Quanto s mudanas sugeridas pela retrica multicultural na educao,
Skliar (2002c) considera que tais mudanas apontam, na realidade, para algumas
iluses, dentre as quais, menciona
A insistncia em uma nica espacialidade e em uma nica temporalidade,
mas com outros nomes; a reconverso dos lugares em no-lugares para osoutros; a infinita transposio do outroem temporalidades e espacialidadesegocntricas e homo-hegemnicas; a aparente magia de uma palavra que se
instala pela ensima vez ainda que no nos diga nada; a pedagogia dassupostas diferenas em meio a um terrorismo indiferente; e a produo de
uma diversidade que apenas se nota, apenas se entende, apenas se sente, com
a qual apenas se vibra (p. 2).
tenta, portanto, elaborar seu projeto histrico, poltico e literrio da diferena; um projeto cujas pretensesconsistem em fazer da escrita um tempo revisionrio, um retorno ao presente para redescrever nossacontemporaneidade cultural... [a fim de] tocar o futuro em seu lado de c (BHABHA, 1998, p. 27), noaqui e agora de nossa histria.14
Hopenhayn prefere falar de transcultural e no de intercultural ou multicultural, porque a nfasecoloca-se menos no efeito de agregao, diversificao ou mestiagem cultural, e mais no efeito de setranscender a si mesmo, atravs do culturalmente-outro (Idem, ibidem, p. 261).
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II- CURRCULO E PEDAGOGIA CULTURAL - CONEXES
O campo das teorizaes curriculares, no Brasil, desde h algum tempo, tem
sido palco de constantes disputas entre diferentes perspectivas tericas. Os
desdobramentos dessa movimentao - envolvendo, recentemente, pelo menos duas
teorizaes curriculares de grande fora na educao: as Teorias Crticas e as Teorias
Ps-Crticas tm apontado tanto para novos entendimentos acerca do currculo15, da
realidade educacional e das prticas sociais, quanto para a incorporao de teorias e de
enfoques analticos que visem articular os estudos sobre currculo com aspectos da
cultura, da linguagem, do sujeito, dentre outros.
Por influncia das perspectivas ps (ps-estruturalismo, ps-modernismo,
ps-feminismo, e tambm dos Estudos Culturais) e dos movimentos em favor da
virada cultural e da virada lingstica - que contriburam decisivamente para o
reexame das conexes entre linguagem e cultura nas anlises culturais e de currculo -, a
linguagem ganha significados que saltam o campo representacional do pensamento,
passando a ser concebida em sua dimenso constitutiva(de realidades e significados),
sendo, a princpio, impossvel de ser capturada de forma definitiva em seus sentidos,
dada sua insero em movimentos de constantes fluxos.
Essas modificaes tambm se estendem ao campo do currculo. Nesse
caso, e contrariamente s abordagens mais conservadoras do currculo - que o tomam
apenas como um instrumento tecnicamente estruturado visando organizao
disciplinar de saberes e prticas pedaggicas -, muitos curriculistas passam a dirigir
ateno especial para as relaes entre cultura e poder, para os artefatos culturais (comoo cinema, a televiso, os jornais, as revistas, as publicidades etc., que, tal como a escola,
agem como dispositivos culturais que operam na produo/transmisso de valores,
15 Ao referir-me emergncia de perspectivas tericas que sugerem novos entendimentos analtico-conceituais acerca do currculo - conectados a outros campos de estudo (como a cultura, a linguagem, odiscurso, o poder etc.), no estou afirmando, com isso, que a partir de ento, tudo currculo, e muitomenos que se trata de um total redimensionamento conceitual do currculo. Pelo contrrio, ampliam-seas abordagens de estudo sobre currculo para almde seu uso escolar, permanecendo o entendimento deque, segundo Veiga-Neto (2002a), o currculo um artefato escolar inventado nos primrdios da
Modernidade... [e que] foi idealizado como um artefato capaz de colocar uma ordem comum na educaoescolarizada (pp. 201; 212).
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conhecimentos e atitudes, em conexo com as relaes de poder), para a linguagem, o
discurso e a intertextualidade, para questes de gnero, sexualidade, identidade e
diferena cultural, alm de muitos outros estudos importantes que vm ganhando espao
nas pesquisas em educao em todo o pas. Em geral, esses estudos sinalizam para a
necessidade de redimensionamentos tericos no campo do currculo, admitindo-se que
sua produtividade vai alm dos espaos educativos j convencionalmente institudos
como a escola, a sala de aula e suas prticas pedaggicas.
Contudo, o fato de se reconhecer que o currculo se caracteriza como um
campo de estudos atravessado por constantes flutuaes tericas ao longo de sua
histria, em nada implica que tais mudanas resultem de um processo evolutivo, ou
seja, que suas transformaes tenham seguido uma escala linear (indo das perspectivas
mais tradicionais ou conservadoras, passando pelas teorias crticas, at encontrar seu
pice nas recentes teorizaes ps-crticas). Ao meu ver, tais movimentaes acontecem
simultaneamente entre perspectivas tericas diferentes, sendo marcadas, em geral, por
processos de continuidades/rupturas/disjunturas que do, ao currculo, um tom catico e
fragmentrio e que tornam imprecisas as tentativas de estabelecer algum ponto
privilegiado de conceitualizao.
2.1- Currculo: prtica de significao
Tendo em vista o carter provisrio a que os esforos de conceitualizao
esto sujeitos, nota-se que muitas explicaes e certezas tradicionalmente aceitas no
campo educacional tm sido abaladas juntamente com seus valores, saberes e crenas.
Nesse sentido, o currculo, aqui entendido como prtica de significao (Silva,2001), tem se constitudo muito mais como um territrio de no-lugar onde co-habitam
identidades/diferenas, construo/runa, permanncia/nomadismo/hibridismo
caractersticas de sua prpria condio bablica (Larrosa e Skliar, 2001) -, do que
propriamente um campo estvel de teorizaes.
Como territrio de no-lugar, o currculo apresenta-se como espao de
disputassempre aberto produtividade, polissemia, ambigidade, indeterminao, multiplicidade de significaes e sentidos. Nessa perspectiva, o currculo constitui-se
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em um territrio em que se travam lutas por diferentes significados do indivduo, do
mundo e da sociedade. Nesse territrio, ao se acolherem certas vozes e ao se silenciarem
outras, intenta-se produzir determinadas identidades raciais, sexuais, nacionais,
confirmando-se ou no relaes de poder hegemnicas16.
Como prtica de significao, o currculo tem sido, sem dvida, um dos
artefatos educativos mais envolvidos nos processos de constituio de sujeitos,
identidades e diferenas. Afinal, se o currculo assume grande produtividade nas formas
pelas quais os sujeitos so cotidianamente interpelados a ocupar diferentes posies
na dinmica social, porque sua existncia depende, em grande parte, da materialidade
das prticas culturais - as quais lhe do sustentao e com as quais estabelece uma
relao produtiva.
Como prtica de significao, o currculo contribui, ainda, para ampliar o
entendimento do que vem a ser sua dimenso discursiva. De acordo com Silva (2001),
o currculo pode ser visto como um texto, como uma trama de significados, pode ser
analisado como um discurso e ser visto como uma prtica discursiva. E como prtica de
significao, o currculo, tal como a cultura, , sobretudo, uma prtica produtiva (p.
19). Contudo, adverte o autor,
Conceber o currculo como texto, entretanto, no significa v-lo como textosimplesmente legvel, na acepo de Barthes. [...] Conceber o currculo como
texto significa v-lo, antes, como texto escrevvel, outra vez, no sentido deBarthes. Aqui, o texto se abre integralmente para sua produtividade. A
interao com o texto no se limita, nessa perspectiva, a detectar a presena
de um significado ao qual o texto se refere univocamente, [pois] o texto atentativa de fixao de um significado que, no obstante, sempre nos escapa
(idem, ibidem, p. 66).
Como elemento discursivo das polticas e prticas educacionais e culturais, o
currculo tambm est envolvido com a fabricao dos objetos e situaes de que fala,
isto , de saberes e competncias, de sucessos e fracassos. Alis, o currculo no produz
apenas os objetos e as situaes de que fala, mais que isso, ele produz os prprios
sujeitos aos quais fala, os indivduos que interpela. Em verdade, o currculo estabelece
diferenas, constri hierarquias, produz identidades (idem, p. 12), na medida em que
16CANEN e MOREIRA, 2001, p. 7.
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acaba funcionando como um poderoso dispositivo que subjetiva, interpela e recoloca
todos e cada um na dinmica de uma distribuio hierrquica de lugares conforme as
posiesque, eventualmente, ocupam.
Nesse processo de fabricao, o currculo se constitui em um influente
artefato escolar envolvido na produo e distribuio de saberes e que, ao articular-se
com outros artefatos da cultura, acaba funcionando como
O grande dispositivo pedaggico que recolocou, em termos modernos, ainveno grega da fronteira como o limite a partir do qual comeam os
outros; no propriamente o limite a partir do qual nos perdemos, mas o limite
a partir do qual a diferenacomea a se fazer problema para ns. Em suma, o
currculo contribuiu e ainda contribui para fazer do outroum diferentee,por isso, um problema ou um perigo para ns (VEIGA-NETO, 2002a, p.165).
Na luta por significaes no campo do currculo, podemos identificar,
portanto, a existncia de uma tenso constante entre, de um lado, as tentativas de
delimitao, fixao e naturalizao do significado, e, de outro, a rebeldia, o
deslizamento e a disseminao tambm presentes no processo de significao. Nessas
disputas, as prticas de significao com as quais opera o currculo so inseparveis dasrelaes depoderque as definem. justamente essa luta em torno dos significados que
atribui, ao currculo, um carter incerto, indeterminado, imprevisvel.
2.2- Aspectos culturais do currculo e da pedagogia
Certamente, uma das grandes contribuies que os Estudos Culturais trouxerampara a educao est no entendimento de currculocomo artefato cultural, isto , como
uma prtica cultural que traduz valores, conhecimentos e interesses de diferentes
grupos, contextos, sociedades. Como artefato escolar e cultural, podemos dizer que o
currculo se difunde desde a organizao escolar de contedos de ensino, disciplinas e
prticas pedaggicas, at outras instituies sociais (tais como hospitais, prises,
igrejas, museus, manicmios etc.) e artefatos culturais (como, por exemplo, o cinema, a
televiso, os jornais, as revistas, as publicidades etc.), se entendemos que tais
instituies e artefatos atuam, eventualmente, com alguma finalidade pedaggica.
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Da perspectiva dos Estudos Culturais, possvel extrairmos importantes
entendimentos acerca do currculo e da pedagogia no bojo de umapoltica culturalpara
a educao. Menciono algumas delas: 1) o currculopassa a ser entendido como parte
de uma poltica cultural no interior da qual situam-se as constantes lutas por
significaes e pela constituio de sujeitos, identidades e diferenas em que acaba se
tornando no apenas um territrio de produo ativa de culturas como tambm um
campo de contestao cultural. Nesse disputado campo de significaes, o currculo a
manifestao viva da presena de vozes e de interesses dos que o pensam, o produzem e
o praticam, como tambm um campo que se abre indeterminao, possibilitando o
ressoar de outras vozes a partir das quais o prprio currculo faz produzir novas formas
de pensar e de fazer educao; 2) a pedagogiapassa a ser cada vez mais definida em
termos culturais e no apenas como o domnio de tcnicas e metodologias de ensino,
restrita ao espao escolar. Para os Estudos Culturais, a pedagogia , portanto, um modo
de produo culturalimplicado na forma como o poder e o significado so utilizados na
seleo e organizao de conhecimentos, atitudes, valores, seja no mbito escolar ou
cultural.
Observando alguns significados do termo cultural no campo pedaggico,
veremos, de acordo com Simon (1998), que esse termo enfatiza os modos de produo
textual e de imagens de maneira a possibilitar uma forma de ver como todas as
tecnologias do simblico esto implicadas em questes de pedagogia (p. 71). Em termos
conceituais, aquilo que, nos Estudos Culturais, denominado de tecnologias culturais
ou artefatos culturais pode ser definido como um conjunto de arranjos e prticas
institucionais no interior dos quais vrias formas de imagens, som, texto e fala so
construdas e apresentadas e com as quais, ademais, integradas (idem). O fato de essastecnologias estarem implicadas na produo de significados nos leva a considerar que,
em parte, os artefatos culturais- sendo elementos constitudos dentro da linguagem e da
cultura -, contribuem para a organizao e regulao dos processos de produo
simblica a partir dos quais os significados so produzidos, contestados, desconstrudos.
Desse modo, podemos dizer que, em parte, os artefatos culturais - sendo
elementos constitudos dentro da linguagem e da cultura -, contribuem para a
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organizao e regulao dos processos de produo simblica a partir dos quais os
significados so produzidos, contestados, desconstrudos.
Alm desses entendimentos, Steinberg e Kincheloe (2001) trazem
importantes contribuies a respeito da dimenso cultural da pedagogia, considerando
que a expresso pedagogia cultural refere-se aos processos educativos que ocorrem
tanto na escola como numa variedade de reas sociais. Desse modo, os autores definem
por reas pedaggicas aqueles lugares onde o poder organizado e difundido,
incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas,
videogames, livros, esportes etc. (p. 14). Ainda em relao aos significados conceituais
da expressopedagogia cultural, Silva (2000a) esclarece que esta uma nomenclatura
de grande circulao nos Estudos Culturais geralmente utilizada para referir-se a
qualquer instituio ou dispositivo cultural que, tal como a escola, esteja envolvido
em conexo com relaes de poder no processo de transmisso de atitudes e valores,
tais como o cinema, a televiso, as revistas, os museus etc. (p. 81).
A partir dessas perspectivas, considero que boa parte dos artefatos culturais
dispe de arranjos e tecnologias que, de algum modo, manifestam produtividade seja de
natureza pedaggica ou no17, informando, nesse caso, que no h uma nica forma de
fazer educao. De outra parte, importante salientar que, embora os artefatos
culturais possuam estratgias de normalizao e padronizao das prticas e
produtos culturais em contextos especficos -, no se pode, contudo, afirmar que
garantam, de modo unilateral, seus efeitos pretendidos, pois o carter mltiplo e
disperso dos significados que constituem a textura da vida cotidiana, inviabiliza, ao meu
ver, a existncia de localizaes unificadas em torno dos campos simblicos a partir
dos quais as pessoas constroem e vivenciam suas formas visuais, escritas, auditivas e/ougestuais de textualidades. Na opinio de Simon (1998), seria uma extrema
simplificao ver locais como as escolas, o cinema, a arquitetura e rituais religiosos
como arranjos prescritos que, atravs de suas representaes simblicas, servem a um
conjunto particular de interesses sociais e, automtica e efetivamente, funcionam a
servio desses interesses (p. 73).
17 A respeito das pedagogias culturais e sua produtividade em programas de televiso, consulte nabibliografia desta Dissertao: Costa (2002a), Fischer (2002) e Steinberg e Kincheloe (2001).
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Tendo em vista as conexes entre currculo e pedagogia cultural,
possvel, ento, concluir que suas relaes remetem tanto para a compreenso dos
modos pelos quais os significados so culturalmente produzidos, como para a ampliao
dos domnios e usos escolares da pedagogia. Alis, justamente pela dimenso
cultural da pedagogia que se torna possvel analisar uma multiplicidade de artefatos
culturais (tais como, a televiso, o cinema, o teatro, a arquitetura, a publicidade, os
jornais, as revistas, a msica popular, os rituais religiosos etc.) e suas formas de
envolvimento na produo de significados e de prticas culturais que, no mbito de
nossas vivncias, acabam sendo tanto (ou mais) influentes que a prpria escola.
Entretanto, se por um lado, a dimenso cultural favorece a ampliao dos
domnios da pedagogia para alm do universo escolar, por outro lado, as conexes entre
currculoe artefatos culturaismerecem, a meu ver, algumas observaes.
Em primeiro lugar: inmeros/as pesquisadores/as sobrepedagogia cultural-
entre os/as quais, Costa (2002), Fischer (2002), Giroux (1995), Kellner (1998), Simon
(1998), Steinberg e Kincheloe (2001), dentre outros/as tm investigado os modos de
produo de influentes artefatos culturais sobretudo os provenientes da mdia (tais
como televiso, cinema, jornais, revistas, publicidades etc.) e suas conexes com a
educao.
Um dos fortes argumentos que serve como mote para esses estudos,
encontra-se, a meu ver, apropriadamente apresentado nas palavras de Costa (2002a): os
textos culturais... interpelam constantemente seus interlocutores, ensinando-lhes muitas
coisas e convocando-os a compartilhar entendimentos, concepes e vises do mundo,
das pessoas, dos acontecimentos e de si mesmos (p. 74). Todas essas perspectivas, dealgum modo, reconhecem que os artefatos culturais esto intimamente envolvidos na
produo de textos culturais e que, ao lado de outros elementos culturais e
dependendo dos modos de sua recepo pelos espectadores , contribuem para a
inveno de identidades, smbolos e mitos que ajudam a constituir uma cultura.
Diante desses argumentos, estarei considerando a revista Nova Escola
corpus de anlise desta pesquisa como um texto cultural composto de umamultiplicidade de discursos e imagens provenientes das relaes entre diversos campos
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de saber e entre os que produzem e interagem com tais textos. Nesse sentido, opto por
no tomar, nesta pesquisa, o entendimento de que determinados artefatos culturais -
embora estejam envolvidos na produo de significados e de prticas culturais e
possuam certas estratgias de regulao frente ao seu pblico espectador e/ou leitor -,
funcionem a partir de currculos que visem a orientar e estabelecer suas aes.
Tomemos como exemplo a revista Nova Escola. De modo geral, considero que os
recursos textuais, imagticos e discursivos da revista esto envolvidos em formas de
saber/poder e contribuem paraa produo de significados, identidades e diferenas em
torno de grupos, raas, culturas, religies etc., mas isso no significa que tais recursos
funcionem como currculo darevista. Pelo contrrio, por tratar-se justamente de um
peridico no campo educacional editado quase sempre em funo de demandas e
interesses especficos por conhecimentos, temticas, situaes, desafios de natureza
pedaggica bastante volteis embora haja, de certo modo, uma circularidade de
temticas abordadas pela revista ao longo de suas edies -, no h como afirmar que a
revista possua, de fato, um currculo tal como o entendemos na educao - ou seja,
como uma construo pedaggica que dispe de um ordenamento estrutural-disciplinar
e de um controle espao-temporal dos saberes e prticas educativas.
Em segundo lugar: bem verdade que a escola freqentemente tem se
colocado num movimento de curricularizao e de pedagogizao de espaos
socioculturais que ultrapassam o mbito escolar (exemplo: televiso, cinema, revistas,
jornais, publicidade etc.), mas isso no significa que esses espaos disponham de
currculos elaborados a serem seguidos em nossas vivncias cotidianas. Desse modo,
ao referir-me aos artefatos culturais como formas de pedagogia cultural que, tal como
a escola, estejam envolvidos em processos de significao cultural e de
pedagogizao de sujeitos, talvez seja menos pretensioso de minha parte dizer nombito desta pesquisa que se inicia nesse campo - que tais artefatos sugerem ou
contribuem para...a produo de significados, de identidades e diferenas, em vez de
afirmar que eles elaboram ou impem currculos a serem seguidos. Tomemos
novamente como exemplo a revista Nova Escola: como artefato cultural, pode-se dizer
que a revista elabora e sugere, ao seu pblico leitor, um certo nmero de temticas,
contedos de ensino, atividades didticas, debates e solues de problemas polmicos
etc., que, de algum modo, contribuem paraque significados e formas de saber/podersejam institudos. Nesse sentido, os aparatos produtivos da revista podem ou no ser
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curricularizados por escolas, professores/as, supervisores/as, alunos/as etc., a
depender da forma com que o pblico leitor julgar (ou no) relevantes suas prescries,
modelos e orientaes, bem como sua eficcia pedaggica.
Portanto, reforo o entendimento de que a revista Nova Escola, ao produzir
uma variedade de textos culturais, acaba funcionando, na acepo de Costa (2002a),
como uma das formas de expresso cultural do nosso tempo... que precisam ser
examinadas e discutidas relativamente quilo que produzem nas sociedades e no que diz
respeito sua participao na prpria constituio do sujeito contemporneo (p. 72). E,
dada a ampla influncia desses textos culturais na educao, acredito que o
desenvolvimento de estudos e pesquisas em torno do funcionamento dos mesmos, bem
como dos efeitos e significaes produzidos culturalmente, parece-me extremamente
relevante.
Desse modo, talvez um dos importantes desafios lanados aos estudos e
pesquisas que se defrontam com as chamadas pedagogias culturais, consista em
analisar seus recursos do ponto de vista de seu funcionamento, isto , no uso e no
contexto de sua produo. Ou, parafraseando Costa (op. cit.), procurando decifrar o
enigma da lgica desses artefatos, a fim de romper sua ordem e desarmar o aparato que
a sustenta. Nesses estudos, o que est em jogo no certamente a busca de
explicaes que apontem para o esgotamento do trabalho de pesquisa, mas, sim, a
tentativa de produzir uma multiplicidade de modos de ver esses artefatos culturais e de
entender as formas pelas quais, diferentemente, aprendemos a significar o mundo, os
outros e a ns mesmos/as.
2.3- A RevistaNova Escolacomo artefato cultural
As revistas... So janelas atravs das quais vemos o mundo; lentesindiscretas pelas quais espiamos a vida dos outros; vitrines dos produtos
oferecidos ao nosso consumo real ou imaginrio; espelhos nos quais
buscamos encontrar a ns mesmos (MIRA, 2001, p. 212). [grifos meus]
Criada em 1986 pela Fundao Victor Civita, da Editora Abril, a revista
Nova Escola tem se constitudo, seguramente, no peridico de maior circulao
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nacional no campo do magistrio especialmente entre escolas e professores/as do
Ensino Fundamental. A revista conta, geralmente, com uma periodicidade
correspondente a nove exemplares ao ano, pois nos perodos de frias escolares (janeiro,
fevereiro e julho),Nova Escolano publicada.
Como partcipe de um competitivo jogo de segmentao cultural, a revista
j investiu em inmeras reformulaes, visando no s manter seu pblico leitor
atualizado no que se refere emergncia de novas temticas e discusses no campo
educacional, como tambm se manter no ranking das revistas de maior tiragem do pas.
Menciono algumas reformulaes de seus slogans: Nova Escola a revista do 1
Grau (at 1999), a revista do ensino fundamental (at 2000), e, atualmente, a revista
do professor (a partir de 2001). Tambm houve a criao das sees: Sala dos
Professores, Depoimentos, Fala, Mestre!, como forma de promover uma
interao mais direta com seu pblico leitor e de registrar, no plano da recepo,
como os/as professores/as percebem e avaliam as matrias e reportagens produzidas
pela revista.
De acordo com informaes fornecidas pelo relatrio de pesquisa
Produzindo subjetividades femininas para a docncia18, o convnio firmado entre a
Fundao Victor Civita, a FAE/MEC e a Empresa Brasileira de Correios e Telgrafos,
tornou vivel o envio gratuito da revista s escolas pblicas do pas - j que o custo mais
alto do projeto seriam as taxas de correio e favoreceu a assinatura, nos cinco primeiros
anos, de 300.000 exemplares da revista, ficando, nesse acordo, o Ministrio da
Educao e do Desporto responsvel por cerca de 70% de seus custos. O Convnio foi
interrompido a partir de 1991 at incio de 1992 perodo em que o Governo Fernando
Collor autorizou a retirada do subsdio financeiro estatal que garantia a aquisio darevista pelas escolas. A retomada do acordo se deu apenas em fins de 1992 desta vez
restrito ao envio de apenas um exemplar deNova Escolas escolas urbanas do pas.
Vejamos, ento, o desempenho atual da revista em termos numricos.
18
Trata-se da pesquisaProduzindo subjetividades femininas para a docncia um estudo da revista NovaEscola, realizada no Ncleo de Estudos sobre Currculo, Cultura e Sociedade (NECCSO), concluda em1997.
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Se, at o ms de setembro de 2001, apenas as escolas pblicas com mais de
50 estudantes recebiam a revista (perfazendo um total de 300.000 exemplares), graas
parceria Fundao Victor Civita e MEC, a partir de outubro do mesmo ano, o nmero
de tiragem da revista dobrou para 638.000 exemplares, chegando ao alcance das
unidades escolares com menos de 50 estudantes pelo fornecimento de um exemplar da
revista por ms o que lhe tem assegurado lugar de destaque no campo educacional e
na mdia impressa, estando, atualmente sua tiragem entre as trs maiores tiragens de
revista do pas.
Com a palavra, a Fundao Victor Civita:
O maior sonho da Fundao Victor Civita est virando realidade. Depois de
mais de 15 anos lutando pela qualificao profissional dos professores e por
melhores condies de trabalho e infra-estrutura na rede educacionalbrasileira, NOVA ESCOLA, a maior revista de educao do pas, chega
agora a todas as escolas pblicas, sem exceo. Com isso, 1,5 milho deprofessores do Ensino Fundamental (que atendem a quase 30 milhes de
alunos) passam a ter acesso ao que h de mais moderno, criativo e instigante
em termos didtico-pedaggicos (REVISTA VEJA, Outubro de 2001 -encarte).
Muitos especialistas em educao tm reconhecido a importncia da revista
Nova Escolapara o cotidiano das prticas escolares. E no obstante as inmeras crticas
direcionadas revista como, por exemplo, quanto presena freqente, em suas
edies, de prescries, guias e modelos do que fazer pedaggico -, h um
reconhecimento de que, no meio educacional, Nova Escola tem apresentado grande
expanso, utilizao e relativa aceitabilidade, sobretudo no Ensino Fundamental.
Ao apresentar-se constantemente como veculo do novo, do vlido, dacompetncia, a revista tem se dedicado, na opinio de Rocha (2000), a fornecer
idias bsicas, essenciais, necessrias, importantes, que fazem sentido, ajudando
aqueles(as) que dela precisam para tornar o ambiente escolar, o currculo, o programa e
as aulas mais dinmicas, interessantes, cheias de novidades (p. 132). Sob muitos
aspectos, a revista considera que as experincias relatadas compem o mosaico de
fatos e emoes que ajudam a construir as novas noes de educao e cidadania
(NOVA ESCOLA, abril/2000, p. 4). O alcance de tais objetivos no apenas prev comotambm abre espao para a publicao de textos bastante ilustrados, contendo mtodos e
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tcnicas de ensino de fcil compreenso, visando, principalmente, detalhar o como fazer
da sala de aula.
Alm desses fatores que contribuem para a boa aceitabilidade e utilizao
dessa revista entre professores/as e escolas, destaca-se o uso de uma linguagem simples
que d corpo sua apresentao. Na opinio das pesquisadoras Costa e Silveira (1998),
trata-se, em verdade, de uma linguagem mais prxima ao discurso do cotidiano escolar
(ao invs do jargo acadmico), do uso de mecanismos discursivos de envolvimento do
leitor ou leitora, de uma apresentao grfica que inclui ilustraes e outros recursos
alm do texto escrito, e, enfim, da invocao da referncia caminho de atualizao
constante... (p. 346).
Dizer que a revista faz uso de uma linguagem simples, clara, objetiva e
didtica, significa reconhecer algumas de suas estratgias poderosas de interpelao
ao/ leitor/a. Seus textos apiam-se geralmente em perspectivas que se pretendem
verdadeiras, pois, medida que se organizam, colocam disposio do/a leitor/a um
poderoso coquetel de prticas com propriedades prescritivas e at mesmo moldadoras
e fixadoras. Contudo, graas existncia de uma dinmica constitutiva aos modos de
produo dos textos culturais e s formas imprevisveis de sua recepo, esses textos
passam a assumir um carter igualmente indeterminado e contingencial que os torna
suscetveis a deslocamentos constantes.
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III- AS TRILHAS METODOLGICAS DA PESQUISA
Neste captulo, procuro articular os aspectos tericos e metodolgicos desta
pesquisa, a partir de uma perspectiva que aponte para a complementaridade e
inseparabilidade entre eles. Com isso, busco problematizar a produo cultural, os
modos de ver e de narrar as diferenasque se encontram materializados nos textos que
a revista Nova Escola faz circular, bem como os modos deproduo/interaocom seu
pblico leitor.
Num tempo em que os cruzamentos entre artefatos culturais e educao se
intensificam a cada dia, produzindo mltiplas formas depedagogias culturais as quais
exigem, de nossas pesquisas, um alto nvel de complexidade analtica , coloco-me, de
certo modo, o compromisso de olhar para o presente buscando problematizar os modos
de produo de saberes, significados e valores que operam nos intercmbios entre
cultura e escola, os quais, em alguns momentos - e por diversos motivos -, acabam
ganhando status de verdade em nossas prticas educativas e culturais.
Buscando esse enfrentamento, lancei mo de algumas ferramentas tericas
que me foram importantes na construo de uma analticados textos culturais da revista
e que me possibilitaram pensar de outro modo (Larrosa, 1994) certas produes
culturais com nuanas to complexas. Por intermdio dessas ferramentas pude perceber,
por um lado, que possvel ir alm das evidnciasdos aparatos da revista, ou seja, alm
do que [imediatamente] indubitvel para o olhar, o que tem que se aceitar apenas pela
autoridade de seu prprio aparecer
19
, e que a construo dessas evidncias tocontingente quanto a complexidade dos modos de sua fabricao; e, por outro lado, que
o nosso olhar , ao mesmo tempo, educado por aparatos que nos fazem ver de
determinados modos, mas, sobretudo livre, mostrando, nesse caso, que talvez o poder
das evidncias no seja to absoluto, talvez seja possvel ver de outro modo (idem).
19Idem, ibidem, p. 83.
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Uma dessas ferramentas diz respeito s inter-relaes estabelecidas entre as
dimenses poltica e poticado texto cultural as quais foram de extrema importncia
para a construo de grupos de anlises sobre os modos de produo e significao das
diferenas. Contudo, cabe esclarecer que, fazer um movimento de articulao entre a
poltica e a potica do texto cultural no significa limitar a poltica ao texto e sua
retrica, nem a potica ao trabalho de anlise cultural, mas sim, pressupor quea ao
textual tambm uma ao poltica e que fazer poltica como um espao textual nos
permite transitar por diferentes espaos de criao, de liberdade e de formas de
resistncias.
Alis, tais articulaes j vm sendo feitas com grande xito por diferentes
abordagens de estudo (como o caso do livro Habitantes de Babel (2001), que rene
a produo de autores/as brasileiros/as e estrangeiros/as, trazendo discusses sobre a
diferena no campo poltico, potico e filosfico, enfatizando que possvel escrever
babelicamente). Alm desse projeto, existem outras produes tericas no Brasil que
buscam interligar pesquisas institucionais sobre a diferena tambm nesses aspectos e
suas articulaes com o campo das teorizaes curriculares como o caso da Revista
Educao & Realidade tema Diferenas (1999), publicada pela UFRGS, a Revista
Educao & Sociedade tema Dossi Diferenas (2002), publicado pela UNICAMP,
dentre outras.
De todas essas contribuies, trago, pelo menos, duas formas de
entendimento sobre as dimenses poltica e potica da diferena. A primeira, situada no
campo curricular, traz com Silva (2001)20o entendimento de que
Conceber o currculo [como representao21] implica v-lo, simultaneamente,inseparavelmente, como potica e como poltica. Seus efeitos de poder sointeiramente dependentes de seus efeitos estticos; inversamente, seus efeitos
20Trata-se do Livro O currculo como fetiche: potica e poltica do texto curricular.21O conceito de representao no est sendo tomado para este autor - e tambm nesta pesquisa apartir de seu sentido clssico associado tradio filosfica ocidental platnica, isto , como umamediao entre o pensamento (interior) e a realidade (exterior) que re-apresenta e re-produz, da maneiramais perfeita possvel, atravs da razo, algo ou alguma coisa do mundo real. A perspectiva a queestou me referindo, nesta pesquisa, toma por base as contribuies oriundas dos movimento ps viradalingstica e dos Estudos Culturais, para os quais a representaoliga-se ao entendimento da linguagemcomo constituio da realidade, ou seja, representar significa, nesse caso, produzir significados no como
reproduo de uma realidade supostamente anterior linguagem, mas como um ato de criao derealidades a partir de significados fluidos, contingentes, localizados, atrelados s nossas prticaslingsticas.
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estticos s fazem sentido no interior de uma economia afetiva motivada pela
obteno de efeitos de poder. [...] Significa tambm enfatizar que os recursosretricos que dirigem sua potica no tm objetivos ou efeitos meramente
ornamentais ou estticos: sua utilizao est estreitamente ligada a relaesde poder (p. 67).
A segunda, situada na direo de um alargamento da dimenso potica da
diferena, tambm nos ajuda a entender melhor a questo da presena ou da volta
do outrona educao. Skliar (2002a) 22 entende que essa volta pode ser interpretada
ambiguamente, ou seja,
Ao falar de um outro que volta, a questo se esse voltar pode ser
interpretado como o retorno de uma histria s de excluso: a vtima que
retorna para falar da sua exterioridade, do seu sofrimento, das suasperdas, da sua vontade de pertena, da sua incluso. Porm, ainterpretao da volta do outro poderia ser melhor compreendida como uma
irrupo, como um acontecimento no sentido que alguma coisa irrompe
para desfazer o pensamento anterior, para descentr-lo do si prprio, paraproduzir a perda das nossas palavras23.
Do ponto de vista da busca por entendimentos das dimenses poltica e
potica no campo da linguagem, um breve investimento em seu universo terico pode
ser til compreenso dos efeitos polticos e retricos da diferena nos textos da revistaNova Escola e dos vnculos de poder que os unem, podendo, inclusive, favorecer
anlises mais amplas a partir de leituras que no estejam necessariamente atreladas a
quadros conceituais.
Pelo que j sabemos, a linguagem que produzimos e que nos produz
extremamente persuasiva, isto , ela age sempre retoricamente, de modo que os
significados e as verdades no podem existir independentemente dos aspectospolticos e lingsticos e dos propsitos pelos quais ela evocada. Se compreendemos a
linguagem a partir das perspectivas ps virada lingstica ou seja, como uma
inveno constituda e constituidora de realidades e sentidos, e no como um mero
instrumento do pensamento que reproduz uma realidade pr-existente -, isso
significa que devemos reformular nossa prpria maneira de fazer a pergunta sobre ela.
22Trata-se do livro Y si el outro no estuviera ah? Notas para una pedagoga [improbable] de la
diferencia.23SKLIAR, 2002c, p.1.
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Como diria Wittgenstein (1994), no devemos nos perguntar sobre o que a
linguagem, mas comoela funcionaem seus diversos usose contextos, uma vez que
a significao de uma palavra seu uso na linguagem (p. 43).
Isso significa que, a linguagem, em sua imensa variedade de usos e
pluralidade de funes, no pode ser analisada fora de seu contexto, de sua forma de
vida. Por isso, os textos culturais devem ser lidos a partir de sua especificidade
histrica, poltica, cultural e retrica, abrindo-os a uma multiplicidade de leituras e no
pretenso de que venham a instituir significados e entendimentos nicos. Desse
modo, possvel escrever e reescrever as histrias nos textos que se l, de forma a
poder inclusive desafiar as maneiras pelas quais certos textos funcionam ativamente na
construo de histrias e verdades particulares. Isso porque aquilo que chamamos
verdade s pode ser entendido situando-o na dimenso retrica da linguagem e de seu
poder de persuaso.
Uma outra trilha percorrida pela pesquisa seguiu na direo de que os
aparatos produtivos da revista deveriam ser entendidos como textos, isto , como uma
disposio de discursosque, na forma de texto, faz com que significados ancorados em
outras fontes textuais presentes em se