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    Entre apolticae apoticado texto cultural -

    A produo das diferenasna Revista Nova Escola

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    FACULDADE DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    Entre apolticae apoticado texto cultural -

    A produo das diferenasna Revista Nova Escola

    Gilcilene Dias da Costa

    Dissertao apresentada ao Programa de

    Ps-Graduao em Educao da Faculdade

    de Educao da Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul, como requisito parcial

    para obteno do ttulo de Mestre em

    Educao.

    Orientadora:

    Prof. Dra. Rosa Maria Hessel Silveira

    Porto Alegre

    2003

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    Ao meu marido, Valdinei,

    com todo o meu amor e gratido!

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    Suas belssimas aulas me proporcionaram viajar pelo universo foucaultiano em seus

    cruzamentos com a pedagogia, o currculo, a msica, as artes...

    Ao Carlos Skliar, professor de cujos conhecimentos e dinamismo intelectual so

    elogiveis. Agradeo a amizade e a disponibilidade em contribuir com este trabalhodesde a defesa da Proposta da Dissertao. Ressalto suas instigantes aulas que me

    lanaram, com entusiasmo, nesse universo de diferenas.

    Marisa Costa, por ter aceitado o convite em participar da avaliao final desta

    Dissertao. Seus textos bem escritos e inteligentes muito me ajudaram a percorrer o

    campo das pedagogias culturais.

    Ao Jorge Larrosa, a quem devo a honra de ter como avaliador externo desta Dissertao.Agradeo a gentileza do aceite e ressalto a importncia de seus textos e teorias

    provocativas sobre diferenas e narrativas para esta pesquisa. Atravs deles, fui levada a

    pensar de muitos modos a questo da diferena na educao.

    Aos/s amigos/as que conheci e com quem convivi alegremente neste percurso: Ruth,

    Fabiana, Eracy, Luis Fernando, Sara, Ique, Mrcia, Madalena, Srgio, Regina, Ftima,

    Orestes, Sandra, Carin, Dbora Alves e Dbora Stumpf (que disponibilizou o acesso a

    todas as edies da revista Nova Escola ao longo da pesquisa). No tenho palavras para

    expressar a amizade e o carinho que sinto por vocs. Alegro-me por nossas divertidas

    conversas, encontros e jantares culturais paraenses e gauchescos. Alguns de vocs me

    ensinaram que chorar nas dificuldades faz bem, mas s de vez em quando!

    minha famlia (me, irm, marido, primos-irmos, sobrinhas/o, afilhados, tios...),

    amigos/as e colegas conterrneos, com todo o meu amor e saudades. Em especial,

    agradeo s trs pessoas que do sentido e razo minha existncia: Minha me,

    Irades, mulher incansvel, lutadora e solidria. Sua f em Deus lhe ajuda a caminhar,

    sempre nos ensinando a valorizar os estudos e a encontrar beleza nas coisas simples davida. Agradeo suas oraes, amor, dedicao e incentivo, que jamais deixaram me

    sentir sozinha. Minha irm, Ghislaine, amiga de todas as horas, sempre disposta a me

    acompanhar e auxiliar com sua maturidade e afeto. Meu marido, Valdinei, por seu amor

    e companheirismo incondicional. Suas contribuies, apoio e amizade tornaram

    possvel a realizao deste trabalho. A vocs todos/as, meu eterno amor e gratido!

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    Ver-se de outro modo, dizer-se de outra maneira, julgar-se

    diferentemente, atuar sobre si mesmo de outra forma, no

    outra forma de dizer viver ou viver-se de outro modo, seroutro? E no uma luta indefinida e constante para sermos

    diferentes do que somos o que constitui o infinito trabalho de

    finitude humana e, nela, da crtica e da liberdade?

    (LARROSA, 1994, p. 84).

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    RESUMO

    Ao partir de discusses que tomam como eixo central a temtica da

    diferenana educao, a presente Dissertao busca problematizar o multiculturalismo

    e a retrica da diversidade cultural em suas respostas ao problema da diferena, bem

    como suas formas de entrada na educao. Situando a Revista Nova Escola corpus

    de estudo desta pesquisa no campo das pedagogias culturais e suas conexes com o

    currculo, analisa aproduo cultural, os modos de vere de narraras diferenas, e os

    processos deproduo/interaoentre a revista e seu pblico leitor, estabelecendo, para

    tanto, uma articulao entre apolticae apoticado texto cultural. Os aportes tericos

    da pesquisa partem das contribuies dos Estudos Culturais, do Ps-Colonialismo e de

    autores/as que transitam por diversas teorias da diferena na educao, onde se busca

    dialogar sobre multiculturalismo, identidade, diferena, alteridade, cultura, currculo,

    pedagogias culturais, texto, discurso, imagem. As anlises da pesquisa apontam

    percepes amplamente ambguas a respeito da presena/ausncia do outrona revista:

    por um lado, as imagens e narrativas do outro aparecem como invenes e fabricaes

    culturais e discursivas institudas a partir de determinados espaos de referncia e/ou

    normalidade; por outro lado, tais invenes se mostram permanentemente perturbadas

    pela presena do outro na revista que emerge como linguagem outra e/ou de

    resistncia. Ao finalizar, aponta a existncia de uma multiplicidade de modos de

    produzir e nomear os diferentes na revista, ressaltando-se que essa produo no

    acontece independente de complexos jogos de poder e espaos de disputasem torno de

    significados e modos de ver, os quais precisam estar sempre abertos a incertezas e

    negociaes. Tal reconhecimento torna possvel, portanto, pensar as diferenas culturais

    para alm das rgidas dicotomias entre identidade/diferena, eu/outro, ns/eles,norma/desvio... que freqentemente povoam o pensamento educacional moderno.

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    ABSTRACT

    From discussions that have differencein education as their central axis, this

    dissertation tries to problematize the multiculturalism and the rhetoric of cultural

    diversity in its answers to the problem of difference, as well as its forms of access

    to education. By locating the magazineNova Escola corpusof this study in the field

    of cultural pedagogies and their conections with curriculum, it analyses the cultural

    production, the ways of seeing and narrating differences, and the processes of

    production/interaction between the magazine and its readers, thus establishing an

    articulation between both the policy and poetics of the cultural text. The theoretical

    grounds of this research come from the contributions of Cultural Studies, Post-

    Colonialism and authors who work with several theories of difference in education

    which seek to set a dialogue about multiculturalism, identity, difference, otherness,

    culture, curriculum, cultural pedagogies, text, discourse, image. The analyses point to

    widely ambiguos perceptions concerning the presence/absence of the other in the

    magazine: on the one hand, the images and narratives of the other appear as cultural,

    discoursive inventions and productions instituted from certain reference and/or

    normality spaces; on the other hand, such inventions appear to be permanently

    disturbed by the presence of the other in the magazine, which emerges as the others

    and/or resistance language. At the end, this research points to the existence of a

    multiplicity of ways of producing and naming the different ones in the magazine,

    emphasizing that this production does not occur independently on complex power

    games and dispute spacesabout meanings and ways of seeing, which need to be always

    open to uncertainties and negotitations. Therefore, such recognition makes it possible to

    think about cultural differences beyond the rigid dichotomies betweenidentity/difference, I/other, we/they, norm/deviation that often inhabit the modern

    educational thought.

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    SUMRIO

    INTRODUO 10

    I- A ENTRADA DO MULTICULTURALISMO NA EDUCAO

    BRASILEIRA 18

    II- CURRCULO E PEDAGOGIA CULTURAL CONEXES 29

    2.1- Currculo: prtica de significao 30

    2.2- Aspectos culturais do currculo e da pedagogia 32

    2.3- A RevistaNova Escolacomo artefato cultural 37

    III- AS TRILHAS METODOLGICAS DA PESQUISA 41

    IV- NAS MALHAS DA PEDAGOGIA CULTURAL: A PRODUO DAS

    DIFERENASNA REVISTA NOVA ESCOLA 50

    Parte I: Dos aspectospolticos: a produo cultural das diferenas 50

    4.1- Viva a diferena! (?) 50

    4.2- Abaixo o preconceito! (?) 69

    Parte II: Dos aspectospoticos: os modos de ver e de narrar as diferenas 84

    4.3- Sala dos Professores: visitando os espaos de interao da revista 84

    4.3.1.Sobre asimagens... olhar (-se) 92

    4.3.2.Sobre aspalavras... narrar (-se) 108

    V- OUTRAS ESCRITAS... SOBRE APERGUNTAQUE NO QUER CALAR 120

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 128

    ANEXOS

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    INTRODUO

    Como nos situamos?

    Ultimamente, as discusses em torno das polticas de identidade e diferena

    cultural tm emergido como eixo central em importantes fruns e debates de natureza

    intercultural e internacional, num crescente nmero de estudos e pesquisas em

    educao, envolvendo perspectivas tericas as mais diversas. Talvez uma das razes

    pelas quais a problemtica da diferena venha conquistando destaque no cenrio

    internacional, esteja ligada especialmente constncia de intensos conflitos de natureza

    tnico-cultural, religiosa, poltica, econmica etc. em dimenses mundiais.

    Paradoxalmente, tais embates traduzem a emergncia de crescentes manifestaes de

    sentimentos de dio e abjeo em relao aos nomeados outros(grupos, povos, culturas,

    religies...), ao mesmo tempo em que se vem aumentadas as tentativas de se buscar

    compreender a alteridadedo ponto de vista do respeito e da valorizao das diferenas.

    Diante desses novos cenrios culturais, uma das sensaes mais aparentes

    talvez seja a de que nossa contemporaneidade caminha descompassada em meio

    insurgncia de sentimentos de incerteza, desorientao eperplexidade diante do mundo

    e de ns mesmos. Alm de tudo, nem sabemos bem que mundo queremos, muito menos

    para onde iremos... Vivemos provavelmente numa poca onde o mundo se converte em

    incio permanente, onde o suposto conhecimento de si e o fortalecimento das

    identidades esto sendo abalados num ritmo acelerado, e onde as lutas polticas e

    culturais pela afirmao das diferenas no acontecem dissociadas de infindveis

    conflitos e revoltas.

    As observaes que Silva (2001) faz oportunamente a respeito de nossa

    contemporaneidade apontam para um tempo paradoxalmente constitudo. Para este

    autor, vivemos paradoxalmente um tempo onde novas identidades emergem, se

    afirmam, apagando fronteiras, transgredindo proibies e tabus identitrios, um tempo

    de deliciosos cruzamentos de fronteiras, de um fascinante processo de hibridizao de

    identidades. um privilgio, uma ddiva, uma alegria, viver num tempo como esse,num tempo assim... (p. 7). Sob esse aspecto, estamos diante de um mundo onde

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    coexistem perspectivas as mais diversas de emancipao humana e identitria -

    responsveis, em boa parte, pela emergncia/transgresso de diferentes modos de viver

    as culturas, as religies, as sexualidades...

    Contudo, e sob um outro aspecto, vivemos tambm num tempo-mundo

    marcado por incansveis tentativas de afirmao/fixao de identidades hegemnicas

    que insistem em fazer do outroum corpo dcil a ser conformado e enquadrado em

    rgidos sistemas de normalizao. Trata-se, nesse caso, para Silva (op. cit.), de um

    mundo onde zelosos guarda-fronteiras tentam conter a emergncia de novas e renovadas

    identidades e coibir a livre circulao entre territrios os geogrficos e os simblicos.

    uma desgraa, uma danao, uma tristeza, viver num tempo como esse, num

    tempo assim... (p. 8).

    Durante algum tempo, mesmo antes de comear a atuar como professora de

    Currculo e Didtica no Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Par, tenho

    acompanhado o quanto a escola e um conjunto heterogneo de artefatos culturais

    operam de modo a influir diretamente na constituio de sujeitos, identidades e

    diferenas, sem que se nos demos conta, muitas vezes, dos seus efeitos em boa parte de

    nossas prticas educativas e culturais. Contudo, diante das ambigidades dos novos

    mapas culturais que caracterizam nosso tempo-espao e dos desafios pedaggicos

    considerados mais urgentes ou de ordem prtica amplamente proclamados pela

    educao de nossos dias -, parece que a pergunta sobre o sentido que colocamos no

    mundo, que damos s coisas do mundo1, sobre os modos de produo de identidades e

    diferenas com os quais opera o currculo escolar e os artefatos culturais, fica silenciada

    frente busca incessante por solues prticas aos problemas complexos de nosso

    tempo e sob os quais se assenta a prpria educao.

    Nesse cenrio, muitos educadores/as se perguntam: No seria razovel

    pensarmos, portanto, em primeiro encaminhar as solues para nossos imensos

    desnveis sociais e econmicos para, depois, pensarmos no multiculturalismo, no ps-

    moderno, nas discriminaes ligadas a etnias, gnero etc.?2. Na contramo desses

    discursos, como poderia justificar que a busca por solues educacionais (por exemplo,

    1Idem, ibidem, p. 48.2VEIGA-NETO, 2002b, p. 49.

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    a elaborao de propostas pedaggicas culturalmente orientadas para as sociedades

    multiculturais) caream de aprofundamentos tericos a partir dos quais se possa

    entender os contextos e os mecanismos de produo dos saberes institudos como

    parmetros para uma educao nacional?

    Talvez uma das formas de se justificar a importncia dessas questes e

    discusses que se colocam no cruzamento entre cultura e educao, esteja no

    tratamento relacional que passamos a dar a elas. A literatura educacional brasileira, por

    exemplo, tem convivido ultimamente com discusses tericas as mais diversas

    inspiradas nos movimentos ps (ps-modernista, ps-estruturalista, ps-colonialistas,

    ps-feministas dentre outros) e nos Estudos Culturais, que fazem estremecer as bases do

    pensamento moderno sobre as quais se assentam inmeras concepes de educao. De

    modo geral, essas teorias afirmam que os velhos esquemas baseados na oposio

    binria opressores-oprimidos so insuficientes para dar conta de uma realidade que

    multifacetada e muito complexa3, sendo necessrio, por isso, investir em estudos e

    pesquisas que busquem produzir discursos contrrios a certas falcias predominantes

    no campo educacional os quais afirmam existir realidade realmente real versus

    teorias abstratas, reconhecendo que tais dicotomias no passam de representaes

    que construmos sobre isso que chamamos de real e que, at h pouco, pensvamos ser

    to estvel e seguro4.

    Entretanto, so bem poucas as pesquisas brasileiras que se dedicam a

    discutir as influncias e contribuies das teorias ps para a educao, considerando-

    se o grande volume de publicaes anualmente feitas na literatura educacional. A esse

    respeito Veiga-Neto (2002b) chega a considerar que

    A impresso que se tem de que a imensa maioria [de pesquisadores/as] est

    preocupada com os aspectos mais urgentes de nossas misrias sociais eeducacionais, de modo que ou no conhece essas discusses que se do no

    limite da Modernidade ou, quando as conhecem, consideram-nas prprias deum outro contexto social e econmico, estranho ao nosso. Ao lado disso,

    ouve-se dizer que de nada adianta discutir assuntos to abstratos, enquanto

    que a nossa realidade educacional (e social) se desagrega e se deteriora cadavez mais; ouve-se dizer que isso prprio de tericos de gabinete (p. 49).

    3

    Idem.4Idem, ibidem, p. 50.

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    Na contramo desses argumentos, este autor nos lembra que teorizar

    pressupe, sim, uma prtica-intelectual que estabelece um amplo envolvimento com o

    social e o poltico, e que, toda prtica de teorizao e problematizao sempre

    condio necessria se buscamos nos situar e entender melhor o mundo em que

    vivemos. Nesse sentido, procuro referir-me aos aspectos que denotam a importncia

    desta pesquisa para a educao, tomando emprestadas de Veiga-Neto (2002a) duas

    razes importantes que assim como outras impulsionaram esta pesquisa sobre

    multiculturalismo, identidadese diferenas.

    Uma das razes refere-se ao fato de que, ns, educadores e educadoras,temos de lidar direta e cotidianamente com um mundo onde a diferena

    assume cada vez maior relevncia e que, bem por isso, se nos apresenta comoum mundo sempre estranho. A outra razo: o prprio discurso pedaggico

    parece estar se afastando rapidamente do programa homogeneizante pensado

    por muitos idelogos da Modernidade os quais preconizavam umasociedade sem diferenas de qualquer ordem -, e parece estar se deslocando

    no sentido de reconhecer e at defender as diferenas (p. 11).

    Delimitando o campo da pesquisa

    Considerando que o corpus de estudo desta pesquisa a revista Nova

    Escola se caracteriza como um importante peridico na educao que exerce

    influncia sobre um nmero significativo de professores/as em todo o pas, instigou-me,

    especialmente, o modo com que essa revista vem contribuindo, atravs de uma cadeia

    de validao discursiva que age com tamanha rapidez e eficincia, para a produo de

    determinados padres de referncia identitria e de novas [e velhas] formas de

    nomear o outro, o diferente na educao. Nesse espao miditico procurei, portanto,

    analisar os aparatos imagticos, textuais e discursivos produzidos pela revista Nova

    Escola no perodo de 19975 a 2001, que estivessem relacionados tematicamente

    questo dos diferentes na educao. Esse aparato produtivoenvolve inmeras sees,

    matrias, reportagens, depoimentos, narrativas, sugestes pedaggicas etc., que se

    encontram materializadas, na revista, ao longo de 48 ediespublicadas mensalmente

    no perodo acima mencionado.

    5

    Ano em que os Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental foram elaborados,no Brasil, pelo Ministrio da Educao (MEC) e, consecutivamente, distribudos para professores/as eescolas em todo o pas.

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    Os aportes tericos da pesquisa partem de contribuies dos Estudos

    Culturais, do Ps-Colonialismo e de autores/as que transitam por diversas teorias da

    diferena na educao, buscando, com isso, estabelecer um amplo e aberto dilogo a

    partir de temticas como: multiculturalismo, identidade, diferena, alteridade, cultura,

    currculo, pedagogias culturais, texto, imagem, narrativa. Dentre esses/as autores/as,

    destaco: Durval ALBUQUERQUE Jr., Jean BAUDRILLARD, Zigmunt BAUMAN,

    Homi BHABHA, Nstor CANCLINI, Marisa COSTA, Helouise COSTA, Silvia

    DUSCHATZKY, Rosa FISCHER, Michel FOUCAULT, Stuart HALL, Martn

    HOPENHAYN, Jorge LARROSA, Guacira LOURO, Alberto MANGUEL, Peter

    McLAREN, Nuria PREZ DE LARA, Tomaz T. da SILVA, Rosa SILVEIRA, Carlos

    SKLIAR, Alfredo VEIGA-NETO, Eugnia VILELA.

    Ressalto, entretanto, que, embora haja distines e especificidades tericas

    nos modos de se conceber a temtica da diferena, algumas aproximaes e articulaes

    entre esses/as autores/as e campos de estudo me parecem possveis sobretudo do ponto

    de vista cultural, uma vez que tais perspectivas, ao seu modo, pem em suspenso uma

    srie de certezas tradicionalmente afirmadas sobre as polticas de fixao de identidades

    e apontam para o confronto destas com sua diferena, com seu outro. De outra parte,

    cabe mencionar que uma articulao entre autores/as de perspectivas diferentes se faz

    absolutamente possvel, uma vez que suas abordagens apresentarem certas

    caractersticas comuns e com as quais concordo: 1) procuram situar-se forade qualquer

    enquadramento moderno de estabelecimento de um modelo de mundo e de linguagem

    aprioristicamente definido por metadiscursos; 2) rejeitam dualismos e oposies

    binrias em suas anlises; 3) enfatizam que a linguagem e os discursos so elementos

    constituidores de realidades, de significaes e sentidos, e no meros instrumentos

    representativos do pensamento; 4) proclamam a morte do referente no jogo dalinguagem pela afirmao da inexistncia de umasignificao anterior ou definidora de

    outras significaes; 5) sustentam que os discursos institucionalizados constituem

    grandes redes de poder que se especializam em categorias, de modo a classificar e

    regular os corpos, os espaos e as prticas sociais dos sujeitos em suas diferentes

    relaes; 6) no pretendem instituir-se como campos de estudo auto-suficientes ou

    dogmaticamente constitudos em torno de paradigmas prprios e absolutos.

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    Essas articulaes tambm se justificam considerando-se que os

    intercmbios tericos podem ser bastante produtivos tanto para aprofundar o

    entendimento que se tem sobre cada um deles, quanto para retirar, dessas aproximaes,

    novas maneiras de ver, descrever, problematizar, compreender e analisar e de dar

    sentido ao mundo6. Alis, o intercmbio entre diferentes perspectivas culturais e ps-

    estruturalistas serve tanto para reteorizar as prticas educacionais quanto para se

    repensar as prticas pedaggicas como discursosa partir dos quais os artefatos culturais

    possam ser compreendidos em suas particularidades.

    Com base nas perspectivas tericas acima mencionadas, procurei analisar a

    produtividade da revista a partir de alguns questionamentos: Quem so os outros da

    educao no discurso multicultural e como esto sendo apresentados/narrados na

    revista? Como a diferena produzida nesse artefato cultural e, conseqentemente,

    como a alteridade tem sido representada? Que novas/outras enunciaes sobre as

    diferenas relativas cultura, etnia, raa, ao gnero e sexualidade tm sido

    produzidas e veiculadas pela revista? De maneira geral (ou hipoteticamente falando),

    questiono: ser que os referenciais tericos e polticos do multiculturalismo -

    amplamente difundidos na revista -, ao apontarem para o respeito diversidade

    cultural e para a valorizao das diferenas no remetem apenas a uma designao

    dos conflitos culturais? O apelo tolerncia cultural significa, de fato, um

    rompimento com a histria da violncia frente aos nomeados outros? No seria o

    multiculturalismo uma inveno elegante da modernidade (Duschatzky e Skliar,

    2000) utilizada para apaziguar a brutalidade de suas prticas de dominao em relao

    ao outrocolonizado?

    Os propsitos de tais questionamentos e das anlises desenvolvidas ao longodesta Dissertao consistem no apenas em colocar em suspenso a retrica multicultural

    e suas estratgias de produzir diferencialismos na educao conforme veremos mais

    adiante , mas, sobretudo, abordar a produo das diferenas relativas cultura, raa,

    etnia, ao gnero e sexualidade sob o ponto de vista de umapolticae umapoticado

    texto cultural, ou seja, fazer dos textos da revista espaos de leituraabertos a mltiplos

    modos de ver e de narrar os diferentesna educao, problematizando sua produtividade

    6VEIGA-NETO, 2000, p. 37-38.

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    atravs dos aparatos textuais, imagticos e discursivos que a revista Nova Escola faz

    circular e nos modos de recepo/interao com seu pblico leitor.

    Quando penso no investimento dessa pesquisa sobre as construes culturais

    das diferenas num influente peridico da educao brasileira a revista Nova Escola

    penso que isso tambm significa remexer ou dar vazo s minhas prprias construes

    culturais. Penso que tal esforo de nada valeria se, em minhas prprias vivncias, no

    abrisse espao para confluncias culturais, para um hibridismo sem fronteiras. E,

    considerando o curso que esta pesquisa tomou e tomar daqui a diante , gostaria de

    acreditar que as questes que perpassam nossa contemporaneidade e, por extenso, a

    prpria pesquisa estejam ligadas no a sentimentos nostlgicos e de lamentao, mas a

    uma viso de perplexidade (Larrosa e Skliar, 2001) que nos leve a encarar o presente

    [...] como aquilo que nos d o que pensar; [como] um tom catico no qual o

    incompreensvel do que somos se nos mostra disperso e confuso, desordenado,

    desafinado, em um murmrio desconcertado e desconsertante, feito de dissonncias, de

    fragmentos, de descontinuidades, de silncios, de casualidades, de rudos (p. 8).

    Alis, se as discusses aqui apresentadas forem julgadas relevantes ou

    pertinentes frente aos propsitos aos quais se prope, talvez elas possam contribuir para

    o redimensionamento de prticas educativas e culturais que se pautam na manuteno e

    no enquadramento de ns mesmos/as e, dessa forma, poder desafiar concepes

    tradicionais da pedagogia, do currculo e da cultura, passando a conceb-los como

    territrios de disputas sempre abertos contestao e negociao. Por ora, cabe, ento,

    lanar algumas pistas sobre o conjunto desta Dissertao em torno da qual circulam

    temas como multiculturalismo, currculo,pedagogias culturais,polticas e poticas da

    diferena.

    Noprimeiro captulo, apresento algumas discusses em torno da entrada

    do multiculturalismo na educao brasileira, bem como desse vasto campo terico.

    Apoiando-me em diversas perspectivas tericas, busco problematizar as respostas

    multiculturais ao problema da diferena na educao. Situando o currculo como

    territrio de no-lugar e como prtica de significao, chamo ateno, no segundo

    captulo, para o fato de que as conexes entre currculo e artefatos culturais estodiretamente implicadas em processos de significao e de constituio de

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    subjetividades, identidades e diferenas. Fao destaque, tambm, para a revista Nova

    Escola - corpus de estudo desta pesquisa - como um influente artefato cultural

    amplamente envolvido nesses processos de produo. No terceiro captulo, apresento

    alguns aportes terico-metodolgicos que contriburam para o desenvolvimento

    analtico da pesquisa, especialmente os que se referem a texto, discurso, escrita e

    imagens, bem como seu percurso metodolgico. No quarto captulo, apresento as

    anlises desenvolvidas a partir dos aparatos pedaggicos da revista Nova Escola, atravs

    de duas dimenses da produo das diferenas: a dimenso poltica que trata

    especificamente de sua produo cultural, e a dimenso potica referente aos modos

    de ver e de significar a irrupo das diferenas na educao. Finalmente,apresento as

    consideraes finais da pesquisa, onde retomo algumas perguntas que se fizeram

    presentes desde o seu incio, j no com o intuito de respond-las, mas como forma de

    expressar minhas prprias impresses e olhares sobre a temtica da diferena na

    educao, procurando inclusive apontar algumas perspectivas de estudos que sugiram

    neste caminhar.

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    I- A ENTRADA DO MULTICULTURALISMO NA EDUCAO

    BRASILEIRA

    Atualmente, questes relacionadas pluralidade de culturas, etnias, raas,

    sexualidades, religiosidades e outras dimenses identitrias, vm ocupando um

    considervel espao em debates educacionais, pesquisas e eventos de natureza

    cientfica, fruns sociais e cursos de formao docente em todo o Brasil. E um dos

    motivos da recorrncia dessas discusses na educao est ligado, a meu ver,

    especialmente implementao dos Parmetros Curriculares Nacionais (PCN) pelo

    Ministrio da Educao e Cultura (MEC), em 1997, que, em suas diretrizes e

    orientaes gerais para o Ensino Fundamental (inscritas no Tema Transversal

    Pluralismo Cultural), destaca a importncia de um conjunto de saberes, valores e

    atitudes (a serem trabalhados por todas as escolas do territrio nacional), visando,

    simultaneamente, valorizao da diversidade cultural, o respeito e tolerncia s

    diferenas, e consolidao dos valores democrticos da sociedade brasileira para o

    alcance da cidadania.

    A entrada dos PCN na educao brasileira motivou e ainda motiva

    duras crticas dirigidas especialmente por pesquisadores/as e professores/as que, alm

    de no concordarem com as pretenses universalistas para a educao nacional

    inscritas no documento, contestam as estratgias impositivas utilizadas pelo governo

    no processo de sua elaborao deixando de fora a participao de pessoas, grupos,

    instituies sociais, e privilegiando os interesses mercadolgicos da economia global.

    Por outro lado, tambm h um reconhecimento, por parte de muitos estudiosos dessa

    poltica, quanto s possveis vantagens e contribuies trazidas pelos PCN,especialmente no que diz respeito proposio de temas transversais. Na opinio de

    Veiga-Neto (2002a), embora sejam pensados por vrios idelogos da globalizao,

    Podemos considerar que os temas transversais fazem bem mais do que seproclama; alm de introduzirem, no currculo, assuntos da atualidade que no

    deixam de ser da maior importncia como as relaes tnicas, os problemasambientais etc. -, eles podem estar operando no sentido de criar ou facilitar

    novas percepes espaciais que, ao mesmo tempo em que reconhecem os

    lugares especficos os lugares epistemolgicos e simblicos traados pelas

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    disciplinas -, eles pressupem, num outro plano, uma continuidade sem

    barreiras, capaz de servir de amplas vias para a fantasmagoria7 (219).

    A partir da entrada dos PCN na educao, o multiculturalismo tem sido

    retrica constante entre variadas teorias educacionais, artefatos e movimentos culturais,propostas pedaggicas etc. constituindo, dessa forma, um importante campo terico que

    se prope a discutir criticamente os processos de produo de identidades culturais, com

    vistas efetivao de uma prtica pedaggica multiculturalmente orientada (Moreira

    e Macedo, 2001) no interior de propostas educacionais politicamente comprometidas

    com as lutas e reivindicaes histricas de grupos e culturas socialmente excludos.

    Por tratar-se de um campo de estudo bastante diversificado em seus matizesterico-prticos, considero relevante, para fins de um melhor entendimento, apresentar

    algumas das caractersticas mais recorrentes do multiculturalismo presentes em boa

    parte da literatura da rea. Tal esforo no consiste em pretender construir uma

    trajetria histrica detalhada do multiculturalismo, mas, to somente, levantar

    aspectos tericos e polticos desse campo, de modo a estabelecer nexos importantes com

    as discusses em torno das quais versa esta pesquisa.

    De modo geral, pode-se dizer que o multiculturalismo teve incio na primeira

    metade do sculo XX em pases cuja diversidade cultural provocada, em grande

    parte, por fenmenos migratrios que se intensificavam em todo o mundo -

    representou um srio problema social para a consolidao das unidades nacionais.

    Desde a sua origem, o multiculturalismo aparece como princpio tico que tem

    orientado a ao de grupos culturalmente dominados, aos quais foi negado o direito

    de preservarem suas caractersticas culturais8.

    No incio, os movimentos multiculturalistas expressavam apenas as reivindicaes

    de grupos tnicos, mas, em decorrncia dos inmeros confrontos culturais que

    ocasionavam preconceitos e discriminaes raciais, de classe, de gnero, de

    7Nesse mesmo texto, Veiga-Neto utiliza o termo fantasmagoriapara dizer que as recomendaes dosPCN por serem pretensamente mais abertas e flexveis e mesmo os prprios parmetros podem serlidos como espaos abertos fantasmagoria, ou seja, como os lugares cuja lgica e cuja retricapermitem e at chamam a entrada de outros saberes, outras prticas, outras realidades que vm de

    contextos distantes e estranhos e que, mesmo permanecendo, digamos, invisveis, acabam por model-lossub-repticiamente (p. 216).8GONALVES E SILVA, 2000, p. 20.

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    sexualidade, o multiculturalismo passa, a partir da segunda metade do sculo

    passado, a abarcar um universo cultural mais amplo. Contando inicialmente com a

    aliana dos movimentos sociais, de negros, de mulheres e de outros grupos

    culturalmente organizados, os movimentos multiculturalistas solidificam uma luta

    poltica, institucional e jurdica em favor dos direitos humanos e civis. Nesse

    sentido, importante frisar que, apesar da grande evidncia e repercusso do

    multiculturalismo como retrica da moda no mundo contemporneo, ele no pode

    ser visto como um fenmeno recente ou exclusivo desses tempos, pois as culturas

    sempre foram plurais e os debates em torno das diversidades culturais datam de

    longas pocas9. Contudo, bem verdade que a exploso multicultural, atualmente,

    um acontecimento. Isso em decorrncia de, pelo menos, trs importantes fatores: a)

    as constantes guerras e conflitos interculturais que colocam em jogo hegemonias

    nacionais e a sobrevivncia de povos e culturas; b) as lutas institudas, h mais de

    duas dcadas, pelos movimentos feministas, gays, negros, indgenas etc., e que a

    cada dia ganham novos adeptos em prol dos direitos humanos, do respeito s

    diferenas e contra o apartheid cultural; e c) a exploso miditica, que passa a

    assumir grande participao nesse processo, considerando-se a visibilizao ao

    menos parcial dessa multiplicidade de diferenas.

    Como campo terico, o multiculturalismo se prope a discutir criticamente os

    processos de produo de identidades culturais; analisar formas de conhecimento

    tradicionalmente corporificadas em diversas instncias produtoras de cultura (tais

    como: escolas, televiso, cinema, jornais, revistas, publicidades etc.);

    identificar/combater etnocentrismos, preconceitos e vises estereotipadas de

    determinados grupos tnico-culturais; buscar, em diferentes espaos educativos e

    sociais, abertura para a incorporao de uma pluralidade de vozes e de gruposculturais, com vistas construo democrtica da sociedade.

    9 A respeito dessa suposta novidade que o multiculturalismo traria para o mundo contemporneo,Santamara (1998) observa que o termo culturaocupa um lugar central nas sociedades contemporneas atal ponto que se chega a sustentar que estamos assistindo ao nascimento de uma sociedade multicultural,como se antes no houvesse existido diversidade no seio das sociedades agora ditas multiculturais, e

    como se estas tivessem transmutado da noite para o dia em sociedades totalmente distintas, nas quais osconflitos sociais seriam produto exclusivo e excludente da dialtica entre grupos tnicos ou civilizatrios(p. 62).

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    No campo educacional brasileiro, o multiculturalismo apresenta-se como buscando

    contribuir para uma educao que tenha por princpio o respeito s diversidades

    culturais e tolerncia ao diferente, que esteja vinculada s demandas de

    reivindicao de grupos historicamente excludos e ao incentivo de prticas

    pedaggicas e culturais que possibilitem dar voz aos chamados grupos oprimidos

    e s polticas afirmativas das identidades desses grupos. Enfim, uma educao

    multicultural que alimente o sonho de construo de uma sociedade sem injustias,

    discriminaes e desigualdades sociais.

    Dada a existncia de concepes e abordagens um tanto divergentes que

    percorrem os matizes tericos do multiculturalismo, recorro a McLaren (1997)

    influente autor em assuntos multiculturais para destacar, resumidamente, pelo menos

    quatro verses do multiculturalismo (em parte, distintas, em parte, estritamente

    relacionadas), no campo educacional: o multiculturalismo conservador, o

    multiculturalismo humanista liberal, o multiculturalismo liberal de esquerda e o

    multiculturalismo crtico.

    O multiculturalismo conservador corresponde s vises coloniais e

    imperialistas compartilhadas por poderosos grupos, pases e sociedades que,

    historicamente, tm desfrutado de posies polticas e econmicas satisfatrias. Em

    geral, essa perspectiva fundamenta-se em atitudes auto-elogiosas, autojustificatrias,

    assimilacionistas das chamadas outras culturas e marcadamente imperialistas de

    europeus e norte-americanos. Suas principais caractersticas podem ser apresentadas da

    seguinte forma: a) recusa tratar a branquidade como uma forma de etnicidade e, ao faz-

    lo, situa a branquidade como uma norma invisvel atravs da qual outras etnicidades so

    julgadas; b) utiliza o termo diversidade para encobrir a ideologia de assimilao quesustenta sua posio; c) essencialmente monoidiomtico e adota a posio de que o

    ingls deveria ser a nica lngua oficial no mundo; d) favorece a produo elitista do

    conhecimento para a qual o sistema educacional direcionado.

    Uma segunda verso constituda pelomulticulturalismo humanista liberal

    filho nobre das sociedades capitalistas. De acordo com tal perspectiva, existe uma

    considervel igualdade natural entre pessoas brancas, afro-americanas, latinas,asiticas e outras populaes raciais que permite com que haja competies mais

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    equilibradas entre grupos e raas em uma sociedade capitalista. Entretanto, a aparente

    idia de igualdade acaba mascarando acirradas disputas e formas de poder que

    perpassam as relaes sociais, tornando-as desiguais. McLaren (1997) chega a advertir

    que esta viso resulta freqentemente em um humanismo etnocntrico e opressivamente

    universalista, no qual as normas e regulaes morais que governam o funcionamento

    dessas sociedades so identificadas mais fortemente com as comunidades poltico-

    culturais anglo-americanas.

    A terceira verso refere-se ao multiculturalismo liberal de esquerda

    amplamente fortalecido por grupos empresariais que buscam, na segmentao dos

    grupos socioculturais e de suas respectivas demandas de reivindicao, garantir margens

    mais lucrativas no consumo diferenciado dos bens e produtos culturais. Ao atribuir

    considervel importncia s diferenas culturais, tal perspectiva adverte que as lutas em

    torno da igualdade entre grupos, raas, etnias e culturas podem suprimir importantes

    diferenas culturais em termos de comportamentos, valores, atitudes, estilos cognitivos

    e prticas sociais. Advoga a favor das diferenas relativas raa, classe, gnero e

    sexualidade dentro do multiculturalismo, porm, essencializa-as ao compreend-las

    como formas de significao retiradas de sua situacionalidade histrica e cultural.

    O multiculturalismo crtico10 e de resistncia constitui a quarta verso

    multicultural. Trata-se de uma perspectiva poltica e cultural de grande simpatia entre

    grupos, movimentos sociais e sindicais, partidos polticos, escolas, propostas

    pedaggicas etc., que comungam dos ideais por justia social, buscando denunciar e

    combater formas de saber/poder que conduzem subjugao de povos, raas e culturas

    historicamente marginalizadas. A partir de uma perspectiva crtica e ps-estruturalista

    de resistncia, enfatiza o papel que o discurso e a representao desempenham naconstruo de significados e identidades. Compreende as representaes de raa, classe

    e gnero como resultantes de lutas sociais mais amplas sobre signos e significaes e

    enfatiza no apenas o jogo textual e retrico como formas de resistncia, mas,

    10Apesar de haver, atualmente, outras nomeaes para esta verso - como o caso de McLaren (2000)que tem argumentado a favor de um multiculturalismo revolucionrio -, estarei utilizando, na presente

    proposta de estudo, a nomeao multiculturalismo crtico,devido sua ampla utilizao entre a maioriados/as autores/as no campo educacional.

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    sobretudo, a tarefa central de transformar as relaes culturais e institucionais nas quais

    os significados so gerados.

    Embora aparentemente distintas, acredito que essas quatro verses do

    multiculturalismo possuem aproximaes tericas bastante visveis o que torna

    possvel, por exemplo, algum esforo de sntese em dois grandes grupos, consideradas,

    obviamente, suas especificidades tericas e polticas. So eles: o multiculturalismo

    conservador oufolclricoe o multiculturalismo crtico.

    No primeiro grupo estariam as concepes multiculturais conservadoras ou

    folclricas. Nessa perspectiva, a no problematizao das relaes desiguais de poder

    ou dos mecanismos discriminatrios que inferiorizam identidades culturais especficas,

    acaba conduzindo relaes e prticas culturais a uma espcie de pluralismo cultural

    benevolente, uma vez que apenas convoca as diversas culturas a compor o mosaico

    multicultural das sociedades capitalistas, mantendo, com isso, as distncias culturais

    desejadas. Ao meu ver, tal abordagem restringe o multiculturalismo a formas

    folclricas11. de apresentao cultural, ao enfatizar, de forma episdica e extica, as

    vivncias culturais colocadas margem daquilo que se convencionou chamar de

    Cultura. Alm disso, o multiculturalismo conservador ou folclrico limita-se a

    promover atitudes de tolerncia e de reconhecimento das diversidades culturais,

    porm, ignora os mecanismos pelos quais se estabelecem as diferenas culturais, as

    discriminaes, as excluses sociais.

    No segundo grupo estariam as perspectivas crticas do multiculturalismo,

    em cujo enfoque e com base em aportes de teorias crticas e ps-crticas -, as relaes

    entre cultura e poderso amplamente analisadas, buscando-se, com isso, abrir espaopara as vozes e culturas historicamente silenciadas nos currculos e nas prticas

    pedaggicas, a fim de promover um horizonte social emancipatrio e transformador. Tal

    perspectiva defende que, diante dos cenrios multiculturais contemporneos, j no h

    como sustentar a suposta existncia de uma Cultura, mas sim culturascada vez mais

    interrelacionadas, disputando entre si significados os mais variados em torno de suas

    11

    Uma leitura mais detalhada acerca da entrada folclrica do multiculturalismo na educao foidesenvolvida na Parte I do captulo IV desta Dissertao.

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    vivncias culturais e de valores ticos e estticos. Nesse sentido, o reconhecimento do

    carter incompleto das culturas apresenta-se como ponte para o dilogo e o

    hibridismo cultural.

    No obstante as crticas e tenses que perpassam as diversas abordagens

    tericas e polticas do multiculturalismo, observa-se que ele tem se constitudo,

    atualmente, como um dos caminhos mais percorridos em busca do

    redimensionamento de valores e prticas pedaggicas e culturais, e como retrica

    autorizada para dar voz s culturas e povos historicamente silenciados, para

    denunciar/combater as formas de poder que os sujeitam e os oprimem, para falar, enfim,

    dos sonhos compartilhados entre aqueles/as que lutam por um mundo onde reine a

    justia social e a dignidade humana.

    Entre os argumentos favorveis ao multiculturalismo, Moreira (2001)

    esclarece que as tenses e as crticas a ele dirigidas [ao multiculturalismo] podem tanto

    favorecer o avano do conhecimento na rea, como estimular propostas curriculares

    renovadas que visem preparar cidados e docentes capazes de bem viver e atuar em

    sociedades cada vez mais multiculturais (p. 17). De outra parte, registra-se tambm

    que, no campo educacional brasileiro, tm se travado slidas discusses tericas sobre

    os modos de se conceber a resposta multicultural ao problema da diferena na

    educao, procurando-se evitar simplificaes e redues apressadas do campo terico

    das diferenas ao domnio pluralista da diversidade cultural.

    Com o propsito de incitar um debate em torno das respostas do

    multiculturalismo sobre temticas como cultura, identidade e diferena cultural,

    destacarei algumas crticas levantadas por autores de diferentes teorias culturais, asquais aparecem com bastante freqncia na educao:

    1) Embora haja um considervel distanciamento poltico e terico entre o

    multiculturalismo crtico e as perspectivas multiculturais conservadoras ou

    folclricas, tais abordagens apiam-se em noes demasiado etnocntricas e

    essencialistas de cultura - entendida como consenso cultural - e de identidades

    tomadas como unidade ou consistncia cultural. Nessa perspectiva, as identidadesculturais so vistas geralmente como parte de um universo de existncia pacfica e

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    consensual, ou seja, uma espcie de mosaico multiculturalonde o diverso se

    converte na fonte luminosa de um projeto multicultural pretensamente homogneo e

    regulador que diminui e obstaculiza as possibilidades de as diferenas existirem

    como vivncias singulares no interior dos prprios grupos e movimentos culturais.

    Como conseqncia, mantm-se as distncias culturais e obstaculizam-se os

    cruzamentos interculturais;

    2) De modo geral, o multiculturalismo, ao abordar questes relativas s polticas de

    identidade cultural, atribui s diferenas culturais, de classe, gnero, sexualidade,

    raa, etnia etc., uma mesma origem sociale sob uma perspectiva excessivamente

    negativa, isto , como sinnimo e conseqncia das desigualdades e excluses

    que subjugam as prticas e vivncias culturais de grupos dos deixados s margens

    das polticas sociais. Talvez seja com base nesses argumentos que o

    multiculturalismo busca preconizar que o direito diferena deva estar articulado ao

    direito igualdade social, de modo a ampliar as possibilidades de dignidade

    humana. Nesse sentido, um dos princpios do multiculturalismo apontado pelo

    socilogo Boaventura de Souza Santos tem sido bastante aclamado: as pessoas e os

    grupos tm o direito de serem iguais quando a diferena os oprime, e tm o direito

    de serem diferentes quando a igualdade os descaracteriza.

    3) Ao apoiar-se em posies socialmente aceitas e pedagogicamente recomendadas de

    apelo tolerncia cultural, o multiculturalismo chega, muitas vezes, a encobrir uma

    ideologia de assimilao12que pretende simplesmente autorizar os outros a que

    continuem sendo apenas outros, porm, sob a gide de uma convivncia

    multicultural regulada. Ao meu ver, por mais edificante que isso possa parecer, a

    tolerncia impede o reconhecimento de que as identidades e as diferenas soprodues culturais e histricas extremamente conflitantes, disputadas, imersas em

    complicadas relaes de poder. Nesse sentido, talvez um dos paradoxos mais

    marcantes das sociedades multiculturais esteja no fato de que, ao mesmo tempo em

    que os indivduos so convocados tolerncia e convivncia mtua, fica

    decretada a impossibilidade de a diferena ultrapassar as fronteiras da designaoe

    12McLaren (2000) chama ateno para o fato de que o discurso da diversidade e da incluso , muitas

    vezes, predicado com afirmaes dissimuladas de assimilao e consenso, que servem como apoio aosmodelos democrticos neoliberais de identidade (p. 18).

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    da retrica da diversidade cultural frente ao problema da diferena, pois a idia de que

    as culturas so diversas - devendo ser respeitadas e toleradas -, cria a falsa iluso de

    uma convivncia pacfica e acaba suprimindo, no prottipo do caldeiro

    multicultural, as diferenas existentes entre as culturas. Nesse sentido, embora haja

    uma certa acolhida e estmulo diversidade cultural, h sempre, e paradoxalmente,

    uma correspondente conteno da diferena cultural atravs de uma norma

    transparente - instituda e administrada pela prpria sociedade que hospeda essas

    culturas - servindo para mascarar os etnocentrismos dentro dos prprios circuitos

    culturais.

    Buscando encontrar outros modos de pensar as culturas contemporneas

    para alm do multiculturalismo e das relaes pautadas na explorao antropolgica

    do outro cultural, Hopenhayn (2001) nos fala de formas de relaes transculturais14

    estabelecidas do ponto de vista da auto-exprerimentao e da viagem transcultural

    com o outro, ou seja, trata-se de um processo em que o sujeito busca transcender a si

    mesmo atravs do culturalmente-outro, e onde ambos se permitem compartilhar

    afinidades e conflitos, recriando-se com particular intensidade.

    Quanto s mudanas sugeridas pela retrica multicultural na educao,

    Skliar (2002c) considera que tais mudanas apontam, na realidade, para algumas

    iluses, dentre as quais, menciona

    A insistncia em uma nica espacialidade e em uma nica temporalidade,

    mas com outros nomes; a reconverso dos lugares em no-lugares para osoutros; a infinita transposio do outroem temporalidades e espacialidadesegocntricas e homo-hegemnicas; a aparente magia de uma palavra que se

    instala pela ensima vez ainda que no nos diga nada; a pedagogia dassupostas diferenas em meio a um terrorismo indiferente; e a produo de

    uma diversidade que apenas se nota, apenas se entende, apenas se sente, com

    a qual apenas se vibra (p. 2).

    tenta, portanto, elaborar seu projeto histrico, poltico e literrio da diferena; um projeto cujas pretensesconsistem em fazer da escrita um tempo revisionrio, um retorno ao presente para redescrever nossacontemporaneidade cultural... [a fim de] tocar o futuro em seu lado de c (BHABHA, 1998, p. 27), noaqui e agora de nossa histria.14

    Hopenhayn prefere falar de transcultural e no de intercultural ou multicultural, porque a nfasecoloca-se menos no efeito de agregao, diversificao ou mestiagem cultural, e mais no efeito de setranscender a si mesmo, atravs do culturalmente-outro (Idem, ibidem, p. 261).

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    II- CURRCULO E PEDAGOGIA CULTURAL - CONEXES

    O campo das teorizaes curriculares, no Brasil, desde h algum tempo, tem

    sido palco de constantes disputas entre diferentes perspectivas tericas. Os

    desdobramentos dessa movimentao - envolvendo, recentemente, pelo menos duas

    teorizaes curriculares de grande fora na educao: as Teorias Crticas e as Teorias

    Ps-Crticas tm apontado tanto para novos entendimentos acerca do currculo15, da

    realidade educacional e das prticas sociais, quanto para a incorporao de teorias e de

    enfoques analticos que visem articular os estudos sobre currculo com aspectos da

    cultura, da linguagem, do sujeito, dentre outros.

    Por influncia das perspectivas ps (ps-estruturalismo, ps-modernismo,

    ps-feminismo, e tambm dos Estudos Culturais) e dos movimentos em favor da

    virada cultural e da virada lingstica - que contriburam decisivamente para o

    reexame das conexes entre linguagem e cultura nas anlises culturais e de currculo -, a

    linguagem ganha significados que saltam o campo representacional do pensamento,

    passando a ser concebida em sua dimenso constitutiva(de realidades e significados),

    sendo, a princpio, impossvel de ser capturada de forma definitiva em seus sentidos,

    dada sua insero em movimentos de constantes fluxos.

    Essas modificaes tambm se estendem ao campo do currculo. Nesse

    caso, e contrariamente s abordagens mais conservadoras do currculo - que o tomam

    apenas como um instrumento tecnicamente estruturado visando organizao

    disciplinar de saberes e prticas pedaggicas -, muitos curriculistas passam a dirigir

    ateno especial para as relaes entre cultura e poder, para os artefatos culturais (comoo cinema, a televiso, os jornais, as revistas, as publicidades etc., que, tal como a escola,

    agem como dispositivos culturais que operam na produo/transmisso de valores,

    15 Ao referir-me emergncia de perspectivas tericas que sugerem novos entendimentos analtico-conceituais acerca do currculo - conectados a outros campos de estudo (como a cultura, a linguagem, odiscurso, o poder etc.), no estou afirmando, com isso, que a partir de ento, tudo currculo, e muitomenos que se trata de um total redimensionamento conceitual do currculo. Pelo contrrio, ampliam-seas abordagens de estudo sobre currculo para almde seu uso escolar, permanecendo o entendimento deque, segundo Veiga-Neto (2002a), o currculo um artefato escolar inventado nos primrdios da

    Modernidade... [e que] foi idealizado como um artefato capaz de colocar uma ordem comum na educaoescolarizada (pp. 201; 212).

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    conhecimentos e atitudes, em conexo com as relaes de poder), para a linguagem, o

    discurso e a intertextualidade, para questes de gnero, sexualidade, identidade e

    diferena cultural, alm de muitos outros estudos importantes que vm ganhando espao

    nas pesquisas em educao em todo o pas. Em geral, esses estudos sinalizam para a

    necessidade de redimensionamentos tericos no campo do currculo, admitindo-se que

    sua produtividade vai alm dos espaos educativos j convencionalmente institudos

    como a escola, a sala de aula e suas prticas pedaggicas.

    Contudo, o fato de se reconhecer que o currculo se caracteriza como um

    campo de estudos atravessado por constantes flutuaes tericas ao longo de sua

    histria, em nada implica que tais mudanas resultem de um processo evolutivo, ou

    seja, que suas transformaes tenham seguido uma escala linear (indo das perspectivas

    mais tradicionais ou conservadoras, passando pelas teorias crticas, at encontrar seu

    pice nas recentes teorizaes ps-crticas). Ao meu ver, tais movimentaes acontecem

    simultaneamente entre perspectivas tericas diferentes, sendo marcadas, em geral, por

    processos de continuidades/rupturas/disjunturas que do, ao currculo, um tom catico e

    fragmentrio e que tornam imprecisas as tentativas de estabelecer algum ponto

    privilegiado de conceitualizao.

    2.1- Currculo: prtica de significao

    Tendo em vista o carter provisrio a que os esforos de conceitualizao

    esto sujeitos, nota-se que muitas explicaes e certezas tradicionalmente aceitas no

    campo educacional tm sido abaladas juntamente com seus valores, saberes e crenas.

    Nesse sentido, o currculo, aqui entendido como prtica de significao (Silva,2001), tem se constitudo muito mais como um territrio de no-lugar onde co-habitam

    identidades/diferenas, construo/runa, permanncia/nomadismo/hibridismo

    caractersticas de sua prpria condio bablica (Larrosa e Skliar, 2001) -, do que

    propriamente um campo estvel de teorizaes.

    Como territrio de no-lugar, o currculo apresenta-se como espao de

    disputassempre aberto produtividade, polissemia, ambigidade, indeterminao, multiplicidade de significaes e sentidos. Nessa perspectiva, o currculo constitui-se

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    em um territrio em que se travam lutas por diferentes significados do indivduo, do

    mundo e da sociedade. Nesse territrio, ao se acolherem certas vozes e ao se silenciarem

    outras, intenta-se produzir determinadas identidades raciais, sexuais, nacionais,

    confirmando-se ou no relaes de poder hegemnicas16.

    Como prtica de significao, o currculo tem sido, sem dvida, um dos

    artefatos educativos mais envolvidos nos processos de constituio de sujeitos,

    identidades e diferenas. Afinal, se o currculo assume grande produtividade nas formas

    pelas quais os sujeitos so cotidianamente interpelados a ocupar diferentes posies

    na dinmica social, porque sua existncia depende, em grande parte, da materialidade

    das prticas culturais - as quais lhe do sustentao e com as quais estabelece uma

    relao produtiva.

    Como prtica de significao, o currculo contribui, ainda, para ampliar o

    entendimento do que vem a ser sua dimenso discursiva. De acordo com Silva (2001),

    o currculo pode ser visto como um texto, como uma trama de significados, pode ser

    analisado como um discurso e ser visto como uma prtica discursiva. E como prtica de

    significao, o currculo, tal como a cultura, , sobretudo, uma prtica produtiva (p.

    19). Contudo, adverte o autor,

    Conceber o currculo como texto, entretanto, no significa v-lo como textosimplesmente legvel, na acepo de Barthes. [...] Conceber o currculo como

    texto significa v-lo, antes, como texto escrevvel, outra vez, no sentido deBarthes. Aqui, o texto se abre integralmente para sua produtividade. A

    interao com o texto no se limita, nessa perspectiva, a detectar a presena

    de um significado ao qual o texto se refere univocamente, [pois] o texto atentativa de fixao de um significado que, no obstante, sempre nos escapa

    (idem, ibidem, p. 66).

    Como elemento discursivo das polticas e prticas educacionais e culturais, o

    currculo tambm est envolvido com a fabricao dos objetos e situaes de que fala,

    isto , de saberes e competncias, de sucessos e fracassos. Alis, o currculo no produz

    apenas os objetos e as situaes de que fala, mais que isso, ele produz os prprios

    sujeitos aos quais fala, os indivduos que interpela. Em verdade, o currculo estabelece

    diferenas, constri hierarquias, produz identidades (idem, p. 12), na medida em que

    16CANEN e MOREIRA, 2001, p. 7.

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    acaba funcionando como um poderoso dispositivo que subjetiva, interpela e recoloca

    todos e cada um na dinmica de uma distribuio hierrquica de lugares conforme as

    posiesque, eventualmente, ocupam.

    Nesse processo de fabricao, o currculo se constitui em um influente

    artefato escolar envolvido na produo e distribuio de saberes e que, ao articular-se

    com outros artefatos da cultura, acaba funcionando como

    O grande dispositivo pedaggico que recolocou, em termos modernos, ainveno grega da fronteira como o limite a partir do qual comeam os

    outros; no propriamente o limite a partir do qual nos perdemos, mas o limite

    a partir do qual a diferenacomea a se fazer problema para ns. Em suma, o

    currculo contribuiu e ainda contribui para fazer do outroum diferentee,por isso, um problema ou um perigo para ns (VEIGA-NETO, 2002a, p.165).

    Na luta por significaes no campo do currculo, podemos identificar,

    portanto, a existncia de uma tenso constante entre, de um lado, as tentativas de

    delimitao, fixao e naturalizao do significado, e, de outro, a rebeldia, o

    deslizamento e a disseminao tambm presentes no processo de significao. Nessas

    disputas, as prticas de significao com as quais opera o currculo so inseparveis dasrelaes depoderque as definem. justamente essa luta em torno dos significados que

    atribui, ao currculo, um carter incerto, indeterminado, imprevisvel.

    2.2- Aspectos culturais do currculo e da pedagogia

    Certamente, uma das grandes contribuies que os Estudos Culturais trouxerampara a educao est no entendimento de currculocomo artefato cultural, isto , como

    uma prtica cultural que traduz valores, conhecimentos e interesses de diferentes

    grupos, contextos, sociedades. Como artefato escolar e cultural, podemos dizer que o

    currculo se difunde desde a organizao escolar de contedos de ensino, disciplinas e

    prticas pedaggicas, at outras instituies sociais (tais como hospitais, prises,

    igrejas, museus, manicmios etc.) e artefatos culturais (como, por exemplo, o cinema, a

    televiso, os jornais, as revistas, as publicidades etc.), se entendemos que tais

    instituies e artefatos atuam, eventualmente, com alguma finalidade pedaggica.

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    Da perspectiva dos Estudos Culturais, possvel extrairmos importantes

    entendimentos acerca do currculo e da pedagogia no bojo de umapoltica culturalpara

    a educao. Menciono algumas delas: 1) o currculopassa a ser entendido como parte

    de uma poltica cultural no interior da qual situam-se as constantes lutas por

    significaes e pela constituio de sujeitos, identidades e diferenas em que acaba se

    tornando no apenas um territrio de produo ativa de culturas como tambm um

    campo de contestao cultural. Nesse disputado campo de significaes, o currculo a

    manifestao viva da presena de vozes e de interesses dos que o pensam, o produzem e

    o praticam, como tambm um campo que se abre indeterminao, possibilitando o

    ressoar de outras vozes a partir das quais o prprio currculo faz produzir novas formas

    de pensar e de fazer educao; 2) a pedagogiapassa a ser cada vez mais definida em

    termos culturais e no apenas como o domnio de tcnicas e metodologias de ensino,

    restrita ao espao escolar. Para os Estudos Culturais, a pedagogia , portanto, um modo

    de produo culturalimplicado na forma como o poder e o significado so utilizados na

    seleo e organizao de conhecimentos, atitudes, valores, seja no mbito escolar ou

    cultural.

    Observando alguns significados do termo cultural no campo pedaggico,

    veremos, de acordo com Simon (1998), que esse termo enfatiza os modos de produo

    textual e de imagens de maneira a possibilitar uma forma de ver como todas as

    tecnologias do simblico esto implicadas em questes de pedagogia (p. 71). Em termos

    conceituais, aquilo que, nos Estudos Culturais, denominado de tecnologias culturais

    ou artefatos culturais pode ser definido como um conjunto de arranjos e prticas

    institucionais no interior dos quais vrias formas de imagens, som, texto e fala so

    construdas e apresentadas e com as quais, ademais, integradas (idem). O fato de essastecnologias estarem implicadas na produo de significados nos leva a considerar que,

    em parte, os artefatos culturais- sendo elementos constitudos dentro da linguagem e da

    cultura -, contribuem para a organizao e regulao dos processos de produo

    simblica a partir dos quais os significados so produzidos, contestados, desconstrudos.

    Desse modo, podemos dizer que, em parte, os artefatos culturais - sendo

    elementos constitudos dentro da linguagem e da cultura -, contribuem para a

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    organizao e regulao dos processos de produo simblica a partir dos quais os

    significados so produzidos, contestados, desconstrudos.

    Alm desses entendimentos, Steinberg e Kincheloe (2001) trazem

    importantes contribuies a respeito da dimenso cultural da pedagogia, considerando

    que a expresso pedagogia cultural refere-se aos processos educativos que ocorrem

    tanto na escola como numa variedade de reas sociais. Desse modo, os autores definem

    por reas pedaggicas aqueles lugares onde o poder organizado e difundido,

    incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas,

    videogames, livros, esportes etc. (p. 14). Ainda em relao aos significados conceituais

    da expressopedagogia cultural, Silva (2000a) esclarece que esta uma nomenclatura

    de grande circulao nos Estudos Culturais geralmente utilizada para referir-se a

    qualquer instituio ou dispositivo cultural que, tal como a escola, esteja envolvido

    em conexo com relaes de poder no processo de transmisso de atitudes e valores,

    tais como o cinema, a televiso, as revistas, os museus etc. (p. 81).

    A partir dessas perspectivas, considero que boa parte dos artefatos culturais

    dispe de arranjos e tecnologias que, de algum modo, manifestam produtividade seja de

    natureza pedaggica ou no17, informando, nesse caso, que no h uma nica forma de

    fazer educao. De outra parte, importante salientar que, embora os artefatos

    culturais possuam estratgias de normalizao e padronizao das prticas e

    produtos culturais em contextos especficos -, no se pode, contudo, afirmar que

    garantam, de modo unilateral, seus efeitos pretendidos, pois o carter mltiplo e

    disperso dos significados que constituem a textura da vida cotidiana, inviabiliza, ao meu

    ver, a existncia de localizaes unificadas em torno dos campos simblicos a partir

    dos quais as pessoas constroem e vivenciam suas formas visuais, escritas, auditivas e/ougestuais de textualidades. Na opinio de Simon (1998), seria uma extrema

    simplificao ver locais como as escolas, o cinema, a arquitetura e rituais religiosos

    como arranjos prescritos que, atravs de suas representaes simblicas, servem a um

    conjunto particular de interesses sociais e, automtica e efetivamente, funcionam a

    servio desses interesses (p. 73).

    17 A respeito das pedagogias culturais e sua produtividade em programas de televiso, consulte nabibliografia desta Dissertao: Costa (2002a), Fischer (2002) e Steinberg e Kincheloe (2001).

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    Tendo em vista as conexes entre currculo e pedagogia cultural,

    possvel, ento, concluir que suas relaes remetem tanto para a compreenso dos

    modos pelos quais os significados so culturalmente produzidos, como para a ampliao

    dos domnios e usos escolares da pedagogia. Alis, justamente pela dimenso

    cultural da pedagogia que se torna possvel analisar uma multiplicidade de artefatos

    culturais (tais como, a televiso, o cinema, o teatro, a arquitetura, a publicidade, os

    jornais, as revistas, a msica popular, os rituais religiosos etc.) e suas formas de

    envolvimento na produo de significados e de prticas culturais que, no mbito de

    nossas vivncias, acabam sendo tanto (ou mais) influentes que a prpria escola.

    Entretanto, se por um lado, a dimenso cultural favorece a ampliao dos

    domnios da pedagogia para alm do universo escolar, por outro lado, as conexes entre

    currculoe artefatos culturaismerecem, a meu ver, algumas observaes.

    Em primeiro lugar: inmeros/as pesquisadores/as sobrepedagogia cultural-

    entre os/as quais, Costa (2002), Fischer (2002), Giroux (1995), Kellner (1998), Simon

    (1998), Steinberg e Kincheloe (2001), dentre outros/as tm investigado os modos de

    produo de influentes artefatos culturais sobretudo os provenientes da mdia (tais

    como televiso, cinema, jornais, revistas, publicidades etc.) e suas conexes com a

    educao.

    Um dos fortes argumentos que serve como mote para esses estudos,

    encontra-se, a meu ver, apropriadamente apresentado nas palavras de Costa (2002a): os

    textos culturais... interpelam constantemente seus interlocutores, ensinando-lhes muitas

    coisas e convocando-os a compartilhar entendimentos, concepes e vises do mundo,

    das pessoas, dos acontecimentos e de si mesmos (p. 74). Todas essas perspectivas, dealgum modo, reconhecem que os artefatos culturais esto intimamente envolvidos na

    produo de textos culturais e que, ao lado de outros elementos culturais e

    dependendo dos modos de sua recepo pelos espectadores , contribuem para a

    inveno de identidades, smbolos e mitos que ajudam a constituir uma cultura.

    Diante desses argumentos, estarei considerando a revista Nova Escola

    corpus de anlise desta pesquisa como um texto cultural composto de umamultiplicidade de discursos e imagens provenientes das relaes entre diversos campos

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    de saber e entre os que produzem e interagem com tais textos. Nesse sentido, opto por

    no tomar, nesta pesquisa, o entendimento de que determinados artefatos culturais -

    embora estejam envolvidos na produo de significados e de prticas culturais e

    possuam certas estratgias de regulao frente ao seu pblico espectador e/ou leitor -,

    funcionem a partir de currculos que visem a orientar e estabelecer suas aes.

    Tomemos como exemplo a revista Nova Escola. De modo geral, considero que os

    recursos textuais, imagticos e discursivos da revista esto envolvidos em formas de

    saber/poder e contribuem paraa produo de significados, identidades e diferenas em

    torno de grupos, raas, culturas, religies etc., mas isso no significa que tais recursos

    funcionem como currculo darevista. Pelo contrrio, por tratar-se justamente de um

    peridico no campo educacional editado quase sempre em funo de demandas e

    interesses especficos por conhecimentos, temticas, situaes, desafios de natureza

    pedaggica bastante volteis embora haja, de certo modo, uma circularidade de

    temticas abordadas pela revista ao longo de suas edies -, no h como afirmar que a

    revista possua, de fato, um currculo tal como o entendemos na educao - ou seja,

    como uma construo pedaggica que dispe de um ordenamento estrutural-disciplinar

    e de um controle espao-temporal dos saberes e prticas educativas.

    Em segundo lugar: bem verdade que a escola freqentemente tem se

    colocado num movimento de curricularizao e de pedagogizao de espaos

    socioculturais que ultrapassam o mbito escolar (exemplo: televiso, cinema, revistas,

    jornais, publicidade etc.), mas isso no significa que esses espaos disponham de

    currculos elaborados a serem seguidos em nossas vivncias cotidianas. Desse modo,

    ao referir-me aos artefatos culturais como formas de pedagogia cultural que, tal como

    a escola, estejam envolvidos em processos de significao cultural e de

    pedagogizao de sujeitos, talvez seja menos pretensioso de minha parte dizer nombito desta pesquisa que se inicia nesse campo - que tais artefatos sugerem ou

    contribuem para...a produo de significados, de identidades e diferenas, em vez de

    afirmar que eles elaboram ou impem currculos a serem seguidos. Tomemos

    novamente como exemplo a revista Nova Escola: como artefato cultural, pode-se dizer

    que a revista elabora e sugere, ao seu pblico leitor, um certo nmero de temticas,

    contedos de ensino, atividades didticas, debates e solues de problemas polmicos

    etc., que, de algum modo, contribuem paraque significados e formas de saber/podersejam institudos. Nesse sentido, os aparatos produtivos da revista podem ou no ser

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    curricularizados por escolas, professores/as, supervisores/as, alunos/as etc., a

    depender da forma com que o pblico leitor julgar (ou no) relevantes suas prescries,

    modelos e orientaes, bem como sua eficcia pedaggica.

    Portanto, reforo o entendimento de que a revista Nova Escola, ao produzir

    uma variedade de textos culturais, acaba funcionando, na acepo de Costa (2002a),

    como uma das formas de expresso cultural do nosso tempo... que precisam ser

    examinadas e discutidas relativamente quilo que produzem nas sociedades e no que diz

    respeito sua participao na prpria constituio do sujeito contemporneo (p. 72). E,

    dada a ampla influncia desses textos culturais na educao, acredito que o

    desenvolvimento de estudos e pesquisas em torno do funcionamento dos mesmos, bem

    como dos efeitos e significaes produzidos culturalmente, parece-me extremamente

    relevante.

    Desse modo, talvez um dos importantes desafios lanados aos estudos e

    pesquisas que se defrontam com as chamadas pedagogias culturais, consista em

    analisar seus recursos do ponto de vista de seu funcionamento, isto , no uso e no

    contexto de sua produo. Ou, parafraseando Costa (op. cit.), procurando decifrar o

    enigma da lgica desses artefatos, a fim de romper sua ordem e desarmar o aparato que

    a sustenta. Nesses estudos, o que est em jogo no certamente a busca de

    explicaes que apontem para o esgotamento do trabalho de pesquisa, mas, sim, a

    tentativa de produzir uma multiplicidade de modos de ver esses artefatos culturais e de

    entender as formas pelas quais, diferentemente, aprendemos a significar o mundo, os

    outros e a ns mesmos/as.

    2.3- A RevistaNova Escolacomo artefato cultural

    As revistas... So janelas atravs das quais vemos o mundo; lentesindiscretas pelas quais espiamos a vida dos outros; vitrines dos produtos

    oferecidos ao nosso consumo real ou imaginrio; espelhos nos quais

    buscamos encontrar a ns mesmos (MIRA, 2001, p. 212). [grifos meus]

    Criada em 1986 pela Fundao Victor Civita, da Editora Abril, a revista

    Nova Escola tem se constitudo, seguramente, no peridico de maior circulao

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    nacional no campo do magistrio especialmente entre escolas e professores/as do

    Ensino Fundamental. A revista conta, geralmente, com uma periodicidade

    correspondente a nove exemplares ao ano, pois nos perodos de frias escolares (janeiro,

    fevereiro e julho),Nova Escolano publicada.

    Como partcipe de um competitivo jogo de segmentao cultural, a revista

    j investiu em inmeras reformulaes, visando no s manter seu pblico leitor

    atualizado no que se refere emergncia de novas temticas e discusses no campo

    educacional, como tambm se manter no ranking das revistas de maior tiragem do pas.

    Menciono algumas reformulaes de seus slogans: Nova Escola a revista do 1

    Grau (at 1999), a revista do ensino fundamental (at 2000), e, atualmente, a revista

    do professor (a partir de 2001). Tambm houve a criao das sees: Sala dos

    Professores, Depoimentos, Fala, Mestre!, como forma de promover uma

    interao mais direta com seu pblico leitor e de registrar, no plano da recepo,

    como os/as professores/as percebem e avaliam as matrias e reportagens produzidas

    pela revista.

    De acordo com informaes fornecidas pelo relatrio de pesquisa

    Produzindo subjetividades femininas para a docncia18, o convnio firmado entre a

    Fundao Victor Civita, a FAE/MEC e a Empresa Brasileira de Correios e Telgrafos,

    tornou vivel o envio gratuito da revista s escolas pblicas do pas - j que o custo mais

    alto do projeto seriam as taxas de correio e favoreceu a assinatura, nos cinco primeiros

    anos, de 300.000 exemplares da revista, ficando, nesse acordo, o Ministrio da

    Educao e do Desporto responsvel por cerca de 70% de seus custos. O Convnio foi

    interrompido a partir de 1991 at incio de 1992 perodo em que o Governo Fernando

    Collor autorizou a retirada do subsdio financeiro estatal que garantia a aquisio darevista pelas escolas. A retomada do acordo se deu apenas em fins de 1992 desta vez

    restrito ao envio de apenas um exemplar deNova Escolas escolas urbanas do pas.

    Vejamos, ento, o desempenho atual da revista em termos numricos.

    18

    Trata-se da pesquisaProduzindo subjetividades femininas para a docncia um estudo da revista NovaEscola, realizada no Ncleo de Estudos sobre Currculo, Cultura e Sociedade (NECCSO), concluda em1997.

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    Se, at o ms de setembro de 2001, apenas as escolas pblicas com mais de

    50 estudantes recebiam a revista (perfazendo um total de 300.000 exemplares), graas

    parceria Fundao Victor Civita e MEC, a partir de outubro do mesmo ano, o nmero

    de tiragem da revista dobrou para 638.000 exemplares, chegando ao alcance das

    unidades escolares com menos de 50 estudantes pelo fornecimento de um exemplar da

    revista por ms o que lhe tem assegurado lugar de destaque no campo educacional e

    na mdia impressa, estando, atualmente sua tiragem entre as trs maiores tiragens de

    revista do pas.

    Com a palavra, a Fundao Victor Civita:

    O maior sonho da Fundao Victor Civita est virando realidade. Depois de

    mais de 15 anos lutando pela qualificao profissional dos professores e por

    melhores condies de trabalho e infra-estrutura na rede educacionalbrasileira, NOVA ESCOLA, a maior revista de educao do pas, chega

    agora a todas as escolas pblicas, sem exceo. Com isso, 1,5 milho deprofessores do Ensino Fundamental (que atendem a quase 30 milhes de

    alunos) passam a ter acesso ao que h de mais moderno, criativo e instigante

    em termos didtico-pedaggicos (REVISTA VEJA, Outubro de 2001 -encarte).

    Muitos especialistas em educao tm reconhecido a importncia da revista

    Nova Escolapara o cotidiano das prticas escolares. E no obstante as inmeras crticas

    direcionadas revista como, por exemplo, quanto presena freqente, em suas

    edies, de prescries, guias e modelos do que fazer pedaggico -, h um

    reconhecimento de que, no meio educacional, Nova Escola tem apresentado grande

    expanso, utilizao e relativa aceitabilidade, sobretudo no Ensino Fundamental.

    Ao apresentar-se constantemente como veculo do novo, do vlido, dacompetncia, a revista tem se dedicado, na opinio de Rocha (2000), a fornecer

    idias bsicas, essenciais, necessrias, importantes, que fazem sentido, ajudando

    aqueles(as) que dela precisam para tornar o ambiente escolar, o currculo, o programa e

    as aulas mais dinmicas, interessantes, cheias de novidades (p. 132). Sob muitos

    aspectos, a revista considera que as experincias relatadas compem o mosaico de

    fatos e emoes que ajudam a construir as novas noes de educao e cidadania

    (NOVA ESCOLA, abril/2000, p. 4). O alcance de tais objetivos no apenas prev comotambm abre espao para a publicao de textos bastante ilustrados, contendo mtodos e

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    tcnicas de ensino de fcil compreenso, visando, principalmente, detalhar o como fazer

    da sala de aula.

    Alm desses fatores que contribuem para a boa aceitabilidade e utilizao

    dessa revista entre professores/as e escolas, destaca-se o uso de uma linguagem simples

    que d corpo sua apresentao. Na opinio das pesquisadoras Costa e Silveira (1998),

    trata-se, em verdade, de uma linguagem mais prxima ao discurso do cotidiano escolar

    (ao invs do jargo acadmico), do uso de mecanismos discursivos de envolvimento do

    leitor ou leitora, de uma apresentao grfica que inclui ilustraes e outros recursos

    alm do texto escrito, e, enfim, da invocao da referncia caminho de atualizao

    constante... (p. 346).

    Dizer que a revista faz uso de uma linguagem simples, clara, objetiva e

    didtica, significa reconhecer algumas de suas estratgias poderosas de interpelao

    ao/ leitor/a. Seus textos apiam-se geralmente em perspectivas que se pretendem

    verdadeiras, pois, medida que se organizam, colocam disposio do/a leitor/a um

    poderoso coquetel de prticas com propriedades prescritivas e at mesmo moldadoras

    e fixadoras. Contudo, graas existncia de uma dinmica constitutiva aos modos de

    produo dos textos culturais e s formas imprevisveis de sua recepo, esses textos

    passam a assumir um carter igualmente indeterminado e contingencial que os torna

    suscetveis a deslocamentos constantes.

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    III- AS TRILHAS METODOLGICAS DA PESQUISA

    Neste captulo, procuro articular os aspectos tericos e metodolgicos desta

    pesquisa, a partir de uma perspectiva que aponte para a complementaridade e

    inseparabilidade entre eles. Com isso, busco problematizar a produo cultural, os

    modos de ver e de narrar as diferenasque se encontram materializados nos textos que

    a revista Nova Escola faz circular, bem como os modos deproduo/interaocom seu

    pblico leitor.

    Num tempo em que os cruzamentos entre artefatos culturais e educao se

    intensificam a cada dia, produzindo mltiplas formas depedagogias culturais as quais

    exigem, de nossas pesquisas, um alto nvel de complexidade analtica , coloco-me, de

    certo modo, o compromisso de olhar para o presente buscando problematizar os modos

    de produo de saberes, significados e valores que operam nos intercmbios entre

    cultura e escola, os quais, em alguns momentos - e por diversos motivos -, acabam

    ganhando status de verdade em nossas prticas educativas e culturais.

    Buscando esse enfrentamento, lancei mo de algumas ferramentas tericas

    que me foram importantes na construo de uma analticados textos culturais da revista

    e que me possibilitaram pensar de outro modo (Larrosa, 1994) certas produes

    culturais com nuanas to complexas. Por intermdio dessas ferramentas pude perceber,

    por um lado, que possvel ir alm das evidnciasdos aparatos da revista, ou seja, alm

    do que [imediatamente] indubitvel para o olhar, o que tem que se aceitar apenas pela

    autoridade de seu prprio aparecer

    19

    , e que a construo dessas evidncias tocontingente quanto a complexidade dos modos de sua fabricao; e, por outro lado, que

    o nosso olhar , ao mesmo tempo, educado por aparatos que nos fazem ver de

    determinados modos, mas, sobretudo livre, mostrando, nesse caso, que talvez o poder

    das evidncias no seja to absoluto, talvez seja possvel ver de outro modo (idem).

    19Idem, ibidem, p. 83.

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    Uma dessas ferramentas diz respeito s inter-relaes estabelecidas entre as

    dimenses poltica e poticado texto cultural as quais foram de extrema importncia

    para a construo de grupos de anlises sobre os modos de produo e significao das

    diferenas. Contudo, cabe esclarecer que, fazer um movimento de articulao entre a

    poltica e a potica do texto cultural no significa limitar a poltica ao texto e sua

    retrica, nem a potica ao trabalho de anlise cultural, mas sim, pressupor quea ao

    textual tambm uma ao poltica e que fazer poltica como um espao textual nos

    permite transitar por diferentes espaos de criao, de liberdade e de formas de

    resistncias.

    Alis, tais articulaes j vm sendo feitas com grande xito por diferentes

    abordagens de estudo (como o caso do livro Habitantes de Babel (2001), que rene

    a produo de autores/as brasileiros/as e estrangeiros/as, trazendo discusses sobre a

    diferena no campo poltico, potico e filosfico, enfatizando que possvel escrever

    babelicamente). Alm desse projeto, existem outras produes tericas no Brasil que

    buscam interligar pesquisas institucionais sobre a diferena tambm nesses aspectos e

    suas articulaes com o campo das teorizaes curriculares como o caso da Revista

    Educao & Realidade tema Diferenas (1999), publicada pela UFRGS, a Revista

    Educao & Sociedade tema Dossi Diferenas (2002), publicado pela UNICAMP,

    dentre outras.

    De todas essas contribuies, trago, pelo menos, duas formas de

    entendimento sobre as dimenses poltica e potica da diferena. A primeira, situada no

    campo curricular, traz com Silva (2001)20o entendimento de que

    Conceber o currculo [como representao21] implica v-lo, simultaneamente,inseparavelmente, como potica e como poltica. Seus efeitos de poder sointeiramente dependentes de seus efeitos estticos; inversamente, seus efeitos

    20Trata-se do Livro O currculo como fetiche: potica e poltica do texto curricular.21O conceito de representao no est sendo tomado para este autor - e tambm nesta pesquisa apartir de seu sentido clssico associado tradio filosfica ocidental platnica, isto , como umamediao entre o pensamento (interior) e a realidade (exterior) que re-apresenta e re-produz, da maneiramais perfeita possvel, atravs da razo, algo ou alguma coisa do mundo real. A perspectiva a queestou me referindo, nesta pesquisa, toma por base as contribuies oriundas dos movimento ps viradalingstica e dos Estudos Culturais, para os quais a representaoliga-se ao entendimento da linguagemcomo constituio da realidade, ou seja, representar significa, nesse caso, produzir significados no como

    reproduo de uma realidade supostamente anterior linguagem, mas como um ato de criao derealidades a partir de significados fluidos, contingentes, localizados, atrelados s nossas prticaslingsticas.

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    estticos s fazem sentido no interior de uma economia afetiva motivada pela

    obteno de efeitos de poder. [...] Significa tambm enfatizar que os recursosretricos que dirigem sua potica no tm objetivos ou efeitos meramente

    ornamentais ou estticos: sua utilizao est estreitamente ligada a relaesde poder (p. 67).

    A segunda, situada na direo de um alargamento da dimenso potica da

    diferena, tambm nos ajuda a entender melhor a questo da presena ou da volta

    do outrona educao. Skliar (2002a) 22 entende que essa volta pode ser interpretada

    ambiguamente, ou seja,

    Ao falar de um outro que volta, a questo se esse voltar pode ser

    interpretado como o retorno de uma histria s de excluso: a vtima que

    retorna para falar da sua exterioridade, do seu sofrimento, das suasperdas, da sua vontade de pertena, da sua incluso. Porm, ainterpretao da volta do outro poderia ser melhor compreendida como uma

    irrupo, como um acontecimento no sentido que alguma coisa irrompe

    para desfazer o pensamento anterior, para descentr-lo do si prprio, paraproduzir a perda das nossas palavras23.

    Do ponto de vista da busca por entendimentos das dimenses poltica e

    potica no campo da linguagem, um breve investimento em seu universo terico pode

    ser til compreenso dos efeitos polticos e retricos da diferena nos textos da revistaNova Escola e dos vnculos de poder que os unem, podendo, inclusive, favorecer

    anlises mais amplas a partir de leituras que no estejam necessariamente atreladas a

    quadros conceituais.

    Pelo que j sabemos, a linguagem que produzimos e que nos produz

    extremamente persuasiva, isto , ela age sempre retoricamente, de modo que os

    significados e as verdades no podem existir independentemente dos aspectospolticos e lingsticos e dos propsitos pelos quais ela evocada. Se compreendemos a

    linguagem a partir das perspectivas ps virada lingstica ou seja, como uma

    inveno constituda e constituidora de realidades e sentidos, e no como um mero

    instrumento do pensamento que reproduz uma realidade pr-existente -, isso

    significa que devemos reformular nossa prpria maneira de fazer a pergunta sobre ela.

    22Trata-se do livro Y si el outro no estuviera ah? Notas para una pedagoga [improbable] de la

    diferencia.23SKLIAR, 2002c, p.1.

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    Como diria Wittgenstein (1994), no devemos nos perguntar sobre o que a

    linguagem, mas comoela funcionaem seus diversos usose contextos, uma vez que

    a significao de uma palavra seu uso na linguagem (p. 43).

    Isso significa que, a linguagem, em sua imensa variedade de usos e

    pluralidade de funes, no pode ser analisada fora de seu contexto, de sua forma de

    vida. Por isso, os textos culturais devem ser lidos a partir de sua especificidade

    histrica, poltica, cultural e retrica, abrindo-os a uma multiplicidade de leituras e no

    pretenso de que venham a instituir significados e entendimentos nicos. Desse

    modo, possvel escrever e reescrever as histrias nos textos que se l, de forma a

    poder inclusive desafiar as maneiras pelas quais certos textos funcionam ativamente na

    construo de histrias e verdades particulares. Isso porque aquilo que chamamos

    verdade s pode ser entendido situando-o na dimenso retrica da linguagem e de seu

    poder de persuaso.

    Uma outra trilha percorrida pela pesquisa seguiu na direo de que os

    aparatos produtivos da revista deveriam ser entendidos como textos, isto , como uma

    disposio de discursosque, na forma de texto, faz com que significados ancorados em

    outras fontes textuais presentes em se