#02 Lugares

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Revista NU #02 Lugares

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nu [maio 2002]

[ editorial ] lugares p03

Pedro Jordão

land arch | construir paisagem p04

Marta Pedro

a invenção do lugar p08

Ana Vaz Milheiro

teoria do sítio p09

Paulo Varela Gomes

arx portugal | uma natureza própria p10

Pedro Jordão & Rui Mendes

projecto para uma grua p18

Pedro Ressano Garcia

os novos (não) lugares da supermodernidade p24

Irina Sales Grade

[ 1º acto ] casa do cidrão & casa de jerusalém p26

Gonçalo Canto Moniz

[ prova final ] a periferia somos nós p30

Marta Macedo

[ contaminações ] meet the beat generation p32

Nuno Costa

[ cheese-ham files ] #2 p34

Vasco Pinto

[ ? ] toyo ito p35

[ ficha técnica ]

DIRECTOR

Pedro Jordão

REDACÇÃO

Bruno Gil, Carina Silva, CarlosGuimarães, Carolina Ferreira, IrinaSales Grade, Joana Alves, José Brites,Marta Pedro, Pedro Canotilho, VeraPinto

COLABORADORES

Ana Vaz Milheiro, Filipa Osório,Gonçalo Canto Moniz, Marta Macedo,Paulo Varela Gomes, Pedro RessanoGarcia, Rui Mendes, Vasco Pinto

GRAFISMO

Bruno Gil, Eduardo Nascimento, MárioCarvalhal, Pedro Jordão, Rui Aristides

MONTAGEM

Eduardo Nascimento

IMPRESSÃO

Imprensa de Coimbra, Limitada

TIRAGEM

400 exemplares

DEPÓSITO LEGAL

178647/02

ISSN

1645-3891

PROPRIEDADE

NUDA/AAC – Núcleo de Arquitectura

CONTACTOS

NUDA/AAC – Núcleo de Arquitectura

Departamento de ArquitecturaFaculdade de Ciências e TecnologiaUniversidade de CoimbraColégio das ArtesLargo D. Dinis3000 Coimbra

tel [ darq ] : 239 851 350

fax [ darq ] : 239 829 220

e-mail: [email protected]

[ índice ]

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[ editorial ]

LugaresPedro Jordão

Which I wish to say is thisThere is no beginning to an endBut there is a beginning and an endTo beginning

Gertrude Stein

Lugar, sítio, contexto...

O mito tem muitos nomes. Conceito romantizado, banalizado,idolatrado, desprezado, quase tudo, quase nada. O lugarpode ser tudo aquilo que vejo. O lugar pode ser tudo aquiloque não quero ver. Pode ser um factor determinante ou ummero fait-divers. E talvez não seja nada disso. Fonteinterminável de equívocos, havendo quem ainda não percebaque não há fórmulas e que o lugar é menos o que se encontrae mais o que se deixa. O lugar não se dá. Conquista-se. Éalgo visível, por exemplo, na arquitectura dos ARX Portugal,no modo como se apropriam do terreno, reestruturando-o àmedida das suas necessidades e vontades, criando um novoterritório com novas referências. No fim, é isso que deixam– um lugar. As possibilidades são muitas. Como quandoarquitectura e paisagem se fundem, no que se pode denominarcomo Land Arch. Topografias que constróem espaços queconstróem topografias que se tornam arquitectura. É tambémurgente que se perceba que, numa era de constantes, rápidase incontroláveis mutações, não existem conceitos cristalizadosno tempo. Hoje, o conceito de lugar, independentemente daperspectiva, é mais amplo e indefinível. A modernidade e aglobalização trouxeram-nos não-lugares, espaços quaseintangíveis, desprovidos de significado. Aeroportos, portos,estradas, caminhos-de-ferro, centros comerciais, parques dediversão, estádios. Iguais em todo o mundo, igualmentevazios. Locais de passagem, de fruição passageira. O estádiode futebol vazio simboliza o seu momento de verdade.1

Não significa que sejam intocáveis. Por vezes, é no vazioaparente que se gera um futuro. Na proposta de PedroRessano Garcia para a recuperação de uma grua no porto deOakland, assistimos à apropriação do que era aparentementeirrecuperável. Reconversão. Gerar um lugar no que pareciaser um mero desperdício. É preciso sonhar mais os espaços.Como vamos sonhando estas páginas. São o lugar quecriámos. Com os nossos instrumentos e referências e vontades.Um lugar que evoluirá no tempo e nas palavras.

1Aaron Betsky + Erik Adigard, Architecture Must Burn, T & H, 2000

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Land Arch construir paisagemMarta Pedro

Paisagem.Não como simples cenário, mas como instrumento (ferramenta) desafiante e passível deadquirir novas dimensões, de diluir silhuetas e de redesenhar novas arquitecturas. No limite,também elas agentes construtores de novas paisagens.

A superação de antigas concepções que caracterizavam a acção sobre a paisagem baseadasna tradicional hierarquia figura-fundo, impulsionada por um crescente interesse e sensibilidadepela natureza (devido a uma maior consciência ecológica bem como aos processos dereestruturação das cidades pós-industriais), permitiu uma valorização da paisagem, possuidorade um potencial a explorar através da intervenção táctica do arquitecto. Potencial que, numaprimeira instância, se traduz num vazio. Mas que também significa texturas, superfícies,solos, sulcos, pregas e dinâmicas que valem, não tanto pelo seu carácter natural, mas pelasua componente marcadamente abstracta (susceptível de ser trabalhada ou de trabalharsobre o que se vai construir).

Trata-se, no fundo, de uma troca de papéis na qual a paisagem passa de pano de fundo(papel secundario) a objecto de estudo, constituindo-se como parte integrante da intençãodo projecto, enquanto ponto de partida ou como produto final.

Esta redefinição do conceito de paisagem, que inclui tanto a envolvente natural como oartificial (o construído) e todas as suas relações formais, é também decorrente das experiênciasincluídas na Land Art, levadas a cabo, a partir da década de sessenta, por vários artistasque defendiam a ideia de que elementos como a forma, matéria e conteúdo do contextotopográfico e cultural se poderiam constituir como substância inspiradora para as suas obras– earthworks. Obras em que a arte e natureza se unem e nas quais a paisagem não seconstitui apenas como tema, mas também como matéria-prima.

Hibridações. Esta sensibilidade extrapolou-se também para a arquitectura e para o urbanismo.Deste modo, verificam-se hoje novas dinâmicas, novas miscigenações onde arquitectura epaisagem tendem a fundir-se, a permutar entre si. Uma arquitectura que se forma a partirda paisagem e uma paisagem que é reinventada, construída e transformada em arquitectura.

Estas alternâncias produzem-se a partir de sistemas manipuladores tais como modelações,acções gráficas, infiltrações, camuflagens, intersecções e misturas entre o natural e otecnológico, algo possível através da aplicação técnica de novos conceitos estruturais econstrutivos e de novos meios informáticos.

Uma arquitectura que procura novas interacções e dinâmicas com a paisagem que, por suavez se apresenta sob a forma de topografia operativa onde o edificado se funde se suavizae se infiltra, dando origem a novos solos, novos relevos, num jogo complexo de hibridações.Tratam-se de paisagens-arquitectura e arquitecturas-paisagem.

Topografias mais que volumetrias. Deste exercício de exploração e criação de novos toposresultam relações mais ou menos ambíguas entre superfície e espaço, bidimensionalidadee tridimensionalidade. O solo é manipulado e transformado numa superfície activa, complexae mutante, de onde emerge o construído. Neste sentido, surgem dinâmicas instáveisprovocadas por construções de limites indefinidos, onde se privilegia uma contínua fluidezentre espaço interior e exterior.

Neste domínio, projectos como o Ginásio de Barcelona de Carlos Ferrater, Simulated Topography

1.Ginásio, Carlos Ferrater 2.Groundscrappers, Martin Price 3.Simulated Topography, Kelly Shannon 4.Casa Jordi Cantarell, Jubert Santacana

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de Kelly Shannon, Groundscrapers de Martin Price, ou ainda o projecto para o PortoInternacional de Yokohama do Foreign Office Architects, são exemplos da adopção destenovo conceito de fazer arquitectura através da manipulação da superfície dos solos, produzindonovas topografias .

[ Ginásio de Barcelona - Carlos Ferrater ] - O ginásio constrói-se no subsolo donde emergeum conjunto de muros/paredes de betão armado que, vistos de fora, parecem desenharuma escultura na paisagem. São estes muros que permitem suportar o peso do solo, definiro espaço e relacionar, no interior, as diferentes zonas do programa. A presença de um pátiocentral concebido sob a forma de estrela faz com que a luz penetre em profundidade,permitindo, desta forma, ocultar parte do seu traçado, provocando uma difícil percepção daescala desta construção. Trata-se, no fundo, de uma caixa de luz subterrânea que relacionao espaço interior com os jardins do exterior, que aproveita os reflexos da luz na água, eonde os diferentes espaços comunicam visualmente entre si, não existindo qualquer contactovisual com o exterior.

[ Simulated Topography - Kelly Shannon ] – Trata-se de um projecto para a reestruturaçãode uma zona de Amsterdão (Zeebrugerelland), através da construção de uma paisagem, deuma topografia de infraestruturas: um parque urbano, uma zona de lazer. O objectoarquitectónico é ocultado uma vez que a área se transforma numa acção topológica, quedissolve a figura e o solo transformando-os num movimento contínuo. Os percursos pedonaisorganizam-se segundo uma rede multiforme, justapondo diferentes sistemas de movimento(escadas, escadas rolantes, rampas), um sistema de circuitos que entrelaça continuamenteespaços construídos e não construídos.

[ Groundscrapers - Martin Price ] – O projecto constrói-se a partir do conceito de arranha-solos em clara oposição á ideia de construção em altura, inerente ao conceito de arranha-céus. Constitui-se como uma composição horizontal de formas que se relacionam de formamais natural com o solo, que se apresenta no seu estado natural como uma superfícieondulada de colinas e vales. O programa consiste numa série de escritórios, um health club,restaurantes e um hotel. Um objectivo: os ritmos das formas fluidas do terreno devem sera substância inspiradora da forma construída.

[ Porto Internacional de Yokohama – Foreign Office Architects ]- Neste projecto, uma superfícieondulada/dobrada e contínua converte-se em estrutura do edifício e em solo onde decorremuma série de actividades marítimas e urbanas.

Nestes quatro exemplos, são levados ao limite os conceitos que preconizam a ruptura dobinómio figura-fundo, ou a dualidade arquitectura- paisagem. Os solos integram-se na matériaconceptual básica destes projectos.

Está premente uma nova vontade de reformular a natureza, de enriquecê-la e valorizá-laatravés da introdução de novos conceitos de representação e de edificação. Surgem assim,novos impulsos no sentido de criar acções simultâneas entre solo e arquitectura de modo aconverter o solo em projecto, construindo novas paisagens. Abre-se o território a diferentesfluxos, permitindo que energias e substâncias aparentemente contraditórias se fundamajustando-se o artificial à corporalidade do território.

Uma arquitectura aglutinante onde se dissolvem os contornos, dando lugar à criação, nãode belos volumes sob a luz recortados contra o céu, mas sim a novas paisagens construídas.

1.Porto Internacional de Yokohama, Foreign Office Architects 2.Centro Social, Shoei Yoaiju 3.Groundscrappers, Martin Price

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A Invenção do LugarAna Vaz Milheiro *

Posso sair da minha casaE sentar-me naquela pedra,que à noite não tem dono,debaixo das grandes árvores,que à noite não têm sombra.1

Um lugar reconhece-se porque é construído. Quer dizer, existe porque uma construção qualquer o identifica.Essa construção é uma marca, um sinal, um registo de uma vontade em assinalar um fragmento doterritório. Concretiza a ambição que devolve à superfície uma ordem ou uma regra dentro da disformidadeque o território virgem ou já tocado representa. Essa vontade materializa-se a partir da arquitectura. Aresponsabilidade inerente ao exercício da profissão é assim ampliada por essa repetição do gesto, do fazere inventar continuamente o lugar. E não o contrário.

É portanto um equívoco, ou um álibi, muito caro aos arquitectos, evocar-se a presença de um lugar antesda construção. O que se passa é que com o projecto - ou o desenho que configura o pensamento doarquitecto - se definem estratégias que revelam qualidades que antes não eram visíveis. Determina-seaqui, neste preciso momento, a inauguração de um lugar.

No discurso que justifica o projecto, a importância do lugar não pode, assim, ficar reduzida às condiçõespaisagísticas de um território ou às presenças já edificadas e físicas de uma cidade. Muito menos podeser confundida com o conceito de tradição ou continuidade. Nem sequer justificada no âmbito doaperfeiçoamento literal de uma cultura arquitectónica.

O lugar é o fim e não o princípio do projecto. A consciência deste facto transforma a atitude e o acto deprojectar. Principalmente introduz a reflexão de que a intervenção arquitectónica é uma acção irreversível,não exactamente transformadora, antes manipuladora das possibilidades que antes existiam apenas comopotencial, e que foram, num dado processo, detectadas e tratadas como uma evidência. Neste sentido éalgo que se viu e se partilha. Por vezes, mostra-se como uma presença ancestral, ou seja, como se tivesseexistido camuflado, ou sido omitido, e se tornasse urgente recuperar. Outras, como uma novidade, umametamorfose que se assume no sentido da mais valia. Um ganho, portanto.

A atribuição de uma materialidade a um lugar deve assim ser um acto consciente, já que permanente nafunção do arquitecto.

Cada novo projecto é assim um novo lugar. Podem-se transportar geografias físicas ou humanas entreespaços distantes como reflexo de memórias fortíssimas que se assimilam e se querem transmitir. Refazerou desfazer sedimentos consolidados para que se transformem em imagens reconhecíveis. Todos os gestossão então válidos, ou seja, tanto se permitem as intervenções pacificadoras como as de extrema radicalidade.Sem omitir que o que se move é um início. Nesse início está contido o lugar onde, depois de inventado,novas histórias de vidas se principiam estimuladas no sentido da acção. Como no poema de GuimarãesRosa: Posso sair da minha casa, e sentar-me naquela pedra...

* arquitecta, directora-adjunta do Jornal dos Arquitectos

1 João Guimarães Rosa. Regresso. Magma. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997 (1936), p.137.

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Teoria do SítioA propósito de Siza [ a arquitectura está no sítio ] e de Koolhaas [ que se ‘lixe’ o contexto ]

Paulo Varela Gomes *

p 08.09

I

Não há nada, coisa nenhuma, sítio nenhum, lugar nenhum, contexto nenhum, que seja um sítio, um lugarou um contexto. Existe aquela esquina, a outra praça, este ou outro mosteiro, um bosque ou um rio. Masnão existe nada a que possamos chamar sítio - excepto depois desse sítio ter sido produzido enquantosítio por teorias como, por exemplo, a arquitectura. A arquitectura produz sítios mobilizando para isso assuas culturas próprias, as suas histórias próprias, os seus humores próprios. Estas teorias arquitectónicassão configuradas (conformadas) – transformadas em figura e forma, em projecto - pela interpretação quefazem dos acidentes naturais e artif iciais que seleccionam para produzir um sítio.Interpretação e selecção: select, cut & paste.

II

Veja-se o caso da Malagueira, que toda a gente mais ou menos conhece: havia um pequeno vale, algumasárvores e rochas, a cidade ao longe, malhas sub-urbanas consolidadas. Tudo isso se tornou um sítio atravésdo projecto de Siza que "articulou" essas coisas, "cozeu-as", "cerziu-as" (metáforas de ortopedista ecostureira, metáforas de teórico, metáforas de arquitecto). Siza interpretou a cidade de Évora, construindona Malagueira a sua Évora (dele, Siza), cujo traço essencial é um aqueduto que alberga casas sob os seusarcos e liga lugares no seu percurso. Há outras Évoras para produzir, naturalmente: a da Praça do Geraldo,a dos parques de estacionamento e estações de serviço fora da muralha, etc. Mas Siza produziu a sua, ada Malagueira.A interpretação siziana do que é uma cidade alentejana e do que são casas alentejanas foi configuradapela síntese que a cultura de Siza elaborou, nos blocos de desenho, no estirador, na cabeça e no computador,a partir daquilo que o projectista viu e leu no Alentejo com os olhos e o cérebro que a sua história pessoalcriou. Não é uma interpretação (um sítio) arbitrário, produzido de qualquer maneira, porque deriva de umasedimentação conceptual cujos dados de base (cuja “realidade” ou “matéria”) são casas, cidade, livros eimagens vistos e meditados por Siza. Por isso escrevi há cerca de mil caracteres atrás que as “teoriasarquitectónicas (do sítio) são configuradas (conformadas) – transformadas em figura e forma, em projecto- pela interpretação que fazem dos acidentes naturais e artificiais que seleccionam para produzir um sítio”.Todas as Évoras possíveis existem enquanto coisas, bem entendido, ruas, casas, histórias, antes de haverprojecto. Mas os conceitos de Évora (as Évoras-enquanto-conceito, ou enquanto sítio) não existem atéserem configurados. Havia mundo antes da arquitectura, havia paredes, ribeiros, quarteirões. O que nãohavia era mundo-enquanto-lugar, mundo enquanto configuração de signos (projectos, textos, representações)que designam quarteirões, ribeiros e paredes. Isso, o sítio, é produzido pela arquitectura que, para o fazer,exclui certas coisas, inclui outras, selecciona, edita, corta e cola. O sítio em termos arquitectónicos é tantouma construção como o é, por exemplo, um filme: há a realidade, há o guião (o projecto) e há o filme.São três coisas diferentes. O filme não existe sem a realidade e o guião – mas não lhes pré-existe.Quando Koolhaas escreve Fuck the context, limita-se a seleccionar de outra maneira os dados com que oseu projecto quer trabalhar: elimina a história, a sociologia, as árvores e os automóveis de, suponhamos,a rotunda e a avenida da Boavista no Porto, e destaca as geometrias koolhaasianas, por exemplo. Essasgeometrias são contexto, claro, e tão local, tão situado, quanto a avenida da Boavista. Desde logo têmde caber no lote e incorporar o programa.Se fosse encomendado a Koolhaas um edifício para a Malagueira, é provável que ele adoptasse comocontexto (inconfessando-o?) a interpretação siziana, o projecto siziano. Não seria menos contexto por isso,nem menos local.Nem a frase atribuída a Siza, nem a que é posta na boca de Koolhaas fazem sentido – a não ser comoafirmações estratégicas, afirmações de contexto. Mas isso seria matéria para outro artigo.

III

O sítio, o lugar ou o contexto são produtos de uma teoria do sítio. É isso que tanto Siza como Koolhaasfazem: teoria do sítio, ou seja, arquitectura.

* historiador, docente da Universidade de Coimbra e da Universidade do Minho

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ARX Portugal uma natureza própriaPedro Jordão & Rui Mendes

Nuno e José Mateus são já nomes incontornáveisda arquitectura portuguesa. Têm ainda o valoracrescido de terem conquistado um espaço muitopróprio, de terem introduzido no panorama nacionaluma nova forma de ver/fazer arquitectura.

Em 1990, fundam o ARX Portugal, na sala de umapartamento de Lisboa. Mas esse é o segundocapítulo. Há uma primeira parte em que NunoMateus, na altura a trabalhar no atelier de PeterEisenman em Nova Iorque, funda o ARX,juntamente com outros arquitectos de diversasnacionalidades, no que começa por ser umaestrutura internacional, com ramificações em NovaIorque, Berlim, Kobe e Lisboa. Actualmente, arelação dos ARX Portugal com a estruturainternacional é muito ténue. De resto, o ARXsempre foi, na sua essência, um projecto da parceriaportuguesa. Mantêm-se, no entanto, os princípios.

Architexture ou a não hierarquização do território,a perfeita equivalência entre cada elemento. Oua corporização de um pensamento complexo, frutode múltiplas questões. Também (sempre) umaeterna insatisfação. Exploram uma natureza própria,procurando identificar estratégias de desenho queconsigam ser específicas de cada projecto. Cadaprojecto tem a sua essência muito particular, asua história, as suas vontades. A sistematizaçãoestá nas questões e não nas respostas.

Tal não significa que cada projecto seja um actoisolado. As experiências anteriores são tomadascomo suporte para novas investigações. Dão-nospistas necessárias para a análise. A especificidade

de um projecto é justificada pelas diferentesquestões levantadas pelo programa, pelo contexto,pelo cliente, pelas referências importadas. Essaestratégia parece estar para além da esfera dalinguagem e das formas. Por detrás das aparênciasplást icas – associadas por a lguns aoDesconstrutivismo – existe a ideia de um espaçodinâmico, de referências inter-disciplinares, de ummétodo muito particular.

Começaram à distância, estando José Mateus emLisboa, quando desenvolveram o projecto da casade Melides para os seus pais. O projecto é elaboradocomo se de uma laranja se tratasse – Nuno Mateustrabalha a forma da laranja, isto é, estuda asformas, as vibrações, o significado formal, enquantoque José a descasca, ou seja, testa o programa,analisa o significado dos espaços, trabalha odesenho, o layout.

O projecto de Berlim, com Daniel Libeskind é outraexperiência modeladora. À rigorosa disciplinaherdada por Nuno Mateus do seu trabalho comPeter Eisenman, acrescenta-se agora um sentidode absoluta liberdade, de sonho e utopia. Deambos, retiram um forte simbolismo presente nametodologia de projecto. O uso de referênciasaparentemente arbitrárias. Linhas imaginárias,malhas, analogias.

Na arquitectura ARX, a crítica não se traduz numaresolução injustificada, gratuita. Busca possibilidadesno vasto campo de acção da arbitrariedade. Umtradicionalista diria que a importação de umareferência, como as malhas utilizadas no projecto

ARX ou ARchiteXture. Arquitectura, Texto, Textura. A génese dos ARX Portugal está nestas palavras,no que representam. Uma arquitectura de investigação, de experimentações. Uma arquitectura quequestiona e arrisca respostas. Em gestos que, longe se serem automáticos, se regem por princípios epreocupações permanentes.

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legenda: Casa de Melides | Projecto de Berlim | Loteamento para residências em Alhos Vedros | Casa na Aroeira

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para Berlim, nomeadamente a malha do poder, éarbitrária, não tem razão aparente de existir. Estaopinião só é possível por não encontrar no elementopoder uma justificação para o desenho urbano daídecorrente. A arbitrariedade olha atenta para todosos valores do mundo. Despe-os do seu vestuário,formado pelas opiniões e conceitos aprisionadosno passado. Só a memória os conhece.

Em projectos como o Pavilhão de Portugal na Expo92 ou os Laboratórios do Polo de Mitra daUniversidade de Évora, essa carga simbólica éóbvia. O projecto para a Faculdade de MotricidadeHumana da Universidade Técnica de Lisboa é outrocaso paradigmático. À falta de referências no local,criaram o seu próprio contexto. Fundiram a ideiade motricidade, a partir do uso de cronofotografias, à ideia de um novo mapa de Lisboa, simbólico,ligando pontos diferentes de imaginários comuns– Poder, Mito, Morte, Fogo, Água, História, Corpo,Memória, Natureza e Dinheiro. Desenhado, estenovo território torna-se real. O projecto partedaqui. De resto, a sua relação com o lugar partesempre de um esforço de o reestruturar, atravésda importação de referências várias.

Há também um processo de projecto claro. Aestratégia de desenho aparece quando trabalhama percepção, o estímulo no movimento ou a malhae o diagrama, assim como o objecto, elementoimportado, ou ainda uma forma no espaço, semprefragmentada, tanto pelo deslize como pelo fractura,sempre estudando tensões, procurando-asp r i n c i p a l m e n t e n a d i c o t o m i aestabilidade/instabilidade. Procuram ainda incluirno processo, o mais cedo e rigorosamente possível,a parte construtiva.

E há ainda a maquete, a primeira construção, aprimeira resistência ao tempo; abranda-o. É umelemento que facilmente dissipa dúvidas. Por issoa sua produção incessante, do início ao fim.Começam com maquetes embrionárias, ondeestudam a vibração de uma massa que ainda nãoé volume definido. Recorrem, depois, à construção

de sucessivas maquetes para extraírem uma sínteseda ideia formal. Por fim, as de carácter maisconstrutivo, aproximando-se do real. Por vezes, amaquete final, para comunicar.

O Museu Marítimo de Ílhavo permanece, para já,como a mais significativa obra dos ARX. É umedifício de grande beleza, virado para dentro, nãosem antes reestruturar o lugar onde se insere. Oespelho de água do pátio, o elemento mais íntimo,faz a ligação entre os volumes justapostos,destacando-se a sala das exposições temporárias,um volume autónomo que parece flutuar.

Entre as principais obras construídas encontram-se ainda, o projecto expositivo para o Pavilhão doConhecimento dos Mares, na Expo 98, a CentralDigital de Porto Salvo e as casas Rosa, Grândolae Romeirão. Esta última, em construção, é umbelíssimo exemplo de fusão entre construção epaisagem, parecendo romper do solo, debruçando-se sobre o horizonte. Neste momento trabalhamem diversos projectos, dos quais se destacam aBiblioteca Municipal de Ílhavo, a Escola Superiorde Tecnologia do Barreiro, e os Centros Regionaisde Sangue de Coimbra e do Porto.

Os ARX têm o valor próprio de quem experimenta.De quem não se acomoda a convenções. Antesprocuram libertar-se do que parece ser já um dadoadquirido. Tentam ir para além do espaço cartesiano,buscam novas materialidades. Criam novascondicionantes ao projecto, não hesitam em sonharde novo o que lhes é imposto. E conseguem partirde uma rara complexidade para uma simplicidadeevidente. É uma arquitectura de camadas, que seacumula em obras belas e genuínas. Sempre coma mesma consciência – a arquitectura deveresponder ao seu contexto e exprimir aspreocupações dos seus tempos.1

1 Frédéric Levrat, ARX Portugal – Uma Segunda Natureza,pág. 07; Blau, 19

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[ entrevista ]

Existem, no vosso trabalho alguns conceitosou objectivos permanentemente presentes?Já se pode dizer que há um estilo ARX?

Nuno Mateus_ Eu acho que é mais um modo deestar na vida profissional. Uma certa insatisfaçãometodológica, permanente, de cada projectocomeçar do zero. Tentar que cada projecto sejagenuíno em si, tenha a sua própria história, o seupróprio universo de ingredientes dados à partida– o contexto, o programa, os clientes, aproveniência... Essa é uma ideia mais ou menossistemática de recorrência. Nós próprios temosdiscutido essas questões da recorrência, queobviamente existem, porque existe uma memóriae é difícil trabalhar sempre fora dela. As recorrênciasque nós temos, e desde logo a palavra ARX, ouArchitexture, têm a ver com uma ideia de nãohierarquização do território, uma democratizaçãoda geometria, de certo modo. Todos os pontos sãoiguais, não há perímetro, não há centros, não háeixos... É uma espécie de equivalência de cadapixel, de cada plano... É o que chamamosarquitextura, desmontável em três grandes palavras– arquitectura, texto e textura.

José Mateus_ No início, como quaisquer jovensarquitectos, vivíamos de um modo mais tenso comessa questão, porque, quando um atelier está ainiciar-se, tem um problema de identificação muitoclaro. Quer desenhar uma série de coisas, querconstruir uma série de coisas que caracterizem oque é o seu trabalho. E cada projecto de um jovemarquitecto é, normalmente, muito sobrecarregadode intenções. Hoje em dia estamos mais tranquilos.Perceberão melhor o que é a nossa arquitecturaobservando cinco ou seis projectos lado a lado.Com o tempo, passámos a ganhar a consciênciade que tínhamos que nos libertar desse stress. Poroutro lado, mantivemos a nossa característica desermos autocríticos, no sentido em que valorizamosmuito o experimentar. Há algum tempo li um textodo [escultor basco Eduardo] Chillida em que eledizia que valoriza menos a experiência e mais oexperimentar. E isso interessa-nos bastante. Somosassim. Estarmos a fazer sempre a mesma coisa,

sempre numa determinada lógica, não nosinteressa. E depois existem as coisas que vemos,as coisas que lemos, as coisas que ouvimos, queacabam por ajudar, em cada caso, a desenhar umprojecto. Às vezes aparecem de um modo muitoclaro, outras vezes estão cá na nossa bibliotecamental, mas criando situações específicas em cadaprojecto. E só sabemos qual é esse tipo deespecificidade quando estamos completamenteobcecados por aquele projecto que vamos construir,por aquela ideia. Ideia essa que deve ser tão forteque permita todas as coisas que num processo deprojecto podem entrar e subverter. Houve épocasem que andávamos muito interessados em algumascoisas do [artista plástico francês] Marcel Duchampque acabavam por também entrar, ou terconsequências, na nossa produção.

NM_ Ao falarmos do seu Nu Descendant LesEscaliers, estamos a falar de questões de dinâmicamuito associadas ao cubismo e à cronofotografia,que tinham para nós implicações, no sentido emque a arquitectura é, por excelência, estática.Muitas vezes, o desenvolvimento conceptual utiliza,como método, o oposto como motor de procura.E essa questão da dinâmica, ou da não estabilidade,é uma questão que eu considero estar tão presentehoje como há dez anos atrás. A relaçãoestabilidade/instabilidade é uma procura de tensãoque nós estamos e continuamos cada vez mais aprocurar como um lugar de dimensão e poética donosso trabalho. Eu diria que, a certa altura, nósadaptámos a um certo tipo de construção, umconceito. E a experiência leva-nos a poder ir maislonge com essas investigações. Aliás, a parteconstrutiva começa a ser integrada muito maiscedo no sentido conceptual. No meio dos nossosprojectos, há alguns que são parte da mesmafamília, em que a arquitectura é feita de matériamoldável. Seja ela qual for, é matéria moldável.O espaço cartesiano é muito interessante, temuma série de possibilidades, mas obviamente temlimitações, sobretudo quando trabalhamos comescavações, com luz, com toda uma série de ilusõesna aplicação das materialidades do edifício. Euacho que os nossos projectos começam a ter umadiversidade cada vez maior. Estamos, por umlado, a tornar os projectos e as construções mais

legenda: Casa de Grândola | Casa Six | Casa em Peniche | Escola Superior de Ciências Empresariais de Setúbal

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simples e, por outro, a torná-las cada vez maistensas e complexas. Que é uma coisa que semprenos interessou muito e continua a interessar, acomplexidade. E o [Álvaro] Siza disse isso melhorque ninguém – o simples é o oposto do simplismo.E isso é extremamente interessante, porque defacto o simples e o complexo podem ser uma eúnica coisa.

Vendo o processo de algumas das vossasobras, como a Faculdade de MotricidadeHumana da Universidade Técnica de Lisboa,o que se conclui é que vossa relação com osítio passa muito por uma reestruturação doterritório. Se necessário, criam-se linhasimaginárias ou malhas que não têm umarelação directa com aquele sítio. Há uma cargasimbólica muito grande...

JM_ É algo que acontece caso a caso. Neste,tratava-se de construir um campus universitáriodo qual a FMH era um dos edifícios, numa encostamais ou menos na franja do pinhal de Monsanto,bastante desreferenciada e não urbana, mas queiria adquirir uma certa urbanidade com estasconstruções. Há uma ideia de motricidade, demovimento, que, para além da relação óbvia comuma FMH, surge também de alguns trabalhos eestudos que, nessa altura, nós vimos e lemos. Umdeles tinha a ver com trabalhos de cronofotografiado [fisiologista francês] Étienne-Jules Marey, queproduziu inúmeras imagens de um figurante vestidode negro com linhas brancas e pontos nas rótulas,produzindo um movimento que é registado nachapa, numa sequência dos seus vários momentos.E nós apropriámo-nos dessa ideia. Pegámos emcronofotografias, desenhámos sobre elas. Por outrolado, andámos a investigar um mapa possível deLisboa. Não aquele que conhecíamos no sentidomais convencional, mas construindo outro contexto,ligando pontos edificantes. E as linhas desse mapa,que se cruzavam no terreno de implantação,sobrepondo-se ao desenho da cronofotografia,foram o ponto de partida para o desenho da FMH.Já que as referências no local não eramparticularmente interessantes, decidimos levaroutras para lá. Uma tinha a ver com a próprianatureza da Faculdade – a motricidade. E outra,

com a cidade em que se estava a construir essecampus.

NM_ Isso tem a ver com uma questão muitointeressante, a que por vezes se dá pouco valor,que é o facto de todos nós lidarmos muito commapas. Quando viajamos para uma cidade,chegamos a um sítio qualquer, compramos ummapa e acreditamo-lo como bom. E depoispassamos o resto da viagem a contrastar o mapaque comprámos com a cidade em que caminhamos.Quando eu trabalhei com o Daniel Libeskind, pudereparar que ele desmontava essas noções de umaforma muito interessante. A certa altura, oLibeskind, num concurso qualquer, andava muitointeressado numa obra do [pintor suíço] Paul Klee,o Angelus Novus, que era um desenho original do[pensador alemão] Walter Benjamin que tinha sidovendido e revendido vezes sem conta, mas sempreem Berlim. E então, ele fez uma coisa muito simplesque pode ser feito de uma forma qualquer – ligouos pontos, temporalmente. E pode-se fazer ummapa desse percurso. E a partir do momento emque é desenhado, esse mapa existe, passa a serreal, pode-se inclusivamente vendê-lo a turistasque queiram passear pelos mesmos sítios doAngelus Novus, vendo a cidade dessa perspectiva.Mas se dissermos que vamos ver a cidade atravésde uma linha recta, vamo-nos surpreender muitocom a cidade que vemos. São vários mapaspossíveis. Há livros fantásticos sobre essashipóteses, como As Cidades Invisíveis do ItaloCalvino, que de algum modo montam e desmontama ideia do que é um mapa, do que é a realidade.A realidade é aquela que escolhemos. Quandofomos para o pinhal de Monsanto, onde não hámuito mais do que pinheiros, prostitutas e unstipos que vão parando, tínhamos uma planta deum campus desenhada por um qualquer ilustrearquitecto. E nós íamos para o pinhal, levávamosaquela planta, com aquela organização, e aquiloparecia não ter haver com nada. Nãocompreendíamos o pinhal, nem como é que sepunham estádios e campos de futebol num terrenoinclinadíssimo... Aquilo não parecia natural. E entãocomeçámos do princípio, que é o que fazemosmuitas vezes. Íamos fazer uma FMH. Precisávamossaber o que era motricidade e qual era o mapa de

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Lisboa. E foi por essa via que chegámos a esseresultado. E acabou tudo numa boîte-en-valise,não inocentemente... Pediam-nos os dossiers,painéis de desenhos e uma maquete. Portanto,aquilo tinha exactamente três caixas – nóschamávamos-lhe a nécessaire. Era um pequenoconjunto de viagem para aquela viagem emparticular. Fizemos um trabalho em queacreditávamos muito e que nos foi bastanteprodutivo. A isto acresce o facto de nós – e istonão é muito falado nos meios supostamenteinteligentes e informados da arquitectura –trabalharmos com imensa alegria, o que para nósé completamente determinante porque temos quevir para aqui todos os dias. A alegria é qualquercoisa que se inscreve no trabalho, é mais uma dascamadas de informação. Alegria e liberdade sãocoisas de que não abdicamos. De resto, tentamosrevestir o trabalho de um sentido de profissionalismomuito grande, cumprindo prazos, cumprindoorçamentos. Obviamente, cumprir também a nossafunção de arquitectos na sociedade.

Aplicaram uma vez uma metáfora ao processodo vosso primeiro projecto – a Casa deMelides, dos vossos pais. Seria como umalaranja, em que o arquitecto Nuno Mateustrabalharia a casca da laranja, ou seja, aforma, o significado formal, enquanto que oarquitecto José Mateus iria depois descascara laranja, testando o programa, afuncionalidade, o desenho. Qual é ametodologia que os ARX empregam no seutrabalho? Há algum campo específico de acçãopara cada um?

JM_ Nós usamos essa metáfora, por vezes. Quandodesenhamos um projecto, há sempre muitaescavação, em que o exterior tem uma determinadaexpressão e quando escavamos aparece o interiorda laranja ou da maçã. Mas nesse projecto o queefectivamente se passou, é muito simples. Doisfilhos, arquitectos, ambos queríamos fazer oprojecto da casa dos pais, como é natural...

NM_ Ao princípio...

JM_ Sim, ao princípio. No fim, ninguém queria...

Mas o que aconteceu foi que eu iniciei o processocá, com o meu pai, a fazer uns primeiros desenhos,maquetes, já a tentar dar uma forma à casa, quejá estava mais ou menos dissecada por dentro epor fora. Depois, enviei fotografias e desenhos aoNuno e ele trabalhou naquilo para que estava maistreinado, que era introduzir uma investigação maisao nível do conceito do que a casa poderia ser.Porque eu tinha pensado num sentido maisescultórico mas mais limitado na relação entreuma forma que começava a ganhar algum sentidoe o conteúdo em termos de distribuição espacial.Depois o Nuno fez o seu trabalho em Nova Iorque.Depois, curiosamente veio e naquele caso até foio Nuno que acompanhou mais a obra.

NM_ Essa pergunta contém uma questão muitoimportante e muito interessante. Eu não souespecialista numa coisa e o José noutra. Aliás, eunem saberia dizer como é que trabalhamos aquia esse nível. Nós estamos a trabalhar em simultâneoem dez, doze projectos de escalas muito diversas.Obviamente, nos projectos mais pequenos hásempre um ou outro a levá-lo mais. Mas fazemoscomo toda a gente aqui mo atelier, maquetes,desenhos, no computador, fora do computador, oalmoço... Nos projectos maiores varia muito. Seum projecto é grande e tem um curto espaço detempo para o resolver – habitualmente o caso dosconcursos – tendemos a desdobrar certosconteúdos, certas áreas de abordagem do projecto.Se fosse uma pessoa só a fazê-la, teria que pararde fazer a maquete do contexto para ir tratar dospapéis da burocracia ou parar para ler o programade ponta a ponta. No fundo, o que nós fazemos éessa partição do que uma pessoa sozinha temforçosamente de fazer. E depois vamos articulandoa par e passo. Nós começamos por dar instruçõesmuito simples às pessoas que trabalham aqui.Começam por fazer uma leitura do programa econstróem volumetricamente todas as áreas doprograma, as quais codificam, identificam porcores, enquanto que outra pessoa está a fazeruma maquete do contexto. E depois de nós termosaquele imaginário e aquele contexto e aquelesingredientes fisicamente aqui, no atelier, muitasvezes ficam aí em cima de uma secretária, duranteuma semana ou duas, e vamos todos, consciente

legenda: Museu Marítimo de Ílhavo | Museu Marítimo de Ílhavo | Centro Regional de Sangue de Coimbra | Escola

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ou inconscientemente, trabalhando nisso. Ainformação passa a estar residente. Depois,consoante a disponibilidade, começa-se.

JM_ Vai-se discutindo. Temos a preocupação deestar sistematicamente a pedir opinião ao outro ea perguntar-lhe o que está a fazer e a contar asideias que têm ocorrido. E tentar ter sempre amente aberta para o que é a sensibilidade do outropara aquele problema que estamos para ali sentadosa tentar desenhar.

NM_ Outra coisa que existe como metodologia, éque, quando um entra num projecto do outro,entra sem grandes cerimónias e começa a trabalharcomo se fosse seu. Não é a deferência entre nósque nos vai levar muito longe. É justamente oespírito crítico, um enriquecimento mútuo queestendemos às pessoas que trabalham connosco.Neste momento, no maior projecto que estamosa desenvolver, que é a Escola Superior de Tecnologiado Barreiro, o conceito sobre o qual estamos atrabalhar não foi encontrado por mim nem peloJosé. Foi encontrado por um arquitecto que trabalhaconnosco há muitos anos e que está imbuído nesteespírito. E ele sabe que estamos a trabalhar numprojecto em que a descoberta foi feita por ele,mas cabe-nos a nós providenciar um lugar em queessa descoberta possa acontecer. E eu fiquei comuma alegria imensa, porque esse objectivo dosARX está a funcionar, no sentido em que albergaoutras pessoas como parte integrante desta grandetextura que é fazer um trabalho a partir de umcorpo de trabalho. Isto é tudo muito informal, aspessoas são bem tratadas e maltratadas, massempre num sentido muito horizontal, de igualdade.Não me interessa andar a impor coisa nenhuma.Não aprendo nada com isso. O que me interessaé acrescentar alguma coisa ao dia a dia.

As maquetes têm uma enorme importânciano desenvolvimento dos vossos projectos,são um instrumento de trabalho com o qualtêm uma relação muita intensa...

JM_ As maquetes têm a vantagem de teres oobjecto na mão e de lhes poderes mexer erapidamente alterar. Uma representação

tridimensional em computador está-te distante aum certo nível e o desenho bidimensional éobviamente limitado em termos de antecipaçãodo que é o objecto, sobretudo quando as geometriassão muito complexas. Desde o início de cadaprojecto há a maquete do sítio e a maquete doprograma. O que é a maquete do programa? Oscadernos com programas preliminares de edifíciosde grande dimensão, por exemplo, têm umalistagem de espaços com as áreas respectivas. Sóque às vezes são centenas de compartimentos. Eo que passámos a fazer foram volumes, a umaescala qualquer, de cada parte funcional do edifício.E depois, em primeira análise, empilhamos sobreo terreno, fazemos as primeiras constatações. Nóscostumamos brincar com o facto de que, hoje emdia, faz-se muito o projecto para se chegar ao fime ter-se uma caixa. Nós começamos com umacaixinha e no fim, até pode haver uma caixinha,mas fomos buscar muitas outras coisas. A maqueteé um auxiliar extraordinário na nossa metodologiamas não é tudo. Nós desenhamos como os outrosarquitectos. Saltamos é constantemente do desenhopara a maquete e da maquete para o desenho,havendo sempre inúmeras maquetes em cadaprojecto, que acabam invariavelmente em maquetesde obra, que podem ser troços à escala 1:50 daestrutura desse edifício, o que é muito útil paradescobrir contradições entre o projecto dearquitectura e o projecto de estruturas, podem serfragmentos do edifício à escala 1:20 ou um detalhemuito completo. E, por vezes, no fim do projecto,há a maquete de representação global.

NM_ Isto é a descrição. Quanto à motivação, eudiria que, uma maquete é para ver, outra é paraconstruir e, no meio disso, é para pensar. E no fimé para comunicar. Percebemos os projectos são,têm de ser, cada vez mais rápidos. Para contrariaresse sentido da velocidade dos dias que correm,utilizamos a maquete, que no fundo reivindica umacerta lentidão. Uma maquete está sempre à vista,não se desliga, como um computador. Como o[Fernando] Távora diz, fazer as tripas comoantigamente, fazem-se de um dia para o outro,não se fazem no mesmo dia. Essa lentidão tem aver com o tempo da sua construção, que é maislenta que um esquiço. Essa lentidão leva-nos a

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a fazer e com as decisões que se estão a tomarem relação à sua construção. Nós fazemosmaquetes em todas as escalas, em todas as fases.Por exemplo, nós tentamos, tanto quanto possível,que arquitectura e estrutura sejam uma mesmacoisa, que a arquitectura esteja toda inscrita naestratégia estrutural. E a maquete serve paraapanhar os erros todos antes de ir para a obra. Éuma espécie de protoconstrução, em plástico,cartão ou madeira.

JM_ E há ainda o potencial da comunicação damaquete com o cliente. Muitos dos clientes quechegam cá, não fazem a mínima ideia do tipo dearquitectura que nós desenhamos. Alguns pensamque sabem. Se o cliente entrar no processo econseguir perceber o projecto que está a serconstruído aos poucos, vendo as maquetes, sente-se mais seguro e lentamente vai-se inscrevendona sua mente que, afinal, a casa é um bocadodiferente do que pensava. Porque, ao fim e aocabo, nós não somos ilustradores dos desejosmuito precisos que eles trazem. Naturalmente quehá o programa e alguns aspectos que são concretos.Mas nós procuramos determinadas lógicas dearquitectura que gostamos de reafirmar e deinvestigar.

Que influências subsistem resultantes dacolaboração do arquitecto Nuno Mateus como Peter Eisenmam e de ambos com o DanielLibeskind?

JM_ No início do atelier, e com a tal insegurançado jovem arquitecto, as influências dos ateliersem que trabalhámos e cujo trabalho andámos afazer, obviamente que eram fortíssimas...

NM_ Eram o produto da educação, o produto donosso passado. Com o tempo essas influênciasforam tornando-se mais intrínsecas, menos visíveis.Claro que, depois de quatro anos a trabalhar como Eisenman, eu era um eisenmaniac. Só poderiaser. Curiosamente, quando estudei em Columbia,estudei com o Eric Owen Moss, com o Thom Mayne[dos Morphosis] e com a Zaha Hadid. Fiz umprojecto à la Moss, um projecto à la Morphosis eum projecto à la Hadid. A última vez que lá fui,

era só coisas em plástico tensionado. Tinhamtrazido uns alemães quaisquer e estava tudo afazer aquelas coisas, tudo muito interessante, tudomuito igual. Parecia que estava a mesma pessoaa trabalhar em quarenta cadeiras. E se forem aosítio onde o Steven Holl está a dar aulas, andatudo a descofrar betão e a oxidar cobres e adescolorir plexiglass. O que lhes dá uma culturae um assimilar de saber que é importantíssimo.Para mim, são dois grandes mestres que meensinaram muitíssimo. O Eisenman deu-me umsentido de disciplina tremendo, de organizaçãomental de ideias e noções. O Eisenman trabalhacom grandes preocupações, estranhamente, deprograma e de noções mais poéticas, quasefenomenológicas – quero um hotel que pareçauma corda que se parta e se desfie... E depois nóstentamos dar corpo a isso num sentidoarquitectónico, para depois organizá-lo num sentidoconceptual. Com o Libeskind, a história éradicalmente diferente. O Libeskind é uma espéciede anjo, um Angelus Novus. O Daniel Libeskind éum gigante mental. É um poeta da arquitectura,em que a liberdade é absoluta, em que a matériafísica tem tanto valor como outros tipos de matériasquaisquer e fazem todas parte da concepção e daexperiência arquitectónica. O Libeskind é formadoem música – aos treze anos tocava Bach noCarnegie Hall. Era um menino-prodígio da música.Tanto que se formou tardiamente em arquitectura.E a relação que tem com a arquitectura é muitocanalizada através da experiência que tem com amúsica, que lhe abre um espectro cultural muitodiferente. A nossa relação com ele foi de umadilatação, de uma abertura de possibilidadespróprias dos poetas – O quê, não se podem fazerângulos? Não se pode fazer? Então já não meinteressa. Esse tipo de relação com o mundo daspossibilidades tem muito que se lhe diga, não digoque seja o que me interessa. Mas interessou-meimenso e foi um excelente complemento da minhaeducação. Mas neste momento, nada nos influenciamais do que o trabalho que está em curso, emconstrução e dos trabalhos que estão completos.Aqueles em que as pessoas já começaram a dizermal ou bem ou assim assado – normalmente émal e bem assim assado... Nada nos influenciamais do que a obra feita. Recentemente temos

legenda: Escola Superior de Tecnologia do Barreiro | projecto expositivo para o Pavilhão do Conhecimento dos Mares |

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trabalhado muito com estruturas navais – naExpo98, no Museu Marítimo de Ílhavo...Construímos intensamente em estaleiros navaisreais. Trabalhámos com geometrias incríveis, comas quais tínhamos dificuldades em trabalhar,enquanto que aqueles velhotes com um ar dequem não sabem o que é um computador, sabemmuito bem o que é uma curva com umacomplexidade tremenda. E sabem regrá-la e sabemlê-la em tamanho natural desenhada no chão. Nós,na construção naval, podemos ver e caminharsobre os nossos desenhos em tamanho natural.Aquilo é uma percepção para a qual não estamospreparados. Uma construção naval é, seguramente,uma influência incrível.

JM_ Tudo o que podemos retirar, tudo o queencontramos bem feito, influencia-nos. Não temosproblemas nenhuns em receber todas as coisasbem feitas na nossa mente e incorporá-las nonosso trabalho. Isso faz parte da nossa educação,esse assimilar da cultura. E as coisas podemaparecer no nosso trabalho, de um modo mais oumenos consciente. Certamente não será com o talsentido de heterónimos – agora vou fazer umprojecto à la não sei quantos.... Trabalhamos semproblemas e com um sentido de experimentaçãomuito grande. As nossas influências, amanhã, secalhar já são outras. Eu não sei o que é que vamosver hoje à noite...

Há uma pergunta inevitável. Qual é a vossaposição re lat ivamente à f requenteclassificação dos ARX como a face portuguesado Desconstrutivismo?

JM_ Sabem quantas vezes é que eu e o Nunofalámos do Desconstrutivismo? A propósito de umqualquer projecto nosso nos últimos dez anos?Acho que nenhuma. Eu acho que isso énaturalmente uma observação que se faz emvirtude das nossas referências, nomeadamente opassado com o Peter Eisenman ou com o DanielLibeskind. Ou de aspectos do nosso trabalho, porser mais fragmentado ou por ter enfoquesdiferentes. É a diferença entre alguém que sepreocupa com uma caixa do [artista plástico

americano] Donald Judd e outra que perseguequestões eventualmente mais ligadas à dinâmicaou a gestos mais fragmentados. É uma relaçãoque não existe. Nem sei se é bom ou mau... Éestranho. Como foi estranho para os arquitectosque foram inseridos nessa lógica.

NM_ A necessidade de classificar não tem um mauobjectivo. A intenção é a de nos organizarrelativamente às coisas. E, por definição, toda aclassificação é simplificadora. Obviamente, nãovão abrir uma gaveta por cada conteúdo. Éforçosamente simplista. Mas já lemos coisas quenos surpreenderam muito mais, obviamente feitaspor pessoas que não tinham lido nada sobre oDesconstrutivismo. Para nós não é uma coisa quetenha grande importância.

A imagem ou informação tornou-se maispoderosa que o objecto 'real'. É uma frase doFrédéric Levrat, contida no vosso livro, UmaSegunda Natureza. Isto define um pouco ocontexto que se vive actualmente naarquitectura. Como é que os ARX actuamneste contexto?

NM_ Em 1993 fizemos uma exposição no CCBintitulada A Realidade-Real, quando muito se falavana Realidade Virtual. Que serviu, em parte, parapercebermos o que era a arquitectura. Obviamenteque a arquitectura pode ser muita coisa, mas oque essencialmente me motiva é a construção deum contexto físico, seja urbano ou não. É a suaimplicação última, o edificado. Também na nossarelação com a representação, ou por ignorânciaou por metodologia, acabamos por privilegiar osobjectos concretos, nomeadamente a maquete.Nós fazemos muito mal perspectivas emcomputador, acho que em todos os concursos quefizemos, em todas as tentativas, o resultado foidesastroso. Aqui privilegiamos a questão física, doobjecto tangível. Eu não acredito muito em frasesvisionárias sobre a arquitectura. O nosso tempotem coisas próprias deste tempo e de outrostempos. Tal como eu sou um produto de uma sériede coisas próprias de um tempo e de um percursoe das pessoas que me ensinaram a ver.

Casa Rosa | Casa Rosa sequência do conceito | Centro Regional de Sangue do Porto estrutura geral

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Projecto para umaGruaPedro Ressano Garcia *

Neste fim de século, assistimos ao declínio da eramecânica. A maior parte do trabalho produzidopor máquinas tornou-se computadorizado edigitalizado. As primeiras máquinas industriaisestavam relacionadas com a experiência humana,com a percepção dos seus movimentos, como sede extensões do próprio corpo se tratassem. Asmáquinas representam o mais emblemáticoelemento do período moderno, a vitória dahumanidade sobre a natureza. Hoje, muitasmáquinas, actual izadas pela tecnologiacontemporânea, perderam essa qualidade.

As máquinas estão constantemente a evoluir,substituindo versões anteriores. A maquinariaultrapassada é desmantelada confrontando-noscom uma importante questão - o que devemosfazer com as sobras. Este trabalho explora apossibilidade de reciclar máquinas que estãoultrapassadas e obsoletas, investigando umaespecífica, a grua de contentores. Dum primeiroexemplo surgem soluções para outras pesquisassobre os movimentos e as potencialidades destesobjectos.

Como a criança que observa uma escavadora adevorar o pavimento durante a construção de umaestrada, há algo mágico no observar da acção. Umacto que é mecânico, claro, honesto ecompreendido. Assim é a grua, incrivelmenteeficiente e poderosa, no entanto já obsoleta. Asgruas mudam permanentemente e a mais recentegeração é muito diferente da primeira. Sãoestruturas que se expandem e contraem, tendode ser constantemente adaptadas a novos usos.

Os portos transformaram as cidades, tal como ocontentor transformou os portos. As estruturasindustriais deixaram memórias. Influenciaram apaisagem urbana, criando arquitecturas dereferência e marcos simbólicos ao longo da frentemarítima. Cada porto é o resultado da especificidadedum lugar e adquire um papel singular nacaracterização da paisagem urbana. As gruas, pelasua localização estratégica, acrescentaram umnovo significado à paisagem da cidade. Foramdescritas como torres-com-a-forma-de-cavalos,supostamente a inspiração visual para alguns dosmonstros mecânicos na saga da Guerra das Estrelas,de George Lucas. Sendo apenas máquinas, têmuma presença urbana e influenciam a imagem dascidades (ou a fachada imaginária das cidades).Robert MacCarter argumenta que a máquina é aresposta do Homem à sua alienação da Natureza,não a sua causa. A máquina é o mesmo tipo decoisa como edifício; não lhe é pedido que pareçaalgo mais, mas sim que desenvolva o seu própriopotencial expressivo.

Robot reproduzindo a totalidade dos movimentos do braçohumano, NASA 1987

Gruas no livro de fotografia de Werner Lindner, 1923,referenciado por Mies Van der Rohe

Gruas Portuárias publicadas por Le Corbusier em Versune Architecture

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O problema

A nova geração de barcos requer dragagens ou cais de águas profundas. O Canal do Panamá já nãocomporta a dimensão dos novos barcos, que cresceram e transformaram a organização e o aspectofísico dos portos industriais, tornando-se similares em todo o Mundo. Os navios de contentores evoluírame nos últimos dez anos duplicaram de capacidade, o que significa que as gruas também tiveram deduplicar o seu tamanho. Estas modificações representam custos adicionais e mudanças importantes naactividade do porto. As autoridades portuárias discutem o futuro, estudam alternativas, mas éeconomicamente mais viável, e também mais fiável, comprar novas gruas em vez de adaptar as velhas.Algumas estruturas estão à venda, outras estão abandonadas, mas a maior parte está a ser desmontada,apagando da memória colectiva a moderna visão do porto.

Vista da cidade para o porto

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O carácter do local

O porto teve a sabedoria e a fortuna de estar nocentro de todos estes cruzamentos. Ar, mar eterra, caminho-de-ferro e estrada, encontram-senum sítio. A geografia encontra-se no coração dacidade portuária. Localizada na margem a cidadeviu o seu desenvolvimento ligado, desde o início,à linha de costa onde os cais foram construídos,dando as boas vindas ao progresso. O local é oresultado destas ligações e o projecto interpretao genius loci deste ambiente específico, recriandoo sentimento mecânico do porto e a materialidadedas máquinas. Embora se trate de um local atraente,o Porto Industrial é geralmente inacessível. Hoje,ele separa a cidade da água, criando uma barreira.Mas em muitos casos está a iniciar um processode utilização pública.

A proposta

O projecto investiga uma possível transformação,com o objectivo de reciclar uma grua e oferecersoluções alternativas para o problema dodesperdício, simultaneamente questionando quetipos de problemas são abordados ao reciclar esta,ou qualquer máquina no geral. Que fazer com osrestos de uma sociedade moderna que tanto investiue tão profundamente acredita na era mecânica?Como pode esta poderosa e produtiva grua tornar-se num objecto inútil? É possível adaptar a umanova utilização uma estrutura concebida paraexecutar uma função tão específica?

As discussões com os construtores da gruaencorajaram o desenvolvimento de um processode metamorfoses para sua reutilização. Pesandoaproximadamente 800 toneladas, está preparadapara transportar contentores de 50 toneladas. Agrua é uma estrutura flexível e qualquer adição aesta construção terá que respeitar seusmovimentos, valorizando o seu potencial expressivo.Qualquer rigidez nas partes adicionais torná-la-iasmuito vulneráveis. Algumas partes estão suspensas,outras apoiadas à estrutura principal.

Como fazer então uma adição à estrutura existente?Algumas adições clamam diferenças entre o prévioe o novo, outras misturam camadas de intervenção,criando novas identidades. A estratégia desenvolveuma justaposição de sistemas, transformando amáquina num edifício, já que as evoluções maisrecentes nos materiais de construção já nãoresultam da descoberta de novos materiais masda sua mistura.

Maquetes metálicas

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Se a estrutura da grua é similar à estrutura de umanimal, é necessário conhecer os ossos, as suasrótulas e a possibilidade de habitar o interior deum animal gigantesco. Simultaneamente, asautoridades portuárias a comunidade civil e asmunicipalidades estão a procurar transformar áreasindustriais fechadas em áreas públicas acessíveis.A criação de espaço público acessível nas zonasribeirinhas é uma tendência irreversível, mas quetipo de espaço e para que público? Recuperandoo espírito do desenho de Ribart para o GrandKiosque à la Gloire du Roi, o projecto propõearticular compartimentos, percursos, escadas eelevadores, para act iv idades públ icas.

A sobreposição do sistema biológico do cavalo aomecanismo existente sugere uma exploração comgrandes potencialidades. A organização vem dediferentes diagramas que investigam e testam oslimites da aplicação de uma metáfora escultural efigurativa para a sua transformação. O desenho égerado por um diálogo entre o sistema biológicoe o sistema mecânico. A integração de corposadicionais, que irão fixar-se à grande estrutura,garantem a sua flexibilidade nos movimentos detensão e expansão. A grua existente é o resultadode um sistema tecnológico cuja estrutura funcionalexpõe o esqueleto aos requisitos mecânicos damáquina. Não há nenhuma capa ou pele. Respeitaregras de estabilidade estrutural e de máximaflexibilidade no seu uso. Os designers e osconstrutores da grua reduziram todos os aspectosda construção, procurando uma solução mínima eeficaz.

Kusnetzoff Toropoff, competição para o Palácio do Trabalho em Moscovo, 2º prémio, 1923

Reutilização de um contentor

Vista debaixo gerada por computador

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Aspectos Construtivos

Os designers sugeriram que os materiais utilizados na intervençãodeveriam ter as mesmas qualidades de flexibilidade. A estrutura dagrua tem qualidades muito específicas, o que limitou as escolhas amateriais com qualidades similares. A maior parte do equipamentoexistente no porto é construído com materiais comerciais e pré-fabricados, criando um vocabulário completo de construção. Umcontentor é uma caixa enorme, maior que uma caixa de sapatos, masnão deixa de ser uma caixa. Um invólucro artificial para transportarcoisas. Coisas novas que se tornarão velhas e serão deitadas fora. Osdesperdícios são parte da natureza. Há sobreprodução. E, no entanto,existe desperdício que é possível utilizar. Que devemos utilizar. Aquelesque produzem encaram o dilema da modernidade. Uma condição domundo moderno é a do crescimento contínuo. Mais consumidores emais materiais. Alargando o consumo ao mundo inteiro. É tempo dereciclar e dar uso ao que já foi produzido em demasia.O uso de materiais já fabricados ou existentes é também antigo pelasua conveniência. Estes materiais são baratos e é uma maneira dereciclar antigos contentores. Reciclar em arquitectura, requerinvestigação sobre a utilização de materiais existentes. Quanto maistecnologia um grupo detém, mais dominante é a sua arquitectura,mais a sua relação com o ambiente expressa essa vitória. O controleda Natureza cria progressivamente mais ambientes artificiais. Umaalternativa a este processo continuo reside na capacidade de transformarestruturas residuais em edifícios de uso público ou habitável.

Orgãos do cavalo

Ribart, projecto para o Kiosque nosChamps Elysées, 1758

Justaposição de dois sistemas:mecânico-biológico

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Programa

Sendo um exemplo da reutilização de estruturasexistentes, o programa é fundamentado naacessibilidade e na criação de espaços acessíveisaté aos níveis mais altos da máquina paraoferecer ao visitante público a possibilidadede experimentar o lugar e a grua, revelandoo sentir industrial do porto e a materialidadedas máquinas. Mantendo as suas funções, agrua oferece uma experiência do lugar, atravésduma variedade de máquinas no interior deuma grande máquina.

MacCarter argumenta que a arquitectura, comobase da experiência no lugar, tem a ver comestática, equilíbrio e distribuição de forçasestruturais, de modo a permitir esta condiçãode raiz. As máquinas, por outro lado, estãoessencialmente relacionadas com o movimento,enquanto conversão de energia em trabalho,e poderão mover-se no espaço de ponto paraponto: as máquinas podem assim serentendidas como pertencendo a nenhum lugar.A experiência de aceder ao porto e subir a

uma grua é uma experiência emocionante. Atorre pode viver por si: aí podemos sonhar,observar, compreender, aí podemo-nosmaravilhar; como num grande navio (...) aípodemo-nos sentir isolados do mundo e, noentanto, os donos do mundo. Quando lásubimos, deixamos atrás de nós a massa quese afadiga e mistura em si qualqueridentificação de autores e espectadores. UmÍcaro voando sobre as águas, pode ignorar osartifícios de Dédalo em móveis e intermináveislabirintos muito baixos.

Móveis e concebidas para todos os portos, asgruas também criam raízes no imagináriocolectivo, acrescentando um novo significadoà mais importante elevação da cidade – afrente marítima.

* arquitecto, docente da Universidade Lusófona

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os novos (não) lugaresda supermodernidade

Irina Sales Grade

1 Marc Augé, Não-Lugares: Introdução a umaantropologia da sobremodernidade; Bertrand, 1998

O mundo mudou, nós adaptámo-nos, as cidadestransformaram-se e não foi nem hoje, nem ontem.O mundo inventou novos valores, pelo que nós eas cidades onde vivemos também. Hoje habitamosnovos lugares de cidades supermodernas. Osvalores do pós-modernismo estão ultrapassados,os ícones arquitectónicos do apogeu económico,a que os EUA ou o Japão nos habituaram, já nãotêm a mesma força. Estes valores foramsubstituídos, a sociedade contemporânea vive umadesrealização do real, em que as distâncias estãomais curtas, as comunicações mais rápidas, astecnologias mais eficientes e o consumo exacerbado.Assistimos à inflação e banalização do que é estéticoem prol de modas, arte, cultura e consumo,referenciando as mais vastas áreas de valoressimbólicos. Vivemos, movemo-nos e funcionamosà escala mundial, rodeados de referênciasinternacionais que nos transformaram nos peõesda globalização. O processo de globalização, pelosnovos meios de comunicação e novas tecnologias,alterou a nossa noção de tempo e espaço.

Efectivamente, a condição supermodernacaracteriza-se por uma abundância de espaçoscarentes de significados, uma abundância de signose, f inalmente, por uma abundância deindividualismo. Assistimos, então, a uma alteraçãodo uso dos espaços públicos e semi-públicos, quesão cada vez menos vistos como espaços sociais.Estes dados têm duas consequências: por um lado,estes excessos são o veículo para uma arquitecturasem estilo (caracterizada por ser indefinida, ilimitadae neutra); por outro, inventaram lugares que nossão familiarmente (des)conhecidos, os não-lugares.

(...) a sobremodernidade define não-lugares, ouseja, espaços que em si mesmos não constituemlugares antropológicos e (...) não integram oslugares antigos: inventariados, classificados epromovidos a lugares de memória...1 Tratam-se,segundo Marc Augé, de lugares que se opõem aoslugares tradicionais por não simbolizarem nemidentidade, nem relações, nem história. Os não-lugares assumem-se como sinais da globalizaçãoe signos da contemporaneidade por estarem ligadosao conceito de homogeneização mundial. Na prática,

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estes lugares traduzem-se em espaços que seassemelham em qualquer ponto do planeta,uniformizam a paisagem urbana e simulam arealidade numa hiper-realidade, onde se concentra um excesso de imagens e referências supostamenterepresentativas do lugar.

(...) Acrescentemos que o não-lugar é,evidentemente, como o lugar – não existe nuncasob uma forma pura; no não–lugar recompõem-se alguns lugares, reconstituem-se relações e os'estratagemas milenares' da 'invenção do quotidiano'e 'das artes de fazer' (...)2 Estes novos valoresalteram as referências arquitectónicas e sãogeradores de novas tipologias – os não-lugaressão as auto-estradas, os aeroportos, os centroscomerciais...

As auto-estradas impõem-se a uma paisagem,descaracterizam a envolvente e caracterizam-sepelo movimento, só têm um objectivo: um destinoespecífico, um ponto de chegada. Enquadram-senum enorme sistema, constituindo lugares maldefinidos em que o espaço transborda, tornando-se pouco tangível.

Os aeroportos constituem também pontos dechegada/partida, representam a primeira e/ou aúltima imagem de uma cidade. Para muitospassageiros, que já fizeram muitas escalas entrevôos diferentes em várias cidades, a única imagemque têm das cidades é a do aeroporto, pelo queestes podem ser um dos logotipos, uma dasimagens de marca de cada cidade.

Os centro comerciais alteraram a dinâmica dascidades, das baixas das cidades. De espaços deadoração ao consumo transformaram-se empequenas cidades temporárias onde se realizameventos de rua, culturais, musicais, sessões deautógrafos das novas estrelas... (...) A essênciado centro comercial não é o consumo- é acapacidade de nos alienar da malha urbana...3

Os parques de entretenimento, feiras populares,parques aquáticos, Disneyland, proliferam,parecendo que a velha máxima de se entreter o

povo, de modo a que não se preocupe com oestado da nação, retomou sentido e significado.São não-lugares que recriam espaços do imagináriocolectivo, que nos remetem para uma irrealidadevirtual.

Os interfaces de caminhos de ferro, metro,autocarros, espalhados pelos países, transformaramcidades e lugares em pontos dum mapa,transforma[ram] lugares em objectos de consumoe, ao fazê-lo, priva[m]-[n]os da sua qualidade delugares. Transforma[m]-[n]os em não-lugares,porque se impõe[m] a ele[s] próprio[s] como umnovo limite, ainda que um limite fluído...4 Asestações de caminho de ferro já não são portasdas cidades. Pelo contrário, fazem desaparecer anoção de fronteira, são espaços que apenasreconhecem pontos e direcções.

Por outro lado, e pela procura de individualismo,há um curioso anonimato patente nestes espaços,apenas quebrado pelo cartão de crédito ou outrosdocumentos afins. Existem espaços nos quais oind iv íduo se sente espec tador sem,verdadeiramente, se importar com a natureza doespectáculo. Como se a posição de espectadorconstituísse o essencial do espectáculo ou, emdefinitivo, como se a posição do espectador em simesmo fosse, para o espectador, o seu próprioespectáculo.5

Os não-lugares constituem, afinal, contentoresurbanos vazios de sentido, significado, referênciase memórias. São espaços que não produzem sentidoou produtos e com os quais não se identifica umacultura própria de um lugar mas uma culturainternacional. Os não-lugares não deixam de serpontos focais de atracção ou navegação mas o seucariz socializador afigura-se fraco, lidam (...) comindivíduos (...) mas estes não são identificados,socializados e localizados (...). É à maneira de umimenso parêntese que os não-lugares acolhem umnúmero cada vez maior de indivíduos (...). O não-lugar é o contrário de utopia: existe e não alberganenhuma sociedade orgânica...6 Neles circulamcidadãos, ainda que adormecidos, públicos virtuaisa serem conquistados.7

2 Marc Augé, Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da sobremodernidade; Bertrand, 19983 Aaron Betsky + Erik Adigard, Architecture Must Burn, Thames & Hudson, 20004 Beatriz Colomina, Privacy and Publicity; MIT, 19965 João Teixeira Lopes; A Cidade e a Cultura. Um estudo sobre práticas culturais urbanas; Afrontamento e CMP, 20006 Marc Augé, Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da sobremodernidade; Bertrand, 19987 João Teixeira Lopes; A Cidade e a Cultura. Um estudo sobre práticas culturais urbanas; Afrontamento e CMP, 2000

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[ 1º acto ]

Casa do Cidrão& Casa de Jerusalém

Gonçalo Canto Moniz *

Casa de JerusalémEscritório: Arquitecto Peter KeinanLocal: IsraelProjecto: 1994Construção: 1994-1998

A casa de Jerusalém não é em Jerusalém masalgures perto de Tel Aviv. É uma casa que nascedas conversas com Peter Keinan sobre o PavilhãoCarlos Ramos, de Álvaro Siza, e da visita à obrade Eric Mendelsohn em Israel, especialmente daCasa para o Presidente Wiezmann em Rehoboth,Tel Aviv.Aparentemente de costas voltadas para ummundo, a casa em U abre-se para dentro de siprópria, explorando o tema do pátio aberto paraa paisagem. Este carácter, encerrado e compacto,está presente na arquitectura moderna exportadapara Israel que, perante o rigor do deserto, seencerrou desenvolvendo permanentemente opátio como elemento estruturador do espaço.Em 19 de Abril de 2002 Peter Keinan enviou deJerusalém uma carta desabafando: The recentdevelopments put a dark question not only uponour profession, but also upon our benign existancehere. You may recall Theodor Adorno’s famouswords at the inauguration of the DeutscherWerkbund in 1965: Architecture worthy of humanbeings thinks better of men than they actuallyare. Yet, what reason his there for architecturesince some people here are determined to destroyone another?

* arquitecto, docente da Universidade de Coimbra

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Casa do CidrãoEscritório: Arquitecto Jorge Canto MonizLocal: Jovim - GondomarCliente: Eng. Paulo BandeiraProjecto: 1996-1998Construção: 2000-2002

Um loteamento a meia encosta define uma ruaparalela às curvas de nível, num esquemapróximo da cidade-jardim. A casa do Cidrão,respeitando as regras deste loteamento,escorrega sobre a encosta virada a Sul namargem direita do rio Douro, olhando nohorizonte, a poente, o perfil da cidade do Porto.A topografia e a irresistível paisagem dominamo projecto, numa relação nem sempre fácil como programa exigente da habitação unifamiliar.Habitar, aqui, transformou-se num percorrerincansável de um espaço que, sempre a descer(e a subir), apenas abriga o desejo de olhar apaisagem. No entanto, a evidência dessapaisagem, demasiado bela, levou aoencerramento da casa e à aposta em volumesdensos e compactos que na sua relação como terreno fossem criando percursos entreplataformas interiores e exteriores. A relaçãocom a paisagem passou a ser pontual edireccionada, trabalhando-se as janelas comomolduras e não como previsíveis planos devidro.Perante a resolução do problema em encosta,o projecto opta por uma solução mista detrabalhar a favor e contra as curvas de nível,procurando dar uma resposta que criasse maiordiversidade espacial. Neste sentido, divide-seo programa em dois volumes perpendiculares:um branco, com os quartos, a garagem e asala de jogos, e um em tijolo aparente com aentrada, as salas e a cozinha.As escadas interiores estabelecem a articulaçãoentre os dois volumes através de um corpoenvidraçado, relacionando também as diferentesplataformas que organizam a casa. Assim, nosdiversos percursos da casa é sempre necessáriorecorrer à escada transformando-se esta numlugar de passagem, que ao estabelecercontinuidades, apesar da sua imagem deruptura, ganhará no quotidiano umacentralidade inesperada.O corpo vertical do fogão de sala é uma espéciede âncora do projecto estabilizando osmovimentos que a sala de pé direito duplo criana horizontal, com a sala de jantar e com asplataformas exteriores, e na vertical, com aentrada.O volume rebocado e pintado de branco comcobertura plana é uma caixa de sapatosmodernista, enquanto o volume revestido atijolo com cobertura inclinada e agarrandomuros e plataformas é já uma revisão críticado primeiro. As caixilharias de alumínio comportadas de correr são um dispositivo paragarantir a imagem de conjunto da casa.

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Piso -1

P iso 0

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Alçado Sul

Alçado Nascente

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[ prova final ]

A P er i fer ia Somos NósMarta Macedo *

Em jeito de apresentação.Sob o título ‘a periferia somos nós’ apresenta-se um texto, ou melhor, um ensaio, que seaf i rma desde logo como resul tado deespeculações e interrogações várias, e não comoum exaustivo trabalho de investigação. Trata-se o tema da condição suburbana contemporâneana Europa do sul e mostra-se o exemplo deBarcelona. O principal objectivo foi a reflexãosobre um tema, que pela sua complexidade ec o n t e m p o ra n e i d a d e n o s i n t e r e s s o u .Nos primeiros três capítulos tenta-se, de formaextremamente sumária, traçar um esquemageral e genérico sobre o tema periferia.Abordam-se as questões do tempo presente,estabelece-se um possível caminho evolutivo,procuram-se comparações e cruzamentos comoutros modelos, para tentar compreender, deforma mais completa, a questão primeira. Noquarto e último capítulo, excluindo as conclusões,desenvolvem-se conceitos já explicados,aplicando a análise ao caso. Mostram-se, assim,as periferias da cidade de Barcelona, umaprimeira na zona da Horta e uma segunda atrásda montanha de Col lserol la, no Val lés.Façamos, agora, um percurso rápido capítulo acapítulo apontando o essencial.Considerações sobre periferia, o primeiro títuloe o primeiro capítulo, é a vontade de trabalharcom a palavra, com os seus significados, assuas imagens e o que os rodeia. Um muito brevetrajecto pelo sentido do espaço periférico, numalógica atópica. O segundo capítulo apresenta omodelo de cidade mediterrânica como objectode referência, ao mesmo tempo que se procurarelacionar este modelo com outros modos deconstruir cidade, sendo incontornável areferência às lógicas de urbanizar da Américado Norte. Pareceu-nos importante identificar asutopias do início do século e outras mais tardias,pois nelas se apontam muitos dos princípiosque suportam este crescimento urbano extra-europeu. Tal desvio tem como intuito ajudar aconstruir uma imagem da cidade de hoje naEuropa do Sul, onde as lógicas do passado deraiz mediterrânica se cruzam com as imagensdo modelo anglo-saxónico.Cidade | periferia na era da informação vemajudar a descrever alguns dos territórios queconfiguram o espaço urbano contemporâneo.Findo o primeiro bloco de reflexão, introduz-seo exemplo de Barcelona. Esta análise resultade um trabalho de campo e de um trabalho debiblioteca, descodificando a extensa bibliografiasobre esta cidade, na Escola Técnica Superiorde Arquitectura de Barcelona.A escolha deste território pareceu-nos quaseóbvia. Barcelona é uma cidade da Europa doSul, e ao mesmo tempo ibérica, caracterizada,tal como as demais cidades da península, pelaluta constante contra um poder centralista ecentralizador, mas encerrando, em simultâneo,esses mesmos atributos por ser uma grandecidade e capital de uma região. Afirmando-seno passado como um poderoso polo industrial,cresceu, ao longo dos séculos em torno de um

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núcleo, por meio de anéis. Conquista territóriosdentro de uma planície, limitada pela montanhade Collserola e padroniza morfologias específicas,claras no tempo e facilmente identificáveis.Descreve-se, numa primeiro momento, aformação e consolidação da zona da Horta. Aquise mostra a construção de uma importante áreade subúrbio, desenhada na fragmentação ei so l amen to dos modos de f a ze r daautoconstrução e dos planos do movimentomoderno. Procura-se, com este exemplo,caracterizar o momento em que se cumpriramas ant igas lóg icas de fazer per i fer ia.Mas tal como Barcelona viveu a era industrialcom plena intensidade, do mesmo modo semanifestam os novos crescimentos na era pós-fordista. Descobre-se, então, uma outra cidadeatrás da montanha, produto de outros princípiosformalizadores e de outras vontades, afirmando-se por uma maior distância em relação a umcentro, centro esse cada vez com menoscapacidade de atracção. Mostram-se osterr i tór ios das lógicas de cresc imentofragmentado, difuso e de baixa densidade.Percorre-se a auto-estrada A7 e descreve-se otecido descontínuo, constituído por bolsasisoladas de várias formas e acolhendo múltiplasfunções.Duas periferias que evidenciam o contraste entrea cidade hiperdensificada e compacta e as novasmorfologias dispersas da contemporaneidade.Acreditamos que depois do estudo destes casosquase paradigmáticos seja possível apreendermais facilmente outros casos menos extremados,as muitas variantes de um mesmo fenómeno.Depois deste capítulo termina a análise e impõe-se uma reflexão. Foi o que se tentou ao concluir.Perante estes outros cenários pensamos que aacção a desenvolver, mais do que produtoimediato da ciência ou da arte, surgirá, também,como resultado de um estudo eminentementesociológico. Aprender da realidade e com arealidade, sem pretensões de criar modelos,talvez seja o caminho. Mas a postura doarquitecto não poderá ser estática, porque oseu trabalho reside na capacidade de propor. Odesenho tem que surgir, mas não usando osinstrumentos do passado. Talvez se assista auma mutação do que hoje reconhecemos comodesenho depois de ultrapassada a depressãocrónica que caracteriza o tempo presente, dafalta de causas, objectivos e acções concertadas.Termina-se com as últ imas palavras daconclusão.A questão reside exactamente aí, como trabalharna cidade do futuro, integrando novasmorfologias, outros anseios, imagens e vontades,evitando a perda do conceito de cidadania.Acreditamos que não passa por exclui-la doespaço cidade e trabalhar em ruptura. Talvez,depois do trabalho comparativo entre aquiloque foi e a imagem que será a da nova cidadesurjam as propostas, pensando no espaço urbanocomo elemento vital para o uso integrado doterritório e o funcionamento de uma comunidade.Ficam observações e ideias. Um olhar critico ea profunda consciência da necessidade de pensare intervir, sobre os espaços da condiçãosuburbana contemporânea, na Europa do Sul.Tentar compreender qual a postura e a reacçãodo arquitecto perante a periferia que somosnós.

* arquitecta

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[ contaminações ]

meet the Beat GenerationNuno Costa

Foi num desejo violento de viver intensamente, despida, sem defesas e sem barreiras, que se encontrouuma geração. Não era uma geração de desiludidos, mas de furtivos, incansáveis perseguidores de experiências,fascinados por ideias, procurando sempre afirmar a vida pelos extremos. Eram instintivamente individualistasmas nunca conseguiram manter o mundo fora dos seus sonhos.1 Não eram rebeldes mas revolucionarama sociedade. Iludiram-na, derramaram sobre ela a sua loucura.

O núcleo original do movimento beat começa a ser moldado na New York do pós-guerra, no final da décadade 40. Jack Kerouac, Allen Ginsberg, William S. Burroughs, Neal Cassady, Gregory Corso, Gary Snyder,Lucien Carr, John Clellon Holmes, entre outros, conhecem-se e travam amizade. Mais tarde, juntar-se-iama estes, nomes como Ken Kesey e Diane di Prima. Todos aspiravam a tornar-se escritores, o que os mergulhounum intenso ambiente literário, ainda que o movimento beat estivesse ligado mais a um modo de vida, auma consciência central, do que a uma similaridade da escrita. Ao som do bebop e muitas vezes sob o efeitode narcóticos, fascinados pela poesia de Whitman e pelas ideias de Sartre, inventaram um mundo só deles,em que nada era verdade e tudo era permitido. Os beatnicks moldaram a segunda metade do seu século.Da sociedade às artes, tudo seria diferente, menos arrojado, menos subversivo, menos apaixonante, sealgumas destas mentes não se tivessem cruzado. Mas existem quatro nomes que se impuseram comoelementos-chave deste movimento vago, intenso. Jack Kerouac, o romancista; Allen Ginsberg, o poeta;William S. Burroughs, o guru; Neal Cassady, o ícone.

Jack Kerouac [1922-1969]

...porque as únicas pessoas autênticas, para mim, são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas porfalar, loucas por serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, as que não bocejam nem dizem nenhumlugar-comum, mas ardem, ardem, ardem como fabulosas grinaldas amarelas de fogo-de-artifício a explodir,semelhantes a aranhas, através das estrelas, e no meio vê-se o clarão azul a estourar e toda a gente exclamaAaaah!2

Considerado o mais brilhante escritor da sua geração, Jack Kerouac foi o criador de uma escrita espontâneae apaixonada, quase sempre autobiográfica. Influenciado pela liberdade e pelo improviso do bebop, Kerouacdefendia uma escrita visceral, imediata, sem qualquer correcção posterior. Foi Kerouac que surgiu com otermo beatnick, que John Clellon Holmes viria a consagrar no famoso artigo This Is The Beat Generation,de 1952, a apresentação pública de um movimento prestes a revelar-se. Mas foi com a publicação, cincoanos mais tarde, de On The Road/Pela Estrada Fora, que uma geração inteira se deixou seduzir pelo saborde liberdade e loucura inscritas nas palavras de Kerouac. Quando em 1952, numa maratona de três semanas,escreveu o manuscrito de On The Road, Kerouac estava verdadeiramente a inventar a geração beat. O livroemblemático da geração beat é também a biografia do seu estado embrionário. É um retrato cru e sedutordas viagens em que Jack Kerouac atravessou o país, cruzando-se sucessivamente com todas as personagensreais que originaram o movimento beat. Cada acção e cada personagem referem-se a acontecimentos efiguras reais. Sal Paradise é o próprio Kerouac, Dean Moriarty é Cassady, Carlo Marx é Ginsberg, Old BullLee é Burroughs... Com On The Road, Jack Kerouac criou o herói moderno, um solitário entregue a umpercurso imprevisível. Kerouac foi também um herói trágico. Nunca conseguiu suportar o fardo da fama efoi-se lentamente isolando, até morrer aos 47 anos, vítima do seu alcoolismo. Mas foi o tempo necessáriopara conseguir deixar uma obra vasta, de que Big Sur e Bums of Dharma/Vagabundos do Dharma são belosexemplos. Um livro, porém, bastaria para lhe garantir a imortalidade.

Allen Ginsberg [1926-1997]

Reality is a questionof realizing how realthe world is already.3

Há quem date o nascimento da geração beat no dia 7 de Outubro de 1955, quando vários dos beatnicksoriginais da costa Leste se juntaram a poetas da costa Oeste numa sessão de leitura em São Francisco naSix Gallery. Os seis leitores eram Allen Ginsberg, Gary Snyder, Michael McLure, Philip Lamantia, KennethRexroth e Philip Wallen. Jack Kerouac assistia. A noite foi marcada pela apresentação de Howl, o mais famoso

1 John Clellon Holmes, This Is The Beat Generation in The New York Times Magazine, November 16, 19522 Jack Kerouac, Pela Estrada Fora; Relógio d'Água3 Allen Ginsberg, The Terms in Which I Think of Reality (1950)

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PortugalNo número anterior fez-se um itinerário escritoque supostamente compensava os inconvenientese cansaços de uma qualquer viagem física. Neste,porque o tempo entretanto sorri, voltamos osargumentos do avesso e vamos rebuscar noterritório da mais recente arquitectura publicada,boas razões para algumas derivas fecundas nasesburacadas realidades limítrofes. Talvez na sendadas torrentes de turistas espanhóis que pulularampor aqui na semana da páscoa, os editores darevista 2G [órgão oficial das publicações GustavoGili] propuseram-se desbravar e dar a conhecero panorama da nova arquitectura portuguesa. Oessencial do roteiro foi coligido por João BeloRodeia, no número mais recente da revista [2G#20], nas bancas a partir de meados do mês demaio e dedicado à geração emergente que retomouo fio de coerência e fascinação que vai de Távoraa Siza e a Souto Moura e de Taínha a Byrne e aCarrilho da Graça, para trás os revesesespeculativos e malfazejos do populismo dos anos80, mas também a pureza, a interrogação, ooptimismo e a militância das décadas anteriores.Os nomes em vias de consagração são AiresMateus, Búgio, Falcão de Campos, José FernandoGonçalves, Cristina Guedes/Francisco Vieira deCampos, Inês Lobo/Pedro Domingos, João MendesRibeiro, Pedro Mendes, António Portugal/ManuelMaria Reis, Paulo Providência, Serôdio & Associados,Vilela & Gordon (e os ARX?). Os programasabrangem duas embaixadas, um belíssimo centrocultural, uma capela, uma pousada na Madeira,dois pavilhões de chá, um pavilhão de oficinas,uma escola superior, um lavadouro público, umcomplexo de habitação colectiva e vários exemplosde habitação unifamiliar, quase todos bemconhecidos e fotografados, mas a aguardarem avossa e a nossa visita. As razões e cumplicidadesda escolha perfazem uma introdução intensa que

articula as dinâmicas candentes destas arquitecturascom os seus referentes próprios: significado,história, sociedade, encomenda, formação eprofissão, que podem proporcionar um guia seguropara qualquer navegação à vista. Como Bónus, nosuplemento incluso Nexus, fica, pela mãoespecialista de Ana Tostões, uma outra romagem,desta feita à memória e arrojo dos verdes anosda arquitectura moderna portuguesa, a acabarjustamente onde o verde se faz negro, tão negroque não nos ficaram senão umas quantas pérolasde chá para oferecer. Num momento em que sevolta a falar de arquitectura portuguesa — opróximo número de Casabella é disso prova — éesta a perplexidade da nossa viagem, a que nãose furta sequer a abordagem conscenciosa de JoãoBelo Rodeia: o sentido de desproporção perantea sordidez do campo minado onde se fazem estase outras delicadezas.

Para reconfortar o âmago, porque não um saltoao ambiente crepitante onde se faz a dançacontemporânea? [não sou eu que o digo...] Umdos territórios mais experimentalistas, fecundose criativos da realidade artística portuguesa. EspaçoCorpo, revista de movimento e artesperformativas, pode muito bem servir comorampa de lançamento. E, já agora, talvez queiramfalar da impressionante coreografia de Rui Quinteiropara a associação Trampolim aqui mesmo noColégio das Artes...

Banda sonora ideal: uma recompilação em doisvolumes, de música ligeira portuguesa no mododos anos 60, recolhida no sótão da editora Valentimde Carvalho e sugestivamente intitulada PortugasDeluxe: Um Cocktail Estereofónico / UmCocktail Swingante. Há dez anos seriaabsolutamente impossível ouvir isto... MadalenaIglésias forever. Hasta.

[ cheese-ham files ]

#2Vasco Pinto

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[ ? ]

Toyo Ito

Sendo um das figuras responsáveis pelo surgimento do Japão como umdos países incontornáveis na cena internacional da arquitecturacontemporânea, Toyo Ito é, ainda hoje, considerado um dos seus maioresnomes. Ito tem uma expressão muito orgânica, debruçando-se sobretemas como a transformação da natureza, o clima, o vento, e ainda atransparência e os espaços abertos. Entre as sua principais obrasencontram-se a Torre dos Ventos [Yokohama, Kanagawa, 1986], o LyricHall de Nagaoka, [Nagaoka, Niigata, 1996], a Jukai Dome [Odate, Akita,1997], e a Mediateca de Sendai [Miyagi, 2002].

Escolha e relacione-se com:

uma cidade...

Bangkok [ cidade fluida de água abundante ]

uma obra de arquitectura...

Pavilhão de Barcelona, Mies van der Rohe

um artista...

Toru Takemitsu [ compositor ]

um livro...

Houjoki, Kamono Chomei [ escritor japonês do século XIII ]

um filme...

Nostalghia, Andrei Tarkovsky

uma experiência...

A vida em Tóquio

uma influência...

A vida em Tóquio

um objecto de consumo...

A vida em Tóquio

um vício...

Às vezes embebedo-me...

uma palavra...

MA [ palavra japonesa ]

um futuro...

Presente

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