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Injusto Penal

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  • Injusto Penala relao entre o tipo e a ilicitude

  • Injusto PenalA relao entre o tipo e a ilicitude

    LUCIANO SANTOS LOPESMestre e Doutor pela Faculdade de Direito da UFMG

    Professor Adjunto da Faculdade de Direito Milton Campos (MG)Diretor do Departamento de Direito Penal do IAMG

    Advogado

    Belo Horizonte2012

  • Lopes, Luciano Santos L864 Injusto penal: a relao entre o tipo e a ilicitude / Luciano Santos Lopes. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. 225p. ISBN: 978-85-62741-77-7

    1. Direito penal. 2. Injusto penal. 3. Ilicitude e injusto penal. I. Ttulo.

    CDD: 341.5 CDU: 343

    proibida a reproduo total ou parcial desta obra, por qualquer meio eletrnico,inclusive por processos reprogrficos, sem autorizao expressa da editora.

    Impresso no Brasil | Printed in Brazil

    Arraes Editores Ltda., 2012.

    Plcido ArraesEditor

    Coordenao Editorial: Fabiana Carvalho Diagramao: Danilo Jorge da SilvaProduo Editorial: Douglas Nunes Reviso: Alexandre Bomfim Stphanie Paes Capa: Gustavo Caram e Hugo Soares

    Belo Horizonte2012

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    CONSELHO EDITORIAL

    Elaborada por: Maria Aparecida Costa DuarteCRB/6-1047

    lvaro Ricardo de Souza CruzAndr Cordeiro Leal

    Andr Lipp Pinto Basto LupiAntnio Mrcio da Cunha Guimares

    Carlos Augusto Canedo G. da SilvaDavid Frana Ribeiro de Carvalho

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    Florisbal de Souza DelOlmoFrederico Barbosa Gomes

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    Jorge Bacelar Gouveia PortugalJorge M. LasmarJoseAntonio Moreno Molina EspanhaJos Luiz Quadros de MagalhesLeandro Eustquio de Matos MonteiroLuciano Stoller de FariaLuiz Manoel Gomes JniorMrcio Lus de OliveiraMrio Lcio Quinto SoaresNelson RosenvaldRenato CaramRodrigo Almeida MagalhesRogrio FilippettoRubens BeakVladmir Oliveira da SilveiraWagner Menezes

  • VUma partida;E uma chegada.

    Para minha v Cacilda (in memoriam), sempre presente em minhas lembranas;

    E para o meu pequeno Pedro, expresso perfeita do amor incondicional.

    Tristeza e alegria, em uma roda viva que nunca tem fim.

  • VII

    agradecImentos

    O texto que se segue foi, em sua origem, concebido como tese elaborada para a concluso de meu curso de doutorado perante o Programa de Ps-Gradua-o da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Fui orientado pelo Professor Doutor Jos Cirilo de Vargas.

    A ele, portanto, segue um primeiro agradecimento. Sua firmeza e seriedade no trato com a pesquisa possibilitou que eu chegasse ao trmino deste trabalho com sucesso. Ficou o exemplo preciso e definitivo de como se torna possvel a autoridade ser compartilhada com o dilogo constante.

    Um segundo agradecimento se dirige banca que examinou a tese de dou-toramento em questo: Professora Doutora Sheila Jorge Selim de Sales; Professor Doutor Luis Augusto Sanzo Brodt; Professor Doutor Adilson Nascimento; Pro-fessor Doutor Paulo Queiroz. Suas intervenes, sempre muito lcidas e precisas, possibilitaram diversas reflexes e melhoramentos no texto original.

    Preciso agradecer, tambm, Faculdade de Direito Milton Campos (MG). Desta instituio de ensino superior sempre recebi o incentivo para uma melhor capacitao como operador do Direito. L, com meus alunos e alunas, renovo diariamente minhas expectativas de construo efetiva de um Direito Penal cons-titucionalmente orientado e respeitador do Estado Democrtico de Direito.

    FDUFMG (tradicional Casa de Afonso Pena), com seus docentes e fun-cionrios, fica o agradecimento por me proporcionar a realizao (e concluso) desta importante etapa de minha vida acadmica.

    Agradeo tambm ao meu scio, Renato Machado, que compreendeu mi-nhas necessrias, e involuntrias, ausncias profissionais enquanto estruturei o trabalho que se segue. Amigo fraterno e companheiro leal nas lides forenses.

  • VIII

    minha famlia e aos meus bons amigos, segue uma lembrana muito es-pecial pelo incentivo que recebi durante toda esta caminhada acadmica. Repito especialmente (e textualmente) uma meno que j fiz em vrias oportunidades pretritas: pai, obrigado, ainda, pela contribuio direta neste trabalho, ajudando na adequao das ideias a uma melhor forma da bela lngua de Cames.

    E, por fim, as mais importantes lembranas: Para a Alessandra, minha es-posa, por todo amor que houver nesta vida. Foi meu refgio mais seguro, sem-pre. Voc no me deixou desistir desta caminhada, mesmo quando me faltaram foras. E, ainda, h o Pedro, nosso menininho, que enche de alegria a vida de todos que o cercam.

    So, em sntese, algumas necessrias menes que precisavam ser feitas. Ter-mino este ciclo acadmico com a sensao do dever cumprido. Expresso, com es-tes agradecimentos, uma gama de sentimentos que se confundem e se sintetizam em um s: a certeza de que a jornada apenas comeou.

    Luciano Santos LopesInverno de 2012.

  • IX

    sumrIo

    PREFCIO ............................................................................................... XIII

    APRESENTAO .................................................................................. XVII

    CAPTulO 1

    NOTA INTRODUTRIA: A COLOCAO DO PROBLEMA . 1

    CAPTulO 2

    O INJUSTO PENAL NA TEORIA DO CRIME .............................. 72.1 O conceito de injusto penal ........................................................ 72.2 Elementos componentes do injusto penal: a ilicitude ............ 9

    2.2.1 Antecedentes tericos: o surgimento do conceito de ilicitude ................................................................................ 9

    2.2.2 Definies terminolgicas ..................................................... 122.2.2.1 Ilicitude e antijuridicidade .............................................. 122.2.2.2 Ilicitude e injusto penal ................................................... 132.2.2.3 Ilicitude e antinormatividade ......................................... 15

    2.2.3 Ilicitude formal e material ..................................................... 182.2.4 Ilicitude genrica e especfica ................................................ 232.2.5 Ilicitude objetiva e subjetiva .................................................. 282.2.6 Finalizando: um conceito de ilicitude ................................. 34

    2.3 Elementos componentes do injusto penal: o tipo penal ........ 362.3.1 O conceito e sua evoluo dogmtica ................................. 36

  • X2.3.2 Os elementos componentes do tipo penal ......................... 422.3.3 As funes do tipo penal ....................................................... 50

    CAPTulO 3OS ANTECEDENTES TERICOS DA TEORIA DA RATIO ESSENDI NA DEFINIO DA RELAO ENTRE TIPO PENAL E ILICITUDE, NO INJUSTO PENAL ................................ 55

    3.1 A relao tipo-ilicitude na concepo causalista de Ernest Beling ............................................................................................... 56

    3.2 A estrutura do pensamento neokantiano na dogmtica jurdico-penal .................................................................................. 64

    3.3 A teoria da ratio cognoscendi, de Max Ernst Mayer ............... 723.4 As crticas dogmticas teoria da ratio cognoscendi e a

    necessidade de reformulao do conceito ................................. 773.4.1 A deficiente funo indiciadora de ilicitude nos tipos

    abertos e o problema dos elementos normativos .............. 773.4.2 Toledo e a crtica dicotomia entre antinormatividade

    e ilicitude .................................................................................. 81

    CAPTulO 4A RELAO ENTRE TIPO PENAL E ILICITUDE NA DOUTRINA ITALIANA ....................................................................... 87

    4.1 O conceito unitrio de delito e a relao entre tipo penal e ilicitude ......................................................................................... 91

    4.2 O conceito bipartido de delito e a relao entre tipo penal e ilicitude ......................................................................................... 96

    4.3 O conceito tripartido de delito e a relao entre tipicidade e ilicitude ......................................................................................... 103

    CAPTulO 5A TEORIA DA RATIO ESSENDI, SUAS VERTENTES E A DEFINIO DA RELAO ENTRE O TIPO LEGAL E A ILICITUDE ...................................................................................... 109

    5.1 A teoria da ratio essendi na doutrina de Mezger e de Sauer: conceito e imprecises dogmticas ................................. 110

    5.2 A teoria da ratio essendi e a doutrina do tipo total de injusto (os elementos negativos do injusto penal): a necessidade de sua adoo ......................................................... 125

  • XI

    5.3 A questo do erro penalmente relevante e a teoria da ratio essendi ..................................................................................... 140

    CAPTulO 6A APLICAO PRTICA DA TEORIA DA RATIO ESSENDI E DO TIPO TOTAL DO INJUSTO ................................................... 157

    6.1 A viabilidade da utilizao da teoria da ratio essendi fora do sistema dogmtico neokantista ............................................. 158

    6.2 A aplicao da teoria da ratio essendi no momento legislativo: a valorao dos bens jurdicos dignos da tutela penal ...................................................................................... 172

    6.3 A aplicao da teoria da ratio essendi no momento judicante .......................................................................................... 183

    6.3.1 A questo do nus da prova e a teoria do tipo total do injusto ................................................................................. 185

    6.3.2 Outras aplicaes da teoria do tipo total do injusto no momento judicante .......................................................... 190

    CONCLUSES ....................................................................................... 195

    REFERNCIAS ....................................................................................... 197

  • XIII

    O livro que tenho a honra de prefaciar constitui a tese que conferiu ao pro-fessor Luciano Lopes o ttulo de Doutor em Direito (Penal) pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob a competente orientao do renomado penalista Jos Cirilo de Vargas.

    Nele, o autor trata, especialmente, da relao entre tipicidade e ilicitude, adotando uma concepo total do injusto, isto , o tipo como ratio essendi da antijuridicidade.

    J no bastasse a profundidade e a maestria com que o assunto tratado, cuida-se de um texto escrito em linguagem clara, precisa e concisa, e, pois, facil-mente acessvel.

    Naturalmente que nem sempre estamos de acordo. Assim, por exemplo, no me parece que ainda faa algum sentido a tradicional distino entre elemen-tos descritivos e no descritivos (normativos) do tipo.

    Com efeito, de acordo com Luciano Lopes (fl. 47), certo que os elemen-tos objetivos, meramente objetivos, so diversos daqueles normativos. H nor-mas cuja interpretao plena de valor em si mesma e h normas que dependem de complementao na sua interpretao. Ao contrrio do que afirmou Roxin, h, sim, uma distino bem ntida entre as duas modalidades de elementos t-picos. Ainda segundo o autor (p. 47), quanto aos elementos objetivos, que so meramente descritivos, h clareza e simplicidade no conceito. So aqueles verificados pela percepo direta dos sentidos humanos. Podem ser percebidos independentes da vontade que o autor da conduta expressou. Sua objetividade no se condiciona a juzos axiolgicos.

    PrefcIo

  • XIV

    Tenho, porm, que essa distino entre elementos descritivos e no descri-tivos do tipo uma iluso, quer porque no existe conhecimento sem mediao do sujeito, quer porque todos os tipos penais demandam interpretao, afinal o sentido das coisas (textos, provas etc.) no dado pelas prprias coisas, mas por ns, ao atribuirmos um determinado sentido num universo de possibilidades, a includa a falta de sentido inclusive, razo pela qual o direito, como um cons-tructo que , no preexiste interpretao, mas dela resultado. A interpretao , pois, o ser do direito; e o ser do direito um devir.1 Ou, como diz Gadamer, o ser que pode ser compreendido linguagem.

    No existem, por conseguinte, fenmenos criminosos, mas apenas uma in-terpretao criminalizante dos fenmenos e, pois, uma interpretao tipificante, antijuridizante e culpabilizante dos fenmenos.

    Consequentemente, todos os elementos referidos nos tipo penais so inevi-tavelmente valorativos (normativos) e no simplesmente objetivos ou descritivos.

    Estamos, porm, de acordo quanto ao essencial, ainda que motivos diver-sos: os tipos penais encerram, explcita ou implicitamente, proibies, de no matar, de no furtar, de no estuprar etc. Afinal, e conforme assinala Luciano Lopes (p. 5), o legislador, ao elaborar a figura tpica, j verificou anteriormente o carter de ilicitude que a conduta a ser tipificada apresenta. H prvia verifi-cao axiolgica da ofensa, ou do perigo de ofensa, ao bem jurdico, visto que (p. 195, item 6) o tipo descrio legal de conduta proibida pelo ordenamento jurdico-penal. Ele exerce, entre outras, as funes de garantia e de descrio (fundamentao da ilicitude).

    E mais: a proibio que o tipo contm deve ser interpretada luz do direito e do direito penal como um todo, e no isoladamente, naquilo que o seu enun-ciado contm. que os tipos penais s fazem sentido se considerados dentro de um determinado contexto jurdico-penal, e sistematicamente.

    Sim, porque os tipos penais no traduzem mandados absolutos de proibi-o, mas relativos, forosamente. Justamente por isso, no h crime de homic-dio, mas homicdio simplesmente, quando o autor age em legtima defesa; no h leso corporal por parte do cabeleireiro ao cortar o cabelo de seu cliente; nem h estupro por parte de quem mantm relaes sexuais validamente consentidas. Tampouco existe infrao penal por parte do funcionrio pblico, que, no es-trito cumprimento do dever legal, invade a casa de algum e a busca e apreende bens e prende pessoas.

    Consequentemente, se os tipos penais encerram proibies e se as causas legais de justificao importam em autorizaes, embora previstas e dispostas separadamente em diferentes lugares do Cdigo, segue-se que as excludentes de

    1 Para maiores detalhes: QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: parte geral. 8. ed. Salvador: Editora Jus Podivm, 2012.

  • XV

    ilicitude so, de fato, elementos que negam o tipo, que, por isso, afastam a inci-dncia da norma proibitiva.

    Em todo tipo penal est implcita, portanto, a ausncia de causas de justifi-cao, conforme a teoria dos elementos negativos do tipo. Assim, por exemplo, a sentena matar algum; recluso de 6 a 20 anos (CP, art. 121, caput) in-completa, porque omite, por uma compreensvel questo de estilo, que matar algum crime, que punvel que proibido, exceto se houver, em favor do agente, alguma excludente legal de ilicitude, quando ento a proibio perde o sentido e deixa de incidir.

    Exatamente por isso, carece de fundamento a distino entre erro de tipo e erro de proibio, uma vez que errar sobre o tipo , inevitavelmente, errar sobre a proibio que o tipo encerra. Consequetemente, todo erro de tipo implica um erro de proibio. Assim, por exemplo, quem tem droga ilegal supondo ser uma substncia incua qualquer incorre, simultaneamente, em erro de tipo e erro sobre a ilicitude do fato, pois quem erra sobre a representao do fato tampouco ter ideia da dimenso jurdico-penal de seu ato. A recproca tambm verdadei-ra: o erro de proibio importa em erro de tipo, porque o erro de proibio um erro sobre a mensagem proibitiva que o tipo consagra.

    A distino entre erro de tipo e erro de proibio , pois, uma superficial e perfeitamente supervel.

    Tambm por isso, o dolo h de compreender, necessariamente, o conhe-cimento da proibio que o tipo encerra, porque um dolo neutro ou natural, tal como formulado pelo sistema finalista clssico, uma fico insustentvel. O dolo , pois, dolus malus, isto , compreensivo da conscincia e vontade de realizao dos elementos do tipo.

    No h dolo, portanto, por parte do agente que, acreditando agir licita-mente, pesca ou caa ilegalmente, pois realiza, segundo a sua representao, uma atividade absolutamente legtima. S existe dolo, por conseguinte, se o autor pra-tica uma ao que sabe vedada pelo ordenamento jurdico, pouco importando, para esse fim, se ele concorda ou no com a vedao que recai sobre a conduta. Mas, se faltar o conhecimento da proibio que incide sobre a ao, faltar algo essencial configurao do dolo.

    V-se, por conseguinte, que o presente livro trata de assunto dos mais rele-vantes dogmaticamente e que pode, inclusive, conduzir a doutrina sria e crtica isto , uma doutrina que no se limita a repetir, sem mais, o que os outros dizem, nem a s reproduzir decises dos tribunais, ou, ainda, como parece ser uma tendncia atual, a dar dicas de como passar em concurso pblico com um mnimo de esforo a uma radical reconfigurao do sistema da teoria do delito.

    O livro do professor Luciano Lopes , portanto, indispensvel para aqueles que ainda acreditam que possvel doutrinar, e doutrinar sria, autnoma e criticamente.

  • XVI

    Que o presente livro tenha, assim, a justa e merecida acolhida por parte do pblico especializado!

    PAULO QUEIROZDoutor em Direito (PUC-SP)

    Procurador Regional da RepblicaProfessor UNICEUB

  • XVII

    Acho que ser de pouca prestana a fala a seguir.De fato. Ns outros, de constante visita s questes ligadas ao tipo e

    tipicidade, seja visando atividade acadmica, seja no calor do debate forense, sabemos que o Autor deste trabalho no nenhum iniciante que se aventura por verdadeiro banco de prova da teoria do delito.

    Mais jovem, e comeando por onde se deve comear, conteve-se nos primei-ros degraus de escada ardilosa e cheia de tropeos.

    Admitido por concurso pblico no Programa de Ps-Graduao em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Luciano Santos Lopes, sob a orienta-o segura e ilustre do Prof. Doutor Carlos Augusto Cando, pesquisou, meditou e redigiu um texto versando certos momentos especiais da ilicitude, crismando-o de elementos normativos do tipo. Realmente eles assim se comportam, seja na viso do tipo indiciador, seja no prescindindo de seu congnito enlace anti-juridicidade.

    O trabalho ensejou-lhe o Mestrado, cum suma lauda.Depois, sempre por concurso pblico, foi escolhido para o Doutorado, na

    mesma Instituio de Ensino. E ali, por influncia direta de Mezger e de Sauer, se convenceu de que o

    tipo no apenas a razo de conhecer a ilicitude. a sua prpria razo de ser. Ultrapassando-os (a Mezger e Sauer), compreendeu que a valorao contida no tipo no provisria. Ao contrrio, j definitiva. Adotou, ao final, a doutrina do tipo total do injusto.

    Sem temor de contrastar a modernidade tardia de Ernst Beling, Luciano, de maneira implcita, refutou a existncia de um tipo valorativamente neutro, nos moldes concebidos e expostos na obra de 1906.

    aPresentao

  • XVIII

    A verdadeira carga subjetiva que o injusto carrega deveria ter precedido ao Tratado de Beling, a ser crvel, como resulta ser, que o tipo descreve a conduta lesiva de um valor.

    Para logo, Luciano deu-se conta disso.E melhor: por essa estrada batida pelo bom senso e razo, valendo-se de

    argumentos irrefutveis, ele chegou ao ponto de chegada, habilitando-se a dar por finda a tramitao.

    Seu trabalho quebra a monotonia da plancie, e haver de ficar.

    JOS CIRILO DE VARGASProfessor Adjunto da Faculdade de Direito

    da Universidade Federal de Minas Gerais

  • No estudo da dogmtica penal, notadamente a partir do final do sculo XIX, as estruturas tericas que compem o conceito de crime receberam especial ateno de forma nitidamente analtica e, igualmente, sistematizadora.

    O objetivo central do trabalho verificar o acerto da hiptese que ora se apresenta, no sentido de que a relao entre o tipo penal e a ilicitude deve se basear na teoria da ratio essendi, tal como formulada pela doutrina do tipo total do injusto (com seus elementos negativos do tipo).1

    O trabalho, ento, se divide em partes distintas. Primeiramente, quer-se exatamente investigar em que termos se apresenta a relao entre tipo e ilicitude, dentro da estrutura do injusto penal. Em virtude do resultado obtido com essa anlise, adotar-se- a teoria do tipo total do injusto como a forma mais adequada para explicar essa citada relao. Ressalte-se que a doutrina da ratio essendi se divide em duas vertentes:2 a teoria do tipo de injusto, de Mezger e Sauer; e a j citada teoria do tipo total do injusto.

    Posteriormente, em uma segunda etapa do trabalho, pretende-se demons-trar que a concepo dogmtica aqui sustentada tem concreta aplicabilidade le-gislativa e judiciria. Mais que isso, ela se conforma a um Direito Penal consti-tucionalmente orientado proteo de bens jurdicos. A concluso a seguinte: o exerccio da funo estatal de proteo aos bens jurdicos exige que as figuras

    1 Conforme afirma Vargas, a expresso tipo total do injusto decorre da teoria dos elementos negativos do tipo, elaborada, por sua vez, em face do que dispunha o art. 59 do revogado C-digo Penal alemo de 1871 (VARGAS, Jos Cirilo de. Instituies de direito penal: parte geral. Tomo I. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 321).

    2 VARGAS, Jos Cirilo de. Do tipo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 52.

    caPtulo 1

    nota IntrodutrIa: a colocao do Problema

  • Luciano SantoS LopeS2

    tpicas sejam adequadamente valoradas com o contedo ilcito do ordenamento jurdico.

    Assim, quer-se demonstrar como se compe o injusto penal, conceituando--se e correlacionando seus elementos. Quanto ao tipo legal, h a descrio da conduta proibida e, o que igualmente relevante, determina-se a proibio da conduta. Essa figura tpica j foi negativamente valorada. H uma ligao axio-lgica com a ilicitude.

    Mais que isso, quer-se determinar a importncia e, por que no, a primazia do conceito de ilicitude nesta abordagem. De acordo com o marco terico ado-tado neste trabalho (teoria da ratio essendi, com o tipo total de injusto), funda-mental que se determinem a funo e a importncia do conceito de ilicitude no injusto penal, para se verificar em que termos ela se relaciona valorativamente com o tipo penal.

    A ilicitude, ento, ser estudada em um primeiro momento. Posteriormen-te, ser analisado o tipo penal. Para que a abordagem de ambos os conceitos seja adequada, ela deve ser elaborada tendo-se em vista os sistemas penais e sua compreenso de ao penalmente relevante.

    Pode-se afirmar que os diversos elementos do delito (tipo penal, ilicitude e culpabilidade) e da pena sempre foram elaborados de forma a se moldarem de acordo com os estudos filosfico-jurdicos das teorias da ao. No que aqui inte-ressa ressaltar, cada sistema conceitual que se sucedeu na dogmtica apresentou alguma importante contribuio ao estudo do injusto penal.

    Em resumo, a compreenso analtica dos conceitos de ilicitude e de tipo penal fundamental para a correta justificao terica da hiptese que se deseja confirmar neste trabalho. Assim, aps apresentar os dois elementos do injusto penal, comea-se a estruturar os argumentos do objetivo central deste estudo.

    Diversas doutrinas se sucederam na tentativa de explicar qual a dimenso exata dessa relao entre tipo penal e ilicitude dentro do injusto penal. Todas essas correntes doutrinrias sero apresentadas e analiticamente estudadas. Acom-panhando as fases de evoluo do conceito de tipo penal, algumas teorias foram mais importantes na tentativa de se definir essa relao: o conceito de tipo me-ramente descritivo e sem relaes valorativas com a ilicitude (Beling); a teoria da ratio cognoscendi, na qual o tipo contm apenas um indcio da existncia da ilicitude (Mayer); a teoria da ratio essendi, na vertente do tipo de injusto (Mezger e Sauer), ainda com uma definio tripartida do delito e com igual uso da regra--exceo (na definio das causas de justificao); por fim, a teoria do tipo total de injusto (com os elementos negativos do tipo), que vem a ser uma segunda vertente da ratio essendi, na qual h a unio entre tipo penal e ilicitude (Merkel e Frank).

    Sero, ainda, apresentadas as doutrinas italianas que se ocuparam dos es-tudos acerca da definio da relao entre tipo penal e ilicitude. Explica-se a utilidade dessa abordagem.

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 3

    De forma geral, a dogmtica penal latino-americana tem sua matriz terica no Direito Penal alemo, que igualmente se firmou como diretriz doutrinria em alguns ordenamentos europeus (portugueses e espanhis, principalmente) e lati-no-americanos. Os estudos no Brasil, de modo geral, no fogem dessa tendncia.

    Com a apresentao da dogmtica italiana, perceber-se- que l existem inte-ressantes aproximaes conceituais com a matriz germnica da dogmtica penal, nas diversas definies da teoria do delito aqui tratadas. Outros afastamentos so inevitveis, em virtude da sistemtica das classificaes adotadas. O importante verificar as contribuies italianas para o estudo do injusto penal. Ser, pois, de grande proveito essa anlise doutrinria.

    Quer-se verificar em que medida a dogmtica brasileira foi influenciada por esses argumentos estrangeiros, de diversas matrizes tericas (alemes, italianos, entre outros). Contudo, adverte-se que haver sempre a preocupao de se cons-truir um argumento compatvel com a realidade dogmtica e legislativa ptria.3

    Aps a apresentao das teorias que relacionam o tipo penal e a ilicitude, adotar-se- a teoria da ratio essendi, tal como sistematizada pela doutrina do tipo total do injusto. A escolha dessa segunda vertente da teoria se d, como frente se justificar, pela necessidade de afastamento da ineficiente utilizao da regra--exceo, na verificao das excludentes de ilicitude. Mezger e Sauer, com o tipo de injusto, definiram adequadamente a relao valorativa antes citada. Todavia, ao deixarem essa valorao na provisoriedade (podendo ser excluda, excepcio-nalmente, por uma causa de justificao4), admitem a possibilidade paradoxal de existir uma conduta proibida e permitida ao mesmo tempo. Esse equvoco somente consegue ser resolvido com a aceitao do tipo total.5

    3 Sheila Sales tambm faz importante observao, em nota introdutria obra de sua autoria. Ela afirma que h um vcio recorrente nas pesquisas doutrinrias, no sentido de se trazer para o ordenamento jurdico ptrio as concluses estrangeiras, sem nada acrescer. Algumas conclu-ses no so aplicveis e no encontram suporte textual na ordem normativa interna (SA-LES, Sheila Jorge Selim de. Dos tipos plurissubjetivos. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 9-10). Todavia, de se perceber que essas concluses da autora no a impediram de realizar intensa produo acadmica com um referencial terico comparativo (especialmente ligado ao Direito Penal italiano). A sua advertncia, extremamente lcida, somente de que a comparao doutri-nria (ou mesmo legal e jurisprudencial) deve respeito s particularidades de cada ordenamento jurdico nacional.

    4 El tipo jurdico-penal que describe dicho actuar tpico posee, por tanto, la ms alta significa-cin en orden a la existencia de la antijuridicidade penalmente relevante de la accin: es fun-damento real y de validez (ratio essendi) de la antijuridicidad, aunque la reserva, siempre, de que la accin no apareza justificada en virtud de una causa especial de exclusin del injusto. Si tal ocurre, la accin no es antijurdica, a pesar de su tipicidad. (MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal. Tomo I. Nueva edicin, revisada y puesta al dia por Jos Arturo Rodriguez Munoz. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955, p. 376).

    5 Conforme se explicar ao longo do trabalho, por causa dessas crticas insuperveis que se adota a segunda vertente da teoria da ratio essendi: o tipo total do injusto. Alterou-se, aqui, o entendimento de obra anterior, que optava pela primeira vertente da ratio essendi: o tipo

  • Luciano SantoS LopeS4

    Outra questo que mais bem explicada mediante a adoo da teoria do tipo total do injusto a que se refere ao erro penalmente relevante. Especifica-mente, quer-se tratar do erro quanto aos pressupostos fticos de uma causa de justificao. Passando pelas teorias do dolo e da culpabilidade, ser feita uma abordagem sobre a ligao dessa questo (erro penalmente relevante) e a teoria do tipo total, no sentido de justificar a escolha realizada. Certo que o dolo deve abranger a ausncia de causas de justificao, fazendo com que tal erro cause atipicidade de uma conduta.

    Todavia, existem vrios pontos de interseo entre as duas vertentes da teoria da ratio essendi. No se nega isso e, mais ainda, pensa-se ser possvel a utilizao dos conceitos comuns. De Mezger, por exemplo,6 adota-se a opinio de no se sustentar a existncia de uma ilicitude penal, diversa daquela geral.7

    A ilicitude somente tem razo de ser na esfera penal porque existe o tipo penal a expressar a proibio da conduta que ofende o bem jurdico. Em resumo, o tipo a razo de ser da ilicitude. No de sua existncia: ela geral para toda a ordem jurdica. razo de a ilicitude ter funo na punio penal.8

    Alm dos motivos dogmticos antes expostos, adota-se a teoria do tipo total tambm por razes poltico-criminais. Essa doutrina capaz de fundamentar uma concepo de interveno punitiva constitucionalmente orientada tutela de bens jurdicos.9 Nesse ponto, inicia-se a segunda parte do trabalho e duas in-dagaes precisam ser respondidas: de que forma a teoria da ratio essendi se liga

    de injusto de Mezger e Sauer (LOPES, Luciano Santos. Os elementos normativos do tipo e o princpio constitucional da legalidade. Porto Alegre: SAFe, 2006, p. 61).

    6 Existem outras tantas ideias concordantes entre ambas as correntes, que sero apresentadas ao longo do trabalho. A base axiolgica dos conceitos similar: tipo a razo de ser da ilicitude.

    7 El injusto tpico especfico del Derecho Penal no tiene nada que ver con la tesis, que a veces aparece en la bibliografia, de una especial antijuridicidad penal. Tal concepcin debe rechar-zarse en absoluto. Segn ella, la amada unidad de la antijuridicidad en el total mbito de las distintas disciplinas jurdicas es una ficcin, puesto que tal unidad no existe con arregio a una consideracin teleolgica. Lo que es injusto en una disciplina jurdica no es necessariamente en outra, y viceversa. Pero este supuesto de una antijuridicidad slo penal contradice la natureza misma del Derecho como ordenacin unitaria de vida. El tipo jurdico-penal no es, por tanto, una especie del injusto circunscrito a la esfera especial del Derecho punitivo, sino un injusto espe-cialmente delimitado y con especiales consecuencias jurdicas, que tanto fuera como dentro del mbito del Derecho Penal representa una contradiccin con el Derecho. (MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal. Tomo I, p. 374-375).

    8 Sustenta-se, aqui, a ideia de que o Direito Penal tem funo meramente sancionadora, tutelan-do valores (constitucionais) j recepcionados na ordem jurdica. Em momento prprio, ser desenvolvido este argumento, com os fundamentos doutrinrios adequados ideia que se quer afirmar.

    9 Em virtude desse argumento, a teoria do garantismo penal (de Ferrajoli) tambm funcionar como marco terico necessrio para a confirmao da hiptese que aqui se afirma. Ser le-gtima a ordem jurdico-penal que maximize a tutela dos direitos fundamentais inscritos na ordem constitucional. fundamental tal tomada de posio no sistema penal.

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 5

    a essas questes aqui apresentadas? Tal doutrina no seria apenas uma fase de evoluo do conceito de tipo legal de crime?

    Respondendo s perguntas antes formuladas, sustenta-se que a teoria da ratio essendi oferece importante argumento terico para essa discusso. Quer-se demonstrar que, com uma adequada valorao de ilicitude dentro da estrutura tpica, consegue-se fundamentar, de maneira coerente, a legitimao constitucio-nal da interveno penal, orientada proteo de bens jurdicos.10 O legislador, ao elaborar a figura tpica, j verificou anteriormente o carter de ilicitude que a conduta a ser tipificada apresenta. H prvia verificao axiolgica da ofensa, ou do perigo de ofensa, ao bem jurdico.11

    Se possvel afirmar que o estudo sobre o bem jurdico-penal requer espe-cial ateno da teoria do delito, igualmente correto sustentar que tal anlise passa, inevitavelmente, pelo tipo penal. A verificao de sua relao com a ilici-tude , ento, fundamental para a compreenso dessa funo do Direito Penal: proteo de bens jurdicos.

    Assim, um captulo ser especialmente destinado a explicar como a teoria do tipo total pode auxiliar nessa fundamentao constitucionalizada da tutela punitiva. Dessa forma, pretende-se demonstrar sua aplicabilidade prtica. Para tanto, sero analisados os argumentos justificadores das prticas legislativas e judicantes, no que se refere utilizao da relao valorativa tipo penal/ilicitude.

    No momento legislativo, deseja-se explicar como a doutrina do tipo total pode ser aplicada, para melhor racionalizar a elaborao de criminalizaes de condutas, em face da funo protetiva dos bens jurdicos. J na esfera judiciria, sero apresentadas aplicaes da referida teoria na questo do nus probatrio (especialmente quanto s causas de justificao) e na questo da utilizao dos

    10 A tutela penal de bens jurdicos deve restar limitada e, o que mais importante, tambm fundamentada pela Constituio, conforme entende Roxin (ROXIN, Claus. Culpabilidad, prevencin en derecho penal. Traduccin de Francisco Muoz Conde. Madrid: Instituto Edi-torial REUS, 1981, p. 16). Tal argumento ser desenvolvido frente.

    11 Conforme afirma Vargas: Antes da criao legislativa do tipo, a conduta, por ele descrita, j trazia a marca da ilicitude, por ofender ou colocar em perigo de ofensa determinado bem jurdico. [...] O que temos, ento, na Parte Especial do Cdigo Penal, uma tipologia de con-dutas ilcitas. Qual Parlamento perderia tempo em descrever condutas lcitas? S se descreve o ilcito. As condutas lcitas de nosso cotidiano escapam ao interesse do Congresso, no particular aspecto da incriminao. Por isso que sempre afirmamos e repetimos: ao penalista s interessa a antijuridicidade tipificada. Fato ilcito no tipificado um nada (VARGAS, Jos Cirilo de. Direitos e garantias individuais no processo penal. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 108).

    Evidentemente, igualmente necessria a verificao do desvalor da ao para a existncia da ilicitude. quela abordagem valorativa (ofensa, ou ameaa de ofensa a bem jurdico), acresce-se o seu conceito formal, formando uma ilicitude material, tal como se sustenta neste trabalho. De forma contrria, poder-se-ia afirmar pela punio, inclusive, de situaes oriundas de casos fortuitos e para as quais no colaboraram a conduta humana voluntria e finalstica. Seria um grave equvoco.

  • Luciano SantoS LopeS6

    princpios constitucionais, tais como os da ofensividade/lesividade e insignifi-cncia.

    Certo que as cincias sociais aplicadas devem levar suas reflexes teri-cas para fora do meio acadmico, regulando efetivamente o convvio coletivo de uma determinada sociedade. Assim deve ocorrer com o Direito Penal. Suas definies conceituais devem ser capazes de interferir nas atuaes legislativas e judiciais, unindo teoria e prtica de forma definitiva.12

    Por tudo o que se apresentou, este trabalho se prope a realizar uma an-lise, terica e prtica, do conceito de injusto penal, a partir a discusso da teoria da ratio essendi (com seu tipo total do injusto). o que se segue.

    12 Miaille constata a existncia desse equivocado distanciamento entre teoria e prtica, que ora se critica: O professor de direito eleva-se ao nvel da teoria jurdica, juntando os fios dispersos de um novelo em que as prticas frequentemente se perdem: com que autoridade a doutrina, designadamente os professores de direito, prope esta ou aquela soluo ao legislador ou ao juiz a fim de tornar mais coerente este ou aquele sistema? O estudante de direito passa, aparentemente, a maior parte do tempo a distanciar-se em relao s contingncias da prtica: repetiu-se frequentemente que, sado da universidade, sado desse mundo artificial, perfeita-mente estruturado, lgico e racional, lhe era preciso reaprender tudo. H mais do que isso entre a teoria jurdica e a prtica do direito: h muitas vezes um fosso (MIAILLE, Michel. Uma introduo crtica ao direito. Traduo de Ana Prata. Lisboa: Moraes, 1979, p. 22. apud VARGAS, Jos Cirilo de. Direitos e garantias individuais no processo penal, p. 69-70).

  • caPtulo 2

    o Injusto Penal na teorIa do crIme

    2.1 O conceito de injusto penal

    A anlise da relao entre o tipo penal e a ilicitude sempre foi de complexa compreenso. H constante evoluo das ideias nesse sentido. Desde o causalis-mo, de Lizst-Beling, at as tendncias ps-finalistas, h uma preocupao em se delimitar o contedo, os limites e as funes dessa anunciada relao.

    Trata-se do estudo e da sistematizao de parcela fundamental do contedo da teoria geral do delito. Vrias foram as frmulas doutrinrias apresentadas para determinar a relao aqui mencionada. Todas sero analisadas, com seus erros e acertos tericos, para que se determine a mais correta forma de conceitu-la: a teoria da ratio essendi, em sua vertente do tipo total do injusto.

    Cumpre, porm, fazer um corte histrico para esse estudo. Desde o final do sculo XIX, com uma doutrina penal de matiz causalista e j com a dogmtica es-truturada na diviso tripartida do crime, houve a preocupao em se conceituar adequadamente a relao tipo-ilicitude.1 A partir desse momento, vrias foram as teorias que se apresentaram, visando determinar o objeto de estudo em questo: relao entre tipo penal e ilicitude. Entre essas teorias, surge a ratio essendi.

    1 Coloca-se este marco histrico inicial, do sistema causalista de Liszt-Beling, porquanto an-tes desse perodo ainda no existia conceituao dogmtica do tipo penal, da forma como atualmente se utiliza o conceito. Beling, em 1906, apresentou doutrina penal a expresso tatbestand, concebendo o crime, seus elementos e os pressupostos de punibilidade (Conforme: VARGAS, Jos Cirilo de. Do tipo penal, p. 67). Inicia-se, ali, o estudo do tipo penal como categoria autnoma da teoria do delito. Todavia, as menes histricas a perodos anteriores ao do sistema causalista sero importantes para a compreenso da evoluo dos conceitos que ora so analisados.

  • Luciano SantoS LopeS8

    Todavia, para a correta anlise da relao j referida, necessrio previa-mente conceituar o injusto penal. Trata-se de instituto que rene os conceitos de tipo penal e ilicitude, dentro da estrutura do crime. Usando uma transcrio de Tavares, a teoria do injusto penal passa normalmente pela construo e consti-tuio do tipo de delito, complementada depois pela anlise negativa das causas de justificao da conduta.2

    O injusto penal composto pela unio entre o tipo penal e a ilicitude. Fica ali determinada a desconformidade da conduta com a normatividade de um or-denamento jurdico-penal. Para se completar o conceito de crime, ainda preciso incorporar a categoria da culpabilidade, como uma relao entre o agente censu-rvel e o injusto praticado. Conforme Figueiredo Dias, assim pode ser definido o conceito: Culpa a censurabilidade do comportamento humano por o culpado ter actuado contra o dever quando podia ter querido actuar de acordo com ele.3

    Conforme se ver a seguir, a completa separao entre o injusto e a cul-pabilidade foi primeiramente tratada por Jhering.4 Cuidava-se de conceito que, depois, foi introduzido no Direito Penal. Acresa-se a este estado de discusso da dogmtica jurdico-penal a noo de tipo penal meramente descritivo, desenvol-vida por Beling no incio do sculo XX.

    Somente com Mayer e Mezger, anos depois, que se comea a construir a noo do injusto penal com conotao subjetiva. Surgem as discusses sobre os elementos subjetivos e normativos do tipo penal de forma excepcional, frise-se. Contudo, no finalismo que essa noo subjetiva se estratifica no conceito aqui tratado, de forma definitiva e como regra geral.

    Em resumo, o que se apresentar neste captulo a decomposio do injus-to penal, com a formulao dos conceitos do tipo penal e da ilicitude. Mas qual seria a importncia desse estudo no contexto do trabalho? Explica-se: a perfeita conceituao do injusto penal importante para se determinar como se relacio-nam o tipo penal e a ilicitude. Eis a importncia da conceituao.

    2 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 129.3 DIAS, Jorge de Figueiredo. O problema da conscincia da ilicitude em Direito Penal. 5. ed.

    Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 183. Concordando com o autor, entende-se que a culpabilidade tem uma funo de limitao da

    atuao punitiva do Estado, cerceando os abusos passveis de ser praticados em virtude da atuao do Direito Penal. O autor afirma que tal funo se inscreve [n]a vertente liberal do Estado de Direito e reconduz o conceito de culpa jurdico-penal a uma valorao poltico--criminal fundamental (DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal; parte geral. Tomo I. 2. ed. portuguesa, 1. ed. brasileira. Coimbra/So Paulo: Coimbra Editora/Revista dos Tribunais, 2007, p. 274-275).

    4 Conforme assinala Welzel, na esfera do Direito Civil Jhering fez essa separao na obra sobre o Schuldmoment im rmischen Privatrecht (1867) (WELZEL, Hans. Estudios sobre el sistema de derecho penal. In: WELZEL, Hans. Estudios de derecho penal. Traduo de Gustavo Eduar-do Aboso y Tea Lw. Reimpresin. Buenos Aires/Montevidu: Euros Editores/B de F Ltda., 2007, p. 36).

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 9

    A inteno deste captulo determinar o conceito dogmtico de cada par-cela do injusto penal, para que se possa determinar como essas partes se relacio-nam. Comea-se com a definio da ilicitude e, posteriormente, ser analisado o tipo penal. Explica-se esta inverso. Adota-se a ideia de que o injusto penal se traduz em uma ilicitude tipificada. Primeiro, verifica-se a ilicitude da conduta, pelo seu carter de proibio. Em um segundo momento, incorpora-se a figura tpica a esta proibio, previamente identificada. Este o procedimento legisla-tivo de tipificao de um delito. Assim, a ilicitude deve ser analisada antes do tipo.

    2.2 Elementos componentes do injusto penal: a ilicitude

    2.2.1 Antecedentes tericos: o surgimento do conceito de ilicitude

    O conceito de ilicitude surgiu no moderno Direito Penal com uma carac-terstica de contrariedade objetiva do fato s normas positivadas. A censurabili-dade da pessoa, por subjetivamente querer se conduzir contrariamente norma, ficava para a culpabilidade. Percebe-se que esse momento histrico de sistema-tizao do conceito de ilicitude na teoria do Direito ficou marcado exatamente pela necessidade de se diferenci-la da culpabilidade.

    Pode-se afirmar que a separao entre o ilcito objetivo e a culpabilida-de subjetiva ocorreu com a sistematizao de Jhering,5 no final do sculo XIX, embora Luden j tenha apresentado esboo anterior em sentido semelhante ao desse conceito.6 Ainda, de se considerar a teoria de Thon, subjetiva como a de Merkel, mas tendente aceitao de algumas das concepes do ilcito objetivo de Jhering.7

    5 Conforme identifica Fernandez (FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito. Bogot: Universidad Externado de Colmbia, 2003, p. 215 e ss.).

    6 Lo primero que destaca en Luden, y lo que lo convierte en precursor de doctrinas futuras, aislndolo a la vez en su tiempo, es sin duda la ntida distincin sistemtica que lleva a cabo dentro de lo que determina tipo general (Allgemeine Tatbestand), figura que rene todas las caractersticas generales y comunes a los distintos tipos especiales, y que por ello Luden identifica con el propio concepto de delito. [...]

    En una primera aproximacin, este esquema parece una clara antecipacin del sistema triparti-do, que tanto xito alcanzara con Von Liszt y Beling, y as h sido generalmente considerado. (FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 170).

    7 Thon adota uma teoria intermediria entre Merkel e Jhering. Segundo o autor, as normas jurdicas se dirigem somente aos seres humanos, como um imperativo (com funo de de-terminao). A finalidade do Direito fazer com que as normas sejam cumpridas pelos seus destinatrios. Thon, sob clara influncia de Merkel, chega a afirmar que no puede esperar que el comportamiento de seres humanos sin razn sea determinado por sus imperativos (THON, August. Rechtsnorm und subjektives Recht, p. 77. apud KSTER, Mariana Sacher de. Evolu-cin del tipo subjetivo. Bogot: Universidad Externado de Colmbia, 1998, p. 51).

  • Luciano SantoS LopeS10

    Certo que Jhering separou a ilicitude objetiva (que compe o injusto ob-jetivo) de um injusto culpvel. A vontade humana, todavia, fundamental para que haja a atuao do Direito e a rotulao de ilcito conduta. Em resumo, ele sustentou que a ilicitude objetiva era simplesmente a leso ao direito (norma) conforme inteno expressada na ao humana.8 Era um ilcito objetivo e incul-pvel, fazendo a punio depender da culpabilidade subjetiva.

    Merkel, por sua vez, no concebia de forma idntica a separao entre ilici-tude e culpabilidade, em seu conceito de delito. Para ele, ilicitude era la lesin de un mandato o una prohibicin del Derecho.9 Saliente-se que ele adotava um conceito de norma com sentido meramente imperativo e, portanto, com finali-dade de determinao.

    Dessa forma, para esse autor era impossvel que se rotulasse como ilcita a conduta de um agente que no tivesse imputabilidade.10 A pessoa no seria destinatria da norma, porquanto a ela (norma) no teria como obedecer.11 O inimputvel no tem capacidade de se portar em conformidade com o impera-tivo determinado pela norma. Assim, seus atos no poderiam ser considerados ilcitos.12 No parece correta essa concepo.

    Todavia, afastando-se de Merkel, Thon considera a hiptese de um ilcito objetivo, apesar de sua teoria subjetivada. Ele comea a aceitar a ideia de que as normas regem tambm as con-dutas dos inimputveis e, assim, aproxima-se da concepo de Jhering. (KSTER, Mariana Sacher de. Evolucin del tipo subjetivo, p. 52)

    8 TAVARES, Juarez. Teorias do delito: variaes e tendncias. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 23.

    9 MERKEL, Adolf. Kriminalistiche Abhandlungen. 1 parte: Zur Lehre von den Grundein-teilungen des Unrecht und seinen Rechtsfolgen, p. 43. Apud KSTER, Mariana Sacher de. Evolucin del tipo subjetivo, p. 45.

    10 Solamente puede ser sujeto de un delito aquel individuo a cuya voluntad puedan atribuirse desde el punto de vista penal ciertos acontecimientos, por proceder de ella y caracterizarla, efecto de lo cual se ponen a cuenta y a cargo de ella. El conjunto de las propiedades de un individuo, que son decisivas en esta matria en el sentido de nuestro derecho vigente, constituye su impu-tabilidad y su culpabilidad. A estas propiedades pertenecen: 1) la faculdad jurdica del discer-nimiento [...]. 2) la interna capacidad espiritual [...]. (MERKEL, Adolf. Derecho penal; parte general. Traduco de Pedro Dorado Montero. Buenos Aires/Montevidu: Euros Editores/B de F Ltda., 2006, p. 53).

    11 Assim, em discordncia com Merkel, h trs situaes distintas para Jhering: 1) fatos naturais lesivos, que no so aes, nem so ilcitas; 2) aes humanas inculpveis, mas que so ilcitas; e, por fim, 3) aes culpveis e ilcitas. (FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 220).

    12 Merkel compara essa situao determinao de ilicitude aos fenmenos naturais da natureza. Isso porque, tanto quanto os atos dos inimputveis, os fenmenos naturais no podem ser controlados e nem dominados pela vontade humana (compreendida como capacidade de compreender o carter ilcito de uma conduta e de se portar conforme essa compreenso). Assim: [...] los sucesos de la natureza y la actividad de un inimputable no sean considerados ilcitos. En realidad, Merkel concibe como sucesos naturales a ambos fenmenos, es decir, a todo aquello que no puede estar referido a la voluntad inteligible del hombre (KSTER, Mariana Sacher de. Evolucin del tipo subjetivo, p. 46).

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 11

    Compreendendo a ilicitude como uma contrariedade norma, e se esta um imperativo com funo apenas de determinao, constata-se que o inim-putvel no destinatrio da mesma. Diante dela (norma), ele no consegue se portar.13 Assim, os atos que praticar no podem ser taxados de ilcitos, porque iriam gerar um ilcito inculpvel. O que ocorre que Merkel no concebeu um ilcito no punvel e, assim, no desfez adequadamente a unio entre a ilicitude e a culpabilidade.

    Merkel adotou um conceito de delito com pressupostos objetivos e subje-tivos.14 Todavia, dada a ligao da culpabilidade com a ilicitude, essa separao que ele realizou ainda traz um conceito unitrio de delito, incapaz de cindir as partes subjetivas e objetivas do mesmo. Merkel apresentou um conceito de delito fortemente centrado na vontade (expressada na culpabilidade).15

    A partir dessa dicotomia anunciada (ilicitude e culpabilidade), Welzel refor-ou a diferenciao entre o hecho injusto de otro injusto-culpable.16 O autor tam-bm assinalou, mais especificamente, a necessidade de o conceito de ilicitude (que faz parte do injusto penal) ter significado autnomo em relao culpabilidade.

    Certo que o termo ilicitude surgiu no Direito Penal moderno no sculo XIX, exatamente com essa apropriao do conceito sistematizado por Jhering, para o Direito Civil. Como j foi antes mencionado, ao conceito objetivo de ilicitude foi adicionado outro: o da culpabilidade subjetiva.17

    Com o sistema causalista, o Direito Penal acrescentou aos conceitos de ili-citude objetiva e de culpabilidade subjetiva o conceito de tipo penal. Beling, em 1906 (na obra Die Lehre von Verbrechen), apresentou o conceito de tipo penal independente da antijuridicidade e da culpabilidade. Foi o ltimo elemento do crime a ser analisado e individualizado.

    13 Merkel, segundo Maurach e Zipf, crea posible negar el carcter de accin del actuar del incapaz de culpabilidad, de modo tal que slo el actuar del destinatario idneo de la norma deba entenderse como una accin en sentido jurdico y, con ello, como objeto de valoracin. (MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal; parte general. Tomo 1. Traduo de 7. ed. por Jorge Bofill Genzsch y Enrique Aimone Gibson. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1994, p. 419).

    14 Los caracteres constitutivos del delito pueden dividirse en referentes al aspecto interno del he-cho y referentes al aspecto externo. Los primeros forman los elementos subjetivos o internos del delito, y los segundos los objetivos externos. (MERKEL, Adolf. Derecho penal; parte general, p. 34).

    15 Segundo Merkel, la culpabilidad no es algo existente al lado de la conducta causal del culpa-ble, algo independiente de esa conducta, algo formado de una especial material, sino que es la misma conducta causal, apreciada con arreglo a los criterios dominantes y digna de imputacin segn estos criterios. (MERKEL, Adolf. Derecho penal; parte general, p. 72).

    16 WELZEL, Hans. Estudios sobre el sistema de derecho penal. In: WELZEL, Hans. Estudios de derecho penal, p. 35.

    17 La teoria de la antijuridicidad objetiva slo se impuso luego de considerables dificultades que debi superar, entre ellas, la autoridad de A. Merkel [...]. (MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal; parte general. Tomo 1, p. 419).

  • Luciano SantoS LopeS12

    Antes dessa tripartite definio de crime, havia apenas uma diviso entre a parte objetiva (ilicitude) e subjetiva (culpabilidade) das condutas que contraria-vam a ordem jurdica. Von Liszt, por exemplo, utilizou-se dessa diviso no Di-reito Penal: Crime o injusto contra o qual o Estado comina pena, e o injusto, quer se trate de delito do Direito Civil, quer se trate do injusto criminal, isto , do crime, a ao culposa e contrria ao Direito.18

    Nota-se que, para Von Liszt, o crime uma ao contrria ao Direito (ilici-tude), que acarreta culpabilidade.19 A figura do tipo penal, que define os exatos contornos descritivos das aes criminosas punveis, surge somente depois na literatura jurdico-penal (com Beling).

    Assim, a partir desse momento que se obtm elementos para conceituar a ilicitude como constituinte do injusto penal. Evidentemente, no se concebe tal conceito de injusto sem a presena do tipo penal. As referncias histricas aqui apresentadas apenas mostram o caminho trilhado at a conceituao atualizada dos institutos que aqui sero analisados.

    2.2.2 Definies terminolgicas

    2.2.2.1 Ilicitude e antijuridicidade

    A primeira questo a ser tratada no conceito da ilicitude a uniformizao terminolgica devida ao estudo. Neste trabalho ser utilizada a expresso ilicitu-de como sinnimo de antijuridicidade, seguindo-se a tradio da doutrina ptria quanto ao tratamento nominal do instituto. O prprio Cdigo Penal brasileiro utiliza tal nomenclatura, especialmente desde a reforma de sua parte geral, em 1984.

    Toledo, por sua vez, tambm utiliza o termo ilicitude. Para o autor, o uso da expresso antijuridicidade no parece to correto. Ele se apoia em Carnelutti

    18 VON LISZT, Franz. Tratado de Direito Penal. Tomo I. Traduo e comentrios de Jos Higino Duarte Pereira. Atualizao e notas de Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: Russel, 2003, p. 209.

    19 Que se apresentava, naquele momento histrico, de forma psicolgica. Culpabilidade era a re-lao subjetiva do autor com o prprio fato. Era o momento revelador da vontade do agente. Liszt assim a conceituava: O injusto criminal, como o delito civil, ao culposa. No basta que o resultado possa ser objetivamente referido ao ato de vontade do agente; tambm neces-srio que se encontre na culpa a ligao subjetiva. Culpa a responsabilidade pelo resultado produzido. No Direito Penal, trata-se somente do fato de incorrer o agente em responsabi-lidade criminal; a desaprovao da ao ao mesmo tempo pronunciada, o juzo sobre o seu valor jurdico ou moral (acentuado por Merkel) em relao quele fato e portanto idia de culpa circunstncia completamente acessria. Segundo o Direito atual e abstrao feita de algumas excees esparsas, a culpa supe: 1, a imputabilidade do agente [...]; 2, a imputao do resultado. Esta se d: a) quando o resultado foi previsto (dolo, a seguir nos 38 e 40); b) quando o resultado no previsto podia s-lo (culpa em sentido estrito, vide o 41) (VON LISZT, Franz. Tratado de Direito Penal. Tomo I, p. 260).

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 13

    para demonstrar o paradoxo da expresso: [...] que o delito seja um fato ou um ato jurdico e, ao mesmo tempo, um fato ou um ato antijurdico.20

    A doutrina europeia, ao contrrio, usa com frequncia a expresso antiju-ridicidade.21 Todavia, igualmente da tradio portuguesa o uso da expresso ilicitude. Assim, vejam-se Figueiredo Dias e Eduardo Correia, por todos.

    Certo que nenhum fato (ou ato) antijurdico, exatamente porque re-gulado pelo instrumental jurdico. O fato (ou ato) , na estrutura jurdica (e no antijurdica), proibido/ilcito. Em resumo, a expresso a ser usada, salvo quando se fizer transcrio de obras no original, ilicitude.

    2.2.2.2 Ilicitude e injusto penal Inicialmente, veja-se a seguinte constatao feita por Fragoso: Na Alema-

    nha, os autores empregam a Reichtswidrigkeit (antijuridicidade), ao lado da ex-presso Unrecht (ilcito ou injusto), em geral, indiferentemente como sinnimos.22 No concordando com tais expresses, o autor usa a terminologia de Welzel para diferenciar os institutos em questo: a antijuridicidade uma relao; o ilcito, porm, algo substancial: o prprio comportamento antijurdico. A antijuridici-dade um predicado; ilcito, um substantivo.23

    20 CARNELUTTI, Francesco. Teoria general del delito, p. 18. Apud TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de Direito Penal. 5. ed. So Paulo: Saraiva, 1994, p. 159.

    21 Bitencourt, seguindo a tradio europeia, prefere o uso da expresso antijuridicidade. Justifica tal escolha: a invocao constante que fazemos da doutrina estrangeira, por outro lado, nos recomenda esta preferncia terminolgica (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direi-to Penal; parte geral. Tomo I. 8. ed. So Paulo: Saraiva, 2003, p. 241).

    22 FRAGOSO, Heleno Cludio. Antijuridicidade. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Pe-nal, p. 3. Disponvel em: .

    Mezger, seguindo essa tendncia de no separar esses conceitos, assim escreveu: Una accin es punible si es antijurdica. La antijuridicidad, o, como se acostumbra decir en la actualidad, el injusto, es presupuesto imprescindible de todo hecho punible. Antes, el trmino ms usado era antijuridicidad, que significa, sencillamente, que el delito constituye una violacin del derecho, o sea, que contradice el derecho. Hoy, en virtud de la aversin que si tiene a conceptos rigurosos y cierta predileccin por expresiones ms vagas, se prefiere emplear, como decamos, la palabra injusto (literalmente; no derecho: unrecht), que determina el concepto, precisa-mente, con menor exactitud que la otra. De todos modos, emplearemos ambas expresiones (antijuridicidad e injusto) como sinnimas. (MEZGER, Edmund. Tratado de derecho penal. Tomo I, p. 131).

    23 WELZEL, Hans. Strafrecht, p. 42. Apud FRAGOSO, Heleno Cludio. Antijuridicidade. Re-vista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Disponvel em: . Acesso em: 3 set. 2012.

    Welzel assim define o uso das expresses: Los conceptos antijuricidad e injusto son utilizados por lo comn indiferentemente. Esto es en muchos casos inocuo; sin embargo, puede conducir a malos entendidos en cuestiones importantes. Antijuricidad es una caracterstica de la accin y, por cierto, la relacin que expresa un desacuerdo entre accin y orden jurdico. En cambio, lo injusto es la accin antijurdica como totalidad; por tanto, el objeto junto con su predicado de valor, es

  • Luciano SantoS LopeS14

    Para Fragoso, Welzel usou as expresses injusto e ilcito como sinnimas, diferenciando-as da antijuridicidade. Ocorre que no h uniformizao nessas nomenclaturas. Na traduo de Rgis Prado24, a mesma citao de Welzel (trazida por Fragoso) faz a dicotomia entre antijuridicidade e injusto, no mencionando a expresso ilcito. Ainda conforme se esclareceu no item anterior (2.2.2.1), h no Brasil a utilizao das expresses ilcito e antijurdico como sinnimas, seguindo orientao portuguesa e diferenciando-as da expresso injusto.

    Para padronizar a leitura, neste trabalho adotar-se-o as seguintes nomen-claturas (salvo nas transcries de obras), de acordo com separao feita por Welzel: ilicitude (como sinnimo de antijuridicidade) predicado e injusto substantivo.25

    A composio do injusto penal se d com a unio do tipo penal e da ilici-tude. Esses institutos no perdem as suas caractersticas de categorias autnomas da teoria do crime. Formam, juntos, um conceito maior: o injusto penal. Assim, enquanto o tipo penal descreve uma conduta proibida, a ilicitude determina uma relao de contradio entre essa conduta e a totalidade da ordem jurdica.26

    Roxin, ao explicar as categorias do delito, parece conceber a existncia do injusto penal em termos um pouco diversos daquele aqui sustentado. Ele assim afirma, aps conceituar ao e tipo: en este tercer escaln del delito debera ha-blarse de injusto y no de mera antijuridicidad.27 Ele explica que, pelo fato de no considerar a ilicitude uma categoria especfica do Direito Penal ( de toda a ordem jurdica), o injusto que deve conter os conceitos de ao e de tipo penal.

    Ao analisar a parte de sua obra destinada ao estudo especfico da ilicitude, concorda-se com a forma com que Roxin separa os dois termos:

    Los conceptos sistemticos penales de la antijuridicidad y del injusto se distinguen en que la antijuridicidad designa una propriedad de la accin tpica, a saber, su con-tradiccin con las prohibiciones y mandatos del Derecho Penal, mientras que por injusto se entiende la propia accin tpica y antijurdica, o sea el objeto de valoracin de la antijuridicidad junto con su predicado de valor.28

    decir, la accin misma valorada y declarada antijurdica. Lo injusto es un sustantivo: la accin antijurdica, la antijuricidad, en cambio, solamente una relacin, la caracterstica axiolgica de referencia en la accin (WELZEL, Hans. Derecho penal; parte general. Traduo de Carlos Fontn Balestra. Buenos Aires: Roque Depalma Editor, 1956, p. 58).

    24 Na traduo de Luiz Rgis Prado: WELZEL, Hans. O novo sistema jurdico-penal; uma intro-duo doutrina da ao finalista. Traduo, prefcio e notas de Luiz Regis Prado. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 53.

    25 Toledo usa a mesma diviso conceitual, bem como a mesma nomenclatura: TOLEDO, Fran-cisco de Assis. Ilicitude penal e suas causas de excluso. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 5.

    26 TAVARES, Juarez. Teoria do injusto penal, p. 116.27 ROXIN, Claus. Derecho penal; parte general. Tomo I. 5. reimpresso. Traduo da 2. ed. por

    Diego-Manuel Luzn Pea, Miguel Das, Garca Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Ma-drid: Civitas, 2008, p. 219.

    28 ROXIN, Claus. Derecho Penal; parte general. Tomo I, p. 557-558.

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 15

    Explica-se a preferncia de Roxin pelo termo injusto. Ele o considera espe-cfico do Direito Penal, ao contrrio da ilicitude, que ele entende ser unitria a todo o ordenamento. Na essncia, entretanto, ele no extrapola quanto ao con-ceito de injusto penal, entendendo-o como unio da ao, do tipo e da ilicitude.

    2.2.2.3 Ilicitude e antinormatividade

    Outra separao terminolgica a ser feita aquela entre ilicitude e antinor-matividade. Welzel, ao seu modo, determina os dois conceitos. O autor entende que, no tipo penal, h a descrio de condutas valoradas como proibidas pela norma penal. Quando esses tipos so efetivamente verificados na conduta con-creta, h ofensa norma implcita no tipo em questo, contradizendo-a ( norma proibitiva/imperativa) e fazendo surgir a antinormatividade da conduta humana.29

    Um conceito parecido dado por Zaffaroni/Alagia/Slokar. Eles tambm deslocam a ideia de antinormatividade para a tipicidade:

    Con la tipicidad de la accin se afirma su antinormatividad, o sea, la contradiccin de sta con la norma deducida del tipo, considerada aisladamente (tipo sistemtico) y conjugada con las otras normas prohibitivas deducidas de toda la legislacin (tipi-cidad conglobante).30

    Welzel, nesse mesmo sentido, ainda afirma que a realizao do tipo acarreta a antinormatividade, mas nem sempre a ilicitude, que es, en cambio, la contra-diccin de la realizacin del tipo con el ordenamiento jurdico en su conjunto.31

    Todavia, com entendimento diverso, pode-se afirmar que a expresso anti-normatividade se vincula ao conceito formal de ilicitude. Trata-se da contrarie-dade da conduta a uma norma jurdica expressa em um tipo penal.32

    29 WELZEL, Hans. Derecho penal aleman. Traduo de Juan Bustos Ramirez e Sergio Yez Prez. Santiago: Ed. Jurdica de Chile, 1970, p. 76.

    30 ZAFFARONI, Eugnio Ral; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Manual de derecho penal; parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2006, p. 459.

    Essa vinculao da antinormatividade com a tipicidade, constante da obra de Zaffaroni/Ala-gia/Slokar, ser retomada frente. Especificamente, no item 3.4.2 a questo ser enfrentada em anlise crtica dicotomia feita pelos trs autores (e tambm por Welzel) entre antinorma-tividade e antijuridicidade.

    31 WELZEL, Hans. El nuevo sistema del derecho penal; una introduccin a la doctrina de la accin finalista. Traduccin y notas por Jos Cerezo Mir. Tercera reimpresin. Buenos Aires/Montevidu: Euros Editores/B de F Ltda., 2006, p. 89.

    32 El concepto de antijuridicidad surgi histricamente, como acredita su propria etimologa, para expresar la contradiccin entre el comportamiento de una persona y lo jurdicamente prescrito. Antijuridicidad y antinormatividad son, por ello, expresiones que en la mayor parte de las teoras se utilizan expresa o tcitamente como sinnimas, y cuando se habla de la antijuridicidad en estos trminos suele adjetivarse con la expresin formal. (FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 63).

  • Luciano SantoS LopeS16

    Realmente, analisando-se detidamente a noo de antinormatividade, as atenes se voltam s construes formais da ilicitude, que frente sero devida-mente especificadas. Certo que a ideia de ilicitude meramente formal realmente se confunde com a antinormatividade, sendo que ambas se constituem a partir da noo de contrariedade de uma conduta norma.

    Fernandez explica que existiram duas formas de conceituar a ilicitude a partir da norma: ligando a ilicitude a uma infrao norma de comportamento; ou identificando-a com um pressuposto de aplicao de uma norma de sano. A primeira forma se liga teoria da norma de Binding33 e identifica a ilicitude formal com a antinormatividade. Tal concepo associa esse elemento do injusto (ilicitude) com a desobedincia norma protegida.34

    Assim, a norma determina quais condutas so permitidas e quais so proi-bidas/ordenadas na ordem jurdica.35 A ilicitude, apenas no seu sentido formal,

    33 Maurach e Zipf assim interpretam a teoria de Binding: las normas son aquellos mandatos jurdicos, escritos o no escritos, conceptualmente anteriores a la ley penal, pertenecientes al de-recho pblico, cuyo contenido, en caso de no poder ser averiguado fuera del derecho penal, en derecho positivo o el consuetudinrio, por lo regular puede ser captado en la parte dispositiva de la conminacin penal (MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal; parte general. Tomo I, p. 342).

    Deve-se ressaltar que a concepo de Binding sobre a teoria das normas sofreu mudanas que podem ser verificadas em trs fases distintas. Em sua posio inicial, ele afirmou que la antijuridicidad, no es otra cosa que el comportamiento contrario a la norma (Normwidrigkeit); por otro, la norma es una expresin jurdica de carcter imperativo, una orden [...] (FER-NNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 313). Sua posio inicial, como se percebe, era prxima teoria sustentada por Merkel.

    Posteriormente, Binding se afasta de Merkel, em uma segunda fase de seus estudos. Passa a conceber que so duas as funes da norma: de determinao e de valorao. Aquela primeira funo, de determinao, admite existir um juzo de reprovao pessoal ao autor pela sua desobedincia norma. J a segunda funo, de valorao, apresenta um juzo de desvalor objetivo de um fato que est em contradio com a norma (KSTER, Mariana Sacher de. Evolucin del tipo subjetivo, p. 55-57). A ilicitude se liga funo de valorao, sendo a cul-pabilidade (pessoal e subjetiva) ligada determinao (s os imputveis podem se determinar diante da norma).

    Por fim, Fernandez informa existir uma terceira etapa de estudos de Binding (que, igualmente, Mir Puig adota). Nesta fase, ele sustentou uma renuncia a la identificacin de antijuridicidad y antinormatividad para centrar aquella directamente en la lesividad objetiva del hecho para los bienes jurdicos. Con ello se trata de preservar tanto una concepcin instrumental-imperati-va de la norma como un concepto de antijuridicidad material ligado a la lesividad del hecho (FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 27). Contu-do, parece que esta terceira fase de estudos de Binding no se coloca em oposio segunda. Ao contrrio, apenas acresce a noo de ilicitude material s suas anlises. Realmente, em sua concepo material a ilicitude no se identifica mais com antinormatividade.

    34 FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 64.35 Uma meno deve aqui ser feita, para demonstrar o pensamento de Zaffaroni, Alagia e Slokar.

    Para esses autores, no adequado afirmar que a norma define quais condutas so proibidas e quais so permitidas. Eles separam o conceito de norma proibitiva e de preceito permissivo

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 17

    por evidente, a manifestao de desobedincia a esta norma proibitiva/impera-tiva. Por isso, sob essa premissa terica, deve ser identificada com a antinorma-tividade.

    A segunda forma de se analisar o conceito de ilicitude a partir das normas, ainda conforme Fernndez, no mais afirma que a ilicitude infrao norma. Trata-se de compreender a ilicitude como pressuposto de aplicao das normas de sano, na reao estatal contra as situaes proibidas pelo ordenamento ju-rdico (como norma secundria, ou preceito secundrio da norma).36 Seria o Di-reito Penal um exemplo claro dessa ideia de conjunto de normas sancionatrias.

    Vargas, em anlise crtica dessa concepo, coloca-se firmemente contrrio tese da antijuridicidade geral e de um direito penal to-somente sancionador [...].37 O autor questiona a concepo de Binding de que alguns ramos do Di-reito seriam constitutivos de normas (Direito Civil, o antigo Direito Comercial, hoje denominado Empresarial, etc.), enquanto ao Direito Penal sobraria apenas um carter sancionador de leses a bens pertencentes a esses outros direitos.38

    Contudo, ao se destacar o contedo material da ilicitude, h um afastamen-to dessa identificao entre antinormatividade e ilicitude. A ideia determinar que a ofensa ao Direito (bens jurdicos) o elemento que completa o conceito de ilicitude, afastando-o da mera antinormatividade.39 Essa tendncia sustenta a funo de determinao da norma.

    Assim, uma questo j pode ser concluda: a antinormatividade no encerra o conceito da ilicitude, que no pode ser considerada meramente formal (e, por-tanto, mera contrariedade do fato com a norma).

    Mais ainda, pode-se concluir que o Direito Penal realmente sancionador de normas violadas em outros ramos do Direito (civil, empresarial etc.). Todas elas (normas), todavia, devem ter valorao constitucional.

    Apesar de sua natureza sancionatria, o sistema penal tem autonomia na escolha do objeto de suas proibies, diante das possibilidades valorativas apre-sentadas pela Constituio; isso no se discute, notadamente se h a recepo dos

    (excludente da ilicitude). Separam, assim, a ordem normativa da ordem jurdica: De all que de la legislacin no slo se deduzcan normas prohibitivas, sino tambin preceptos permissivos: la interpretacin no contradictoria de las primeras es el orden normativo; la interpretacin no contradictoria del orden normativo con los preceptos permissivos, es el orden jurdico (ZAFFA-RONI, Eugnio Ral; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Manual de derecho penal; parte general, p. 459).

    36 FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 64.37 VARGAS, Jos Cirilo de. Instituies de direito penal: parte geral. Tomo I, p. 318. 38 VARGAS, Jos Cirilo de. Instituies de direito penal; parte geral. Tomo I, p. 319. Ao que parece, Vargas entende que esta segunda forma de se analisar a ilicitude a partir das

    normas tambm deriva da teoria de Binding, de forma um pouco diversa do que escreveu Fernndez.

    39 Veja-se a obra de Mir Puig: MIR PUIG, Santiago. Derecho penal; parte general. 7. ed. 2. reim-presin. Buenos Aires/Montevidu: Euros Editores/B de F Ltda., 2005, p. 156 e ss.

  • Luciano SantoS LopeS18

    princpios da fragmentariedade e da subsidiariedade. Certo , ainda, que existe uma adequada construo doutrinria sobre o conceito de bens jurdicos pass-veis de tutela em um Direito Penal constitucionalizado. O bem jurdico o valor protegido pelo ordenamento penal. objeto da tutela penal.

    Assim, e por tudo o que se apresentou, essa utilizao de antinormatividade e ilicitude como sinnimos encontra forte e sria resistncia na doutrina. A iden-tificao entre os dois conceitos surgiu, em parte, pela identificao da ilicitude apenas com sua natureza formal, desconsiderando a parcela material de seu con-ceito. Acrescente-se aos motivos dessa identificao a grande aceitao da teoria da norma de Binding, em determinado momento histrico da dogmtica penal.

    2.2.3 Ilicitude formal e material

    Deve-se analisar a diferena entre os conceitos de ilicitude formal e material tendo-se em vista as funes do Direito Penal. Importa compreender, ainda, como tais conceitos (da ilicitude) se encaixam nessa viso funcional. Convm demonstrar como esse raciocnio terico se desenvolveu.

    Tem-se convencionado conceituar a ilicitude formal como a relao de con-trariedade existente entre a conduta praticada e a norma jurdica de proibio/mandamento.40 Tal conceito esteve presente na elaborao inicial do referido instituto e remonta a uma anlise causal da teoria do crime.

    Entretanto, desde Von Liszt, desdobra-se o conceito de ilicitude tambm em sentido material.41 A dicotomia era clara: enquanto a ilicitude formal se liga desobedincia norma, a ilicitude material conceituada como a ofensa ou perigo de ofensa ao bem jurdico protegido.

    H uma controvrsia ao se analisar os dois conceitos de ilicitude: so aut-nomos e independentes entre si, ou so formas complementares de se analisar a ilicitude? Desta dvida, surgiram as teorias da independncia e da correspondn-cia (alm de outras intermedirias):

    La cuestin principal que se plantea en este punto es si al diferenciar entre antijuridici-dad formal y material estamos aludiendo a dos conceptos distintos de antijuridicidad (tesis de la independencia), o tan solo a dos aspectos o perspectivas de un mismo concepto (tesis de la correspondencia). En este ultimo caso habria, adems, que deter-minar que papel cumple la distincin desde una perspectiva prtica.42

    40 Assim, nas obras de Toledo (TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal, p. 161), de Vargas (VARGAS, Jos Cirilo de. Instituies de direito penal; parte geral. Tomo I, p. 316), de Maurach e Zipf (MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz. Derecho penal; parte general. Tomo I, p. 421), de Mir Puig (MIR PUIG, Santiago. Derecho penal; parte general, p. 156), entre outros autores.

    41 Veja-se tal informao na obra de Reale Jr. (REALE JR., Miguel. Teoria do delito. 2. ed. rev. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 93).

    42 FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 49.

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 19

    Na tese de independncia, a concepo material de ilicitude era vinculada a um conceito sociolgico, no qual se avaliaria a lesividade social da conduta fora do Direito Positivo. Assim, conclui-se que seria possvel que um fato fosse mate-rialmente ilcito sem o ser formalmente, e vice-versa. Seriam conceitos totalmente distintos.

    O sistema causalista se construiu em contraposio a essa ideia de inde-pendncia. Beling, por exemplo, negava que se pudesse considerar juridicamen-te um fato socialmente lesivo ilcito (ou perigoso). Afirmava, ainda, que no se poderia deixar s normas de cultura a determinao do contedo da ilicitude.43 Tais caractersticas eram sociolgicas e, portanto, no poderiam compor a ili-citude, que um conceito jurdico. Somente deveria ter relevncia a ilicitude formal.

    Tambm com Von Liszt, percebe-se que a noo material de ilicitude no se limitava ofensa a bem jurdico.44 Mais que isso, ele afirmava que:

    o ato formalmente contrrio ao Direito enquanto transgresso de uma norma estabelecida pelo Estado, de um mandato ou de uma proibio da ordem jurdica. O ato materialmente ilegal enquanto significa uma conduta contrria sociedade (anti-social).45

    43 FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 49-50. Quanto s normas de cultura, de forma um tanto diversa de Binding, Mayer assim as concei-

    tua: Como las leyes toman su contenido de la cultura, as tambin lo dejan fluir en la cultura. El Derecho mismo trabaja junto con ella en la conservacin y el perfeccionamento de usos y costumbres, de la moralidad y el sentido de la rectitud. La concordncia entre normas jurdicas y normas de cultura se explica slo en parte merced a la influencia que ejerce la cultura sobre el Derecho; se explica cabalmente a partir del efecto recproco entre Derecho e cultura (MAYER, Max Ernst. Normas jurdicas y normas de cultura. Traduo de Jos Luis Guzmn Dlbora. Buenos Aires: Hammurabi, 2000, p. 62).

    Para Mayer, as pessoas infringem normas de cultura (e no normas jurdicas). Isso porque o acesso cognitivo se d em relao quelas em primeiro lugar. As normas de cultura seriam um pressuposto para a aplicao da sano constante do preceito secundrio da norma jurdica. A lei penal se dirige ao Estado (e nisso Binding e Mayer se aproximam). Mais que isso, as normas de cultura se transformam em normas jurdicas quando h o seu reconhecimento social pelo Estado.

    44 Reale Jr., concordando com a crtica de Rocco, sustenta que a ilicitude conceituada por Von Liszt era meramente formal. Ainda, a noo de ofensa ao bem jurdico se traduz no dano, que um elemento do delito que tenha resultado natural (e no apenas da ilicitude). Esta conti-nuava sendo uma contrariedade norma, formalmente analisada. (REALE JR., Miguel. Teoria do delito, p. 93-94).

    O que Rocco tambm afirmava era, em resumo, que a ilicitude formal era a nica existente, sendo que a noo material do conceito se ligava ao crime como um todo: ofensa a bem jurdico um elemento do crime, com a ao e a culpa. (FRAGOSO, Heleno Cludio. Anti-juridicidade. Revista Brasileira de Criminologia e Direito Penal. Disponvel em: ). Acesso em: 3 set. 2012.

    45 VON LISZT, Franz. Tratado de derecho penal, p. 335-336. Apud VARGAS, Jos Cirilo de. Instituies de direito penal; parte geral. Tomo I, p. 316.

  • Luciano SantoS LopeS20

    Certo que, desde o incio dessa discusso entre o conceito de ilicitude for-mal e material, parte da doutrina causalista parecia aceitar o conceito material como sendo meramente sociolgico, afastando-o. Admitia-se, portanto, a existncia de independncia dos conceitos, sem se dar validade jurdica concepo material.

    Volta-se questo da validade jurdica da ilicitude material. Dizia Von Liszt que formalmente ilcito era o comportamento humano que violava a norma penal. J o conceito de substancialmente ilcito se ligava ao comportamento hu-mano que feria o interesse social tutelado pela prpria norma.

    Todavia, conforme Fernndez, em determinados momentos, Von Liszt pa-recia admitir que o conceito material poderia ser jurdico. Isso acarretaria uma aproximao entre os conceitos formais e materiais, situando ambas as formas da ilicitude no plano jurdico. Trata-se da denominada tese intermediria (entre a tese de independncia e de correspondncia). Veja-se, nesse sentido, a doutrina de Von Liszt, diferenciando a ilicitude formal da material e verificando-as como sendo oriundas da ordem jurdica (especificamente nas excludentes): esta lesin o riesgo ser materialmente legtima, apesar de ir dirigida contra intereses juridi-camente protegidos, en el caso y en la medida en que responda a esos fines del orden jurdico, y, por consiguiente, a la misma convivencia humana.46

    Entretanto, pensa-se que outras passagens do referido autor resolvem a d-vida sobre qual tese ele adotou.

    Ainda h a crtica de Roxin, no sentido de que esse conceito material de ilicitude de Von Liszt tem um carter metajurdico, sendo mais um princpio de poltica criminal do que uma categoria jurdico-positiva.47 Assim, e com base nessa crtica de Roxin, Fernndez apresenta outra citao de Von Liszt, na qual realmente parece clara sua opo pela tese da independncia, tal como indicava a tendncia da teoria causalista que este ltimo sistematizou.

    Este contenido material (antisocial) de la infraccin es independiente de su exacta apre-ciacin por el legislador. La norma jurdica se encuentra ante l; ella no lo crea. La ilegalidad formal y material pueden coincidir, pero pueden tambin discrepar. No es presumible una contradiccin semejante entre el contenido material del acto y su apre-ciacin jurdica positiva, pero no es imposible. Caso de que exista, el juez est ligado por la ley; la rectificacin del derecho vigente est ms all de los limites de su misin.48

    Pelo que se apresentou de Von Liszt, parece prevalecer a tese de independn-cia entre a ilicitude formal e material.49 A dvida toda surgiu com a definio

    46 VON LISZT, Franz. Tratado de derecho penal, p. 336-337. Apud FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 51.

    47 ROXIN, Claus. Derecho penal; parte general. Tomo I, p. 561.48 VON LISZT, Franz. Tratado de derecho penal, p. 336-337. Apud FERNNDEZ, Fernando

    Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 51.49 Esta tambm a concluso de Fernndez: desdiciendo sus anteriores manifestaciones, Von

    Liszt parece ahora inclinarse claramente por la tesis de la independencia: de manera espresa

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 21

    que ele deu ilicitude material: seria jurdica a reprovao a bens protegidos por normas jurdicas (e no sociolgica, extralegal ou um princpio poltico-crimi-nal)? Todavia, qualquer que seja a concluso, suas ideias propiciaram um avano rumo s teorias modernas. Parece prudente afirmar que a ilicitude material, para Von Liszt, tem funo corretiva em relao ilicitude formal.

    Atualmente, entretanto, h um afastamento dessa perspectiva sociolgica da ilicitude material (tese da independncia), aceitando-a no plano do Direito positivado.50 Assim, deixando de lado a tese da independncia, duas so as for-mas de se compreender o conceito.51 Em uma primeira maneira de analisar a situao, tem-se a identificao entre a ilicitude formal e a material, sendo ambas apenas perspectivas diversas do mesmo instituto (no havendo contrariedade entre as duas categorias). Tal teoria denominada tese da correspondncia: a ao formalmente proibida tem desvalor material, agressor de algum bem protegido pela norma. No h muita praticidade na distino para essa primeira forma de anlise moderna.

    Toledo52 considera que a distino entre ilicitude formal e material desne-cessria. Ele entende que a ilicitude de uma conduta ser relevante para o Direito Penal somente quando houver verificao de contrariedade do fato norma que seja acrescida de ofensa ou ameaa de ofensa a bem jurdico tutelado pelo ordenamento normativo penal. Em outras palavras, o desvalor do resultado deve ser analisado juntamente com o desvalor da ao para que a ilicitude tenha im-portncia para o Direito Penal.

    menciona que la lesividad social es independiente de su apreciacin por el legislador y previa a la norma, y incluso a pie de pgina llega a calificar a la antijuridicidad material de prin-cipio extralegal (FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 52).

    50 Sauer, ainda em meados do sculo XX, j sustentava essa duplicidade no conceito: Objeto del injusto es el obrar, es decir el actuar o el omitir. La medida es la antijuridicidad. sta significa formalmente: Iegalidad; materialmente: Contradiccin con la justicia social as como con el bien comn (estatal) es decir la danosidad social o por lo menos la peligrosidad social (SAUER, Guillermo. Derecho penal; parte general. Traduo de Juan del Rosal e Jos Cerezo. Barcelona: Bosch, 1956, p. 95). de se perceber, todavia, que o autor no rechaa a ideia da utilizao do conceito material. Ele utiliza, inclusive, a ideia da periculosidade das condutas entre os fundamentos possveis para a definio do conceito em questo.

    Todavia, mesmo admitindo o conceito material de ilicitude, Sauer faz uma importante adver-tncia: El injusto material es la negacin de la idea del Derecho y soberepasa por conseguiente ampliamente la competencia de una disciplina especial. Para la estructura de la antijuridicidad que deviene penalmente relevante nos limitaremos a los seguintes principios (SAUER, Guil-lermo. Derecho penal; parte general, p. 96). Tais princpios elencados por Sauer tambm o esto na mesma obra citada (p. 108-109): ejercicio formal de derechos y facultades acuadas tpicamente; fomento de interesses vitales en direccin al bin comn; proteccin de interesses vitales en especial por la desviacin del peligro y la ayuda en la necessidad, entre otros.

    51 FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 54.52 TOLEDO, Francisco de Assis. Princpios bsicos de direito penal, p.162.

  • Luciano SantoS LopeS22

    Os aspectos materiais e formais da ilicitude so inseparveis, o que levou Bettiol a assinalar que no tem razo de existir distino entre as duas concep-es. Somente ilcita a conduta que lesiva a um bem jurdico. Mais: fala-se hoje de um primado da antijuridicidade material que se sobrepe quela mera-mente formal, at dilacerar os limites colocados pela lei positiva. As exigncias da vida devem sobrepujar as consideraes lgico-formalsticas [...].53

    Ocorre que, ainda de acordo com Fernndez54, h aquela segunda forma de se analisar a ilicitude, que no muito diversa da primeira, ao menos na questo da correspondncia entre as esferas formal e material da ilicitude. Na realidade, ao se perceber a praticidade da distino entre as referidas esferas, chega-se concluso de que existe uma tese intermediria (nem de independn-cia e nem de correspondncia). A ilicitude material tem importncia prtica (no apenas destacando um aspecto lesivo conduta proibida), tendo as se-guintes funes:

    La importancia prtica de la anijuridicidad material es triple: permite realizar gradua-ciones del injusto y aprovercharlas dogmticamente, proporciona medios auxiliares de interpretacin para la teora del tipo y del error y para solucionar otros problemas dogmticos, y hace posible formular los principios en los que se basan las causas de exclusin del injusto y determinar su alcance55.

    De acordo com a transcrio apresentada, algumas funes da ilicitude ma-terial fazem referncia ao direito positivado (sendo um conceito material-posi-tivo). Em outras ocasies, trata-se de um conceito poltico-criminal (material--crtico). Todavia, essa tenso em se aceitar as implicaes poltico-criminais na ordem jurdica positiva devem perder o sentido em uma cincia penal moderna.

    Como, por exemplo, graduar o injusto, seno com elementos poltico--criminais de valorao da proibio conforme o grau de lesividade dos bens jurdicos tutelados pela ordem positiva? Formalmente, a ilicitude existe ou no, sem possibilidade de graduao. Por isso, a praticidade da concepo material.

    De tudo o que aqui se analisou, pode-se afirmar que ilicitude material o conceito que leva em considerao a leso a bem jurdico protegido pelo ordena-mento jurdico-penal, porquanto a agresso a tais valores um comportamento humano que fere o interesse social normatizado. Alm da contradio da norma

    53 BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Volume I. Traduo de Paulo Jos da Costa Jr. e Alberto Silva Franco. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1966, p. 335-336.

    54 FERNNDEZ, Fernando Molina. Antijuridicidad penal y sistema del delito, p. 54.55 ROXIN, Claus. Derecho penal; parte general. Tomo I, p. 559. Posio parecida tem Jescheck, que ainda apresenta a possibilidade da ilicitude material fun-

    damentar causas supralegais de excludente de ilicitude (JESCHECK. Hans Heinrich. Tratado de derecho penal. Volume I. Traduo de Santiago Mir Puig e Francisco Munz Conde. Barce-lona: Bosch, 1981, p. 316).

  • injuSto penaL: a reLao entre o tipo e a iLicitude 23

    ao fato, deve haver a leso ou o perigo dela.56 , ainda, de extrema importncia prtica sua verificao.

    Assim, elucidativa a doutrina de Vargas, quando ele afirma que nos dias de hoje, no tem significado uma separao tangente entre a ilicitude, dita for-mal, e a material, se levarmos em conta a funo essencial de nossa disciplina (proteo de bens jurdicos.).57 Somente a ilicitude material consegue exercer as funes de tutela de bens jurdicos, objeto do Direito Penal.

    Em resumo, parece mais correto adotar-se o conceito material de ilicitude, no se admitindo um conceito meramente formal do instituto, que associado ideia de antinormatividade como mecanismo nico de sua conceituao terica.

    2.2.4 Ilicitude genrica e especfica

    O injusto penal, como j se esclareceu, composto pelo tipo legal e pela ili-citude. Mas, analisando-se de forma mais ampla (com a Teoria Geral do Direito), qual a diferena desse conceito (de injusto penal) em relao s determinaes de injusto de outros ramos do Direito (civil, administrativo etc.), capaz de lhe adjetivar desta exata forma: penal?

    Explica-se o motivo da indagao. A ilicitude con