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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAU

    CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA DO BRASIL

    FRANCISCA RAQUEL DA COSTA

    ESCRAVIDO E CONFLITOS: COTIDIANO, RESISTNCIA E CONTROLE DE

    ESCRAVOS NO PIAU NA SEGUNDA METADE DO SCULO XIX

    TERESINA

    2009

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    FRANCISCA RAQUEL DA COSTA

    ESCRAVIDO E CONFLITOS: COTIDIANO, RESISTNCIA E CONTROLE DE

    ESCRAVOS NO PIAU NA SEGUNDA METADE DO SCULO XIX

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria do Brasil da Universidade Federal do Piau como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Histria do Brasil. Orientador: Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima

    TERESINA

    2009

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    FRANCISCA RAQUEL DA COSTA

    ESCRAVIDO E CONFLITOS: COTIDIANO, RESISTNCIA E CONTROLE DE

    ESCRAVOS NO PIAU NA SEGUNDA METADE DO SCULO XIX

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-Graduao em Histria do Brasil da Universidade Federal do Piau UFPI como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Histria do Brasil.

    Aprovada por:

    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________________

    Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima (orientador)

    ______________________________________________________

    Prof. Dr. Tho Lobarinhas Pieiro

    ______________________________________________________

    Prof. Dr. Joo Renr Ferreira de Carvalho

    Teresina, 17 de abril de 2009

  • 4

    Para Jos Ribamar da Costa, in memoriam, e Rosa Rodrigues da Silva Costa.

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    AGRADECIMENTOS

    A construo deste trabalho contou com a participao de vrias pessoas e instituies

    sem as quais no teramos condies de realiz-lo.

    Aos profissionais da instituio na qual estou inserida, pela acolhida do tema e as

    contribuies dadas no decorrer da pesquisa. Em especial, ao meu orientador e amigo,

    professor Doutor Solimar Oliveira Lima, sem o qual no seria possvel a realizao deste

    sonho. Alm da gratido, tenho por ele imensa admirao e sei que posso contar com seu

    conhecimento e amizade. Na relao entre orientada e orientador, fortaleceram-se os laos

    iniciados ainda na graduao em Histria.

    Aos professores do Programa de Ps-graduao em Histria do Brasil da Universidade

    Federal do Piau, em especial queles que foram meus professores das disciplinas do

    Mestrado: Francisco Alcides do Nascimento, que participou da minha qualificao de

    dissertao juntamente com o professor Joo Renr Ferreira de Carvalho, bem como Pedro

    Vilarinho Castelo Branco, Edwar de Alencar Castelo Branco, Teresinha Queiroz, Juliana

    Lopes Elias.

    dona Eliete de Brito Arajo e Floriano, secretria do Mestrado, pela simpatia e

    alegria com que sempre me recebeu.

    CAPES, cujo apoio institucional possibilitou o desenvolvimento da pesquisa atravs

    de uma bolsa de Mestrado, entre o incio de 2007 e o incio de 2009.

    Ao meu amigo e companheiro de temtica, Mairton Celestino da Silva, pelas

    discusses realizadas, pela leitura que fez de todo este trabalho e pelas sugestes que deu para

    seu aperfeioamento. Cabe aqui destacar meu apreo e admirao por seu conhecimento

    maduro sobre o tema.

    A meus amigos e companheiros de Mestrado, os quais sabem o que significa esta

    rdua tarefa. Entre eles, meus irmos de jornada, Jos Maria e Ana Cristina, os quais

    estiveram sempre junto a mim, discutindo, compartilhando angstias e trocando experincias,

    sempre prontos a me ouvir.

    Ao meu grande amigo Benilton Torres de Lacerda.

    Aos meus amigos e membros do Ncleo de Estudos sobre Africanidades e

    Afrodescendncia, FARAD/UFPI, e membros do grupo de pesquisa Histria e Memria

    da Escravido, Juliana Malherme, Luzilene, Ana Patrcia, Waldinar, Ivana, Dbora, Talyta,

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    Cladio Melo, professora Ana Beatriz e demais integrantes, com quem durante anos dividi e

    troquei experincia sobre a questo do negro no Brasil.

    Aos meus amigos de graduao Suzanne, Suzana, Werner e Rosilene, que torceram

    sempre por mim. Tambm como agradeo s amizades construdas no decorrer do curso,

    Marylu, Elson, Emlia, Luciana, Nilzngela e a todos que, de uma forma ou de outra, sempre

    demonstraram interesse em saber o andamento da dissertao e com quem aos poucos estou

    construindo laos.

    Agradeo de igual forma minha amiga Elenita, pela confiana que depositou em

    mim quando precisei de seus livros.

    Durante a pesquisa no Arquivo Pblico do Estado do Piau contei com o apoio dos

    funcionrios daquela instituio, entre os quais merecem especial ateno: Sebastio Bertolo,

    pelo interesse, disposio e carinho com os quais sempre me atendeu. De forma especial,

    tambm agradeo funcionria Maria de Jesus.

    Agradeo professora Shirley M. Alves, a quem coube a reviso deste trabalho, pelo

    profissionalismo e responsabilidade com que tratou a dissertao.

    Aos meus familiares, pelo apoio, carinho e incentivo: minha me, Rosa Rodrigues;

    minha irm, Rosina; meu irmo, Rangel; minha tia, Rita; minha prima, Maria da Cruz e sua

    filha Ana Carolina; minha linda sobrinha a quem amo como se fosse filha, Ana Ceclia, pela

    alegria que me d com a pureza de uma criana, sem me cobrar nada em troca. De forma

    especial agradeo ao meu querido pai, Jos Ribamar, j falecido, mas que, em vida, me

    ofereceu condies de ser o que sou.

    Para finalizar, agradeo ao meu companheiro de vida, Jammal Moura Maciel, pela

    pacincia de me esperar em todos os momentos nos quais no pude estar junto dele.

    Companheiro e amigo, sempre me incentivou a ter coragem e a no sentir medo de seguir em

    frente, agradeo pelo amor e carinho que sempre tem me oferecido.

  • 7

    RESUMO

    Na segunda metade do sculo XIX, diversos fatores, internos e externos, contriburam para

    que o sistema escravista brasileiro sofresse profundas transformaes, as quais tornam este

    perodo diferente dos anos iniciais da escravido no Brasil. A Provncia do Piau, mesmo no

    apresentando sua base econmica nas grandes plantaes, tambm apresenta reflexos de tais

    transformaes. As mudanas advindas das leis de proibio do trfico (1850), do ventre livre

    (1871), dos sexagenrios (1885) provocaram alteraes na relao entre senhores e escravos,

    sendo que as atitudes insubordinadas destes contriburam ainda mais para a desestruturao

    do sistema, agindo eles como sujeitos histricos. Diante de tais fatos, o presente trabalho

    busca analisar o cotidiano das relaes escravistas no Piau na segunda metade do sculo XIX,

    verificando como elas eram construdas. Alm disso, tambm nos propomos a apontar as

    principais formas de resistncia escrava praticada pelos escravos na Provncia, bem como

    analisar o controle elaborado pelos senhores de escravos e pelo Estado diante das atitudes

    insubordinadas dos escravos e do contexto estabelecido. Para a construo do trabalho foram

    utilizadas fontes documentais e alguns jornais, localizadas no Arquivo Pblico do Estado do

    Piau. Entre as fontes documentais, os relatrios de polcia, processos-crime e relatrios de

    presidentes de Provncia foram cruciais.

    Palavras-chaves: Escravido. Resistncia. Controle social.

  • 8

    ABSTRACT

    In the second half of century XIX, diverse factors, external interns and, had contributed so

    that the Brazilian escravista system suffered deep transformations, which return this different

    period of the initial years of the slavery in Brazil. The Province of the Piau, exactly not

    presenting its economic base in the great plantations, also presents reflexes of such

    transformations. The happened changes of the laws of prohibition of the traffic (1850), of the

    free womb (1871), of the sexagenarians (1885) had provoked modifications in the relation

    between gentlemen and slaves, having been that the insubordinadas attitudes of these had

    contributed still more to the desestruturao of the system, acting they as subject descriptions.

    Ahead of such facts, the present work searchs to analyze the daily one of the escravistas

    relations in the Piau in the second half of century XIX, verifying as they were constructed.

    Moreover, also in we propose them to point the main forms of enslaved resistance practiced

    by the slaves in the Province, as well as analyzing the elaborated control you of slaves ahead

    and for the State of the insubordinadas attitudes of the slaves and the established context. For

    the construction of the work documental sources and some newspapers, located in the Public

    Archive of the State of the Piau were used. Between the documental sources, the reports of

    police, process-crime and reports of presidents of Province were crucial.

    Word-keys: Slavery. Resistance. Social control.

  • 9

    SUMRIO

    INTRODUO.......................................................................................................................10 CAPTULO I O COTIDIANO ESCRAVO NA PROVNCIA DO PIAU.....................18

    1.1 PERFIL DA POPULAO ESCRAVA NA PROVNCIA DO PIAU............................18 1.2COTIDIANO DO TRABALHO: OCUPAES DOS TRABALHADORES ESCRAVIZADOS NO PIAU..................................................................................................23 1.3 MOMENTOS DE DIVERSO E DESCONTRAO NA VIDA DOS ESCRAVOS.....32 1.4 TENSAS RELAES........................................................................................................39

    CAPTULO II A RESISTNCIA ESCRAVA NA PROVNCIA DO PIAU EM MEADOS DO SCULO XIX................................................................................................49 2.1 ESCRAVOS FUJES EM BUSCA DA LIBERDADE NA PROVNCIA DO PIAU........................................................................................................................................49 2.2 HOMICDIOS, TENTATIVAS DE HOMICDIOS E LESES CORPORAIS PRATICADOS POR ESCRAVOS..........................................................................................63 2.3 A ESCRAVA MARIA MOZINHA: ROUBOS E FURTOS PRATICADOS POR ESCRAVOS NA PROVNCIA DO PIAU.............................................................................68 2.4 ETERNA LIBERDADE: SUICDIOS DE ESCRAVOS NA PROVNCIA DO

    PIAU........................................................................................................................................79

    CAPTULO III CONTROLE, VIGILNCIA E PUNIO DE ESCRAVOS NA PROVNCIA DO PIAU........................................................................................................84 3.1 O CONTROLE DOMSTICO E A VIOLNCIA PRATICADA PELOS SENHORES DE ESCRAVOS..............................................................................................................................84 3.2 CONTROLE ESTATAL E ORDEM SOCIAL: PUNIO DE ESCRAVOS E O APARATO POLICIAL NA PROVNCIA...............................................................................98 3.2.1 O Rol dos Culpados: punio de escravos na Provncia do Piau.............................99 3.2.2 Em nome da ordem: o aparato policial a os escravos no Piau................................107 3.3 ENCARCERADOS: O COTIDIANO DOS ESCRAVOS DENTRO DAS PRISES....116 3.4 OS REDUZIDOS ESCRAVIDO: EXPLORAO DOS TRABALHADORES LIBERTOS .............................................................................................................................129

    CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................141

    REFERNCIAS....................................................................................................................143

  • 10

    INTRODUO

    A escravido negra no Brasil, iniciada ainda na primeira metade do sculo XVI,

    perdurou durante mais de trs sculos. Em nenhum outro pas do Novo Mundo, essa instituio

    teve vida to longa. Desde o incio da colonizao, a escravido foi utilizada como principal

    fora de trabalho, sendo interrompida apenas no final do sculo XIX.

    As discusses historiogrficas acerca da escravido no Brasil sempre foram permeadas

    de polmicas e questes controversas. Nessa perspectiva a escravido tem sido um tema

    recorrente nas produes acadmicas, o que retrata o vigor do tema e, sobretudo, a necessidade

    de se conhecer a formao da sociedade brasileira, ainda mais em regies onde a produo

    historiogrfica sobre o tema ainda carente. Nesse sentido, configura-se como objetivo deste

    trabalho apresentar traos da sociedade escravista piauiense do sculo XIX, atravs de

    elementos como o cotidiano, a resistncia e o controle de escravos no Piau.

    Refletir sobre a sociedade escravista piauiense torna necessrio um retorno origem do

    debate historiogrfico sobre a temtica no Brasil, na qual figura como primeira experincia a

    reflexo sobre um sistema escravista paternalista. Ao construir a tese de uma escravido

    branda e benevolente, Gilberto Freyre, nos anos 30, mostrou-se preocupado, como os de sua

    poca, com a questo da raa e atento intensa miscigenao sofrida pelo Brasil desde a

    colonizao. Dessa forma, buscou explicar o processo escravagista a partir da concepo de

    uma sociedade paternalista, na qual as relaes sociais e pessoais ganhavam grande

    importncia. Nesse caso, para Freyre, a miscigenao tinha o papel de corrigir a distncia

    social existente.

    A partir de 1950, comea a se configurar uma nova corrente historiogrfica que iria de

    encontro s concepes de Freyre. Denominada de Escola Paulista, estava representada por

    Florestan Fernandes, Otvio Ianni, Emlia Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, entre

    outros. Influenciados pelo momento histrico no qual viviam e pelos novos enfoques tericos,

    os adeptos dessa concepo destacavam o processo de acumulao de capital e a produo

    para a exportao com o fim primordial do sistema escravista. Esses estudiosos consideravam

    a coero e a represso como formas de controle social do escravo, apontavam a violncia do

    sistema e acreditavam na coisificao subjetiva do escravo1.

    1 Nesse caso, no sistema escravista, o escravo se auto-representava como no homem diante do sistema escravista.

  • 11

    O final dos anos 80 trouxe uma nova discusso sobre a sociedade escravista brasileira,

    com o debate constituindo-se em torno de duas concepes tericas: consenso/contratualidade

    e violncia/coisificao social. A partir de diferentes concepes metodolgicas, a discusso

    terica em torno dessa questo tem se revitalizado continuamente.

    A concepo consenso/contratualidade tem sua base terica nas idias de E. P.

    Thompson e Eugene Genovese2, que repensam o conceito de violncia do sistema escravista,

    admitindo a existncia de espao de autonomia para o escravo negociar um cotidiano mais

    brando. Nesse caso, o escravo lanava mo de estratgias com o intuito de sobreviver, ora

    curvando-se s ordens do senhor, ora a elas resistindo, num processo de resistncia e

    acomodao, isto , o escravo resistia, mas, ao mesmo tempo, se acomodava para se ajustar ao

    sistema. A escravido apresentaria, portanto, um carter consensual, que nega a coisificao,

    sendo negociada pela grande maioria dos cativos.

    Para Thompson, a lei implica limitaes ao arbtrio da classe dominante e pode ser

    tambm um terreno para a defesa dos interesses dos oprimidos. Genovese aplica tal teoria na

    sociedade escravista, afirmando que a lei era encarada como fora ativa, parcialmente

    autnoma, a qual mediava os conflitos entre as diversas classes e compelia os dirigentes a se

    curvarem s reivindicaes dos dirigidos. Com base nessa viso, muitos autores se apiam na

    idia de que a lei podia garantir os direitos dos escravos e senhores, fazendo com que

    entrassem em consenso. Reconhecendo as possveis resistncias escravas, os senhores

    procuravam um movimento de flexibilidade para melhorar as relaes com seus escravos.

    Sendo assim, o Estado e a sociedade, de modo geral, assumiam o papel de vigilantes para

    manter o sistema escravista.3

    Com relao concepo violncia/coisificao social, sua base terica est centrada

    na luta de classes, bem como nos interesses antagnicos presentes na relao senhor - escravo.

    O sistema se apoiava na violncia implcita e explcita como forma de dominao e

    2 As principais obras utilizadas pelos autores partidrios dessa concepo terica so, respectivamente: THOMPSON, Edward P. Senhores e Caadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988; THOMPSON, Edward P. Costumes em comum. So Paulo: Companhia das Letras, 1999; GENOVESE, Eugene. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 3 Ver, entre outros autores, os seguintes trabalhos: MATTOSO, Ktia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. So Paulo: Brasiliense, 1982. REIS, Joo Jos. Rebelio escrava no Brasil: a histria do levante dos mals (1835). So Paulo: Brasilense, 1986; LARA, Silvia Hunold. Campos da violncia: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravido. Os letrados e a sociedade no Brasil colnia. Petrpolis: Vozes, 1986; REIS, Joo Jos; SILVA, Eduardo. Negociao e conflito: a resistncia negra em conflito. So Paulo: Companhia das Letras, 1989.

  • 12

    explorao, sendo que, em contraposio punio privada e pblica, levantava-se um

    conjunto de aes por

    parte dos trabalhadores escravizados para resistir ao sistema imposto. A fim de atenuar tenses

    e conflitos, o Estado e a prpria sociedade se organizavam para minimizar os interesses

    antagnicos, lanado mo inclusive de leis que buscavam proteger os diferentes interesses e

    garantir a ordem social.4

    No que respeita ao debate sobre a escravido no Piau, constata-se que o tema ainda

    pouco explorado, sendo que as publicaes especficas sobre o escravismo piauiense escravista

    limitam-se s seguintes obras: Escravos do Serto: demografia, trabalho e relaes sociais

    (1986), de Miridan Britto Knox Falci; o trabalho de Tnya Maria Pires Brando, O Escravo

    na formao social do Piau (1999), e, por ltimo, ao trabalho de Solimar Oliveira Lima,

    publicado no ano de 2005, Brao Forte: Trabalho escravo nas fazendas da nao no Piau

    (1822-1871). Esses estudos enfocam, principalmente, as fazendas e a pecuria, apresentando

    vises diferentes no que diz respeito ao trabalho escravo e s formas de manuteno do

    sistema escravista no Piau. Ressalta-se que, apesar da pouca produo sobre a temtica, as

    existentes, considerando suas especificidades, contriburam sobremaneira para o debate

    historiogrfico sobre o tema.

    Embora assegurando a importncia dos trabalhadores escravizados na estrutura

    produtiva, as pesquisas indicam certa dualidade no padro escravista. Essa dualidade diz

    respeito a uma diferenciao de condies de trabalho e vida entre cativeiro pblico e privado.

    Tal concepo pode ser percebida com maior nfase em Miridan Falci (1986) e Tnya Brando

    (1999). A obra de Tanya Brando, especificamente em seu ltimo captulo, o qual foi dedicado

    anlise da participao escrava na formao do Piau, demonstra que a escravido no Estado

    se tornou uma questo mais social do que econmica, pois ter um escravo, de certa forma,

    significava ascenso social. Segundo a autora, a prpria natureza da atividade extrativista da

    pecuria requeria pouca mo-de-obra e, nesse contexto, caberia aos escravos uma reduzida

    participao direta no criatrio, dando-se a sua principal utilizao em trabalhos considerados

    mais pesados. Alm disso, a autora aponta ainda uma diferenciao no que respeita ao

    tratamento dos trabalhadores nas diferentes propriedades existentes na Provncia, j que, nas

    fazendas pblicas, a escravido era mais branda do que nas fazendas privadas.

    Segundo Brando, 4 Entre os principais representantes dessa concepo terico-metodolgica e crtica da nova historiografia da escravido, podemos citar Jacob Gorender, que, em sua obra A escravido reabilitada, publicada em So Paulo pela Editora tica, em 1991, discute a nova historiografia da escravido o Brasil, analisando alguns autores e suas respectivas obras.

  • 13

    Quando se pretende estudar o funcionamento da escravido no Piau, faz-se necessrio observar, em primeiro lugar, que, de acordo com o tipo de proprietrio, existiam pelo menos dois grupos de escravos: um composto de cativos pertencentes coroa e outro que abrangia os de propriedades de articulares. Esse fato provavelmente implicaria na vigncia de pelo menos dois tipos de tratamentos. 5

    Para a autora, a escravido era uma exigncia da acumulao capitalista, mas, ao

    mesmo tempo, estava diretamente associada a uma conscincia social e a um padro cultural,

    entendido como hbitos e aes difundidos pela mentalidade da sociedade piauiense. Brando

    no nega a existncia da violncia na relao senhor/escravo, contudo aponta os castigos

    corporais apenas como disciplinadores das manifestaes da rebeldia escrava.6

    Segundo Miridan Falci, as relaes sociais entre senhores e escravos tiveram vnculos

    diferentes do paternalismo difundido largamente nas primeiras produes historiogrficas

    sobre a escravido no Piau.7 Para a autora, nos espaos de produo existiam duas formas de

    trabalho: o trabalho livre e o escravo, com suas especificidades. Com relao ao trabalho

    escravo, a autora se preocupa em decifrar quais os tipos de trabalhos mais pesados e analisa

    onde havia maior ou menor explorao do trabalho. A fim de explicar e confirmar tais

    hipteses, ela se utiliza da demografia, dividindo o trabalho em sexual e etrio, ou seja, analisa

    a idade do trabalhador e seu sexo. Falci conclui que os trabalhadores escravizados se inseriam

    desde muito cedo no processo produtivo, com variados tipos de ocupaes, fato que tambm

    abordado por Solimar Oliveira Lima. Segundo Falci, existiam profisses especficas de acordo

    com o sexo e a idade.

    Solimar Oliveira Lima, especificamente no captulo Formas de controle e resistncia

    dos trabalhadores escravizados, analisa as atitudes do sistema escravista para manter a

    escravido e, em contrapartida, como os escravos reagiram ao sistema. De acordo com esse

    historiador, os escravos das fazendas pblicas do Piau tinham, at certo ponto, o direito de

    receber uma parte da produo de gado, sistema denominado de quarta, no entanto o

    verdadeiro objetivo desse mtodo de partilha era, de forma paternalista, manter o escravo

    5 BRANDO, Tanya Maria Pires. O escravo na formao social do Piau. Teresina: EDUFPI, 1999. 6 Ibidem, p. 158. 7 Ver CHAVES, Joaquim. A escravido no Piau. Teresina: Comepi, 1975; NUNES, Odilon. Smula para a histria do Piau. Teresina: Editora Cultural, 1963; NUNES, Odilon. Pesquisas para a histria do Piau. Teresina: Imprensa Oficial, 1996. v. 1, 2, 3 e 4. e PEREIRA DA COSTA, F. A. Cronologia histria do estado do Piau: desde seus tempos primitivos at a Proclamao da Repblica. Rio de Janeiro: Artenova, 1974.

  • 14

    preso ao sistema. A prpria subjetividade do escravo era o meio utilizado pelos senhores para

    control-los.

    Na prtica, o sistema tinha mais efeito psicolgico que econmico. A acumulao decorrente da quarta foi insignificante. O gado, no geral, transformou-se em matalotagem para consumo dos trabalhadores e, quando no, foi reincorporado ao patrimnio do senhor. 8

    Os escravos no podiam obter mais de quarenta reses e nem mesmo podiam tornar-se

    pequenos fazendeiros sem antes adquirir sua alforria. Segundo Lima, esse sistema tambm

    teve uma pequena importncia no que diz respeito emancipao de alguns escravos. Com

    relao questo da hereditariedade dos bens, os escravos no podiam pass-los sua famlia.

    Observa-se que era exatamente essa condio de vida e a explorao exaustiva do

    trabalhador escravizado que levavam aos conflitos. O cotidiano das propriedades era marcado

    por permanentes tenses, que evoluam quase sempre para conflitos, diante das exigncias de

    submisso e da violncia praticada por inspetores e criadores. 9 A principal forma de

    imposio de limite explorao estava presente nas denncias e queixas realizadas pelos

    escravos, sendo que, muitas vezes, tambm ocorriam reaes diretas contra os abusos dos

    senhores.

    Por outro, os trabalhadores manifestavam reaes de negao da opresso, como desamor ao trabalho, fugas para propriedades particulares, matas ou cidades e agresses fsicas. Os dois processos de enfrentamento constituam, portanto, um s movimento de resistncia frente dominao, explorao e violncia da instituio servil. 10

    Em todo o seu livro, Lima demonstra que a historiografia tem, ao olhar para o Piau,

    observado apenas as fazendas, priorizando assim apenas o criatrio, sem atentar para o fato de

    que existia uma srie de atividades desenvolvidas por um conjunto de trabalhadores. O autor

    discorda da tese da diferenciao das condies de trabalho entre as fazendas pblicas e

    privadas e mostra, atravs da pesquisa realizada, o conjunto de tarefas desenvolvidas pelos

    8 LIMA, Solimar Oliveira. Brao Forte: trabalho escravo nas fazendas do Piau. 1822-1871. Passo Fundo: UFP, 2005. p. 110. 9 Ibid., p.135. 10 Ibid., p. 138.

  • 15

    trabalhadores escravizados em ambos locais, ao mesmo tempo em que afirma que todas

    estavam a servio do mercado.

    As obras citadas demonstram que na historiografia a sobre a escravido no Piau, tem

    se mostrado sensvel a percepo de analises, que levam em conta os dois extremos, senhores e

    escravos, considerando-os como elementos interdependentes. Tambm considera a apreenso

    do universo ideolgico e social dos escravos. A historiografia admite a importncia de

    recuperar, dialeticamente a complexidade das relaes sociais de dominao vigentes na

    sociedade escravista levando em conta que essa sociedade foi fruto da dinmica social entre

    senhores e escravos. O campo de influncia desses dois eixos bsicos no se esgota ai,

    medida que, produzindo uma complexa rede de relaes sociais, condicionou as ligaes entre

    os diferentes segmentos sociais, mesmo daqueles no implicados no sistema escravista. luz

    dessas afirmaes e reflexes, consideramos que a sociedade escravista foi produtora de uma

    ampla rede de controle social, capaz de combinar o argumento da fora com outros

    mecanismos de dominao.

    O contato com a bibliografia e fontes nos proporcionou a delimitao de nosso objeto

    de pesquisa. Verificando que as publicaes referentes ao Piau discutem as relaes de

    trabalho dentro das fazendas pblicas e privadas e que a temtica ainda se constitui pouco

    estudada, para contribuir com a discusso, em nosso trabalho, priorizamos a anlise sobre os

    escravos de propriedade privada na segunda metade do sculo XIX. O corte cronolgico

    justifica-se por, nesse perodo, a sociedade escravista apresenta caractersticas diversas das do

    incio do sculo XX, sendo estas resultantes do processo de desestruturao do sistema

    escravista no Brasil. A proibio do trfico negreiro juntamente com as leis abolicionistas que

    foram surgindo no decorrer da segunda metade do sculo, alm das prprias aes dos

    escravos contribuiu profundamente para o fim da escravido no Brasil. As renovaes da

    historiografia e os novos campos temticos por ela suscitados, nos levaram escolher as

    relaes do cotidiano11, a resistncia dos escravos, assim como as formas de controle destes

    como novas possibilidades de estudos sobre a temtica.

    11Analisamos o cotidiano como territrio, configurando-se assim como um lugar ou espaos construdos. Dessa forma o cotidiano desdobra-se como resultado do processo de socializao, ou seja, da relao entre o indivduo com seu grupo. Nessa relao, desenvolvem-se personalidades, capacidades e comportamentos. No territrio do cotidiano, o ser humano troca experincias com o diferente, reconhecendo-se diante deste. Nosso conceito de cotidiano seguiu a concepo de Michel de Certeau em seu livro A inveno do cotidiano. Petrpolis RJ: Vozes, 200. p. 201.

  • 16

    As fontes utilizadas para a construo de nosso trabalho foram documentos localizados

    no Arquivo Pblico do Estado do Piau, nos Fundos do Poder Judicirio e Executivo do

    perodo em estudo. Constituem-se em fontes documentais e hemerogrficas, entre as fontes

    documentais os relatrios, falas e mensagens de Presidentes de Provncia, relatrios, ofcios e

    correspondncias de autoridades policiais, processos crimes, cdigos de posturas e cdigo do

    rol dos culpados contriburam de forma consistente para a construo do trabalho. Alm das

    fontes documentais, entramos em contato com algumas fontes hemerogrficas, como os jornais

    A Imprensa e O Semanrio, cabendo aqui frisar a limitao dessas fontes com relao ao

    perodo por estarem, na sua maioria, lacradas e indisponveis para pesquisa.

    Para discutirmos sobre a escravido no Piau na segunda metade do sculo XIX,

    especificamente o cotidiano, a resistncia e as formas de controle dos escravos, este trabalho

    encontra-se estruturado em trs captulos. O primeiro apresenta o cotidiano de vida dos

    trabalhadores escravizados na Provncia do Piau em meados do sculo XIX. Sendo que, para

    tanto, buscou-se identificar o perfil dos escravos no Piau, as condies de trabalho, as

    atividades desenvolvidas pelos trabalhadores escravizados, suas formas de sociabilidades e as

    relaes entre escravos e entre estes e pessoas livres, bem como as atividades que eram

    realizadas por eles na Provncia.

    No captulo seguinte apresentamos as principais formas de resistncia escrava na

    provncia do Piau na segunda metade do sculo XIX, de acordo com a documentao

    analisada. Nessa perspectiva objetivamos conhecer o cotidiano da resistncia dos escravos, e,

    entre elas, destacamos as fugas, os homicdios praticados contra senhores e feitores, os roubos

    e furtos e, por ltimo, os suicdios de escravos na Provncia. Destacamos que a resistncia

    escrava no se limita s atitudes coletivas e planejadas pelos escravos, ou seja, a atos de

    conscincia praticados contra o sistema escravista. Baseados em micro-histrias de homens e

    mulheres, em nosso trabalho analisamos as pequenas formas de resistncia cotidiana presentes

    no mundo dos trabalhadores escravizados.

    Diante da resistncia escrava, a sociedade do sculo XIX, assim como o Estado,

    representando por suas instituies, como a polcia e a legislao, elaboraram formas de

    controle da populao escravizada que objetivavam a produo de um trabalhador escravo

    submisso ao sistema escravista, alm da submisso produtiva do trabalho. Nesse sentido, no

    terceiro e ltimo captulo, analisamos as formas de controle, violncia e punio de escravos

    produzida pelo sistema escravocrata, com o intuito de descrever como as mesmas foram

    praticadas pela sociedade escravista no Piau. Para tanto, enfatizamos o controle domstico e a

  • 17

    violncia praticada por senhores e membros da famlia senhorial, bem como identificamos as

    principais formas de punio de escravos levados Justia e a ao do aparato policial na

    Provncia do Piau diante das atitudes insubordinadas dos escravos. Tambm discorremos

    sobre o cotidiano dos escravos dentro das prises e, por fim, discutimos o fato de que escravos,

    depois de conseguirem a alforria, continuavam sendo explorados pelos senhores.

    Por fim, esperamos que esta pesquisa possibilite a compreenso da vida cotidiana dos

    escravos no Piau, contribuindo para o enriquecimento das discusses historiogrficas acerca

    da temtica, a partir das vivncias de homens e mulheres escravizadas e suas diversas formas

    de sociabilidades na sociedade escravista piauiense do sculo XIX.

  • 18

    CAPTULO I O COTIDIANO ESCRAVO NA PROVNCIA DO PIAU

    1.1 PERFIL DA POPULAO ESCRAVA NA PROVNCIA DO PIAU

    Atravs da utilizao de uma linguagem fotogrfica registrada nas fontes com as

    quais lidamos no decorrer de nossa pesquisa, identificamos algumas caractersticas fenotpicas

    dos escravos no Piau. As descries encontradas levaram-nos a perceber as diversas

    representaes sobre os negros em meados do sculo XIX. Nesse sentido, do conjunto de

    fontes utilizadas, pretendemos retirar no apenas uma imagem, mas a prpria diversidade com

    que o elemento negro descrito e apresentado.

    As informaes foram extradas das fontes pesquisadas, como os autos de prises da

    Secretaria de Polcia, alguns jornais, processos-crime e relatrios de presidente de Provncia.

    O auto de priso identificava o ru, no entanto essa identificao dependia muito de quem a

    executasse. Encontramos alguns autos de priso que oferecem uma gama de informaes,

    enquanto outros, muitas vezes, nada traziam. Nos jornais, as descries das caractersticas

    fsicas dos escravos estavam presentes nas sees que noticiavam vendas e fugas daqueles

    indivduos. Os senhores, ansiosos em recuperar seus escravos, descreviam detalhadamente

    suas caractersticas no intuito de conseguir, da forma mais rpida possvel, sua valiosa pea de

    trabalho de volta. Os processos-crime tambm se constituem como fontes valiosas pelas

    descries feitas sobre o escravo julgado.

    Com relao fenotipia dos escravos na provncia do Piau, a cor da pele era a

    primeira identificao, e nos deparamos com uma grande variedade cromtica. Aparecem

    escravos de cor, preto, pardo, cabra, cabra claro, mulata, fula, negra. As descries eram

    mais minuciosas quando se tratava de fugas de escravos, com o intuito de dar todos os

    detalhes possveis para a captura mais rpida do fujo.

    Em oficio ao delegado de polcia do termo de Teresina no dia 20 de junho de 1860, o

    chefe de polcia da Provncia, Francisco de Farias Lemos, recomendava:

    Expeo a Vossa Senhoria as ordens afim de ser capturado o escravo de Benedicta Maria das Flores, de nome Leonardo, cor preta, crioulo, baixo, grosso, sem barba idade de 25 annos, vestido de camiza e cala branca, descalso, regrento, tocador de berimbao, e muito conhecido nesta cidade, morador e vive ganhando na rua; o qual est fugido de 17 dias e consta andar dentro desta e suas immediaes. Deus guarde a Vossa Senhoria o Chefe de

  • 19

    Policia. Francisco de Farias Lemos. Senhor delegado de Policia do termo de Therezina.12

    Geralmente, a informao dada era sobre a estatura: alta, altura regular, baixa,

    estatura mdia ordinria. Nos que diz respeito ao corpo, como sinnimos de magro,

    encontramos magro, seco de corpo, delgado, fino, enquanto para os mais gordos se

    usavam os termos corpulento, grosso, cheio de corpo. A identificao do rosto tambm

    era comum, podendo ser oval, comprido, redondo com barba, barbado e sem

    barba no caso dos escravos do sexo masculino. O nariz era identificado como grosso,

    chato e aguado na ponta; a boca, grande ou os lbios grossos; os olhos tambm no

    escapavam linguagem fotogrfica, sendo grandes avermelhados; os dentes

    linhados, bons, falta de dentes; as pernas poderiam ser finas, grossas e curtas,

    enquanto os cabelos eram carpinos, carapinhos, acaboclados, crespos e

    encarapinhados. Entre as caractersticas tambm tm destaque as marcas e cicatrizes nos

    corpos dos escravos, que complementavam as caractersticas fsicas, identificando-os de

    forma mais particular.

    Podemos fazer duas leituras a partir das descries encontradas nas fontes

    consultadas: se, por um lado, as cicatrizes e marcas de relhos nos escravos significavam a

    violncia do sistema escravista no Piau; por outro, eram sinnimo da resistncia desses

    trabalhadores escravizados, isto , quanto mais resistiam, mais apresentavam cicatrizes que

    simbolizavam os atos de resistncia. As cicatrizes de relhos eram resultados dos aoites que

    os escravos recebiam quando cometiam algum ato de rebeldia ou eram levados Justia.

    Sabemos que o mtodo mais utilizado para castigar e punir os escravos no Brasil foi o aoite.

    Nesse sentido, a violncia praticada por senhores no Piau no fugiu regra, pois observamos

    vrias referncias a escravos aoitados e com cicatrizes de relhos.

    Lidas pelos escravos as marcas corporais eram um obstculo ao esquecimento de sua condio de escravo. Ao serem impressos de modo exemplar, estes signos atingiam tambm algo mais profundo que a pele e o corpo: a marca exemplar imprimia no escravo o medo da rebelio, inexorabilidade da dominao senhorial a que estava submetido. 13

    12APEPI. Delegados. 1860-1861. SPE. Cd. 722. ESTN. 06. PRAT. 03. 13 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violncia: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro. 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 88.

  • 20

    As cicatrizes produzidas em decorrncia dos castigos e, principalmente, dos aoites,

    representavam uma tentativa de afirmao da dominao senhorial, todavia, em muitos

    momentos, elas no impediam novas tentativas de resistncia ao sistema escravista. Muitos

    escravos, aps terem sido castigados, voltavam a praticar a resistncia atravs das diversas

    formas que discutiremos em seguida. Como exemplo, podemos citar o caso do escravo

    Policrpio, que andava fugido e foi encontrado na Provncia do Maranho, na cidade de Cod.

    Vejamos o que o delegado de polcia da cidade na qual o escravo foi capturado relata sobre as

    caractersticas fsicas do fugitivo:

    Secretaria de Policia do Piauhy, em 30 de junho de 1860. Tendo o Dr. Chefe de Policia da Provncia do Maranho me communicado que se acha prezo na cadeia do Cod, como fugido, um preto alto retinho, dentes linhados, olhos pequenos, nariz aguado na ponta, com muitas cicatrizes de castigo em todo o corpo e uma fractura na perna esquerda, o qual diz chamar-se Policarpio, e ser escravo de Jos Maria de Souza, e que fugiu da fazenda Juara acima dos Mates; assim o communico a Vossa senhoria para fazer sciente ao Senhor do dito escravo, para que o mande sollicitar pagando as despezas que tiver feito com elle devendo Vossa Senhoria participar-me o que a este respeito occorrer. Deus guarde Vossa Senhoria Francisco de Farias Lemos. Delegado de Policia do termo de Pedro segundo. 14

    Alm de representarem violncia e resistncia, os sinais presentes nos corpos

    tambm simbolizavam o trabalho rduo ao qual os escravos eram submetidos. Muitos

    trabalhadores se acidentavam no momento de realizao das tarefas, adquirindo assim marcas

    e cicatrizes que os acompanhariam no decorrer de suas vidas no cativeiro. Entre esses

    personagens, encontramos o escravo Antonio Isidoro, que tem pouca barba, olhos

    encarniados, panos pretos no rosto, e alm desses sinais tem um dos dedos grandes de um p

    rachado de um talho de machado. 15 Assim tambm encontramos Paulo, crioulo alto e cheio

    de corpo, com cicatrizes de fogo da cintura para baixo e com falta dos dedos dos ps. 16 As

    cicatrizes apareciam, assim, como resultados da lida com instrumentos de trabalho, um

    exemplo foi o caso do escravo Jos Banto.

    Cabra, de 40 annos de idade, mais ou menos, barba grisalha, estatura regular, timbre de voz forte, dado ao mister de carreiro, conhecido pelo signal muito

    14 APEPI. Delegados. 1860-1861. SPE. Cd. 722. ESTN. 06. PRAT. 03. 15 Ver MONSENHOR CHAVES. Obra Completa. 2 ed. Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 1998. p. 190. 16 Ibid.,p. 190.

  • 21

    noptavel da mo direita aleijada em conseqncia de um servio tendo-lhe ficado os dedos contrahidos. 17

    Uma carga horria de trabalho pesada e exaustiva, juntamente com a falta de

    alimentao adequada, causavam o cansao extremo, fazendo com que um descuido, um

    cochilo talvez, gerasse pequenos e grandes acidentes. Era comum escravos que perdiam

    dedos ou se machucavam devido lida com objetos cortantes, como machados, facas, faces,

    foices, entre outros.

    No cotidiano de trabalho das mulheres escravizadas no Piau, algumas doenas

    constantemente se faziam presentes, como aleijes na mo, problemas de viso e cegueira,

    que advinham do uso continuado de rodas e teares. O trabalho das fiandeiras era quase que

    completamente realizado noite e com pouca iluminao, desencadeando os problemas

    citados.18 Tanto nos anncios de jornais, como nos autos de priso da Secretaria de Polcia do

    Piau, so constantes as referncias a esses sinais, como podemos ver a seguir numa circular

    aos delegados da Provncia do Piau enviada pelo chefe de polcia da Provncia, Gervzio

    Campello Pires Ferreira, em 6 de maio de 1864:

    Recommendo-lhe a captura do escravo Ernesto, cabra de 45 a 46 annos de idade, altura regular, magro, rosto comprido, torto de um olho, cabellos um tanto acaboclados e annelados, tem o officio de pedreito e signaes de relhos nas costas; o qual pertence aos orphos Lycurgo e Miguel, filhos do Capitam Loureno Antonio Moraes de Catello Branco, e fugio do Termo de So Gonalo em dias de janeiro deste anno. 19

    Nos anncios de jornais, os detalhes so ainda mais minuciosos. Em alguns, o senhor

    do escravo tenta descrever as possveis caractersticas da personalidade do escravo

    desaparecido, alm de fazer ofertas de recompensas para quem o capturar. No Jornal O

    Semanrio de 06 de novembro de 1880, o senhor Maurcio Fernandes Alves Sobrinho

    procurava por sua escrava:

    Ao abaixo assignado fugio desta povoao, no dia 20 de junho do corrente anno, a escrava Perpetua de 27 annos de idade, cr mulata, altura regular, cabello liso, esta cortado curto, olhos pretos, rosto oval, tem a orelha do lado direito combuca, e na do lado esquerdo uma falha, barriguda,

    17 O Semanrio, 06 de novembro de 1880. Ano V. n. 176, p. 03. 18 LIMA, op. cit., p. 170. 19APEPI. Delegados. 1861-1867. SPE. Cd. 724. ESTN. 06. PRAT. 03.

  • 22

    assemelhando-se estar prenhe, pernas finas, ps regulares quando caminha os dedo grandes e mnimos abrem para fora. Quando evadio-se trajava saia preta e palitot da mesma cor e camisa de algodo n1. A pessoa que captural-a e entregar ao seu senhor na referida povoao, receber a quantia de 50$000 reis de gratificao. 20

    Como j destacamos, em alguns momentos, os escravos eram estereotipados como

    mal parecidos, alegre, conversadeira, metido, ladino, pouco falador, valente,

    brigo, entre outras caractersticas. Em anncio no Jornal O Semanrio do dia 03 de maio

    do ano de 1879, descreve-se o escravo Luiz: conhecido por gamella, figura acatruzada, andar

    duvidoso e vacilante, metido e ladino, tem maneira de querer ser de famlia boa e

    traioeiro.21. Andar duvidoso e vacilante, traioeiro eram tambm as caractersticas do

    escravo Luiz, talvez por ser um escravo rebelde, que no se submetia ao senhor e, sempre que

    havia uma oportunidade, tentava fugir ou agia de forma rebelde. Escravos assim logo eram

    colocados venda por seus donos.

    Maria, que fugiu de seu senhor, o capito Pacfico Fortes Castelo Branco, em abril de

    1878, foi assim representada em anncio do jornal: uma escravinha de 15 anos de idade,

    representando 12 por ser raqutica, de cor cabra e muito conversadeira. 22 Maria era uma

    entre as diversas crianas escravas da Provncia cujo raquitismo, caracterstica quase sempre

    presente na fisionomia daquelas crianas, resultava das condies de vida dos cativos no

    Piau. Verifica-se assim que a iniciao ao trabalho dava-se de forma precoce, com meninos e

    meninas experimentando cedo o gosto do trabalho, mesmo que s fossem utilizados nas

    tarefas menos pesadas.

    O escravo Antonio, do capito Ivo Jos de Carvalho, que tambm andava fugido, era

    cabra, baixo, cheio de corpo, cara um tanto cumprida, pouca barba, ps pequenos e pouco

    falador. 23 Casimiro era caracterizado como cabra, sem barba, estatura media, queixo

    regular, olhos avermelhados, bons dentes, fala moderada. 24 J Maria, escrava do padre Joo

    Manoel dAlmendra, morador na vila de Marvo, tem o dedo polegar da mo direita

    angagetado proveniente de um pandicio, no mal parecida, alegre e conversadeira.25

    Nessas descries fsicas dos escravos no Piau, percebemos que muitas caractersticas

    resultavam das condies de vida nas quais se encontravam aqueles trabalhadores. Uma outra

    20 O Semanrio, 06 de novembro de 1880. Ano V. n. 176. p. 03. 21 O Semanrio, 03 de maio de 1879. Ano IV. n. 112, p. 04. 22 O Semanrio, 06 de abril de 1878. Ano III. n. 60,p. 04. 23 O Semanrio, 28 de junho de 1880. Ano V. n. 160, p. 04. 24 APEPI. Delegacia de Teresina. 1846-1847-48-49-1851/1942. CAIXA. 570. 25 O Semanrio, 28 de junho de 1878. Ano V. n. 160, p. 04.

  • 23

    observao importante o fato de que muitas facilitavam a recaptura e identificao de

    escravos fugidos. Dessa forma, tais caractersticas auxiliaram os senhores de escravos no

    controle, sendo que tambm atravs delas a instituio policial conseguia agir no controle e

    ordenamento social. A seguir aprofundaremos essas questes.

    1.2 COTIDIANO DO TRABALHO: OCUPAES DOS TRABALHADORES ESCRAVIZADOS NO PIAU

    De acordo com o historiador Alcebades Costa Filho26, no sculo XIX, a populao

    piauiense era predominantemente rural, sendo que as famlias viviam em fazendas que se

    localizavam distantes uma das outras. Entre os produtos, o gado vacum foi uma das principais

    fontes de riqueza, ou seja, a base econmica da Provncia, ao mesmo tempo em que ligava

    uma fazenda a outra e estas com outras regies do pas. No entanto, outras atividades e

    produtos eram realizados para a subsistncia dessas fazendas e a mo-de-obra dos

    trabalhadores escravizados se constituiu enquanto fator de suma importncia no

    desenvolvimento dessas atividades. 27

    Segundo o Relatrio do Presidente de Provncia, Joo Jos de Oliveira Junqueira, no

    ano de 1858, o Piau contava com 5.013 (cinco mil e treze) fazendas particulares e 39 (trinta e

    seis) fazendas pblicas em todo o seu territrio. As fazendas estavam assim localizadas nos

    Municpios: 301 em Teresina, 658 em Oeiras, 176 em Parnaba, 293 em Campo Maior, 180

    em Barras, 487 em Piracuruca, 447 em Valena, 775 em Parnagu, 368 em Jerumenha, 306

    em So Gonalo, 338 em Prncipe Imperial, 228 em Marvo, 264 em Jaics, 284 em So

    Raimundo Nonato e 147 fazendas em Pedro Segundo. Com relao s fazendas pblicas, estas

    eram divididas em trs inspees denominadas, Nazar, Canind e Piau. Em 1855 as

    propriedades contavam com 738 trabalhadores escravizados.

    26 COSTA FILHO, Alcebades. Histria da mulher escrava no Piau. Cadernos de Teresina, p.23-32, ago. 1992. 27 Em seu trabalho sobre os escravos das fazendas pblicas no Piau, Solimar Oliveira Lima aponta que a mo-de-obra escrava era utilizada em todos os tipos de tarefa, assim o autor tenta desmistificar a viso de que os trabalhadores escravizados das fazendas pblicas eram menos explorados do que aqueles que viviam em propriedade privada. Essa tese foi fortemente defendida por Tnya Maria Pires Brando, em O escravo na formao social do Piau, e por Miridan Brito Knox Falci, no livro Escravos do Serto.

  • 24

    A formao social da Provncia era composta por proprietrios latifundirios,

    escravocratas e donos de rebanhos de gados. Alm desse grupo, escravos, trabalhadores livres

    pobres e agregados das fazendas, existia tambm uma pequena parcela de empregados na

    administrao pblica e profissionais liberais com forte ligao com as famlias oligrquicas,

    sendo, em alguns casos membros dessas famlias.28

    De acordo com a historiadora Teresinha Queiroz, a populao da Provncia do Piau

    era de aproximadamente 202.222 habitantes no ano de 1870, entre pessoas livres e escravas.29

    No final do sculo XIX o nmero de habitantes subiu para 250.000, sendo que, entre esses,

    17.327 eram escravos. 30 Homens e mulheres escravizados realizavam diversos tipos de

    tarefas nessas propriedades rurais, nos povoados e nas vilas. Para organizar a produo havia

    a diviso sexual do trabalho se fazia presente nas propriedades maiores, sendo que nas

    fazendas de menor porte os trabalhadores eram indistintamente utilizados nas diferentes

    tarefas. Com relao diviso do trabalho nas fazendas do Piau, Miridan Falci afirma que

    Algumas profisses foram exercidas s por um dos sexos: mas as profisses de criado,

    servente, servio domstico, cozinha, costura, carpina, roceiro e tecelo foram exercidas

    indistintamente por ambos os sexos.31

    No intuito de analisar os tipos de tarefas realizadas pelos escravos no Piau,

    trataremos do mundo do trabalho, ou seja, analisaremos quais os ofcios e ocupaes dos

    escravos. Inicialmente, abordaremos algumas atividades femininas, em seguida, as atividades

    masculinas.

    Entre as ocupaes femininas, as mais verificveis foram as atividades de roceiras,

    cozinheiras, costureiras, lavadeiras, engomadeiras, fiandeiras, rendeiras e criadas. Essas eram

    atividades especializadas e realizadas dentro da casa. Tambm havia escravas que

    desenvolviam diversas tarefas, fato que pode ser observado nos casos de propriedades

    pequenas onde seus senhores possuam poucas escravas. Nesse caso podemos citar o exemplo

    da escrava Luzia, encontrada em um de nossos processos crimes, onde a mesma acusava sua

    senhora de violncia. Luzia tinha 30 anos, natural do Piau. Quando lhe foi perguntado qual a

    28 COSTA FILHO, op. cit., p. 28 29 QUEIROZ, Teresinha. Os literatos e a Repblica. Clodoaldo Freitas, Higino da Cunha e as tiranias do tempo. 2 ed. Teresina: EDUFPI, 1996. p. 20. 30 CHAVES, Monsenhor. Obra Completa. 2 ed. Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 1998. p. 195. 31 FALCI, Miridan B. K. Escravos do Serto: demografia, trabalho e relaes sociais. Teresina: Fundao Cultural Monsenhor Chaves, 1995. p. 125.

  • 25

    sua profisso, respondeu que era empregada nos servios domsticos. 32 Desse modo,

    acreditamos que Luzia fazia todas as atividades domsticas dirias de uma casa.

    A fora de trabalho das negras escravas foi, portanto, utilizada em diferentes

    momentos da economia escravista, especialmente nas atividades domsticas. Segundo o

    historiador Alcebades Costa Filho, em pesquisa realizada nas Listas de Classificao, em um

    grupo de 4.097 escravas, 3.447 tinha atividades definidas; 1.236 eram roceiras, 976 eram

    cozinheiras e 582 eram costureiras. Outras atividades que no foram quantificadas pelo autor,

    por aparecerem em menor nmero, foram as de boleiras, fiandeiras, lavadeiras, engomadeiras,

    rendeiras, azeiteiras e criadas. Alm dessas atividades, Costa Filho tambm destaca que

    existiam algumas escravas vendedoras.

    O autor tambm afirma que as escravas eram utilizadas em diversas obrigaes

    relacionadas ao trabalho domstico, entre elas, a limpeza da casa, o preparo dos alimentos, o

    cuidado das crianas, e dos animais, o fabrico de leo de a cozinha, queijo, manteiga, doces,

    bolos, sabo, vela, ou seja, produtos destinados ao consumo da casa.33 No havia, portanto,

    escravas especializadas em uma s tarefa, pois uma escrava domstica poderia realizar uma

    ou mais tarefas dentro de uma propriedade, apesar de esse servio requerer, entre as famlias

    mais abastadas, um nmero maior de empregadas. Havia ainda, famlias que possuam um

    nmero menor de escravos e que costumavam alugar suas escravas em servios domsticos.

    No sistema escravista existia uma diferena entre os trabalhos internos e os externos.

    Os internos estavam ligados s atividades desenvolvidas dentro da casa; j os trabalhos

    externos eram os que se faziam fora da casa, nas ruas ou nos mercados. No geral, as

    ocupaes mais comuns estavam ligadas s atividades domsticas, como vimos acima.

    As atividades realizadas na roa requeriam maior fora de trabalho, sendo por isso

    empregado uma maior nmero de escravas trabalhando. Esse tipo de tarefa tambm era

    desenvolvido ao lado de escravos do sexo masculino, o que representava uma maior

    possibilidade de socializao entre eles: era na roa que tambm surgiam os relacionamentos,

    as brigas e, provavelmente, os planejamentos das fugas coletivas, pois, nessas ocasies os

    escravos tinham a oportunidade de uma maior aproximao, apesar de muitas vezes estarem

    sob vigilncia do feitor. Com relao ao trabalho das roceiras, Maria Lcia de Barros Mott

    destaca que algumas escravas j eram habituadas ao trabalho agrcola na frica, sendo que,

    no trabalho com as roas elas utilizavam a enxada como os homens, embora os

    desmatamentos, realizados a machado, fossem tarefa dos homens, assim como o corte de

    32 APEPI. Srie: autos-crimes. Subsrie: Teresina. Anos: 1880-1883. CAIXA 291. 33 COSTA FILHO, op. cit., p. 28.

  • 26

    cana, ou seja, nas atividades que requeriam ainda mais a fora fsica. s mulheres cabiam os

    feixes. 34 Segundo Miridan Falci, ambos os sexos tiveram que trabalhar na roa, ajudando a

    capinar, a cortar a lenha ou a fazer covas. Meninos e meninas foram roceiros antes de

    aprenderem outra profisso. 35

    No trabalho de preparar a terra para ser plantada, inicialmente, limpava-se o solo,

    fazendo-se em primeiro lugar, a broca corte de pequenas rvores com foices, depois a

    derriba corte das rvores maior com machados e, por ltimo, ateava-se o fogo. Depois

    de preparada a terra com a queimada, s restava esperar a chuva para comear o plantio.36

    Segundo Lima, as crianas eram, desde muito cedo, iniciadas nos servios das roas, assim

    tambm como nas fiadas, contudo o objetivo no era to somente a produo e explorao do

    trabalho das crianas, mas uma maneira de vigiar os pequenos e para garantir e ampliar,

    futuramente, a produo.37

    Era das cozinhas que saa o cheiro do feijo cozido, da carne seca, das delcias

    preparadas pelas escravas cozinheiras. Para acompanhar toda a comida preparadas pelas

    mulheres, havia tambm a farinha, elemento sempre presente na mesa dos moradores da

    Provncia, a qual tambm era produzida pelas escravas nas farinhadas. Desenvolver a tarefa

    de cozinhar era uma sria responsabilidade para as escravas. Tinham que ser mulheres

    experientes e prontas para os dias de festa onde juntavam pessoas das propriedades mais

    prximas, principalmente, em festas religiosas e at mesmo nos velrios. Tambm como

    destaca Sandra Graham, alm de demonstrarem competncia as cozinheiras teriam que

    conhecer os equipamentos que usavam, como os utenslios, o forno e o fogo, bem como os

    cardpios, entre outros. A alimentao de seus parceiros de cativeiro tambm era preparada

    pelas cozinheiras, assim como a dos agregados.

    Alm de discutirmos as habilidades das cozinheiras com seus instrumentos de

    trabalho, temos que enfatizar que das cozinhas tambm saa o sabor da resistncia contra os

    senhores e senhoras, j que muitas escravas utilizavam o dom que adquiriam para colocar

    veneno dentro dos saborosos pratos preparados para a famlia senhorial. Os senhores, algumas

    vezes, tinham medo de saborear os pratos, temendo serem envenenados.

    As escravas lavadeiras cuidavam das roupas da famlia senhorial e, como no havia

    gua encanada, tinham que carregar a trouxa de pano na cabea e se dirigir ao rio ou riacho

    34 MOTT, Maria Lcia de Barros. A mulher na luta contra a escravido. So Paulo: Contexto, 1991. p. 20. 35 FALCI, op. cit., p. 122. 36 LIMA, op. cit., p. 74 37 LIMA, op. cit., p. 72

  • 27

    mais prximo, ou a uma fonte pblica para realizar seus afazeres. Muitas escravas faziam

    desses locais de trabalho espaos de sociabilidade, onde cantavam e conversavam com

    companheiras de cativeiro ou de outras propriedades. Alm das conversas e cantorias,

    tambm naqueles momentos aproveitavam e tomavam banho nos rios e riachos.

    Para algumas, as brincadeiras na gua traziam srias conseqncia, at mesmo a

    morte. Nos documentos analisados, encontramos casos de escravas que morreram afogadas

    durante a execuo dos trabalhos, como foi o caso de duas mulheres que se afogaram no Rio

    Parnaba, um dos principais rios da Provncia, onde escravas costumavam lavar as roupas de

    seus senhores. No dia 25 de janeiro de 1879, Dona Felicidade Maria da Cunha e sua escrava

    Izabel saram como de costume para lavar roupas. Nesse caso a senhora deveria ser uma

    pessoa de poucas posse, por estar ajudando a sua escrava nas atividades domsticas. Apesar

    de j estarem habituadas a lavar roupas no rio Parnaba, esse foi um dia diferente dos outros,

    tendo os corpos das duas sido encontrados boiando no rio em 27 do mesmo ms. O exame de

    corpo de delito concluiu como causa mortis o afogamento. 38 Como veremos adiante,

    muitos escravos morriam dessa forma por andarem brios, o que no foi o caso de Dona

    Felicidade e da escrava Isabel.

    Sobre as escravas lavadeiras, a historiadora Sandra Graham observa que a lavagem de

    roupa era uma das principais ocupaes na organizao da famlia, a qual costumava usar

    muitas peas brancas, desde as peas de roupas at as toalhas de mesa e panos de prato da

    cozinha, o que significava muito trabalho para as escravas lavadeiras em esfregar toda a

    roupa. As fronhas, os bordados, as toalhas de mo, em sua maioria, eram todos de cor branca. 39

    Quando as lavadeiras chegavam com a trouxa de roupas praticamente enxuta pelo sol,

    era a vez das engomadeiras passarem as peas para ficarem a gosto de seus senhores. O ferro

    brasa j estava no ponto de gomar toda a roupa trazida pela companheira de cativeiro, e as

    montanhas de roupas aguardavam o esfregao do ferro quente passado com a fora de

    braos que trabalhavam muito para dar um bom aspecto s roupas brancas.

    Na sua discusso sobre a mulher escrava na Bahia do sculo XIX, Ceclia Moreira

    Soares afirma que

    A rotina domstica era supervisionada de perto e cuidadosamente pelas senhoras. Porm, ocupaes como fazer compras, carregar gua, etc. fugiam

    38 APEPI. Chefe de Polcia. 1879. SPE. Cd. 770. ESTN. 07. PRAT. 02. 39 GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteo e obedincia: criadas e seus patres no Rio de Janeiro 1860-1910. So Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 54.

  • 28

    ao controle direto das proprietrias e patres, pois todas dependiam do constante deslocamento das escravas rua. Durante o percurso podiam servir a outras pessoas, ganhar algum dinheiro, criar redes de amizade, escapar enfim da rotina do trabalho domstico.40

    Uma outra atividade exercida pelas mulheres escravas no Piau era a de costureira. As

    roupas produzidas eram usadas em grande parte pela populao livre e liberta, pois as pessoas

    no tinham dinheiro para comprar roupas em outros lugares, fato explicado pela distncia

    entre as cidades e a pela dificuldade de deslocamento. As escravas costureiras tambm

    confeccionavam as roupas de outros escravos.

    Conforme Graham, o trabalho das costureiras era realizado prximo s donas da casa,

    as quais tentavam copiar modelos estrangeiros, sendo que, entre eles, os franceses eram os

    mais cogitados. Alm das roupas mais elegantes, as costureiras cortavam e ajustavam as

    roupas mais simples de toda a famlia, que se tinham boas condies financeiras, mantinha

    uma criada servindo apenas de costureira. Quando no, muitos procuravam as escravas

    costureiras que trabalhavam para diversas famlias. 41 A profisso de costureira era tpica das

    mulheres, no entanto, em sua pesquisa, Miridan Falci encontrou referncia sobre um escravo

    costureiro na cidade de Unio, o qual se chamava Anselmo, mulato de 23 anos de idade. 42

    Encontramos ainda em nossa pesquisa algumas referncias a escravas que fiavam.

    Muitos fios de algodo passaram pelas mos daquelas escravas. Como frisamos antes, a

    atividade de fiar iniciava as meninas escravas no mundo do trabalho, por ser um tipo de

    atividade que requer pouca fora fsica. Assim, as mais novas auxiliavam as escravas mais

    velhas que tambm eram utilizadas nessa atividade pelo mesmo motivo, isto , pelo fato de j

    se encontrarem sem o mesmo vigor da juventude as pretas velhas eram colocadas ao lado

    das meninas para ensinar-lhes a arte de fiar.

    Segundo Lima, nas fazendas pblicas, o ato de fiar e tecer foram ocupaes

    predominantes entre as trabalhadoras que eram fisicamente inaptas para desenvolver outras

    atividades. As velhas mos nos teares teciam uma pequena produo de tecido apenas para a

    subsistncia no havendo produo em alta escala. 43

    Alm dos trabalhos domsticos, as escravas tambm realizavam atividades fora da

    casa dos senhores. A historiografia indica a existncia de diversos tipos dessas atividades. No

    40 SOARES, Ceclia C. Moreira. Mulher escrava na Bahia no sculo XIX. Salvador: EDUNER, 2006. p. 53. 41 GRAHAM, op. cit., p. 50-51. 42 FALCI, op. cit., p. 125. 43 LIMA, op. cit., p. 70-71.

  • 29

    Piau, entre as mais comuns, podemos citar as de vendedora e as ama-de-leite. Entre os

    produtos vendidos, a farinha era bastante comercializada, principalmente, em pocas aps a

    sua produo, ou seja, depois das farinhadas.

    Costa Filho faz referncias s escravas que trabalhavam fora de casa, as quais levavam

    produtos para serem vendidos na feira. Nos cdices que o autor pesquisou, encontram-se

    diversas licenas para que livres e escravos comercializassem. Entre as escravas vendedoras,

    Ludovica, por exemplo, era vendedora numa quitanda cidade de Oeiras. 44

    As escravas que desempenhavam a atividade de ama-de-leite, geralmente, tinham

    outras ocupaes, mas, aps o perodo de gestao, deixavam de amamentar seus prprios

    filhos porque eram utilizadas para alimentar o filho do senhor ou serem alugadas a outras

    famlias com o mesmo propsito.

    De acordo com Miridan Falci, essas atividades parecem ter se iniciado s na segunda

    metade do sculo XIX, pois, em trabalhos e pesquisas realizados no perodo anterior, a

    historiadora no encontrou referncia a atividades realizadas fora de casa.45 No caso das

    escravas ganhadeiras, tal atividade lhes proporcionava uma relativa autonomia j que

    passavam muito tempo fora da morada.

    De acordo com Costa Filho, muitas escravas foram alugadas para servios fora,

    destacando-se as lavadeiras, engomadeiras e cozinheiras. No entanto, as escravas eram

    utilizadas nas mais diversificadas tarefas. 46

    Quanto s atividades masculinas, as mais comuns eram a de carreiro, pedreiro,

    roceiro, carpina, sapateiro, vaqueiro, ferreiro e carpinteiro, mas tambm era possvel

    encontrar, entre os escravos, alguns cozinheiros, padeiros, tocadores, feitores, marinheiros,

    enfermeiros, calafates, barbeiros, ourives, seringueiros e outros, s que em menor nmero. De

    acordo com Miridan Falci, as atividades eram divididas de acordo com duas varveis: a

    diviso sexual e etria do trabalho e o fator regional.47 Segundo a mesma autora, existiam

    algumas ocupaes que s apareciam em uma regio, como por exemplo, a de marinheiro,

    que s foi encontrado na cidade de Parnaba.

    A atividade de carrear exigia uma especializao, consistindo em guiar os carros-de-

    boi, o principal meio de transporte da Provncia. Um escravo guiava o carro-de-boi, no qual

    vrios tipos de produtos eram transportados, como a mandioca, a lenha para a fornalha, a

    farinha e outros produtos, para serem comercializados. Pessoas tambm eram carregadas nos 44 COSTA FILHO, op. cit., p. 28 45 FALCI, op. cit., p. 127. 46 Ibid., p. 28. 47 Ibid., p. 120-121.

  • 30

    carros-de-boi quando iam s missas ou quando falecia algum, cujo trajeto at o local do

    enterro era feito nos carros. Encontramos, entre os documentos, o escravo Jos Banto, de 40

    anos de idade, que foi preso na Provncia do Cear por andar fugido, sendo dado ao mister de

    carreiro. 48

    Os trajetos percorridos pelos escravos com os carros-de-boi eram longos, indo de uma

    vila outra, ora vendendo, ora comprando produtos para seus senhores. O ato de carrear

    demandava fora, resistncia e conhecimentos dos caminhos percorridos, por isso o

    carreamento era uma atividade exclusivamente masculina e para homens que tivessem fora

    fsica, sendo que a maioria dos carreiros eram homens jovens. Tratava-se ainda de uma

    profisso que demandava confiana, pois os escravos iam muito longe e poderiam fugir com

    toda a carga de produtos que carregavam nos carros-de-boi.

    Os sapateiros eram os encarregados de produzir e consertar calados, como Anselmo,

    de 31 anos, que era sapateiro da fazenda do senhor Simplcio Dias Mendes, na cidade de

    Parnaba. Assim como Anselmo, na mesma fazenda, havia outros escravos que tambm

    desenvolviam a mesma atividade, como os escravos Joo, de 33 anos; Joo Cachorro, de 36

    anos, e Jos de 22 anos. Do total de 232 escravos pertencentes ao senhor Simplcio s esses

    eram sapateiros. 49

    Andr, de 25 anos, escravo do Coronel Thoms de Aquino, morador na cidade de

    Oeiras, condenado por roubo no ano de 1863, tinha como profisso a de pedreiro. Os escravos

    pedreiros foram muito utilizados na Provncia. Vrios escravos das Fazendas Nacionais foram

    transferidos para Teresina durante o processo de mudana de capitais50. Os primeiros prdios

    pblicos da nova capital foram erguidos pelos braos dos trabalhadores escravizados das

    Fazendas Nacionais. A Igreja da Matriz, o hospital, cemitrio, o Quartel de Polcia e a cadeia

    da cidade so exemplos de construes executadas por escravos no Piau.

    A profisso de pedreiro tambm demandava um esforo exaustivo, pois, para erguer

    uma construo, os escravos limpavam o terreno, caavam varetas para baldrames,

    amassavam o barro, traavam a cal, escavavam pedras para paredes e soleiras, carregavam

    gua para o trabalho e consumo. Alm disso, auxiliavam os carpinteiros na colocao de

    assoalhos, janelas, caibros e ripas, entre outras tarefas. 51

    48 APEPI. Delegacia de Teresina. 1846-1847-48-49-1851/1942. CAIXA. 570. 49 APEPI. Inventrio de Simplcio Dias Mendes. Parnaba, 1833. 50 Em 1852, a capital da Provncia deixa de ser Oeiras e passa a ser Teresina, que foi construda para esse fim. 51 LIMA, op. cit., p. 92.

  • 31

    Sobre a atividade de roceiros j descrevemos um pouco quando tratamos das

    atividades femininas, sendo que os meninos eram iniciados muito cedo nesse trabalho e

    seguiam nessa atividade at conseguirem se especializarem em outra.

    O vaqueiro era uma outra atividade realizada na Provncia. J que a economia da

    regio tinha como principal atividade econmica a pecuria. Muitos escravos foram vaqueiros

    das fazendas no Piau. Tanto das Fazendas nacionais como nas particulares. Os escravos

    vaqueiros guiavam os bois nas fazendas, levavam os animais para a matalotagem, guiavam

    para as regies onde iam ser comercializados como a Bahia e Pernambuco.

    Com relao ocupao de vaqueiro, Solimar Oliveira Lima expe:

    O vaqueiro era, no geral, tratado como um trabalhador desqualificado, realizador de servios ou tarefas que no requeriam habilidade [...]. Entre os vaqueiros havia uma estratificao interna que os diferenciava quanto s tarefas a serem executadas. 52

    Os escravos Agostinho, mulato de 40 anos; Alexandre, de 32 anos; Elesbo, de 34

    anos e Vidal, o mais velho, de 80 anos de idade, eram os quatro vaqueiros na fazenda do

    senhor Simplcio Dias da Silva, o qual, no todo, possua 232 escravos. 53

    Por muito tempo a historiografia fixou-se na idia de que a mo-de-obra escrava no

    poderia coexistir com a atividade da pecuria desenvolvida em diversas regies do Nordeste.

    Os argumentos para tal concepo sobre o trabalho escravo na pecuria ligam-se idia de

    que os negros seriam inaptos para o trabalho na pecuria, o que foi bastante divulgado por

    alguns viajantes e cronistas do sculo XIX.54 O no emprego da mo-de-obra escrava na

    pecuria tambm se justificaria pelo custo desta. Assim, para alguns autores, o

    desenvolvimento da pecuria, em sua fase inicial de expanso, deveu-se ao trabalho indgena,

    o qual apresentaria um custo menor do que o escravo. Uma outra hiptese levantada era a de

    que a grande extenso de terra necessria para a pecuria dificultaria a vigilncia e o controle

    dos trabalhadores escravizados.

    No Piau, entretanto, a literatura historiogrfica mostra o contnuo emprego da mo-

    de-obra escrava na pecuria, atividade que proporcionou o desenvolvimento da economia na

    regio. As observaes dos viajantes Spix, Martius e Gardiner, por exemplo, contriburam

    para a construo de uma nova viso. Acrescente-se que, embora a historiografia piauiense

    52 LIMA,op. ct., p. 101-102. 53 APEPI, Inventrio de Simplcio Dias Mendes. Parnaba, 1833. 54 Entre os viajantes que divulgaram essa concepo, podemos citar Tollenare e Ferdinand Denis.

  • 32

    aponte a presena do trabalho escravo na pecuria, para alguns autores55, essa atividade, por

    ser desenvolvida em grandes extenses de terras, dependia quase exclusivamente de recursos

    naturais, o que gerava pouco trabalho para os trabalhadores escravizados. Alm disso, alguns

    estudiosos compartilham da idia de que tambm existia uma diferenciao de condies de

    trabalho e vida entre o cativeiro nas fazendas pblicas e nas fazendas privadas.

    Para Lima56, os escravos foram utilizados da mesma forma na atividade pecuria do

    Piau, tanto nas fazendas privadas quanto nas pblicas. Alm disso, os trabalhadores tambm

    contriburam em outras tarefas que complementavam a atividade da pecuria, na qual os

    escravos vaqueiros desenvolveram importantes papis.

    1.3 MOMENTOS DE DIVERSO E DESCONTRAO NA VIDA DOS ESCRAVOS

    Apesar das duras condies de vida dos trabalhadores escravizados, estes tinham

    momentos de lazer e descontrao, sendo que, muitas vezes, essas atividades tambm

    representavam a resistncia desses trabalhadores e a luta pela sobrevivncia. O lazer dos

    escravos acontecia, geralmente, nos dias e horrios livres e at mesmo durante a prpria

    jornada de trabalho, principalmente nos momentos de realizaes de atividades coletivas,

    como as farinhadas, fiadas e outras. Como expressamos anteriormente, nessas atividades

    homens e mulheres, escravos e livres se socializavam atravs dos cantos, das conversas e

    ainda dos conflitos que ocorriam no ambiente de trabalho. Tais conflitos, geralmente, eram

    causados por bebedeiras, cimes dos parceiros e motivos ligados ao cotidiano do trabalho.

    O historiador Robson Costa, em seu estudo sobre o cotidiano e a resistncia escrava

    em Olinda, nas ltimas dcadas da escravido, discorre acerca das redes comunitrias

    construdas nas relaes entre os escravos e entre estes e o restante da sociedade. Segundo o

    autor,

    Para os escravos, as redes comunitrias aparecem como o ponto chaves da resistncia, pois a vida cotidiana perfazia-se no apenas pelo trabalho que ocupava, verdade, boa parte de seu tempo mas tambm das festas, da religiosidade ou mesmo das fugas. Na verdade, todos esses elementos se imbricavam, pois as relaes de parentesco, as manifestaes culturais e o

    55 Como exemplo, podemos citar Tnya Brando, Odilon Nunes, Carlos Eugnio Porto, entre outros. 56 LIMA, Solimar Oliveira. Brao forte: trabalho escravo nas fazendas da Nao no Piau. 1822-1871. Passo Fundo: UPF, 2005.

  • 33

    tempo de trabalho eram indissociveis, muitas vezes contrariando a lgica da escravido e as estratgias senhoriais de enfraquecimento de seus espritos.57

    No que diz respeito diverso dos trabalhadores escravizados, entre as atividades de

    lazer praticadas pelos cativos na Provncia do Piau, o ato de ingerir bebidas alcolicas era

    uma prtica presente no cotidiano daqueles homens e mulheres escravizados, sobretudo entre

    os escravos do sexo masculino. Era comum nos relatrios da polcia a priso de escravos por

    andarem embriagados.

    Os escravos costumavam beber sozinhos e tambm em grupo. Seus companheiros de

    bebedeiras eram outros escravos, libertos e, tambm pessoas livres. Segundo Mary Karasch, o

    consumo de bebidas alcolicas pelos escravos era comum na Provncia do Rio de Janeiro no

    sculo XIX, onde a bebida ajudava a minimizar os efeitos da servido, tendo ainda importante

    papel em alguns ritos religiosos e na vida social dos escravos. 58

    Em 09 de janeiro de 1862, por exemplo, foi recolhido cadeia da cidade de capital da

    Provncia o escravo Justino, que pertencia aos rfos do j falecido Marcelino Gonalves

    Pedreira. Segundo o relatrio do chefe de polcia, alm de se encontrar em estado de

    embriaguez, o preto Justino ainda ofendia a moral com palavras obscenas.59 Karasch

    destaca que a prtica de falar palavres era uma forma no violenta de resistncia

    escravido.60 Sidney Chalhoub tambm discorre sobre algumas caractersticas das classes

    subalternas, entre elas o humor, e segundo ele, essas caractersticas tinham sentidos prprios e

    objetivos dbios.61 Possivelmente, essa teria sido uma oportunidade para Justino fazer alguns

    desabafos, ofendendo os seus jovens senhores. Maria da Conceio e o escravo Gonalo

    tambm foram presos juntos, em junho de 1875, por andarem embriagados.62

    As bebedeiras aconteciam em alguns estabelecimentos chamados de quitandas63 ou

    nas propriedades onde os escravos viviam, principalmente, naquelas que possuam plantao

    de cana-de-acar e produziam aguardente. Segundo Lima, o lcool no era o nico vcio dos

    57 COSTA, Robson. Vozes na senzala: cotidiano e resistncia nas ltimas dcadas da escravido. Olinda, 1871-1888. Recife: Ed. Universitria da UFPE, 2008. p. 116. 58 KARASCH, Mary. A vida dos escravos: no Rio de Janeiro 1880-1850. So Paulo. Companhia das Letras, 2000. p. 436-437. 59 APEPI. Delegacia de Polcia. 1846-1847-48-49-1851/1942. Caixa 570. 60 KARASCH, op. cit., p. 436. 61 CHALHOUB, Sidney. Dilogos Polticos em Machado de Assis. In: CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo A. de M. Histria contada: Captulo de Histria social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 95-122. 62 APEPI. Chefe de Polcia. 1874. SPE. Cd. 766. ESTN. 07. PRAT. 02. 63 As quitandas eram pequenos estabelecimentos comerciais que vendiam gneros alimentcios e bebidas.

  • 34

    trabalhadores escravizados, havendo tambm o fumo64 que era produzido em algumas

    fazendas.

    O uso de lcool e a conseqente embriaguez desencadeavam vrios conflitos entre os

    escravos, bem como entre estes, os libertos e as pessoas livres. Esses conflitos, muitas vezes,

    acabavam em agresses fsicas com leses corporais leves e graves, como tambm em

    homicdios. No relatrio da Secretaria de Polcia do ano de 1863, o chefe de polcia da

    Provncia relata a priso de um escravo juntamente com uma pessoa livre, porque se

    encontravam brigando.

    Das partes recebidas nesta Repartio consta que ontem foram prezos nesta cidade a ordem do Subdelegado de Polcia do 2 Districto, por estarem brigando o paizano Manoel Jos Nascimento e o escravo Trajano, pertencente ao finado Vdigal da Silva Rios, o que communico Vossa Excelncia como cumpre.65

    Alm das confuses e brigas, devido ao uso de lcool, alguns escravos tinham como

    destino final a morte, ocasionada em alguns casos por afogamentos. Nesse sentido,

    encontramos casos de homens e mulheres escravos que se afogaram em rios aps terem se

    embriagado.

    Entre algumas dessas ocorrncias, destacamos o episdio do escravo Galino,66 o qual

    foi encontrado morto, sendo que, aps o exame de corpo de delito, foi concludo que a causa

    mortis foi o estado de embriaguez no qual o escravo se encontrava. Observamos

    anteriormente que os banhos de rio tambm se constitua enquanto forma de diverso entre os

    escravos. Como eram rotineiros na vida das escravas lavadeiras, nas horas de trabalho, essas

    escravos usufruam de alguns momentos de descontrao.

    O jogo tambm era uma forma de diverso entre os escravos, sendo geralmente,

    acompanhado por bebedeiras e embriaguez. Homens escravos, libertos e livres disputavam

    apostas nas bancas de jogos, como se verifica no seguinte relato:

    Secretaria de Policia do Piauhy, em 27 de abril de 1863. Hontem foram recolhidos cadeia desta cidade, minha ordem, Manoel Xavier Pereira, por embriaguez e achar-se jogando com o escravo Jeremias, do Dr. Carlos de Sousa Martins, que tambm foi mero a pedido do seu senhor. 67

    64 LIMA, Solimar Oliveira, op. cit., p. 79 65 APEPI. Delegacia de Polcia. 1846-1847-48-49-1851/1942. Caixa 570. 66 APEPI. Delegacia de Polcia. 1846-1847-48-49-1851/1942. Caixa 570. 67 APEPI. Delegacia de Polcia. 1846-1847-48-49-1851/1942. Caixa 570.

  • 35

    Os cdigos de posturas e as demais leis elaboradas no decorrer do sculo XIX

    objetivavam legitimar o domnio senhorial sobre os escravos, no entanto, apesar da existncia

    de cdigos que proibiam jogos e bebedeiras entre escravos e entre esses e pessoas livres,

    constantemente as mesas de jogos estavam armadas nas quitandas, e os escravos se faziam

    presentes sempre que podiam. Provavelmente, as apostas rolavam at tarde da noite e

    acreditamos que nesse momento vrios escravos eram recolhidos por andarem depois das dez

    horas da noite na rua e sem o bilhete de seus senhores.

    O artigo 32 do Cdigo de Postura da cidade de Teresina do ano de 1852 diz que toda

    pessoa que for encontrada bria e pelas ruas da cidade ser multada em dois mil ris e trs

    dias de priso, sendo escravo s a priso, e o artigo 47 do mesmo cdigo completa: Aos que

    consentirem em suas lojas, quitandas, e outras casas pblicas escravos alheios em ociosidade,

    ou entretidos em danas e jogos, si impor a multa de 15#Rs com o duplo na reincidncia. 68

    notvel que os escravos na Provncia burlavam a ordem disciplinar contida na lei,

    reinventavam os espaos e firmavam relaes sociais com libertos e pessoas livres. Assim,

    entre apostas, bebedeiras e confuses, escravos, libertos e homens livres construam relaes

    de sociabilidade na Provncia durante meados do sculo XIX. Alm de diverso, o jogo

    tambm era uma forma de muitos escravos conseguirem dinheiro para a compra de roupas,

    bebidas e, at mesmo, da sua alforria.

    Uma outra prtica cultural utilizada pelos escravos na Provncia era o bumba-meu-boi,

    sua presena dava-se nas festividades das cidades, especialmente na folia de reis. No ritmo

    das zabumbas ou das bexigas de bois cheias de ar, escravos danavam o bumba-meu-boi, cuja

    origem, apesar de haver uma discusso acerca de ter sido ou no no Piau, sabe-se que essa

    manifestao cultural foi muito presente entre os escravos no decorrer do sistema escravista.

    O bumba-meu-boi uma das criaes dos trabalhadores escravizados, os quais representaram

    a mo-de-obra responsvel pela criao dos rebanhos nas fazendas de gado no Piau durante

    todo o regime escravista nessa Provncia.

    Sobre a origem do bumba-meu-boi, o folclorista e professor piauiense No Mendes de

    Oliveira argumenta que

    O certo que nosso Boi originou-se aqui mesmo no Nordeste, uma regio colonizada atravs das fazendas de gado, onde o boi era o centro da sobrevivncia local. E o Piau o estado onde esse relacionamento tornou-se

    68 CDIGO de postura de Teresina: 1852. Ttulo 08. Artigo. 57. APEPI. Conselho Municipal de Teresina. Cmara Municipal Teresina. 1833-1854. Caixa. 58.

  • 36

    mais ntimo. Da a brincadeira estar revestida de tanta popularidade, de tanta pompa e colorido. O boi, para ns, no apenas um animal importante como outro qualquer, mas est revestido de uma profunda significao mtica. 69

    De acordo com o mesmo autor, a festa do boi no Piau acontecia no decorrer de todo o

    ano e, nas vsperas do perodo de So Joo e So Pedro, tinha-se o chamado boi de junho, que

    acontecia, principalmente, nas cidades de Teresina, Amarante e Parnaba. 70

    Em alguns momentos, a dana do bumba-meu-boi, assim como outras atividades

    culturais dos escravos, trazia preocupaes s autoridades da Provncia. Foi o que aconteceu

    durante uma apresentao do bumba-meu-boi na cidade de Teresina, em julho de 1862,

    quando o escravo Rufino, que pertencia senhora Cndida Canria, foi recolhido cadeia da

    cidade por estar cantando e pronunciando palavras desconhecidas da populao. No relatrio

    da Secretaria de Polcia ao Presidente da Provncia, Jos Fernandes Moreira, do dia 25 de

    junho de 1862, percebemos a preocupao das autoridades com a atitude do escravo:

    Communico V. Ex. que hontem foi preso nesta cidade, a ordem de respectivo Delegado de Policia, o escravo Rufino, pertencente a Cndida Canria, que danara no brinquedo Bumba-meu-boi porque nas cantigas envolvia nomes de pessoas estranhas ao tal brinquedo; e por isso cassei a permisso que dei para ser elle apresentado ao publico desta cidade.71

    Para Joo Jos Reis, em seu trabalho sobre as festas de escravos no sculo XIX, os

    diversos sentidos e as vrias formas de festa no mundo da escravido, freqentemente,

    confundiam os responsveis por seu controle. Existia certa discordncia entre os responsveis

    por esse controle. As festas, em sua maioria, simbolizavam formas de subverso que geravam

    vrios sentidos. Por um lado, muitos viam a festa e manifestaes culturais dos negros como

    uma ameaa ao sistema escravista; por outro seriam uma forma de amenizar as tenses

    internas do escravismo.72 importante destacar que concebemos as festas escravas como uma

    forma no violenta de resistncia escravido, sendo que as mesmas apresentavam um carter

    subversivo.

    69 OLIVEIRA, No Mendes de. Folclore Brasileiro: Piau. 2 ed. Teresina: EDUFPI, 1995. p. 56. 70 OLIVEIRA, No Mendes de., op. cit., p. 33. 71 APEPI. Delegacia de Polcia de Teresina. 1846-51-58/1860-69/1870-79/1881-87/1990-97/1900-1942. Caixa 570. 72 REIS, Joo Jos Reis. Batuque negro: represso e permisso na Bahia oitocentista. In: JANCS, Istvn; KANTOR, ris. Festa: cultura e sociedade na Amrica Portuguesa. So Paulo: Fapespi; Imprensa Oficial, 2001. p. 340.

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    No Piau, a festa negra, como vimos no caso do escravo que brincava no bumba-meu-

    boi, tambm incomodava as autoridades e o restante da populao. De acordo com Mairton

    Celestino da Silva, em seu trabalho sobre os batuques de negros na cidade de Teresina, capital

    da Provncia, os ajuntamentos de negros cativos e livres eram vistos como um perigo para a

    ordem instituda, assim tambm com um entrave ao progresso da nao, objetivo to almejado

    entre os dirigentes. Desse modo, esses batuques de negros eram alvos de constante vigilncia

    policial. 73

    O barulho produzido pelos cantos, risadas, batuques e tambores de negros

    incomodavam os habitantes das cidades. Encontramos no jornal O Semanrio algumas

    notas sobre uma festa de negro que acontecia na capital da Provncia e que, segundo o mesmo

    peridico, incomodava os moradores da rua onde acontecia o tambor.

    Alguns moradores da Rua Augusta e suas immediaes, pedem-nos que chamemos a atteno da polcia para o folguedo de negros denominado tambor, que todos os domingos se faz naquella rua. Achamos-lhes razo; porque semelhante brincadeira se torna insuportvel pelo barulho que provoca. justo que cada um procure distrahir-se; mas de forma que a distrao de uns no se torne prejudicial a outros. Podem os negros divertir-se, mas que faam em lugares prprios. Satisfazendo o pedido dessas pessoas, contamos que o Sr. Dr. Chefe de Policia tomar o caso em considerao. 74

    Ao que parece, o pedido dos moradores mencionado no peridico foi atendido, no

    entanto, uma outra nota surge, um ms aps a que foi citada acima, com uma nova reclamao

    sobre a festa dos negros. Segundo o mesmo jornal, o tambor havia sido interrompido por

    alguns dias, mas logo voltou a acontecer, sendo que, dessa vez, reapareceu com um

    entusiasmo mais frentico, por isso, os moradores da Rua Augusta mais uma vez pedem ao

    chefe de polcia que tome providncias com relao festa dos negros, que se repetia naquele

    mesmo local e com mais fora. 75

    Sobre os meios de se controlar a populao escrava durante o sculo XIX, Joo Jos

    Reis assim expe:

    73 SILVA, Mairton Celestino da. Batuque na rua dos negros: cultura e polcia na Teresina da segunda metade do sculo XIX. 2008. 137f. Dissertao (Mestrado em Histria) - Centro de Cincias Humanas, Universidade Federal da Bahia, 2008. p. 103. 74 O Semanrio, 17 de agosto de 1878. Ano III. n. 79, p. 04. 75 O Semanrio, 14 de setembro de 1878. Ano III. n. 83, p. 02.

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    Aps a Independncia parece ter havido um esforo grande dos governos locais para controlar melhor a populao escrava, por meio de leis provinciais e, sobretudo posturas municipais, entre as quais se incluam as que proibiam terminantemente batuque e tendas de negros em qualquer hora e lugar. 76

    A msica fazia parte do mundo dos escravos, tanto dos escravos que vieram da frica,

    como dos que tinham nascido no Brasil. Nos documentos analisados sobre a Provncia do

    Piau, encontramos algumas referncias a escravos que tocavam instrumentos, que seria uma

    outra atividade ldica dos escravos. Karasch, no manuseio de relatos de viajantes, destacou

    alguns instrumentos produzidos na cidade do Rio de Janeiro, onde os mesmos eram

    fabricados pelos prprios escravos, principalmente pelos africanos. 77

    No inventrio do senhor Simplcio Dias da Silva78, morador na cidade de Parnaba, no

    ano de 1833, a relao de seus escravos somava 232 trabalhadores em apenas uma de suas

    fazendas, e, entre estes, 09 escravos tinham a profisso de tocador, sendo