1. KELSEN, 1915. Uma fundamentação para a sociologia do ...

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Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 10, N. 1, 2019, p. 775-816. Hans Kelsen DOI:10.1590/2179-8966/2019/39506| ISSN: 2179-8966 775 Uma fundamentação para a sociologia do direito A foundation of sociology of law* Hans Kelsen (1881-1973) Universidade de Viena, Império Austro-húngaro Versão original: KELSEN, Hans. Eine Grundlegung der Rechtssoziologie. Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, n. 39, p. 839-876, 1915. Tradução Henrique Sagebin Bordini, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4938-217X. E-mail: [email protected] Revisão Lucas Pizzolatto Konzen, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0376-3770. E-mail: [email protected] *Esta tradução é um dos produtos do projeto de pesquisa A sociologia do direito em busca de uma identidade: debates clássicos e contemporâneos, desenvolvido com a colaboração do Grupo de Pesquisa Direito e Sociedade (GPDS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e apoiado financeiramente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Chamada Universal – MTCI/CNPq n. 14/2014, Processo 444686/2014-2. A tradução do original em alemão foi realizada com a permissão do Hans Kelsen-Institut, Viena, Áustria, sob a condição de que o texto fosse traduzido sem quaisquer modificações (inserções, notas ou comentários). O texto foi revisado a partir da tradução para o italiano (KELSEN, Hans. Uma fondazione della sociologia del diritto. In: CARRINO, Agostino (Org.). Hans Kelsen / Eugen Ehrlich: scienza giuridica e sociologia del diritto. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1992. p. 67-105). Tradução recebida em 14/12/2018 e aceita em 23/12/2018. This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License

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UmafundamentaçãoparaasociologiadodireitoAfoundationofsociologyoflaw*

HansKelsen(1881-1973) UniversidadedeViena,ImpérioAustro-húngaro

Versãooriginal:KELSEN, Hans. Eine Grundlegung der Rechtssoziologie. Archiv für SozialwissenschaftundSozialpolitik,n.39,p.839-876,1915.

TraduçãoHenriqueSagebinBordini,UniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,PortoAlegre,RioGrande do Sul, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4938-217X. E-mail:[email protected]

RevisãoLucasPizzolattoKonzen,UniversidadeFederaldoRioGrandedoSul,PortoAlegre,RioGrande do Sul, Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0376-3770. E-mail:[email protected]

*Esta tradução é umdos produtos do projeto de pesquisaA sociologia do direito embusca de uma identidade: debates clássicos e contemporâneos, desenvolvido com acolaboraçãodoGrupodePesquisaDireitoeSociedade(GPDS)daUniversidadeFederaldo Rio Grande do Sul (UFRGS) e apoiado financeiramente pelo Conselho Nacional deDesenvolvimentoCientíficoe Tecnológico (CNPq),ChamadaUniversal –MTCI/CNPqn.14/2014,Processo444686/2014-2.AtraduçãodooriginalemalemãofoirealizadacomapermissãodoHansKelsen-Institut,Viena,Áustria,sobacondiçãodequeotextofossetraduzido sem quaisquer modificações (inserções, notas ou comentários). O texto foirevisado a partir da tradução para o italiano (KELSEN, Hans. Uma fondazione dellasociologiadeldiritto.In:CARRINO,Agostino(Org.).HansKelsen/EugenEhrlich:scienzagiuridicaesociologiadeldiritto.Napoli:EdizioniScientificheItaliane,1992.p.67-105).

Traduçãorecebidaem14/12/2018eaceitaem23/12/2018.

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Umafundamentaçãoparaasociologiadodireito*

HansKelsenI

Quando um dos líderes e fundadores da chamada ciência “sociológica” do direito,

novíssima e cada vez mais forte, apresenta à opinião pública uma grande obra, cujo

título anuncia a fundamentação desta nova ciência, há razões para se dirigir a tal

iniciativaumacuriosaexpectativaeumagrandeesperança.Atéentãofalharamtodasas

numerosastentativasdereformardecimaabaixoaciênciadodireito,muitasdasquais

fazendo frequentementeataquesapaixonadoscontrauma jurisprudência retrógradae

nãocientíficasoboestandarteda‘sociologia’.Eissoaopontodequesedeveriaduvidar

seriamente de que por trás da fórmula comumda “sociologia” haveria realmente um

esforço uniforme, voltado a um fim claro e determinado, vale dizer, uma

fundamentação científica. E se alguém entre todos estaria apto e capaz a apresentar

essesfundamentos,esteseriaseguramenteEugenEhrlich.Seussedutoresecativantes

escritos,emsuaespirituosaevivazretórica,têmatraídoumfielséquitodeseguidores,

hámaisdeduasdécadas,indicandoocaminhoaserseguidonestalutapelaciênciado

direito.

Aoposiçãofundamental,queameaçadividiraciênciadodireito,noquetange

aoobjetoeaométodo,emduastendênciasdiferentes,desdeasuafundação,resultada

dupla perspectiva a qual se acredita poder submeter o fenômeno jurídico. Pode-se

considerar o direito comonorma, isto é, comouma forma determinada dodever-ser,

como regradedever-ser específicae, emconsequência, constituir a ciênciadodireito

comoumaciêncianormativaededutivadovalor,comoaéticaoualógica.1Massetenta

*ResenhadolivrodeEugenEhrlich,GrundlegungderSoziologiedesRechts,MünchenundLeipzig:DunkerundHumblot,1913.1Odever-serjurídicoencontra-sepróximododever-serético,doestético,dológicoedogramaticalcomoumaentremais possibilidades.O valor do direito não é pensado aqui comoum valor absoluto,mas simcomo um valor relativo. O conceito de dever-ser precisa ser tomado aqui - justamente em referência àciênciadodireito -emumsentidopuramente formal. Éumpontoquedestacoaqui contraaconcepção,hoje uniformemente sustentada, que entende o “dever-ser” somente no sentido material de um valorabsoluto.Aciênciadodireitoocupa-sedeconhecer (enãodeestatuir)odever-ser jurídico;nestesentidoestapossuiumcaráternormativo.Cf.omeuHauptproblemederStaatsrechtslehre,Tübingen,1911,p.3ess.

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tambémconceberodireitocomoumapartedarealidadesocial,comofatoouprocesso

cuja regularidade é compreendida indutivamenteeexplicadacausalmente.Odireitoé

aqui uma regra do ser de determinada conduta humana; a ciência do direito, uma

ciênciadarealidadequetrabalhasegundoomodelodasciênciasdanatureza.Aindanão

foiditodemodoalgumseeematéquepontoelaétambémumaciênciasocial.Masna

medida em que se atribui o caráter de social a uma regra que afirma uma forma

conhecidaehomogêneadecomportamentodoshomensemseuconvívio,umaciência

queseempenhaemprocurartaisregras“sociais”,asregrasdavidajurídicaouasregras

do direito, é designada como ciência social, ou caso se queira, sociologia. Que tal

sociologia seja teoricamente possível e desejável para a explicação do convívio dos

homens não pode ser colocado aqui em discussão. Se e em até que ponto uma

sociologia do direito é possível é algo que ainda vai ser examinado mais adiante. É

preciso ter clareza quanto ao fato de queuma sociologia dodireito é essencialmente

diversa, em objeto e método, de uma ciência do direito que se coloca a tarefa de

reconhecernãooquedefatoé,massimoquedeveserporcontadodireito,deuma

ciência do direito valorativa, não explicativa, em outras palavras: de uma ciência

normativa do direito. Não se pode, naturalmente, falar de uma luta entre as duas

disciplinas,nosentidodeque,deumpontodevistageraldoconhecimentocientífico,

somente uma ou outra seja legítima e possível.2 Inadmissível é a confusão da

2 Recentemente Radbruch (Grundzüge der Rechtsphilosophie, Leipzig, 1914) fez a tentativa, em conexãocomosistemadeciênciadeRickert,decolocaroconceitodedireitoe,porconseguinte,odeciênciadodireito,entreascategoriasdoseredodever-ser.Este“singularinterregno”(p.38)éoreinoda“cultura”.Oconceitodedireitoéumconceitocultural,aciênciajurídicaéumaciênciacultural.Nãoháaquirazãoparasefazerumadiscussãomaisaprofundadadestaconcepção.Suaimpossibilidadelógica,porém,origina-sejádasexposições introdutóriasdopróprioRadbruch.“Fenômenoculturaléumaestruturadosernamedidaem que pode ser objeto de uma valoração, na medida em que o substrato é possível de um valor oudesvalor”(p.39).Eassim,segundoRadbruch,odireitoétambémuma“estruturadoser”enquantoservecomosubstratoaovalordajustiça(p.39).Mascomopodeumaestruturadosertornar-sesubstratodeumvalorseopróprioRadbruch,demodototalmentecorreto,algumaspáginasantes(p.35),depoisdetersereferidoàscategoriasdoseredodever-ser(respectivamentesinônimosderealidade-naturezaedevalor-escopo)comouma“subdivisão fundamentalde todoopensável”,dizqueo“dado” torna-se reinodoser“independentementedevaloroudesvalor,demaneiracegaemrelaçãoaosvalores;seaparecedemaneiravalorativa,esseseordenaassimemumreinododever-ser,emumreinodosvalores”.Odireito,portanto,ouqualqueroutrofenômenocultural,podeserumaestruturadosernamedidaemqueaconsideraçãoé“cega aos valores”. E, todavia, segundo Radbruch, o direito, propriamente como fenômeno cultural, éobjetodeumavaloraçãoousubstratodeumvalor!Evidencia-seaquiumacontradiçãológica.Umente,porcerto, não pode ser valorado, pois este se apresenta como ente somente se considerado de modoessencialmentediversodaquiloquelevaaumavaloração.Acontradiçãoésimplesmenteatribuídaaofatodequeascategoriasseredever-ser-comoopróprioRadbruchacentua-representamuma“fundamentalsubdivisão de todo o pensável” e, precisamente, uma subdivisão exaustiva em dois conceitos que seexcluem;então,umacoisaquenãopodeserconsideradanemcomoexistentenemcomodevidaoucomoambasascoisasaomesmotempo,nãopodesequerserpensada.

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problemática de ambas as tendências, um sincretismo dosmétodosda jurisprudência

normativaedasociologiaexplicativadodireito.3

Édiscutívelque,sobtaiscircunstâncias,possaaindatersentidoqualificarcomo

ciênciadodireitoambosostiposdetendênciascognitivascientíficas,suscitandoassima

impressãodequeháumobjetocomum.Comadiferençada tendênciacognitivaeda

formadepensamento-aquioser, láodever-ser -dá-secomoresultadotambémuma

completadiferençadoobjeto.Aquiloqueossereshumanosemumadadarelaçãosocial

regularmente fazem e aquilo que por força do direito devem fazer precisam ser

consideradas necessariamente coisas formalmente diferentes, mesmo quando o

conteúdodasnormasquedeterminamoquedeveacontecercoincidacomodasregras

que descrevem o que efetivamente acontece; em outras palavras, ainda que não

houvesse outro direito que não o consuetudinário. De um ponto de vista puramente

metodológico, é pacífico que tanto o modo de conhecimento cuja essência forma a

jurisprudêncianormativa, os juízos sobreobrigações jurídicas e asautorizações, sobre

normasjurídicasnosentidoderegrasdedever-sererelaçõesdedever-ser,precisamser

de todoestranhos a uma ciência sociológica dodireito, a qual lida apenas como ser.

Umaciência“sociológica”dodireitonuncapodedizeraqueesobquaiscondiçõesuma

pessoa ou uma categoria de pessoas está obrigada ou autorizada juridicamente,mas

apenas o que determinados seres humanos (com efeito, até mesmo o conceito de

pessoaépuramentenormativo!)sobcertasprecondiçõescostumamfazerounãofazer.

Todasasnoçõesdeumaciênciasociológicadodireitopodemapenasconternoçõesde

realidade,juízosdefato,istoé,juízossobreonexocausaldedeterminadosfenômenos

regulares, e podem conter tão poucos juízos de valor – do tipo ‘isto é lícito, aquilo,

ilícito’,‘alguéméobrigadoaisso,autorizadoaisso’–quantoabiologia,aquímicaoua

psicologia,paraasquaisnãoexisteobomouomau,ocertoouoerrado,aobrigaçãoea

autorização,massomentefatosindiferentesaosvaloreseaoseunexocausal.

Porenquanto,deixa-seemabertoseecomoumapartedarealidadesocialpode

ser diferenciada - por uma consideração puramente causal, portanto (relativamente)

privadadepressupostos - comodireito ouvidadodireito,emcomparação comoutro

tipo de realidade social efetiva sem qualquer relação com certas normas (regras de

dever-ser)pressupostaspeloobservador comoválidas; emoutraspalavras, see como

3 Cf. omeu ensaio,Zur Soziologie des Rechtes, in “Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik”, n. 34,1912,p.601ess.

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podeserconcretizadoopostuladodeseconceberodireitocomoumaespécieparticular

deregradoserdavidasocialdoshomensededistingui-loemrelaçãoaoutrasregrasdo

comportamento social. Evidentemente, a solução de tal problema deve constituir a

pedra fundamental e a pedrade toquedeuma teoria sociológica dodireito.Deixa-se

estabelecido aqui apenas o seguinte: é extremamente desviante definir do mesmo

modo a jurisprudência normativa e a disciplina especial sociológica como ciência do

direito; não somente se a solução do problema primeiramente apontado venha a se

demonstrarteoricamenteimpossível,mastambémnocasoemquesereconheçacomo

a essência dos conhecimentos jurídicos, como elemento específico dos juízos que

afirmamqualquercoisacomosendo jurídica,umaafirmaçãosobreumdever-ser,uma

norma,umaobrigaçãoouautorização,emsínteseumjuízodevalor,poisumaanálisede

qualquerjuízojurídicosedeparacomtalelementodevaloroudedever-ser.Assim,não

hánenhumadúvidaquantoàlegitimidadedaexistênciadeumaciênciaque,aoladoda

ciência normativa, pesquisa e explica o comportamento social regular dos homens.

Ainda que fosse possível distinguir como “direito” certas regras do comportamento

efetivodeoutrasregrassociais,dandoassimfundamentoaumasociologiaespecialdo

direito, este conceito de direito - que representa uma categoria do ser social - seria

qualquercoisaessencialmentediversadoconceitonormativodedireito,queentendeo

direitocomonormae,porconseguinte,vaiconsiderá-locomoumacategoriadodever-

ser. Se entre ambos os conceitos se suscita de alguma maneira uma relação que

justifiqueumaigualdadeterminológica;esteseriaentãooutroproblema.

Deve ser visto como uma falha grave da obra de Ehrlich o fato que sua

fundamentação da sociologia do direito, já no início, deixe de apresentar uma clara

separaçãoentreconsideraçõesdevaloreconsideraçõesderealidade.Ehrlichdizdesejar

estabelecerasociologiadodireitocomoumaciênciapuramente“teórica”,emcontraste

comajurisprudência“prática”,domodoquefoiatéentãodesenvolvida.Elerepreendeu

a falsa jurisprudência por ser “abstrata e dedutiva”. “Como seo espíritohumanonão

pudesse fazermais que criar entidades semalma, quequantomais abstratas perdem

cadavezmaisarelaçãocomarealidade.Assimajurisprudênciaseopõefrontalmentea

todaciênciaautêntica,ondepredominaométodo indutivo,queprocuraaprofundaro

conhecimento da essência das coisas através da observação de fatos e da coleta de

experiências (p. 6). A opinião, ingênua, de Ehrlich é claramente aquela de que toda

ciência pode proceder apenas indutivamente; ele parece ignorar por completo a

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possibilidade de conhecimento científico com método dedutivo. Ele também parece

esquecer,por suaaversãoaabstrações“semalma”,quenenhumconhecimentopode

abdicar de abstrações ou conceitos, os quais, em relação ao fenômeno singular

concreto,devemnecessariamenteser“semalma”.Masnoquedizrespeitoà“relação

coma realidade”, a sua falta nãopode ser uma recriminação contra uma ciência que

desde o princípio não quer ser uma explicação da realidade. O que resulta dessas

afirmações,quenãosãooutracoisaquelugarescomuns,éaideiadequeuma“ciência”

do direito é possível somente como disciplina indutiva e causal-explicativa. Nesse

sentido,serianecessário,semdúvida,pensarumasociologiadodireito,quesurgiriaem

perfeito contraste com uma jurisprudência normativa. Mas é em uma direção

completamentediferentequeEhrlichbuscaaoposiçãodesuasociologiadodireitocom

aciênciadodireitoatéagoradesenvolvida.Estatemconsideradofalsamenteodireito

como“regraparaacondutadostribunaisedeoutrasautoridadesgovernamentais”,ao

passo que a sociologia do direito entende “o direito como uma regra da conduta

universal humana” (p. 9) e só assim põe na base de seu conhecimento o autêntico

“conceitocientíficodedireito” (p.6).Naturalmente,porcontadoduplosignificadoda

palavraregra-regradoserouregradodever-ser -, interessamuitoosentidoemque

Ehrlich emprega essa palavra ambígua. Por toda parte, ele confunde esses dois

significadosumcomooutro,partindodoprincípiogeralsegundooqualumaregrade

condutaseria“evidentemente [?]umaregradeacordocomaqualemgeralnãosóse

age,mastambémsedeveagir”(p.7).Esteprincípioéclaramentefalso!Defato,aquela

regraqueépesquisadadesdeumaconsideraçãocausal-explicativanãoémaisqueuma

regradoser,aqualnãodánenhumaexplicaçãosobreoquedeveser.Aquiloquedeve

suceder, claramente, não está em questão para a consideração causal-explicativa. O

biólogonãobuscaconstatar comodeterminadasentidadesvitais sobcertascondições

devem se comportar, quais são suas obrigações e direitos, mas exclusivamente e

somente como essas normalmente se comportam. E precisamente dessa maneira o

sociólogo-namedidaemqueasociologiaéumaciênciadosercausal-explicativa-pode

somente pesquisar as regras do ser do comportamento humano; e tais regras de

condutainformamtãopoucosobreodever-serquantoasregrasouasleisdabiologia.É

ummododeconsideraçãocompletamentediferentedaqueledirecionadoàsregrasdo

dever-ser, istoé,àsnormas!Seguramente,podehavernormasqueestabeleçamcomo

devido um comportamento que vem sendo praticado normalmente desde sempre:

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comporte-secomoteuscompanheirosdesdesempretêmsecomportado.Sóqueessa

regradedever-sernadaesclarece,nãorevelanenhumnexocausal!Estanormanãoéa

únicanormapossível!E,sobretudo,seriaclaramenteerradoafirmarqueessaéaúnica

normajurídicapossível.Podemexistirnormasdedireitoquetenhamtalconteúdo,mas

semdúvidasexistemoutras!Assim,nocampododireito,regradosereregradedever-

ser são de todo diferentes quanto à forma, mas em parte coincidem quanto ao

conteúdo - e ainda hoje, entretanto, apenas em uma partemuito pequena. Ou quer

Ehrlich seriamente sustentar que considera como válido aindahoje somenteo direito

consuetudinário?

AoseanalisarmaisdepertoocontrastequeEhrlichprocuraestabelecerentrea

suanovasociologia“teórica”dodireitoeajurisprudência“prática”comodesenvolvida

atéagora,percebe-sequeissonãotemumsignificadodeprincípiodequalquerespécie,

e que, pelo contrário, não pode ser definido de modo algum como “contraste”. Até

agora foram analisadas apenas as regras segundo as quais têm se conduzido uma

determinadacategoriade sereshumanos:os juízeseasautoridadesdeoutrosórgãos

estatais.Asociologiadodireito,porém,investigaasregrassegundoasquaistêmagido

todosossereshumanos.Assim,emambososcasos,Ehrlichidentifica,semcerimônias,

as regras da conduta efetiva comas regras da conduta devida.No fundo - se deveria

pensar - a jurisprudência até hoje seria também uma sociologia, não uma sociologia

geral,masumasociologiaparticular,umasociologiadosórgãosestataise-seoEstadoé

identificadocomseusórgãos-umasociologiadoEstado.Oqueépreciso,entretanto,é

umasociologiadodireito,quepossaenunciarasregrasdacondutahumana“universal”.

Queessa condutahumana “universal” não seja a condutadoshomens emgeral,mas

somente a conduta de todos os homens em particular, uma conduta segundo uma

determinadadireção,éevidente,demaneiraque aquiloquedeve ser fundadonãoé

uma sociologia geral, mas uma sociologia do direito. Será analisado posteriormente

como Ehrlich diferencia esta tendência, como sendo “direito”, de todas as outras

tendênciasdacondutahumana.A“condutahumanauniversal”deveevidentementeser

a expressão - muito inadequada - do fato de que o que deve ser estudado não é

somente a conduta dos órgãos estatais. É simplesmente incompreensível, porém, se

Ehrlich, com esta extensão de sua pesquisa para além dos órgãos estatais, pretende

apresentar uma consideração científica (teórica) em oposição à consideração prática

“orientadaparaosórgãosjudiciais”.Écomoseeleidentificasseocontrasteentreregra

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paraacondutadosórgãosestataiseregraparaacondutadetodososhomenscomo

contrasteentreo teórico (científico)eoprático, istoé,ocontrasteentreocausaleo

normativo, entre ser e dever-ser! Se fosse correto que a jurisprudência dominante

pesquisaasregrascombasenasquaisagemosórgãosestatais(e,portanto,devemagir

nosentidodeEhrlich),entãoestaseriaumadisciplinateóricaecientíficatantoquantoa

sociologiadodireitodeEhrlich, aqualpesquisa as regras segundoasquais agemnão

somenteostribunais,mastodososhomens,sobretudoconsiderandoqueestas“regras

da conduta humana universal” não são de modo algum apenas regras do ser, mas

tambémregrasdedever-ser, istoé,normas.Tais“regras”,queaomesmotempovêm

definidascomouma“ordem”“queindicaacadamembropertencenteaumaassociação

a sua posição, seus deveres e a sua supra ou subordinação na comunidade” (p. 18),

portanto, são regraspensáveisem tudoepara tudo comoprescriçõesdedever-ser; e

issoquerdizerquenestaordemsãocumpridas“obrigaçõesjurídicas”.Essasregras,cuja

apresentaçãoéumatarefadajurisprudência“científica”emoposiçãoàquela“prática”e

cuja determinação é a finalidade da sociologia “teórica” do direito, têm assim, ao

mesmotempo,umcaráterteóricoeprático!

Assimcomeçaa“fundamentação”deumanovaciência!

II

Não é fácil escrever uma crítica sistemática de uma obra como Grundlegung der

Soziologie des Rechts deEhrlich, que, de tãoassistemática, é apenas uma reunião de

algunsensaios.Nemsempreum sistemaéumavantageme, às vezes, a faltadeuma

classificação rigorosa - particularmente nos trabalhos de crítica negativa - é uma

facilitaçãopelaqualoleitordevesergrato.Porém,quandosetratadafundamentação

deumanovaciênciadificilmentepoder-se-árenunciaraumaconstruçãoplanejadapara

darfundamentossólidosaosconceitoseprincípiosmaisimportantes,semosquaisnão

sepodefalardeumafundamentação.Infelizmente,otrabalhodeEhrlichdeixamuitoa

desejarnessesentido.Équaseimpossível,nessaresenha,seguiraprópriaexposiçãode

Ehrlich; esta, por vezes, acaba por perder qualquer nexo interno, se repete

continuamente, discute pressupostos importantes em meio a questões especiais e é

interrompidaporlongasdigressõesdehistóriadodireitoqueescapamaotema.

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Naspáginas seguintes sãoanalisados somenteos conceitos fundamentaiseos

problemasprincipaiscomosquaisEhrlichtrabalhaaolongodesuaexposição,noquese

refereàsuaconcepçãodasociologiadodireitocomoumaciênciaquedevedeterminar

pelaviaindutivaasregrasdacondutahumanauniversal.

Umdos resultadosmais importantesdo trabalhodeEhrlichéa compreensão,

na verdade negativa, de que o direito não consiste, como até agora sempre se

acreditou,depreceitosjurídicos.Elenãosecansadeprotestar,damaneiramaisenfática

possível, contra a errônea teoria de acordo com a qual o direito é uma “soma de

preceitosjurídicos”.Antes,porém,deexaminarosargumentosdeEhrlich,énecessário

precisar o que pode ser entender, de modo geral, por “preceito jurídico”. “Preceito

jurídico” é a expressão linguística de um dever-ser jurídico, e neste caso é idêntico à

“norma jurídica”;ouéaexpressão linguísticadeuma regra sobreoqueefetivamente

ocorre, tendo o mesmo significado que uma regra jurídica no sentido do ser. Uma

diferenciação entre “preceito jurídico” e “norma jurídica” não é certamente

aconselhável; essa se dá, porém, quando se entende por norma jurídica somente o

imperativodocomportamentoconformeodireito;epor“preceito jurídico”,poroutro

lado,outrafiguralinguística,porexemplo,asentençaquevinculaumdeterminadofato

a uma consequência jurídica do ilícito. A norma jurídica vem então instituída pelo

preceito jurídico. Talvez seja pertinente, para documentar o uso linguístico geral dos

termos “preceito jurídico” e “norma jurídica”, citar um autor cuja autoridade é

plenamente reconhecida pelo próprio Ehrlich. Gierke assinala, em seu Deutsches

Privatrecht (p. 113): “O direito objetivo [...] é o complexo de preceitos jurídicos. Os

preceitos jurídicos, porém, são normas, que segundo a convicção declarada de uma

comunidade, devem determinar externamente a livre vontade humana de maneira

incondicionada”.Gierke,portanto,identificaopreceitojurídicocomanormajurídica.

Ehrlich,todavia,afirmaque,antigamente,haviadireitoerelaçõesjurídicas,mas

não preceitos jurídicos. O direito, naqueles tempos, se identificava com a “ordem

interna” das associações primitivas. “Preceitos jurídicos gerais são totalmente

desconhecidos entre povos que se encontram em um estágio de desenvolvimento

inferior” (p. 28).Mas o que é essa “ordem interna” das associações sociais? De fato,

comotoda“ordem”,ouéumasomadenormasoudedeterminadasregrasefetivasdas

relações recíprocas dos membros de um grupo, isto é, neste último caso, certa

regularidadedesuacondutarecíproca.Presume-seque,paraasociologia,esteúltimo

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significado do conceito de ordem deva ser decisivo. Dessa ordem interna das

associaçõesprimitivas, queéo seudireito, diz Ehrlich: “(...) estedireito estabeleceos

pressupostos e as consequências de um casamento válido, as relações entre os

cônjuges,entrepaisefilhoseasrelaçõesrecíprocasentreosdemaisassociadosdoclã,

da família, da comunidade doméstica” (p. 22). Essa “ordem”, porém, é algo

completamente diverso de uma regra sociológica do ser! Ehrlich a descreve como

prescriçõesnormativasexplícitas.Masqueoutracoisapodemseressasprescriçõesque

fundamentamvínculosjurídicos,que“determinam”ospressupostosdeummatrimônio

válido,ovínculoentrepaisefilhosetc.,senãonormasjurídicasoupreceitosjurídicos,e

precisamentepreceitosjurídicosgeraisválidosparatodososmembrosdogrupo?Nãoé

talvezaquelaparteda“ordeminterna”,que-parausarasprópriaspalavrasdeEhrlich-

“determinaospressupostoseasconsequênciasdeumcasamentoválido”,umpreceito

jurídicogeralsobrematrimônios,umavezquenãoserefereaummatrimônioconcreto

e singular, mas sim a todos os laços que se quer fazer valer, na associação, como

“matrimônio”?Nestaassociação,nãoéconsideradoummatrimônioofatoconcretoda

ligaçãoentredoissereshumanosseesomentesequandoestecorrespondeà“ordem”

do grupo, e precisamente, à sua ordemmatrimonial? Não há para este fato singular

aquelasconsequênciasjurídicasdeterminadaspelaordemmatrimonial?Ehrlichacredita

quenessesgruposháum“direitocontratual”.“Odireitocontratualrepousaunicamente

sobre o conteúdo dos contratos que são celebrados; inexistem prescrições jurídicas

gerais sobre o contrato; inexistem todas aquelas regras sobre a obrigatoriedade, a

integração e a interpretação do contrato que preenchem o corpus iuris e os códigos

modernos” (p. 23).Claro!Aordemjurídicadocorpus iurisedocódigocivilalemãose

distinguirá naturalmente, em certa medida, do direito “dos tempos primitivos das

populações”. Porém, se, originariamente,umapromessa feitadeAparaB, eporeste

aceita,criavaumarelaçãojurídica,eraumcontratocomefeitosjurídicos,entãosefazia

necessáriopressuporcomoválidoaomenosopreceito jurídicopeloqualadeclaração

detalacordodevontadesdeveriaservinculante.Dequeoutromodosepoderiadefato

falaremobrigaçãoedireito?Se,porém,selimitaaconsideraçãoaoelementoreal,ese

épossível,sobasbasesdessematerialdeobservação,afirmarquetambémantigamente

eramcelebradas, no âmbitodos gruposprimitivos, uniões sexuais duradouras, que se

tornavamcontratosefetivamenteadimplidos,nãoé,portanto,constatadaumaregrado

ser, uma regra jurídica no sentido que Ehrlich desenvolve o conceito sociológico,

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científico, de direito? Há qualquer coisa de diverso de um preceito jurídico, de um

preceitojurídicogeral-istoé,geralnoâmbitointernodogrupo-nosegundosignificado

dotermo“regrajurídica”nosentidodeser?Éprecisorenunciaraqualquerpossibilidade

de compreensãoquandoEhrlich, depois de ter definidoo único conceitocientífico de

direitocomo“regradacondutahumana”,afirmaqueoantigodireitopúblico romano

teriasidoumdireitosemregrajurídica:“TudooqueMommsennosapresentasobeste

título é [...] uma descrição daquilo que, durante a existência do Império Romano, os

órgãosgovernamentaisromanosefetivamentefizeram.Mommsenapresentaumasérie

deprescriçõesjurídicasgerais,masestas,comreduzidasexceções,sãoresultadodeseu

própriotrabalhointelectual;elepróprioasderivoudosfatos;masemRomaelasnunca

foram regras aplicadas aos fatos” (p. 24). Ou: “Tácito conta muitas coisas sobre as

relaçõesjurídicasentreosantigosgermanos,masmesmoumaanálisesuperficialdeseu

relatonosmostraqueelenãoapresentapreceitosjurídicos,masapenasnotíciassobreo

queosgermanosfaziamoudeixavamdefazeremdeterminadassituações”(p.25).Pode

de fatoexistirumaciência“sociológica”dodireito,pelaqualodireitoéumaregrado

comportamentoreal,umdireitopúblicoromanodiferentedaquelequedescreveaquilo

que os órgãos estatais romanos realmente fizeram? Um direito alemão diferente

daquelequedescreveoqueosgermanosefetivamentefizeram?Consisteodireitoem

algumaoutracoisaquenãoessasregularidades,essasregrasdoser?Essasregrasnão

são exatamente aquilo que Ehrlich qualifica posteriormente, enquanto direito “vivo”,

comoobjetoespecíficodajurisprudência?Epodemtaisregrasjurídicasserretiradasde

outracoisasenãodefatos?Essasregrasjurídicassociológicassãodefatoalgumaoutra

coisadiferentedequaisquerregrasbiológicasoumeteorológicas,quesomentepodem

ser abstraídas da realidade efetiva? Seria possível que por “preceito jurídico” Ehrlich

entendaumaregradedever-ser?E,poracaso,elenãoexplicouquetodaaregradeser

é ao mesmo tempo uma regra de dever-ser? Em uma terminologia absolutamente

arbitrária, Ehrlich designa “preceito jurídico” “a regra jurídica estável, expressa em

palavras,queéemanadadeumpoderacimado indivíduoeque lheé impostadesde

fora”(p.22).Eleserefere,evidentemente,ànormajurídicaheterônoma(nosentidodo

dever-ser). Em outro ponto, ele supõe novamente que “o preceito jurídico é a

formulaçãocontingente,geralmentevinculante,deumaprescrição jurídicacontidaem

umaleiouemumtextodedireito”(p.29).Masdesdequandopertenceàessênciado

preceito jurídico o fato de ter de ser necessariamente registrado por escrito? Nos

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tempos antigos, naturalmente, esses preceitos jurídicos não existiam, entretanto é

natural que mesmo o ordenamento jurídico hodierno não consista apenas desses

preceitos jurídicos! Porém, se Ehrlich compreende por “preceito jurídico” uma norma

universalmente vinculante, portanto uma prescrição de dever-ser, não se pode então

entenderoporquêdeeleconsiderarqueodireitoconsiste,aomenosemparte,emtais

preceitosjurídicos.Éentãoodireito,emparte,regradoser,eemparte,prescriçãode

dever-ser?Issoé,todavia,impossível,sedevehaver,emgeral,umconceitounitáriode

direito!Tem-se,porvezes,aimpressãoqueeleconsideraqueoriginariamentenãohavia

nenhumpreceitojurídico“geral”(p.23-24),massomentediferentesordens“internas”,

individualmentediferentes,dosgrupossingulares.Essaordem,porém - seeramesmo

uma “ordem” - deveria necessariamente ser, no âmbito do grupo, uma regra

universalmente válida ou com efeitos universais. Os preceitos jurídicos tinham

precisamenteumâmbitodevalidade limitado.Somentenocursododesenvolvimento

dacomunidadejurídicaessescírculosjurídicosforamampliados.

TambémquandoEhrlichcompreendeoconceitodepreceitojurídiconosentido

denormajurídica,deregradedever-ser,vira-seelecontraoerrôneopontodevistados

juristas de que só se pode falar de relações jurídicas, de negócios jurídicos, etc.,

pressupondonormas jurídicasoupreceitos jurídicos.“Quandoos juristaspensamque,

para estipular um contrato vinculante ou um testamento válido, deve já existir um

preceitojurídico,segundooqualocontratoouotestamentosãovinculantes(atente-se

aquiparaoconceitodepreceito jurídico!),estãoantepondoalgoabstratoaoconcreto

(p.28).Detalmodocometem,segundoEhrlich,umerrológico.“OEstadoveioantesda

constituiçãodoEstado,afamíliaémaisantigaqueaordemfamiliar,aposseprecedeua

propriedade, havia contratos antes de existir um direito contratual e mesmo o

testamento,ondesurgiuespontaneamente,éanterioraodireitotestamentário”(p.28).

Érealmentedifícilacreditarquesejapossívelumaconfusãotãoprimáriaentrerelação

temporale lógica, comoaqueaqui severifica. Jamaisumser racionalafirmouqueas

normas jurídicas devem preceder temporalmente os fatos que são juridicamente

qualificados pelas normas jurídicas! Uma norma jurídica deve necessariamente ser

pressuposta apenas logicamente, para que um fato concreto assuma um significado

jurídico.AcreditamesmoEhrlichquesepossaconsiderarsempressupostosumevento

do ser como, por exemplo, umadeclaraçãode vontade sobreoque fazer com certos

objetosdepoisdamortedodeclarante?Ouquesepossaconsiderarsempressupostoso

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fatodequeaquelamanifestaçãodeveterdeterminadosefeitos jurídicos?Acreditaele,

seriamente, que a qualidade “lícito” e “ilícito”, obrigaçãoe autorização, são inerentes

aoseventosdosercomoocalorouacor?Que juízosobjetivosdevalorousignificado,

comoosãoaqueles jurídicos, sejampossíveiscomumameraobservaçãodarealidade

efetiva?Écompletamentesemsentidodizerquehácontratosainda“antes”deexistir

umpreceito jurídicosobrecontratos, seo“contrato”éumfato realdosernomundo

externo e o preceito jurídico acerca dos contratos uma norma, um pressuposto de

consideraçãonopensamentodequemvaloraeste fato.É semsentidoafirmarquehá

contratos “vinculantes”, istoé, que sepudesse conceberumcontrato vinculante, sem

pressupor tambémumanormaquevincula certasobrigações à condiçãodaexistência

de um acordo expresso de vontades, que institui um dever a quem declara a sua

vontade. Quando Ehrlich, com soberbo desdém, grita aos juristas “que não são de

preceitosjurídicos,massimdasrelaçõesdoshomens,domatrimônio,docontratoedo

testamento, quenascemdireitos”, um tãoabsolutoequívocoacercada relação lógica

entre norma jurídica e fatos concretos só pode deixar um teórico do direito

desconcertado. Por que, em todo o mundo, alguém é juridicamente obrigado a dar

aquiloquejuridicamenteprometeudaraoutrapessoa?Istoé,porquedevealguém,em

razão do direito, comportar-se de um determinado modo? A questão é aquela do

fundamento cognitivo deste juízo de dever, não de uma causa temporalmente

precedente.Somenteporqueesomentequandoapromessadadaeaceitavempensada

como condição de um dever, de uma obrigação, é esse um contrato vinculante. E tal

dever não pode de fato ser percebido como um fato do ser - como fato contratual -

tampoucoserinferidodeumjuízodeser.Somentesepressuponhoumaproposiçãoque

afirmaqueemdeterminadascondições,determinadaspessoasdevemsecomportarde

um determinado modo, somente, então, pressupondo uma norma, posso alcançar a

afirmaçãodeumaobrigaçãoe,assim,ahipótesedeumcontratovinculante.Épossível

que ainda seja preciso dizer tais obviedades? Tem-se o cúmulo da confusão, porém,

quando Ehrlich, contra a concepção oposta por ele sobre a relação entre preceito

jurídico e situações fáticas juridicamente relevantes, argumenta com ênfase ao final

que: “fenômenos sociais não podem ser explicados pelo fato de serem juridicamente

construídos”(p.28).Naturalmentetaléimpossível,masquandoajurisprudênciaesteve

tãoperdidaapontode“explicarfenômenossociais”comarelaçãológicaentrepreceito

jurídico e situação fática? Se por “preceito jurídico” se deve entender, como é usual,

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todanormajurídicauniversalmentevinculante,entãoé logicamente impossívelpensar

asrelaçõesjurídicassempressupor(logicamente)essespreceitosjurídicos.Naverdade,

aterminologiadeEhrlichseafastasubstancialmentedaterminologiausual.Oconceito

depreceito jurídico,quenaobradeEhrlichserevestedetal importânciaquefazcom

que seu trabalho quase ganhe o aspecto de uma teoria normativa - as noções mais

importantesserelacionamaesseconceito -,mostra-seaquiobscuroeoscilantecomo

nunca. Ele sublinha o fato que “normas jurídicas e preceitos jurídicos não devem ser

confundidos. Um preceito jurídico é a formulação contingente (?), geralmente

vinculante,deumaprescriçãojurídicacontidaemumaleiouemumtextodedireito(p.

29).Naturalmente,normasjurídicascodificadasouemtextosdedireito, istoé,fixadas

porescrito,existemapenasemumestágiodedesenvolvimentosocialmuitoadiantado.

Mas alguém já terá colocado isso emdúvida? Resulta a grande descoberta de Ehrlich

nestatrivialidade,dequenostemposantigosnãohaviapreceitos jurídicos?Háquese

recusar apensar assim,no interessedaobradeEhrlich. Porpreceito jurídico também

não se pode compreender as frases gramaticais de uma lei ou de um código,mas tal

conceito não teria absolutamente nenhum significado dogmático! O que é então um

“preceito jurídico” no sentido de Ehrlich? “Uma norma jurídica”, que precisa ser

distinguidadeumpreceitojurídico,“éocomandojurídicotransformadoemação,como

aconteceemumdeterminadogruposocial,eventualmentemuitopequeno,mesmosem

possuirqualquerformulaçãoverbal”(p.30).Bem,umanormajurídicaéum“comando

jurídico”;masnoquesedistingueum“comandojurídico”deuma“prescriçãojurídica”-

expressãocomaqualvemqualificadoopreceitojurídico?Ocomandojurídicodeveser

“convertidoemação”para se tornarumanorma jurídica. E seanorma jurídicanãoé

observada - isto é, se não é convertida em ação - não terámais o caráter de norma

jurídica? O que significa “sem formulação verbal”? Não deve todo comando jurídico,

todaprescrição jurídica,poder ser formuladaverbalmente?Comopoderiamentão ser

comunicadas as prescrições jurídicas e os comandos jurídicos se não verbalmente? É

evidente,portanto,quenãonecessitamserregistradosemcódigosoutextosdedireito.

Se preceitos jurídicos “se tornam realmente efetivos, dos preceitos jurídicos derivam

tambémnormas jurídicas”.Aquiédifícilentenderalgumacoisa,mesmocomamelhor

das vontades! “Em qualquer sociedade hámuitomais normas jurídicas que preceitos

jurídicos, porque sempre há mais direito para relações específicas que para relações

típicase tambémexistemaisdireitodoqueos juristas tomamconhecimento,quando

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procuramfixá-loempalavras”(p.30).Certo,mascomopodeserpossívelum“direito”

paraumarelaçãosingular,seodireitoéumaregra?Paraquesepossafalaremdireito,

não necessitam ser determinadas da mesma maneira todas as relações semelhantes

dentro da comunidade jurídica? Que outro significado teria a “ordem interna” das

associações sociais, que Ehrlich contrapõe aos preceitos jurídicos gerais, senão que

determinadas relações típicas devem ser tratadas de igual forma no interior da

associaçãosocial?Dessa“ordeminterna”,quenãoconsisteempreceitosjurídicoseque

édireitoantesmesmodaexistênciadepreceitos jurídicos,entreoutrascoisas,Ehrlich

dizque“determinaospressupostoseasconsequênciasdeummatrimônioválido”.De

umúnicomatrimôniooudetodososmatrimônioscontraídosnaassociaçãosocial?Há

aqui um “direito” para uma “única” relação ou para “todas as relações típicas”? Em

outropontodaobra,Ehrlichdizamesmacoisa:“Umfatoqueseverificaisoladamente

na sociedade não é um fato social. (...) Somente quando (...) se generaliza torna-se

elementoconstitutivodaordemsocial”(p.96).Hámaisnormasjurídicasquepreceitos

jurídicos,dizEhrlich,poishámaisdireitodoqueosjuristassedãoconta,quandoesteso

formulamverbalmente!Masondeentramaquios juristas,oque têmaver com isso?

Umaprescrição jurídicanãoésempreumpreceito jurídico,mesmoquandoformulada

verbalmenteporumnão jurista?Podehaverumdireitodecujaexistêncianinguémse

dê conta, que ninguém formule verbalmente, mais especificamente: que não seja

possível formular verbalmente? Mas o que se deve pensar de toda a distinção,

fundamental à obra de Ehrlich, entre preceito jurídico e norma jurídica, se ele, nas

páginas 22 e 29, explica que o preceito jurídico é formulado verbalmente,

diferentementedanorma jurídica;napágina132,paradistinguir anorma jurídicadas

outras normas, explica: “Por outro lado, a norma jurídica, ao contrário das outras

normas, pode ser sempre expressa em termos claros e precisos. Com isso ela confere

estabilidadeàsassociaçõessociaisquesãobaseadasnanormajurídica[...]Tambémas

normasdamoral,dobomcomportamentoeda retidão transformam-se,àsvezes,em

normas jurídicas, tão logo perdem seu caráter genérico e são formuladas em termos

claros”? E que ideia se pode fazer do “preceito jurídico” de Ehrlich quando ele, na

página 39, diz que este consiste em uma “prescrição jurídica” qualificada; em outra

parte, diz que o “ordenamento jurídico” vinculante consiste, pelo menos em parte,

desses“preceitos jurídicos”;enapágina138, identificaoconceitodepreceito jurídico

comaqueledeleiformal,desautorizandoasipróprioecolocandodepernasparaoar,

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assim,aterminologiadominante?“Osconteúdosmaisdiversospodemserapresentados

na forma de preceitos jurídicos, e na forma da lei em particular. Há, assim, preceitos

jurídicos sem conteúdo normativo, com conteúdo legislativo não vinculante, leis no

sentidoformal”.Aquitodaacríticaéimpossível!ÉsemigualousoqueEhrlichfazdestes

conceitos, fundamentais ao seu sistema.Elediz, napágina30,queanorma jurídicaé

direito para uma relação singular (ao contrário do preceito jurídico, que valeria “em

geral” para “relações semelhantes”),mas já na página seguinte, ele define as normas

comocomandoseproibições “abstratos” eafirmaqueàessênciadanorma -oqueé

absolutamente inconcebível -pertenceriaofatoque“essase refereàconvivênciados

sereshumanos”:peloqueasregrasdelinguagem,asregrasdegostooudehigienenão

seriamnormas!4

4Juntoaosconceitosde“normajurídica”ede“preceitojurídico”,Ehrlichtambémdiferenciaas“normasdedecisão”, caracterizando como a primeira e mais importante tarefa da ciência sociológica do direito“estabelecer uma distinção entre os elementos do direito que regulam, ordenam e determinam asociedade,demonstrandoasuanaturezaorganizatória,dasmerasnormasdedecisão”(p.33).Infelizmente,dadooespaçoquedisponho,tenhodeabrirmãodeumaanáliseextensadaquelapartedaobradeEhrlichquetratadesta“primeiraemaisimportantetarefadaciênciasociológicadodireito”.Emmeioaestenovelodecontradições,melimitoachamaraatençãoparaamaisgrosseiradelas.Anormadedecisão,comaqualdeveserdecididaumacontrovérsiajurídica,decorredaviolaçãododireito,contrapõe-se,segundoEhrlich,àregradedireitovivaeefetivanasociedade segundoaqualoshomens,emgeral,atuamefetivamente (p.33).Anormadedecisão(p.98),porém,éumaregradeacordocomaqualostribunais-desdesempreumaparte importante, ainda mais para a sociologia do direito, da sociedade humana - não somente devematuar,masdefatoregularmenteatuam!EmEhrlich,portanto,aregularidadesociologicamenterelevantesedetémdiantedostribunais!Asnormasqueostribunaisaplicamatravésdomaispotenteaparatocoercitivonão representam, para Ehrlich, nenhuma realidade viva! Para ilustrar a oposição fundamental existenteentre a regra do direito vivo e a mera norma de decisão, Ehrlich cita o seguinte exemplo: “Se emdeterminadaregiãoexistearegradequeohomempodedispor,semrestrições,dosbensdamulher,umadecisão tomadapelohomemcomrespeitoaosbensdamulheréconsideradapor leivinculante [estaéanormadedecisão],independentedenarespectivafamíliaservigenteounão[aregradodireitovivo!]”(p.100).Pode-sequestionarcomoodireitodeumafamíliaconcretapossaestaremcontradiçãocomodireitohabitual de uma região, porém, é desde logo inconcebível que a norma de decisão, isto é, segundo ospressupostosdopróprioEhrlich,umaregraefetivaemumâmbitoimportante,outomandooutroexemplo,“aquiloquenaquelepaísédeusogeral”(portantodeformaalgumauma“mera”regradotribunal),devarestar em contraste com as regras vivas, que regulam efetivamente a sociedade! Do mesmo modo, éincompreensívelqueEhrlich sustentequea “nova”normadedecisão, caracterizadaemoposiçãoà regravivadodireito,seja“extraídadaordeminternadosgrupossociaispelojuizemcadaprocesso”,“dosfatosdodireito”,istoé,daordemjurídicanosentidoderegravivadaação,emquebaseia“emprimeiraanálise”cadanormadedecisão(p.98).ÉemabertacontradiçãocomquerecémfoiditoqueEhrlichafirmasobreanormadedecisãoque“ésemprealgodiversodaordeminterna”(p.99),porquearelaçãocontroversaqueéresolvida pela norma de decisão não é aquela pacífica; verifica-se ainda uma inversão completa dadicotomia apresentada quando Ehrlich (p. 102) afirma que nas normas de decisão não se supõe ”umaordem viva,mas sim controvérsia jurídica sobre uma ordemmorta”: ele, de fato, caracteriza a regra decondutaviolada(deumaviolaçãosingular,queEhrlichemoutrocontextoquerquesejatratadacomoumaexceção sem maior importância!) como ordem morta, enquanto havia contraposto em princípio essaordem, como regra viva, à norma de decisão. Embora Ehrlich contraponha - demaneira completamenteinfundada - a norma de decisão à norma jurídica propriamente dita como uma regra de aparece“criativamente”,ouseja,atravésdainvençãolivredoindivíduo-todanormajurídica,emúltimainstância,nascedessaforma-voltaaafirmaremoutrapartedotextoquetalnormatemdeser“extraídaapartirdeumprincípiogeral,nãoderivadademodoarbitrário”(p.98).Ehrlichafirmanãosóqueanormadedecisãoéanormaatravésdaqualsedeterminaaconsequênciadainfraçãoouaobrigaçãoderepararodano,assim

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Caso se tome Ehrlich ao pé da letra e se aceite a sua definição conceitual -

qualificadadesdeoiníciocomoumadefinição“científica”-dodireitocomouma“regra

dacondutahumana”ecomouma“ordem”,entãoodireito, istoé,cadaordenamento

jurídico,devenecessariamenteserumcomplexodenormas.Noentanto,encontra-sena

página 68 a afirmação de que “o direito não consiste de preceitos jurídicos,mas sim

consiste de instituições jurídicas”. De certo ponto de vista, porém, poderia o direito

consistir contemporaneamente de preceitos jurídicos, ou seja, de regras jurídicas (no

sentidododever-seroudoser),esimultaneamentenasinstituiçõesjurídicas,namedida

emque por “instituição jurídica” ou instituto jurídico não se entenda outra coisa que

não uma soma de preceitos jurídicos cujo conteúdo se refere a um mesmo escopo,

conforme a terminologia dominante. Entre as “instituições jurídicas”, Ehrlich cita o

Estado,aIgreja,acidade,afamília,apropriedade,aherança.Deixe-sedeladoaquestão

desabersetodosestesconceitosvãoefetivamentesubsumidosnomesmosentidosob

a categoria de instituições jurídicas. Propriedade, família, contrato, herança são sem

dúvidainstituiçõesjurídicas.Masoqueaparecesobessas“instituiçõesjurídicas”?Essas

são consideradas (do ponto de vista do observador) como fatos ou eventos físicos e

psíquicos no mundo externo ou são significados que, com base em certas normas

pressupostas,vêmadscritosataisfatosoueventospeloobservador.

DizEhrlich,comrazão,tendoemvistaevidentementeoconceitonormativode

direito: “direito e relações jurídicas são um coisa ideal que não existe na realidade

tangível eperceptível pelos sentidos,mas somentena cabeçadaspessoas” (p. 68). Só

que, precisamente, a realidade não é a simples realidade física, perceptível com os

sentidos externos, mas também uma realidade psíquica, perceptível com os sentidos

internos. O direito e as relações jurídicas, evidentemente, não são nem sequer essa

realidadepsíquicanomundoexterior(dopontodevistadoobservador),porquesenãoa

jurisprudência seria um ramo específico da psicologia. A afirmação de que um fato é

ilícitooudeque“A”estáobrigadoaalgonãoconstituemum fato físiconemum fato

psíquiconomundoexterior(daquelequeafirma);nãodizemnadaarespeitodeseum

como afirma que a decisão segundo a qual um fato concreto é compreendido dentro de um preceitojurídico (por exemplo, que um dado objeto constitua um “acessório”) tem como base uma norma dedecisão.Aqui falaEhrlichdenormasdedecisão“concretas”emoposiçãoàs“abstratas”.A seguir,Ehrlichapresenta como um importante conhecimento sociológico a tese que sustenta que a maior parte dos“preceitos jurídicos”advémde“normasdedecisão”, sendoaqui,asnormasdedecisãoo“concreto”queprecedeo“abstrato”dopreceitojurídico.Oquefoiexpostoatéagorabastaparajustificaraimpressãodeque é praticamente impossível ter uma ideia aproximada do que Ehrlich compreende por normas dedecisão,tendoemcontaoimportantepapelqueestastêmnasua“fundamentação”.

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determinadoatomentaltemlugarnomundoexterior.“A”estáobrigadoaalgo,masele

nãoapensa,nãoasenteenemaquer!Oquevemaquiafirmado,portanto,nãoéde

jeitonenhumumser,nemumserfísiconemumserpsíquico(nomundoexterior),mas

sim um dever-ser; isto é, o que se afirma é um fato típico mental ou físico como

conteúdodeumdever-ser,deumanormapressupostacomoválidaporaquelequefaza

afirmação.Significaissoenadamaisdizerqueodireitonãoéperceptívelsensivelmente,

que é uma coisa ideal.Quando Ehrlich, então, acrescenta que “nãohaveria direito se

nãoexistissempessoascoma ideiadodireito”, tambémistoestácerto,nosentidode

que não haveria pensamento se não fossem os homens seres pensantes: um fato

psicológicoquesemdúvidanãoérelevanteparaoconhecimentodaessênciadodireito.

É um enigma, porém, quando Ehrlich, na frase seguinte, diz exatamente o contrário

daquiloquehaviaafirmadologoantes.Elehaviaacabadodedizerqueodireitoéuma

ideiaquenãotemporconteúdonadadesensivelmenteperceptível;agora,porém,diz:

“Comoocorreemoutrasáreas,tambémaquiasnossasideiassãomoldadasapartirde

matéria que tomamos da realidade tangível, perceptível com os sentidos”. O que se

pode dizer de uma afirmação do gênero? E, então, ele ainda continua: “Na base das

nossasideiasestãosemprefatosquepudemosobservar.Estesfatosdevemterexistido

antes que a ideia de direito ou de relação jurídica começasse a aflorar no cérebro

humano”.Issoquerdizerqueasnossasideiassão“fundamentadas”emfatos?Existem

ideiasarespeitodefatoseideiascujoconteúdonãoénuncaumfato.Asideiasdebeme

demalnãosãofatos,aaçãoéumfatoaoqualéaplicadaaideiadebemoumal.Seo

direito fosse um fato ou o conceito de direito fosse umaabstração de fatos, então o

direito não seria uma mera “coisa ideal”, mas seria sensivelmente perceptível,

observável! “Emesmo no presente precisamos ter diante de nós determinados fatos,

parapodermosfalardedireitoederelaçõesjurídicas”.Issopodeestarcertoenquantoo

direitoearelaçãojurídicapuderemserafirmadosdeumfato,istoé,enquantoseafirma

queháumarelaçãoentreumfatoeumanorma jurídica.Contudo,anorma jurídicaé

direito tambémem si e ainda que sem relação comum fato concreto. Porém, o fato

nuncaédireitoourelaçãojurídica,poisenquantoseréemsiindiferenteaosvalores,é

semsignificadocasonãocolocadoemrelaçãocomumanorma,ouseja,comumvalor

objetivo. Em termos mais precisos: na medida em que algum fato jurídico venha

pensadonaformadodever-serenãonaformadoser.Portanto,quandoEhrlichdizque:

“Éaqui” [istoé,nos fatos]“quedevemos,portanto,procuraraoficinadodireito”,ele

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nãoapenasestáfundamentalmenteerrado,mastambémemdiretacontradiçãocoma

concepção aceita algumas linhas antes - mas, evidentemente, completamente

incompreendida. E ainda quando Ehrlich acrescenta, como resultado desta

argumentação totalmente errada, segundo a qual “a questão fundamental da ciência

jurídica” é verificar “quais as instituições reais que no decorrer do desenvolvimento

histórico se transformam em relações jurídicas e quais os processos sociais que

conduzem a isso”. Posta dessa forma, esta questão não pode ser respondida, pois

simplesmentecarecedesentido.Paraumaconsideraçãointeressadanafacticidade,por

conseguinte, existem apenas fatos, realidades efetivas, e nenhum valor. Para o

conhecimento,nenhumdesenvolvimentopodefazerumarealidadetornar-sevalor,pois

ovalorexisteporumatendênciacognitivadiferentedaquelaqueserefereàrealidade

efetiva. Não uma ciência jurídica - que deve tratar sobre o certo e o errado, sobre a

obrigaçãoeaautorização,ouseja, sobrenoçõesvalorativas -mas simumapsicologia

social explicativa - que há de lidar somente com os dados perceptíveis da realidade

efetiva, com os fatos - pode levantar o problema de como certas representações de

dever-ser - certas normas - resultam de fatos psíquicos. Talvez uma psicologia social

explicativapossa-comoseumaisimportanteargumento-levantaraquestãorelativaàs

causas pelas quais seres humanos de um grupo determinado e de um determinado

período avaliam efetivamente de um determinado modo, e especialmente, avaliam

tambémjuridicamente.Talsociologianãoteriadelidarcomosvalores,comavaloração

por parte dos seres humanos; não seria uma ciência valorativa, mas explicativa de

valores.Paraessaciênciaemparticular,odireitonãoéumanormapressupostacomo

válida,nãoéumvalorobjetivo,maséumeventoreal-emsiindiferenteaosvalores-,

um determinado comportamentomental e físico dos seres humanos considerado em

suaregularidade.Oseuobjeto,arigor,nãoéodireito,masopensamentododireito,o

sentimentoeavontadedodireito,eaquiloqueoshomenspensamdodireito,eapartir

disso o que fazem ou deixam de fazer. Tal modo de consideração nunca leva a

julgamentos a respeito daquilo que é lícito ou ilícito, que deve ou não deve ser,mas

sempreeapenasajulgamentosdeacordocomosquaissãopensadososfatos,ouseja,

o que é ou foi. O conhecimento de tal consideração sociológica é avalorativo, como

aqueledabiologia.Adiferençaentreestasociologiaeaciênciadodireito (nosentido

normativo)éamesmaqueháentreumahistórianaturaldasideiasmoraisdoshomens

eumaéticadogmática,ouentreumahistóriadasreligiõeseumateologia.Aespantosa

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confusãodeEhrlichderivaprecisamentedenãotersabidosepararessesdoismodosde

consideração,deque,seatendoconstantementeaoconceitonormativodedireito,ao

pontodevistadavaloraçãocientífica,tendeaumaexplicaçãosociológicadoser,queé

característicadeumaconsideraçãoexplicativa.

III

Ehrlichconsideraumimportanteresultadodesuainvestigaçãodesociologiadodireitoo

queelechamade“fatosdodireito”.Oquesedevecompreenderporestetermo?Estes

devemseraqueles fatos “comosquaisoespíritohumano relacionaas regras”, regras

nasquaisserepresentaaorganizaçãodosgruposhumanosemassociações;regrasque

“indicam a cada indivíduo sua posição e suas tarefas dentro da associação”. E aqui

tambémé incompreensível o que ele quer dar a entender quandodiz queuma regra

está“conectadaaumfato”(p.68-69).Parecequecomissonãosepodecompreender

outra coisaquenãoa ideiadequeuma regra se relacionaaum fato comoobjetoda

regulação.Osfatosdodireitoseriam,portanto,osobjetosdaregulaçãojurídica.Entre

estesfatos,Ehrlichcita“ohábito,apropriedade,aposseeadeclaraçãodevontade”(p.

69).

A “prática”, segundo Ehrlich, deve, no fundo, ser diferente do direito

consuetudinário; prática significa, aqui, que “o que foi realizado até agora deverá se

transformaremnormaparaofuturo”.Masodireitoconsuetudinárioésemdúvidaesta

“prática”! “Éatravésdapráticaqueseestabeleceaposiçãodo líder,dosórgãos,bem

comodosmembrosdaassociação (sua super-ou subordinação), alémdas tarefasdos

indivíduos.” No fundo, então, a “prática” deveria ser o único fato do direito pois, há

algumas linhas atrás, Ehrlich definiu como fatos do direito aqueles fatos que vêm

relacionadosàsregrasque“indicamacadaindivíduosuaposiçãoesuastarefasdentro

daassociação”(p.68).Tambémnãosepoderiacompreendera“prática”,assimcomoa

posse ou o contrato ou uma relação de propriedade, como um “fato do direito” no

sentidodeobjetodaregulação.A“prática”é,destaforma,aregramesma,ésomente

umoutrotermoparadizerqueumfatoserepeteregularmente.Posse,contrato,relação

de propriedade estão em uso, são “praticados”, isto é, se repetem regularmente,

tornam-seoconteúdodeumaregra,masnãoapráticaemsimesma.Seasrelaçõesde

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propriedadeoudeposse,assimcomoasdeclaraçõesdevontade,podemsetornarfatos

jurídicos,apartirdemerosfatos,issoacontecesomenteatravésdaprática;naspalavras

de Ehrlich, “o que foi realizado até agora deverá se transformar em norma para o

futuro”.Ditodemaneiramaisprecisa:oquevemsendopraticadocomregularidadese

torna conteúdodeuma representaçãodedever, deumanormaqueexigeaquiloque

deveser.Eésobopressupostodesemelhantenormaqueosfatosdodireito,osfatos

determinados na norma, podem se tornar juridicamente relevantes. Nesse sentido, a

práticaéaviapelaqualosfatostornam-sefatosdodireito.Aprática,porém,nãoéum

fatododireito!

Tem-se a impressão de que Ehrlich entendeu por “prática” o exercício de

relações de dominação determinadas, isto é: a super- ou subordinação na associação

socialeaposiçãodosórgãosdaassociação.Masalisetrataclaramentederelaçõesde

dominaçãoededeclaraçõesdevontade-assim,outrosdoisfatosdodireito,nosentido

de Ehrlich - que como todos os outros, tornaram-se conteúdo de normas através da

prática!ÉemvãtentativadesairdessaconfusãoconceitualqueEhrlichdiz:“asrelações

dedominaçãoedesujeiçãodevemserclaramentedistinguidasdascondiçõesdesuper-

esubordinaçãopresentesemqualquergruposocialorganizado,asquaissãoexpressão

daordeminternadaassociação”.Nareformulaçãodeconceitosedistinções,Ehrliché

pior que seus piores inimigos! Uma organização do grupo social com super- e

subordinaçãonãoéentãoumaorganizaçãode“dominação”? Eassociações investidas

de autoridade não constituem nenhuma relação de dominação? Qual é a diferença

entre dominação e super- e subordinação? “O comando pronunciado pela

superordenação organizatória difere do comando pronunciado em virtude da

dominação.Oprimeiroéemanadoem interessedogrupo,aopassoqueosegundo,é

emanadoeminteressepessoaldequemcomanda”(p.71).Certo,masdeumpontode

vistasociológico,nãosãotalvezambososcomandosrelaçãodedominação,namedida

emquesãoexecutados?

Ehrlich distingue dois tipos de relações de dominação: “as que decorrem de

relações familiares - como a sujeição dos filhos à autoridade paterna, da mulher à

autoridadedomarido -eas relaçõesdesujeiçãodeorigempuramentesocial, comoa

escravidãoeaservidão(p.71).Masentãoafamílianãotemcarátersocial,easrelações

de dominação que nascem daí não têm também uma origem “puramente social”? A

distinçãoresidenofatodequecertasrelaçõesdedominaçãoedeexploração,casose

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mantenhamentrepessoasdamesmafamília,sãomitigadas,emfunçãodasrelaçõesde

naturezasexual.Esteéofatoqueseriaobjetodeumaanálisesociológica,ocontraste

entre tendências econômicas e sexuais, ainda que, a rigor, não propriamente de uma

análisedesociologiadodireito.Éalgoóbvioquecertasrelaçõesreaisdedominaçãose

apresentamnaconsciênciahumana,pormeiodouso,comodevidas,ouseja,tornam-se

conteúdo de normas. Ehrlich está errado, entretanto, quando imputa à concepção

dominante a ideia, de todo inconcebível, de que primeiro existiam preceitos jurídicos

queteriamregidocertasrelaçõesdedominaçãoedequesomentedepoistaisrelações

teriam sido formadas, em funçãodospreceitos jurídicos: “Na realidade, é geralmente

aceito que sejam preceitos jurídicos a submissão da mulher ao homem, dos filhos à

autoridadepaterna,dopupiloaotutor,doescravoedoservoaosenhor.Masháuma

relaçãodedominaçãoesujeiçãoque,emtodososcasos,antecedeuopreceitojurídico

que a regula como um elemento da ordem jurídica” (p. 71). Aqui, novamente, a

grosseira confusão entre o pressuposto lógico da norma jurídica e a precedência

temporaldeumfato!Paraexplicararelaçãoentrepaiefilho,senhoreescravo,como

relação jurídica, deve ser necessariamente pressuposta idealmente uma norma (de

alguma forma surgida)por aqueleque realiza tal juízode valor jurídico. É issoenada

mais que significa “atribuir as relações de dominação e submissão [...] a prescrições

jurídicas [...].”Esta concepçãoda“teoriadominante”é inteiramenteconciliável como

fatoóbvio,atéagoranãocolocadoemdiscussãoporninguém,quejáexistiamrelações

de dominação antes de se formarem normas sobre essas relações de dominação na

consciênciadossereshumanos!

Tambémasnoções sociológicas identificadasporEhrlichnoquediz respeitoà

posse como um fato do direito são obviedades jamais colocadas emdúvida. Nenhum

historiador do direito e da economia duvida do fato de que a propriedade como

instituto jurídico, isto é, as normas jurídicas assim designadas como propriedade

surgiram na consciência dos homens mais tardiamente que o fenômeno do domínio

sobreascoisas,emoutraspalavras,queéaposseenãoapropriedadeoinstitutomais

originário(p.76).Etambémnãofoijamaiscolocadoemdúvidaqueasnormasjurídicas

das quais pode ser abstraído o conceito jurídico romanístico de propriedade não

surgiram prontas e acabadas do nada no início domundo e nem sequer no início da

evoluçãojurídica.EtampoucoéverdadeirooqueEhrlichafirma:“Aindahojeateoriado

‘domínio absoluto sobre a coisa’ é apresentada, prevalentemente, como se nela se

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esgotassetodooconteúdodapropriedade,comosenãoexistisseodireitoflorestalouo

direito das águas, o direito dasminas ou o direito agrário, os regulamentos edilício e

comercial” (p. 81). É certamente legítimo questionar se o conceito romanístico de

direito de propriedade possui ainda sentido, considerando os conceitos do direito

administrativo, mas não se trata de um problema sociológico, mas de formação

normativadosconceitos.Etampoucoéjustificável,combasenaexposiçãodeEhrlich,a

seguinteasserção: “Emqualquer lugar,portanto, aposse se transformanuma relação

jurídicaemfunçãodeseuenquadramentonaordemeconômica”;seriacomodizer,na

verdade,queaordemeconômicaéomesmotempoumaordem jurídica.Nãodeveria

ser segredo para ninguém que são econômicos aqueles fatos que conduzem ao

surgimentodenormasjurídicasacercadaposse,masapenassobopressupostodetais

normasdedireitoaposseéumarelação jurídica.Ora, seriacertamenteumproblema

interessantemostrar,atravésdematerialhistóricodeumacomunidadesocialconcreta,

onascimentodetaisnormas jurídicas.Disso, infelizmente,nãoseencontraemEhrlich

nenhumrastro.

Ehrlichapresentaumesquemadedesenvolvimentodadeclaraçãodevontadee,

especialmente,docontrato,quepodesercaracterizadocomoumaconstruçãonemde

longe embasada em material indutivo. Em todos os lugares do planeta em que se

chegouaopontodesecontarcomnormassobreocontratonoordenamentojurídico,o

desenvolvimento deve necessariamente ter se dado da seguinte forma: “No

desenvolvimento do acordo até a sua transformação em fato do direito, deve-se

distinguir os seguintes estágios: o contrato de execução instantânea, o contrato com

efeitosobrigacionais,ocontratocomefeitosreaiseocontratodecrédito” (p.87).Tal

desenvolvimento é possível, mas Ehrlich não oferece nenhuma evidência para

demonstrar que isso realmente ocorreu desse modo. Ele se reporta aos “resultados

reconhecidos pela ciência do direito comparado e pela história do direito” (p. 89). A

propósito da relação entre débito e responsabilidade (aqui não é possível aprofundar

umacríticadestaconceptualização,nãomuito feliz,dodireitoalemão),dizEhrlich:“O

débito é o dever do devedor; é aquilo que, segundo as regras da vida, vale como

conteúdodeumaobrigação; a responsabilidadeéodireitodeexecuçãoquepossui o

credor para obter o adimplemento,mesmo contra a vontade do devedor; de simples

fato,oacordosetransformaemfatododireitoe,portanto,emcontrato,mesmoquedo

convencionado resulte apenas a dívida e nenhuma responsabilidade” (p. 84). Ehrlich

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destaca que “o que conta para a vida econômica é, sobretudo, o débito, não a

responsabilidade, jáquenagrandemaioriadoscasoséquase indiferentesaberseum

contratopodeserlevadoajuízoounão,poissepodeesperaroseuadimplementocom

basenasregrasdacondutahumanaquedominamavida”(p.88).Efinalmenteconstata:

“Torna-se, por isso, necessário deixar claro que não só na história, mas também no

direitovigentehá,alémdosacordosqueseencontramcompletamenteforadodireito,

os contratos que representam um débito, mas não uma responsabilidade, que

introduzemumaregrapelaqualaspessoasorientamsuavida,masnãoumaregrapela

qual procedem as autoridades; e que estes contratos têm para a vida econômica a

mesmaimportânciaqueoscontratosquepodemserlevadosajuízo”(p.80).5

Diante de tudo isso, há uma questão que precisa ser levantada: como se

distinguem aqueles contratos “que se encontram completamente fora do direito”

daqueles que ensejam uma obrigação,mas não uma responsabilidade, no sentido de

que sua violaçãonãoproduz uma reação específica por parte da comunidade jurídica

(ou uma reação daquela comunidade específica)? Cada acordo - também aquele não

jurídico-,namedidaemque,deumamaneirageral,vempressupostocomovinculante,

importa em uma obrigação, no sentido de que as partes acordantes devem se

comportaremconformidadecomoacordo.Estedever-serpodeserumdever-sermoral

ouumdever-serdocostume,conformesepressuponhaumanormadamoralouuma

norma da educação. Quando, porém, é jurídico um contrato, quando o dever é um

deverjurídicoeodébitoumaobrigaçãojurídica?Qualéocritériodessajuridicidade,a

nãoserapossibilidadedeumaespecíficareaçãopelacomunidadejurídicaorganizada,a

não ser a “responsabilidade” no sentido da terminologia de Ehrlich, que identifica

responsabilidade e executoriedade? Quem põe em dúvida que os contratos que não5Indubitavelmente,aposiçãodefendidaporEhrlich,segundoaqualnodesenvolvimentododireitoalemãooscontratosteriamoriginalmenteestabelecidoumdébitoenãoumaresponsabilidade,écompletamenteenganosa. Amira (em sua resenha à obra de Gierke, Schuld und Haftung, na Zeitschr. für Rechtsgesch,v. XXXI, p. 486) chamou a atenção para o fato que a distinção entre débito e responsabilidade ésimplesmente “uma distinção lógica”, que é um equívoco sustentar que débito e responsabilidade se“desenvolveramconjuntamente”nocursodaevoluçãohistórica.ESchwerindiz(DeutscheRechtsgeschichte,p.57,nota6): “nãosepodeespecularqueemalgummomentoodevedornão fosse também,emregra,responsável”. Se “débito” significa dever jurídico, então só se pode falar de um débito onde contra aviolaçãodessedeverháapossibilidadedereaçãodacomunidadejurídica,ondecontraestaviolaçãopossaser levada a cabo uma execução da obrigação mesmo contra a vontade do devedor. É completamenteerrôneo identificar - como faz Ehrlich - as obrigações que servem de base à responsabilidade com asobrigaçõescujocumprimentopodeserexigidodiantedostribunaisefalardeobrigaçõesjurídicasquenãofundam uma responsabilidade! Toda obrigação jurídica era também no direito alemão passível de serjudicializadaerestava,emúltimainstância,sobapossibilidadedeexecuçãoforçadaporprisãoeconfiscodepatrimônio;emoutraspalavras,naquelesdébitosemquenãoexistiaumobjetoparticularparaexecução(umagarantiaoupenhor),odevedorrespondiacomasuainteirapessoaepatrimônio!

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podem ser levados a juízo, privados de obrigações, possam se revestir de extrema

importânciaparaaeconomia?Masseriamentãoodireitoeaeconomiaidênticos?Não

seriamcertosdeveresmoraisdemáximaimportânciatantoparaasociedadecomopara

oindivíduo?Precisamporissoserobrigaçõesjurídicas?

Ehrlich,entretanto,nãoficadevendoaodarrespostaà interrogaçãoacercade

qualseria,propriamente,aessênciadaquelasnormasouregrascujaexplicaçãoconstitui

oobjetopeculiardesuasociologiajurídica,que,comodisciplinaparticular,sedistingue

deumateoriageraldasociedade.Ehrlichreconheceanecessidadededelimitaroobjeto

desuanovaciênciadaqueledeumasociologiadamoral,doscostumes,daarteouda

religião.Mas como ele estabelece essas fronteiras? A importância desta questão e a

resposta dada por Ehrlich justificamuma citaçãomais extensa: “Conquanto possa ser

difícil traçar cientificamente as fronteiras entre a norma jurídica e outras espécies de

normas, na prática esta dificuldade só se apresenta raramente [...]. O problema da

diferença entre a norma jurídica e as normas extrajurídicas não é uma questão da

ciênciasocial,masdapsicologiasocial”.Jáaqui,porém,impõe-seobjetarquetambéma

“psicologiasocial”éumaciênciasocialequeumaquestãoquedizrespeitonadamenos

queàdelimitaçãodoobjetodepesquisadasociologia jurídicaénecessariamenteuma

questãodeciênciasocial.Masestaobjeçãovemdecididamenterelegadaaumsegundo

plano diante do estupor que advém da seguinte solução do problema: “As várias

espécies de norma provocam sentimentos de intensidade diversa e à transgressão de

normasdiferentesnósreagimoscomsentimentosdiferentes.Compare-seosentimento

de indignação que decorre de uma violação do direito com a raiva provocada pela

inobservância de ummandamento moral, com o ressentimento ocasionado por uma

descortesia, comadesaprovação por uma falta de discrição, como ridículo diante de

algumasdeterminaçõesdeboasmaneirase,finalmente,comacríticareprovadoracom

que os campeões da moda contemplam os que não os imitam” (p. 132). Entre as

tentativas, não raras, de determinar a essência do direito, esta é, seguramente, o

cúmulodacuriosidade!Eé realmentedeplorávelquea “teoriadominante”aindanão

tenhaseapropriadodessateoria,poisseriaumdeleiteadmiraroescárniodacríticade

Ehrlich!Cabe,porém,aEhrlichatarefadesepararosentimentode“indignação”dode

“raiva”, de distinguir entre o “sentimento” de “desaprovação” e o de “crítica

reprovadora”,entreo“ressentimento”eo“ridículo”!Naverdade,essapsicologiadeum

sociólogo que observa a realidade se aproxima quase às orgias da jurisprudência

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psicológica,quenaverdadeapenas trabalhacom“abstraçõessemvida”.Paramedira

utilidade dos critérios de Ehrlich, pense-se, por exemplo, na norma jurídica que

prescreveopagamentoantecipadodoaluguelounaquelaqueprescreveopagamento

de6%deimpostosnastransaçõescomerciais,ambasinteiramenteregrasdavidaenão

merasnormasdedecisão(que,naverdade,tambémsãonormasjurídicas),enanorma

moral que prescreve amisericórdia, ou naquela quemanda nãomentir. Com quanta

facilidadesepoderiaconfundirosentimentode“indignação”comaviolaçãodasduas

primeirascomaqueleda“raiva”pelaviolaçãodasoutras!Ouétalvez“raiva”aquiloque

acompanhaaviolaçãodeumdireitoe“indignação”aquiloqueédespertadoporumato

imoral?Talvezsejammuitosaquelesque,porumafaltadebonsmodos,se“indignem”e

por isso digam que estão com “raiva”; e muitíssimos aqueles que se restrinjam a

“desaprovar” uma infração legal. É pela intensidade de vosso sentimento que

reconhecereisasnormas!Masjámuitosaoqueparecesefizeram“ridículos”eficaram

por issoàprovadenormasquenãoaquelasdeboasmaneiras!Éumentretenimento

realmentebaratocolocaràprovaoscritériosdeEhrlichdedistinçãoentreascategorias

sociais de normas, tanto mais que esses não parecem ter satisfeito nem mesmo a

Ehrlich,que senteanecessidadede caracterizarespecialmenteasnormas jurídicasde

umamaneiradiferentedadetransmitirosentimentode“indignação”queésuscitado

pela sua violação. Assim, Ehrlich, oferecendo aparentemente uma explicação de sua

teoriadossentimentos,dizque“oquecaracterizaanormajurídicaéosentimentopara

o qual já os juristas do direito comum acharam o significativo nome de opinio

necessitatis.Anormajurídicapodeseridentificadacombasenestaopinionecessitatis”

(p. 132). Na verdade, a opinio necessitatis, relativamente a uma prática, é algo bem

diferentedosentimentodeindignaçãoàviolaçãodeumanorma,mas,foraisso,como

pode tudo isso constituir umadistinçãoentredireito emoral?Não tem tambéma lei

moral o caráter de necessidade? Não é talvez a necessitas moral pelo menos tão

importantequantoanecessitasjurídica?

Dificilmente se pode levar Ehrlich a sério quando ele afirma que “A norma

jurídicaregula,aomenossegundoapercepçãodogrupo,daqualadvém,umassuntode

grande importância, uma coisa de significado fundamental [...] Somente questões de

menorimportânciasãodeixadasàsdemaisnormassociais”(p.134).Asnormasmoraise

religiosas realmente tratam de questões de menor importância que normas sobre

empréstimosouarrendamentos?Atentativa,járeferida,desepararasnormasjurídicas

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dasoutrasnormas,definindoasprimeirascomo“formuladassempredeformaclaraem

palavrasdeterminadas” (p. 204) éumandar às cegas atrásdeumcritériodeum tipo

completamente diferente. Só que aqui Ehrlich esquece completamente que, alguns

capítulos atrás, caracterizou a norma jurídica justamente pela falta desta clara

formulação em palavras claras e atribuiu esta qualidade somente aos “preceitos

jurídicos”,queconstituemumaquestãosecundáriaparaasociologiadodireito!E isso

significa não mais que a aceitação de um critério totalmente novo, quando no final

afirmaEhrlich: “normas jurídicas sãoasnormasqueemanamdos fatosdodireito” (p.

136).Mas qual pode ser o significado desta definição?Os “fatos do direito” não são,

efetivamente, outra coisa que todo e qualquer possível objeto de regulamentação

jurídica,enãosomentedesta,mastambémdetodaregulamentaçãosocial!Relaçãode

propriedade,posse,declaraçãodevontade!Masatémesmoestesignificadoéabalado

pelo adendode Ehrlich, segundoo qual podem ser tambémnormas jurídicas “as que

derivamdospreceitosjurídicosdodireitoestataledodireitodosjuristas”.Émuitodifícil

de aceitar a ideia de Ehrlich, de acordo com a qual somente nessas normas se

encontrariaaopinionecessitatis.Deresto,paraqueserveessahipótese?Ehrlichgarante

quenemtodasasnormasquenascemdosfatosdodireitooudospreceitosjurídicossão

normas jurídicas, e que, porém, somentenestas se encontra aopinio necessitatis. Em

todasousomenteemalgumasdelas?Nãosepodecompreenderporquefatosdosquais

possam “nascer”, junto às normas jurídicas, também “normas que não pertençam ao

direito”,normasmorais,normasdecostumeereligiosas,sejampropriamentefatos“do

direito”. Que seja! Finalmente, Ehrlich confessa ingenuamente: “Mediante tal

característica,portanto,nãoéconferidaumadelimitaçãopositivadanormajurídicaem

relação a outras normas. Isso pressuporia antes de tudo uma aprofundada pesquisa

sobreanaturezadasnormasdetiponãojurídico”(p.136).Maspoderiaumasociologia

do direito, uma fundamentação desta sociologia do direito, ser possível sem tal

pressuposto?Nestepontonãopodemosmaisconteradúvida,hámuitoreprimida.Se

proposiçõesgerais-asquaissãooresultadodapesquisadeEhrlich-nãosereferemao

direito como um objeto determinado de alguma forma, mas, em geral, a regras do

comportamento social, seriam efetivamente, nesta sua generalidade, outra coisa que

nãoconstruçõesvaziaseplatitudesemgeral?

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802

IV

UmtraçoparticularmentemarcantedasociologiajurídicadeEhrlichéanítidaseparação

entredireitoeEstado.Ehrlichdestacaconstantemente,comamáximaenergia,queum

dosmaisgravesequívocosdajurisprudênciahodiernaéofatodequeestareconduzo

direitoaoEstado,que“reconhecesomenteodireitoestatal,enquantoodireitoextra-

estatalou social constituide longeomaioremais importante componentedaordem

jurídica”(p.9ss.,49ss.,110ss.,295ss.).NãoéfácildeterminaroqueentendeEhrlich,

defato,pordireito“estatal”.Oraissovemdefinidocomoodireito“criadopeloEstado”

(p.8),oraéidentificadocomo“direitoproclamadocomoleipeloEstado”(p.11);outras

vezesseentendepordireitoestatalasregrasparaocomportamentodostribunaisedos

outros órgãos estatais (em oposição às regras da conduta humana em geral) (p. 15).

Depois,parecenovamentequeodireitoestataléo complexodenormasestataisque

veiculam a ameaça do uso da coerção (p. 57). Seguramente, na p. 9 e ss., o direito

estatalealeisãoidentificadosnomomentoemquesemanifestaaacusaçãodeque“a

jurisprudência atual conhece apenas o direito estatal”, nesses termos: “Onde é

estudado este direito extra-estatal? Onde está descrito? Com certeza não constitui

nenhuma ousadia afirmar que hoje em dia no continente europeu tanto na pesquisa

quantonaliteraturaenoensinonãoseconheceoutrodireitoanãoseralei”(p.9).Àp.

110, todavia, afirma-se: “O direito estatal deriva do Estado,mas não tanto na forma

quantono conteúdo;éumdireitoque surgeexclusivamente comoEstadoequenão

podeexistirsemele”.Éporissoindiferenteconsideraraformapelaqualelesubsiste.À

p.115,aessênciadodireitoestatalvemcaracterizadacomocomandoestatal“dirigido

aostribunaiseaoutrosórgãos,prescrevendoamaneiraemquedevematuar”.Àp.296,

porém,éfeitaumadiferenciação.Sãomencionadosdoistiposfundamentaisdedireito

estatal:“OEstadotemduasalternativasparaatuarporintermédiodeseudireito.Uma

sedáatravésdasnormasdedecisão:oEstadoprescreveaostribunaiseaoutrosórgãos

estatais como devem decidir as questões que lhes são apresentadas pelas partes

interessadas.Amaioriadasnormasdedecisão,noentanto,sãooriundasdodireitodos

juristas;somentesãodireitoestatalquandosurgem independentementedodireitodos

juristasesedestinamaserviraosobjetivosestatais.Ooutrotipodedireitoestatalsão

asnormasdeintervenção:elasdeterminamaosórgãosestataisquandodevemintervir,

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mesmoquenãotenhamsidoinvocadosparaisto.”Nãoseráfácilestabeleceroque,no

direitoestatalpostoem formade lei, sejadireitosocial eoquesejadireitoestatal,o

queédireitodosjuristastornadopreceitojurídico,oqueénormadedecisãoeoqueé

norma jurídica no sentido verdadeiro e próprio de regra geral de conduta. Tudo isto

está,evidentemente,dentrododireitolegislado.Emtodocaso,esteconceitodedireito

estatalexpostoporúltimoécompletamentediferentee,pelasuaprecisão,muitomais

restrito que aquele implícito na acusação feita por Ehrlich no início de seu trabalho,

segundoaqualseocupariaajurisprudênciacontemporâneaapenasdo“direitoestatal”,

porqueseocupariaapenascomas“leis”.Épreciso,seriamente,questionaraviabilidade

dessa separaçãododireito,que seriaoperadapela via legislativa,emdireitoestatal e

direitonãoestatal.AtéondeaexposiçãodeEhrlichédecifrável,o“direitoestatal”pode

sermais oumenosdelimitado apenasquando compreendidopor “direito do Estado”,

istoé,direitopúblicoedireitoadministrativo.

CaracterizaEhrlichdaseguintemaneiraaapariçãododireitoestatal,aoladodo

direitoqueeraatéentãounicamentesocial:“Odireitoestatalaparecenahistóriamuito

maistardequeaadministraçãodajustiçapeloEstado.Primeiramente,oEstadoproduz

evidentementeasuaprópriaordemjurídica,odireitopúblico,equandocriaórgãosde

autoridade, seja de que tipo for, determina a sua competência, seu funcionamento

interno, às vezes também seu procedimento”. Parece enigmática, porém, a

possibilidadedeumaadministraçãoestataldajustiçaantesquehajaumaordemjurídica

estatal.MasoqueéesteenigmadiantedamisteriosaideiadeumEstadoquecriaasua

própria ordem jurídica! Visto que dificilmente no “Estado” se pode reconhecer outra

coisa que não uma ordem jurídica determinada, resta simplesmente o problema de

comoumaordem jurídicacriaa simesma.Mas, sejacomo for,oproblemaparecede

fatoresultardestadeclaraçãodeEhrlich,segundoaqualo“direitoestatal”é,sobretudo

(pelomenoshistoricamente),emprimeirolugar,direitodoEstado:odireitocriadopelo

Estado.Infelizmente,talconcepçãodeEhrlich,claramenteeunivocamenteexpressana

p.115,contradizopróprioEhrlich,quenap.304diz,efetivamente:“QuandooEstado

prescreve as posições e as tarefas de seus órgãos de autoridade, isto não é direito

estatalnaverdadeiraeprópriaacepçãodotermo,masumdireitodoEstado.OEstado,

efetivamente, dá a si próprio e aos seus órgãos de autoridade uma ordem jurídica,

exatamente como faz qualquer outra associação social”. O que, de acordo com essas

afirmações, deve verdadeiramente ser o direito estatal permanece um mistério. No

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mesmo capítulo, intitulado “O direito estatal”, Ehrlich estuda os efeitos do direito

estatal e, em particular, das normas estatais de decisão; aqui ele simplesmente

identifica o direito “legislado” e o direito estatal, tendo dito algumas linhas antes (p.

296) que amaioria das “normas de decisão” codificadas são direito dos juristas, não

direitoestatal.Ehrlich,dizagora:“Oefeitodasnormasestataisdedecisãoé,emgeral,

superestimado [...]Há alguns anos fiz umaenquetepara saber quantodo código civil

austríaco,quejáestáemvigorhácemanos,realmentepenetrounavida”(p.297).Éo

códigocivildireitoestatal?

Visto que Ehrlich defende a independência de direito e Estado diante da

concepçãosegundoaqualoEstadoproduzodireito,éprecisoconcordarcomele,mas

somenteapartirdeumanoçãoqueédetodaestranhaàEhrlich,adequeoEstado,de

uma maneira geral, não está apto a produzir direito, que a ideia de um Estado que

produz direito é irrealizável. Aqui não se pode e não há nemmesmo necessidade de

demonstrar em maiores detalhes tal afirmação. Contra Ehrlich, basta acentuar que,

dadaapossibilidadedeumdireitoestatalqualquer,éaumaconsequênciainevitável,do

pontodevista jurídico-normativo,considerarodireitoestatalcomoaúnicaordem,ou

aindacomoaordemsuprema.

EhrlichdefineasassociaçõessociaisqueconsideraprecedentesaoEstadocomo

“clã”,“tribo”,“parentela” (p.111),“família”,“vilarejo”.Ele falade“juízesdevilarejo”,

“juízes familiares” e considera também admissíveis tribunais do clã e da tribo. Ele,

portanto, pressupõe que essas comunidades são comunidades jurídicas, que aplicam

normasjurídicas.Deoutraparte,apoiando-senaautoridadedeGierke,eledefendeque

não é preciso considerar como normas jurídicas somente as normas aplicadas pela

comunidade jurídica, ou por seus órgãos: obrigações jurídicas são também aquelas

obrigações em cuja proteção nenhum “poder social superior” está a autorizado a se

intrometer (p. 128). Mas em que se distinguem tais obrigações de todas as outras

obrigações do costume, da moral? Se o direito é norma do grupo social, regra de

organização, como se manifesta nestas relações o grupo social, a unidade social

superior,aassociação?Noquetangeàmoraleaoscostumes,écomoseacomunidade

como unidade acima dos indivíduos fosse inexistente! “É imanente a todo o direito

associativogermânicoaideiadetudooqueosenhordeveconcederaosseussujeitosé

algo devido no sentido jurídico. Obrigações vinculantes se desenvolvem apenas na

medida em que há um poder superior do grupo social autorizado a intervir para

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protegerosdireitosdosmembrosdaassociação”(p.128).Mascomosepodefalarde

umdireitoassociativoseodireitonãopossuinenhumarelaçãocomogrupoenquanto

tal?

Em sua essênciamais íntima, oEstado não é outra coisa senão a comunidade

jurídica,acomunidadejurídicasuprema,aquelaunidadesocialquevempensadacomo

um ordenamento jurídico: a organização do direito. Objetar-se-á seguramente ser

contudo impossível pensar o clã, a tribo, como Estado, quando estes grupos são

componentesdaunidadesocialsuperior,talvezatémesmodopróprioEstado.Cogite-se

que uma tribo ou um outro grupo de ordem inferior, organizado como comunidade

jurídica,estejaunidoaumoutrogrupoemumaunidadesuperior.Emqueconsisteesse

vínculo?Dequetipoéessaorganização,pelaqualmaisdeumsubgruposevinculamem

umaunidadesuperior?Tambémestaordeméapenasumaordem jurídica,queestatui

asobrigaçõesdosindivíduossingulares,éumordenamentojurídicoqueéaplicadopor

determinados órgãos - os órgãos da comunidade superior - e em relação à qual os

ordenamentos jurídicos dos subgrupos devem necessariamente se integrar sem

contradição. Se a comunidade superior, que encerra todos os subgrupos, deve

realmenteserumaunidadesocial,istoé,devepoderserpensadacomounidade,então

éprecisopensarossubgruposcomosubordinados,dequalquermodo,aogruposocial

superior,éprecisorepresentarosordenamentosjurídicos–quesediferenciamentresi

em sua singularidade – destes grupos sociais parciais como válidos e diferenciáveis

somente no âmbito dos limites que lhes são postos pela organização da comunidade

superiorqueosencerraemumaunidade.Umaconstruçãodiferentedestaconstrução

normativadasunidadessociais,porém,nãoépossível.Nessaconstruçãoconceitual–na

qualsomentesedáaunidadeidealdosgrupossociais–ossubgrupossetornamórgãos

dacomunidadesuperioreosordenamentosjurídicosdecadasubgrupo–ordenamentos

quenoâmbitodeseus limites locaisemateriaissãosemprediferentesumdooutro–

constituem, juntamente com a organização da comunidade superior, um sistema

unitáriodenormas,umordenamentojurídicounitário.Estaúltimacomunidade,quese

constróiacimadosgrupossingulares,éenquantocomunidadejurídicaoEstado.Afinal,

queoutracoisapoderiaseroEstado?

Julga Ehrlich que o Estado não é uma comunidade jurídica: “na sua origem, o

Estadoéumaassociaçãomilitarquemantémumarelaçãomuitopoucoestreitacoma

vidajurídica;issoassimpermaneceatéhoje,aexceçãodealgumasformasmodernasde

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Estado,constituídasnasantigascolôniasinglesasdaAmérica-sejanasmaisantigas,seja

nasatuais-eemoutraspartesdomundo”(p.111).Jádessaspalavrasvê-seclaramente

que, noque tange àquestãodaessênciadoEstado, aquiloque conta, para Ehrlich, é

algocompletamentediversodaqueleconceitodeEstadocujarelaçãocomoconceitode

direito vem sendo discutida no âmbito do problema Estado-direito. Ehrlich diz que o

Estado é uma associaçãomilitar e, aomesmo tempo, admite Estados que não foram

associações deste tipo.Mas, deixando completamente de lado as exceções que faz o

próprioEhrlich,nãoseriaporacasoEstado,porexemplo,umEstadoneutralizado,que,

contandocomcontratosinternacionais,nãodisponhadenenhumaorganizaçãomilitar,

de nenhum exército, de nenhuma fortaleza? Talvez, se vencesse o ideal da paz, os

EstadoshodiernosdeixariamdeserEstados?Porcerto,ospropósitosmilitarespodem

ter caracterizado amaior parte dos Estados historicamente conhecidos,mas nempor

issosedefineoconceitodeEstadocomo“organizaçãomilitar”. Igualmente,tambéma

maior parte dos Estados historicamente conhecidos foram organizações para a

exploração, mas o conceito de Estado não pode por isso ser determinado como

“organização para exploração”. No conceito de Estado devem encontrar espaço não

apenasalgumasouamaiorpartedas formaçõesconhecidascomo“Estado”,mastoda

forma de “Estado” possível ou que se possa conceber. É uma tentativa fracassada de

antemão a de Ehrlich e de alguns outros que buscam caracterizar o Estado

materialmente segundoo seu conteúdo, segundoos fins perseguidosna formaçãodo

Estado. Efetivamente, o Estado é uma forma de unidade social, não um conteúdo!

Segundo Ehrlich, “a formação social mais antiga, que está ainda de algum modo

relacionadacomoEstadomodernoéauniãodanobrezaguerreiradeváriastriboscom

um língua comum, as quais, acompanhadas dos demais homens livres, escolhem um

chefe militar para a guerra, cujas funções não são passageiras e restritas a uma

circunstâncias excepcionais, mas duradouras” (p. 111). Todavia, não se compreende

porqueatriboorganizadanãopodeservistacomocomunidadejurídica,enquantoa“a

união da nobreza” pode ser entendida como Estado, tanto mais considerando que

Ehrlich caracteriza o Estado como uma espécie de bando de chantagistas: “antes de

tudo,oEstadotemafunçãodepôràdisposiçãodorei,ochefemilitarpermanente,edo

seu séquito os meios necessários ao seu sustento material. Isto ocorre inicialmente

através da solicitação insistente do oferecimento de presentes, que mais tarde,

especialmente no Oriente, torna-se uma verdadeira extorsão” (p. 111). Várias tribos,

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portanto, devem formar um Estado porque e contanto que um “grupo de nobres”

exploredemodoextorsivoopovodessas tribos?Énissoquedeveconsistiraunidade

social “Estado”?Só sepode falardeumEstado -entendidonesses termoscomouma

unidade social - no caso de umaorganização; a rapina arbitrária e desregrada de um

bandodesalteadores-eassimseapresentamas“extorsões”da“nobrezaguerreirade

váriastriboscomumalínguaemcomum”-nãosãoefetivamenteumaordemestatal.Se

existe,porém,umaorganizaçãomilitar, éprecisopressupornormas segundoasquais

são instituídas obrigações de adimplemento dos indivíduos e então existe umEstado,

não por conta do conteúdo particular dessas normas, mas porque existe um

ordenamento que, pela sua natureza, deve necessariamente ser um ordenamento

jurídico.QuandoEhrlichsalientaqueahistóriadodireitoensinaquenãocabeaoEstado

legislarnoinício(p.112),temeletotalrazão!Qualéojuristanormalquenãosabequea

produçãododireitofoidesenvolvidapelavia“consuetudinária”porumlongoperíodo?

Mas,quandoafirmaquetambémaadministraçãodajustiça,aaplicaçãododireitonão

teria na origem nenhuma relação com o Estado, Ehrlich opera com um conceito de

Estado completamente arbitrário. Isto é impossível, se por “Estado” se compreende a

comunidade jurídica suprema, a organização do direito. Desse ponto de vista é

absolutamente arbitrário negar a caracterização de Estado às pequenas comunidades

jurídicas autônomas que se presume serem originárias - ainda faltam documentos

históricosdahistóriaantigadodireitoedoEstado - eatribuí-la àsassociações sociais

que tem origem da confluência de vários grupos semelhantes. No entanto, em uma

organizaçãojurídicadagrandecomunidadetotalosordenamentosjurídicosdosgrupos

autônomos originários podem conservar a sua particularidade individual somente

dentro dos limites da primeira, a qual deve necessariamente constituir uma unidade

comaorganizaçãojurídicadacomunidadetotal,demaneiraqueosórgãosjurídicosdos

grupos parciais possam ser pensados como órgãos da totalidade: tudo é somente a

consequênciadofatodequeosgruposoriginariamenteautônomossãofundidosentre

siemumaunidadesuperior.

QuandoEhrlich sustentaque tribunaisestatais, ou seja, a aplicaçãododireito

pelo Estado, existe somente porque nascemde um “poder de comando de um chefe

militar”, novamente se tem um modo de consideração completamente distinto do

jurídico,assimcomoumconceitodeEstadodiferentedousual.Apenasaadministração

da justiçapraticadaporumchefemilitar oupor seusórgãos teria umcaráterestatal.

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Com a exceção de que o tipo de qualificação é indiferente para tal questão: também

juízes eleitos pela comunidade são órgãos do Estado, se a comunidade é o elemento

orgânico do Estado. Ehrlich crê que a primeira jurisdição estatal é aquela do rei-líder,

mas historicamente o rei é tanto juiz supremo como líder supremo. Se o Estado é

pensado como cindido em uma série de comunidades jurídicas menores, com seus

própriosordenamentosjurídicosdiferentesunsdosoutros,eórgãosjurídicos(tribunais)

própriosindependentesunsdosoutros,emqueconsisteentãoovínculoqueunetodos

estesgrupos,quefazdetodosestesgrupossingularesumúnicoEstado?Éprecisoque

exista algum ordenamento comum, um ordenamento que seja uma barreira para os

ordenamentosjurídicosdosgrupossingulares!Seesteordenamentonãofossejurídico,

ondeestariam,então,asfronteirasdoEstado?

Se cada norma jurídica encerra uma relação para com a comunidade jurídica,

comoEstado,nãopor isso,naturalmente,cadarelação jurídicadevenecessariamente

ter por referência as autoridades estatais! É realmente necessário repetir que esta

relação com o Estado tem uma natureza meramente potencial? Que uma obrigação

jurídica somente pode ser considerada existente se a sua violação tiver por

consequência de dever-ser uma reação estatal, sem que se precise necessariamente

afirmar que toda obrigação jurídica deve ser violada? É um ácido de fato um ácido

somentequandosecolocaemcontatocomopapeldetornassol?Nãoépropriamente

Ehrlich,porém,quedespertaessa reminiscênciaquando, contraanaturezaestataldo

direito, afirma com toda a seriedade: “Hámilhões de pessoas quemantêm inúmeras

relações jurídicas,mas são tãoafortunadasquenuncaprecisaramrecorreraqualquer

órgãodeautoridade”(p.130).Pode-seatribuiràteoriadominante,comofazEhrlich,a

ideia segundo a qual “a vida humana se desenvolve diante dos tribunais” (p. 15),

imputarao“juristadenossosdias”aincapacidadedeconcebera“convivênciahumana”

sem“coação jurídica” (p.67)?Acredita realmenteEhrlich - comoelegostariade fazer

crer a seu leitor - que a teoria que vincula intimamente o direito ao Estado, a qual

concebe o direito como “ordenamento coativo” estatal, sustenta a concepção da

psicologiasocialsegundoaqualossereshumanossecomportamdemaneiraconforme

aodireitoapenaspormedodapenaoudaexecução forçadaestatal (p.15)?Nenhum

representante da teoria da coação, incompreendida por Ehrlich, é na realidade tão

tonto. Mas já o modo pelo qual Ehrlich interpreta a coação jurídica estatal beira ao

grotesco! “Fundamentalmente, os efeitos da ordem jurídica coativa do Estado se

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restringem à proteção da pessoa, da posse e do crédito contra aqueles que se

encontram fora da sociedade” (p. 57), os “marginalizados” (p. 55). Não deveria ter o

ordenamento jurídico - enquanto ordem coercitiva estatal - algum “efeito” de

prevenção? E são verdadeiramente todos aqueles contra os quais são postas em

andamentoexecuções civis e coerções jurídicoadministrativas, todosaquelesque são

punidospelostribunais,“marginalizados”,gentequeestáexcluídadasociedade?Ehrlich

defineoEstadocomo“aassociaçãomaisabrangente,quecompreendetambémaeles

[estesmarginalizados]”. É realmenteummistérioque sepossaafirmarque indivíduos

que são “abrangidos” pelo Estado, ou seja, por uma associação social, possam estar

“excluídos”da sociedade. Isso para não falar da errôneanoçãodequeo Estado seria

uma organização de “marginalizados”! De acordo com Ehrlich, “aqui o Estado como

órgão da sociedade protege a sociedade daqueles que estão fora dela” (p. 55). Bem

entendido:oEstado,queenquantoassociaçãosocialabrangetambémos“excluídos”,é

órgãodasociedadeecomotalprotegeasociedadecontraaquelesquesão,enquanto

parteintegrantedoEstado,órgãosdasociedade.Issoprotegeasociedadedesimesma

outambémcontraumadesuaspartes,parteestaque,porém,estáforadasociedade!

QueoEstadosejaumórgãodasociedadeéumaimportantenoçãoenfatizadapelaobra

de Ehrlich (p. 122-123), o que, em verdade, não o impede de formular a noção

sociológicasegundoaqual“oEstadoeumagrandepartedasociedadeseencontramem

oposiçãomútua”(p.60).

Ehrlich, enfim, acredita apresentar um argumento contra o caráter estatal do

direito (que de resto é o mesmo que dizer: caráter jurídico do Estado) quando,

chamando a atenção para o direito eclesiástico, explica: “O direito eclesiástico é um

direitoporconstituiraordemjurídicadaIgreja,independentedaposiçãoqueoEstado

assumediantedele”(p.130).Ehrlichnãoreparaque,dessamaneira,apenasdissequeo

direitodaigrejaédireitoporqueédireito?ExatamenteporqueEhrlich,nadefiniçãodo

conceito de direito, abdica da sua relação com o Estado como comunidade jurídica

específica,oseuconceitodedireito -quandosedescartaatentativa,quedificilmente

podeserlevadaasério,decaracterizarasdiferentesnormasatravésdaintensidadedo

sentimentoprovocadoporsuaviolação-precisaseestenderdesmesuradamentee,em

essência,coincidecomaqueledenormaouregrasocial.Dopontodevistasociológico,a

concepção de Ehrlich, até o ponto em que é univocamente determinada e não se

contradizseperdenaidentificaçãodedireitoesociedade,enquantoatendênciaauma

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clara delimitação entre direito e outras normas sociais traz, em sua mais evidente

consequência, a identificação entre direito e Estado como forma particular da

sociedade.

V

Os dois capítulos finais da obra de Ehrlich tratam dos “métodos da sociologia do

direito”.Aquielereúne,maisumavez,assuasconcepçõesfundamentais.Nestasucinta

exposição, se manifestam com particular evidência a obscuridade e a contradição

interna que permeia toda a sua “fundamentação”. Nesses capítulos finais, enfatiza

Ehrlichmaisumavezocontrastedesdeoinícioapontadoentreuma“ciênciateórica”do

direito, istoé,asociologiadodireito,euma jurisprudência“prática”. Jána introdução

foi feito referência ao fato de que Ehrlich desenvolve de ummodo demasiadamente

obscuro este contraste, cuja correta aplicação poderia ser da maior importância. Em

conclusão, depreende-se que esse princípio metodológico fundamental perdeu em

Ehrlichtodosignificadopossível.Depoisdeterressaltado(especialmentenap.314)que

“aciência jurídicasociológica”,“comotodaciência,devesimplesmenteregistrarenão

valorar os fatos”, que ela nada tem a declarar sobre aquilo que deve ser, e

especialmente sobre o que deve ser por força do direito, sobre aquilo a que se é

juridicamenteobrigadoouautorizado,sobreoqueédireitoeoqueéilícito(nosentido

dejuízosdevalor),eleagoraacrescenta:“Tambémasociologia,incluindoaíasociologia

dodireito,deve serumaciênciadeobservação”.Dizqueao sociólogododireitocabe

“coletar os fatos para conhecê-los e interpretá-los” (p. 382). Em especial, também o

“preceito jurídico”éconsiderado“somentecomo fato, istoé,observadoquantoàsua

origemeseusefeitosenãoemrelaçãoasuainterpretaçãoeaplicaçãoprática”,oque,

dito em termos mais precisos, significa: explicar a gênese e os efeitos dos preceitos

jurídicoscomofatospsíquico-sociais,conceberodireitocomopoder,nãoconsideraras

normas jurídicas em sua validade de dever-ser, não conceber o direito como norma.

Essa é uma definição absolutamente correta de uma sociologia do direito puramente

explicativa. No entanto, o que causa perplexidade é quando Ehrlich diz que cabe à

“jurisprudênciaprática”,emcontrastecomasociologiajurídicateórica–nasuavisão,a

únicaciênciadodireito-conhecerclaramenteoquedeveserporforçadodireitoeque

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esta não busca constatar e explicar fatos, mas sim oferecer juízos de valor jurídicos;

quando Ehrlich diz que essa jurisprudência “não científica” porque normativa, no

sentidoporeleadotado,deve“oferecerumquadronoâmbitodoqualasnormasdevem

valer” (p. 384). Mas como isto seria possível com os instrumentos da jurisprudência

prática? Do ponto de vista metodológico, não seria a descrição das relações sociais

existentesumatarefaprópriadasociologia,emoposiçãoà jurisprudência“prática”?O

contrasteentreo“teórico”eo“prático”,queEhrlichhaviaelaboradoemumprimeiro

momento para se referir à relação entre sociologia e do direito e jurisprudência, é

completamente invertido no momento em que ele finalmente assevera que a

jurisprudênciapráticatambéméuma“ciência”-istoé,nosentidodeEhrlich-,queesta

devedescrevereexplicarcausalmente-masnãovalorar-fatos,oser.“Oconhecimento

diretodasrelaçõeshumanasdetipo jurídico,dasnormasdedecisãoeageneralização

dos resultados desse conhecimento constitui o aspecto científico da jurisprudência.

Assim ampliada, a jurisprudência é efetivamente uma morfologia das configurações

jurídicas da vida social” ou, como se diz à cabeça da página, uma “morfologia da

sociedade” (p. 364). É preciso supor aqui que se trate de fatos do ser, enquanto tal

conhecimentoefetua-senosentidodito“científico”;masondeestá,então,ocontraste

comasociologiadodireito?“Tambémamuitodiscutidapartegeral[da“jurisprudência

prática”]contémciência”.CiêncianosentidodeEhrlich?

Amaisperfeitaconfusãodosprincípiosmetodológicosdeumadisciplinateórica

edeumadisciplinapráticacompleta-se,porém,noúltimoemaisimportanteresultado

dasociologiajurídicadeEhrlich:ainvestigaçãododireitovivo.

Vistoquetodaaciênciadodireitosededicahodiernamenteapenasaoestudo

dos preceitos jurídicos, “a nossa situação jurídica atual seria em grande medida

desconhecida” (p. 395). O código civil austríaco dispõe sobre o regime de bens no

matrimônio,nafaltadepactosmatrimoniaiscontrárioscomodireitodispositivo.Hoje,o

campesinatoaustro-alemãoviveefetivamenteumregimematrimonialdecomunhãode

bens,mas este é regulado por normas de pactosmatrimoniais particulares, de forma

diferente do que dispõem os códigos. A literatura jurídica, porém, nada diz nem do

conteúdo real dos pactos matrimoniais dos camponeses, nem do conteúdo real dos

contratosdearrendamentoedetestamento(p.396-397)queemcertosgrupossociais

possuemde regra um conteúdo específico que não pode naturalmente ser obtido no

código,queconfereàspartesafaculdadedeestabelecerporcontaprópriaoconteúdo

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de suas relações jurídicas. Infelizmente, Ehrlichnão apresentanenhuma comprovação

desuatese,quesociologicamenteémuitointeressante.Aliteraturajurídicanadasabe

sobre o efetivo “regime agrário”, tampouco sobre a efetiva ordem familiar, que em

nenhum país da Europa corresponde às normas do direito posto (p. 397). Aqui é

necessáriapararporummomento.Odireitoéaformapelaqualsedesenvolve,oudeve

sedesenvolver,avidapolíticaeeconômica.Aciênciadodireitotem,porconseguinte,

algoadizersobreaforma,masnãopodedizernada,comseusmeiosespecíficosenos

limitesdeseuobjeto,sobreoconteúdoquedeveserdesenvolvido(seesteépensado

normativamente) ou que efetivamente se desenvolve (se este é concebido

sociologicamente) na forma do direito. Ehrlich simplesmente identifica direito e

sociedade, isto é, ele define como direito não somente a forma, mas também o

conteúdodosfenômenossociais,nomomentoemquerequerqueaciênciadodireito

forneça informações sobreas relaçõespolíticaseeconômicas regularesque conferem

conteúdo às formas jurídicas. A ciência do direito precisaria ser ao mesmo tempo

economia política, história econômica, se tivesse de dar informações sobre o regime

agrário de um país ou sobre as relações econômicas reais entre os cônjuges, entre

arrendadoresearrendatáriosetc.Éabsolutamentesemprecedentesumatãocompleta

confusãodasfronteirasentredireitoeeconomia,entredireitoesociedade,assimcomo

entre a ciência do direito e todas as outras ciências sociais! O que são, porém, essas

regrasqueversamacercadoconteúdodecertosnegóciosjurídicosedecertasrelações

jurídicas? Segundo Ehrlich, essas regras são o “direito vivo”. Sua essência se revela

abertamentenaseguintefrase:“Tambémaquiaciência,comoteoriadodireito[Ehrlich

serefereàjurisprudênciadominante],cumpremuitomalsuatarefa,quandoselimitaa

mostraroquealeiprescreveenãotambémaquiloqueefetivamenteacontece”(p.398).

ParaEhrlich,pesquisareexplicaresse“direitovivo’,essasregrasdaquiloquerealmente

acontece, não é em absoluto o dever somente de uma sociologia explicativa, que se

limitaaconstatareaexplicarosfatos,mastambémdajurisprudênciaprática.Acensura

maiordeEhrlichàjurisprudênciapráticaéqueeladeixadefazê-lo.Masqualéarazão

suficienteparadefinircomo“direito”asregrasdoqueefetivamenteocorre,atravésda

observação do ser, que não podem significar outra coisa senão o que também deve

regularmentesucederporforçadodireito?Umasociologia-aindanosentidodeEhrlich

-nãoestáautorizada,enquantoumaciênciapuradoser,aalcançartalresultado;uma

sociologia não poderia jamais, nesse sentido, conhecer e descrever normas jurídicas

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(como normas de dever-ser). O problema - se um acontecimento real também deve

acontecer-nãopodeserresolvido,porém,pelajurisprudênciapráticaapartirdeumser

emsi. Pode serdito,de tudooqueacontece comcerta regularidade,que sópor isso

tambémdeveacontecer,ouquedeveacontecerporforçadodireito?E,todavia,nãoé

outrosenãoesteosignificadodaafirmaçãodequeháum“direito”vivo.Agora,seesse

ser da realidade fática - como Ehrlich frequentemente o concebe - estiver em

contradiçãocomnormasquenecessariamente,pelarazãoquefor,ojuristapráticodeve

pressupor como normas jurídica válidas, isso não significa pretender que a

jurisprudência“prática”-práticaporquevoltadaaoconhecimentododever-serjurídico-

abandone o pressuposto fundamental de todo conhecimento. É de se esperar que a

jurisprudência prática considere verdadeiras duas proposições (proposições de dever-

ser)quesecontradizemreciprocamente,anormajurídicapressupostacomoválidaea

normadodireitovivoqueacontradiz,abdicandodeconceberoordenamento jurídico

comoumtododotadodesentido, istoé,privadodecontradições?Queabramão,em

outrostermos,decompreenderodireitoemgeral?

O caráter absolutamente ambíguo e problemático das regras do que

efetivamente acontece, que Ehrlich chama de “direito” vivo, vem à tona da melhor

maneirapossívelnoseguinteexemplo,queopróprioEhrlichoferece.Ehrlichrelatater

pesquisadoosefeitosdocódigocivilnaBukowina. Infelizmente,elenãopublica,neste

contexto,essaspesquisasquesãoeminentemente,desociologiadodireito.Istojáteria

sido importante só pelo fato de que teria sido finalmente apresentado material e

método para a solução de um problema de sociologia do direito verdadeiramente

concreto.Ehrlichfalaespecialmentedaineficáciadasdisposiçõesdedireitofamiliardo

códigocivilaustríaco.Segundoasdisposiçõesdestecódigoofilhoemumafamíliapode

possuirpatrimôniopróprioedeledisporlivremente.Osrendimentospertencemaestee

nãoaosseuspais.Mas,relataEhrlich,naBukowina,“quefazpartedaÁustriaeondeo

códigocivilvigoracomonasdemaispartesdopaís”,ocamponêsromenodispõedefato

dos rendimentos do filho: “Se um filho está empregado, o pai ou a mãe aparecem

pontualmenteacadamêsdetrabalhoperanteoempregadorparalevartranquilamente

para casa o salário” (p. 298). Dessas observações de Ehrlich não se compreende,

infelizmente, em quantos casos ele constatou efetivamente esse fato. É preciso

presumir que também na Bukowina se possam constatar mais casos de disposição

autônoma,dapartedo jovem,deseusrendimentos,doquetenhaconstatadoEhrlich.

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MasoquesignificamosfatosobservadosporEhrlich?Seráqueofilhodessafamília,na

Bukowina, não está legitimado a dispor de seus bens? Será que o senhor professor

Ehrlich, se fosseadvogadoou juiz, responderia:estás juridicamenteobrigadoaaceitar

que teus pais disponham dos teus rendimentos sem o teu consentimento? Eu não

duvidoqueosenhorprofessorEhrlich,comojuizouadvogado,ajudariaessefilho,com

fundamento no código civil, a fazer triunfar o seu direito, inclusive na Bukowina! No

entanto, se o filho da família está de acordo com que o pai disponha de seus

rendimentos, ou, como diz Ehrlich, “suporta tranquilamente esse tratamento”, o fato

descritoporEhrlichnãoéefetivamenteinconciliávelcomocódigocivil.Aleiconfereao

jovemumdireito;seelelançamãodeleounão,issoéassuntoseu.Podecederaopaio

seudireitoou,nocasoconcreto,aquiloqueganha,pode,porforçadodireito,oferecer-

lhe como presente, pode ceder o seu pretenso salário, pode tambémdeixar decair o

direito,tudoissosemagircontraalei.Deresto,ofatoobservadoporEhrlich,namedida

emquepossaserregularmenteconstatadonoâmbitodeumgruposocial,étalvezum

costume,masnãocomoacreditaEhrlich,umcostumecontrárioaodireito(p.299).Seria

outra coisa se o código civil instituísse umaobrigação jurídica do filho. Alémdisso, já

aconteceudeobrigações jurídicas instituídasemuma leinão teremsidoefetivamente

observadasouteremsidoregularmentevioladasporgruposinteiros.Emrelaçãoaesses

gruposanormajurídicaválidanãotemnenhumaeficácia.Seriasemdúvidaumatarefa

da sociologiadodireitoestudaraeficáciadasnormas jurídicas.Masoquepodedizer

esta sociologia do direito, que não considera e não explica nada além do que é

existente,umasociologia,quecomoreconheceEhrlich,“sótemderegistrarosfatose

não valorá-los” (p. 314), sobre se tambémdeve acontecer, por força damoral ou do

direito,aquiloqueefetivamenteacontece?Ou,emoutraspalavras,sobreaquiloqueé

lícito?

Aquilo que Ehrlich define como “direito vivo”, na medida em que se

compreende como o conteúdo regular das diferentes relações jurídicas, não é

precisamente uma categoria jurídica, mas um objeto que interessa à descrição da

economiaeàexplicaçãodasociedade.Assimcomooconhecimentodosfatossociaisem

geral,tambémoconhecimentodestesfatospoderesultarútilaolegislador.Porém,para

uma sociologia do direito que se diferencie da descrição da economia este objeto

cognitivonãoestádadodemaneiraóbvia.Namedidaemque tal disciplinapossa ser

delimitada em termos gerais e efetivamente realizada, o seu problema é aquele da

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gênese e dos efeitos das normas jurídicas concebidas como fatos psíquico-sociais. E

somente enquanto, na configuração de conteúdo das relações jurídicas, se trate dos

efeitos das normas jurídicas, o conhecimento destes conteúdos jurídicos poderia ser

consideradoporumasociologiadodireito.

Todavia,parecequesecontrapõemasmaioresdificuldadesparaumasociologia

dodireitocomoumadisciplinaautônoma.Asociologiadodireitosóépossívelnamais

estrita relação com uma sociologia damoral e dos costumes, logo uma sociologia de

todas as outras normas sociais. O comportamento efetivo dos seres humanos, na

medida em que é visto através da consideração jurídico-formal como conforme ao

direito,nãoserevelade fatomotivadoapenaspornormas jurídicas,mastambémpor

normas de outro tipo. E justamente porque uma sociologia do direito deve estudar

também as causas da falta de efeitos de normas jurídicas (logo, os motivos do

comportamento antijurídico), ela precisa também, para resolver os seus problemas,

desvelarointeiromecanismodoacontecersocial.Arigor,asociologiadodireitonãoé

umaciênciaautônoma;dopontodevistadoconhecimentosociológico,éumfragmento

absolutamente arbitrário de uma ciência geral, que considera e explica a vida social.

Necessariamente, a delimitação desta sociologia do direito deve ser realizada por

intermédio de um conceito cuja definição resulta de um ponto de vista de todo

diferente daquele de uma sociologia explicativa, isto é, por intermédio do conceito

normativodedireito.Asociologiadodireitonãopodeestabeleceroqueéodireito;à

gêneseeaosefeitosdequaisnormasestácircunscrito,portanto,oseuconhecimento;

ela deve, necessariamente, pressupor o conceito normativo de direito. Considerando

que é o conceito normativo de direito que delimita os problemas da sociologia do

direito,os seus limites -dopontodevistadaquelaciênciadaqualdeveserumramo,

istoé,dopontodevistadasociologia -nãopodemdeixardeparecerartificiais.Seas

normascujosefeitossãodeterminantesdocomportamentosocialsãonormasjurídicas

ou normas dos costumes, da moral, isto, do ponto de vista sociológico, será

completamente indiferente.Peloaspectopuramente sociológiconãohaveránenhuma

diferença essencial entre estas normas, isto é, entre os fatos psíquicos, as

representações que têm por conteúdo estas normas. Somente a errônea concepção

segundo a qual a sociologia pode abranger o mesmo objeto que a jurisprudência

normativa,odireito,conduzaumarepresentaçãodeumasociologiadodireitoqueseja

autônoma.Narealidade,anorma jurídica,esteobjetoespecíficodaciênciadodireito,

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nãoexisteparaumasociologiaorientadaaoser.Pensarououviranormajurídicaéalgo

completamentediferentedodever-ser jurídico.Umconceito sociológicodedireito, do

qual falamEhrlichemuitosoutrosautores recentes, é tãopossívelquantoo conceito

matemáticodeumprocessobiológicoouoconceitoéticodoscorposemquedalivre.A

própria tentativadeEhrlichmostraclaramentequeumasociologiadodireito torna-se

uma sociologia da sociedade, pois o conceito de direito não pode ser definido

sociologicamente.

A tentativa de Ehrlich de oferecer uma fundamentação para a sociologia do

direitodeveserconsideradacompletamentefracassada:antesdetudo,pelatotalfalta

deumaclaradefiniçãodoproblemaedeummétodopreciso.Eoqueemergedesua

confusatese,cheiadecontradições,étalveznãooutracoisaqueaverdadeóbvia,nunca

colocadaemdúvidaporninguém,aqualEhrlich,emseuprefácio,dizconstituirocerne

deseutrabalho:a ideiadequeocentrogravitacionaldaevoluçãododireitoresidena

sociedade.Naturalmente!Todaaevoluçãododireitoserealizacomoprocessosocialna

sociedade!AquiloqueEhrlichexigedaciênciaporelefundadaé,porém,muitopouco,

nomomento em que ele acredita que “nesta frase” está contido “o sentido de toda

fundamentaçãodeumasociologiadodireito”.Seriacomodizerqueosentidodetodaa

biologiaéoprincípiopeloqualaevoluçãodoservivoresidenanatureza.