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Paul Tillich
A CORAGEM
DE SER
Baseado nas Conferncias Terry
Pronunciadas na Yale University
Traduo de
EGL MALHEIROS
5 edio
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PAZ E TERRA
C) Yale University Press, 1952, New Haven, Connecticut Traduzido do
original em ingls The courage to be
Capa SabatCIP-Brasil. Catalogao-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.Tillich, Paul.
T467c A Coragem de ser: baseado nas Conferncias Terry, pronunciadas naYale University, traduo de Egl Malheiros.
3 edio Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. 146 p.Do original em ingls: The courage to be.
1. Coragem I. Ttulo II. SrieCDD - 179.6 76-0627 CDD - 179.6
Direitos adquiridos pelaEDITORA PAZ E TERRA S/A
Rua do Triunfo, 17701212 - So Paulo, SPTel. (011) 223-6522
Rua So Jos, 90 - 11? andar20010 - Rio de Janeiro, RJ
tel. (021) 221-4066
que se reserva a propriedade desta traduo.PARA REN
Conselho EditorialAntonio Candido
Fernando GasparianFernando Henrique Cardoso
1992Impresso no Brasl/Printed in Brazil
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Sumario
1 - Ser e Coragem .............................................................................................. 5
CORAGEM E BRAVURA: DE PLATO A TOMS DE AQUINO .................................................................6CORAGEM E SABEDORIA: OS ESTICOS............................................................................................. 11CORAGEM E AUTO-AFIRMAO: SPINOZA ........................................................................................ 17CORAGEM E VIDA: NIETZSCHE...........................................................................................................22
2 - Ser, No-Ser e Ansiedade.............................................................................. 28
UMA ONTOLOGIA DA ANSIEDADE .....................................................................................................28O Significado do No-Ser.........................................................................................................28A Interdependncia de Medo e Ansiedade .............................................................................31
TIPOS DE ANSIEDADE......................................................................................................................... 33Os Trs Tipos de Ansiedade e a Natureza do Homem ............................................................. 34A Ansiedade do Destino e da Morte........................................................................................ 35A Ansiedade da Vacuidade e Insignificao.............................................................................38A Ansiedade da Culpa e Condenao ...................................................................................... 42O Significado do Desespero.....................................................................................................44
PERODOS DE ANSIEDADE..................................................................................................................46
3 - Ansiedade Patolgica, Vitalidade e Coragem .................................................. 51
A NATUREZA DA ANSIEDADE PATOLGICA ....................................................................................... 51ANSIEDADE, RELIGIO E MEDICINA ...................................................................................................55VITALIDADE E CORAGEM ...................................................................................................................61
4 - Coragem e Participao (A Coragem de Ser como uma Parte) ......................... 67
SER, INDIVIDUALIZAO E PARTICIPAO......................................................................................... 67MANIFESTAES COLETIVISTAS E SEMICOLETIVISTASDA CORAGEM DE SER COMO UMA PARTE........................................................................................ 70MANIFESTAES NEOCOLETIVISTAS DA CORAGEM DE SER COMO UMA PARTE .............................. 75A CORAGEM DE SER COMO UMA PARTE NO CONFORMISMO DEMOCRTICO .................................79
5 - Coragem e Individualizao (A Coragem de Ser Como Si Prprio)..................... 87
A ASCENSO DO INDIVIDUALISMO MODERNO E A CORAGEM DE SER COMO SI PRPRIO ...............87AS FORMAS ROMNTICAS E NATURALSTICAS DA CORAGEM DE SER COMO SI PRPRIO ................90FORMAS EXISTENCIALISTAS DA CORAGEM DE SER COMO SI PRPRIO .............................................94
A Atitude Existencial e Existencialismo.................................................................................... 95O Ponto de Vista Existencialista .............................................................................................. 97O Abandono do Ponto de Vista Existencialista ...................................................................... 100Existencialismo como Revolta ............................................................................................... 103
O EXISTENCIALISMO HOJE E A CORAGEM DO DESESPRO .............................................................. 106Coragem e Desespero ........................................................................................................... 106
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A Coragem do Desespero na Arte e na Literatura Contemporneas ..................................... 108A Coragem do Desespero na Filosofia Contempornea ........................................................ 113Os Limites da Coragem de Ser como Si Prprio..................................................................... 115
6 - Coragem e Transcendncia (A Coragem de Aceitar a Aceitao) .................... 118
A POTNCIA DE SER COMO FONTE DA CORAGEM DE SER............................................................... 119A Experincia Mstica e a Coragem de Ser............................................................................. 119Encontro Divino-Humano e a Coragem de Ser ...................................................................... 122A Culpa e a Coragem de Aceitar a Aceitao ......................................................................... 124Destino e a Coragem de Aceitar a Aceitao ......................................................................... 127F Absoluta e Coragem de Ser............................................................................................... 130
A CORAGEM DE SER COMO A CHAVE DO SER-EM-SI ....................................................................... 135No-Ser Abrindo o Ser........................................................................................................... 135Tesmo Transcendente .......................................................................................................... 137O Deus Acima de Deus e a Coragem de Ser........................................................................... 140
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1 - Ser e Coragem
EM CONFORMIDADE com o estipulado pela Terry Foundation, de que
as conferncias tenham relao com "religio luz da cincia e da filosofia",
escolhi um conceito no qual convergem problemas teolgicos, sociolgicos
e filosficos, o conceito de "coragem". Poucos conceitos tm tanta utilidade
para a anlise da situao humana. Coragem uma realidade tica, mas se
enraza em toda a extenso da existncia humana e bsicamente na
estrutura do prprio ser. Deve ser considerada ontologicamente a fim de
ser entendida eticamente.
Isto se torna manifesto numa das primeiras discusses filosficas de
coragem, no dilogo de Plato, Laches. Vrias definies preliminares so
rejeitadas no curso do dilogo.
Ento Nikias, o conhecido general, tenta de novo. Sendo um lder
militar, deveria saber o que coragem e ser capaz de defini-la. Porem sua
definio, como as outras, mostra-se inadequada. Se coragem, tal como ele
afirma, o conhecimento de "o que deve ser temido e o que deve ser
enfrentado" ento a questo tende a se tornar universal, porque a fim de
respond-la deve-se ter "um conhecimento referente a todo o bem e todo
o mal, sob todas as circunstncias" (199, C). Mas esta definio contradiz o
que fora estabelecido a priori, de que coragem apenas uma parte da
virtude. "Assim sendo", Scrates conclui, "falhamos em descobrir o que
coragem realmente" (199, E). E este fracasso muito serio dentro da
estrutura do pensamento socrtico. Segundo Scrates, virtude
conhecimento, e a ignorncia sobre o que coragem torna impossvel
qualquer ao em concordncia com a verdadeira natureza da coragem.
Porem este fracasso socrtico mais importante do que a maior parte das
definies aparentemente bem sucedidas de coragem (mesmo as do
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prprio Plato e de Aristteles). Porque o fracasso em encontrar uma
definio de coragem como uma virtude entre outras virtudes revela um
problema bsico da existncia humana. Mostra que uma compreenso de
coragem pressupe uma compreenso do homem e de seu mundo, suas
estruturas e valores. S quem sabe isto sabe o que afirmar e o que negar. A
questo tica da natureza da coragem conduz de forma inevitvel
questo ontolgica da natureza do ser. E o procedimento pode ser
invertido. A questo ontolgica do ser pode ser colocada como a questo
tica da natureza da coragem. Coragem pede mostrar-nos o que o ser.
Por conseguinte o primeiro captulo deste livro versa sobre "Ser e
Coragem". Embora no haja chance de que eu obtenha xito onde Scrates
fracassou, a coragem de arriscar um quase inevitvel fracasso pode ajudar a
manter vivo o problema socrtico.
CORAGEM E BRAVURA: DE PLATO A TOMS DE AQUINO
O ttulo deste livro, A Coragem de Ser, rene ambos os significados
do conceito de coragem, o tico e o ontolgico.
Coragem como um ato humano, como matria de avaliao, um
conceito tico. Coragem como a auto-afirmao do ser de algum um
conceito ontolgico. A coragem do ser o ato tico no qual o homem
afirma seu prprio ser a despeito daqueles elementos de sua existncia que
entram em conflito com sua auto-afirmao essencial.
Examinando a histrica do pensamento ocidental encontram-se os
dois significados de coragem indicados por quase toda parte, explcita e
implicitamente. Uma vez que trataremos em captulos separados, das idias
esticas e neo-esticas de coragem, restringir-me-ei aqui interpretao de
coragem na linha de pensamento que conduz de Plato a Toms de Aquino.
Na Repblica de Plato coragem se relaciona com aquele elemento da alma
que chamado thyms (o elemento animoso, corajoso), e ambos se
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relacionam com aquela camada da sociedade que chamada phylakes
(guardies). Thyms fica entre o elemento intelectual e sensual do homem.
o esforo no pensado em prol do que nobre. Tendo uma posio
central na estrutura da alma, constri uma ponte por sobre a fenda entre
razo e desejo. Pelo menos poderia fazer tal. Realmente, a tendncia
principal do pensamento platnico e a tradio da escola de Plato eram
dualsticas, enfatizando o conflito entre o racional e o sensual. A ponte no
foi usada. J muito mais tarde, como em Descartes e Kant, a eliminao do
"meio" do ser humano (o thymoeids) teve conseqncias ticas e
ontolgicas. Foi responsvel pelo rigor moral de Kant e pela diviso
cartesiana do ser em pensamento e extenso. bem conhecido o contexto
sociolgico no qual ocorreu esta transformao. Os phylakes platnicos so
a aristocracia armada, os representantes do que nobre e gracioso. Dentre
eles surgem os portadores do saber, acrescentando saber coragem. Mas
esta aristocracia e seus valores se desintegraram. O mundo antigo mais
recente, tal a moderna burguesia, perdeu-os; em seu lugar aparecem os
portadores da razo esclarecida e tecnicamente organizada e massas
dirigidas. Porem deve-se notar que o prprio Plato via o thymoeids como
uma funo essencial do ser humano, um valor tico e uma qualidade
sociolgica.
O elemento aristocrtico na doutrina da coragem foi preservado,
tanto como restringido, na doutrina de Aristteles. O motivo para enfrentar
dor e morte com coragem , segundo ele, o fato de ser nobre agir assim e
vil no o fazer (Nc. Eth. 111.9). O homem corajoso age "em prol do que
nobre, porque esse o alvo da virtude" (III.7). "Nobre", nesta e em outras
passagens, a traduo de kals e "vil" a traduo de aischrs, palavras que
usualmente so traduzidas como "belo" e "feio". Um feito belo, ou nobre,
um feito para ser louvado. A coragem faz aquilo que para ser louvado e
rejeita o que para ser desprezado. Louva-se o que em um ser realiza suas
potencialidades ou atualiza suas perfeies. Coragem a afirmao da
natureza essencial de uma pessoa, o alvo ntimo de algum, ou entelquia,
Porem uma afirmao que tem em si prpria o carter de "apesar de".
Inclui o sacrifcio possvel e, em certos casos, inevitvel, de elementos que
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tambm pertencem a nosso ser, mas que, se no sacrificados, impedir-nos-
iam de atingir nossa realizao. Este sacrifcio pode incluir prazer,
felicidade, e mesmo a prpria existncia. louvvel em qualquer caso,
porque no ato de coragem a parte mais essencial de nosso ser prevalece
sobre a menos essencial. O fato de o bom e o belo se realizarem nela
constitu a beleza e a bondade da coragem. Portanto ela nobre.
A perfeio para Aristteles (bem como para Plato) se realiza em
graus, naturais, pessoais e sociais; e coragem, como a afirmao do ser
essencial de uma pessoa, mais destacada em alguns destes graus do que
em outros. Uma vez que a suprema prova de coragem o estar pronto para
fazer o supremo sacrifcio, o sacrifcio da prpria vida, e uma vez que o
soldado, por sua profisso, deve estar sempre pronto para este sacrifcio, a
coragem do soldado era, e de certa forma permaneceu, o exemplo padro
de coragem. A palavra grega andreia (virilidade) e o vocbulo latino
fortitudo (fora) indicam as conotaes militares de coragem, Enquanto a
aristocracia constituiu o grupo que empunhava as armas, as conotaes
aristocrticas e militares de coragem se fundiam. Quando a tradio
aristocrtica se desintegrou, e coragem pode ser definida como
conhecimento universal do que bom e mau, sabedoria e coragem se
fundiram, e a verdadeira coragem tornou-se distinta da coragem do
soldado. A coragem de Scrates moribundo era racional-democrtica, no
herica-aristocrtica.
Porem a linha aristocrtica reviveu nos primeiros tempos da Idade
Mdia. Coragem tornou-se de novo caracterstica de nobreza, O cavaleiro
quem representa a coragem, como um soldado e como um nobre. Ele
possua o que se chamava hohe Mut, o elevado, nobre e corajoso esprito. A
lngua alem tem dois vocbulos para corajoso, tapfer e mutig. Tapfer
originalmente significa firme, pondervel, importante, apontando para o
poder decorrente de estar nas camadas superiores da sociedade feudal.
Mutig derivado de Mut, o movimento da alma sugerido pela palavra
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inglesa "mood"1. Assim palavras como Schwermut, Hochmut, Kleinmut (o
penoso, o elevado, o pequeno "esprito"). Mut diz respeito ao "corao", o
nucleo pessoal. Assim sendo mutig pode ser substitudo por behertzt (como
a franco-nglsa courage se deriva do francs coeur, corao)2. Enquanto
Mut manteve este sentido mais lato, Tapferkeit tornou-se mais e mais a
virtude especfica do soldado que deixou de ser idntico ao cavaleiro e
ao nobre. bvio que os termos Mut e coragem introduzem diretamente a
questo ontolgica, enquanto Tapferkeit e bravura, em seus significados
atuais, no possuem tais conotaes. O ttulo destas conferncias no
poderia ter sido "A Bravura de Ser" (Die Tapferkeit zum Sein); teria que
indicar "A Coragem de Ser" (Der Mut zum Sein). Estas observaes
lingsticas revelam a situao medieval, no referente ao conceito de
coragem, e com isto a tenso entre a tica herico-aristocrtica da baixa
Idade Mdia de um lado, e de outro a tica racional-democrtica, que a
herana da tradio cristo-humanstica e que mais uma vez se torna
proeminente no fim da Idade Mdia.
Esta situao expressiva de maneira clssica na doutrina da
coragem de Toms de Aquino. Toms constata e discute a dualidade no
significado de coragem. Coragem fora de nimo, capaz de dominar o que
quer que ameace a obteno do mais elevado bem. Est unida sabedoria,
a virtude que representa a unio das quatro virtudes cardiais (sendo as
outras duas temperana e justia). Uma anlise perspicaz mostraria que as
quatro no so do mesmo porte. Coragem, unida sabedoria, inclui
temperana em relao a si prprio, bem como justia em relao aos
outros. A questo ento saber qual, coragem ou sabedoria, a virtude
mais ampla. A resposta depende do resultado da famosa discusso sobre a
prioridade do intelecto ou d vontade na essncia do ser, e, por
conseqncia, na personalidade humana. Uma vez que Toms decide de
forma no ambgua pelo intelecto, como uma conseqncia necessria
1 Mood estado d'alma. (N. do T.)
2 A etimologia de "coragem", em portugus, semelhante, vem do latim
cor, cordis corao. (N. do T.)
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subordina a coragem sabedoria. Uma deciso pela prioridade da vontade
importaria em uma maior, seno em uma total, independncia da coragem
em sua relao com a sabedoria. A diferena entre as duas linhas de
pensamentos decisiva para a avaliao da "coragem aventurosa" (em
termos religiosos, o "risco da f"). Sob a predominncia da sabedoria,
coragem essencialmente a "fora da mente" que obedece aos ditames da
razo (ou revelao) possvel, enquanto a coragem aventurosa participa na
criao da sabedoria. O perigo bvio da primeira posio a estagnao
estril, como encontramos em uma boa parte do pensamento catlico e de
alguns racionalistas, enquanto que o igualmente bvio perigo da segunda
posio a obstinao sem propsito, como encontramos em alguns
protestantes e muitos pensadores existencialistas.
Contudo Toms tambm defende o significado mais limitado de
coragem (a que ele sempre chama de fortitudo) como uma virtude ao lado
de outras. Em geral nestas discusses ele apresenta a coragem do soldado
como o exemplo padro da coragem no sentido restrito. Isto corresponde
tendncia geral de Toms em combinar a estrutura aristocrtica da
sociedade medieval com os elementos universalistas do cristianismo e
humanismo.
A coragem perfeita , segundo Toms, um dom do Esprito Santo.
Atravs do Esprito a fora natural da mente se eleva a sua perfeio
supranatural. Isto, por conseguinte, significa que ela est unida s virtudes
especificamente crists, f, esperana e amor. Desta forma visvel um
desenvolvimento no qual o lado ontolgico da coragem incorporado f
(incluindo esperana), enquanto o lado tico incorporado caridade ou o
princpio da tica. A incorporao da coragem na f, em especial na medida
em que implica a esperana, apareceu um pouco mais cedo, por exemplo,
na doutrina de Ambrsio referente coragem. Ele segue a tradio antiga
quando considera fortitudo uma "virtude mais sublime do que o resto",
embora nunca aparea sozinha. A coragem ouve a razo e leva a cabo a
inteno da mente. a fora da alma para conquistar a vitria em perigo
extremo, como aqueles mrtires do Antigo Testamento enumerados em
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Hebreus II. Coragem d consolao, pacincia e experincia, e torna-se
indistinguvel da f e da esperana.
A luz desta evoluo pode ver que cada tentativa em definir coragem
confrontada com estas alternativas: ou usar coragem como o nome de
uma virtude entre outras, fundindo o sentido mais lato da palavra com f e
esperana, ou preservar o sentido mais lato e interpretar a f por meio de
uma anlise da coragem. Este livro segue a segunda alternativa, em parte
porque eu creio que "f" necessita tal reinterpretao mais do que
qualquer outro termo religioso.
CORAGEM E SABEDORIA: OS ESTICOS
O conceito mais lato de coragem, que inclui um elemento tico e
ontolgico, torna-se imensamente efetivo ao final do mundo antigo e no
inicio do moderno, no estoicismo e no neo-estoicismo. Ambas so escolas
filosoficas ao lado de outras, porem ambas so ao mesmo tempo mais do
que escolas filosficas. So o meio pelo qual algumas das mais nobres
figuras da antiguidade mais recente, e seus seguidores nos tempos
modernos, responderam ao problema da existncia e superaram as
ansiedades do destino e da morte. Estoicismo neste sentido uma atitude
religiosa bsica, quer aparea nas formas testica, atestica ou transtestica.
Portanto, a nica alternativa real para o cristianismo no mundo
ocidental. Esta uma declarao surpreendente, tendo em vista o fato de
que foi com o gnosticismo e o neo-platonismo que o cristianismo teve que
lutar no terreno religioso-filosfico, e que foi ao Imprio Romano que teve
que combater no terreno religioso-politico. Os esticos altamente cultos,
individualisticos, parecem ter sido, no s sem periculosidade para os
cristos, mas de fato desejosos de aceitar elementos do tesmo cristo. Mas
esta uma anlise superficial. O cristianismo tinha uma base comum com o
sincretismo religioso do Mundo Antigo, tal a idia da vinda de um ser divino
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para a salvao do mundo. Nos movimentos religiosos que se centralizavam
em torno desta idia, a ansiedade ante o destino e a morte era vencida pela
participao do homem no ser divino, que tomara o destino e a morte
sobre si mesmo. O cristianismo, embora aderindo a uma f similar, era
superior ao sincretismo pelo carter individual do Salvador Jesus Cristo e
por sua base concreto-histrica no Velho Testamento. Por conseguinte, o
cristianismo pde assimilar muitos elementos do sincretismo religioso-
filosfico do Mundo Antigo mais recente, sem perder seu fundamento
histrico; mas no pde assimilar a atitude estica genuna. Isto pode ser
notado, em especial, quando consideramos a tremenda influncia da
doutrina estica do Logos e da lei da moral natural na tica e na dogmtica
crist. Porem esta ampla aceitao das idias esticas no pde vencer o
vo entre a aceitao da resignao csmica no estoicismo e a f na
salvao csmica no cristianismo. A vitria da Igreja Crist levou o
estoicismo a uma obscuridade da qual ele s emergiu nos incios do perodo
moderno. Nem era o Imprio Romano uma alternativa para o Cristianismo.
Aqui de novo de se notar que entre os imperadores havia no s os
tiranos obstinados do tipo de Nero ou os fanticos reacionrios do tipo de
Juliano, que se constituam um srio perigo para o Cristianismo, mas os
virtuosos esticos do tipo de Marco Aurlio. A razo disto era o fato de o
estico ter uma coragem social e pessoal que constitui uma alternativa real
coragem crist.
A coragem estica no uma inveno dos filsofos esticos. Eles lhe
deram uma expresso clssica em termos racionais; mas suas razes
remontam a histrias mitolgicas, lendas de feitos hericos, palavras de
sabedoria primitiva, poesia e tragdia, e a duas centrias de filosofia,
precedendo o surgimento do estoicismo. Um acontecimento em especial
deu coragem dos esticos poder duradouro, a morte de Scrates. Ela
tornou-se, para todo o Mundo Antigo, ao mesmo tempo um fato e um
smbolo. Mostrou a situao humana em face do destino e da morte.
Mostrou uma coragem que pode assegurar a vida porque pode assegurar a
morte. E trouxe uma profunda mudana para o conceito tradicional de
coragem. Em Scrates a coragem herica do passado foi mudada em
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racional e universal. Foi criada uma idia democrtica de coragem em
oposio idia aristocrtica. A bravura ao feitio do soldado foi
transcendida pela coragem da sabedoria. Desta maneira deu "consolao
filosfica" a muita gente, em toda as partes do Mundo Antigo, durante um
perodo de catstrofes e transformaes.
A descrio de coragem estica, por um homem como Sneca,
mostra a nterdependnca do medo da morte e do medo da vida, bem
como a interdependncia da coragem de morrer e da coragem de viver.
Aponta para aqueles que "no querem viver e no sabem morrer". Fala de
uma libido moriendi, o termo latino exato para o "instinto de morte" de
Freud. Conta de gente que sente a vida como sem significado e suprflua e
que, como no livro do Eclesiastes diz: "Eu no posso fazer nada de novo, eu
no vejo nada de novo!" Isto, segundo Sneca, uma conseqncia da
aceitao do princpio do prazer ou, como ele o chama, antecipando uma
expresso americana recente, a atitude de "tempo, divertido", a qual ele
encontra em especial na gerao mais jovem. Tal como em Freud, o instinto
da morte o lado negativo dos sempre insatisfeitos esforos da libido,
assim, segundo Sneca, a aceitao do princpio do prazer necessariamente
conduz ao desgosto e desespero a respeito da vida. Porem Sneca sabia (tal
Freud) que a inabilidade em afirmar a vida no implica em habilidade em
afirmar a morte. A ansiedade ante o destino e a morte controla as vidas
mesmo daqueles que perderam a vontade de viver. Isto mostra que a
recomendao estica de suicidio dirige no aos que foram vencidos pela
vida, mas aqueles que dominaram a vida, e so capazes, ao mesmo tempo,
de viver e morrer, e podem escolher livremente entre as duas alternativas.
Suicidio, como fuga ditada pelo medo, contradiz a coragem estica de ser.
A coragem estica no sentido ontolgico bem como no moral,
"coragem de ser". Baseia-se no controle da razo no homem. Mas razo
no , nem na antiga nem na nova terminologia estica, o mesmo que na
contempornea. Razo, no sentido estico, no poder de "raciocinar",
isto , de argumentar baseado na experincia e com os instrumentos da
lgica ordinria ou da matemtica. Razo, para os esticos, o Logos, a
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estrutura significante da realidade como um todo e da mente humana em
particular. "Se no h", diz Sneca, "outro atributo que pertena ao homem
como homem exceto razo, ento a razo ser seu nico bem, valendo
todo o resto tomado em conjunto." Isto significa que razo a verdade do
homem ou natureza essencial, em comparao com o que tudo o mais
acidental. A coragem de ser a coragem de afirmar a nossa prpria
natureza por sobre o que acidental em ns. bvio que razo, neste
sentido, diz respeito pessoa em seu nucleo e inclui todas as funes
mentais. O raciocinio, como uma funo cognitiva limitada, destacado do
nucleo pessoal, jamais poderia criar coragem. No se pode remover
ansiedade argumentando contra ela. Esta no uma recente descoberta
psicanalitica; os esticos, ao glorificarem a razo, o sabiam bem. Sabiam
que a ansiedade pode ser superada somente pelo poder da razo universal
que prevalece, no homem sbio, sobre desejos e temores. A coragem
estica pressupe a rendio do ncleo pessoal ao Logos do ser; a
participao no poder divino da razo, transcendendo o reino das paixes e
ansiedades. A coragem de ser a coragem de afirmar nossa prpria
natureza racional, a despeito de tudo em ns que conflita com sua unio
com a natureza racional do prprio ser.
O que conflita com a coragem da sabedoria so desejos e medos. Os
esticos desenvolveram uma profunda doutrina de ansiedade que tambm
nos lembra anlises recentes. Descobriram que o objeto do medo o
prprio medo. "Nada", diz Sneca, " terrvel nas coisas exceto o prprio
medo." E Epciteto diz: "Porque no a morte, ou a privao, que uma
coisa terrvel, mas o medo da morte e da privao." Nossa ansiedade coloca
mscaras assustadoras sobre todos os homens e coisas. Se ns os despimos
destas mscaras aparecem suas prprias fisionomias e o medo que eles
causam desaparece. Isto verdade mesmo em relao morte. Uma vez
que cada dia um pouco de nossa vida nos tirada uma vez que estamos
morrendo cada dia hora final, quando cessamos de existir, no traz, em si,
a morte; to-s completa o processo de morte. Os horrores relacionados
com ela dizem respeito imaginao. Desaparecem quando se tira a
mscara da imagem da morte.
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Nossos desejos incontrolados que criam mscaras e as colocam em
homens e coisas. A teoria freudiana da libido antecipada por Sneca,
Porem num contexto mais amplo. Ele distingue entre desejos naturais, que
so limitados, e aqueles que brotam de falsas opinies e so ilimitados.
Desejo como tal ilimitado. Em naturezas no distorcidas limitado por
necessidades objetivas e , portanto, capaz de satisfao. Porem a
imaginao distorcida do homem transcende as necessidades objetivas
("Quando perdido seus desvios so ilimitados") e com elas nenhuma
satisfao possvel. E isto, no desejo como tal, produz uma "tendncia
insensata (inconsulta) para a morte".
A afirmao do ser essencial de algum, a despeito de desejos e
ansiedades, cria a alegria. Luclio exortado por Sneca a fazer sua
ocupao, o "aprender como sentir a alegria". No alegria de desejos
satisfeitos que ele se refere, porque a alegria real "assunto srio"; a
felicidade de uma alma que "elevada acima de todas as circunstncias". A
alegria acompanha a auto-afirmao de nosso ser essencial, a despeito das
inibies provocadas em ns pelos elementos acidentais. Alegria a
expresso emocional de corajoso Sim ao verdadeiro ser prprio de uma
pessoa. Esta combinao de coragem e alegria mostra mais claramente o
carter ontolgico da coragem. Se a coragem interpretada sozinha, em
termos ticos, sua relao com a alegria da auto-realizao permanece
escondida. No ato ontolgico da auto-afirmao do ser essencial de uma
pessoa, coragem e alegria coincidem. A coragem estica no nem
atestica, nem testica, no sentido tcnico destas palavras. O problema de
como a coragem se relaciona com a idia de Deus formulado e
respondido pelos esticos. Mas respondido de tal forma que a resposta
cria mais perguntas do que responde, um fato que mostra a seriedade
existencial da doutrina estica da coragem. Sneca estabelece trs pontos a
respeito da relao da coragem da sabedoria com a religio. O primeiro
ponto : "no perturbados pelos temores e no estragados pelos prazeres,
no temeremos nem a morte nem os deuses". Nesta frase os deuses
significam o destino. Eles so os poderes que determinam o destino e
representam a ameaa do destino. A coragem, que vence a ansiedade do
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destino, tambm domina a ansiedade entre os deuses. Afirmando sua
participao na razo universal, o homem sbio transcende o domnio dos
deuses. A coragem de ser transcende o poder politestico do destino. O
segundo ponto que a alma do homem sbio similar a Deus. O Deus
indicado aqui o divino Logos, em unio com quem a coragem da
sabedoria vence o destino e transcende os deuses. o "Deus acima de
deus". O terceiro ponto ilustra a diferena entre a idia da resignao
csmica e a idia da salvao csmica em termos testicos. Sneca diz que
enquanto Deus est alm do sofrimento, o verdadeiro estico est acima
dele. Isto implica em que o sofrimento contradiz a natureza de Deus. -lhe
impossvel sofrer, est alm do mesmo. O estico, como um ser humano,
capaz de sofrer. Porem no precisa deixar o sofrimento dominar o ncleo
de seu ser racional. Pode manter a si prprio acima dele, porque a
conseqncia daquilo que no seu ser essencial, mas nele acidental. A
distino entre "alm" e "acima" implica um julgamento de valor. O homem
sbio que corajosamente vence desejo, sofrimento e ansiedade "ultrapassa
o prprio Deus".
Ele est acima de Deus, que por sua perfeio, natural e
invulnerabilidade est alm de tudo isto. Tomando por base tal avaliao, a
coragem da sabedoria e resignao poderia ser substituda pela coragem da
f na salvao, isto , pela f num Deus que paradoxalmente participa do
sofrimento humano. Mas o estoicismo em si no pde jamais dar este
passo. O estoicismo alcana seus limites sempre que se formula a questo:
como possvel a coragem da sabedoria? Embora os esticos enfatizassem
que todos os seres humanos eram iguais pelo fato de participarem do Logos
universal, no podiam negar que a sabedoria possesso s de uma elite
infinitamente pequena. As massas do povo, eles tinham cincia, so
"loucas", na servido de desejos e medos. Embora participando do Logos
divino com sua natureza essencial ou racional, a maior parte dos seres
humanos est num estado de verdadeiro conflito com sua prpria
racionalidade e, portanto, incapaz de afirmar seu ser essencial
corajosamente.
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Era impossvel para os esticos interpretar esta situao que eles no
podiam negar. E no era s a predominncia dos "loucos" entre as massas
que eles no explicavam. Algo nos prprios homens sbios os colocava ante
um difcil problema. Sneca diz que nenhuma coragem to grande como a
nascida do desespero mais profundo. Mas, pergunta-se, conheceu o
estico, como estico, o "desespero mais profundo?" Pode ele alcan-lo
dentro da estrutura de sua filosofia? Ou algo ausente de seu desespero e,
em conseqncia, de sua coragem? O estico, como estico, no
experimenta a desesperao da culpa pessoal. Epcteto cita como exemplo
as palavras de Scrates no Memorabilia de Scrates por Xenofonte: "Eu
mantive aquilo que est sob meu controle" e "jamais fiz nada que fosse
errado em minha vida privada ou pblica." E o prprio Epcteto afirma que
aprendeu a no se preocupar com nada que seja fora dos limites de seu
desgnio moral. Porem, mais reveladora do que estas afirmativas, a
atitude geral de superioridade e complacncia que caracteriza as diatribai
esticas, suas oraes morais e acusaes pblicas. O estico no pode
dizer, tal Hamlet, que "conscincia faz covardes todos ns-. Ele no v a
queda universal da racionalidade essencial para a loucura existencial como
sendo matria de responsabilidade e um problema de culpa. A coragem de
ser, para ele, a coragem de nos afirmarmos a despeito do destino e da
morte, mas no a coragem de nos afirmarmos a despeito do pecado e da
culpa. No poderia ter sido diferente: porque a coragem de enfrentar a
prpria culpa conduz questo da salvao, ao invs da renncia.
CORAGEM E AUTO-AFIRMAO: SPINOZA
O estoicismo recuou para segundo plano quando a f na salvao
csmica substituiu a coragem da renncia csmica. Mas retornou quando o
sistema medieval, que era dominado pelo problema da salvao, comeou
a se desintegrar. E tornou-se decisivo de novo para uma elite intelectual
que rejeitava o caminho da salvao, sem contudo substitui-lo pelo
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caminho estico da renncia. Em razo do impacto do mundo ocidental, o
renascimento das antigas escolas de pensamento, no incio da poca
moderna, foi no s um renascimento mas tambm uma transformao.
Isto vlido para o renascimento do platonismo tanto como para o
ceticismo e estoicismo; vlido para a renovao das artes, da literatura,
das teorias de Estado, e da filosofia da religio. Em todos estes casos o
negativismo do sentimento antigo transformado no positivismo das idias
crists de criao e encarnao, mesmo quando tais idias so ou
ignoradas, ou negadas. A substncia espiritual do humanismo renascentista
era crist, como a substncia espiritual do antigo humanismo era pag, a
despeito da crtica das religies pags, pelo humanismo grego, e do
cristianismo, pelo humanismo moderno. A diferena decisiva entre ambos
os tipos de humanismo a resposta pergunta de se o ser
essencialmente bom ou no. Enquanto o smbolo da criao implica na
doutrina crist clssica de que "o ser como ser bom" (esse qua esse
bonum est), a doutrina da "matria resistente", na filosofia grega, expressa
o sentimento pago de que o ser necessriamente ambguo to longe
quanto participa de ambas, forma criativa e matria inibidora. Este
contraste na concepo ontolgica bsica tem conseqncias decisivas.
Enquanto, na antiguidade mais prxima, as vrias formas de dualismo
metafsico e religioso esto ligadas ao ideal asctico a negao da
matriao renascimento da antiguidade, no perodo moderno, substitui
ascetismo por modelagem ativa do reino material. E enquanto, no mundo
antigo, o sentimento trgico da existncia dominava pensamento e vida,
em especial a atitude em relao histria, a Renascena deu incio a um
movimento que estava olhando para o futuro e para o que havia de criativo
e novo nele. A esperana submeteu o sentimento de tragdia, e a crena no
progresso, a resignao ante a repetio circular. Uma terceira
conseqncia da diferena ontolgica bsica o contraste na avaliao do
indivduo por parte do antigo e moderno humanismo. Enquanto o mundo
antigo avaliava o indivduo no como um indivduo, mas como uma
expresso de algo universal, por exemplo, uma virtude, o renascimento da
antiguidade via no indivduo, como indivduo, uma expresso singular do
universo, incomparvel, insubstituvel, e de infinita significao.
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bvio que estas controvrsias criaram diferenas decisivas na
interpretao da coragem. No ao contraste entre renncia e salvao
que me refiro agora. O humanismo moderno permanece humanismo,
rejeitando a idia de salvao. Porem o humanismo moderno tambm
rejeita a renncia. Ele a substitui por uma espcie de auto-afirmao que
transcende a dos esticos, porque inclui a existncia material, histrica e
individual. Contudo, h tantos pontos em que este humanismo moderno
idntico ao antigo estoicismo que pode ser chamado neo-estoicismo,
Spinoza seu representante. Nele, como em ningum, est elaborada a
ontologia da coragem. Chamando sua principal obra ontolgica tica
indicou, no prprio titulo sua inteno de mostrar a base ontolgica da
existncia tica do homem, incluindo a coragem humana de ser. Porem,
para Spinoza como para os esticos a coragem de ser uma coisa entre
outras. uma expresso do ato essencial de tudo que participa do ser, a
saber, auto-afrmao. A doutrina de auto-afirmao um elemento
central no pensamento de Spinoza. Seu carter decisivo torna-se manifesto
numa proposio como esta: "O esforo, com que tudo se empenha em
persistir em seu prprio ser, nada mais do que a essncia verdadeira da
coisa em questo" (tica III prop. 7)3. A palavra latina para esforo
conatus, o empenho por algo. ste empenho no um aspecto contingente
de uma coisa, nem ele um elemento em seu ser entre outros elementos;
sua essentia actualis. O conatus faz uma cosa parecer o que ela , de
forma que se ele desaparece, a coisa mesma desaparece (tica II, Ref.2).
Empenhar-se pela auto-afirmao faz uma coisa ser o que ela . Spinoza
chama este esforo, que a essncia de uma coisa, tambm sua potncia, e
diz da mente, que ela afirma ou prope (affirmat sive ponit) sua prpria
potncia de ao (ipsuis agendi potentiam) (III, prop. 54). Assim ns temos
a identificao da essncia real, potncia de ser e auto-afirmao. E
seguem-se mais identificaes. A potncia de ser se identifica com virtude,
e virtude, por conseqncia, com natureza essencial. Virtude o poder de
agir, exclusivamente de acordo com nossa verdadeira natureza. E o grau de
3 Citado de The Chief Works of Benedict de Spinoza, trad. R.H.M. Elwes
(London, Bell and Sons, 1919).
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virtude o grau em que algum est se empenhando e capaz de afirmar
seu prprio ser. impossvel conceber qualquer virtude mais importante do
que o esforo em preservar o prprio ser (IV, prop. 22). Auto-afirmao ,
por assim ser, virtude totalmente. Porem auto-afirmao a afirmao de
nosso ser essencial, e o conhecimento do ser essencial de algum tem a
razo como intermediria, a potncia de algum em ter idias adequadas.
Portanto, agir incondicionalmente guiado pela virtude, o mesmo que agir
sob a orientao da razo, afirmar nosso ser essencial ou verdadeira
natureza (IV, prop. 24).
Nesta base explanada a relao entre coragem e auto-afirmao.
Spinoza (III, prop. 59) usa dois termos, fortitudo e animositas. Fortitudo
(como na terminologia escolstica), a fora da alma, seu poder de ser o
que essencialmente. Animositas, derivado de anima, alma, coragem no
sentido de uma ao total da pessoa. Sua definio esta: "Por coragem eu
quero dizer o desejo cupiditas com o qual cada homem se empenha em
preservar seu prprio ser, em concordncia to s com os ditames da
razo" (III, prop. 59). Esta definio conduziria a outra identificao, de
coragem com virtude em geral. Mas Spinoza distingue entre animositas e
generositas, o desejo de se ligar a outra gente pela amizade e apoio. Esta
dualidade de um conceito de coragem todo-abrangente e limitado tem
relao com o desenvolvimento total da idia de coragem qual nos
referimos. Numa filosofia sistemtica, com a exatido e consistncia da de
Spinoza, este um fato notvel, e mostra os dois motivos cognitivos que
sempre determinam a doutrina da coragem: o universalmente ontolgico e
o especificamente moral. Isto tem uma conseqncia muito significativa
para um dos mais difceis problemas ticos, a relao da auto-afirmao e
do amor aos outros. Para Spinoza, o ltimo uma implicao do primeiro.
Uma vez que virtude e auto-afirmao so idnticas, e urna vez que
"generosidade" o ato de sair de si para os outros num afeto benevolente,
no se pode pensar em conflito entre auto-afirmao e amor. Isto, claro,
pressupe que auto-afirmao no s distinta de, Porem precisamente o
oposto de "egosmo", no sentido de uma qualidade moral negativa. Auto-
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afirmao o oposto ontolgico da "reduo do ser" pelo que esta afeta e
contradiz a natureza essencial de uma pessoa. Erich Fromm expressou
cabalmente a idia de que o auto-amor correto e o amor correto pelos
outros so interdependentes, e que egosmo e o abuso dos outros so
igualmente interdependentes. A doutrina de auto-afirmao de Spinoza
inclui ambos, o auto-amor correto (embora ele no use o termo auto-amor,
que eu prprio hesito em usar) e o correto amor pelos outros.
Auto-afirmao, segundo Spinoza, , participao na auto-afirmao
divina. "O poder pelo qual cada coisa particular, e conseqentemente o
homem, preserva seu ser a potncia de Deus" (IV, prop. 4). A participao
da alma na potncia divina descrita em termos que incluem ambos,
conhecimento e amor. Se a alma se reconhece a si prpria sub acternitatis
specie, (V, prop. 30), reconhece seu ser em Deus. E este conhecimento de
Deus e de seu ser em Deus a causa da beatitude perfeita e, por
conseqncia, de um amor perfeito pela causa desta beatitude. Este amor
espiritual (intellectualis) porque eterno e portanto um afeto no sujeito s
paixes que tm conexo com a existncia corporal (V, prop. 34). Ele a
participao no amor espiritual infinito com o qual Deus contempla e ama a
si prprio, e, em amando a si prprio, tambm ama o que pertence a ele,
seres humanos. Estes raciocnios respondem a duas questes sobre a
natureza da coragem que tinham permanecido sem resposta. Explicam
porque auto-afirmao a natureza essencial de cada ser e como tal o mais
alto bem. Auto-afrmao perfeita no um ato isolado que se origina no
ser individual, mas sua participao no ato universal, ou divino, de auto-
afirmao, o qual o poder criador em cada ato individual. Nesta idia a
ontologia da coragem encontra sua expresso fundamental. E uma segunda
pergunta respondida, a do poder que torna possvel a dominao do
desejo e da ansiedade. Os esticos no possuam resposta para isto.
Spinoza, com raiz em seu misticismo judeu, responde com a idia de
participao. Ele sabe que um afeto s pode ser subjugado por outro afeto,
e que o nico afeto que pode suplantar os sentimentos de paixo o afeto
da mente, o amor intelectual, ou espiritual, da alma por sua prpria base
eterna. Este afeto uma expresso da participao da alma no auto-amor
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divino. A coragem de ser possvel porque ela participao na auto-
afirmao do ser-em-si.
Uma questo, contudo, permanece irrespondida, tanto por Spinoza
como pelos esticos. a questo formulada pelo prprio Spinoza ao fim de
sua tica. Por que, ele indaga, que o caminho da salvao (salus), que ele
mostrou, est sendo negligenciado por quase todos? Porque o mesmo
difcil, e portanto raro, como tudo que sublime, ele responde na
melanclica ltima frase de seu livro. Esta era tambm a resposta dos
esticos, Porem uma resposta no de salvao, mas de resignao.
CORAGEM E VIDA: NIETZSCHE
O conceito de Spinoza de autopreservao, tanto como nosso
conceito interpretativo "auto-afirmao", se tomado ontolgicamente,
coloca uma questo sria. O que significa auto-afirmao quando no h
eu, por exemplo no reino inorgnico ou na substncia infinita, no ser-em-si?
No um argumento contra o carter ontolgico de coragem o fato de ser
impossvel atribuir coragem a grandes sees da realidade e essncia de
toda realidade? No a coragem uma qualidade humana que s pode ser
atribuda, mesmo aos animais mais elevados, por sua analogia, mas no
propriamente? No decide isto a favor do entendimento moral de coragem,
em detrimento do ontolgico? Ao formular este argumento lembramo-nos
de argumentos similares contra a maior parte dos conceitos metafsicos na
histria do pensamento humano. Conceitos tais como alma do mundo,
microcosmos, instinto, vontade de potncia, e assim por diante, tm sido
acusados de introduzir subjetividade no reino objetivo das coisas. Porem
estas acusaes so enganos: esquecem o significado dos conceitos
ontolgicos. No funo de estes conceitos descreverem a natureza
ontolgica da realidade em termos do lado subjetivo ou objetivo de nossa
experincia ordinria. funo de um conceito ontolgico usar alguma
regio de experincia para assinalar as caractersticas do ser-em-si, que est
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acima da separao entre subjetividade e objetividade e que, portanto, no
podem ser expressar literalmente em termos tirados do lado subjetivo ou
objetivo. A ontologia fala de maneira anloga. O ser, como ser, transcende
tanto a objetividade como a subjetividade. Mas para poder estabelecer
contato com ele cognitivamente precisa-se usar ambos. E pode-se agir
assim porque ambas esto enraizadas naquilo que as transcende, no ser-
em-si. A luz desta considerao necessria aos conceitos ontolgicos para
serem interpretados. Eles devem ser entendidos no literal, mas
anlogamente. No quer isto dizer que tenham sido elaborados
arbitrriamente e possam, com facilidade, ser substitudos por outros
conceitos. Sua escolha diz respeito experincia e ao pensamento, e
objeto de critrios que determinam a adequao ou inadequao de cada
um deles. Isto vlido tambm para conceitos como auto-preservao ou
auto-afirmao, se tomados num sentido ontolgico. verdade em cada
captulo de uma ontologia da coragem.
Ambas, autopreservao e auto-afirmao, logicamente representam
a superao de algo que, pelo menos em potencial, trai ou nega o eu. No
h referncia a este "algo", nem no estoicismo ou neo-estoicismo, embora
ambos o pressuponham. No caso de Spinoza parece mesmo impossvel
considerar tal elemento negativo na estrutura de seu sistema. Se tudo
segue, por necessidade, a natureza da substncia eterna, nenhum ser teria
o poder de trair a autopreservao de outro ser. Tudo seria como , e auto-
afirmao se mostraria uma palavra exagerada para a simples identidade
de uma coisa consigo prpria. Mas esta no por certo a opinio de
Spinoza. .Ele fala de uma traio real e mesmo de sua experincia de que a
maior parte das pessoas sucumbe a esta traio. Fala de conatus, o esforo
em prol, e de potentia, a potncia de auto-realizao. Estas palavras, apesar
de no poderem ser tomadas ao p da letra, no devem contudo ser
desprezadas como faltas de significao. Devem ser tomadas
anlogamente. A partir de Plato e Aristteles, o conceito de potncia
desempenha um papel importante no pensamento ontolgico. Termos tais
como dynamis, potentia (Leibnitz) na qualidade de caracterizao da
verdadeira natureza do ser, preparam o caminho para a "vontade de
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potncia". Assim tambm o termo "vontade", usado para a realidade bsica
de Agostinho e Duns Scotus a Boehme, Schelling e Schopenhauer. A
vontade de potncia de Nietzsche une ambos os termos, e deve ser
entendida luz de seu significado ontolgico. Pode-se dizer,
paradoxalmente, que a vontade de potncia de Nietzsche no nem
vontade nem potncia, isto , nem vontade no sentido psicolgico, nem
potncia no sentido sociolgico. Designa a auto-afirmao da vida como
vida, incluindo autopresrvao e crescimento. Portanto, a vontade no se
esfora por algo que no tem, por algum objeto fora dela mesma, mas quer
a si prpria no duplo sentido de preservar e transcender a si prpria. este
seu poder, e tambm o poder sobre si prpria. Vontade de potncia a
auto-afirmao da vontade como realidade bsica.
Nietzsche o representante mais importante e efetivo do que
poderia ser chamado uma "filosofia da vida". Vida, neste termo, o
processo no qual a potncia do ser realiza a si prprio. Porem, em se
realizando, ele supera aquilo que na vida, embora pertencendo vida, a
nega. Pode-se cham-lo de a vontade que contradiz a vontade de potncia.
Em seu Zarathustra, no captulo chamado "Os Pregadores da Morte" (Pt. I,
cap. 9), Nietzsche assinala os diferentes meios pelos quais a vida tentada
a aceitar sua prpria negao: "Encontram um invlido, ou um ancio, ou
um defunto e dizem de imediato: 'a vida foi refutada!' Porem eles s-
mente so refutados, e seus olhos, que s vem um aspecto da
existncia."4 A vida tem aspectos vrios, ambgua. Nietzsche descreveu
sua ambigidade de forma mais tpica no ltimo fragmento da coleo de
fragmentos denominada Von fade de Potncia. Coragem a potncia da
vida em se afirmar a despeito desta ambigidade, enquanto que a negao
da vida, devido sua negatividade, uma expresso de covardia. Sobre estas
bases Nietzsche desenvolve uma profecia e filosofia de coragem, em
oposio mediocridade e decadncia da vida no perodo cujo incio ele
mesmo observou.
4 The Complete Works of Friedrich Nietzsche, ed. Oscar Levy (London, T. N.
Foulis, 1911), vol. II, trad. Thomas Conmon.
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Como os filsofos primitivos, em Zarathustra, Nietzsche considerou o
"guerreiro" (que ele distingue do mero soldado), um exemplo notvel de
coragem. "O que bom? vos pergunto. Ser bravo bom." (I, 10). No estar
interessado em longa vida, no querer ser poupado, e tudo isto justamente
devido ao amor vida. A morte do guerreiro, e do homem maduro, no
ser oprbrio para a terra (I, 21). Auto-afirmao a afirmao da vida e da
morte que pertence vida.
Para Nietzsche, como para Spinoza, virtude auto-afirmao. No
captulo sobre "O Virtuoso" Nietzsche escreve: " o teu mais caro Eu, tua
virtude. A sede da arena est em ti: para se alcanar de novo luta em cada
arena e volta a si" (II, 27). Esta analogia descreve melhor do que qualquer
definio o significado de auto-afirmao na filosofia da vida: O Eu tem a si
prprio, Porem ao mesmo tempo procura atingir-se. Aqui o conatus de
Spinoza torna-se dinmico, de forma que, falando em geral, pode-se dizer
que Nietzsche um renascimento de Spinoza em termos dinmicos: "Vida",
em Nietzsche substitui "substncia", em Spinoza. E isto vlido, no s para
Nietzsche, como para a maior parte dois filsofos da vida. A verdade da
virtude que o Eu est nela "e no uma coisa externa". Que teu Eu
verdadeiro esteja em tua ao, como a me esta no filho: "que isso seja tua
frmula de virtude!" (II, 27). Tanto quanto coragem a afirmao do Eu de
algum, tambm virtude. O eu cuja auto-afirmao virtude e coragem
o eu que se supera a si mesmo: "E este segredo falou a Vida mesmo para
mim, 'Observa', disse ela, 'eu sou a que deve sempre ultrapassar a si
prpria'." (II, 34). Colocando em itlico as ltimas palavras Nietzsche indica
que deseja dar uma definio da natureza essencial da vida. "... Eis pelo que
a Vida deve sacrificar-se pela potncia!" ele continua, e mostra nestas
palavras que para ele auto-afirmao inclui autonegao mas para a maior
afirmao possivel, a qual ele denomina "potncia": "A vida cria e a vida
ama o que criou Porem logo precisa voltar-se contra ele: assim o deseja
minha (da Vida) vontade." Portanto errado falar em "vontade de
existncia", ou mesmo em "vontade de vida"; deve-se falar de "vontade de
potncia", isto , de mais vida.
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A vida, querendo ultrapassar-se, a boa vida, e a boa vida a vida
corajosa. a vida da "alma poderosa" e do "corpo triunfante", cuja auto-
satisfao virtude. Uma tal alma bane "tudo que covarde, diz: mau
isso covarde" (III, 54). Porem, a fim de alcanar tal nobreza, necessrio
obedecer e comandar, e obedecer enquanto comanda. Esta obedincia,
que est incluida no comando, o oposto de submisso. A ltima a
covardia, que no se atreve a se arriscar. O eu submisso o oposto do eu
auto-afirmativo, mesmo se submetido a um Deus. Deseja escapar dor de
ferir e ser ferido. O eu obediente, ao contrrio, o eu que se comanda e "se
arrisca portanto" (II, 34) . Comandando a si prprio torna-se o prprio juiz e
a prpria vtima. Comanda a si prprio, de acordo com a lei da vida, a lei da
auto-transcendncia. A vontade que se comanda a vontade criadora. Faz
um todo de fragmentos e enigmas da vida. No olha para trs, est alm de
uma conscincia m, rejeita o "esprito de vingana" que a natureza mais
profunda da auto-acusao e da conscincia de culpa, transcende a
reconciliao, porque a vontade de potncia (II, 42) . Fazendo tudo isto o
eu corajoso est unido vida em si e em seu segredo (II, 34) .
Podemos concluir nossa discusso em torno da ontologia da coragem
de Nietzsche com a seguinte citao: "Tendes vs coragem, meus
irmos?... No a coragem ante testemunhas, mas a coragem do anacoreta e
da guia, que nem mesmo mais um Deus observa?... Ele tem corao que
conhece o medo mas o vence; que v o abismo, Porem com orgulho.
Aquele que v o abismo mas com olhos de guia aquele que com garras
de guia agarra o abismo: aquele tem coragem." (IV, 73, sec. 4).
Estas palavras revelam o outro lado de Nietzsche, o que nele o faz um
existencialista, a coragem de olhar para dentro do abismo do no-ser na
completa solido, daquele que aceita a mensagem de que "Deus est
morto". Sobre esta faceta teremos mais o que dizer nos captulos seguintes.
Aqui encerramos nosso retrospecto histrico, que no pretendeu ser
uma histria da idia de coragem. Teve duplo propsito. Tentou mostrar
que, na histria do pensamento ocidental, do Laches de Plato ao
Zarathustra de Nietzsche, o problema ontolgico da coragem permanece
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incompreensvel quando despido de seu carter ontolgico, em parte
porque a experincia da coragem mostrou ser uma chave decisiva para a
aproximao ontolgica da realidade. E, alm do mais, o retrospecto
histrico busca apresentar material conceitual para o tratamento
sistemtico do problema da coragem, acima de tudo, o conceito de auto-
afirmao ontolgica em seu carter bsico e suas diferentes
interpretaes.
Nota: As citaes de Nietzsche, no original em ingls, apresentam
termos arcaicos, correspondentes aos do original alemo, que julgamos
desnecessrio manter em portugus. (N. do T.)
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2 - Ser, No-Ser e Ansiedade
UMA ONTOLOGIA DA ANSIEDADE
O Significado do No-Ser
CORAGEM auto-afirmao "a-despeito-de", isto , a despeito
daquilo que tende a impedir o eu de se afirmar. Diferindo das doutrinas
estico-neo-esticas da coragem, as "filosofias da vida" trataram, de
maneira sria e afirmativa, daquilo contra o que a coragem se coloca. Pois
se o ser interpretado em termos de vida, ou processo, ou vir a ser, o no-
ser ontologicamente to fundamental quanto o ser. O conhecimento
deste fato no implica numa deciso a respeito da prioridade do ser sobre o
no-ser, mas exige que o no-ser seja considerado na base mesma da
ontologia. Ao falarmos da coragem como uma chave para a interpretao
do ser-em-si, pode-se dizer que esta chave, ao abrir a porta do ser,
encontra, ao mesmo tempo, o ser e a negao do ser, e a unidade deles.
No-ser um dos conceitos mais difceis e mais discutidos.
Parmnides tentou elimin-lo como conceito. Mas, agindo assim, tinha que
sacrificar a vida. Demcrito restabeleceu-o e identificou-o com o espao
vazio, a fim de tornar o movimento possvel. Plato usou o conceito do no-
ser porque sem ele o contraste da existncia com as simples essncias est
alm do entendimento. Est implcito na distino de Aristteles entre
matria e forma. Deu a Plotino os meios para descrever a perda do eu da
alma humana, e deu a Agostinho os meios para uma interpretao
ontolgica do pecado humano. Para Pseudo-Dionsio, o Aeropagita, o no-
ser tornou-se o princpio de sua doutrina mstica de Deus. Jacob Boehme, o
protestante mstico e filsofo da vida, fez o raciocinio classico de que todas
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as coisas esto enraizadas em um Sim e um No. Na doutrina de Leibnitz de
finidade e mal, bem como na anlise da finidade e das formas categricas, o
no-ser est implicado. A dialtica de Hegel faz da negao o poder
dinmico dentro da natureza e da histria; e os filsofos da vida, desde
Schelling e Schopenhauer, usam "vontade" como a categoria ontolgica
bsica porque tem o poder de negar a si mesma sem se perder. Os
conceitos de processo e vir a ser, em filsofos como Bergson e Whitehead,
implicam tanto no-ser como ser. Os existencialistas recentes, em especial
Heidegger e Sartre, tm posto o no-ser (Das Nichts, le nant) no centro de
seu pensamento ontolgico; e Berdiaev, um seguidor de Dionsio e
Boehme, desenvolveu uma ontologia de no-ser que leva em conta a
liberdade "eu-ntica" em Deus e no homem. Estes meios filosficos de usar
o conceito de no-ser podem ser observados contra o fundo da experincia
religiosa da transitoriedade de tudo que criado e o poder do "demonaco"
na alma humana e na histria. Na religio bblica, a despeito da doutrina da
criao, estas negatividades tm um lugar decisivo. E o princpio
demonaco, antidivino, que jamais participa do poder divino, aparece no
centro dramtico da histria bblica.
Levando em conta esta situao, de pouca importncia o fato de
alguns lgicos negarem o carter conceitual do no-ser e tentarem afast-lo
da cena filosfica, exceto sob a forma de julgamentos negativos. Porque a
questo : O que nos diz o fato dos julgamentos sobre o carter do ser?
Qual a condio ontolgica dos julgamentos negativos? Como o reino
constitudo no qual so possveis julgamentos negativos? Por certo no-ser
no um conceito como os outros. a negativa de todo conceito; Porem
como tal ele um contedo inevitvel do pensamento e, como o tem
mostrado a estaria do pensamento, o mais importante aps o ser-em-si.
Se se pergunta como o no-ser se relaciona com o serem-si, s pode
responder por metforas: ser "abarca" ele prprio e o no ser. O ser tem o
no-ser "dentro" de si mesmo, de modo que eternamente presente e
eternamente superado no processo de vida divina. A base de tudo que
no uma identidade morta, sem movimento e vir a ser; uma criatividade
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vivente. Ele se afirma criadoramente, conquistando eternamente seu
prprio no-ser. Como tal o modelo da auto-afirmao de cada ser finito e
a fonte de coragem do ser. .
Coragem usualmente descrita como o poder da mente para vencer
o medo. O significado de medo pareceu por demais bvio para merecer
inqurito. Porem, nas ltimas dcadas, a psicologia profunda, em
cooperao com a filosofia existencialista, tem conduzido a uma decisiva
distino entre medo e ansiedade, e a definies mais precisas de cada um
destes conceitos. Anlises sociolgicas do perodo atual assinalam a
importncia da ansiedade como fenmeno de grupo. Literatura e arte
fazem da ansiedade um problema principal de suas criaes, tanto no
contedo como no estilo. O efeito disto tem sido o despertar dos grupos
educados, ao menos para a conscientizao de sua prpria ansiedade, e a
infiltrao, na conscincia pblica, de idias e smbolos de ansiedade. Hoje
j quase um truismo chamar nosso tempo "era da ansiedade". O que
expusemos vlido tanto para a Amrica como para a Europa.
No obstante, necessrio incluir uma ontologia da ansiedade numa
ontologia da coragem, porque so interdependentes. E possvel que, luz
de uma ontologia da coragem, tornem-se visveis alguns aspectos da
ansiedade. Esta a primeira assertiva sobre a natureza da coragem:
ansiedade o estado no qual um ser tem cincia de seu possvel no-ser. O
mesmo raciocnio, resumido, seria: ansiedade a conscincia existencial do
no-ser. "Existencial" nesta frase significa que no o conhecimento
abstrato de no-ser que produz ansiedade, mas a conscincia de que no-
ser uma parte do nosso prprio ser. No a certeza da transitoriedade
universal, nem mesmo a experincia da morte dos outros, Porem a
impresso de tais acontecimentos na sempre latente conscincia de nosso
prprio "ter de morrer", que produz ansiedade. Ansiedade finidade,
experimentada como nossa prpria finidade. Esta a ansiedade natural do
homem como homem, e de certa forma de todos os seres viventes. a
ansiedade de no-ser, a certeza de nossa finidade como finidade.
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A Interdependncia de Medo e Ansiedade
Ansiedade e medo tm a mesma raiz ontolgica, mas no so o
mesmo na realidade. Isto conhecimento comum, mas tem sido to
enfatizado, e superenfatizado, a tal ponto, que pode ocorrer uma reao
contra tal fato e apagar, no s os exageros, como tambm a verdade da
distino. O medo, quando comparado ansiedade, tem objeto definido
(segundo opinio da maioria dos autores), que pode ser enfrentado,
analisado, atacado, tolerado. Pode-se agir sobre ele, e agindo sobre ele,
participar dele mesmo se na forma de combate. Neste sentido pode-se
torn-lo auto-afirmao. A coragem pode enfrentar cada objeto de medo
porque um objeto, e torna a participao possvel. A coragem pode
incorporar nela o medo produzido por um objeto definido, porque este
objeto, embora assustador o quanto seja, tem uma faceta com que
participa em ns e ns nele. Pode-se dizer que desde que haja um objeto do
medo, o amor, no sentido de participao, pode dominar o medo.
Mas no acontece o mesmo com a ansiedade, porque a ansiedade
no tem objeto, ou melhor, numa frase paradoxal, seu objeto a negao
de todo objeto. Portanto participao, luta e amor em relao a ela so
impossveis. Aquele que est em ansiedade est, tanto quanto mera
ansiedade, entregue a ela sem apelao. O desamparo no estado de
ansiedade pode ser observado da mesma forma em animais e humanos.
Expressa-se pela perda de direo, reaes inadequadas, falta de
"intencionalidade" (o ser relacionado com contedos significantes de
conhecimento ou vontade). A razo deste comportamento s vezes
surpreendente a falta de um objeto no qual o sujeito (um estado de
ansiedade) possa concentrar-se. O nico objeto a prpria ameaa, mas
no a fonte da ameaa, porque a fonte da ameaa o "nada".
Pode-se indagar se este "nada" ameaador a possibilidade
desconhecida, indefinida de uma verdadeira ameaa. No cessa a
ansiedade no momento em que um objeto de medo conhecido
aparece? Ansiedade ento seria o medo do desconhecido. Porem
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esta uma explicao insuficiente. Pois h reinos inumerveis de
desconhecido, diferentes para cada assunto, e encarados sem
nenhuma ansiedade. o desconhecido de um tipo especial que se
relaciona com ansiedade. o desconhecido que, por sua exata
natureza, no pode ser conhecido, porque no-ser.
Medo e ansiedade so distintos mas no separados. So imanentes
um dentro do outro: o acicate do medo a ansiedade, e a ansiedade se
esfora na direo do medo. Medo estar assustado com algo, uma dor, a
rejeio de uma pessoa ou um grupo, a perda de alguma coisa ou algum, o
momento de morrer. Mas na antecipao da ameaa que se origina destas
coisas, o que est assustando no a negatividade em si que eles traro
para o sujeito, Porem a ansiedade sobre as implicaes possveis desta
ansiedade. O exemplo capital e mais do que um exemplo o medo de
morrer, O quanto ele medo, seu objeto o evento antecipado de ser
morto por doena ou um acidente e assim sofrer a agonia e a perda de
tudo. O quanto ansiedade, seu objeto o absolutamente desconhecido
"depois da morte", o no-ser que permanece no-ser mesmo quando
preenchido com imagens de nossa experincia presente. Os sonhos no
solilquio de Hamlet, "ser ou no ser", que poderemos ter aps a morte e
que torna covardes todos ns, so assustadores, no devido seu contedo
manifesto, mas devido seu poder de simbolizar a ameaa do nada, em
termos religiosos, da "morte eterna". Os smbolos de inferno criados por
Dante produzem ansiedade, no por suas imagens objetivas, Porem por
expressarem o "nada" cujo poder experimentado na ansiedade da culpa.
Cada uma das situaes descritas no Inferno podia ser refutada pela
coragem na base da participao e amor. Mas, claro, o significado que isto
impossvel; em outras palavras, no so situaes reais, Porem smbolos
da falta de objeto, do no-ser.
O medo da morte determina o elemento de ansiedade em cada
medo. Ansiedade, caso no modificada pelo, medo de um objeto,
ansiedade em sua nudez, sempre a ansiedade do derradeiro no-ser. Num
sentido imediato, ansiedade o sentimento penoso de no-ser capaz de
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resolver a ameaa de uma situao especial. Porem uma anlise mais exata
mostra que na ansiedade referente a uma situao especial encontramos
implicada a ansiedade referente situao humana como tal. a ansiedade
de no ser capaz de preservar o prprio ser, que jaz sob cada medo e
constitui nele o elemento assustador. A partir do momento, contudo, em
que a "ansiedade nua" se apodera da mente, os anteriores objetos do
medo cessam de ser objetos definidos. Aparecem como em parte sempre
foram, sintomas da ansiedade bsica do homem. Como tal esto alm do
alcance mesmo do mais corajoso ataque contra eles.
Esta situao conduz o sujeito ansioso a estabelecer objetos de
medo. A ansiedade se esfora por se tornar medo, porque o medo pode ser
alcanado pela coragem. impossvel, para um ser finito, enfrentar a
ansiedade nua mais do que por um breve instante. Gente que
experimentou estes instantes, como exemplo, alguns msticos em suas
vises da "noite da alma", ou Lutero no desespero dos assaltos do demnio,
ou Nietzsche-Zarathustra na experincia do "grande-nojo" falaram de seu
horror inimaginvel. Este horror , de ordinrio, evitado pela transformao
da ansiedade em medo de alguma coisa, no importa o qu. A mente
humana no s, como disse Calvino, uma fbrica permanente de dolos,
tambm fbrica permanente de medos a primeira visando evitar Deus, a
segunda visando escapar ansiedade; e h uma relao entre as duas. Pois
olhar de frente o Deus que na verdade Deus significa tambm olhar de
frente a ameaa do no-ser. O "absoluto nu" (para usar uma expresso de
Lutero) produz a "ansiedade nua", porque a extino de qualquer auto-
afirmao finita, e no um possvel objeto de medo e coragem (Ver
captulos 5 e 6). Mas, basicamente, as tentativas de transformar ansiedade
em medo so vs. A ansiedade bsica, a ansiedade de um ser finito ante a
ameaa do no-ser, no pode ser eliminada. Pertence existncia mesma.
TIPOS DE ANSIEDADE
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Os Trs Tipos de Ansiedade e a Natureza do Homem
O no-ser dependente do ser que nega. "Dependente" significa
duas coisas. Antes de tudo se refere prioridade ontolgica do ser sobre o
no-ser. O prprio termo no-ser indica isto, e logicamente necessrio.
No poderia haver negao se no houvesse afirmao precedente para ser
negada. Por certo se pode descrever o ser em termos de no-ser; e pode-se
justificar tal descrio assinalando o espantoso fato pr-racional de que h
alguma coisa e no "coisa-nenhuma" [nada]. Pode-se dizer que "ser a
negao da noite primordial do nada". Porem, fazendo assim, deve-se
tomar cincia de que tal nada original no seria nem nada nem alguma
coisa, de que ele s se torna "coisa nenhuma" em contraste com alguma
coisa; em outras palavras, que a categoria do no ser, como no-ser,
dependente do ser. Em segundo lugar, o no-ser dependente das
qualidades especiais do ser. Em si o no-ser no possui qualidades nem
diferena de qualidades. Mas ele as obtm em relao ao ser.
O carter de negao do ser determinado por aquilo que negado
no ser. Assim torna-se possvel falar de qualidades do no ser e, por
conseqncia, de tipos de ansiedade.
At agora temos usado o termo no-ser sem diferenciao, enquanto
que na discusso da coragem foram mencionadas vrias formas de auto-
afirmao. Tais formas correspondem a diferentes modalidades de
ansiedade, e s so compreensveis em correlao com elas. Sugiro que
distingamos trs tipos de ansiedade de acordo com as trs direes nas
quais o no-ser ameaa o ser. O no-ser ameaa a auto-afirmao "ontica"
do homem, de modo relativo, em termos de destino, de modo absoluto, em
termos de morte. Ameaa a auto-afirmao espiritual do homem, de modo
relativo em termos de vacuidade, de modo absoluto, em termos de
insignificao. Ameaa a auto-afirmao moral do homem, de modo
relativo em termos de culpa, de modo absoluto, em termos de condenao.
A confirmao desta ameaa tripla a ansiedade, aparecendo em trs
formas, a do destino e da morte (em resumo, a ansiedade da morte), a do
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vazio e perda de significao, (em resumo, a ansiedade da vacuidade), a de
culpa e condenao (em resumo, a ansiedade da condenao). Em todas as
trs formas a ansiedade existencial, no sentido de que pertence
existncia como tal, no a um estado anormal da mente como na ansiedade
neurtica (e psictica). A natureza da ansiedade neurtica, e sua relao
com a ansiedade existencial, ser discutida em outro captulo. Trataremos
agora das trs formas de ansiedade existencial, primeiro de sua realidade
na vida do indivduo, depois de suas manifestaes sociais em perodos
especiais da histria ocidental. Contudo deve-se estabelecer que a
diferena de tipos no significa excluso mtua. No primeiro captulo vimos
por exemplo, que a coragem de ser tal como aparece nos antigos esticos
domina no s o medo da morte como tambm a ameaa da insignificao.
Observamos em Nietzsche que, a despeito da predominncia da
insignificao, a ansiedade da morte e condenao apaixonadamente
desafiada. Em todos os representantes do cristianismo clssico, morte e
pecado so vistos como os adversrios aliados, contra quem a coragem da
f deve lutar. As trs formas de ansiedade (e de coragem) so imanentes
uma na outra, Porem normalmente sob a doutrinao de uma delas.
A Ansiedade do Destino e da Morte
Destino e morte so os meios pelos quais nossa auto-afirmao
"ontica"5 ameaada pelo no-ser. "Ontica", do grego on, "ser", significa
aqui a auto-afirmao bsica de um ser por sua simples existncia.
(ontolgica designa a anlise filosfica da natureza do ser). A ansiedade do
destino e da morte a mais bsica, mais universal e inescapvel. Todas as
tentativas de neg-la so fteis. Mesmo se os assim chamados argumentos
em favor da "imoralidade da alma" tivessem poder argumentativo (que eles
no tm) no convenceriam existencialmente. Pois existencialmente todo
5 O termo "ontic", no ingls, neologismo do autor. Usamos, em portugus,
o correspondente "ntico, a". (N. do T.)
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mundo tem certeza da completa perda do eu que a extino biolgica
implica. A mente no sofisticada sabe, de maneira instintiva, o que a
ontologia sofisticada formula: que a realidade tem a estrutura bsica da
correlao eu-mundo e que, com o desaparecimento de um lado, o mundo,
o outro lado, eu, tambm desaparece, e que o que resta sua base comum,
mas no sua correlao estrutural. Tem sido observado que a ansiedade da
morte aumenta com o aumento da individualizao e que os povos nas
culturas coletivistas so menos dados a este tipo de ansiedade. A
observao correta, contudo a deduo de que no h ansiedade bsica
referente morte nas culturas coletivistas errada. A razo da diferena
das civilizaes mais individualizadas que o tipo especial de coragem que
caracteriza o coletivismo (ver pgs. 80 e segs.), enquanto est firme, alivia a
ansiedade da morte. Mas o prprio fato de que a coragem tem de ser
criada por meio de muitas atividades e smbolos internos e externos
(psicolgicos e rituais) mostra que a ansiedade bsica tem que ser
superada, mesmo no coletivismo. Sem sua presena pelo menos potencial,
nem guerra nem lei criminal seriam compreensveis nestas sociedades. Se
no houvesse medo da morte, no surtiria efeito a ameaa da lei ou de um
inimigo superior o que obviamente no . O homem como homem, em
cada civilizao, ansiosamente certo da ameaa do no-ser e necessita
coragem para afirmar-se a despeito dela.
A ansiedade da morte o horizonte permanente dentro do qual a
ansiedade do destino trabalha. Porque a ameaa contra a auto-afirmao
ontica do homem no s a ameaa absoluta da morte, mas tambm a
ameaa relativa do destino. Por certo a ansiedade da morte ofusca todas as
ansiedades concretas e lhes d sua seriedade bsica. Elas tm, contudo,
uma certa independncia e, de ordinrio, um impacto mais imediato do que
a ansiedade da morte. O termo "destino" para todo este grupo de
ansiedade acentua um elemento que comum a todos eles: seu carter
contingente, sua imprevisibilidade, a impossibilidade de mostrar sua
significao e propsito. Pode-se descrever isto em termos da estrutura
categrica de nossa experincia. Pode-se mostrar a contingncia de nosso
ser temporal, o fato de existirmos neste, e no em outro perodo de tempo,
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iniciado num momento contingente, findando num momento contingente,
preenchido com experincias que so contingentes elas prprias no
referente qualidade e quantidade. Pode-se mostrar a contingncia de
nosso ser espacial (nosso nos encontrarmos neste e no em outro lugar, e a
estranheza deste lugar a despeito de sua familiaridade); o carter
contingente de ns mesmos e o lugar do qual olhamos para nosso mundo;
e o carter contingente da realidade para a qual olhamos, isto , nosso
mundo. Ambos podiam ser diferentes: esta sua contingncia e isto produz
a ansiedade referente nessa existncia espacial. Pode-se mostrar a
contingncia da interdependncia causal da qual se uma parte, dizendo
respeito tanto ao passado como ao presente, s vicissitudes vindas de
nosso mundo e s foras ocultas nas profundezas de nosso prprio eu.
Contingente no quer dizer causalmente indeterminado, mas significa que
as causas determinantes de nossa existncia no tm necessidade
fundamental. Elas so dadas, e no podem ser deduzidas logicamente.
Estamos colocados de modo contingente dentro da trama completa das
relaes causais. De modo contingente somos determinados por elas a cada
momento, e por elas expulsos no ltimo momento.
O destino a lei da contingncia, e a ansiedade referente ao destino
est baseada na certeza do ser finito de ser contingente a todos os
respeitos, de no ter necessidade bsica. O destino usualmente
identificado com necessidade no sentido de uma inevitvel determinao
causal. Contudo, no a necessidade causal que faz o destino matria de
ansiedade, Porem a falta de necessidade bsica, a irracionalidade, a
impenetrvel escurido do destino.
A ameaa do no-ser auto-afirmao ontica do homem absoluta
na ameaa da morte, relativa na ameaa do destino. Porem a ameaa
relativa uma ameaa s porque em, sua base est a ameaa absoluta. O
destino no produziria ansiedade inevitvel se no tivesse a morte por trs
de si. E a morte est por trs do destino e suas contingncias, no s no
ltimo momento, quando se expulso da existncia, mas em cada
momento dentro da existncia. No-ser onipresente e produz ansiedade
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mesmo onde uma ameaa imediata de morte est ausente. Est por trs da
experincia que ns conduzimos, junto com tudo o mais, do passado para o
futuro, sem um momento de tempo que no se desvanea de imediato.
Est por trs da insegurana e desabrigo de nossa existncia social e
individual. Est por trs dos ataques que sofre nossa potncia de ser, no
corpo e na alma, por parte da fraqueza, enfermidade e acidentes. O destino
se realiza em todas estas formas, e atravs delas a ansiedade do no-ser
toma conta de ns. Tentamos transformar ansiedade em medo e ir,
corajosamente, de encontro aos objetos nos quais a ameaa se corporifica.
Temos xito em parte, Porem, seja qual for, temos cincia do fato de que
no so esses objetos, com os quais lutamos, que produzem a ansiedade,
mas a situao humana como tal. Disto brota uma pergunta: H uma
coragem de ser, uma coragem de se afirmar a despeito da ameaa contra a
auto-afirmao ontica do homem?
A Ansiedade da Vacuidade e Insignificao
O no-ser ameaa o homem como um todo, e portanto ameaa tanto
sua auto-afirmao espiritual como a ntica. A auto-afirmao espiritual
ocorre em cada momento em que o homem vive criadoramente nas vrias
esferas de significao. Criador, neste contexto, tem o sentido no de
criao original como desempenhado pelo gnio, mas de viver
espontaneamente, em ao e reao, com o contedo de nossa vida
cultural. A fim de ser espiritualmente criador no se precisa ser um artista,
ou cientista, ou estadista criador, mas deve-se ser capaz de participar
intencionalmente de suas criaes originais. Uma tal participao criadora
na medida em que muda aquilo do qual se participa, mesmo se em pores
muito pequenas. A transformao criadora de um idioma pela
interdependncia do poeta ou escritor criador e os muitos que so
influenciados por eles, direta ou indiretamente, e reagem de modo
espontneo a eles um exemplo claro. Todo aquele que vive
criadoramente em significaes, se afirma como um participante nestas
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significaes. Afirma-se quando recebendo e transformando a realidade de
modo criador. Ama-se a si prprio ao participar da vida espiritual e ao amar
seu contedo, ele o ama porque sua prpria realizao e porque ele se
realiza atravs dele. O cientista ama ambos, a verdade que ele descobre e a
si prprio na medida em que a descobre. Ele possudo pelo contedo de
sua descoberta. o que se chama "auto-afirmao espiritual". E se ele no
fez a descoberta, Porem s participa dela, igualmente auto-afirmao
espiritual.
Uma tal experincia pressupe que a vida espiritual tomada com
seriedade, de que matria de interesse bsico. E isto de novo pressupe
que nela, e atravs dela, torna-se manifesta a realidade bsica. Uma vida
espiritual na qual isto no experimentado ameaada pelo no-ser nas
duas formas pela qual ele ataca a auto-afirmao espiritual: vacuidade e
insignificao.
Usamos o termo insignificao para a ameaa absoluta do no-ser
auto-afirmao espiritual, e o termo vacuidade para a ameaa relativa a ela.
No so mais idnticas do que so ameaa de morte e de destino. Porem,
na base da vacuidade est a insignificao, como a morte est na base das
vicissitudes do destino.
A ansiedade da vacuidade despertada pela ameaa do no-ser ao
contedo especial da vida espiritual. Uma certeza rompe atravs dos
acontecimentos externos ou processos interiores: somos cortados da
participao criadora numa esfera de cultura, nos sentimos frustrados a
respeito de algo que se tinha afirmado com paixo, somos conduzidos da
devoo a um objeto devoo por outro e de novo por outro, porque o
sentido de cada um deles se desvanece e o eros criador se transformou em
indiferena ou averso. Tudo tentado e nada satisfaz. O contedo da
tradio, embora excelente, embora louvado, embora amado antes, perde
seu poder de dar contedo hoje. E a cultura presente ainda menos capaz
de prover contedo. Ansiosamente nos voltamos para longe de todo
contedo concreto e procuramos um significado bsico, s para descobrir
que foi precisamente a perda de um centro espiritual que retirou o
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significado do contedo especial da vida espiritual. Mas um centro
espiritual no pode ser produzido intencionalmente, e a tentativa de
produzi-lo s produz ansiedade mais espessa. A ansiedade da vacuidade
conduz-nos ao abismo da insignificao.
Vacuidade e perda de significao so expresses da ameaa do no-
ser vida espiritual. Esta ameaa est implcita na finidade do homem e
realizada no extravio do homem. Pode ser descrita em termos de dvida,
sua funo criadora e destruidora na vida espiritual do homem. O homem
capaz de perguntar porque est separado de embora participando cm,
daquilo sobre o que est perguntando. Em toda pergunta est implicado
um elemento de dvida, a certeza de no haver. Na indagao sistemtica a
dvida efetiva; por exemplo, o tipo cartesiano. Este elemento de dvida
uma condio de nossa vida espiritual. A ameaa vida espiritual no a
dvida como um elemento, mas a dvida total. Se a certeza de no haver
engolfou a certeza de haver, a dvida cessou de ser indagao metodolgica
e tornou-se desespero existencial. A caminho desta situao a vida
espiritual tenta manter-se, o quanto possvel, apegando-se a afirmaes
que ainda no esto minadas, sejam elas tradies, convices autnomas
ou preferncias emocionais. E sendo impossvel remover a dvida, aceita-se
o fato com coragem, sem renunciar s nossas convices.
Toma-se o risco de ficar sem rumo, e a ansiedade do risco, sobre si
prprio. Desta maneira se evita a situao extrema at que se torna
inevitvel e o desespero da verdade se torna completo.
O homem tenta um outro caminho: a dvida se baseia na separao
do homem do todo da realidade, da sua falta de participao universal, no
isolamento de seu eu individual. Ele tenta sair desta situao, renunciar
sua separao e auto-relacionamento. Voa da liberdade de perguntar e
responder por si mesmo, para uma situao na qual no podem ser
formuladas questes ulteriores e as respostas s questes prvias so
impostas a ele autoritriamente. A fim de evitar o risco de perguntar e
duvidar, ele renuncia ao risco de perguntar e duvidar. Renuncia a si prprio
tentando salvar sua vida espiritual. Ele "foge de sua liberdade" (Fromm)
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tentando fugir ansiedade da insignificao. Agora ele no mais est
sozinho, nem na sua dvida existencial, nem no desespero. Ele "participa" e
afirma pela participao o contedo de sua vida espiritual. A significao
est salva, mas o eu sacrificado. E desde que a submisso da dvida foi
matria de sacrifcio, o sacrifcio da liberdade do eu, deixa uma marca na
certeza reconquistada: uma auto-agressividade fantica. O fanatismo o
correlato de auto-rendio espiritual: mostra ansiedade que supostamente
estava dominada, atacando com violncia desproporcionada aqueles que
discordam e que demonstram, por sua discordncia, elementos que o
fantico deve suprimir ele mesmo de sua vida espiritual. Porque deve
suprimi-los de dentro dele, tem ele que suprimi-los nos outros. Sua
ansiedade fora-o a perseguir os que dissentem. A fraqueza do fantico
consiste em, que aqueles que ele combate tm uma secreta ascendncia
sobre ele; e por esta fraqueza ele e seu grupo afinal sucumbem.
No sempre a dvida pessoal que mina e esvazia um sistema de
idias e valores. Pode ser o fato de no mais serem eles compreendidos em
seu poder original de expressar a situao humana e de responder a
questes humanas existentes. ( plenamente o caso de smbolos
doutrinrios do cristianismo). Ou eles perdem seu significado porque as
condies reais do perodo presente so diferentes daquelas nas quais o
contedo espiritual foi criado e porque novas criaes se fazem
necessrias. (Este foi o caso da expresso artstica antes da revoluo
industrial.) Em tais circunstncias ocorre um lento processo de desgaste do
contedo espiritual, inapercebido no incio, constatado com um choque
enquanto progride, produzindo a ansiedade, da insignificao em seu final.
As auto-afirmaes ontica e espiritual precisam ser distinguidas, mas
no podem ser separadas. O ser do homem inclui sua relao com as
significaes. Ele humano s por compreender e moldar a realidade, seu
mundo ele, de acordo com significados e valores. Seu ser espiritual,
mesmo nas expresses mais primitivas do mais primitivo ser humano. Na
"primeira" sentena significativa toda a riqueza da vida espiritual do
homem est potencialmente presente. Portanto, a ameaa a seu ser
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espiritual uma ameaa a todo seu ser. A expresso mais reveladora deste
fato o desejo de antes atirar fora a nossa prpria existncia ontica do que
suportar o desespero da vacuidade e da insignificao. O instinto da morte
no um fenmeno ontico, Porem espiritual. Freud identificou esta reao
para a insignificao da nunca-cessante e nunca-satisfeita libido como a
natureza essencial do homem. Mas ela s uma expresso de seu auto-
extravio existencial e da desintegrao de sua vida espiritual na
insignificao. Se, por outro lado, a auto-afirmao ontica enfraquecida
pelo no-ser, a indiferena espiritual e vacuidade podem ser a
conseqncia, produzindo um crculo de neg