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    Paul Tillich

    A CORAGEM

    DE SER

    Baseado nas Conferncias Terry

    Pronunciadas na Yale University

    Traduo de

    EGL MALHEIROS

    5 edio

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    PAZ E TERRA

    C) Yale University Press, 1952, New Haven, Connecticut Traduzido do

    original em ingls The courage to be

    Capa SabatCIP-Brasil. Catalogao-na-fonte

    Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.Tillich, Paul.

    T467c A Coragem de ser: baseado nas Conferncias Terry, pronunciadas naYale University, traduo de Egl Malheiros.

    3 edio Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. 146 p.Do original em ingls: The courage to be.

    1. Coragem I. Ttulo II. SrieCDD - 179.6 76-0627 CDD - 179.6

    Direitos adquiridos pelaEDITORA PAZ E TERRA S/A

    Rua do Triunfo, 17701212 - So Paulo, SPTel. (011) 223-6522

    Rua So Jos, 90 - 11? andar20010 - Rio de Janeiro, RJ

    tel. (021) 221-4066

    que se reserva a propriedade desta traduo.PARA REN

    Conselho EditorialAntonio Candido

    Fernando GasparianFernando Henrique Cardoso

    1992Impresso no Brasl/Printed in Brazil

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    Sumario

    1 - Ser e Coragem .............................................................................................. 5

    CORAGEM E BRAVURA: DE PLATO A TOMS DE AQUINO .................................................................6CORAGEM E SABEDORIA: OS ESTICOS............................................................................................. 11CORAGEM E AUTO-AFIRMAO: SPINOZA ........................................................................................ 17CORAGEM E VIDA: NIETZSCHE...........................................................................................................22

    2 - Ser, No-Ser e Ansiedade.............................................................................. 28

    UMA ONTOLOGIA DA ANSIEDADE .....................................................................................................28O Significado do No-Ser.........................................................................................................28A Interdependncia de Medo e Ansiedade .............................................................................31

    TIPOS DE ANSIEDADE......................................................................................................................... 33Os Trs Tipos de Ansiedade e a Natureza do Homem ............................................................. 34A Ansiedade do Destino e da Morte........................................................................................ 35A Ansiedade da Vacuidade e Insignificao.............................................................................38A Ansiedade da Culpa e Condenao ...................................................................................... 42O Significado do Desespero.....................................................................................................44

    PERODOS DE ANSIEDADE..................................................................................................................46

    3 - Ansiedade Patolgica, Vitalidade e Coragem .................................................. 51

    A NATUREZA DA ANSIEDADE PATOLGICA ....................................................................................... 51ANSIEDADE, RELIGIO E MEDICINA ...................................................................................................55VITALIDADE E CORAGEM ...................................................................................................................61

    4 - Coragem e Participao (A Coragem de Ser como uma Parte) ......................... 67

    SER, INDIVIDUALIZAO E PARTICIPAO......................................................................................... 67MANIFESTAES COLETIVISTAS E SEMICOLETIVISTASDA CORAGEM DE SER COMO UMA PARTE........................................................................................ 70MANIFESTAES NEOCOLETIVISTAS DA CORAGEM DE SER COMO UMA PARTE .............................. 75A CORAGEM DE SER COMO UMA PARTE NO CONFORMISMO DEMOCRTICO .................................79

    5 - Coragem e Individualizao (A Coragem de Ser Como Si Prprio)..................... 87

    A ASCENSO DO INDIVIDUALISMO MODERNO E A CORAGEM DE SER COMO SI PRPRIO ...............87AS FORMAS ROMNTICAS E NATURALSTICAS DA CORAGEM DE SER COMO SI PRPRIO ................90FORMAS EXISTENCIALISTAS DA CORAGEM DE SER COMO SI PRPRIO .............................................94

    A Atitude Existencial e Existencialismo.................................................................................... 95O Ponto de Vista Existencialista .............................................................................................. 97O Abandono do Ponto de Vista Existencialista ...................................................................... 100Existencialismo como Revolta ............................................................................................... 103

    O EXISTENCIALISMO HOJE E A CORAGEM DO DESESPRO .............................................................. 106Coragem e Desespero ........................................................................................................... 106

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    A Coragem do Desespero na Arte e na Literatura Contemporneas ..................................... 108A Coragem do Desespero na Filosofia Contempornea ........................................................ 113Os Limites da Coragem de Ser como Si Prprio..................................................................... 115

    6 - Coragem e Transcendncia (A Coragem de Aceitar a Aceitao) .................... 118

    A POTNCIA DE SER COMO FONTE DA CORAGEM DE SER............................................................... 119A Experincia Mstica e a Coragem de Ser............................................................................. 119Encontro Divino-Humano e a Coragem de Ser ...................................................................... 122A Culpa e a Coragem de Aceitar a Aceitao ......................................................................... 124Destino e a Coragem de Aceitar a Aceitao ......................................................................... 127F Absoluta e Coragem de Ser............................................................................................... 130

    A CORAGEM DE SER COMO A CHAVE DO SER-EM-SI ....................................................................... 135No-Ser Abrindo o Ser........................................................................................................... 135Tesmo Transcendente .......................................................................................................... 137O Deus Acima de Deus e a Coragem de Ser........................................................................... 140

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    1 - Ser e Coragem

    EM CONFORMIDADE com o estipulado pela Terry Foundation, de que

    as conferncias tenham relao com "religio luz da cincia e da filosofia",

    escolhi um conceito no qual convergem problemas teolgicos, sociolgicos

    e filosficos, o conceito de "coragem". Poucos conceitos tm tanta utilidade

    para a anlise da situao humana. Coragem uma realidade tica, mas se

    enraza em toda a extenso da existncia humana e bsicamente na

    estrutura do prprio ser. Deve ser considerada ontologicamente a fim de

    ser entendida eticamente.

    Isto se torna manifesto numa das primeiras discusses filosficas de

    coragem, no dilogo de Plato, Laches. Vrias definies preliminares so

    rejeitadas no curso do dilogo.

    Ento Nikias, o conhecido general, tenta de novo. Sendo um lder

    militar, deveria saber o que coragem e ser capaz de defini-la. Porem sua

    definio, como as outras, mostra-se inadequada. Se coragem, tal como ele

    afirma, o conhecimento de "o que deve ser temido e o que deve ser

    enfrentado" ento a questo tende a se tornar universal, porque a fim de

    respond-la deve-se ter "um conhecimento referente a todo o bem e todo

    o mal, sob todas as circunstncias" (199, C). Mas esta definio contradiz o

    que fora estabelecido a priori, de que coragem apenas uma parte da

    virtude. "Assim sendo", Scrates conclui, "falhamos em descobrir o que

    coragem realmente" (199, E). E este fracasso muito serio dentro da

    estrutura do pensamento socrtico. Segundo Scrates, virtude

    conhecimento, e a ignorncia sobre o que coragem torna impossvel

    qualquer ao em concordncia com a verdadeira natureza da coragem.

    Porem este fracasso socrtico mais importante do que a maior parte das

    definies aparentemente bem sucedidas de coragem (mesmo as do

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    prprio Plato e de Aristteles). Porque o fracasso em encontrar uma

    definio de coragem como uma virtude entre outras virtudes revela um

    problema bsico da existncia humana. Mostra que uma compreenso de

    coragem pressupe uma compreenso do homem e de seu mundo, suas

    estruturas e valores. S quem sabe isto sabe o que afirmar e o que negar. A

    questo tica da natureza da coragem conduz de forma inevitvel

    questo ontolgica da natureza do ser. E o procedimento pode ser

    invertido. A questo ontolgica do ser pode ser colocada como a questo

    tica da natureza da coragem. Coragem pede mostrar-nos o que o ser.

    Por conseguinte o primeiro captulo deste livro versa sobre "Ser e

    Coragem". Embora no haja chance de que eu obtenha xito onde Scrates

    fracassou, a coragem de arriscar um quase inevitvel fracasso pode ajudar a

    manter vivo o problema socrtico.

    CORAGEM E BRAVURA: DE PLATO A TOMS DE AQUINO

    O ttulo deste livro, A Coragem de Ser, rene ambos os significados

    do conceito de coragem, o tico e o ontolgico.

    Coragem como um ato humano, como matria de avaliao, um

    conceito tico. Coragem como a auto-afirmao do ser de algum um

    conceito ontolgico. A coragem do ser o ato tico no qual o homem

    afirma seu prprio ser a despeito daqueles elementos de sua existncia que

    entram em conflito com sua auto-afirmao essencial.

    Examinando a histrica do pensamento ocidental encontram-se os

    dois significados de coragem indicados por quase toda parte, explcita e

    implicitamente. Uma vez que trataremos em captulos separados, das idias

    esticas e neo-esticas de coragem, restringir-me-ei aqui interpretao de

    coragem na linha de pensamento que conduz de Plato a Toms de Aquino.

    Na Repblica de Plato coragem se relaciona com aquele elemento da alma

    que chamado thyms (o elemento animoso, corajoso), e ambos se

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    relacionam com aquela camada da sociedade que chamada phylakes

    (guardies). Thyms fica entre o elemento intelectual e sensual do homem.

    o esforo no pensado em prol do que nobre. Tendo uma posio

    central na estrutura da alma, constri uma ponte por sobre a fenda entre

    razo e desejo. Pelo menos poderia fazer tal. Realmente, a tendncia

    principal do pensamento platnico e a tradio da escola de Plato eram

    dualsticas, enfatizando o conflito entre o racional e o sensual. A ponte no

    foi usada. J muito mais tarde, como em Descartes e Kant, a eliminao do

    "meio" do ser humano (o thymoeids) teve conseqncias ticas e

    ontolgicas. Foi responsvel pelo rigor moral de Kant e pela diviso

    cartesiana do ser em pensamento e extenso. bem conhecido o contexto

    sociolgico no qual ocorreu esta transformao. Os phylakes platnicos so

    a aristocracia armada, os representantes do que nobre e gracioso. Dentre

    eles surgem os portadores do saber, acrescentando saber coragem. Mas

    esta aristocracia e seus valores se desintegraram. O mundo antigo mais

    recente, tal a moderna burguesia, perdeu-os; em seu lugar aparecem os

    portadores da razo esclarecida e tecnicamente organizada e massas

    dirigidas. Porem deve-se notar que o prprio Plato via o thymoeids como

    uma funo essencial do ser humano, um valor tico e uma qualidade

    sociolgica.

    O elemento aristocrtico na doutrina da coragem foi preservado,

    tanto como restringido, na doutrina de Aristteles. O motivo para enfrentar

    dor e morte com coragem , segundo ele, o fato de ser nobre agir assim e

    vil no o fazer (Nc. Eth. 111.9). O homem corajoso age "em prol do que

    nobre, porque esse o alvo da virtude" (III.7). "Nobre", nesta e em outras

    passagens, a traduo de kals e "vil" a traduo de aischrs, palavras que

    usualmente so traduzidas como "belo" e "feio". Um feito belo, ou nobre,

    um feito para ser louvado. A coragem faz aquilo que para ser louvado e

    rejeita o que para ser desprezado. Louva-se o que em um ser realiza suas

    potencialidades ou atualiza suas perfeies. Coragem a afirmao da

    natureza essencial de uma pessoa, o alvo ntimo de algum, ou entelquia,

    Porem uma afirmao que tem em si prpria o carter de "apesar de".

    Inclui o sacrifcio possvel e, em certos casos, inevitvel, de elementos que

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    tambm pertencem a nosso ser, mas que, se no sacrificados, impedir-nos-

    iam de atingir nossa realizao. Este sacrifcio pode incluir prazer,

    felicidade, e mesmo a prpria existncia. louvvel em qualquer caso,

    porque no ato de coragem a parte mais essencial de nosso ser prevalece

    sobre a menos essencial. O fato de o bom e o belo se realizarem nela

    constitu a beleza e a bondade da coragem. Portanto ela nobre.

    A perfeio para Aristteles (bem como para Plato) se realiza em

    graus, naturais, pessoais e sociais; e coragem, como a afirmao do ser

    essencial de uma pessoa, mais destacada em alguns destes graus do que

    em outros. Uma vez que a suprema prova de coragem o estar pronto para

    fazer o supremo sacrifcio, o sacrifcio da prpria vida, e uma vez que o

    soldado, por sua profisso, deve estar sempre pronto para este sacrifcio, a

    coragem do soldado era, e de certa forma permaneceu, o exemplo padro

    de coragem. A palavra grega andreia (virilidade) e o vocbulo latino

    fortitudo (fora) indicam as conotaes militares de coragem, Enquanto a

    aristocracia constituiu o grupo que empunhava as armas, as conotaes

    aristocrticas e militares de coragem se fundiam. Quando a tradio

    aristocrtica se desintegrou, e coragem pode ser definida como

    conhecimento universal do que bom e mau, sabedoria e coragem se

    fundiram, e a verdadeira coragem tornou-se distinta da coragem do

    soldado. A coragem de Scrates moribundo era racional-democrtica, no

    herica-aristocrtica.

    Porem a linha aristocrtica reviveu nos primeiros tempos da Idade

    Mdia. Coragem tornou-se de novo caracterstica de nobreza, O cavaleiro

    quem representa a coragem, como um soldado e como um nobre. Ele

    possua o que se chamava hohe Mut, o elevado, nobre e corajoso esprito. A

    lngua alem tem dois vocbulos para corajoso, tapfer e mutig. Tapfer

    originalmente significa firme, pondervel, importante, apontando para o

    poder decorrente de estar nas camadas superiores da sociedade feudal.

    Mutig derivado de Mut, o movimento da alma sugerido pela palavra

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    inglesa "mood"1. Assim palavras como Schwermut, Hochmut, Kleinmut (o

    penoso, o elevado, o pequeno "esprito"). Mut diz respeito ao "corao", o

    nucleo pessoal. Assim sendo mutig pode ser substitudo por behertzt (como

    a franco-nglsa courage se deriva do francs coeur, corao)2. Enquanto

    Mut manteve este sentido mais lato, Tapferkeit tornou-se mais e mais a

    virtude especfica do soldado que deixou de ser idntico ao cavaleiro e

    ao nobre. bvio que os termos Mut e coragem introduzem diretamente a

    questo ontolgica, enquanto Tapferkeit e bravura, em seus significados

    atuais, no possuem tais conotaes. O ttulo destas conferncias no

    poderia ter sido "A Bravura de Ser" (Die Tapferkeit zum Sein); teria que

    indicar "A Coragem de Ser" (Der Mut zum Sein). Estas observaes

    lingsticas revelam a situao medieval, no referente ao conceito de

    coragem, e com isto a tenso entre a tica herico-aristocrtica da baixa

    Idade Mdia de um lado, e de outro a tica racional-democrtica, que a

    herana da tradio cristo-humanstica e que mais uma vez se torna

    proeminente no fim da Idade Mdia.

    Esta situao expressiva de maneira clssica na doutrina da

    coragem de Toms de Aquino. Toms constata e discute a dualidade no

    significado de coragem. Coragem fora de nimo, capaz de dominar o que

    quer que ameace a obteno do mais elevado bem. Est unida sabedoria,

    a virtude que representa a unio das quatro virtudes cardiais (sendo as

    outras duas temperana e justia). Uma anlise perspicaz mostraria que as

    quatro no so do mesmo porte. Coragem, unida sabedoria, inclui

    temperana em relao a si prprio, bem como justia em relao aos

    outros. A questo ento saber qual, coragem ou sabedoria, a virtude

    mais ampla. A resposta depende do resultado da famosa discusso sobre a

    prioridade do intelecto ou d vontade na essncia do ser, e, por

    conseqncia, na personalidade humana. Uma vez que Toms decide de

    forma no ambgua pelo intelecto, como uma conseqncia necessria

    1 Mood estado d'alma. (N. do T.)

    2 A etimologia de "coragem", em portugus, semelhante, vem do latim

    cor, cordis corao. (N. do T.)

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    subordina a coragem sabedoria. Uma deciso pela prioridade da vontade

    importaria em uma maior, seno em uma total, independncia da coragem

    em sua relao com a sabedoria. A diferena entre as duas linhas de

    pensamentos decisiva para a avaliao da "coragem aventurosa" (em

    termos religiosos, o "risco da f"). Sob a predominncia da sabedoria,

    coragem essencialmente a "fora da mente" que obedece aos ditames da

    razo (ou revelao) possvel, enquanto a coragem aventurosa participa na

    criao da sabedoria. O perigo bvio da primeira posio a estagnao

    estril, como encontramos em uma boa parte do pensamento catlico e de

    alguns racionalistas, enquanto que o igualmente bvio perigo da segunda

    posio a obstinao sem propsito, como encontramos em alguns

    protestantes e muitos pensadores existencialistas.

    Contudo Toms tambm defende o significado mais limitado de

    coragem (a que ele sempre chama de fortitudo) como uma virtude ao lado

    de outras. Em geral nestas discusses ele apresenta a coragem do soldado

    como o exemplo padro da coragem no sentido restrito. Isto corresponde

    tendncia geral de Toms em combinar a estrutura aristocrtica da

    sociedade medieval com os elementos universalistas do cristianismo e

    humanismo.

    A coragem perfeita , segundo Toms, um dom do Esprito Santo.

    Atravs do Esprito a fora natural da mente se eleva a sua perfeio

    supranatural. Isto, por conseguinte, significa que ela est unida s virtudes

    especificamente crists, f, esperana e amor. Desta forma visvel um

    desenvolvimento no qual o lado ontolgico da coragem incorporado f

    (incluindo esperana), enquanto o lado tico incorporado caridade ou o

    princpio da tica. A incorporao da coragem na f, em especial na medida

    em que implica a esperana, apareceu um pouco mais cedo, por exemplo,

    na doutrina de Ambrsio referente coragem. Ele segue a tradio antiga

    quando considera fortitudo uma "virtude mais sublime do que o resto",

    embora nunca aparea sozinha. A coragem ouve a razo e leva a cabo a

    inteno da mente. a fora da alma para conquistar a vitria em perigo

    extremo, como aqueles mrtires do Antigo Testamento enumerados em

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    Hebreus II. Coragem d consolao, pacincia e experincia, e torna-se

    indistinguvel da f e da esperana.

    A luz desta evoluo pode ver que cada tentativa em definir coragem

    confrontada com estas alternativas: ou usar coragem como o nome de

    uma virtude entre outras, fundindo o sentido mais lato da palavra com f e

    esperana, ou preservar o sentido mais lato e interpretar a f por meio de

    uma anlise da coragem. Este livro segue a segunda alternativa, em parte

    porque eu creio que "f" necessita tal reinterpretao mais do que

    qualquer outro termo religioso.

    CORAGEM E SABEDORIA: OS ESTICOS

    O conceito mais lato de coragem, que inclui um elemento tico e

    ontolgico, torna-se imensamente efetivo ao final do mundo antigo e no

    inicio do moderno, no estoicismo e no neo-estoicismo. Ambas so escolas

    filosoficas ao lado de outras, porem ambas so ao mesmo tempo mais do

    que escolas filosficas. So o meio pelo qual algumas das mais nobres

    figuras da antiguidade mais recente, e seus seguidores nos tempos

    modernos, responderam ao problema da existncia e superaram as

    ansiedades do destino e da morte. Estoicismo neste sentido uma atitude

    religiosa bsica, quer aparea nas formas testica, atestica ou transtestica.

    Portanto, a nica alternativa real para o cristianismo no mundo

    ocidental. Esta uma declarao surpreendente, tendo em vista o fato de

    que foi com o gnosticismo e o neo-platonismo que o cristianismo teve que

    lutar no terreno religioso-filosfico, e que foi ao Imprio Romano que teve

    que combater no terreno religioso-politico. Os esticos altamente cultos,

    individualisticos, parecem ter sido, no s sem periculosidade para os

    cristos, mas de fato desejosos de aceitar elementos do tesmo cristo. Mas

    esta uma anlise superficial. O cristianismo tinha uma base comum com o

    sincretismo religioso do Mundo Antigo, tal a idia da vinda de um ser divino

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    para a salvao do mundo. Nos movimentos religiosos que se centralizavam

    em torno desta idia, a ansiedade ante o destino e a morte era vencida pela

    participao do homem no ser divino, que tomara o destino e a morte

    sobre si mesmo. O cristianismo, embora aderindo a uma f similar, era

    superior ao sincretismo pelo carter individual do Salvador Jesus Cristo e

    por sua base concreto-histrica no Velho Testamento. Por conseguinte, o

    cristianismo pde assimilar muitos elementos do sincretismo religioso-

    filosfico do Mundo Antigo mais recente, sem perder seu fundamento

    histrico; mas no pde assimilar a atitude estica genuna. Isto pode ser

    notado, em especial, quando consideramos a tremenda influncia da

    doutrina estica do Logos e da lei da moral natural na tica e na dogmtica

    crist. Porem esta ampla aceitao das idias esticas no pde vencer o

    vo entre a aceitao da resignao csmica no estoicismo e a f na

    salvao csmica no cristianismo. A vitria da Igreja Crist levou o

    estoicismo a uma obscuridade da qual ele s emergiu nos incios do perodo

    moderno. Nem era o Imprio Romano uma alternativa para o Cristianismo.

    Aqui de novo de se notar que entre os imperadores havia no s os

    tiranos obstinados do tipo de Nero ou os fanticos reacionrios do tipo de

    Juliano, que se constituam um srio perigo para o Cristianismo, mas os

    virtuosos esticos do tipo de Marco Aurlio. A razo disto era o fato de o

    estico ter uma coragem social e pessoal que constitui uma alternativa real

    coragem crist.

    A coragem estica no uma inveno dos filsofos esticos. Eles lhe

    deram uma expresso clssica em termos racionais; mas suas razes

    remontam a histrias mitolgicas, lendas de feitos hericos, palavras de

    sabedoria primitiva, poesia e tragdia, e a duas centrias de filosofia,

    precedendo o surgimento do estoicismo. Um acontecimento em especial

    deu coragem dos esticos poder duradouro, a morte de Scrates. Ela

    tornou-se, para todo o Mundo Antigo, ao mesmo tempo um fato e um

    smbolo. Mostrou a situao humana em face do destino e da morte.

    Mostrou uma coragem que pode assegurar a vida porque pode assegurar a

    morte. E trouxe uma profunda mudana para o conceito tradicional de

    coragem. Em Scrates a coragem herica do passado foi mudada em

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    racional e universal. Foi criada uma idia democrtica de coragem em

    oposio idia aristocrtica. A bravura ao feitio do soldado foi

    transcendida pela coragem da sabedoria. Desta maneira deu "consolao

    filosfica" a muita gente, em toda as partes do Mundo Antigo, durante um

    perodo de catstrofes e transformaes.

    A descrio de coragem estica, por um homem como Sneca,

    mostra a nterdependnca do medo da morte e do medo da vida, bem

    como a interdependncia da coragem de morrer e da coragem de viver.

    Aponta para aqueles que "no querem viver e no sabem morrer". Fala de

    uma libido moriendi, o termo latino exato para o "instinto de morte" de

    Freud. Conta de gente que sente a vida como sem significado e suprflua e

    que, como no livro do Eclesiastes diz: "Eu no posso fazer nada de novo, eu

    no vejo nada de novo!" Isto, segundo Sneca, uma conseqncia da

    aceitao do princpio do prazer ou, como ele o chama, antecipando uma

    expresso americana recente, a atitude de "tempo, divertido", a qual ele

    encontra em especial na gerao mais jovem. Tal como em Freud, o instinto

    da morte o lado negativo dos sempre insatisfeitos esforos da libido,

    assim, segundo Sneca, a aceitao do princpio do prazer necessariamente

    conduz ao desgosto e desespero a respeito da vida. Porem Sneca sabia (tal

    Freud) que a inabilidade em afirmar a vida no implica em habilidade em

    afirmar a morte. A ansiedade ante o destino e a morte controla as vidas

    mesmo daqueles que perderam a vontade de viver. Isto mostra que a

    recomendao estica de suicidio dirige no aos que foram vencidos pela

    vida, mas aqueles que dominaram a vida, e so capazes, ao mesmo tempo,

    de viver e morrer, e podem escolher livremente entre as duas alternativas.

    Suicidio, como fuga ditada pelo medo, contradiz a coragem estica de ser.

    A coragem estica no sentido ontolgico bem como no moral,

    "coragem de ser". Baseia-se no controle da razo no homem. Mas razo

    no , nem na antiga nem na nova terminologia estica, o mesmo que na

    contempornea. Razo, no sentido estico, no poder de "raciocinar",

    isto , de argumentar baseado na experincia e com os instrumentos da

    lgica ordinria ou da matemtica. Razo, para os esticos, o Logos, a

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    estrutura significante da realidade como um todo e da mente humana em

    particular. "Se no h", diz Sneca, "outro atributo que pertena ao homem

    como homem exceto razo, ento a razo ser seu nico bem, valendo

    todo o resto tomado em conjunto." Isto significa que razo a verdade do

    homem ou natureza essencial, em comparao com o que tudo o mais

    acidental. A coragem de ser a coragem de afirmar a nossa prpria

    natureza por sobre o que acidental em ns. bvio que razo, neste

    sentido, diz respeito pessoa em seu nucleo e inclui todas as funes

    mentais. O raciocinio, como uma funo cognitiva limitada, destacado do

    nucleo pessoal, jamais poderia criar coragem. No se pode remover

    ansiedade argumentando contra ela. Esta no uma recente descoberta

    psicanalitica; os esticos, ao glorificarem a razo, o sabiam bem. Sabiam

    que a ansiedade pode ser superada somente pelo poder da razo universal

    que prevalece, no homem sbio, sobre desejos e temores. A coragem

    estica pressupe a rendio do ncleo pessoal ao Logos do ser; a

    participao no poder divino da razo, transcendendo o reino das paixes e

    ansiedades. A coragem de ser a coragem de afirmar nossa prpria

    natureza racional, a despeito de tudo em ns que conflita com sua unio

    com a natureza racional do prprio ser.

    O que conflita com a coragem da sabedoria so desejos e medos. Os

    esticos desenvolveram uma profunda doutrina de ansiedade que tambm

    nos lembra anlises recentes. Descobriram que o objeto do medo o

    prprio medo. "Nada", diz Sneca, " terrvel nas coisas exceto o prprio

    medo." E Epciteto diz: "Porque no a morte, ou a privao, que uma

    coisa terrvel, mas o medo da morte e da privao." Nossa ansiedade coloca

    mscaras assustadoras sobre todos os homens e coisas. Se ns os despimos

    destas mscaras aparecem suas prprias fisionomias e o medo que eles

    causam desaparece. Isto verdade mesmo em relao morte. Uma vez

    que cada dia um pouco de nossa vida nos tirada uma vez que estamos

    morrendo cada dia hora final, quando cessamos de existir, no traz, em si,

    a morte; to-s completa o processo de morte. Os horrores relacionados

    com ela dizem respeito imaginao. Desaparecem quando se tira a

    mscara da imagem da morte.

  • 15

    Nossos desejos incontrolados que criam mscaras e as colocam em

    homens e coisas. A teoria freudiana da libido antecipada por Sneca,

    Porem num contexto mais amplo. Ele distingue entre desejos naturais, que

    so limitados, e aqueles que brotam de falsas opinies e so ilimitados.

    Desejo como tal ilimitado. Em naturezas no distorcidas limitado por

    necessidades objetivas e , portanto, capaz de satisfao. Porem a

    imaginao distorcida do homem transcende as necessidades objetivas

    ("Quando perdido seus desvios so ilimitados") e com elas nenhuma

    satisfao possvel. E isto, no desejo como tal, produz uma "tendncia

    insensata (inconsulta) para a morte".

    A afirmao do ser essencial de algum, a despeito de desejos e

    ansiedades, cria a alegria. Luclio exortado por Sneca a fazer sua

    ocupao, o "aprender como sentir a alegria". No alegria de desejos

    satisfeitos que ele se refere, porque a alegria real "assunto srio"; a

    felicidade de uma alma que "elevada acima de todas as circunstncias". A

    alegria acompanha a auto-afirmao de nosso ser essencial, a despeito das

    inibies provocadas em ns pelos elementos acidentais. Alegria a

    expresso emocional de corajoso Sim ao verdadeiro ser prprio de uma

    pessoa. Esta combinao de coragem e alegria mostra mais claramente o

    carter ontolgico da coragem. Se a coragem interpretada sozinha, em

    termos ticos, sua relao com a alegria da auto-realizao permanece

    escondida. No ato ontolgico da auto-afirmao do ser essencial de uma

    pessoa, coragem e alegria coincidem. A coragem estica no nem

    atestica, nem testica, no sentido tcnico destas palavras. O problema de

    como a coragem se relaciona com a idia de Deus formulado e

    respondido pelos esticos. Mas respondido de tal forma que a resposta

    cria mais perguntas do que responde, um fato que mostra a seriedade

    existencial da doutrina estica da coragem. Sneca estabelece trs pontos a

    respeito da relao da coragem da sabedoria com a religio. O primeiro

    ponto : "no perturbados pelos temores e no estragados pelos prazeres,

    no temeremos nem a morte nem os deuses". Nesta frase os deuses

    significam o destino. Eles so os poderes que determinam o destino e

    representam a ameaa do destino. A coragem, que vence a ansiedade do

  • 16

    destino, tambm domina a ansiedade entre os deuses. Afirmando sua

    participao na razo universal, o homem sbio transcende o domnio dos

    deuses. A coragem de ser transcende o poder politestico do destino. O

    segundo ponto que a alma do homem sbio similar a Deus. O Deus

    indicado aqui o divino Logos, em unio com quem a coragem da

    sabedoria vence o destino e transcende os deuses. o "Deus acima de

    deus". O terceiro ponto ilustra a diferena entre a idia da resignao

    csmica e a idia da salvao csmica em termos testicos. Sneca diz que

    enquanto Deus est alm do sofrimento, o verdadeiro estico est acima

    dele. Isto implica em que o sofrimento contradiz a natureza de Deus. -lhe

    impossvel sofrer, est alm do mesmo. O estico, como um ser humano,

    capaz de sofrer. Porem no precisa deixar o sofrimento dominar o ncleo

    de seu ser racional. Pode manter a si prprio acima dele, porque a

    conseqncia daquilo que no seu ser essencial, mas nele acidental. A

    distino entre "alm" e "acima" implica um julgamento de valor. O homem

    sbio que corajosamente vence desejo, sofrimento e ansiedade "ultrapassa

    o prprio Deus".

    Ele est acima de Deus, que por sua perfeio, natural e

    invulnerabilidade est alm de tudo isto. Tomando por base tal avaliao, a

    coragem da sabedoria e resignao poderia ser substituda pela coragem da

    f na salvao, isto , pela f num Deus que paradoxalmente participa do

    sofrimento humano. Mas o estoicismo em si no pde jamais dar este

    passo. O estoicismo alcana seus limites sempre que se formula a questo:

    como possvel a coragem da sabedoria? Embora os esticos enfatizassem

    que todos os seres humanos eram iguais pelo fato de participarem do Logos

    universal, no podiam negar que a sabedoria possesso s de uma elite

    infinitamente pequena. As massas do povo, eles tinham cincia, so

    "loucas", na servido de desejos e medos. Embora participando do Logos

    divino com sua natureza essencial ou racional, a maior parte dos seres

    humanos est num estado de verdadeiro conflito com sua prpria

    racionalidade e, portanto, incapaz de afirmar seu ser essencial

    corajosamente.

  • 17

    Era impossvel para os esticos interpretar esta situao que eles no

    podiam negar. E no era s a predominncia dos "loucos" entre as massas

    que eles no explicavam. Algo nos prprios homens sbios os colocava ante

    um difcil problema. Sneca diz que nenhuma coragem to grande como a

    nascida do desespero mais profundo. Mas, pergunta-se, conheceu o

    estico, como estico, o "desespero mais profundo?" Pode ele alcan-lo

    dentro da estrutura de sua filosofia? Ou algo ausente de seu desespero e,

    em conseqncia, de sua coragem? O estico, como estico, no

    experimenta a desesperao da culpa pessoal. Epcteto cita como exemplo

    as palavras de Scrates no Memorabilia de Scrates por Xenofonte: "Eu

    mantive aquilo que est sob meu controle" e "jamais fiz nada que fosse

    errado em minha vida privada ou pblica." E o prprio Epcteto afirma que

    aprendeu a no se preocupar com nada que seja fora dos limites de seu

    desgnio moral. Porem, mais reveladora do que estas afirmativas, a

    atitude geral de superioridade e complacncia que caracteriza as diatribai

    esticas, suas oraes morais e acusaes pblicas. O estico no pode

    dizer, tal Hamlet, que "conscincia faz covardes todos ns-. Ele no v a

    queda universal da racionalidade essencial para a loucura existencial como

    sendo matria de responsabilidade e um problema de culpa. A coragem de

    ser, para ele, a coragem de nos afirmarmos a despeito do destino e da

    morte, mas no a coragem de nos afirmarmos a despeito do pecado e da

    culpa. No poderia ter sido diferente: porque a coragem de enfrentar a

    prpria culpa conduz questo da salvao, ao invs da renncia.

    CORAGEM E AUTO-AFIRMAO: SPINOZA

    O estoicismo recuou para segundo plano quando a f na salvao

    csmica substituiu a coragem da renncia csmica. Mas retornou quando o

    sistema medieval, que era dominado pelo problema da salvao, comeou

    a se desintegrar. E tornou-se decisivo de novo para uma elite intelectual

    que rejeitava o caminho da salvao, sem contudo substitui-lo pelo

  • 18

    caminho estico da renncia. Em razo do impacto do mundo ocidental, o

    renascimento das antigas escolas de pensamento, no incio da poca

    moderna, foi no s um renascimento mas tambm uma transformao.

    Isto vlido para o renascimento do platonismo tanto como para o

    ceticismo e estoicismo; vlido para a renovao das artes, da literatura,

    das teorias de Estado, e da filosofia da religio. Em todos estes casos o

    negativismo do sentimento antigo transformado no positivismo das idias

    crists de criao e encarnao, mesmo quando tais idias so ou

    ignoradas, ou negadas. A substncia espiritual do humanismo renascentista

    era crist, como a substncia espiritual do antigo humanismo era pag, a

    despeito da crtica das religies pags, pelo humanismo grego, e do

    cristianismo, pelo humanismo moderno. A diferena decisiva entre ambos

    os tipos de humanismo a resposta pergunta de se o ser

    essencialmente bom ou no. Enquanto o smbolo da criao implica na

    doutrina crist clssica de que "o ser como ser bom" (esse qua esse

    bonum est), a doutrina da "matria resistente", na filosofia grega, expressa

    o sentimento pago de que o ser necessriamente ambguo to longe

    quanto participa de ambas, forma criativa e matria inibidora. Este

    contraste na concepo ontolgica bsica tem conseqncias decisivas.

    Enquanto, na antiguidade mais prxima, as vrias formas de dualismo

    metafsico e religioso esto ligadas ao ideal asctico a negao da

    matriao renascimento da antiguidade, no perodo moderno, substitui

    ascetismo por modelagem ativa do reino material. E enquanto, no mundo

    antigo, o sentimento trgico da existncia dominava pensamento e vida,

    em especial a atitude em relao histria, a Renascena deu incio a um

    movimento que estava olhando para o futuro e para o que havia de criativo

    e novo nele. A esperana submeteu o sentimento de tragdia, e a crena no

    progresso, a resignao ante a repetio circular. Uma terceira

    conseqncia da diferena ontolgica bsica o contraste na avaliao do

    indivduo por parte do antigo e moderno humanismo. Enquanto o mundo

    antigo avaliava o indivduo no como um indivduo, mas como uma

    expresso de algo universal, por exemplo, uma virtude, o renascimento da

    antiguidade via no indivduo, como indivduo, uma expresso singular do

    universo, incomparvel, insubstituvel, e de infinita significao.

  • 19

    bvio que estas controvrsias criaram diferenas decisivas na

    interpretao da coragem. No ao contraste entre renncia e salvao

    que me refiro agora. O humanismo moderno permanece humanismo,

    rejeitando a idia de salvao. Porem o humanismo moderno tambm

    rejeita a renncia. Ele a substitui por uma espcie de auto-afirmao que

    transcende a dos esticos, porque inclui a existncia material, histrica e

    individual. Contudo, h tantos pontos em que este humanismo moderno

    idntico ao antigo estoicismo que pode ser chamado neo-estoicismo,

    Spinoza seu representante. Nele, como em ningum, est elaborada a

    ontologia da coragem. Chamando sua principal obra ontolgica tica

    indicou, no prprio titulo sua inteno de mostrar a base ontolgica da

    existncia tica do homem, incluindo a coragem humana de ser. Porem,

    para Spinoza como para os esticos a coragem de ser uma coisa entre

    outras. uma expresso do ato essencial de tudo que participa do ser, a

    saber, auto-afrmao. A doutrina de auto-afirmao um elemento

    central no pensamento de Spinoza. Seu carter decisivo torna-se manifesto

    numa proposio como esta: "O esforo, com que tudo se empenha em

    persistir em seu prprio ser, nada mais do que a essncia verdadeira da

    coisa em questo" (tica III prop. 7)3. A palavra latina para esforo

    conatus, o empenho por algo. ste empenho no um aspecto contingente

    de uma coisa, nem ele um elemento em seu ser entre outros elementos;

    sua essentia actualis. O conatus faz uma cosa parecer o que ela , de

    forma que se ele desaparece, a coisa mesma desaparece (tica II, Ref.2).

    Empenhar-se pela auto-afirmao faz uma coisa ser o que ela . Spinoza

    chama este esforo, que a essncia de uma coisa, tambm sua potncia, e

    diz da mente, que ela afirma ou prope (affirmat sive ponit) sua prpria

    potncia de ao (ipsuis agendi potentiam) (III, prop. 54). Assim ns temos

    a identificao da essncia real, potncia de ser e auto-afirmao. E

    seguem-se mais identificaes. A potncia de ser se identifica com virtude,

    e virtude, por conseqncia, com natureza essencial. Virtude o poder de

    agir, exclusivamente de acordo com nossa verdadeira natureza. E o grau de

    3 Citado de The Chief Works of Benedict de Spinoza, trad. R.H.M. Elwes

    (London, Bell and Sons, 1919).

  • 20

    virtude o grau em que algum est se empenhando e capaz de afirmar

    seu prprio ser. impossvel conceber qualquer virtude mais importante do

    que o esforo em preservar o prprio ser (IV, prop. 22). Auto-afirmao ,

    por assim ser, virtude totalmente. Porem auto-afirmao a afirmao de

    nosso ser essencial, e o conhecimento do ser essencial de algum tem a

    razo como intermediria, a potncia de algum em ter idias adequadas.

    Portanto, agir incondicionalmente guiado pela virtude, o mesmo que agir

    sob a orientao da razo, afirmar nosso ser essencial ou verdadeira

    natureza (IV, prop. 24).

    Nesta base explanada a relao entre coragem e auto-afirmao.

    Spinoza (III, prop. 59) usa dois termos, fortitudo e animositas. Fortitudo

    (como na terminologia escolstica), a fora da alma, seu poder de ser o

    que essencialmente. Animositas, derivado de anima, alma, coragem no

    sentido de uma ao total da pessoa. Sua definio esta: "Por coragem eu

    quero dizer o desejo cupiditas com o qual cada homem se empenha em

    preservar seu prprio ser, em concordncia to s com os ditames da

    razo" (III, prop. 59). Esta definio conduziria a outra identificao, de

    coragem com virtude em geral. Mas Spinoza distingue entre animositas e

    generositas, o desejo de se ligar a outra gente pela amizade e apoio. Esta

    dualidade de um conceito de coragem todo-abrangente e limitado tem

    relao com o desenvolvimento total da idia de coragem qual nos

    referimos. Numa filosofia sistemtica, com a exatido e consistncia da de

    Spinoza, este um fato notvel, e mostra os dois motivos cognitivos que

    sempre determinam a doutrina da coragem: o universalmente ontolgico e

    o especificamente moral. Isto tem uma conseqncia muito significativa

    para um dos mais difceis problemas ticos, a relao da auto-afirmao e

    do amor aos outros. Para Spinoza, o ltimo uma implicao do primeiro.

    Uma vez que virtude e auto-afirmao so idnticas, e urna vez que

    "generosidade" o ato de sair de si para os outros num afeto benevolente,

    no se pode pensar em conflito entre auto-afirmao e amor. Isto, claro,

    pressupe que auto-afirmao no s distinta de, Porem precisamente o

    oposto de "egosmo", no sentido de uma qualidade moral negativa. Auto-

  • 21

    afirmao o oposto ontolgico da "reduo do ser" pelo que esta afeta e

    contradiz a natureza essencial de uma pessoa. Erich Fromm expressou

    cabalmente a idia de que o auto-amor correto e o amor correto pelos

    outros so interdependentes, e que egosmo e o abuso dos outros so

    igualmente interdependentes. A doutrina de auto-afirmao de Spinoza

    inclui ambos, o auto-amor correto (embora ele no use o termo auto-amor,

    que eu prprio hesito em usar) e o correto amor pelos outros.

    Auto-afirmao, segundo Spinoza, , participao na auto-afirmao

    divina. "O poder pelo qual cada coisa particular, e conseqentemente o

    homem, preserva seu ser a potncia de Deus" (IV, prop. 4). A participao

    da alma na potncia divina descrita em termos que incluem ambos,

    conhecimento e amor. Se a alma se reconhece a si prpria sub acternitatis

    specie, (V, prop. 30), reconhece seu ser em Deus. E este conhecimento de

    Deus e de seu ser em Deus a causa da beatitude perfeita e, por

    conseqncia, de um amor perfeito pela causa desta beatitude. Este amor

    espiritual (intellectualis) porque eterno e portanto um afeto no sujeito s

    paixes que tm conexo com a existncia corporal (V, prop. 34). Ele a

    participao no amor espiritual infinito com o qual Deus contempla e ama a

    si prprio, e, em amando a si prprio, tambm ama o que pertence a ele,

    seres humanos. Estes raciocnios respondem a duas questes sobre a

    natureza da coragem que tinham permanecido sem resposta. Explicam

    porque auto-afirmao a natureza essencial de cada ser e como tal o mais

    alto bem. Auto-afrmao perfeita no um ato isolado que se origina no

    ser individual, mas sua participao no ato universal, ou divino, de auto-

    afirmao, o qual o poder criador em cada ato individual. Nesta idia a

    ontologia da coragem encontra sua expresso fundamental. E uma segunda

    pergunta respondida, a do poder que torna possvel a dominao do

    desejo e da ansiedade. Os esticos no possuam resposta para isto.

    Spinoza, com raiz em seu misticismo judeu, responde com a idia de

    participao. Ele sabe que um afeto s pode ser subjugado por outro afeto,

    e que o nico afeto que pode suplantar os sentimentos de paixo o afeto

    da mente, o amor intelectual, ou espiritual, da alma por sua prpria base

    eterna. Este afeto uma expresso da participao da alma no auto-amor

  • 22

    divino. A coragem de ser possvel porque ela participao na auto-

    afirmao do ser-em-si.

    Uma questo, contudo, permanece irrespondida, tanto por Spinoza

    como pelos esticos. a questo formulada pelo prprio Spinoza ao fim de

    sua tica. Por que, ele indaga, que o caminho da salvao (salus), que ele

    mostrou, est sendo negligenciado por quase todos? Porque o mesmo

    difcil, e portanto raro, como tudo que sublime, ele responde na

    melanclica ltima frase de seu livro. Esta era tambm a resposta dos

    esticos, Porem uma resposta no de salvao, mas de resignao.

    CORAGEM E VIDA: NIETZSCHE

    O conceito de Spinoza de autopreservao, tanto como nosso

    conceito interpretativo "auto-afirmao", se tomado ontolgicamente,

    coloca uma questo sria. O que significa auto-afirmao quando no h

    eu, por exemplo no reino inorgnico ou na substncia infinita, no ser-em-si?

    No um argumento contra o carter ontolgico de coragem o fato de ser

    impossvel atribuir coragem a grandes sees da realidade e essncia de

    toda realidade? No a coragem uma qualidade humana que s pode ser

    atribuda, mesmo aos animais mais elevados, por sua analogia, mas no

    propriamente? No decide isto a favor do entendimento moral de coragem,

    em detrimento do ontolgico? Ao formular este argumento lembramo-nos

    de argumentos similares contra a maior parte dos conceitos metafsicos na

    histria do pensamento humano. Conceitos tais como alma do mundo,

    microcosmos, instinto, vontade de potncia, e assim por diante, tm sido

    acusados de introduzir subjetividade no reino objetivo das coisas. Porem

    estas acusaes so enganos: esquecem o significado dos conceitos

    ontolgicos. No funo de estes conceitos descreverem a natureza

    ontolgica da realidade em termos do lado subjetivo ou objetivo de nossa

    experincia ordinria. funo de um conceito ontolgico usar alguma

    regio de experincia para assinalar as caractersticas do ser-em-si, que est

  • 23

    acima da separao entre subjetividade e objetividade e que, portanto, no

    podem ser expressar literalmente em termos tirados do lado subjetivo ou

    objetivo. A ontologia fala de maneira anloga. O ser, como ser, transcende

    tanto a objetividade como a subjetividade. Mas para poder estabelecer

    contato com ele cognitivamente precisa-se usar ambos. E pode-se agir

    assim porque ambas esto enraizadas naquilo que as transcende, no ser-

    em-si. A luz desta considerao necessria aos conceitos ontolgicos para

    serem interpretados. Eles devem ser entendidos no literal, mas

    anlogamente. No quer isto dizer que tenham sido elaborados

    arbitrriamente e possam, com facilidade, ser substitudos por outros

    conceitos. Sua escolha diz respeito experincia e ao pensamento, e

    objeto de critrios que determinam a adequao ou inadequao de cada

    um deles. Isto vlido tambm para conceitos como auto-preservao ou

    auto-afirmao, se tomados num sentido ontolgico. verdade em cada

    captulo de uma ontologia da coragem.

    Ambas, autopreservao e auto-afirmao, logicamente representam

    a superao de algo que, pelo menos em potencial, trai ou nega o eu. No

    h referncia a este "algo", nem no estoicismo ou neo-estoicismo, embora

    ambos o pressuponham. No caso de Spinoza parece mesmo impossvel

    considerar tal elemento negativo na estrutura de seu sistema. Se tudo

    segue, por necessidade, a natureza da substncia eterna, nenhum ser teria

    o poder de trair a autopreservao de outro ser. Tudo seria como , e auto-

    afirmao se mostraria uma palavra exagerada para a simples identidade

    de uma coisa consigo prpria. Mas esta no por certo a opinio de

    Spinoza. .Ele fala de uma traio real e mesmo de sua experincia de que a

    maior parte das pessoas sucumbe a esta traio. Fala de conatus, o esforo

    em prol, e de potentia, a potncia de auto-realizao. Estas palavras, apesar

    de no poderem ser tomadas ao p da letra, no devem contudo ser

    desprezadas como faltas de significao. Devem ser tomadas

    anlogamente. A partir de Plato e Aristteles, o conceito de potncia

    desempenha um papel importante no pensamento ontolgico. Termos tais

    como dynamis, potentia (Leibnitz) na qualidade de caracterizao da

    verdadeira natureza do ser, preparam o caminho para a "vontade de

  • 24

    potncia". Assim tambm o termo "vontade", usado para a realidade bsica

    de Agostinho e Duns Scotus a Boehme, Schelling e Schopenhauer. A

    vontade de potncia de Nietzsche une ambos os termos, e deve ser

    entendida luz de seu significado ontolgico. Pode-se dizer,

    paradoxalmente, que a vontade de potncia de Nietzsche no nem

    vontade nem potncia, isto , nem vontade no sentido psicolgico, nem

    potncia no sentido sociolgico. Designa a auto-afirmao da vida como

    vida, incluindo autopresrvao e crescimento. Portanto, a vontade no se

    esfora por algo que no tem, por algum objeto fora dela mesma, mas quer

    a si prpria no duplo sentido de preservar e transcender a si prpria. este

    seu poder, e tambm o poder sobre si prpria. Vontade de potncia a

    auto-afirmao da vontade como realidade bsica.

    Nietzsche o representante mais importante e efetivo do que

    poderia ser chamado uma "filosofia da vida". Vida, neste termo, o

    processo no qual a potncia do ser realiza a si prprio. Porem, em se

    realizando, ele supera aquilo que na vida, embora pertencendo vida, a

    nega. Pode-se cham-lo de a vontade que contradiz a vontade de potncia.

    Em seu Zarathustra, no captulo chamado "Os Pregadores da Morte" (Pt. I,

    cap. 9), Nietzsche assinala os diferentes meios pelos quais a vida tentada

    a aceitar sua prpria negao: "Encontram um invlido, ou um ancio, ou

    um defunto e dizem de imediato: 'a vida foi refutada!' Porem eles s-

    mente so refutados, e seus olhos, que s vem um aspecto da

    existncia."4 A vida tem aspectos vrios, ambgua. Nietzsche descreveu

    sua ambigidade de forma mais tpica no ltimo fragmento da coleo de

    fragmentos denominada Von fade de Potncia. Coragem a potncia da

    vida em se afirmar a despeito desta ambigidade, enquanto que a negao

    da vida, devido sua negatividade, uma expresso de covardia. Sobre estas

    bases Nietzsche desenvolve uma profecia e filosofia de coragem, em

    oposio mediocridade e decadncia da vida no perodo cujo incio ele

    mesmo observou.

    4 The Complete Works of Friedrich Nietzsche, ed. Oscar Levy (London, T. N.

    Foulis, 1911), vol. II, trad. Thomas Conmon.

  • 25

    Como os filsofos primitivos, em Zarathustra, Nietzsche considerou o

    "guerreiro" (que ele distingue do mero soldado), um exemplo notvel de

    coragem. "O que bom? vos pergunto. Ser bravo bom." (I, 10). No estar

    interessado em longa vida, no querer ser poupado, e tudo isto justamente

    devido ao amor vida. A morte do guerreiro, e do homem maduro, no

    ser oprbrio para a terra (I, 21). Auto-afirmao a afirmao da vida e da

    morte que pertence vida.

    Para Nietzsche, como para Spinoza, virtude auto-afirmao. No

    captulo sobre "O Virtuoso" Nietzsche escreve: " o teu mais caro Eu, tua

    virtude. A sede da arena est em ti: para se alcanar de novo luta em cada

    arena e volta a si" (II, 27). Esta analogia descreve melhor do que qualquer

    definio o significado de auto-afirmao na filosofia da vida: O Eu tem a si

    prprio, Porem ao mesmo tempo procura atingir-se. Aqui o conatus de

    Spinoza torna-se dinmico, de forma que, falando em geral, pode-se dizer

    que Nietzsche um renascimento de Spinoza em termos dinmicos: "Vida",

    em Nietzsche substitui "substncia", em Spinoza. E isto vlido, no s para

    Nietzsche, como para a maior parte dois filsofos da vida. A verdade da

    virtude que o Eu est nela "e no uma coisa externa". Que teu Eu

    verdadeiro esteja em tua ao, como a me esta no filho: "que isso seja tua

    frmula de virtude!" (II, 27). Tanto quanto coragem a afirmao do Eu de

    algum, tambm virtude. O eu cuja auto-afirmao virtude e coragem

    o eu que se supera a si mesmo: "E este segredo falou a Vida mesmo para

    mim, 'Observa', disse ela, 'eu sou a que deve sempre ultrapassar a si

    prpria'." (II, 34). Colocando em itlico as ltimas palavras Nietzsche indica

    que deseja dar uma definio da natureza essencial da vida. "... Eis pelo que

    a Vida deve sacrificar-se pela potncia!" ele continua, e mostra nestas

    palavras que para ele auto-afirmao inclui autonegao mas para a maior

    afirmao possivel, a qual ele denomina "potncia": "A vida cria e a vida

    ama o que criou Porem logo precisa voltar-se contra ele: assim o deseja

    minha (da Vida) vontade." Portanto errado falar em "vontade de

    existncia", ou mesmo em "vontade de vida"; deve-se falar de "vontade de

    potncia", isto , de mais vida.

  • 26

    A vida, querendo ultrapassar-se, a boa vida, e a boa vida a vida

    corajosa. a vida da "alma poderosa" e do "corpo triunfante", cuja auto-

    satisfao virtude. Uma tal alma bane "tudo que covarde, diz: mau

    isso covarde" (III, 54). Porem, a fim de alcanar tal nobreza, necessrio

    obedecer e comandar, e obedecer enquanto comanda. Esta obedincia,

    que est incluida no comando, o oposto de submisso. A ltima a

    covardia, que no se atreve a se arriscar. O eu submisso o oposto do eu

    auto-afirmativo, mesmo se submetido a um Deus. Deseja escapar dor de

    ferir e ser ferido. O eu obediente, ao contrrio, o eu que se comanda e "se

    arrisca portanto" (II, 34) . Comandando a si prprio torna-se o prprio juiz e

    a prpria vtima. Comanda a si prprio, de acordo com a lei da vida, a lei da

    auto-transcendncia. A vontade que se comanda a vontade criadora. Faz

    um todo de fragmentos e enigmas da vida. No olha para trs, est alm de

    uma conscincia m, rejeita o "esprito de vingana" que a natureza mais

    profunda da auto-acusao e da conscincia de culpa, transcende a

    reconciliao, porque a vontade de potncia (II, 42) . Fazendo tudo isto o

    eu corajoso est unido vida em si e em seu segredo (II, 34) .

    Podemos concluir nossa discusso em torno da ontologia da coragem

    de Nietzsche com a seguinte citao: "Tendes vs coragem, meus

    irmos?... No a coragem ante testemunhas, mas a coragem do anacoreta e

    da guia, que nem mesmo mais um Deus observa?... Ele tem corao que

    conhece o medo mas o vence; que v o abismo, Porem com orgulho.

    Aquele que v o abismo mas com olhos de guia aquele que com garras

    de guia agarra o abismo: aquele tem coragem." (IV, 73, sec. 4).

    Estas palavras revelam o outro lado de Nietzsche, o que nele o faz um

    existencialista, a coragem de olhar para dentro do abismo do no-ser na

    completa solido, daquele que aceita a mensagem de que "Deus est

    morto". Sobre esta faceta teremos mais o que dizer nos captulos seguintes.

    Aqui encerramos nosso retrospecto histrico, que no pretendeu ser

    uma histria da idia de coragem. Teve duplo propsito. Tentou mostrar

    que, na histria do pensamento ocidental, do Laches de Plato ao

    Zarathustra de Nietzsche, o problema ontolgico da coragem permanece

  • 27

    incompreensvel quando despido de seu carter ontolgico, em parte

    porque a experincia da coragem mostrou ser uma chave decisiva para a

    aproximao ontolgica da realidade. E, alm do mais, o retrospecto

    histrico busca apresentar material conceitual para o tratamento

    sistemtico do problema da coragem, acima de tudo, o conceito de auto-

    afirmao ontolgica em seu carter bsico e suas diferentes

    interpretaes.

    Nota: As citaes de Nietzsche, no original em ingls, apresentam

    termos arcaicos, correspondentes aos do original alemo, que julgamos

    desnecessrio manter em portugus. (N. do T.)

  • 28

    2 - Ser, No-Ser e Ansiedade

    UMA ONTOLOGIA DA ANSIEDADE

    O Significado do No-Ser

    CORAGEM auto-afirmao "a-despeito-de", isto , a despeito

    daquilo que tende a impedir o eu de se afirmar. Diferindo das doutrinas

    estico-neo-esticas da coragem, as "filosofias da vida" trataram, de

    maneira sria e afirmativa, daquilo contra o que a coragem se coloca. Pois

    se o ser interpretado em termos de vida, ou processo, ou vir a ser, o no-

    ser ontologicamente to fundamental quanto o ser. O conhecimento

    deste fato no implica numa deciso a respeito da prioridade do ser sobre o

    no-ser, mas exige que o no-ser seja considerado na base mesma da

    ontologia. Ao falarmos da coragem como uma chave para a interpretao

    do ser-em-si, pode-se dizer que esta chave, ao abrir a porta do ser,

    encontra, ao mesmo tempo, o ser e a negao do ser, e a unidade deles.

    No-ser um dos conceitos mais difceis e mais discutidos.

    Parmnides tentou elimin-lo como conceito. Mas, agindo assim, tinha que

    sacrificar a vida. Demcrito restabeleceu-o e identificou-o com o espao

    vazio, a fim de tornar o movimento possvel. Plato usou o conceito do no-

    ser porque sem ele o contraste da existncia com as simples essncias est

    alm do entendimento. Est implcito na distino de Aristteles entre

    matria e forma. Deu a Plotino os meios para descrever a perda do eu da

    alma humana, e deu a Agostinho os meios para uma interpretao

    ontolgica do pecado humano. Para Pseudo-Dionsio, o Aeropagita, o no-

    ser tornou-se o princpio de sua doutrina mstica de Deus. Jacob Boehme, o

    protestante mstico e filsofo da vida, fez o raciocinio classico de que todas

  • 29

    as coisas esto enraizadas em um Sim e um No. Na doutrina de Leibnitz de

    finidade e mal, bem como na anlise da finidade e das formas categricas, o

    no-ser est implicado. A dialtica de Hegel faz da negao o poder

    dinmico dentro da natureza e da histria; e os filsofos da vida, desde

    Schelling e Schopenhauer, usam "vontade" como a categoria ontolgica

    bsica porque tem o poder de negar a si mesma sem se perder. Os

    conceitos de processo e vir a ser, em filsofos como Bergson e Whitehead,

    implicam tanto no-ser como ser. Os existencialistas recentes, em especial

    Heidegger e Sartre, tm posto o no-ser (Das Nichts, le nant) no centro de

    seu pensamento ontolgico; e Berdiaev, um seguidor de Dionsio e

    Boehme, desenvolveu uma ontologia de no-ser que leva em conta a

    liberdade "eu-ntica" em Deus e no homem. Estes meios filosficos de usar

    o conceito de no-ser podem ser observados contra o fundo da experincia

    religiosa da transitoriedade de tudo que criado e o poder do "demonaco"

    na alma humana e na histria. Na religio bblica, a despeito da doutrina da

    criao, estas negatividades tm um lugar decisivo. E o princpio

    demonaco, antidivino, que jamais participa do poder divino, aparece no

    centro dramtico da histria bblica.

    Levando em conta esta situao, de pouca importncia o fato de

    alguns lgicos negarem o carter conceitual do no-ser e tentarem afast-lo

    da cena filosfica, exceto sob a forma de julgamentos negativos. Porque a

    questo : O que nos diz o fato dos julgamentos sobre o carter do ser?

    Qual a condio ontolgica dos julgamentos negativos? Como o reino

    constitudo no qual so possveis julgamentos negativos? Por certo no-ser

    no um conceito como os outros. a negativa de todo conceito; Porem

    como tal ele um contedo inevitvel do pensamento e, como o tem

    mostrado a estaria do pensamento, o mais importante aps o ser-em-si.

    Se se pergunta como o no-ser se relaciona com o serem-si, s pode

    responder por metforas: ser "abarca" ele prprio e o no ser. O ser tem o

    no-ser "dentro" de si mesmo, de modo que eternamente presente e

    eternamente superado no processo de vida divina. A base de tudo que

    no uma identidade morta, sem movimento e vir a ser; uma criatividade

  • 30

    vivente. Ele se afirma criadoramente, conquistando eternamente seu

    prprio no-ser. Como tal o modelo da auto-afirmao de cada ser finito e

    a fonte de coragem do ser. .

    Coragem usualmente descrita como o poder da mente para vencer

    o medo. O significado de medo pareceu por demais bvio para merecer

    inqurito. Porem, nas ltimas dcadas, a psicologia profunda, em

    cooperao com a filosofia existencialista, tem conduzido a uma decisiva

    distino entre medo e ansiedade, e a definies mais precisas de cada um

    destes conceitos. Anlises sociolgicas do perodo atual assinalam a

    importncia da ansiedade como fenmeno de grupo. Literatura e arte

    fazem da ansiedade um problema principal de suas criaes, tanto no

    contedo como no estilo. O efeito disto tem sido o despertar dos grupos

    educados, ao menos para a conscientizao de sua prpria ansiedade, e a

    infiltrao, na conscincia pblica, de idias e smbolos de ansiedade. Hoje

    j quase um truismo chamar nosso tempo "era da ansiedade". O que

    expusemos vlido tanto para a Amrica como para a Europa.

    No obstante, necessrio incluir uma ontologia da ansiedade numa

    ontologia da coragem, porque so interdependentes. E possvel que, luz

    de uma ontologia da coragem, tornem-se visveis alguns aspectos da

    ansiedade. Esta a primeira assertiva sobre a natureza da coragem:

    ansiedade o estado no qual um ser tem cincia de seu possvel no-ser. O

    mesmo raciocnio, resumido, seria: ansiedade a conscincia existencial do

    no-ser. "Existencial" nesta frase significa que no o conhecimento

    abstrato de no-ser que produz ansiedade, mas a conscincia de que no-

    ser uma parte do nosso prprio ser. No a certeza da transitoriedade

    universal, nem mesmo a experincia da morte dos outros, Porem a

    impresso de tais acontecimentos na sempre latente conscincia de nosso

    prprio "ter de morrer", que produz ansiedade. Ansiedade finidade,

    experimentada como nossa prpria finidade. Esta a ansiedade natural do

    homem como homem, e de certa forma de todos os seres viventes. a

    ansiedade de no-ser, a certeza de nossa finidade como finidade.

  • 31

    A Interdependncia de Medo e Ansiedade

    Ansiedade e medo tm a mesma raiz ontolgica, mas no so o

    mesmo na realidade. Isto conhecimento comum, mas tem sido to

    enfatizado, e superenfatizado, a tal ponto, que pode ocorrer uma reao

    contra tal fato e apagar, no s os exageros, como tambm a verdade da

    distino. O medo, quando comparado ansiedade, tem objeto definido

    (segundo opinio da maioria dos autores), que pode ser enfrentado,

    analisado, atacado, tolerado. Pode-se agir sobre ele, e agindo sobre ele,

    participar dele mesmo se na forma de combate. Neste sentido pode-se

    torn-lo auto-afirmao. A coragem pode enfrentar cada objeto de medo

    porque um objeto, e torna a participao possvel. A coragem pode

    incorporar nela o medo produzido por um objeto definido, porque este

    objeto, embora assustador o quanto seja, tem uma faceta com que

    participa em ns e ns nele. Pode-se dizer que desde que haja um objeto do

    medo, o amor, no sentido de participao, pode dominar o medo.

    Mas no acontece o mesmo com a ansiedade, porque a ansiedade

    no tem objeto, ou melhor, numa frase paradoxal, seu objeto a negao

    de todo objeto. Portanto participao, luta e amor em relao a ela so

    impossveis. Aquele que est em ansiedade est, tanto quanto mera

    ansiedade, entregue a ela sem apelao. O desamparo no estado de

    ansiedade pode ser observado da mesma forma em animais e humanos.

    Expressa-se pela perda de direo, reaes inadequadas, falta de

    "intencionalidade" (o ser relacionado com contedos significantes de

    conhecimento ou vontade). A razo deste comportamento s vezes

    surpreendente a falta de um objeto no qual o sujeito (um estado de

    ansiedade) possa concentrar-se. O nico objeto a prpria ameaa, mas

    no a fonte da ameaa, porque a fonte da ameaa o "nada".

    Pode-se indagar se este "nada" ameaador a possibilidade

    desconhecida, indefinida de uma verdadeira ameaa. No cessa a

    ansiedade no momento em que um objeto de medo conhecido

    aparece? Ansiedade ento seria o medo do desconhecido. Porem

  • 32

    esta uma explicao insuficiente. Pois h reinos inumerveis de

    desconhecido, diferentes para cada assunto, e encarados sem

    nenhuma ansiedade. o desconhecido de um tipo especial que se

    relaciona com ansiedade. o desconhecido que, por sua exata

    natureza, no pode ser conhecido, porque no-ser.

    Medo e ansiedade so distintos mas no separados. So imanentes

    um dentro do outro: o acicate do medo a ansiedade, e a ansiedade se

    esfora na direo do medo. Medo estar assustado com algo, uma dor, a

    rejeio de uma pessoa ou um grupo, a perda de alguma coisa ou algum, o

    momento de morrer. Mas na antecipao da ameaa que se origina destas

    coisas, o que est assustando no a negatividade em si que eles traro

    para o sujeito, Porem a ansiedade sobre as implicaes possveis desta

    ansiedade. O exemplo capital e mais do que um exemplo o medo de

    morrer, O quanto ele medo, seu objeto o evento antecipado de ser

    morto por doena ou um acidente e assim sofrer a agonia e a perda de

    tudo. O quanto ansiedade, seu objeto o absolutamente desconhecido

    "depois da morte", o no-ser que permanece no-ser mesmo quando

    preenchido com imagens de nossa experincia presente. Os sonhos no

    solilquio de Hamlet, "ser ou no ser", que poderemos ter aps a morte e

    que torna covardes todos ns, so assustadores, no devido seu contedo

    manifesto, mas devido seu poder de simbolizar a ameaa do nada, em

    termos religiosos, da "morte eterna". Os smbolos de inferno criados por

    Dante produzem ansiedade, no por suas imagens objetivas, Porem por

    expressarem o "nada" cujo poder experimentado na ansiedade da culpa.

    Cada uma das situaes descritas no Inferno podia ser refutada pela

    coragem na base da participao e amor. Mas, claro, o significado que isto

    impossvel; em outras palavras, no so situaes reais, Porem smbolos

    da falta de objeto, do no-ser.

    O medo da morte determina o elemento de ansiedade em cada

    medo. Ansiedade, caso no modificada pelo, medo de um objeto,

    ansiedade em sua nudez, sempre a ansiedade do derradeiro no-ser. Num

    sentido imediato, ansiedade o sentimento penoso de no-ser capaz de

  • 33

    resolver a ameaa de uma situao especial. Porem uma anlise mais exata

    mostra que na ansiedade referente a uma situao especial encontramos

    implicada a ansiedade referente situao humana como tal. a ansiedade

    de no ser capaz de preservar o prprio ser, que jaz sob cada medo e

    constitui nele o elemento assustador. A partir do momento, contudo, em

    que a "ansiedade nua" se apodera da mente, os anteriores objetos do

    medo cessam de ser objetos definidos. Aparecem como em parte sempre

    foram, sintomas da ansiedade bsica do homem. Como tal esto alm do

    alcance mesmo do mais corajoso ataque contra eles.

    Esta situao conduz o sujeito ansioso a estabelecer objetos de

    medo. A ansiedade se esfora por se tornar medo, porque o medo pode ser

    alcanado pela coragem. impossvel, para um ser finito, enfrentar a

    ansiedade nua mais do que por um breve instante. Gente que

    experimentou estes instantes, como exemplo, alguns msticos em suas

    vises da "noite da alma", ou Lutero no desespero dos assaltos do demnio,

    ou Nietzsche-Zarathustra na experincia do "grande-nojo" falaram de seu

    horror inimaginvel. Este horror , de ordinrio, evitado pela transformao

    da ansiedade em medo de alguma coisa, no importa o qu. A mente

    humana no s, como disse Calvino, uma fbrica permanente de dolos,

    tambm fbrica permanente de medos a primeira visando evitar Deus, a

    segunda visando escapar ansiedade; e h uma relao entre as duas. Pois

    olhar de frente o Deus que na verdade Deus significa tambm olhar de

    frente a ameaa do no-ser. O "absoluto nu" (para usar uma expresso de

    Lutero) produz a "ansiedade nua", porque a extino de qualquer auto-

    afirmao finita, e no um possvel objeto de medo e coragem (Ver

    captulos 5 e 6). Mas, basicamente, as tentativas de transformar ansiedade

    em medo so vs. A ansiedade bsica, a ansiedade de um ser finito ante a

    ameaa do no-ser, no pode ser eliminada. Pertence existncia mesma.

    TIPOS DE ANSIEDADE

  • 34

    Os Trs Tipos de Ansiedade e a Natureza do Homem

    O no-ser dependente do ser que nega. "Dependente" significa

    duas coisas. Antes de tudo se refere prioridade ontolgica do ser sobre o

    no-ser. O prprio termo no-ser indica isto, e logicamente necessrio.

    No poderia haver negao se no houvesse afirmao precedente para ser

    negada. Por certo se pode descrever o ser em termos de no-ser; e pode-se

    justificar tal descrio assinalando o espantoso fato pr-racional de que h

    alguma coisa e no "coisa-nenhuma" [nada]. Pode-se dizer que "ser a

    negao da noite primordial do nada". Porem, fazendo assim, deve-se

    tomar cincia de que tal nada original no seria nem nada nem alguma

    coisa, de que ele s se torna "coisa nenhuma" em contraste com alguma

    coisa; em outras palavras, que a categoria do no ser, como no-ser,

    dependente do ser. Em segundo lugar, o no-ser dependente das

    qualidades especiais do ser. Em si o no-ser no possui qualidades nem

    diferena de qualidades. Mas ele as obtm em relao ao ser.

    O carter de negao do ser determinado por aquilo que negado

    no ser. Assim torna-se possvel falar de qualidades do no ser e, por

    conseqncia, de tipos de ansiedade.

    At agora temos usado o termo no-ser sem diferenciao, enquanto

    que na discusso da coragem foram mencionadas vrias formas de auto-

    afirmao. Tais formas correspondem a diferentes modalidades de

    ansiedade, e s so compreensveis em correlao com elas. Sugiro que

    distingamos trs tipos de ansiedade de acordo com as trs direes nas

    quais o no-ser ameaa o ser. O no-ser ameaa a auto-afirmao "ontica"

    do homem, de modo relativo, em termos de destino, de modo absoluto, em

    termos de morte. Ameaa a auto-afirmao espiritual do homem, de modo

    relativo em termos de vacuidade, de modo absoluto, em termos de

    insignificao. Ameaa a auto-afirmao moral do homem, de modo

    relativo em termos de culpa, de modo absoluto, em termos de condenao.

    A confirmao desta ameaa tripla a ansiedade, aparecendo em trs

    formas, a do destino e da morte (em resumo, a ansiedade da morte), a do

  • 35

    vazio e perda de significao, (em resumo, a ansiedade da vacuidade), a de

    culpa e condenao (em resumo, a ansiedade da condenao). Em todas as

    trs formas a ansiedade existencial, no sentido de que pertence

    existncia como tal, no a um estado anormal da mente como na ansiedade

    neurtica (e psictica). A natureza da ansiedade neurtica, e sua relao

    com a ansiedade existencial, ser discutida em outro captulo. Trataremos

    agora das trs formas de ansiedade existencial, primeiro de sua realidade

    na vida do indivduo, depois de suas manifestaes sociais em perodos

    especiais da histria ocidental. Contudo deve-se estabelecer que a

    diferena de tipos no significa excluso mtua. No primeiro captulo vimos

    por exemplo, que a coragem de ser tal como aparece nos antigos esticos

    domina no s o medo da morte como tambm a ameaa da insignificao.

    Observamos em Nietzsche que, a despeito da predominncia da

    insignificao, a ansiedade da morte e condenao apaixonadamente

    desafiada. Em todos os representantes do cristianismo clssico, morte e

    pecado so vistos como os adversrios aliados, contra quem a coragem da

    f deve lutar. As trs formas de ansiedade (e de coragem) so imanentes

    uma na outra, Porem normalmente sob a doutrinao de uma delas.

    A Ansiedade do Destino e da Morte

    Destino e morte so os meios pelos quais nossa auto-afirmao

    "ontica"5 ameaada pelo no-ser. "Ontica", do grego on, "ser", significa

    aqui a auto-afirmao bsica de um ser por sua simples existncia.

    (ontolgica designa a anlise filosfica da natureza do ser). A ansiedade do

    destino e da morte a mais bsica, mais universal e inescapvel. Todas as

    tentativas de neg-la so fteis. Mesmo se os assim chamados argumentos

    em favor da "imoralidade da alma" tivessem poder argumentativo (que eles

    no tm) no convenceriam existencialmente. Pois existencialmente todo

    5 O termo "ontic", no ingls, neologismo do autor. Usamos, em portugus,

    o correspondente "ntico, a". (N. do T.)

  • 36

    mundo tem certeza da completa perda do eu que a extino biolgica

    implica. A mente no sofisticada sabe, de maneira instintiva, o que a

    ontologia sofisticada formula: que a realidade tem a estrutura bsica da

    correlao eu-mundo e que, com o desaparecimento de um lado, o mundo,

    o outro lado, eu, tambm desaparece, e que o que resta sua base comum,

    mas no sua correlao estrutural. Tem sido observado que a ansiedade da

    morte aumenta com o aumento da individualizao e que os povos nas

    culturas coletivistas so menos dados a este tipo de ansiedade. A

    observao correta, contudo a deduo de que no h ansiedade bsica

    referente morte nas culturas coletivistas errada. A razo da diferena

    das civilizaes mais individualizadas que o tipo especial de coragem que

    caracteriza o coletivismo (ver pgs. 80 e segs.), enquanto est firme, alivia a

    ansiedade da morte. Mas o prprio fato de que a coragem tem de ser

    criada por meio de muitas atividades e smbolos internos e externos

    (psicolgicos e rituais) mostra que a ansiedade bsica tem que ser

    superada, mesmo no coletivismo. Sem sua presena pelo menos potencial,

    nem guerra nem lei criminal seriam compreensveis nestas sociedades. Se

    no houvesse medo da morte, no surtiria efeito a ameaa da lei ou de um

    inimigo superior o que obviamente no . O homem como homem, em

    cada civilizao, ansiosamente certo da ameaa do no-ser e necessita

    coragem para afirmar-se a despeito dela.

    A ansiedade da morte o horizonte permanente dentro do qual a

    ansiedade do destino trabalha. Porque a ameaa contra a auto-afirmao

    ontica do homem no s a ameaa absoluta da morte, mas tambm a

    ameaa relativa do destino. Por certo a ansiedade da morte ofusca todas as

    ansiedades concretas e lhes d sua seriedade bsica. Elas tm, contudo,

    uma certa independncia e, de ordinrio, um impacto mais imediato do que

    a ansiedade da morte. O termo "destino" para todo este grupo de

    ansiedade acentua um elemento que comum a todos eles: seu carter

    contingente, sua imprevisibilidade, a impossibilidade de mostrar sua

    significao e propsito. Pode-se descrever isto em termos da estrutura

    categrica de nossa experincia. Pode-se mostrar a contingncia de nosso

    ser temporal, o fato de existirmos neste, e no em outro perodo de tempo,

  • 37

    iniciado num momento contingente, findando num momento contingente,

    preenchido com experincias que so contingentes elas prprias no

    referente qualidade e quantidade. Pode-se mostrar a contingncia de

    nosso ser espacial (nosso nos encontrarmos neste e no em outro lugar, e a

    estranheza deste lugar a despeito de sua familiaridade); o carter

    contingente de ns mesmos e o lugar do qual olhamos para nosso mundo;

    e o carter contingente da realidade para a qual olhamos, isto , nosso

    mundo. Ambos podiam ser diferentes: esta sua contingncia e isto produz

    a ansiedade referente nessa existncia espacial. Pode-se mostrar a

    contingncia da interdependncia causal da qual se uma parte, dizendo

    respeito tanto ao passado como ao presente, s vicissitudes vindas de

    nosso mundo e s foras ocultas nas profundezas de nosso prprio eu.

    Contingente no quer dizer causalmente indeterminado, mas significa que

    as causas determinantes de nossa existncia no tm necessidade

    fundamental. Elas so dadas, e no podem ser deduzidas logicamente.

    Estamos colocados de modo contingente dentro da trama completa das

    relaes causais. De modo contingente somos determinados por elas a cada

    momento, e por elas expulsos no ltimo momento.

    O destino a lei da contingncia, e a ansiedade referente ao destino

    est baseada na certeza do ser finito de ser contingente a todos os

    respeitos, de no ter necessidade bsica. O destino usualmente

    identificado com necessidade no sentido de uma inevitvel determinao

    causal. Contudo, no a necessidade causal que faz o destino matria de

    ansiedade, Porem a falta de necessidade bsica, a irracionalidade, a

    impenetrvel escurido do destino.

    A ameaa do no-ser auto-afirmao ontica do homem absoluta

    na ameaa da morte, relativa na ameaa do destino. Porem a ameaa

    relativa uma ameaa s porque em, sua base est a ameaa absoluta. O

    destino no produziria ansiedade inevitvel se no tivesse a morte por trs

    de si. E a morte est por trs do destino e suas contingncias, no s no

    ltimo momento, quando se expulso da existncia, mas em cada

    momento dentro da existncia. No-ser onipresente e produz ansiedade

  • 38

    mesmo onde uma ameaa imediata de morte est ausente. Est por trs da

    experincia que ns conduzimos, junto com tudo o mais, do passado para o

    futuro, sem um momento de tempo que no se desvanea de imediato.

    Est por trs da insegurana e desabrigo de nossa existncia social e

    individual. Est por trs dos ataques que sofre nossa potncia de ser, no

    corpo e na alma, por parte da fraqueza, enfermidade e acidentes. O destino

    se realiza em todas estas formas, e atravs delas a ansiedade do no-ser

    toma conta de ns. Tentamos transformar ansiedade em medo e ir,

    corajosamente, de encontro aos objetos nos quais a ameaa se corporifica.

    Temos xito em parte, Porem, seja qual for, temos cincia do fato de que

    no so esses objetos, com os quais lutamos, que produzem a ansiedade,

    mas a situao humana como tal. Disto brota uma pergunta: H uma

    coragem de ser, uma coragem de se afirmar a despeito da ameaa contra a

    auto-afirmao ontica do homem?

    A Ansiedade da Vacuidade e Insignificao

    O no-ser ameaa o homem como um todo, e portanto ameaa tanto

    sua auto-afirmao espiritual como a ntica. A auto-afirmao espiritual

    ocorre em cada momento em que o homem vive criadoramente nas vrias

    esferas de significao. Criador, neste contexto, tem o sentido no de

    criao original como desempenhado pelo gnio, mas de viver

    espontaneamente, em ao e reao, com o contedo de nossa vida

    cultural. A fim de ser espiritualmente criador no se precisa ser um artista,

    ou cientista, ou estadista criador, mas deve-se ser capaz de participar

    intencionalmente de suas criaes originais. Uma tal participao criadora

    na medida em que muda aquilo do qual se participa, mesmo se em pores

    muito pequenas. A transformao criadora de um idioma pela

    interdependncia do poeta ou escritor criador e os muitos que so

    influenciados por eles, direta ou indiretamente, e reagem de modo

    espontneo a eles um exemplo claro. Todo aquele que vive

    criadoramente em significaes, se afirma como um participante nestas

  • 39

    significaes. Afirma-se quando recebendo e transformando a realidade de

    modo criador. Ama-se a si prprio ao participar da vida espiritual e ao amar

    seu contedo, ele o ama porque sua prpria realizao e porque ele se

    realiza atravs dele. O cientista ama ambos, a verdade que ele descobre e a

    si prprio na medida em que a descobre. Ele possudo pelo contedo de

    sua descoberta. o que se chama "auto-afirmao espiritual". E se ele no

    fez a descoberta, Porem s participa dela, igualmente auto-afirmao

    espiritual.

    Uma tal experincia pressupe que a vida espiritual tomada com

    seriedade, de que matria de interesse bsico. E isto de novo pressupe

    que nela, e atravs dela, torna-se manifesta a realidade bsica. Uma vida

    espiritual na qual isto no experimentado ameaada pelo no-ser nas

    duas formas pela qual ele ataca a auto-afirmao espiritual: vacuidade e

    insignificao.

    Usamos o termo insignificao para a ameaa absoluta do no-ser

    auto-afirmao espiritual, e o termo vacuidade para a ameaa relativa a ela.

    No so mais idnticas do que so ameaa de morte e de destino. Porem,

    na base da vacuidade est a insignificao, como a morte est na base das

    vicissitudes do destino.

    A ansiedade da vacuidade despertada pela ameaa do no-ser ao

    contedo especial da vida espiritual. Uma certeza rompe atravs dos

    acontecimentos externos ou processos interiores: somos cortados da

    participao criadora numa esfera de cultura, nos sentimos frustrados a

    respeito de algo que se tinha afirmado com paixo, somos conduzidos da

    devoo a um objeto devoo por outro e de novo por outro, porque o

    sentido de cada um deles se desvanece e o eros criador se transformou em

    indiferena ou averso. Tudo tentado e nada satisfaz. O contedo da

    tradio, embora excelente, embora louvado, embora amado antes, perde

    seu poder de dar contedo hoje. E a cultura presente ainda menos capaz

    de prover contedo. Ansiosamente nos voltamos para longe de todo

    contedo concreto e procuramos um significado bsico, s para descobrir

    que foi precisamente a perda de um centro espiritual que retirou o

  • 40

    significado do contedo especial da vida espiritual. Mas um centro

    espiritual no pode ser produzido intencionalmente, e a tentativa de

    produzi-lo s produz ansiedade mais espessa. A ansiedade da vacuidade

    conduz-nos ao abismo da insignificao.

    Vacuidade e perda de significao so expresses da ameaa do no-

    ser vida espiritual. Esta ameaa est implcita na finidade do homem e

    realizada no extravio do homem. Pode ser descrita em termos de dvida,

    sua funo criadora e destruidora na vida espiritual do homem. O homem

    capaz de perguntar porque est separado de embora participando cm,

    daquilo sobre o que est perguntando. Em toda pergunta est implicado

    um elemento de dvida, a certeza de no haver. Na indagao sistemtica a

    dvida efetiva; por exemplo, o tipo cartesiano. Este elemento de dvida

    uma condio de nossa vida espiritual. A ameaa vida espiritual no a

    dvida como um elemento, mas a dvida total. Se a certeza de no haver

    engolfou a certeza de haver, a dvida cessou de ser indagao metodolgica

    e tornou-se desespero existencial. A caminho desta situao a vida

    espiritual tenta manter-se, o quanto possvel, apegando-se a afirmaes

    que ainda no esto minadas, sejam elas tradies, convices autnomas

    ou preferncias emocionais. E sendo impossvel remover a dvida, aceita-se

    o fato com coragem, sem renunciar s nossas convices.

    Toma-se o risco de ficar sem rumo, e a ansiedade do risco, sobre si

    prprio. Desta maneira se evita a situao extrema at que se torna

    inevitvel e o desespero da verdade se torna completo.

    O homem tenta um outro caminho: a dvida se baseia na separao

    do homem do todo da realidade, da sua falta de participao universal, no

    isolamento de seu eu individual. Ele tenta sair desta situao, renunciar

    sua separao e auto-relacionamento. Voa da liberdade de perguntar e

    responder por si mesmo, para uma situao na qual no podem ser

    formuladas questes ulteriores e as respostas s questes prvias so

    impostas a ele autoritriamente. A fim de evitar o risco de perguntar e

    duvidar, ele renuncia ao risco de perguntar e duvidar. Renuncia a si prprio

    tentando salvar sua vida espiritual. Ele "foge de sua liberdade" (Fromm)

  • 41

    tentando fugir ansiedade da insignificao. Agora ele no mais est

    sozinho, nem na sua dvida existencial, nem no desespero. Ele "participa" e

    afirma pela participao o contedo de sua vida espiritual. A significao

    est salva, mas o eu sacrificado. E desde que a submisso da dvida foi

    matria de sacrifcio, o sacrifcio da liberdade do eu, deixa uma marca na

    certeza reconquistada: uma auto-agressividade fantica. O fanatismo o

    correlato de auto-rendio espiritual: mostra ansiedade que supostamente

    estava dominada, atacando com violncia desproporcionada aqueles que

    discordam e que demonstram, por sua discordncia, elementos que o

    fantico deve suprimir ele mesmo de sua vida espiritual. Porque deve

    suprimi-los de dentro dele, tem ele que suprimi-los nos outros. Sua

    ansiedade fora-o a perseguir os que dissentem. A fraqueza do fantico

    consiste em, que aqueles que ele combate tm uma secreta ascendncia

    sobre ele; e por esta fraqueza ele e seu grupo afinal sucumbem.

    No sempre a dvida pessoal que mina e esvazia um sistema de

    idias e valores. Pode ser o fato de no mais serem eles compreendidos em

    seu poder original de expressar a situao humana e de responder a

    questes humanas existentes. ( plenamente o caso de smbolos

    doutrinrios do cristianismo). Ou eles perdem seu significado porque as

    condies reais do perodo presente so diferentes daquelas nas quais o

    contedo espiritual foi criado e porque novas criaes se fazem

    necessrias. (Este foi o caso da expresso artstica antes da revoluo

    industrial.) Em tais circunstncias ocorre um lento processo de desgaste do

    contedo espiritual, inapercebido no incio, constatado com um choque

    enquanto progride, produzindo a ansiedade, da insignificao em seu final.

    As auto-afirmaes ontica e espiritual precisam ser distinguidas, mas

    no podem ser separadas. O ser do homem inclui sua relao com as

    significaes. Ele humano s por compreender e moldar a realidade, seu

    mundo ele, de acordo com significados e valores. Seu ser espiritual,

    mesmo nas expresses mais primitivas do mais primitivo ser humano. Na

    "primeira" sentena significativa toda a riqueza da vida espiritual do

    homem est potencialmente presente. Portanto, a ameaa a seu ser

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    espiritual uma ameaa a todo seu ser. A expresso mais reveladora deste

    fato o desejo de antes atirar fora a nossa prpria existncia ontica do que

    suportar o desespero da vacuidade e da insignificao. O instinto da morte

    no um fenmeno ontico, Porem espiritual. Freud identificou esta reao

    para a insignificao da nunca-cessante e nunca-satisfeita libido como a

    natureza essencial do homem. Mas ela s uma expresso de seu auto-

    extravio existencial e da desintegrao de sua vida espiritual na

    insignificao. Se, por outro lado, a auto-afirmao ontica enfraquecida

    pelo no-ser, a indiferena espiritual e vacuidade podem ser a

    conseqncia, produzindo um crculo de neg