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  • REVISTA LETRAS, CURITIBA, N. 74, P. 133-150, JAN./ABR. 2008. EDITORA UFPR. 133

    * Professora de Literatura Brasileira da Universidade Federal do Cear.

    O PRIMEIRO MODERNISMO NOS ENSAIOS DEANTONIO CANDIDO

    The first Modernism in the essays of AntonioCandido

    Irensia Torres de Oliveira*

    1 INTRODUO

    Para discutir o pensamento de Antonio Candido sobre o Modernismo,e mais especificamente, o primeiro Modernismo, necessrio considerarque o prprio crtico se via, como intelectual, com um papel no processo derenovao da mentalidade intelectual empreendida pelo movimento. Numdepoimento dado a Mario Neme, em 1943, o jovem crtico, ento com vintee cinco anos, justificava a tendncia de sua gerao para o estudo e a anlisecomo uma exigncia do momento histrico, inserida no mesmo processo derenovao que o dos modernistas.

    Nesse depoimento, procura tomar posio diante das geraesanteriores e responder m vontade que cercava os intelectuais de seutempo por serem exclusivamente crticos, analistas rigorosos, e no artistas.Responde provocao de Oswald, publicada na revista Clima (A sua geraol desde os trs anos. Aos vinte tem Spengler no intestino. E perde cadacoisa!), justificando a prpria atitude com a fora de uma tarefa histricaque se apresenta.

    preciso compreender que o surto dessa tendncia para o estudocorresponde em ns a uma imposio da necessidade social decrtica. a necessidade de pensar as coisas e as obras, inclusive asque voc e os seus companheiros fizeram, sem compreender bem oque estavam fazendo, como de praxe (CANDIDO, 2002a, p. 241).

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    OLIVEIRA, I. T de. O PRIMEIRO MODERNISMO NOS ENSAIOS DE ANTONIO CANDIDO

    Pode-se perceber um sentido de responsabilidade, como se osintelectuais da nova gerao paulista se sentissem cobrados a manter onvel de interveno das geraes de 20 e 30. H um entendimento decontinuidade do processo, no qual agora os mais jovens entram com a tarefade analisar, compreender e sistematizar.

    Antonio Candido no publicou longos estudos para sistematizar omovimento modernista, nada do porte da Formao da Literatura Brasileira,mas podemos encontrar avaliaes e propostas de articulaes bem variadasem alguns ensaios, de visada panormica. Nos anos 50, publicou doistextos que mais tarde seriam refundidos no ensaio Literatura e cultura de1900 a 1945, publicado no livro Literatura e sociedade (2000/1965). O textose apresenta no subttulo justamente como panorama para estrangeiros ese articula em torno das preocupaes de Antonio Candido no perodo,relativas ao sistema literrio. Tanto que o panorama se inicia com a seguintefrase: Se fosse possvel estabelecer uma lei de evoluo da nossa vidaespiritual, poderamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialtica dolocalismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos(CANDIDO, 2000, p. 109). A primeira frase do livro Formao, escrito nomesmo perodo, indica tambm o programa de estudos regido por aquelasuposio: Este livro procura estudar a formao da literatura brasileiracomo sntese de tendncias universalistas e particularistas (CANDIDO, 1993,p. 23).

    No panorama dos anos 50, j articula os dois pontos importantesdas sistematizaes que props para o movimento: a ruptura do primeiroModernismo com o perodo anterior e sua continuidade com o de 30. Percebe-se, portanto, a preocupao de estabelecer uma srie de rupturas econtinuidades, alm de conflitos do campo literrio e ideolgico, configurandofragilidades e desdobramentos do sistema literrio.

    No texto da Plataforma da nova gerao, do incio dos anos 40,h uma tendncia do crtico de separar-se da gerao de 20 (um estouro deenfants-terribles) e aproximar-se da de 30. Embora admitisse que ele e seuscontemporneos seriam continuadores naturais daquela gerao, porqueteriam herdado os problemas que ela no conseguira resolver, reconheciana ltima uma espcie de filiao: Ns nos formamos sob o seu influxo esomos em grande parte o seu resultado. A nossa orientao intelectual sedelineia na atmosfera de suas lutas polticas, dos seus partidos extremosdos quais vamos aprender muita coisa [...] (CANDIDO, 2002a, p. 240). Nessemomento, por mais respeito que demonstre pelos intelectuais de 20, a grandeadmirao recai nos artistas e intelectuais de 30 Para falar a verdade, comos de 30 que comea a literatura brasileira (CANDIDO, 2002a, p. 239).

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    Entretanto, nos panoramas sobre literatura e cultura publicados apartir dos anos 60, mistura-se nfase dada dcada de 30 comoamadurecimento e culminncia, a importncia crescente conferida ao primeiroModernismo, como semeador, catalisador e organizador da renovaoconsolidada na dcada seguinte. Efetivamente, Antonio Candido apresenta oprimeiro Modernismo como aquele que coordenou e providenciou a ruptura,embora de maneira restrita e excepcional, e forneceu as sementes para osfrutos amadurecidos de 30. Em 20, a renovao estava dada em potncia;em 30, era concretizada, realizando os grandes objetivos da primeira fase:enfraquecimento do academicismo, direito inovao formal e temtica,reconhecimento da literatura regional em escala nacional. Embora omomento seguinte fosse fundamental, porque sedimentava e dava razo agitao anterior, os valores e critrios, ou seja, o caminho a seguir, jestava dado no momento anterior.

    Podemos talvez at dizer que, se na Formao da LiteraturaBrasileira o ponto de vista adotado era o dos romnticos, como elementoexplicativo ou metodolgico declarado, embora o autor muitas vezesdiscordasse de seus critrios, o ponto de vista assumido nos ensaios oucomentrios mais gerais sobre o Modernismo , salvo engano, j que noexplicitado pelo autor, o dos primeiros modernistas. Os valores e pontos devista crticos praticados parecem estar mais ligados ao primeiro Modernismoque gerao posterior.

    2 O PRIMEIRO MODERNISMO NO SISTEMA LITERRIO

    O Modernismo pensado no ensaio Literatura e cultura de 1900 a1945, sobretudo a partir da dialtica entre local e universal. Ao lado doRomantismo, constitua um dos momentos decisivos na literaturabrasileira, de mudana de rumos e revigorao do pensamento em geral,possuindo ambos em comum o fato de priorizarem o local, embora apoiadosnos modelos europeus. A diferena residia em que o particularismo romnticose afirmava por uma rejeio da herana portuguesa, que no Modernismoj estaria superada e esquecida, afirmando-se este em combate contra oacademismo cosmopolita.

    Assim, o Modernismo inaugurava um novo momento na dialticade local e universal, afirmando o primeiro dos termos pelo recurso aosegundo, ou seja, afirmando-se o dado local pela valorizao vanguardista(europeia) do primitivo. Promovia, ento, a aceitao dos componentesrecalcados da nacionalidade, principalmente ligados nossa condio depas etnicamente mestio e culturalmente influenciado por culturas

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    primitivas, amerndias e africanas. As nossas deficincias, supostas oureais, so reinterpretadas como superioridades. [...] O primitivismo agorafonte de beleza e no mais empecilho elaborao da cultura (CANDIDO,2000, p. 120).

    Alm da nova atitude de valorizao do elemento primitivo, aexpresso literria do desrecalque localista tinha sido buscada tambm nasvanguardas, principalmente francesa e italiana. Mas esse emprstimo agoraassumia um carter diferente, por dois motivos: primeiro, porque noestvamos mais to distantes material e culturalmente da Europa e tambmramos atingidos pelos efeitos da velocidade e da mecanizao, das agitaessociais e ideolgicas que tinham constitudo os estmulos das vanguardas;segundo, porque os processos artsticos radicais dos vanguardistas europeusterminavam tendo maior coerncia e possibilidade de assimilao numambiente como o nosso, em que se convivia cotidianamente com as culturasprimitivas. A concluso do autor de que, do ponto de vista da dialtica delocal e universal, nos anos 20 e 30, empreendeu-se um admirvel esforode construir uma literatura universalmente vlida por meio de umaintransigente fidelidade ao local (CANDIDO, 2000, p. 126). O Modernismomostrava-se, portanto, como um importante momento de sntese na dinmicaliterria brasileira.

    O equacionamento das tendncias localistas e universalizantesindicava tambm um outro aspecto de grande interesse para o crtico, queera o estabelecimento de uma tradio literria local. Mais de uma dcadadepois de formuladas as ideias sobre a adequao dos recursos vanguardistaseuropeus s necessidades expressivas locais, o autor vai chamar a atenopara as conquistas modernistas relacionadas continuidade literria, emartigo publicado numa revista portuguesa. A partir de 1922, encontramoscada vez mais escritores que no apenas filtram com originalidade asinfluncias externas, mas se formam, nas coisas essenciais, a partir deantecessores brasileiros (CANDIDO, 2002b, p. 118).

    Para mostrar os avanos nesse sentido, d os exemplos de Mriode Andrade e Manuel Bandeira, cujas obras seriam impossveis decompreender sem recorrer a fontes externas. No caso do primeiro, seriam osunanimistas franceses, futuristas italianos, as teorias estticas franceses,como de Paul Derme, e, no do segundo, Cesrio Verde, Antonio Nobre, ossimbolistas belgas. Este j no seria o caso, por exemplo, de Drummond,Joo Cabral ou Guimares Rosa, cujas influncias preponderantes podiamser encontradas nos antecessores brasileiros e as fontes externas, quandoexistiam, apareciam subordinadas ou combinadas a uma tradio literriacapaz de apoiar e nortear a produo de obras de valor.

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    Pensando nos desdobramentos do sistema literrio, como AntonioCandido configurou na Formao da Literatura Brasileira, sentimos falta deuma articulao entre o momento alto do surgimento da obra de Machadode Assis, que mostra a formao do sistema, e o Modernismo. Na prosa,com Machado, j se constitura uma continuidade, o que no aconteceria napoesia, ainda muito voltada para modelos externos.

    Os exemplos dados por Candido nesse artigo, perseguindo a ideiade modernidade e de continuidade, so, na sua grande maioria, de poetas. como se a renovao modernista, no caso da poesia, pudesse ser explicadade maneira convincente nos limites do movimento, o perodo consideradopor Antonio Candido em suas avaliaes, 1922-1945. No caso da prosa,parece ser mais difcil a viso localizada da renovao. O nico exemplo denarrativa, na perspectiva da continuidade, o de Guimares Rosa, mostrandocomo poderamos, talvez, supor uma fonte em Joyce, sem que ela, se realmentehouve, aparecesse de maneira diretamente reconhecvel.

    A ideia de continuidade na prosa parece exigir uma consideraomais ampla no tempo, uma diferenciao menos ntida em termos de tradioe modernidade, porque as fontes muitas vezes, no caso brasileiro, remetema obras anteriores ao advento das vanguardas. Os exemplos dados porCandido para a poesia citam fontes j vanguardistas, mas talvez no fossepossvel o mesmo para a prosa, que possui uma trajetria anterior e segueoutro caminho. Enfim, a conquista da narrativa moderna parece ser maisdifcil de restringir ao perodo modernista, no Brasil e na Europa, demarcandorupturas claras. Graciliano Ramos, nosso maior romancista de 30, devemais a Dostoivski e a Machado do que aos narradores de Vanguarda. Seaproxima-se de Kafka e dos expressionistas, em alguns momentos, maisjusto pensar que essa proximidade se deva a terem recorrido a fontes comunspara empreenderem uma renovao sentida como necessria, em um tempoem que os conflitos se mundializavam por causa das guerras. Talvez porisso, com as ressalvas que se lhe possa fazer, Graciliano parea mais maduroque os escritores de 20.

    Nesse sentido, e se no estou enganada, a proposta de sistemaliterrio de Antonio Candido interfere na tentativa de detectar os avanosmodernistas, principalmente na prosa. Se, com Machado de Assis, como seprope na Formao, o sistema j est formado, porque se mostra capaz dedar massa crtica para o trabalho do grande escritor, a tentativa de explicara renovao da narrativa como ruptura localizada dentro dos limitesmodernistas pode deixar de contemplar alguns elos fundamentais para acompreenso do processo instaurado pelo prprio sistema literrio emfuncionamento.

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    3 A RENOVAO: GRANDES VERTENTES

    Em grandes linhas, a renovao empreendida pelo Modernismo apresentada por Antonio Candido como a libertao de antigas restries,articulada em duas vertentes: em termos temticos ou ideolgicos, aexpanso propiciada pelo que chamou de desrecalque localista, e, em termospropriamente estticos, a pesquisa formal dirigida para as tcnicasvanguardistas europeias. Tal configurao artstica permitia que, ao mesmotempo, nossa vida intelectual pudesse estar atualizada com o mundo e incluiraqueles elementos que antes deviam ser recalcados, a bem dessa atualizao.A direo apontada pela vanguarda europeia foi ento uma alternativa parao problema do complexo de inferioridade que nossos intelectuais nutriamem relao Europa, traduzido ora em rejeio xenfoba, ora em cpiaservil. Isso porque, segundo Antonio Candido, as combinaes de progressotecnolgico e primitivismo experimentadas pelas vanguardas eram muitomais adequadas a nossa experincia histrica que europeia.

    3.1 DESRECALQUE LOCALISTA

    Tudo aquilo que, antes, envergonhava, porque marcava nossadistncia em relao Europa, as presenas do negro e do ndio em nossaformao tnica, a mestiagem, as culturas consideradas primitivas, agorapodia ser trazido tona com orgulho, at com euforia, e transformados emsuperioridade. Macunama seria a sntese do desrecalque empreendido pelosprimeiros modernistas:

    Mrio de Andrade, em Macunama (a obra central e maiscaracterstica do movimento), compendiou alegremente lendas dendios, ditados populares, obscenidades, esteretiposdesenvolvidos na stira popular, atitudes em face do europeu,mostrando como a cada valor aceito na tradio acadmica e oficialcorrespondia, na tradio popular, um valor recalcado que precisavaadquirir estado de literatura (CANDIDO, 2000, p. 120).

    A valorizao desse aspecto por Antonio Candido est relacionadacom a situao intelectual do perodo, um momento em que j se reconheceo carter miscigenado de nossa formao tnica e cultural, mas tambm seexperimenta um grande complexo de inferioridade por causa disso. As teoriasraciais, ainda em voga no perodo, apontam para a inferioridade das raasno brancas e mestias, num grande debate naturalista, em que o homem tratado no mesmo patamar, e com os mesmos termos, de qualquer espcie

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    animal. A perspectiva de sair da raa para a cultura, a aceitao e mesmoa exaltao da cultura desses contingentes discriminados representam umavano possvel. Macunama, j a partir do subttulo, entra na discussomuito viva naquele tempo sobre o carter nacional brasileiro, geralmentepontuada por lamentaes de todo tipo, um certo consenso de elite de que opovo brasileiro no prestava e era seu libi para deix-lo mngua deeducao e outros melhoramentos civilizacionais. A exaltao do elementopopular, ainda que constituindo uma espcie de exotismo interno, tinha oseu lado libertrio e de confronto com a mentalidade atrasada de grandeparte das camadas dominantes.

    Antonio Candido faz uma diferenciao, no que tange valorizaodo pas, entre as tendncias que pretendiam exprimir a essncia do pas eos que desejavam pesquis-lo. Nos primeiros, estava o pessoal doverdeamarelismo e da Anta, nacionalistas conservadores, cuja viso estticase desdobraria numa viso poltica fascista; entre os ltimos, preocupadoscom a pesquisa, estavam Oswald, Mrio de Andrade e Raul Bopp, nos quaiso crtico reconhecia mais humour, maior ousadia formal, elaborao maisautntica do folclore e dos dados etnogrficos, irreverncia mais conseqente,produzindo uma crtica bem mais profunda (CANDIDO, 2000, p. 122).

    Posto na cena entre o tradicionalismo passado e o conservadorismocontemporneo, o primeiro Modernismo realmente se apresentava como umaalternativa importante, no apenas em termos estticos, mas tambm crticos.

    Apesar disso, e com o passar do tempo, foi-se tornando mais visvelque a inteno militante de tratar nossas deficincias como superioridadestinha um limite crtico. Roberto Schwarz trata do problema em dois estudos:primeiro, no ensaio A carroa, o bonde e o poeta modernista (1987), sobrea poesia Pau-Brasil de Oswald de Andrade, e segundo, no livro Duas meninas(1997), j nas concluses, quando trata mais especificamente da obra deMrio de Andrade.

    No caso de Oswald, o desrecalque significava alar os nossosatrasos e sobrevivncias pr-burguesas ao mesmo patamar das conquistasdo progresso tecnolgico e das instituies burguesas, que importvamos.Tal convivncia, no Brasil, poderia estar formando uma combinao nova,capaz de redimir o cansao da sociedade liberal burguesa europeia. Porisso, na poesia Pau-Brasil encontram-se ao mesmo tempo a euforia peloprogresso, visto como inocente, e pelos elementos pr-burgueses de nossaformao.

    Para Schwarz, tanto nos dirios de Helena Morley, quanto na poesiaPau-Brasil de Oswald e na obra de Mrio, a viso simptica da sociedadebrasileira necessita da supresso (do recalque?) de aspectos incmodos darealidade. Nos dirios da menina, a excluso de tais aspectos se deveu ao

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    prprio momento histrico, um momento de repouso na marcha do progresso,que permitiu certa liberdade de tocar a vida fora de seus esquadros.

    No caso dos autores modernistas, essa viso altamenteconstruda, a partir de instrumentos artsticos poderosos, que do conta dadiversidade de elementos em jogo, e se propem como artefatos modernos.Diferentemente de Helena, ambos vivem em um momento de forte intervenodo progresso econmico, catalisado pela lavoura do caf. O desafio ao qualos dois se lanam, na viso de Schwarz, encontrar a forma de convivnciaentre as esferas do progresso, capitaneado pelas elites paulistas, e os traospr-burgueses de nossa formao, em que constam a informalidade, ofamilismo etc. No caso especfico de Mrio, a inteno edificante deaperfeioar a nacionalidade encontra-se combinada a cada passo com otimbre transgressor. Nesse ponto, o crtico lembra que Machado de Assistambm tentara, nos romances da primeira fase, estabelecer umapossibilidade de convivncia decente entre as famlias abastadas e seusdependentes, mas s alcanou verdadeira estatura crtica quando desistiudas formas conciliatrias e passou a figurar os impasses da desigualdadenas relaes sociais do pas (SCHWARZ, 1997, p. 141-3).

    Est embutido a um programa de modernizar a viso das elites echam-las responsabilidade pelo pas. Nisso Mrio no est sozinho nocomeo do sculo XX. O momento de percepo por grande parte dosintelectuais de que o projeto nacional est ameaado, externamente pelastendncias imperialistas do perodo, e internamente pela fragilidade do tecidosocial. Fazem-se crticas elite brasileira pela falta de liderana naconstituio de uma nao forte, internamente coesa, e chama-se a mesmaelite para assumir o compromisso de conduzir e reformar o pas, o queinclui aceitar o povo mestio e sem instruo como seu povo e suaresponsabilidade. Esta forma de ver se encontra em autores ideologicamenteantagnicos como Manuel Bomfim e Alberto Torres.

    Nesse sentido, a literatura de Mrio e de Oswald tem um sentidode engajamento, quando procura mostrar o povo brasileiro ao mesmo temposimptico e adaptvel ao progresso, de maneira que o avano econmico etecnolgico no precise significar um atentado nacionalidade, um fator dediviso, mas um elemento capaz de funcionar e ser melhorado, em relao Europa, pelos traos pr-burgueses de nossa formao1. Em termos crticos,o momento de verdade da obra dos dois modernistas, o que as faz inflectirdiferente e as impede de figurarem como justificao ideolgica, o humor.

    1 Tenho tentado mostrar como a obra de Lima Barreto trabalha na percepo do impasseentre as sobrevivncias desagregadoras da sociedade colonial proprietria e as novas tendnciasdesagregadoras da sociedade de consumo. Em nenhuma das duas formas, o autor carioca v assementes de uma sociedade mais coesa. Por isso, provavelmente, a nacionalidade, grande obsessodo perodo, aparece como projeto frustrado no romance de Policarpo.

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    Antonio Candido e Roberto Schwarz vinculam as avaliaespositivas da obra de Oswald de Andrade considerao do sarcasmo. Parao primeiro, porque uma soluo esttica e crtica, como veremos maisadiante, e, para o segundo, porque relativiza a ideologia do progressoinocente. A aspirao ideolgica recebe um vis crtico pelo ar de piadaque envolve a deciso de colocar no presente do universo e com sinalenergicamente positivo! o nosso provincianismo e as nossas relaes ruraisatrozes (SCHWARZ, 1987, p. 28).

    So limites crticos importantes, que entram obrigatoriamente nadiscusso atual do pensamento sobre o Brasil, mas do ponto de vista daqueleperodo e dos grupos que empreenderam o movimento modernista,representam de fato uma ruptura e uma conscincia crtica mais avanada,como Antonio Candido procurou mostrar, muito atento aos debates do inciodo sculo XX.

    3.2 CONQUISTAS FORMAIS

    A renovao formal no primeiro Modernismo tambm pensadaem termos de ruptura com os ideais estticos do perodo anterior a 1922,dominado pelo convencionalismo e a superficialidade. Quais seriampropriamente as conquistas formais do movimento?

    Nos panoramas, Antonio Candido enfatiza mais atitudes querecursos propriamente. A grande conquista o direito pesquisa e liberdadede criar, o grande legado deixado por 20 para 30. Mais especificamente,aponta como conquistas a incorporao da linguagem coloquial linguagemliterria, as experimentaes que rompem os limites entre prosa e poesia,sobretudo em Oswald, a desarticulao da narrativa tradicional peladescontinuidade e a simultaneidade (mais uma vez Oswald), teorizadas porMrio de Andrade nA escrava que no Isaura.

    Nas anlises sobre a obra de Oswald, pode-se perceber bem amaneira como Antonio Candido encarou a questo da forma. Na anlise quefez dos seus romances, ainda nos anos 40, aponta as permanncias deesteticismo e a busca de rompimento com o passado. O artigo chama-sejustamente Estouro e libertao. O grande problema detectado nesse momento que a liberdade oswaldiana s se apresenta como rejeio completa, comomomento negativo, de stira, sarcasmo e pilhria, da maneira que surge nopar Miramar-Serafim. O crtico elogia as soldas arrojadas, a concisolapidar, por meio das quais Oswald de Andrade consegue quase operaruma fuso da prosa com a poesia (CANDIDO, 1992b, p. 26). Mas mantm aexpectativa de que a obra chegasse a uma sntese, pela superao do

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    momento ainda tradicionalista e do momento puramente negativo de stirasocial. Referindo-se ao primeiro romance da srie Marco Zero, A revoluomelanclica, diz que ultrapassou o esteticismo desvairado da fase catlico-parnasiana assim como a crtica puramente negativa do perodo seguinte(porventura melhor, literariamente falando), lanando-se numa perspectivasinttica de crtica social construtiva (CANDIDO, 1992b, p. 32).

    Mais tarde, em artigo de 1970, faz uma srie de ressalvas a essaprimeira avaliao da obra de Oswald. Mesmo julgando ter acertado emmuitas anlises e julgamentos, considera ter sido um erro pensar que omelhor do escritor ainda estivesse por vir. Esta expectativa havia sidodisseminada pelo prprio Oswald. Na poca, o autor gostava de dar aentender que sua obra definitiva ainda estava para ser escrita. Candidoreconhece, na anlise de 1970, que a obra definitiva de Oswald era o parMiramar-Serafim e muda de opinio em relao ao valor dos dois livros.Nos anos 40, considera o Miramar um ponto de equilbrio e classifica oSerafim como fragmento de grande livro. Depois, a avaliao se inverte. OSerafim ser visto como uma obra mais radical e mais sofisticada que oMiramar, constituindo o ponto mximo do impulso renovador oswaldiano(CANDIDO, 2004, p. 57-8).

    A srie Marco Zero avaliada no como superao da obra anterior,mas como o momento de mais uma tentativa de escrever romance srio,como havia sido a Trilogia do exlio. Nas obras de Marco Zero, imps-semais um elemento passadista da formao do escritor. [...] Oswaldconservou de maneira recessiva um veio naturalista que estufou no decniode 1930, estimulado pela moda de literatura documentria e socialdominante (CANDIDO, 2004, p. 53-4).

    No entanto, o fracasso da srie serviu para uma avaliao maisminuciosa dos pontos fortes da literatura oswaldiana. Antonio Candido mostraque o ponto de inflexo no estava no uso das tcnicas vanguardistas(simultanesmo, pontilhismo, descontinuidade), que se encontravam tambmnos livros srios, mas na combinao altamente feliz que essas tcnicasalcanavam com a atitude que chamou de sarcasmo-poesia. A mesmapotencializao no acontecia nos romances da Trilogia nem de Marco Zero.Pelo contrrio, nestes as tcnicas mesmas se desvigoravam pela direodominante do esteticismo ou do naturalismo (CANDIDO, 2004, p. 53).

    Nos ensaios sobre a obra de Oswald, as questes de forma sopreponderantes, procurando desvendar as relaes entre o uso de tcnicasvanguardistas e a felicidade da composio narrativa. A diferena entre oensaio de 1945 e o de 1970, que revisa o primeiro, a mudana deconsiderao da unidade narrativa, seguindo o princpio aristotlico, que olevara inicialmente a valorizar o Miramar acima do Serafim. A aceitao da

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    stira como realizao definitiva que inscreve o nome do escritor na histriada literatura brasileira tambm representa uma superao dos valoresclssicos. Em 1970, Antonio Candido j no v mais na tcnica sincopadado Serafim certa preguia de aprofundar os problemas de composio,mas o grande trunfo do autor, a forma de expresso que lhe permitira amelhor realizao literria.

    possvel perceber a virada crtica para uma forma de avaliaomais adequada literatura que se fazia no sculo XX, mas tambm muitovoltada para questes especificamente literrias. Isto segue naturalmentea viso de Antonio Candido de que a elaborao formal da estrutura e doestilo a chave do acerto em arte e literatura (CANDIDO, 1989b, p. 197).

    Nestes ensaios, sentimos falta da considerao dos fatores sociaisenvolvidos tambm como fatores estticos, restringindo-se estes normalmentea elementos tcnicos e de composio narrativa, o que talvez se justifiqueporque a se busque uma viso geral da obra e menos uma anlise maisapurada dos fatores. No mesmo ano, 1970, o crtico publicaria o conhecidoensaio Dialtica da malandragem, que empreende uma anlise norteadapor reflexes acerca da relao entre matria narrativa e valor esttico.

    A justificativa para o formalismo estrito das anlises talvez seencontre na prpria configurao da obra de Oswald e na nfase que deu experimentao formal, indicando ao crtico a necessidade de se entender osxitos e fracassos dos experimentos, a significao deles no conjunto de suaobra. Alm disso, a compreenso e sistematizao das pesquisas formaisreforavam, de maneira mais geral, o embate modernista contra osconvencionalismos da poca, quer dizer, mostravam a amplitude e aconsistncia dos novos recursos formais, esclarecendo, para no passaremdespercebidas, as conquistas estticas. Estas significavam, afinal, no apenassuperaes individuais, mas tambm o legado do movimento.

    Em estudo posterior, de 1970, o mbito de avaliao no muda.Quando Candido descobre a relevncia da afinidade entre as tcnicasvanguardistas e o humor oswaldiano, no percebida inteiramente em 1945,as solues ainda so enfocadas como elaborao formal especfica do campoliterrio. Os termos da avaliao dizem respeito ao domnio narrativo, detcnicas e de composio geral, em relao ora com as tendncias anarquistasprofundas da personalidade literria do autor, ora com a inteno ideolgicade fazer romance social. Sucesso e insucesso vo depender de combinaespossveis dessas variveis.

    No ensaio de 1945, Estouro e libertao, est no horizonte docrtico a realizao esteticamente amadurecida de crtica social. O resultadoesperado, como superao do passadismo e da crtica puramente negativa,era uma perspectiva sinttica de crtica social construtiva. O modelo de

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    pensamento aqui , como se percebe facilmente, a dialtica hegeliana, nosseus trs momentos: tese, anttese, sntese. A soluo esttica devia ajustaros restos de esteticismo danunzianos, possivelmente eliminando-os, forjarum estilo to vivo quanto o das Memrias sentimentais, embora nonecessariamente o mesmo, e aprofundar a psicologia das personagens, decerta maneira domando a mobilidade vertiginosa do Serafim. Dessasprovidncias literrias parece depender a eficcia da crtica social, que a inteno declarada do autor e a perspectiva sinttica visada pelo crtico.Salvo engano, pressupe-se nesse ensaio uma relao dada, resolvida em simesma, entre a inteno de crtica social e a elaborao literria bem-sucedida, em termos de composio, psicologia das personagens, tcnicasnarrativas.

    Em 1970, o momento negativo da stira considerado o mais altona trajetria do escritor, como vimos antes. Em termos especificamenteliterrios, esta j era a opinio de Antonio Candido em 1945. Enfatizam-se,na Digresso sentimental sobre Oswald de Andrade, as conquistas formaisligadas descontinuidade, mobilidade e simultaneidade na narrativa, econferem-se outros valores aos traos sumrios da stira e falta deencaminhamento narrativo sinttico do estilo sincopado, que em 1945pareciam dificultar a aceitao do Par, sobretudo do Serafim, como momentodefinitivo.

    Nas anlises de romances empreendidas nos anos 70, das Memriasde sargento de milcias e dO cortio, os recursos e tcnicas no so tratadoscom a mesma autonomia, mas sempre adquirem sentido e valor junto aoutros elementos da narrativa, s modificaes condicionadas pela matrialocal, s ideologias, recuperando-se a autonomia da forma na chave deuma historicidade profunda, que a distancia at das intenes declaradasdos autores.

    O ensaio de Roberto Schwarz sobre a poesia Pau-Brasil, publicadoem 1987, tem Antonio Candido muito presente: leva em considerao avalorizao formal vanguardista dos ensaios sobre Oswald e os pressupostosde anlise dialtica desenvolvidos pelo crtico. Dando mais peso a estesltimos, empreende um exame da poesia oswaldiana por um vis no tentado,mas de certa forma pressuposto pelo mestre, como vimos anteriormente.

    Em relao s inovaes formais, Schwarz considera que o usoinventivo e distanciado das formas parece colocar a poesia de Oswald nocampo inequivocamente crtico. E de fato, sempre que o alvo algumaespcie de rigidez oficialista, a quebra da conveno tem este efeito(SCHWARZ, 1987, p. 25). Passando para a configurao ideolgica da poesia,mostra que as tcnicas de nivelamento de elementos heterogneos, muitoapuradas em termos formais, no funcionam criticamente, pelo contrrio. O

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    humor, o ar de piada, que, no final, recupera criticamente a poesiaoswaldiana. Antonio Candido, sem fazer as correlaes propostas porSchwarz, tambm j indicara que o melhor da obra de Oswald passava pelosarcasmo.

    4 RUPTURAS E CONTINUIDADES DO PRIMEIRO MODERNISMO

    No ensaio Literatura e cultura de 1900 a 1945, Antonio Candidoexplica as relaes do Modernismo com o perodo anterior. Em outrospanoramas, no dar mais a mesma ateno ao assunto. Comparada coma da fase seguinte (1922-1945) a literatura aparece a essencialmente comoliteratura de permanncia. Conserva e elabora os traos desenvolvidos depoisdo Romantismo, sem dar origem a desenvolvimentos novos. O romancemais tpico do perodo, segundo Candido, forma-se pela confluncia do queh de mais superficial em Machado de Assis, da ironia amena de AnatoleFrance e dos romances franceses do ps-naturalismo, sentenciosos,repassados de sexualismo frvolo: Paul Bourget, Abel Hermant (CANDIDO,2000, p. 113). Alm desse tipo de narrativa, Antonio Candido aponta a grandevoga do conto sertanejo, gnero artificial e pretensioso, tambm um tipode permanncia decadente do regionalismo romntico.

    Na poesia, teria havido algo muito semelhante, com a observaode que o Naturalismo na prosa havia sido muito mais vigoroso que oParnasianismo na poesia, apesar do grande talento de seus representantes.Este ltimo contribura de maneira pouco essencial para a poesia brasileira,pois se lhe havia conferido maior regularidade plstica, ter-lhe-ia tambmreforado o pendor retrico. O Simbolismo, mais original, estava restrito sobras de dois autores, Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, poucoconhecidos na poca, e congregava manifestaes espiritualistas.

    Estas ltimas so reconhecidas pelo crtico como proposta derenovao anterior ao Modernismo, articulada a partir da Primeira GuerraMundial, em torno da filosofia de Farias Brito, da crtica de Nestor Victor e,depois, do apostolado intelectual de Jackson de Figueiredo, contando coma influncia dos simbolistas belgas e de Antnio Nobre. Entretanto, AntonioCandido julga que o movimento espiritualista no consegue concretizar defato uma renovao porque no se separa da tradio, constituindo apenasmais uma face da literatura de permanncia. O Modernismo, muito maisradical, acabou sobrepondo-se a ele.

    A posio do primeiro Modernismo em relao s duas tendncias,a do academismo dominante e a dos espiritualistas, de ruptura, embora

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    assuma atitude mais radical diante da primeira, a quem combate muitasvezes ao lado da ltima. Entretanto, retoma de ambos alguns temas e atitudespouco aprofundados neles, como a pesquisa lrica tanto no plano dos temasquanto dos meios formais; a indagao sobre o destino do homem e,sobretudo, do homem brasileiro; a busca de uma forte convico. (CANDIDO,2000, p. 119) Esta retomada, por sua vez, dada a brusca mudana de planoem que se d, pode ser encarada tambm como ruptura.

    Em termos gerais, portanto, em relao ao perodo anterior, oModernismo rompe com a literatura de permanncia, incluindo aqui o contosertanejo, e com um movimento de renovao em curso aindaexcessivamente tradicionalista, retomando alguns de seus temas, pormpara subvert-los.

    A nfase na ideia de ruptura modernista e a consideraopraticamente em bloco do movimento tm gerado nos ltimos anos algunsquestionamentos por parte dos que estudam autores pertencentes ao chamadoPr-Modernismo. Esses questionamentos, bom lembrar, no se dirigemespecificamente a Antonio Candido, mas aos que vm trabalhando com essaconfigurao de perodos, ou seja, a maior parte da crtica literria brasileira.

    Alfredo Bosi, no incio do tpico sobre o Modernismo do seu maisconhecido livro de historiografia, lembra o que viria a se constituir maistarde um ponto de discusso na crtica literria brasileira: nem todos osmodernistas eram modernos e nem todos os modernos eram modernistas.Ou seja, havia autores, que embora no tivessem participado do movimentomodernista, e atuassem antes dele, faziam uma literatura maisreconhecidamente moderna, do ponto de vista de hoje, do que outros neleengajados (BOSI, 1994, p. 375). No que Alfredo Bosi desejasse com issoquestionar o marco de renovao que foi o movimento modernista, pelocontrrio, mas essa diferenciao ou confuso entre moderno e modernista,nos ltimos tempos, de fato vem tendendo a tornar menos ntida a fronteirade renovao da literatura brasileira, que Antonio Candido nos panoramasdemarca muito claramente a partir da Semana de Arte Moderna.

    O fato de o crtico apontar um evento especfico como marco e noa obra de um autor, como faz com Machado de Assis, na Formao daLiteratura Brasileira, indica o interesse de valorizar a interveno coletiva,que atua sobre padres literrios mas tambm sociais.

    As possibilidades de renovao da literatura brasileira, no inciodo sculo XX, so tratadas do ponto de vista de movimentos coletivos comatuao diversificada na vida intelectual. Por isso, os espiritualistas esimbolistas, que tiveram uma atuao conjunta em vrias reas do saber,mereceram figurar no ensaio Literatura e cultura de 1900 a 1945 comotentativa de renovao anterior ao Modernismo, com permanncias

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    significativas nos anos 30 e em tenso com o engajamento social da dcada2.A renovao modernista importa sobretudo, nos panoramas, como

    repercusso coletiva. Numa entrevista, o reprter pergunta a Antonio Candidose teria sido Mrio ou Oswald de Andrade quem mais teria contribudo paraesta renovao. Ele trata logo de colocar a questo em outros termos. Anenhum dos dois, individualmente, poder-se-ia atribuir essa conquista. Odivisor de guas foi o movimento modernista, coletivo, de que fizeram partee se exprime simbolicamente pela data de 1922. Eles foram protagonistas(CANDIDO, 1992a, p. 243).

    Por isso, haver um autor j moderno antes do movimento ou ummodernista menos moderno, isoladamente, no muda o fato de que os esforosreunidos da dcada de 20 lograram alterar padres de gosto e critrios crticos,sobrepondo-se a valores tradicionalmente aceitos. As batalhas travadas em20 prepararam o momento de tranquilidade para a produo dos autores de30.

    Em relao ao Modernismo da dcada de 30, o esforo do crticoser no sentido de estabelecer uma linha de continuidade. A dcada de 30ser vista como momento de consolidao das propostas dos anos 20.

    No ensaio A revoluo de 1930 e a cultura, Antonio Candido vinculatodas as conquistas de 30 ao movimento de 20, chamando a este perodo deuma grande sementeira. Aquelas conquistas seriam, sobretudo,atualizaes (no sentido da passagem da potncia ao ato) do que se esboaranos anos 20 (enfraquecimento da literatura acadmica, aceitao conscienteou inconsciente das inovaes formais e temticas, alargamento dasliteraturas regionais escala nacional, polarizao ideolgica). Na dcadaseguinte, o movimento se rotiniza, o excepcional torna-se normal, mais aceito,menos contundente. O anticonvencionalismo visto como direito, no maiscomo transgresso e os escritores de 30 beneficiam-se da liberdadeconquistada (CANDIDO, 1989b, p. 186).

    O mesmo ensaio utiliza a diviso proposta por Lafet entre projetoesttico (dcada de 20) e projeto ideolgico (dcada de 30) para apontar uma

    2 Antonio Candido detm-se pouco em manifestaes individuais de renovao. Ossertes, de Euclides da Cunha, por exemplo, teriam inclusive favorecido a voga do conto sertanejo,antes que os modernistas compreendessem e redirecionassem o que havia de correto em suainsero na realidade do pas. Poetas como Augusto dos Anjos e Alphonsus de Guimaraens eescritores como Euclides e Lima Barreto, embora oferecessem opes divergentes no perodo, noconseguiram afirmar-se pelo que tinham de renovador. O crtico no nega, assim, a existncia detendncias novas anteriores ao Modernismo, mas a incapacidade destas de renovar para alm daobra individual, de romper com padres mais amplos. No caso de Lima Barreto, que tinha umprograma de renovao literria e militou publicamente por ele, os motivos dessa incapacidademerecem reflexo.

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    perda de 30 em relao a 20, que seria a menor conscincia da elaboraoformal na prosa, com poucas excees, devido obsesso no tratamentodos problemas, tanto por parte dos escritores sociais, quanto dosespiritualistas. Tal atitude conduzia ao espontneo, que no limite oinforme (CANDIDO, 1989b, p. 197). A poesia teria seguido outro caminho,prolongando uma experincia potica que comeara nos anos 20.

    Noutro ensaio, vindo a pblico originalmente como comunicaoem um encontro sobre literatura em Washington, um ano antes, a avaliao feita de ngulo diferente e procura mostrar a importncia da conquistaestilstica do romance de 30, ainda que no inteiramente consciente:

    Os decnios de 30 e 40 foram momentos de renovao dos assuntose busca da naturalidade, e a maioria dos escritores no sentiaplenamente a importncia da renovao estilstica que por vezesefetuavam. Mas no nos esqueamos que esses autores (quasetodos despreocupados em refletir sobre a linguagem literria)estavam de fato construindo uma nova maneira de escrever, tornadapossvel pela liberdade que os modernistas do decnio de 1920haviam conquistado e praticado (CANDIDO, 1989a, p. 205).

    Os problemas literrios, quando se pensa estilo, forma e temadissociadamente, so to espinhosos que Antonio Candido no mesmo ensaio,analisando a literatura da dcada de 70, encontra novamente um impassedado nos mesmo termos deste ltimo, mas que avalia de maneira diferente.Em presena da fico vanguardista dos anos 70, renovadora, altamenteconsciente dos recursos formais e jogando com eles, vai considerar maisbem realizadas e satisfatrias algumas que foram elaboradas sempreocupao de inovar, sem vinco de escola, sem compromisso com a moda;inclusive uma que no ficcional (CANDIDO, 1989a, p. 215).

    Esses impasses, formulados por Antonio Candido em doispanoramas, em curto espao de tempo, mostram a grande mobilidade docrtico, capaz de afirmar o critrio de valor da elaborao formal consciente,reconhecer a revoluo estilstica da desliterarizao da literaturabrasileira e sobrepor a obras resultantes de elaborada pesquisa formal outrasde escrita mais tradicional. So trs momentos diferentes, em que se trataora de afirmar um valor, ora de tratar as conquistas de um perodo literrio,ora de comparar a qualidade das obras sem submet-las a um valor prvio.

    Na citao acima, tambm digna de nota a nfase na organicidadeentre o Modernismo de 20 e o de 30, referida mais acima. A nova maneira deescrever foi tornada possvel pela liberdade conquistada em 20. Autoresimportantes como Graciliano Ramos e Dionlio Machado, cujas formas deescrever no haviam sofrido influncia direta do primeiro Modernismo,ligavam-se a ele por terem se beneficiado da liberdade anteriormente

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    conquistada. O argumento no meramente retrico, mas fica a perguntasobre quais seriam, pois, os antecedentes e desdobramentos da prosamodernista.

    5 A TTULO DE CONCLUSO

    preciso lembrar que as ideias discutidas nesse trabalho vieramem grande parte de panoramas, muitas vezes preparados para exposiooral em eventos. o que Antonio Candido mesmo chamou de crticaesquemtica. De qualquer forma, creio que no descabido concluir que ogrande mestre da crtica brasileira optou, na tarefa de explicar e sistematizaro Modernismo brasileiro, por uma lgica centrpeta, privilegiando elos elinhas eficazes de renovao da literatura brasileira.

    RESUMO

    Este ensaio pretende reunir, apresentar e discutir algunsaspectos da renovao da literatura brasileira empreendida peloModernismo na primeira fase, apontados na obra ensastica deAntonio Candido. Com isso, procura entender a importnciadas conquistas, os critrios e valores implicados, bem como asformas de sistematizao do movimento propostas pelo crtico.Palavras-chave: modernismo; Antonio Candido; sistemaliterrio.

    ABSTRACT

    This essay intends to gather, present and discuss some aspectsof the renewal of Brazilian literature undertaken by the firstModernism, indicated in the literary criticism of AntonioCandido. In this way, it seeks to understand the importance ofachievements, criteria and values involved, as well as the waysto systematize the movement proposed by the critic.Key-words: modernism; Antonio Candido; literary system.

    REFERNCIAS

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    Submetido em: 20/03/2008.

    Aceito em: 25/11/2008.