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O fetiche do diploma: dilemas do ensino jurídico brasileiro na modenidade Vanderlei Portes de OLIVEIRA Mestre em Direito Doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI Universidade de Coimbra/Portugal Resumo A pesquisa proposta visa contribuir com o vasto tema da “crise do ensino jurídico”. A maior parte dos estudiosos que se dedicaram ao assunto o tratou dentro do aspecto filosófico- epistemológico, reconhecendo os fatores que promovem a mudança do paradigma, estabelecendo as características do período de transição. No entanto, ainda são poucos os estudos que abordam o assunto de forma empírica, na forma de observação participante, estudo de caso, pesquisa estatística, etc. Menos ainda os estudos empíricos relacionados ao ensino jurídico na Região Amazônica cujas disputa sobre o reconhecimento de direitos têm repercussão nacional e até mesmo internacional, como exemplificam os casos Eldorado de Carajás, Irmã Doroth Stang, Hidrelétrica de Belo Monte, sem citar outros. O Estado do Pará possui a triste reputação de uma “terra sem lei”; abundam os casos de violação de direitos humanos; o judiciário paraense tem sido acusado muitas vezes de ser inoperante e até mesmo cúmplice destas violações. No Pará, notadamente, o Direito é chamado a exercer sua função “emancipadora”, e não tem agido à altura. Vale saber até que ponto este déficit de efetivação de direitos humanos não decorre de uma cultura jurídica conservadora, produzida por uma estrutura econômica e social profundamente desigual, conservada e protegida por uma formação jurídica profundamente acrítica e sócia dos instrumentos de dominação das elites políticas e econômicas locais. Palavras-chave: Direito, Ensino Jurídico, Modernidade, Acesso à Justiça. Abstract The proposed research aims to contribute to the broad theme of "crisis of legal education". Most scholars who have devoted themselves to the subject treated within the philosophical- epistemological aspect, recognizing the factors that promote a paradigm shift, establishing the characteristics of the transition period. However, there are few studies on the subject empirically, in the form of participant observation, case studies, statistical research, etc.. Even less empirical studies related to legal education in the Amazon region whose dispute over the recognition of rights have national repercussions and even internationally, as exemplified by the cases Eldorado de Carajás, Sister Dorothy Stang, Belo Monte Dam, without naming others. The state of Pará has the sad reputation of a "lawless"; abundant cases of violation of human rights, the judiciary in Pará has been accused many times of

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O fetiche do diploma: dilemas do ensino jurídico brasileiro na modenidade

Vanderlei Portes de OLIVEIRA Mestre em Direito

Doutorando em Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI Universidade de Coimbra/Portugal

Resumo

A pesquisa proposta visa contribuir com o vasto tema da “crise do ensino jurídico”. A maior parte dos estudiosos que se dedicaram ao assunto o tratou dentro do aspecto filosófico-epistemológico, reconhecendo os fatores que promovem a mudança do paradigma, estabelecendo as características do período de transição. No entanto, ainda são poucos os estudos que abordam o assunto de forma empírica, na forma de observação participante, estudo de caso, pesquisa estatística, etc. Menos ainda os estudos empíricos relacionados ao ensino jurídico na Região Amazônica cujas disputa sobre o reconhecimento de direitos têm repercussão nacional e até mesmo internacional, como exemplificam os casos Eldorado de Carajás, Irmã Doroth Stang, Hidrelétrica de Belo Monte, sem citar outros. O Estado do Pará possui a triste reputação de uma “terra sem lei”; abundam os casos de violação de direitos humanos; o judiciário paraense tem sido acusado muitas vezes de ser inoperante e até mesmo cúmplice destas violações. No Pará, notadamente, o Direito é chamado a exercer sua função “emancipadora”, e não tem agido à altura. Vale saber até que ponto este déficit de efetivação de direitos humanos não decorre de uma cultura jurídica conservadora, produzida por uma estrutura econômica e social profundamente desigual, conservada e protegida por uma formação jurídica profundamente acrítica e sócia dos instrumentos de dominação das elites políticas e econômicas locais.

Palavras-chave: Direito, Ensino Jurídico, Modernidade, Acesso à Justiça.

Abstract

The proposed research aims to contribute to the broad theme of "crisis of legal education". Most scholars who have devoted themselves to the subject treated within the philosophical-epistemological aspect, recognizing the factors that promote a paradigm shift, establishing the characteristics of the transition period. However, there are few studies on the subject empirically, in the form of participant observation, case studies, statistical research, etc.. Even less empirical studies related to legal education in the Amazon region whose dispute over the recognition of rights have national repercussions and even internationally, as exemplified by the cases Eldorado de Carajás, Sister Dorothy Stang, Belo Monte Dam, without naming others. The state of Pará has the sad reputation of a "lawless"; abundant cases of violation of human rights, the judiciary in Pará has been accused many times of

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being ineffective and even accomplices of such crimes. In Pará, notably, the law is to perform its function "liberating" and is acting up. Vale to what extent this deficit realization of human rights does not stem from a conservative legal culture, produced by an economic and social structure profoundly unequal, maintained and protected by legal training and partner deeply uncritical instrument of domination of political and economic elites locations. Keywords: Right, Legal Education, Modernity, Access to Justice. 1. Considerações iniciais

desafio de discutir o ensino do Direito a partir da perspectiva da crise evidenciada no processo de formação dos profissionais jurídicos não é uma tarefa fácil, tampouco confortável, para aqueles que se debruçam no trabalho de coordenação

do curso jurídico em instituição formadora, articulada a vivência na atividade forense, as quais me respaldam para analisar criticamente o processo pedagógico nesta importante área.

Partindo da lógica que o processo de ensino está vinculado às transformações sociais, uma vez que o conhecimento percorre paralelamente ao momento histórico, é fundamental que esta reflexão alcance uma articulação com a realidade contemporânea, caracterizada pelo reconhecimento da diversidade e da pluralidade que compõe o mosaico social. Neste contexto, o ensino jurídico passa a ser questionado no momento em que a formação do bacharel das ciências jurídicas precisa ser superada pela visão fragmentada, pautada em valores e princípios tecnicistas, que têm submetido os profissionais ao domínio do instrumental metodológico forense, em detrimento da análise crítica e reflexiva do quadro social e da aplicabilidade da norma.

A vivência na formação de profissionais na área jurídica leva-nos a inquietações acerca da presença de um currículo tecnicista, pautado em princípios pragmáticos que, historicamente, vem se reconfigurando na sociedade brasileira para dar conta de uma formação subordinada à lógica de um mercado, a qual merece ser relativizada, uma vez que, acima de tudo, é essencial que o intelectual formado no curso de Direito seja capaz de contribuir no avanço da sociedade e suas normas, e não apenas ser um mero operador do que já está estabelecido.

Apostando em uma possibilidade de superação do ensino fragmentado, garantindo no processo de formação do profissional das ciências jurídicas uma profunda análise da complexidade social em que perpassa a elaboração da norma e sua aplicabilidade, ousa-se dissertar sobre o Direito que se ensina errado, tendo como reflexo central a crise do ensino jurídico e a falta de substrato na formação do profissional, do componente social destinado à discussão acerca do acesso à justiça.

As limitações no campo social e filosófico no processo de formação do bacharel em Direito reforçam a ausência de discussões sobre a ampliação do acesso à justiça nos meios forenses, sejam elas nas entidades representativas de classe, e também na participação dos

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profissionais da área do Direito nos debates acerca da universalização deste Direito, fundamental à construção de um projeto social igualitário e essencialmente democrático.

2. A fetichização do diploma

Boaventura de Souza Santos, em seu artigo “Sociologia dos Tribunais e democratização da justiça”, identificou diversos fatores que repercutem negativamente no acesso à justiça pela população em geral, especialmente os mais pobres: o fator econômico, segundo o qual os custos dos processos são altos em relação ao valor da causa, e quanto menor o valor da causa, proporcionalmente maior são as despesas processuais, atingindo de modo mais acentuado as populações mais carentes; o fator social, segundo o qual quanto mais pobre é a pessoa, é menos provável que conheça um advogado ou mais distante é o acesso a escritórios de advocacia ou tribunais; o fator cultural, segundo o qual as pessoas mais pobres tem menos informações sobre seus direitos e mais receio em recorrer ao judiciário. Em seguida, o sociólogo português identificou nas reformas processuais ocorridas na Europa que houve relativo sucesso na superação dos obstáculos econômicos do acesso à justiça, por meio do sistema de assistência judiciária gratuita, mas os obstáculos sociais e culturais não foram devidamente enfrentados.

Pode-se acrescentar entre os obstáculos sociais e culturais do acesso à justiça a formação dos profissionais do direito, juízes, promotores de justiça, advogados e a burocracia judicial e administrativa. Dependendo da concepção de direito internalizada por seus operadores, eles podem exercer o ofício jurídico como função de emancipação social, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, ou como um veículo para o autoritarismo, conservando ou mesmo aprofundando a distância social entre os operadores do direito e os jurisdicionados. Além disso, uma concepção mecânica e autoritária do direito resulta não apenas em repressão como também em alienação de direitos reconhecidos, pela ausência de empatia com a população mais carente, somada à subserviência ou bajulação das classes mais empoderadas.

A ciência do direito experimenta atualmente uma grave crise de seus paradigmas axiológicos, na medida em que tanto a sua ideologia de fundo - o liberalismo - quanto o seu modelo epistemológico – a dogmática normativista – deixaram de fornecer as respostas adequadas para os problemas com que vem se defrontando esse campo do saber, especialmente na sua dimensão aplicada. Por isso tem-se afirmado que a crise da ciência jurídica se insinua mais claramente no plano histórico, onde o telos do direito, enquanto realização da justiça, passou a ser o simples controle social, autoritário e antidemocrático, já que a mera utilização repressiva dele, com uma função exclusivamente controladora, no limite, tem provocado mais exclusão do que inclusão social, mais injustiça do que justiça, mais repressão do que libertação, portanto, tem provocado a própria ineficácia do direito.

Essa crise de paradigmas da ciência jurídica atinge, por conseguinte, também a reprodução do saber e o universo prático do profissional do direito. Atinge o ensino jurídico porque este não está mais orientado por padrões didáticos e pedagógicos que propiciem a formação completa do jurista, capacitando-o para atuar em meios sociais conflitivos, como mediador de relações que se devem orientar pela busca da justiça e da democracia, enquanto

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expressões de igualdade social e participação política; e atinge também a atuação profissional do jurista, porque essa atuação há muito se tornou um fazer simplesmente tecnológico, despolitizado e exercido com total indiferença pelos critérios éticos de justiça, quer distributiva, quer comutativa.

O Direito, compreendido como uma ciência social, precisa de superar a concepção positivista, fundamentada nos princípios das ciências naturais, e adotar uma perspectiva crítica e reflexiva da norma e sua aplicação em um tecido social altamente complexo.

Em vista do quadro que se apresenta na sociedade contemporânea, em que a universalização da reivindicação do acesso à Justiça se acentua, decorrente da globalização do acesso à informação e à comunicação, o ensino jurídico deve romper com o viés conservador e tecnicista, abrangendo, nas disciplinas doutrinárias, um enfoque mais acentuado no plano social, afinal, toda e qualquer norma existe em função de relações sociais complexas que surgem a partir da ação humana.

O ensino superior, a partir da segunda metade dos anos noventa, sofreu uma mudança radical de perfil. Se antes havia uma predominância, quando não um equilíbrio entre as instituições estatais e privadas de ensino superior, o governo promoveu a expansão do ensino superior através do aumento das instituições privadas, de modo que, segundo o Censo do Ensino Superior de 2008, as instituições privadas correspondem a 90% do ensino superior. Há diversas criticas quanto a essa política de privatização indireta do ensino superior. Uma delas é que as instituições privadas de ensino não assumem o compromisso de conjugar o ensino com a pesquisa e extensão, ou seja, há somente a preocupação em formar profissionais, muitas vezes de formação técnica deficiente, pois não existe diálogo com o mundo extramuros.

Como extensão dessa limitação, as instituições de ensino superior favorecem a cultura de uma “educação bancária”, voltada exclusivamente para o mercado, negligenciando sua função social como um espaço público de construção do conhecimento e de intercambio de idéias. O estudante da faculdade particular é levado, de acordo com esta “cultura”, a nem almejar o conhecimento reproduzido – ou produzido – pela instituição; o resultado é mais tacanho: muitos estudantes ingressam no ensino superior pela simples razão de obter um diploma de nível superior. Quanto mais rápido o estudante conseguir este diploma, quanto menos esforços envidar por este diploma, mais atraente será a instituição, de acordo com este modelo corrompido de ensino. Esta cultura alienante tem sido alvo de críticas, inclusive por professores das instituições privadas de ensino, que acusam acertadamente seu caráter corruptor, responsável pela malformação acadêmica de profissionais completamente desidiosos com o saber, seja ele formal ou não.

O ensino jurídico está afetado de modo especial por esta cultura. O estudante de direito, muitas vezes, associa a conclusão do curso à perspectiva não apenas de um diploma de nível superior, mas também à oportunidade de ser empossado em um cargo público. Ter realizado o curso de direito passa a ser um trampolim para o almejado cargo público. Com efeito, os bons cursos de direito, nesta concepção, devem preparar o aluno para ser aprovado e classificado em cargos públicos. A metodologia do ensino superior, que deveria ser pautada na reflexão, no pensamento crítico, curva-se ante outros métodos, caracterizados pela memorização e pela aceitação passiva dos postulados apresentado pela

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lei e pela jurisprudência “que caem em concurso” (esquecendo-se até que essas normas são resultado da confrontação do direito posto com o mundo da vida, com a prevalência deste segundo).

Existem movimentações no sentido de reverter este processo de empobrecimento acadêmico do ensino superior, incluindo o ensino jurídico, por meio de controle externo da qualidade do ensino. Tanto o Ministério da Educação (Exame Nacional do Ensino Superior – ENADE) quanto a Ordem dos Advogados do Brasil (selo “OAB Recomenda” e Exame da Ordem, este último específico para quem pretende ingressar na carreira de advogado) submetem os estudantes de direito, especialmente os concluintes do curso, a exames periódicos visando: (a) avaliar o desempenho dos estudantes, de modo a ter um diagnóstico do ensino superior, especificamente do ensino jurídico; (b) estabelecer padrões mínimos de qualidade, comuns a todas as instituições de ensino superior, de modo a possibilitar o ranqueamento das instituições de ensino superior e com isso estimular a competição entre elas pelo público estudantil e (c) condicionar o comportamento das instituições de ensino, de modo a adaptar sua gestão aos padrões indicados pelas entidades avaliadoras. Embora seja legítimo o interesse do governo (MEC) e da sociedade civil (OAB) em promover a qualidade do ensino jurídico, esse controle em certos aspectos acaba tendo efeito reverso, contribuindo para a coisificação do ensino jurídico. Primeiramente, a avaliação do desempenho mediante uma prova escrita favorece uma postura de acriticidade do discente, do mesmo modo como a metodologia de ensino aplicada a concursos públicos o faz. Isso é mais verdade em relação ao Exame de Ordem do que em relação ao ENADE, devido às provas deste último exigir habilidades mais sofisticadas, enquanto que a prova da OAB ainda está vinculado ao modelo de memorização. Segundo, a exigência de bom desempenho em tais provas acaba por concentrar esforços das instituições somente aos estudantes alvo da avaliação, e de modo superficial, o suficiente para se ter um bom resultado. Os estudantes que não são submetidos à avaliação ficam preteridos, sem haver uma política voltada para a qualidade do ensino durante o restante dos anos da faculdade.

A política de ensino superior adotada refletiu um desenvolvimento horizontal sem precedentes, em termos de massificação do acesso ao ensino superior, mas com pouco desenvolvimento vertical, ou seja, a qualidade de ensino não acompanhou o mesmo ritmo.

André Luis Alves de Melo, promotor de justiça e estudioso sobre o ensino jurídico, considera que a origem do problema está no próprio perfil do ensino jurídico e do operador jurídico, pois houve uma “banalização do conhecimento jurídico” ao se exigir bacharelado em direito para o exercício de cargos de cunho mais operacional e complexidade menor, o que seria mais adequado a um curso técnico de direito, que não existe no Brasil. Por conta desta demanda, de enormes proporções, os cursos de direito acabam sendo um meio termo entre a graduação e curso técnico ou tecnológico, não atendendo de maneira devida nem um público nem outro. Em vez de trazer maior qualificação para o servidor judicial, ocorre fenômeno inverso: empobrece-se o curso de direito, para atender à demanda dos operadores do direito de baixa complexidade.

A pesquisa proposta visa contribuir com o vasto tema da “crise do ensino jurídico”. A maior parte dos estudiosos que se dedicaram ao assunto o tratou dentro do aspecto filosófico-epistemológico, reconhecendo os fatores que promovem a mudança do paradigma, estabelecendo as características do período de transição. No entanto, ainda são poucos os

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estudos que abordam o assunto de forma empírica, na forma de observação participante, estudo de caso, pesquisa estatística etc. Menos ainda os estudos empíricos relacionados ao ensino jurídico na Região Amazônica cujas disputa sobre o reconhecimento de direitos têm repercussão nacional e até mesmo internacional, como exemplificam os casos Eldorado de Carajás, Irmã Doroth Stang, Hidrelétrica de Belo Monte, sem citar outros. O estado do Pará possui a triste reputação de uma “terra sem lei”; abundam os casos de violação de direitos humanos; o judiciário paraense tem sido acusado muitas vezes de ser inoperante e até mesmo cúmplice destas violações. No Pará, notadamente, o direito é chamado a exercer sua função emancipadora, e não tem agido à altura. Vale saber até que ponto este déficit de efetivação de direitos humanos não decorre de uma cultura jurídica conservadora, produzida por uma estrutura econômica e social profundamente desigual, conservada e protegida por uma formação jurídica profundamente acrítica e sócia dos instrumentos de dominação das elites políticas e econômicas locais.

3. Por um ensino jurídico que valoreze o acesso à justiça O ensino do Direito, em seu viés conservador, construiu, historicamente, valores negativos quanto ao acesso à Justiça, restringindo tal “direito” aos segmentos economicamente mais destacados da sociedade. Com o estabelecimento do Estado Democrático de Direito, o acesso à Justiça emerge resultante das pressões sociais e, no instante em que os grupos minoritários se organizam em defesa de sua representatividade no Estado, esta temática alcança visibilidade, tornando-se bandeira de luta de diversos segmentos.

Para Machado (2003), o ensino jurídico expressa uma dívida social com os segmentos menos favorecidos, a partir das novas relações sociais que se constroem no plano da luta de classes, resultando na elaboração de um tecido social complexo e em permanente transformação. Assim, o ensino que não educa, que não oferece possibilidades de reflexão sobre a realidade social, é incapaz de responder às problemáticas atuais.

Não há dúvida de que o ensino jurídico no Brasil atravessa uma crise que atinge a própria identidade e legitimidade dos operadores do Direito. É inegável a situação verdadeiramente calamitosa em que se encontra o ensino jurídico, oriundo da má formação dos profissionais dos diversos ramos da frondosa árvore do Direito. (Machado, 2003, p.106).

A ausência da reflexão sobre a realidade social contribui para a presença da lacuna existente no posicionamento do advogado relativo ao acesso à Justiça, apresentando discursos com uma visão aparente, centrada unicamente nas questões de ordem econômica sobre os custos processuais envolvidos e na fragilidade da infraestrutura estatal do Poder Judiciário para atender às demandas populares.

Essa situação decorre da estruturação curricular dos cursos de Direito, cujas matrizes curriculares não conseguem universalizar a idéia de acesso à justiça, concentrando-se em uma abordagem de que o Direito serve como instrumento de proteção dos detentores do poder político e da manutenção dos privilégios dos detentores do poder econômico.

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Contudo, é fundamental que se supere tal visão de rede de proteção, criada para manter privilégios e a manutenção da ordem conservadora.

Sem a dimensão social na formação do advogado, a crise epistemológica do currículo resulta na ocultação da universalização do acesso à Justiça, resultando na existência de um operador do Direito autoritário, que reforça a ignorância e a incapacidade de atendimento das necessidades humanas. As questões jurídicas, centradas no estudo do código sem a reflexão social, servem de instrumento para as classes dominantes se manterem no poder.

A negação do acesso à Justiça no ensino do Direito teve como elemento reforçador a presença de aspectos definidores de tal ciência, entendido tradicionalmente pela doutrina como o conjunto de princípios e normas que disciplinam as relações humanas na sociedade (Rodrigues, 2000). Essa visão foi apropriada pelos segmentos dominantes, resultando na universalização da cultura de que o grupo que detém o poder é quem dita as regras jurídicas, suprimindo os demais grupos do Direito ao acesso à Justiça. Tal visão ideológica se exteriorizou por meio de aparelhos e ideologias que se materializam, diuturnamente, nas instituições, seja por meio da violência simbólica, seja por outros meios controladores e limitadores.

O ensino jurídico, pautado nos princípios democráticos, não deve ser meio de reprodução da ordem desigual, mas que seja capaz de auxiliar no processo de construção de novos valores e princípios capazes de questionar a estrutura de poder. Para Ponce (2006), as indagações sociológicas sobre o Direito despertam o interesse para a reflexão do acesso aos bens sociais a todos.

A reflexão sobre o acesso à Justiça no ensino jurídico contempla o modelo de Estado existente, de modo que, na formação dos profissionais, as concepções filosóficas e sociológicas da teoria estatal precisam ser trabalhadas, para proporcionar a ele a visão da universalidade de tal bem social, habilitando-o a um posicionamento ético e profissional, fundado em uma perspectiva humanística e comprometido com a transformação da estrutura social.

O postulado da objetividade do conhecimento foi, por muito tempo, responsável pelo desinteresse dos cursos jurídicos acerca das práticas sociais que, ocorrendo fora dos limites das instituições formais do Direito, desempenharam, todavia, importante papel na formação dos significativos normativos, bem como na solução dos conflitos que escapam ao aparato burocrático da administração da Justiça. (...) os problemas do ensino jurídico são problemas que dizem respeito aos modos de organização do saber cientifico, como estrutura de poder e, portanto, devem ser examinados tendo em vista os critérios de prestígio e capacitação na vida acadêmica. (Muricy, 2006, p.60-61).

No ensino do Direito, o acesso à Justiça tem sua negação no referido Curso, a partir da supressão do debate social da norma na academia, resultante da cultura conservadora que o Curso imprimiu, e reforçada no discurso liberal da profissão, destituindo a reflexão social da prática profissional, negando tal direito, especialmente, aos segmentos populares menos favorecidos. A elitização do Curso levou à produção de uma cultura mercadológica da visão de Justiça, atrelada aos interesses das classes economicamente privilegiadas. Em vista desse fato, houve a supressão do debate de temas sociais no curso de Direito, eliminando da

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formação a compreensão dos problemas sociais, políticos, culturais, que se manifestam no âmbito da norma.

É importante que se discuta o acesso à Justiça no Curso de Direito, a partir da abrangência que o tema expressa no cotidiano social, partindo da lógica de que ela é o elemento central para a consolidação do Estado Democrático de Direito, pois a sociedade só pode ser considerada justa, quando o cidadão é atendido em suas demandas, proporcionando o exercício da cidadania.

O debate sobre o direito de acesso à Justiça no Curso de Direito deve superar a mera consideração do instituto, ampliando-se a compreensão à luz dos fatores socioculturais, econômicos, políticos, que se manifestam, cotidianamente, na sociedade brasileira, os quais correspondem a situações de desigualdade que a norma não abrange no texto.

A reflexão sobre a condição humana, no estágio do capitalismo contemporâneo, se fundamenta na disparidade do acesso aos bens sociais, e esta compreensão precisa ser abraçada no ensino jurídico, visando a oferecer ao advogado condições de avaliar as implicações existentes em uma superestrutura excludente que, por décadas, se mantém como instrumento de controle social e de poder. Para Santos (2006), vivemos uma condição de perplexidade diante de inúmeros dilemas nos mais diversos campos do saber e do viver, e estes, além de serem fonte de angústia e desconforto, são, também, desafios à imaginação, à criatividade e ao pensamento. Essa condição de incerteza se reproduz no ensino jurídico, apontando o acesso à Justiça apenas em suas matrizes normativas, sem que haja espaço para a problematização da realidade em que ela se insere.

Abranger a pluralidade humana, como condição básica de convivência social, é uma perspectiva que precisa ser abrangida no ensino jurídico pautado na valorização do acesso à Justiça, visando a consolidar a compreensão do duplo aspecto da igualdade e da diferença. Entende-se que a reflexão no Direito sobre a dicotomia igualdade e diferença deve estar explícita na formação do profissional das ciências jurídicas.

Para Boaventura Santos (2006), o estágio contemporâneo traz à tona a reivindicação de direitos historicamente negados ao homem e, entre estes, o acesso à Justiça é incluído como parte componente da identidade humana, atrelado à dignidade e à valorização da existência em sua totalidade. Nessa lógica, o ensino do Direito precisa estar articulado às questões que se levantam no mundo globalizado, privilegiando a valorização das ciências humanas frente aos avanços da tecnologia que constrói uma sociedade individualizada e mecânica, negando a complexidade das relações sociais.

Na contramão desta lógica, o ensino jurídico deve romper com o paradigma das ciências experimentais, como a Matemática, a Química, a Física e a Biologia, as quais isolam seus objetos de estudo do contexto social. Tal postura epistemológica reforça a construção de uma sociedade sem interação social e esvaziada de discussões éticas e da compreensão das identidades locais, regionais e, principalmente, da diversidade cultural.

A reflexão sobre o acesso à Justiça, no caso brasileiro, está relacionada aos problemas de ordem estrutural que, historicamente, negaram a igualdade de acesso aos bens sociais. De um lado, é presenciada uma casta intelectualizada e formadora dos mandatários do nosso país, de modo que a igualdade e a garantia ao acesso aos bens se configuraram como

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privilégio de uns poucos, em detrimento da grande parcela da população, formada apenas para trabalhar e ser submissa.

Com as transformações sociais, especialmente a partir da década de 1980, acentuou-se a campanha de ampliação do acesso aos bens sociais, lutando-se pela universalização dos direitos fundamentais e, por meio de políticas, foi possível avançar no atendimento às demandas populares. Contudo, este olhar histórico-crítico não é objeto de debate no ensino do Direito.

Em síntese, temos um completo esvaziamento da formação humanística nos cursos jurídicos e a emergência de um processo de robotização ou tecnologização do conhecimento, reforçado pela presença dos Núcleos de Prática Jurídica, com um discurso liberal de garantia ao acesso à Justiça aos segmentos menos favorecidos, quando, na verdade, o atendimento é feito por estudantes com limitações em sua formação sobre a perspectiva ética, social, que a temática contempla. Assim, pensar as ciências humanas no século XXI, em especial, delimitando no ensino jurídico, significa construir uma cidadania histórica como condição de identidade e posicionamento crítico-problematizador do meio social.

As ciências jurídicas devem oportunizar o debate em torno do processo de construção de identidades humanísticas, voltada para a reformulação das idéias, das práticas e das concepções sociais dentro da perspectiva da sociedade tecnológica. A cidadania histórica das sociedades se constituiria, assim, como referencial humanístico dentro da formação básica do cidadão.

4. Limitações no ensino jurídico sobre o acesso à justiça Como dito anteriormente, as discussões sobre o acesso à Justiça nos cursos jurídicos contemplam, de forma superficial, algumas categorias, destacando-se a fragilidade do aparato judiciário estatal, a nova configuração do Estado Democrático, os aspectos éticos e econômicos, bem como a falta de informação da população quanto à disponibilidade de tal serviço.

No tocante à fragilidade da infraestrutura do Estado, o debate não é consolidado pelo viés político, deslocando-se as reflexões para o campo das situações e fatos existentes que retratam a desigualdade no trato dos direitos do cidadão. Há uma discussão superficial do direito ao acesso à Justiça, como condição essencial ao exercício da cidadania, contida no artigo 5°1, do texto constitucional que assegura a igualdade perante a lei.

O acesso à Justiça é tratado, apenas, em seus aspectos normativos, tido como um direito fundamental, destacando a responsabilidade do Estado, por meio de seus órgãos, de promover e disponibilizar ao cidadão tal serviço, mediante a instalação das Defensorias Públicas. Ao abordar o campo da teoria do Estado como fundamento ao acesso à Justiça, é discutida a dimensão dos princípios democráticos, centrada no texto constitucional,

1 Art. 5º, [...] XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito da

Constituição Federal do Brasil, de 1988.

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abordando-se de forma fragmentada e sem a devida reflexão do contexto histórico e político.

Quando se trata dos aspectos éticos, o acesso à Justiça se relaciona ao atendimento das demandas dos segmentos menos favorecidos, resguardando-se os direitos fundamentais e o combate à desigualdade, apontando o papel do Estado para solucionar conflitos, delimitando o estudo ao atendimento dos sujeitos pertencentes às camadas menos favorecidas da população. A fundamentação do debate ético, quanto ao acesso à Justiça, está relacionada aos preceitos de justiça social e igualdade, evidenciado, cotidianamente, nas relações sociais prevalecentes na sociedade democrática.

Na perspectiva econômica, o ensino jurídico relativo ao acesso à Justiça se concentra nos aspectos de custas processuais, custas profissionais, principalmente pelo fato de se apresentar uma situação adversa, economicamente, para a maioria da população brasileira. O custo do processo constitui um dos principais obstáculos que devem ser enfrentados na busca do efetivo acesso à construção de uma ordem jurídica justa, de modo que a resolução de litígios, particularmente daqueles que necessitam da ação do Judiciário, costuma ser dispendiosa.

O primeiro grande problema sempre apontado pela doutrina, como entrave ao efetivo acesso à Justiça, é a carência de recursos econômicos por grande parte da população para fazer frente aos gastos que implicam uma demanda judicial. A sociedade brasileira encontra-se perante um quadro assustador de miséria absoluta. Exemplo disso é o fato de que em 1990 os 1% mais ricos da população possuíam 14,6% da renda nacional, enquanto os 59% mais pobres recebiam apenas 11,2% dessa mesma renda. (Rodrigues, 2000, p.276).

Não há, no debate, um aprofundamento da análise social e econômica que gerou tal situação, tampouco é destacado no ensino que, independente de tal fato, o acesso à Justiça se insere em uma política social, visando a garantir o bem para toda a população.

A visão que se coloca no ensino do Direito é distorcida da realidade e da fundamentação doutrinária pertinente aos direitos fundamentais, de modo que independentemente do panorama político e econômico, é dever do Estado disponibilizar o acesso à Justiça a toda a população.

Quando se trata da informação como fator inibidor do acesso à Justiça, o problema é tratado superficialmente, mediante uma análise do nível de escolarização e da disponibilidade da informação à população, em geral, e restritas pesquisas e análises sobre a violência simbólica construída pela classe dominante, quanto ao acesso aos bens sociais, entre estes a Justiça às populações carentes.

Frente aos desafios que se apresentam na sociedade pós-moderna, o conhecimento promove rupturas com a lógica reprodutora, exigindo-se do aluno um posicionamento crítico frente à realidade, de modo que sua atuação contribua para uma reinterpretação da realidade, que não seja aquela reproduzida pelas teorias mercadológicas e tecnologizantes do meio social.

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Para Arendt (2005), a compreensão da condição humana deve ser formulada na perspectiva de construção de uma historicidade da relação homem-natureza, de maneira que a complexidade e a multiplicidade da condição humana historicizada nos seus múltiplos aspectos: razão, consciência, cultura, afeto, coletividade, imaginário, sociedade, economia, trabalho e escrita, propiciem um alargamento da consciência cidadã em todos os aspectos do contexto social. Logo, o ensino fragmentado do acesso à Justiça nos cursos jurídicos necessita ser superado em vista da abrangência que ele assume no contexto da luta de classes.

No ensino jurídico, há fragmentações e limitações concernentes ao debate sobre o acesso à Justiça, pelo fato de se apresentar, no desenho curricular de alguns cursos, um enfoque acentuado ao tecnicismo, sem a preocupação da relação que o conhecimento prático expressa na sociedade, ao mesmo tempo em que os professores só conseguem visualizar a aplicabilidade do código, desconsiderando os pressupostos históricos e sociais que o fundamentam. A racionalidade técnica, ainda prevalecente no ensino do Direito, restringiu a pesquisa, a reflexão e a problematização sobre os objetos, tornando o curso essencialmente prático, resultando no comprometimento da formação do advogado.

No estágio atual do ensino jurídico, Carlini (2006) destaca o enfoque tecnicista na valorização dos códigos jurídicos em detrimento de uma análise das condições históricas, sociais e humanas, resultando em uma prática, entre os operadores do Direito, fragmentada da totalidade que esta ciência precisa dispor ao analisar o fato.

A prática pedagógica no Curso de Direito, destinada à abordagem do acesso à Justiça e outros temas, precisa ter como premissa a contextualização da realidade que priorize a construção de um olhar crítico sobre as condições sociais, visando a compreender a abrangência da norma para atender a tal fato, de modo que o conhecimento científico esteja vinculado ao social, não como mero receptor de informações, mas como idealizador de práticas que favoreçam a compreensão da dinâmica social.

Atualmente é inconcebível a prática pedagógica compartimentada, sem o diálogo constante entre as disciplinas na formação integral da pessoa. Essa forma fragmentada de aprendizado acaba por deflagrar uma sensação de insegurança por parte do estudante. Por isso, é importante buscar novos pontos de conexão entre as disciplinas. (...), o professor deve estar preparado para aproveitar as questões cotidianas expostas em sala de aula para trabalhá-las de forma interdisciplinar. (Alves, 2006, p. 173).

Frente a esta realidade, o ensino deve contemplar uma postura norteadora que esteja voltada para o desenvolvimento de um conjunto de competências e de habilidades essenciais, a construção do pensar crítico dos alunos, visando à compreensão e à reflexão sobre a realidade que fundamenta o acesso à Justiça, criando valores e princípios capazes de compreender o contexto social.

A fragmentação do conhecimento sobre o acesso à Justiça é descrita na ação pedagógica e reforçada por uma matriz unívoca existente na maioria dos Cursos de Direito, suprimindo o aprofundamento e a relação entre as disciplinas, o que resulta na formação de um profissional sem uma visão mais global e consistente do que vem a ser a realidade. O elo entre as disciplinas cria espaço para o fortalecimento da interdisciplinaridade, que nada mais

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é que um conhecimento sistêmico e interdisciplinar, que busca o sentido de totalidade, respeitando a especificidade das disciplinas, viabilizando a possibilidade de um pensar que possa se complementar em um outro.

A limitação do ensino do tema “acesso à Justiça”, no Curso de Direito, compromete a formação do advogado, pois, de acordo com Boaventura Santos (2007), o homem precisa de uma formação educacional que viabilize um processo de compreensão, reflexão e análise crítica da realidade que o circunda. Por meio da intersubjetividade, o homem consegue buscar respostas mais concretas e sólidas para suas perguntas. O desenvolvimento da intersubjetividade é um exercício contínuo de doação, interação e, acima de tudo, de se colocar no lugar do outro, diante das situações que se apresentam.

O ensino jurídico deve compreender que o conhecimento é dinâmico e, para continuar como tal, requer que o ser humano sustente a segurança das suas incertezas, ou seja, para não vivermos em um mundo com respostas absolutas e acabadas, devemos ter uma postura crítica diante dos acontecimentos. Os pesquisadores desenvolvem muito o pensar crítico, já que, por meio das pesquisas científicas, vão trilhando o caminho das descobertas e, portanto, necessitam de estar, sempre, buscando ou discordando de um conhecimento para comprovar ou não suas hipóteses. Nesse caso, as limitações na abordagem do acesso à Justiça, no ensino jurídico, expressa o quanto a qualidade da formação do advogado precisa de ser repensada nas instituições formadoras.

No trabalho docente, é fundamental que se organizem momentos destinados à integração dos conteúdos, tendo como princípio a prática interdisciplinar, concebendo-se a inexistência de saber absoluto, relacionado ao contexto global do conhecimento, visando a um pensamento que ultrapasse a memorização e se vincule à indagação e ao questionamento dos fatos. Assim, não há, nos manuais do ensino relativo ao acesso à Justiça, a preocupação com a visão interdisciplinar, o que compromete a formação do advogado.

A fragmentação do conhecimento na sociedade contemporânea é algo que compromete o homem nas respostas aos questionamentos sociais, suprimindo valores e subjetividades. No ensino jurídico, é possível constatar o esvaziamento de debates interdisciplinares que podem transformar a realidade em que vivemos e proporcionar ao advogado se relacionar com o mundo, de forma crítica e não, alienada.

5. Por outra lógica no ensino do direito

Na contramão desta lógica, no ensino do Direito, pensa-se ser fundamental atentar para a dimensão humana, concebendo o ser humano, enquanto sujeito participante do processo de construção do conhecimento, buscando, em suas análises, indagações e reflexões para as reais respostas aos questionamentos. Para tanto, deve caminhar em uma relação complexa, porém, rica de interação entre as disciplinas, capazes de auxiliá-lo na compreensão das situações e causas que se apresentam no cotidiano.

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Superar as limitações no ensino jurídico implica romper com os paradigmas dominantes, que preconizam a ciência cartesiana como uma forma de pensar a realidade isolada e separada, que reduz o todo às suas partes, aos seus aspectos mensuráveis, quantificáveis. A necessidade atual exige a substituição de um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo e, a partir desta complexidade, propor, em primeiro lugar, uma mente aberta capaz de contextualizar e globalizar, assegurando uma aprendizagem cidadã, como uma nova lógica de ver o mundo.

Para Boaventura Santos (2007), no momento atual, torna-se relevante ao homem contextualizar algo, ver o mundo de forma diferente. Ele deve desenvolver o seu senso crítico, que é o responsável pelo desenvolvimento da cultura, da ciência e da tecnologia, além da sua profundidade de interpretação e articulação interdisciplinar nas diversas áreas do conhecimento.

Dessa forma, o desenvolvimento científico, tecnológico e cultural da humanidade depende da busca de um conhecimento crítico, de uma compreensão do mundo articulada e aprofundada por meio de métodos que garantam, de um lado, a profundidade e, de outro, a generalidade. Na sociedade contemporânea em que vivemos, a sua cultura não estimula o desenvolvimento de uma consciência crítica de seus membros. O senso crítico permite uma maior compreensão sobre a realidade e a possibilidade de ação sobre ela, viabilizando mudanças que nem sempre são interessantes para aqueles que detêm o poder.

A sociedade contemporânea se caracteriza pelo desencadeamento de fatos isolados, ou seja, a compreensão de um conhecimento mais amplo inexiste. Em todo o processo histórico, o homem é sujeito participante. Sendo assim, ele é o responsável pelo direcionamento das ações para compreensão da realidade. O momento pelo qual estamos passando é caracterizado pela busca do não conhecer, ou seja, o homem não conhece a si mesmo. Seus pensamentos e sua aprendizagem não fazem parte de um sistema integrado do conhecer e, sim, de uma visão fragmentada, superficial e assistêmica.

Em suas reflexões, Boaventura Santos (2007) assegura que a pluralidade dos saberes é flutuante e sujeita às constantes redefinições, conceituações e reavaliações, portanto, é preciso que se tenha clareza do que é saber, informação e conhecimento. Nesse contexto, saber é aquilo que, para determinado sujeito, é adquirido, construído, elaborado por meio do estudo ou da experiência; a informação é exterior ao sujeito e de ordem social, enquanto que o conhecimento é integrado ao sujeito e de ordem pessoal.

Por via da rede de informações, evidenciada pelo desenvolvimento crescente das tecnologias de informação, o homem passa a querer preencher o espaço vazio dos seus questionamentos frente à absorção do conhecimento. Nessa lógica, o conhecimento fragmentado vai se distanciando do homem, cedendo lugar ao significado da totalidade, ou seja, ao entendimento de um conhecimento integrado e relacional entre as ciências. Caso contrário, assistiremos ao nascimento de uma sociedade sem contexto, solta e alienada.

As informações devem se enquadrar em um quadro contextual lógico e preciso, para que adquiram sentido. O conhecimento interdisciplinar na sociedade contemporânea ganha mais dimensão e fortalecimento. Ele passa a adentrar os diversos campos do saber em uma

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interligação com tudo e todos, açambarcando um novo modelo de aprendizagem fundada na humanização e na transmissão de conhecimentos, que proporcione a apreensão da realidade social.

6. Considerações finais

O estágio social contemporâneo é caracterizado pela luta de homens e mulheres por direitos consagrados nas cartas constitucionais, e entre estes o acesso à justiça se apresenta como mais uma reivindicação que perpassa por praticamente todos os grupos sociais, visando garantir o respeito e a dignidade. Com a globalização, o conhecimento assume um valor imensurável na construção de possibilidades e na luta em favor da formação de um tecido social mais resistente e capaz de inserir todos.

Ao refletir sobre o ensino jurídico no Brasil, é fundamental que se analise a gênese articulada aos interesses de uma elite que se notabilizou no exercício do poder, apoiada pelo pensamento positivista que contribuiu para a formação de doutrinadores cuja base de atuação é legalista e destituída de uma profunda reflexão social e emancipatória do quadro social e político.

As restrições quanto ao acesso ao curso de Direito tiveram a participação direta das elites conservadoras que assumiram o controle político e ideológico na sociedade brasileira. Com o advento da República, fundamentada sob a lógica do pensamento positivista, refletiram no currículo, no ensino e, conseqüentemente, na formação do profissional da área jurídica.

Balizado no uso e na aplicação dos aspectos normativos, o curso assumiu um viés tecnicista, priorizando, acima de tudo, o domínio do instrumental técnico-normativo, em detrimento da reflexão e análise dos fundamentos sociológicos e filosóficos que embasam a doutrina jurídica.

A criação do curso de Direito voltado, inicialmente, para a formação do pessoal que iria compor o quadro administrativo e jurídico do Estado, esteve ligado ao pragmatismo, com uma visão utilitarista para a aplicação da norma, destituído, portanto, de um olhar crítico e reflexivo da realidade social.

A prevalecência do pensamento positivista no ensino do Direito e a elitização do curso impediram que se elaborasse uma cultura dialética capaz de responder à dinâmica social, a partir da presença dos intelectuais da área jurídica nos movimentos de reforma e contestação da ordem estabelecida.

Construído a partir de um currículo hermético, incapaz de promover o diálogo com a sociedade, em especial na reflexão do campo doutrinário e sua articulação com a realidade social, o ensino jurídico sofreu restrições quanto às propostas interdisciplinares, limitando-se, unicamente, ao teor técnico de aplicabilidade da norma. Estas práticas curriculares consolidaram-se até mesmo nas instituições tradicionais de formação do jurista brasileiro.

A formação do profissional jurista, restrita ao diálogo com a sociedade, reflete nos debates relativos ao acesso à justiça, impedindo que a classe se mobilize, seja através das

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organizações classistas ou em outros espaços organizados, devido às limitações na compreensão dos princípios e fundamentos sociológicos e filosóficos que abarcam o tema, desmobilizando toda e qualquer tentativa de ruptura do modelo vigente.

O Direito compreendido como uma ciência social precisa superar a concepção positivista, fundamentada nos princípios das ciências naturais, e adotar uma perspectiva crítica e reflexiva da norma e sua aplicação em um tecido social altamente complexo.

A necessidade de superação do paradigma racionalista-cartesiano focalizado na valorização do fato objetivo é essencial para que se tenha uma nova compreensão das relações do homem na sociedade, em que a presença de valores subjetivos resultantes da diversidade e da pluralidade de idéias e práticas que os diferentes povos vivenciam, precisa ser evidenciada nas discussões em sala de aula, visando formar um profissional capaz de ler, interpretar e compreender a realidade complexa.

O ensino jurídico destinado à formação do jurista com a capacidade de construir uma visão crítica da sociedade, possibilita avançar na produção de um movimento em favor da emancipação e da autonomia dos povos, assegurando maior empenho de todos em prol do acesso à justiça.

Em vista do quadro que se apresenta na sociedade contemporânea, em que a universalização da reivindicação do acesso a justiça se acentua, decorrente da globalização do acesso a informação e a comunicação, o ensino jurídico deve romper com o viés conservador e tecnicista, abrangendo nas disciplinas doutrinárias um enfoque mais acentuado no plano social, afinal, toda e qualquer norma existe em função de relações sociais complexas que surgem a partir da ação humana.

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