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____________ Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas e doutor honoris causa pela Universidade de Buenos Aires [email protected] www.bresserpereira.org.br CRÔNICA DO NOVO DESENVOLVIMENTISMO E DE SUA MACROECONOMIA ESTRUTURALISTA Luiz Carlos Bresser-Pereira Versão de 22 de fevereiro de 2011. Nos últimos dez anos, em colaboração com um competente grupo de economistas keynesianos e estruturalistas, venho desenvolvendo uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, ou seja, uma teoria do desenvolvimento do lado da demanda baseada em tendências estruturais que limitam as oportunidades de investimentos e impedem que a economia brasileira cresça à taxas elevadas que seus recursos humanos, materiais e institucionais possibilitam. Por outro lado, a partir da experiência do Brasil com o nacional- desenvolvimentismo (1930-1980) e com a experiência dos países asiáticos dinâmicos dos últimos 20 anos, vimos definindo uma estratégia nacional de desenvolvimento ou de competição internacional que denominamos novo desenvolvimentismo. Essas ideias estão sendo elaboradas por vários economistas em diversos países, e foram por mim sistematizadas em um livro, Globalização e Competição (2009) e em um artigo com Paulo Gala, “Macroeconomia estruturalista do desenvolvimento” (2010). Um pouco de história do pensamento Antes de apresentar de forma resumida o novo desenvolvimentismo e sua macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, creio valer a pena fazer um breve histórico da evolução dessas ideias. Depois do êxito extraordinário do Plano Real, no qual as teses da teoria da inflação inercial haviam sido aplicadas, eu me desapontara com as políticas econômicas adotadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso, do qual participei. Dada minha experiência no governo e

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____________ Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas e doutor honoris causa pela Universidade de Buenos Aires [email protected] www.bresserpereira.org.br

CRÔNICA DO NOVO DESENVOLVIMENTISMO

E DE SUA MACROECONOMIA ESTRUTURALISTA

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Versão de 22 de fevereiro de 2011.

Nos últimos dez anos, em colaboração com um competente grupo de

economistas keynesianos e estruturalistas, venho desenvolvendo uma

macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, ou seja, uma teoria do

desenvolvimento do lado da demanda baseada em tendências estruturais que

limitam as oportunidades de investimentos e impedem que a economia brasileira

cresça à taxas elevadas que seus recursos humanos, materiais e institucionais

possibilitam. Por outro lado, a partir da experiência do Brasil com o nacional-

desenvolvimentismo (1930-1980) e com a experiência dos países asiáticos

dinâmicos dos últimos 20 anos, vimos definindo uma estratégia nacional de

desenvolvimento ou de competição internacional que denominamos novo

desenvolvimentismo. Essas ideias estão sendo elaboradas por vários economistas

em diversos países, e foram por mim sistematizadas em um livro, Globalização e

Competição (2009) e em um artigo com Paulo Gala, “Macroeconomia

estruturalista do desenvolvimento” (2010).

Um pouco de história do pensamento

Antes de apresentar de forma resumida o novo desenvolvimentismo e sua

macroeconomia estruturalista do desenvolvimento, creio valer a pena fazer um

breve histórico da evolução dessas ideias. Depois do êxito extraordinário do

Plano Real, no qual as teses da teoria da inflação inercial haviam sido aplicadas,

eu me desapontara com as políticas econômicas adotadas pelo governo Fernando

Henrique Cardoso, do qual participei. Dada minha experiência no governo e

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minha formação estruturalista e keynesiana, eu discordara dessa política ortodoxa

desde o início do governo, e transmiti meu desacordo ao presidente. Por outro

lado, renovou-se e consolidou-se então minha convicção sobre a importância da

autonomia nacional no processo de desenvolvimento e sobre o papel não menos

mas mais estratégico do Estado-nação na globalização – na grande competição

que é hoje o desenvolvimento das nações.

O primeiro trabalho critico que escrevi sobre o tema, ainda em 1999, em Oxford,

abrangeu os 20 anos anteriores e toda a América Latina: “Incompetência e

confidence building por trás de 20 anos de quase-estagnação da América Latina”

(2001). Nele não havia ainda uma teoria nova. Usando a teoria disponível, eu

mostrava o mau desempenho das economias latino-americanas naquele período e

criticava as políticas econômicas adotadas. Na minha volta ao Brasil, e,

profundamente insatisfeito com a política macroeconômica do governo escrevi

com Yoshiaki Nakano, meu companheiro de muitas lutas acadêmicas, “Uma

estratégia de desenvolvimento com estabilidade” (2002), onde fizemos pela

primeira vez uma crítica sistemática da política de juros do Banco Central,

mostrando que esta taxa não correspondia ao “risco Brasil”, ou à participação da

dívida pública brasileira no PIB, mas à política econômica de juros altos que se

tornara aceita pela sociedade. E acrescentávamos uma ideia que ficou conhecida

por “hipótese Bresser-Nakano sobre a taxa de juros”: a relação de causalidade

entre o risco-país e a taxa de juros se invertia a partir de um certo patamar como

acontecera ao Brasil: os juros se tornariam um fator determinante do risco de

default, ao aumentar a despesa com o serviço da dívida. O trabalho provocou

grande debate, obrigando economistas como Edmar Bacha, Francisco Lopes e

Pérsio Arida a reagirem.

Entretanto, eu estava convencido que além da fazer a crítica da política da taxa

de juros, era preciso rever a política de câmbio, e, mais do que isto, a teoria em

torno dela. Há muito eu estava convencido que uma taxa de câmbio

“relativamente depreciada” era fundamental para o desenvolvimento econômico.

Em 2001, participando de uma reunião do Fórum Nacional organizado por João

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Paulo dos Reis Velloso, ficou subitamente claro para mim que a taxa de câmbio

era mantida cronicamente apreciada devido à política de crescimento com

poupança externa ou seja, com déficits em conta corrente e este fato impedia o

desenvolvimento econômico. Neste caso, eu, em primeiro lugar, invertia a

relação entre taxa de câmbio e déficit em conta corrente. Afirmava que a

sobreapreciação da taxa de câmbio era causada pela política de crescimento com

“poupança externa”, ou seja, pela política de incorrer em déficits em conta

corrente e financiá-los externamente. A política econômica era a variável

independente, e a taxa de câmbio, a dependente. Em segundo lugar, estabelecia a

relação entre o câmbio e o crescimento. O câmbio sobreapreciado estimulava o

consumo através do aumento artificial dos salários, de um lado e, de outro,

reduzia as oportunidades de investimentos lucrativos voltados para as

exportações. Em consequência reduzia-se a taxa de crescimento. A taxa de

câmbio é, portanto, um fator do lado da demanda do desenvolvimento

econômico. Se a taxa de câmbio for competitiva, suas empresas utilizando

tecnologia moderna terão acesso a toda a demanda externa; se estiver apreciada,

esse acesso é cortado. Convidei, no início de 2002, Yoshiaki Nakano para

escrever um segundo paper, agora sobre a taxa de câmbio, “Economic growth

with foreign savings?” (2003), que é para mim um marco das novas ideias. Ainda

em 2002, mais de três anos depois de sair do governo, eu apliquei as novas ideias

para fazer pela primeira vez a crítica da política econômica do governo Fernando

Henrique Cardoso em um paper apresentado na comemoração dos 50 anos do

BNDES nesse mesmo ano de 2002.

Estava claro para mim que uma nova teoria e um novo conjunto de propostas de

política econômica estavam em gestação. Eram ideias na área pouco

desenvolvida da macroeconomia do desenvolvimento com ênfase na taxa de

câmbio. Por outro lado, a experiência frustrante no governo Cardoso me havia

levado de volta ao nacionalismo econômico que aprendera com Celso Furtado,

Ignácio Rangel, Helio Jaguaribe e Guerreiro Ramos. A causa política da quase-

estagnação da economia brasileira nos últimos 20 anos fora a perda da ideia de

nação, fora a submissão, desde o governo Collor, a Washington e Nova York. Na

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aula magna da ANPEC de 1990, eu havia sido provavelmente o autor da primeira

crítica ao Consenso de Washington (1991). Mas foi só no início dos anos 2000

que se tornou claro para mim que o imperialismo dos países ricos e sua prática

secular de neutralizar as tentativas dos países retardatários de recuperar o tempo

perdido continuavam agressivos como sempre. A leitura do livro de Ha-Joon

Chang, Kicking Away the Lader (2002), no qual ele reviveu a frase de Friedrich

List e mostrou como os países ricos, através de suas propostas neoliberais,

continuavam a fazer recomendações e pressões para que os países em

desenvolvimento adotassem políticas opostas às que eles próprios haviam

adotado na mesmo estágio de desenvolvimento, convenceram-me

definitivamente que sem recusar o Consenso de Washington e adotar uma

verdadeira estratégia nacional de competição é impossível alcançar o

desenvolvimento econômico.

No início de 2003 Nakano e eu já havíamos reunido um conjunto de ideias que

justificavam uma denominação específica para as propostas que estávamos

fazendo. Perguntei a ele que nome poderíamos dar-lhes, e aceitei imediatamente

sua sugestão, “novo desenvolvimentismo”. Escrevia, então, a quinta edição de

Desenvolvimento e Crise no Brasil (2003) e no seu capítulo final, “A retomada

da revolução nacional e o novo desenvolvimentismo”, resumi pela primeira vez

as novas ideias. O novo desenvolvimentismo estava baseado em um papel

estratégico para o Estado, no crescimento com poupança interna, no equilíbrio

fiscal, em uma taxa de câmbio competitiva, e no desenvolvimento de um

mercado interno de consumo de massa.

Ao mesmo tempo eu procurava reunir em torno das novas idéias os

macroeconomistas mais jovens, tanto os pós-keynesianos como Luiz Fernando

de Paula, José Luiz Oreiro, Fernando Ferrari e João Sicsú, quanto os

estruturalistas como Ricardo Carneiro, Daniela Prates e Franklin Serrano. Os

encontros anuais da Sociedade de Economia Política foram importantes para isso.

Em 2005 um passo importante foi dado com a publicação do livro organizado por

Sicsú, Paula e Renaut Michel, Novo-desenvolvimentismo (2005: xxxv), em cuja

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introdução os organizadores definiram o novo desenvolvimentismo como

caracterizado pelas seguintes orientações “(1) não há mercado forte sem Estado

forte; (2) não haverá crescimento sustentado ... sem o fortalecimento ... do Estado

e do mercado e sem implementação de políticas macroeconômicas adequadas;

(3) mercado e Estados fortes somente serão construídos por um projeto nacional

de desenvolvimento que compatibilize crescimento ... com equidade social; e (4)

não é possível [reduzir] a desigualdade sem crescimento econômico a taxas

elevadas e continuadas”.

Em 2006 escrevi meu artigo mais sistemático sobre o novo desenvolvimentismo,

“O novo desenvolvimentismo e a ortodoxia convencional” (2006). Nele

argumento que entre 1930 e 1980 os países latino-americanos e principalmente o

Brasil e o México haviam crescido de maneira extraordinária com base nas ideias

estruturalistas e no nacional-desenvolvimentismo, mas, nos anos 1980, sofreram

a crise da dívida externa, e, a partir do final dessa década, se submeteram à

ortodoxia neoliberal. Em seguida, comparo o novo desenvolvimentismo com o

nacional-desenvolvimentismo e com a ortodoxia convencional procurando

mostrar como as políticas de desenvolvimento e as políticas macroeconômicas

novo-desenvolvimentistas são mais responsáveis do que as políticas neoliberais.

Nesse momento estava já definido o novo desenvolvimentismo, mas para a

formulação das bases de uma macroeconomia do desenvolvimento era preciso

mostrar empiricamente a relação entre a taxa de câmbio e crescimento a que me

referi acima. Essa tarefa será a do meu jovem orientado, Paulo Gala que, em

2006, defende uma excelente tese, Política Cambial e Macroeconomia do

Desenvolvimento na Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio

Vargas, mostrando a clara relação entre uma taxa de câmbio competitiva e o

crescimento. Em seguida publicamos juntos o paper “Por que a poupança externa

não promove o crescimento” (2007) no qual fazemos a formalização da crítica à

política de crescimento com poupança externa que eu originalmente elaborara

com Nakano. Era preciso, porém, mostrar que essa política era também

causadora de crises de balanço de pagamentos. Será a tarefa de outro orientado,

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Lauro González, que no ano seguinte defende a tese de doutorado Crises

Financeiras Recentes: Revisitando as Experiências da América Latina e da Ásia

(2007) no qual ele mostra que as crises financeiras que os países em

desenvolvimento enfrentaram nos anos 1990 não foram causadas por déficit

público excessivo, mas por déficits em conta corrente, ou seja, pela política de

crescimento com poupança externa.

Nesse ano de 2007 eu já estava trabalhando em um outro ponto essencial da

relação entre câmbio e desenvolvimento econômico: o problema da doença

holandesa. Em 2005 um pequeno artigo meu na Folha de S. Paulo sobre o

assunto havia iniciado uma ampla discussão sobre se haveria ou não doença

holandesa no Brasil. Percebendo que tinha ideias novas sobre o tema, decidi

então escrever um trabalho teórico, “The Dutch disease and its neutralization: a

Ricardian approach” (2008), ao mesmo tempo em que, com Nelson Marconi, eu

escrevia um trabalho sobre a doença holandesa no Brasil (2007). Estava

motivado pelas ideias novas e espicaçado pelas dúvidas de meu grande e velho

amigo, Fernão Bracher, sobre minhas ideias heterodoxas. Embora estivesse

convencido que o Brasil sempre sofrera a doença holandesa, eu me perguntava

como havia sido possível que o país tivesse se desenvolvido tanto entre 1930 e

1980 sem reconhecê-la. Fiz esta pergunta a Gabriel Palma que me respondeu de

pronto, “mas Bresser, nós na América Latina não fizemos outra coisa durante

esse período senão neutralizar a doença holandesa”. Não foi preciso que me

dissesse mais nada. Lembrei-me imediatamente de todo o controle que o Brasil

fez da taxa de câmbio e da imposição de um imposto sobre as exportações de

café, o chamado “confisco cambial”, e tratei de escrever meu artigo. Escrevê-lo

foi uma grande aventura teórica, foi uma sucessão de descobertas. Defini a

doença holandesa de um país como a sobreapreciação a longo prazo de sua taxa

de câmbio causada por rendas ricardianas associadas a uma ou mais commodities

que, por originarem essas rendas, podem ser exportadas a uma taxa de câmbio

mais apreciada (que equilibra intemporalmente a conta corrente do país) do que a

taxa de câmbio necessária para que suas empresas industriais utilizando

tecnologia no estado da arte mundial fossem competitivas – chamei essa taxa de

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taxa de câmbio “de equilíbrio industrial”. Mostrei que a doença holandesa é uma

falha de mercado permanente já que o país não se industrializava mas conservava

o equilíbrio de suas contas externas. Mostrei que sua gravidade varia de acordo

com a distancia entre a taxa de equilíbrio industrial e a de equilíbrio corrente.

Mostrei que países como a China, que têm mão-de-obra barata e um leque

salarial grande, precisam também neutralizar sua doença holandesa. Mostrei que

essa neutralização se faz, principalmente, através da imposição de um imposto

sobre a exportação das commodities que dão origem à doença holandesa,

preferivelmente acompanhada de um fundo soberano para que os recursos do

imposto não sejam internalizados. Mostrei que os países que a neutralizavam

apresentavam superávits em conta corrente e, em princípio, também superávits

fiscais. Rejeitei a diferença entre doença holandesa e “maldição dos recursos

naturais” que permite a seus defensores de “se esquecer” da sobreapreciação

cambial e atribuírem o atraso do país à corrupção que impostos (geralmente

insuficientes) provocam entre os políticos e burocratas locais. Ainda que esse

problema ético-político exista, não deve ser usado para se deixar de lado o

problema econômico que é a sobreapreciação. Depois de escrever esse artigo,

deixei definitivamente de dizer que para o desenvolvimento econômico é

necessária uma taxa de câmbio “relativamente depreciada” e ouvir a crítica

ortodoxa de que estava sendo “mercantilista”. Passei a afirmar que para fazer o

catching up o país precisa de uma taxa de câmbio “competitiva” ou de equilíbrio,

mas não de equilíbrio “corrente” e, sim, de equilíbrio “industrial”.

As bases da macroeconomia estruturalista do desenvolvimento se completaram

no ano seguinte quando defini as duas tendências estruturais que caracterizam os

países em desenvolvimento: a tendência a sobreapreciação cíclica da taxa de

câmbio e a tendência dos salários a crescerem menos do que a produtividade. As

duas tendências rebaixam a demanda, no primeiro caso, externa, e, no segundo,

interna, e, em consequência, reduzem as oportunidades de investimento lucrativo

e os próprios investimentos. Sobre o primeiro tema ainda escrevi um trabalho, “A

tendência à sobreapreciação da taxa de câmbio” (2009), enquanto o segundo foi

analisado, ainda que brevemente, em Globalização em Competição (2009),

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publicado originalmente em francês com um prefácio de Robert Boyer no qual

ele fala que está surgindo uma escola de pensamento no Brasil. Nesse livro que é

publicado também em francês, inglês e espanhol, faço uma síntese das novas

ideias. Ainda que a demanda interna seja fundamental para o desenvolvimento

econômico, não me estendi na discussão da tendência aos salários de crescerem

abaixo da taxa de produtividade, porque outros economistas, principalmente

Celso Furtado, já haviam discutido suficientemente o problema, e porque o livro

estava focado na taxa de câmbio – onde havia ainda muita teoria por

desenvolver.

Nesse livro eu havia procurado estabelecer as bases de uma macroeconomia do

desenvolvimento, mas só ficou claro para mim que se tratava de uma

macroeconomia estruturalista em 2009, após a publicação do livro, inicialmente

na França. No começo desse ano eu havia recebido um convite de José Antônio

Ocampo para escrever um trabalho sobre o novo desenvolvimentismo para o

Handbook on Latin American Economics que ele estava organizando com Jaime

Ross. Escrevi. Logo em seguida, porém, Osvaldo Sunkel me convidou para

escrever um paper também sobre o novo desenvolvimentismo para a Revista de

la Cepal. Foi então que conversando com Paulo Gala percebi que as novas ideias

que estavam surgindo poderiam constituir um segundo momento na teoria

estruturalista do desenvolvimento. O primeiro momento fora o dos anos 1940 a

1960s, esgotando-se nos anos 1970, inicialmente, sob a crítica equivocada da

“teoria da dependência” e, depois, a partir dos anos 1980, sob a crítica da

ortodoxia neoclássica dominante. Agora, entretanto, surgia um corpo de ideias

que poderia complementar e atualizar o pensamento estruturalista – não apenas o

pensamento latino-americano mas o pensamento geral da development economics

que, conforme Albert Hirschman (1981) assinalou, também entrara em crise a

partir dos anos 1970. De acordo com o convite de Sunkel feito em 2009, o artigo

deveria ser publicado no número 100 da revista, mas atrasei cerca de 20 dias sua

entrega, de forma que foi programado para o número seguinte, e, afinal,

traduzido e pronto para ser publicado no número 102. Entrementes, foi publicada

no Brasil, no último número de 2010 da Revista de Economia Política, sua

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versão em português, “Macroeconomia estruturalista do desenvolvimento”. Por

esse motivo formal, e não obstante o desacordo de Osvaldo Sunkel, a burocracia

cepalina deixou de publicá-lo.

Enquanto isso, independentemente da burocracia cepalina, o novo

desenvolvimentismo e a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento

continuavam a avançar. Em maio de 2010 organizei em São Paulo, com o apoio

da Ford Foundation, um workshop internacional sobre as 10 Teses sobre o Novo

Desenvolvimentismo – uma alternativa clara ao Consenso de Washington.

Aprovadas nos meses seguintes e subscritas por um grande número de iminentes

economistas e cientistas políticos de todo o mundo, o documento Ten Theses on

New Developmentalism tem hoje um website próprio com sua publicação em

várias línguas para permitir que outros economistas e cidadãos interessados as

possam também subscrever, e para que possam postar artigos. O novo

desenvolvimentismo transformava-se, assim, em uma instituição. Hoje, no início

de 2011, a macroeconomia estruturalista do desenvolvimento está aberta para

mais contribuições de economistas keynesiano-estruturalistas que recusam

qualquer ortodoxia, porque a ortodoxia é sempre uma recusa arrogante ao

pensamento e à crítica.

Macroeconomia estruturalista do desenvolvimento

Terminada esta breve crônica ou história pessoal do novo desenvolvimentismo

que será sempre uma prática em progresso, e da macroeconomia estruturalista do

desenvolvimento que está aberta para novos desenvolvimentos e para

comprovação empírica, resumirei agora, da forma a mais sistemática possível, as

principais ideias envolvidas. Embora o desenvolvimento econômico dependa

também de fatores do lado da oferta (educação, progresso técnico e científico,

investimentos na infraestrutura, boas instituições), a macroeconomia

estruturalista do desenvolvimento afirma que seu ponto de estrangulamento está

no lado da demanda. O desenvolvimento econômico depende de uma taxa de

investimento elevada, que depende da existência de oportunidades de

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investimentos lucrativos para as empresas, que, por sua vez, dependem da

existência de demanda interna e demanda externa. Entretanto, estas duas

demandas tendem a ser insuficientes nos países em desenvolvimento devido a

duas tendências estruturais: a tendência dos salários crescerem menos do que a

produtividade (que deprime a demanda interna) e a tendência à sobrevalorização

cíclica da taxa de câmbio, que coloca toda a demanda externa fora do alcance das

empresas nacionais mesmo que elas sejam eficientes ou competentes.

A primeira tendência decorre da oferta ilimitada de mão-de-obra nos países em

desenvolvimento. A grande vantagem desses países em relação aos países ricos

está em sua mão-de-obra barata, mas, como ela é abundante, tende a ser mal

remunerada, o que cria um problema de insuficiência de mercado interno.

Conforme Celso Furtado sempre salientou, a política de desenvolvimento deve

estar sempre preocupada em enfrentar esse problema, não apenas por uma

questão de justiça social, mas porque um desenvolvimento sadio e sustentado não

se coaduna com o aumento da desigualdade em países nos quais essa

desigualdade já é muito grande.

A segunda tendência – a tendência à sobrevalorização cíclica da taxa de câmbio –

é nova na literatura econômica. É uma crítica tanto à teoria neoclássica ou

ortodoxa, que afirma que a taxa de câmbio flutua suavemente em torno da taxa

que equilibra intertemporalmente a conta corrente do país, quanto à teoria

keynesiana que afirma que ela flutua de forma volátil em torno desse mesmo

equilíbrio. Ao invés, o que afirma a macroeconomia estruturalista do

desenvolvimento é que, nos países em desenvolvimento, a taxa de câmbio não é

controlada pelo mercado, mas pelas crises cíclicas de balanço de pagamentos. O

ciclo começa com uma crise de balanço de pagamentos, ou seja, com a súbita

suspensão da rolagem da dívida externa em moeda estrangeira pelos credores

externos e, em consequência, a forte desvalorização da moeda local. Em seguida,

depois do inevitável ajuste que o país é obrigado a fazer, a taxa de câmbio volta a

se apreciar gradualmente, puxada pela doença holandesa e, depois de algum

tempo, por déficits em conta corrente causados pela política de crescimento com

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poupança externa e pela tentativa de segurar a inflação com o câmbio. A dívida

externa volta a aumentar, e, afinal, de repente, os credores externos perdem a

confiança, suspendem a rolagem da dívida externa, e acontece nova crise de

balanço de pagamentos ou novo sudden stop que leva a moeda nacional a se

desvalorizar violentamente.

Há quatro causas fundamentais para essa tendência: (1) a doença holandesa, que

atinge quase todos os países em desenvolvimento, (2) o “fetiche da poupança

externa” – a crença de que os países devem incorrer em déficit em conta corrente

financiado e financiá-lo por entradas de capitais para crescer, (3) a estratégia

perversa de procurar reduzir a inflação à custa da apreciação da moeda nacional,

e (4) o “populismo cambial”, ou seja, a estratégia política de apreciar o câmbio

para aumentar os salários reais e lograr reeleição. No quadro da macroeconomia

estruturalista do desenvolvimento, o modelo da doença holandesa explica porque

a taxa de câmbio de mercado tende para o equilíbrio corrente que já é um

equilíbrio sobreapreciado, já que não viabiliza indústrias utilizando tecnologia no

estado da arte mundial; o modelo da taxa de substituição da poupança interna

pela externa mostra quão equivocado é o fetiche da poupança externa; as duas

últimas causas da tendência à sobreapreciação cíclica da taxa de câmbio não

exigem explicação adicional àquela presente em sua enunciação.

A doença holandesa caracteriza-se pela existência de duas taxas de câmbio de

equilíbrio, podendo ser definida como uma sobreapreciação permanente da taxa

de câmbio causada pelas rendas ricardianas (Ricardian rents) derivadas de

recursos naturais abundantes ou de mão-de-obra barata, esta última quando

acompanhada por elevada diferença entre os salários dos engenheiros de fábrica e

os trabalhadores. A produção e exportação de commodities que dão origem à

doença holandesa é economicamente viável a uma taxa de câmbio

substancialmente mais apreciada do que aquela necessária para os outros setores

da economia produtores de bens comercializáveis internacionalmente que

utilizam tecnologia no estado da arte mundial sejam igualmente viáveis. Essa

taxa, que é determinada pelo mercado, e mantém equilibrada a conta corrente do

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país ; denomino taxa de câmbio de “equilíbrio corrente”. A segunda taxa de

equilíbrio, mais depreciada que a primeira – a taxa de câmbio necessária para que

sejam competitivas as empresas que utilizam tecnologia avançada – é a taxa de

câmbio de “equilíbrio industrial".

A diferença entre essas duas taxas indica a gravidade da doença holandesa. Em

um país produtor de petróleo essa diferença é geralmente muito grande. Se, por

exemplo, a taxa de câmbio de equilíbrio corrente nesse país for de #2 moedas do

país por dólar e a taxa de câmbio de equilíbrio industrial for de #10 moedas do

país por dólar, esse país terá uma doença muito mais grave do que, por exemplo,

um país produtor de soja, cuja taxa de câmbio de equilíbrio corrente for

igualmente de #2 moedas do país por dólar, mas com uma taxa de câmbio de

equilíbrio industrial de #3 moedas por dólar. No primeiro país, a gravidade da

doença holandesa (que pode ser definida como a diferença entre as duas taxas

dividida pela taxa de equilíbrio industrial) será de 80%, enquanto que no segundo

país será de 33%. No primeiro país os investimentos em outras indústrias de bens

comercializáveis serão completamente inviáveis se o país não neutralizar a

doença holandesa, no segundo caso algumas indústrias mais eficientes e com

alguma proteção tarifária poderão sobreviver no mercado interno, mas não

poderão exportar. O primeiro caso é típico de países como a Venezuela e a

Arábia Saudita, o segundo, de países como o Brasil desde que fez sua abertura

comercial e financeira (1990-91) e deixou de administrar sua taxa de câmbio.

 Tendência à sobreapreciação cíclica da taxa de câmbio   

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O gráfico que apresento neste artigo torna mais fácil compreender o ciclo de

sobreapreciação e crise a que estão sujeitos os países em desenvolvimento que

seguem os preceitos da ortodoxia convencional. Nele temos as duas taxas de

equilíbrio e a tendência cíclica à sobreapreciação da taxa de câmbio, em azul

escuro. Temos ainda as duas alternativas a essa tendência que, na verdade, não se

aplicam às economias em desenvolvimento: em azul claro, a flutuação suave e

bem comportada suposta pela teoria ortodoxa, e em roxo, a flutuação volátil

suposta pelos keynesianos. Como vemos no gráfico, o ciclo começa com uma

crise de balanço de pagamentos e uma violenta depreciação, que leva a taxa de

câmbio acima (mais depreciada) do equilíbrio industrial. Em seguida, a doença

holandesa “puxa” a taxa de câmbio para o equilíbrio corrente – o nível com a

qual essa grave falha de mercado é compatível.

Para entender por que a taxa de câmbio continua a se apreciar, entra na área de

déficit em conta corrente, e termina por levar o país à crise de balanço de

pagamentos é preciso considerar a crítica da política de crescimento com

poupança externa, ou seja, com déficits em conta corrente. Esta política dos

ortodoxos keynesianos

ε

Tx câmbio equilíbrio industrial

Tx câmbio equilíbrio corrente

deficit em conta corrente

ε1

ε2

crise

crise

doença holandesa

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países ricos, proposta e aceita pelos países em desenvolvimento, afirma que (1)

os países em desenvolvimento devem incorrer em déficits em conta corrente e

financiá-los com entradas de capitais “para aumentar a poupança total”, e que (2)

podem e devem aumentar juros para atrair capitais, apreciar a taxa de câmbio e,

assim, atingir uma meta de inflação. As duas estratégias implicam atração de

capitais externos. A primeira é o incentivo à busca de financiamento externo e a

deliberada incursão em déficits em conta corrente (que, na literatura econômica,

são chamados de forma eufemística de “poupança externa”) para aumentar a taxa

de poupança do país e, assim, sua taxa de investimento sobre o PIB; a segunda,

uma clássica distorção do regime de metas de inflação. Entretanto, conforme

demonstra o modelo de substituição da poupança interna pela externa que

desenvolvi, as entradas de capitais não causam, principalmente, o aumento da

poupança total e do investimento, e, sim, o aumento do consumo e a diminuição

da poupança interna, ocorrendo, desta forma, uma elevada taxa de substituição da

poupança interna pela externa. Os déficits em conta corrente almejados pela

política econômica exigem entradas de capitais que apreciam a moeda local. Em

consequência, de um lado, os salários aumentam artificialmente, o consumo

também aumenta artificialmente (dada a existência de uma elevada propensão

marginal a consumir), a poupança interna cai, e a poupança externa limita-se a

substituir a interna. De outro lado, em termos mais keynesianos, a apreciação da

moeda nacional, depois de um rápido período de estímulo ao investimento

devido ao barateamento dos equipamentos importados, caem porque

desaparecem as oportunidades de investimentos voltados para exportação e

porque bens importados passam a inundar o mercado interno. O resultado, tanto

de acordo com o primeiro quanto com o segundo raciocínio, é pouco ou nenhum

aumento da taxa de investimento e de poupança total do país; ao invés,

aumentam o consumo e a dívida externa. Só em momentos excepcionais, quando

o país já está crescendo aceleradamente e a propensão marginal a consumir se

torna pequena, uma política de crescimento com poupança externa é benéfica

para o país. Na maioria das vezes, mesmo que se trate de investimento em capital

físico, beneficia principalmente o investidor externo que recebe altos juros ou

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tem acesso sem reciprocidade ao mercado interno do país.

Isto não significa que todo investimento de empresas multinacionais seja

prejudicial ao país. Quando as entradas de capitais que o acompanham não vêm

para financiar déficit em conta corrente e apreciar o câmbio, mas para trazer

tecnologia, não há nada a objetar. Este é o caso da China, que há muitos anos

apresenta superávit em conta corrente, mas admite a entrada de capitais

estrangeiros desde que tragam tecnologia. A China não precisa dos capitais,

porque cresce com despoupança externa; a entrada de capitais não preenche

rombo externo, mas apenas aumenta as reservas internacionais do país.

A rejeição ao financiamento externo também não significa que um sistema

financeiro nacional bem desenvolvido deixe de ser considerado fundamental para

o desenvolvimento. Seu papel é financiar o investimento e, assim, viabilizar o

aumento da poupança. Mas o financiamento é interno, é concedido pelo sistema

financeiro nacional que faz empréstimos na moeda do país às empresas que estão

investindo, e, dessa forma, não aprecia a taxa de câmbio como acontece quando o

empréstimo externo é feito em divisa forte.

Como fica o argumento neoclássico e neoliberal segundo o qual os países em

desenvolvimento precisam de capitais externos para aumentar sua taxa de

investimento? No caso de países de renda média como o Brasil essa “falta” não

existe. O que falta são oportunidades de investimentos lucrativos. Quando a taxa

de câmbio se torna competitiva (no equilíbrio industrial), essas oportunidades

passam a existir, e, havendo crédito (coisa que existe no Brasil graças ao

BNDES, ao mercado de ações, e, crescentemente, graças aos grandes bancos

brasileiros), os empresários inovadores obtêm esse crédito, investem, e, em

consequência, keynesianamente, a taxa de poupança cresce.

Em síntese, uma taxa de câmbio equilibrada ou competitiva é essencial para o

desenvolvimento econômico porque ela coloca ao alcance das empresas

nacionais que utilizam tecnologia no estado da arte mundial toda a demanda

externa mundial. Dada a vantagem de ter uma mão-de-obra barata, os países em

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desenvolvimento que mantiverem sua taxa de câmbio estável e no equilíbrio

industrial, que é o verdadeiro câmbio de equilíbrio do país, crescerão de forma

acelerada realizando o catching up. Mas para isto precisam adotar a política de

crescimento com poupança interna e neutralizar a doença holandesa.

Novo desenvolvimentismo

No quadro da globalização os países competem entre si. Por isso, precisam de

uma estratégia nacional de desenvolvimento. Novo desenvolvimentismo é o

nome dessa estratégia, cujo fundamento teórico é a macroeconomia estruturalista

do desenvolvimento que acabei de resumir. O essencial desta estratégia é

neutralizar as duas tendências estruturais – a tendência dos salários crescerem

menos do que a produtividade e a tendência à sobrevalorização cíclica da taxa de

câmbio. Resumi as políticas do novo desenvolvimentismo no Quadro 1,

comparando-as com as políticas da ortodoxia convencional ou consenso de

Washington. Creio que são auto-explicativas. Para a perspectiva neoliberal basta

que o Estado garanta o bom funcionamento do mercado; para o novo

desenvolvimentista o Estado já não tem o papel de Estado produtor que tinha no

velho desenvolvimentismo, mas continua a ter um papel estratégico em criar

oportunidades de investimentos lucrativos, e em garantir a neutralização da

tendência dos salários a crescerem menos que a produtividade.

Quadro 1: Novo Desenvolvimentismo e Consenso de Washington

Ortodoxia convencional Novo desenvolvimentismo

Estado garante a propriedade e os contratos Papel estratégico para o Estado no desenvolvimento econômico

Responsabilidade fiscal: superávit primário Responsabilidade fiscal: superávit primário e poupança pública positiva

Irresponsabilidade cambial: crescimento com poupança externa

Responsabilidade cambial: poupança interna e doença holandesa neutralizada

Política monetária: objetivo único: controlar inflação

Política monetária: controlar inflação, evitar crises financeiras, e garantir câmbio competitivo

Política salarial e de rendas: nenhuma Política salarial e de rendas: neutralizar tendência a salários crescerem menos que produtividade

Tanto a ortodoxia convencional quanto o novo desenvolvimentismo são

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responsáveis no plano fiscal, mas a primeira se limita a assegurar um superávit

primário que mantenha a relação dívida / PIB constante, enquanto que o novo

desenvolvimentismo quer, além disso, uma poupança pública que permita ao

Estado investir complementarmente ao setor privado.

Em termos cambiais, a ortodoxia convencional é pateticamente populista e

contraditória, na medida em que defende déficits em conta corrente. Se, como o

novo desenvolvimentismo, é contra déficits públicos elevados, porque isto

significa que o Estado gasta mais do que arrecada, por que defende déficits em

conta corrente que significam que o Estado-nação gasta mais que arrecada?

Embora o economista convencional não goste de confessá-lo, ele está advogando

a favor de dois déficits – o déficit em conta corrente e o déficit público. Atende,

assim, ao modelo ou teoria dos déficits gêmeos: quando temos um déficit,

tendemos a ter o outro. Mas inverte a relação usualmente suposta nesse modelo:

não é o déficit público desejado pelo político populista que causa o déficit em

conta corrente, mas é o déficit em conta corrente desejado pelo economista

ortodoxo que causa ou requer o déficit público.

Já o novo desenvolvimentismo defende uma política de crescimento ou poupança

interna e tem propostas claras para neutralizar a doença holandesa. Na verdade,

para um país que tem doença holandesa, déficits em conta corrente e déficits

públicos significam irresponsabilidade cambial e pouca seriedade fiscal. Um país

que tem doença holandesa pode e deve ter superávit em conta corrente. Se o país

consegue neutralizar sua doença holandesa, isto significa que deslocou sua taxa

de câmbio do equilíbrio corrente para o equilíbrio industrial, e, portanto, que

passou a ter superávit em conta corrente. A lógica do modelo é claríssima a

respeito.

Além disso, esse país que neutraliza sua doença holandesa pode ter superávit

fiscal, e deve, pelo menos, praticar déficit público zero. Para entender isto sem

recorrer ao raciocínio inverso dos déficits gêmeos é preciso entender como é que

se neutraliza a doença holandesa. Isto se faz, essencialmente (como faz hoje a

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Noruega em relação a seu petróleo, o Chile em relação ao cobre, e a Argentina

em relação à soja) impondo um imposto ou retenção sobre a exportação desse

bem correspondente à diferença entre o equilíbrio industrial e o equilíbrio

corrente. Ao se estabelecer essa retenção, a oferta do bem em relação à taxa de

câmbio se deslocará para cima, o que causará a depreciação da moeda nacional e

resultará na mudança do equilíbrio corrente do país, que se equalizará ao

equilíbrio industrial. Esta depreciação ocorrerá porque, a partir do imposto, o

produtor da commodity que origina a doença holandesa não estará mais disposto

a oferecer seu produto pela taxa de câmbio anterior ao imposto; condicionará sua

produção a uma depreciação que compense o imposto pago. No exemplo do país

exportador de soja, se o governo impõe uma retenção de #1 moeda nacional por

dólar exportado de soja, os produtores de soja só continuarão a oferecer a soja,

ou seja, a produzi-la, se a taxa de câmbio mudar de #2 para #3 moedas nacionais

por dólar, e é para esse nível que o mercado funcionando livremente levará a taxa

de câmbio. Há, certamente, um processo de transição que precisa ser cuidado

pelo governo, mas, afinal, não é o produtor de soja que paga o imposto; ele fica

exatamente na mesma posição, com a mesma rentabilidade: antes do imposto

recebia #2 moedas por dólar exportado, depois, recebe #3 moedas por dólar

exportado, mas paga #1 moeda de retenção. Quem paga o imposto é todo o povo

do país, porque com a desvalorização os preços dos bens comercializáveis sobem

e os salários reais caem. Mas, em seguida, a economia passa a crescer

aceleradamente e esse prejuízo é em pouco tempo compensado.

O que deve fazer o governo com a receita do imposto? Em princípio deve seguir

o exemplo da Noruega. Ao invés de gastá-lo, o investe em um fundo soberano.

Supondo-se que o orçamento do Estado, desconsiderado o imposto, está

equilibrado, o imposto de exportação deverá constituir superávit público. Se,

mais realisticamente, supusermos que, sem considerar a doença holandesa e o

imposto que a neutraliza, é razoável que o país incorra em um déficit público

moderado (que mantém constante a dívida pública do país em relação ao PIB), a

adição do imposto de exportação à receita do Estado deverá reduzir esse déficit

público para próximo de zero. Se o Estado decidir gastar os recursos do imposto,

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deverá e poderá fazê-lo moderadamente de forma a não ficar longe do déficit

público zero.

Quanto à política monetária, o único objetivo da ortodoxia convencional é

controlar a inflação, enquanto que o novo desenvolvimentismo quer,

adicionalmente, manter a taxa de câmbio competitiva, no nível do equilíbrio

industrial, e evitar crises financeiras que, nos países em desenvolvimento, são

crise de balanço de pagamentos.

Finalmente, já que existe a tendência dos salários crescerem menos que a

produtividade, é necessária uma política para compensá-la. O novo

desenvolvimentismo defende políticas de salário e de renda nessa direção,

enquanto que a ortodoxia convencional está apenas preocupada em “flexibilizar”

o mercado de trabalho, ou seja, baixar os salários.

Em síntese, o novo desenvolvimentismo é mais seguro e responsável do que a

ortodoxia convencional. A ortodoxia convencional propõe déficits em conta

corrente (poupança externa) e, apesar de toda a sua retórica austera que leva o

economista convencional a resolver todos os problemas com a diminuição do

gasto público, está também baseada na manutenção do déficit público, quando o

correto é zerar esse déficit quando o país tem doença holandesa. Ao invés disso,

a ortodoxia convencional propõe taxa de juros real alta “para combater a

inflação”. Como, porém, o grande devedor é o Estado, a ortodoxia convencional

sabe que esses juros impactarão sobre o déficit público, de forma que,

coerentemente, e para manter o grau de endividamento estável (afinal ela não

pode por em risco a dívida pública, que é a galinha dos ovos de ouro para os

rentistas), ela propõe superávit primário inferior ao total de juros pagos pelo

Estado, o que significa déficit público. No Brasil, enquanto o total de juros pagos

pelo Estado tem girado em torno de 7%, o superávit primário ficou em 4%, de

forma que continua a haver um déficit público de 3% do PIB.

Mas falta responder uma pergunta básica: através desta estratégia de crescimento

com poupança interna e neutralização da doença holandesa, como o país

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conseguirá aumentar sua taxa de investimento e de poupança, já que o novo

desenvolvimentismo rejeita a proposta equivocada de tentar adicionar a poupança

externa à interna , porque seu resultado é antes aumento do consumo e da dívida

externa do que do investimento? A resposta está em administrar a taxa de

câmbio, ainda que no quadro de um câmbio flutuante, para que ela não se aprecie

e seja competitiva, permaneça em torno do equilíbrio industrial. Para isto, será

necessário neutralizar a doença holandesa e rejeitar o fetiche da poupança externa

ou, em outras palavras, buscar crescer com base na poupança interna. Graças a

uma taxa de câmbio competitiva as oportunidades de investimento aumentarão

imediatamente para as empresas eficientes. Aumentarão em relação ao mercado

externo porque toda a demanda externa ficará ao alcance dessas empresas, e em

relação ao mercado interno porque diminuirá para elas a competição dos bens

importados. Ao aumentar a taxa de investimento, aumentará a renda, e, como

demonstrou Keynes, aumentará a taxa de poupança. Não se aumenta, portanto, a

taxa de poupança do país recorrendo a uma ilusória poupança externa, mas

garantindo demanda para as empresas e investindo. Para que as empresas

invistam basta, em termos de Schumpeter, que o sistema financeiro nacional

disponibilize crédito para as empresas inovadoras; desta forma estarão inovando,

obtendo lucros, e promovendo o desenvolvimento econômico do país.

Além de desempenhar o papel indutor de oportunidades de investimento, o

Estado deve, de um lado, aumentar a eficiência de seu gasto na área dos serviços

sociais e culturais, e, assim, obter recurso para, sem aumentar a carga tributária,

poder aumentar seus próprios investimentos. Sem, naturalmente, concorrer com

os investimentos privados, mas complementando-os e incentivando-os. Se, por

exemplo, o objetivo no médio prazo no Brasil for aumentar a taxa de

investimento de 18 para 25% do PIB, o Estado deverá aumentar seu investimento

dos atuais 2% para cerca de 5% (cerca de 20% do total), ficando o setor privado

responsável por investimentos equivalentes a 20% do PIB. Enquanto para o

velho desenvolvimentismo o Estado devia ser também produtor, porque o setor

privado não tinha capacidade de investir, hoje, no quadro do novo

desenvolvimentismo, em um país que já realizou sua revolução capitalista, o

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papel do Estado na área econômica deve ser apenas estratégico ou indutor.

Em síntese, o novo desenvolvimentismo defende superávit em conta corrente e

déficit público em torno de zero, porque a neutralização da doença holandesa

leva a economia do país nessa direção, e rejeita a proposta dos países ricos de

que os países em desenvolvimento cresçam com poupança externa, porque essa

tese não se sustenta nem lógica nem empiricamente (já há muitas pesquisas

comprovando esse fato). Através da neutralização da doença holandesa e da

política de crescimento com poupança interna o país aumenta sua taxa de

investimento e de poupança e cresce aceleradamente com estabilidade de preços

e sem ficar sujeito a crises cíclicas de balanço de pagamentos. É, portanto, uma

estratégia muito mais segura e responsável do que a ortodoxia convencional que

defende déficit em conta corrente e aceita déficit público para financiar juros

altos pagos pelo Estado.

É possível mudar a política macroeconômica?

Para tornar o novo desenvolvimentismo a política econômica do país é

fundamental convencer sua sociedade civil – ou seja, a sociedade politicamente

organizada formada por empresários, classes médias intelectuais, organizações

corporativas e organizações de advocacia política. A rigor seria preciso

convencer o povo – a massa dos eleitores – mas nas democracias imperfeitas de

que dispõem os países esse povo tem pouco poder, e o fundamental para os

políticos que tomam as decisões no governo é a legitimidade da política

econômica assegurada pelo apoio da sociedade civil.

Não é fácil convencer a sociedade civil dos países de renda média sobre a

superioridade da macroeconomia do desenvolvimento em relação à

macroeconomia convencional e do novo desenvolvimentismo sobre a ortodoxia

convencional. Ideias novas demoram a se estabelecer. Nos anos 1990 a

hegemonia ideológica do império foi quase absoluta, de forma que não havia

espaço para alternativas teóricas ou práticas. Entretanto, o quadro mudou já no

início dos anos 2000, quando começou a ficar evidente o fracasso do consenso de

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Washington em promover o desenvolvimento econômico e garantir a estabilidade

financeira. Mudou definitivamente quando a crise financeira global mostrou que

mesmo para os países ricos a receita de desregulação dos mercados era um

grande equívoco. O mercado é uma maravilhosa instituição de coordenação de

economias complexas, mas desde que devida e cuidadosamente regulado.

Hoje a ortodoxia convencional já não é mais hegemônica, mas a macroeconomia

estruturalista do desenvolvimento e o novo desenvolvimentismo ainda não

lograram substituí-la. Principalmente porque a macroeconomia estruturalista do

desenvolvimento é constituída por um conjunto de modelos e o novo

desenvolvimentismo, por um conjunto de propostas de política, que só

recentemente se consolidaram do ponto de vista teórico. Mas já se avançou muito

nessa direção, como ficou demonstrado quando 25 economistas e cientistas

políticos de diversos países se reuniram em um workshop em São Paulo em maio

de 2010, e propuseram e aprovaram as “Dez Teses sobre o Novo

Desenvolvimentismo” (“Ten Theses on New Developmentalism”). A esses

economistas se juntaram 55 outros importantes economistas e cientistas políticos

que foram convidados para serem também “subscritores originais” do

documento. Estas “Ten Theses” que estão agora abertas à subscrição de outros

economistas (www.tenthesesonnewdevelopmentalism.org) podem ser vistas

como uma alternativa concreta à macroeconomia neoclássica e ao consenso de

Washington.

No processo de transição em curso do novo desenvolvimentismo para a condição

hegemônica seus propositores enfrentam ainda uma questão colocada por seus

interlocutores na sociedade civil. Eles concordam que suas teorias e suas

propostas fazem sentido, mas que não é possível pô-las em prática, não é possível

administrar a taxa de câmbio. Esta “impossibilidade” é, assim, o último bastião

da ortodoxia convencional. Mas um bastião frágil. Seus defensores neoliberais

dizem que na globalização é impossível estabelecer controles à entrada de

capitais, mas a experiência histórica mostra que isto não é verdade. O novo

desenvolvimentismo defende controles à entrada de capitais, não à sua saída,

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porque como crises de balanço de pagamentos deixam de ser a “condição

natural” dos países de renda média, não haverá razão para fugas de capitais. Por

outro lado, embora haja problemas políticos internos em se estabelecer um

imposto sobre as exportações de bens que dão origem à doença holandesa, está

claro que isto é possível desde que fique claro que os exportadores não serão

prejudicados, porque a depreciação cambial compensará o valor do imposto

pago. Na verdade, os produtores de bens primários serão beneficiados desde que

o governo use parte dos recursos para estabelecer um fundo de estabilização que

os socorra nos casos de queda violenta dos preços internacionais da commodity.

Finalmente, há duas dificuldades causadas temporariamente pelo deslocamento

da taxa de câmbio do equilíbrio corrente para o industrial: haverá um choque de

custos que aumentará apenas uma vez a inflação, e diminuirá um pouco os

salários reais. A inflação, porém, logo voltará a cair desde que não haja qualquer

indexação de preços. E os salários logo voltarão a subir, agora de forma

sustentada, graças ao aumento da taxa de investimento e da aceleração do

crescimento.

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