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    PARTE 2 - Desconstruo

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    A escritura derridiana

    5.1

    Virada e deslocamento

    Derrida insere-se no movimento de virada lingstica da filosofiacontempornea, porm, a ultrapassa rumo a uma problematizao ainda maisradical do fenmeno da linguagem. Com efeito, acredito que Derrida realiza algodiferente do que uma virada da filosofia da conscincia para a filosofia dalinguagem. O movimento da desconstruo atua como inverso e deslocamento eaborda a questo da linguagem de uma tal forma que acaba, inevitavelmente, poralterar seu contedo. A linguagem um problema para Derrida, disso no restamdvidas. No entanto, a linguagem, tal como entendida pela tradio filosficaocidental, seja como comunicao, relao, expresso, significao, constituiodo sentido ou pensamento, essa linguagem em direo qual deu-se a viradarevela-se, segundo Derrida, apenas mais um efeito de um movimento ainda maispotente: a escritura.

    Isto no quer dizer que a palavra escritura deixe de significar osignificante do significante, mas sim que o significante do significante deixade ser entendido como uma reduplicao do significado, ou seja, como umsuplemento secundrio e decado. Ao contrrio, escreve Derrida, o significante dosignificante passa a descrever o movimento da linguagem. Ou seja, desde sempre,desde a origem, o significado j funciona como significante. por isso que aescritura ultrapassa a extenso da linguagem, ou seja, ela compreende alinguagem, em todos os sentidos dessa palavra. Com efeito, para a desconstruo,a linguagem, enquanto escritura, no cabe mais no conceito de linguagem. Nessesentido, Derrida fala de um transbordamento da escritura que sobrevm nomomento em que a extenso do conceito de linguagem apaga todos os seuslimites439.

    439 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 8.

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    Desse modo, a desconstruo denuncia que aquilo que mais se discute nosculo XX, alinguagem, no d mais conta de seu prprio sentido, como sealgo transbordasse no prprio conceito de linguagem. O excesso de discursossobre a linguagem revela umsintoma da incapacidade da lngua (fontica) de dar

    conta destetransbordamento. Assim, a inflao e conseqente desvalorizao dosigno linguagem, o seu uso e abuso de acordo com a ltima tendncia filosfica,indica um momento de hiper inflao do prprio signo,enquanto tal. a partirdessa constatao que Derrida prope a desconstruo do signo signo, ou ainda,do conceito de conceito, em direo noo de escritura440.

    Nesse sentido, como buscarei argumentar na sequncia, a desconstruono prope exatamente uma virada lingstica, mas um deslocamento, um saltorumo outro ponto de vista sobre a questo da significao e da linguagem. Ao

    usar o termocriture, Derrida no pretende inverter a posio hierrquica entrefala/escrita, afirmando que a linguagem escrita supera a fala ou o discurso. Essaatitude, alm de ingnua, manteria a desconstruo refm das dicotomiasmetafsicas e suas hierarquias implcitas, ao no problematizar a oposiofala/escrita em si mesma. De modo bem distinto das acusaes quefrequentemente recebe, Derrida no se cansa de lembrar que uma oposioconceitual nunca simplesmente um face-a-face de dois termos, mas umahierarquia e a ordem de uma subordinao441. Desse modo, o privilgio da fala,

    da voz e do som lingstico, que sempre dominou a filosofia, revela uma ordem desubordinao e relaes de fora que comandam a metafsica, para alm daoposio fala/escrita e sua matriz inteligvel/sensvel.

    Assim, o momento da inverso no basta para a desconstruo. Ele ummovimento necessrio, pois revela o rebaixamento de um dos termos, mas no suficiente para escapar da lgica dicotmica. A escritura no pode ser entendidacomo algo que vem substituir a fala na sua funo de guardi do sentido. Ela no um novo nome para a origem ou um novo fundamento a partir do qual poder-se-ia regular e controlar a circulao dos signos. A escritura est presente desde oincio do jogo, ou seja, o significante do significante afeta o significado desde

    440 Por um movimento lento, cuja Necessidade mal se deixa perceber, tudo aquilo que h pelomenos uns 20 sculos manifestava tendncia e conseguia finalmente reunir-se sob o nome delinguagem comea a deixar-se deportar ou pelo menos resumir sob o nome de escritura (...) oconceito de escritura comeava a ultrapassar a extenso da linguagem. Em todos os sentidos, aescritura compreenderia a linguagem. Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 8.441 Assinatura Evento Contexto, op. cit. pg. 372.

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    seu surgimento, visto que no h significado que escape, mais cedo ou maistarde, ao jogo das remessas significantes que constitui a linguagem442. Mas issono significa que a escritura seja originria ou fundamental. No mximo, elaseria um fundamento sem fundamento, uma origem desde sempre diferida.

    essa diferena constitutiva que pe em marcha o movimento da linguagem queDerrida quer pensar atravs da noo dediffrance e de rastro.

    Sempre lanando as metforas contra as metforas e, portanto, aceitandoo jogo da linguagem, Derrida afirma que a arquiescritura o movimento dadiffrance443 e que no pode ser investigada por nenhuma cincia dalinguagem, ou seja, por nenhuma Lingstica ou teoria geral. A linguagem nuncaser dissecada ou compreendida objetivamente, como parece ser o projeto dafilosofia dita analtica, porque ela ultrapassa o conceito mesmo de linguagem, tal

    como entendida pela tradio. A noo de escritura pretende revelar essetransbordamento, esse excesso inominvel.

    De certo modo, pode-se associar a noo de escritura com a de texto, nosentido amplo da desconstruo. Ao chamar a ateno para o domnio daquesto da linguagem na cena filosfica e tentar ultrapass-la, rumo escritura,Derrida acusado de reduzir tudo ao texto. A expresso tudo texto frequentemente atribuda para resumir violentamente a desconstruo. No entanto,o que Derrida chama de texto quer apontar para todas as estruturas ditas reais,

    econmicas, histricas, scio-institucionais, em suma, todos os referenciaispossveis. nesse sentido que no h extra-texto, visto que todo referencialpossvel , desde sempre, diferido, cortado pela diferena. Escreve Derrida: todoreferencial, toda realidade tem a estrutura de um trao diferencial e s nospodemos reportar a esse real numa experincia interpretativa. Esta s se d ou sassume sentido num movimento de retorno no diferencial.Thats all444.

    Assim, aquilo que chamamos de realidade ou de mundo somente podeser acessado atravs de uma experincia interpretativa, atravs de uma leitura. Etoda leitura est j sobredeterminada por convenes, hierarquias e hegemoniasimplcitas e profundas. Por exemplo, a gramtica e o lxico da lngua em questo,os usos retricos dessa lngua na sociedade, os cdigos literrios da poca, alm

    442 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 8.443 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 73.444 Derrida, Limited Inc, op. cit. pg. 203.

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    de todo o conjunto de certezas que garantem a mnima inteligibilidade do texto.Qualquer investigao que se pretenda rigorosa deve comear, portanto, pelaanlise de tais pressupostos, dessa camada mais profunda que no se contm naesfera semntica, nem representativa, simblica ou ideolgica445. isso que a

    desconstruo quer revelar e investigar: o tecido de signos que constitui aqueletexto em particular, o jogo de linguagem que comanda seu sentido, os grafemas egrafemticos que possibilitam sua existncia.

    Para a desconstruo, antes de qualquer sentido ou coisa prpria,devemos pensar ograma ou o grafema que permite o processo de significao.Somente atravs desse elemento, seja ele entendido como meio ou tomoirredutvel, poderemos aceder ao contedo das atividades pelas quais definimos ecompreendemos a linguagem446. Todo pensamento que se pretenda ps ou no-

    metafsico deve conservar at o limite, isto , at se denunciar tambm comopertencendo metafsica, a noo de escritura, de rastro, de grama ou grafema.

    Mas qual o estatuto desse elemento sem simplicidade, daquilo que,como diz Derrida, deveramos proibir-nos a ns mesmos de definir no interior dosistema de oposies da metafsica447? Qual o nome daquilo que no origem,nem substncia, nem experincia compartilhada? orastro, responde Derrida. Orastro da sntese, da origem, da presena. Arestncia como aquilo que ficou dealgo que nunca esteve presente. Se o signo no , visto que o sentido j encontra-

    se diferido desde sua vspera, ento, no podemos mais propriamente falar emsigno, muito menos na sua dupla face de significado e significante, como definidopela Lingstica saussuriana. por isso que a desconstruo lanar mo dosindecidveis, dos quase-conceitos que apontam para a sua prpriaimpossibilidade, comodiffrance, rastro, escritura, dentre outros. Os indecidveisderridianos resistem lgica oposicional que domina a linguagem da metafsica,mas no pretendem sair da linguagem. Nesse sentido, so conceitos, mas comodenunciam a violncia da conceitualizao e o apagamento da diferena que elaimplica, seria mais apropriado cham-los de quase-conceitos.

    445 Derrida, Limited Inc, op. cit. pg. 203446 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 11.447 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 11.

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    Assim, a escritura pode ser compreendida como uma energia aforstica 448, uma metaforicidade geral449 que guarda a diferena e, portanto, apossibilidade da significao. O que Derrida tenta nos mostrar que no h signolingstico antes da escritura450, isto , no h sentido possvel fora da linguagem,

    entendida como escritura. Mas vamos com calma. Voltemos questo inicial dorebaixamento da linguagem escrita. Como observa Derrida, a escritura, reduzida amera escrita, secundria e suplementar, sempre foi entendida pela metafsica esua linguagem fontica como exterior ao sentido, como representante de umaverdade ou de um sentido j constitudos pelologos no seu elemento prprio: avoz.

    5.2

    A oposio entre fala e escrita

    A oposio entre fala e escrita , portanto, um dos motivos que conduz adesconstruo da concepo metafsica da linguagem, tal como avanada porDerrida. Como busca mostrar em seus textos, o privilgio dologos em suaproximidade absoluta com a voz comandar a metafsica, desde Plato atHeidegger, passando por pensamentos resistentes, como o de Nietzsche451,Lvinas e o prprio Heidegger. No entanto, mesmo estes pensadores da diferena,

    que muito contriburam para denunciar os limites da metafsica, no conseguiramabalar o logo-fono-centrismo estrutural que ainda domina a filosofia ocidental.

    Na Farmcia de Plato, Derrida mostra que a questo da linguagem e,especificamente, da linguagem escrita, ou seja, da grafia dologos (logografia), jse coloca como problema desde os primeiros dilogos socrticos. J noFedro am escritura (escrita no sentido corrente) oposta escritura da verdade na alma.A princpio, Scrates se pergunta se escrever decente ou indecente. Em seguida,a questo poltica: gravar ologos conveniente ou inconveniente? Ento,Scrates compara o loggrafo (aquele que escreve discursos) ao sofista. Uma vez

    448 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 22.449 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 18.450 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 17.451 Nietzsche, longe de permanecer simplesmente (junto com Hegel e como desejaria Heidegger)na metafsica, teria contribudo poderosamente para libertar o significante de sua dependncia oude sua derivao com referncia ao logos e ao conceito conexo de verdade ou de significadoprimeiro, em qualquer sentido que seja entendido... impossvel desconhecer a virulncia dopensamento nietzschiano. Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 23.

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    que o autor do discurso no est l, pessoalmente, para responder pela sua fala, eleinstala-se, portanto, na posio de um sofista. Escrevendo o que no diz, o escritorde discursos o homem da no-presena e da no-verdade. A partir da e por todaa tradio subsequente, assinala Derrida, a escritura j , portanto, encenao,

    artifcio, mscara, simulacro452

    .Scrates, aquele que no escreve, lembra Nietzsche e Derrida o cita

    logo na abertura daGramatologia. Mas por que o maior dos filsofos nuncaescreveu uma linha sequer ? Segundo Derrida, Scrates no escreve porque agrafia mata ologos. A escritura acusada de artificialidade, repetio, acaso,morte da memria. J ologos presente na fala como um ser vivo453 e, por isso,o lugar privilegiado da dialtica, do saber e da Verdade. A escritura apenas umsuplemento, um perigoso suplemento454 distanciado da origem, um substituto e,

    por vezes, um impostor. De acordo com o texto socrtico-platnico partindo dopressuposto de que Platoescreveu exatamente aquilo que seu mestrequis dizer Scrates dirige-se a Fedro:

    O uso da escrita tem um inconveniente que se assemelha pintura. Falam dascoisas como se as conhecessem, mas quando algum quer informar-se sobrequalquer ponto do assunto exposto, eles se limitam a repetir sempre a mesmacoisa. Uma vez escrito, um discursosai a vagar por toda a parte, no s entre osconhecedores, mas tambm entre os que no o entendem e nunca se pode dizerpara quem serve e para quem no serve. Quando desprezado ou injustamente

    censurado, necessita do auxlio do pai, pois no capaz de defender-se por si455

    (grifo meu)

    452 Derrida, A Farmcia de Plato, op. cit. pg. 12.453 Derrida, idem, pg.24.454 Na Gramatologia, na seo denominada Este perigoso suplemento, Derrida analisa a noode escritura em Rousseau que, com algumas diferenas, repete o gesto platnico de rebaixamentoda escrita: O ato de escrever seria essencialmente o maior sacrifcio visando maiorreapropriao simblica da presena(pg.173). Rousseau considerado por Derrida especialrepresentante da tradio metafsica, visto que, ao mesmo tempo em que permanece solidrio viso instrumental da linguagem, parece j perceber a ligao estrutural entre linguagem epensamento. Nesse sentido, noEmlio, discorrendo sobre a dificuldade do ensino da lngua scrianas, Rousseau escreve: Nossa falta de ateno para o verdadeiro sentido que as palavras tmpara as crianas, parece-me ser a causa de seus primeiros erros: e tais erros, mesmo depois de secorrigirem, influem em seuesprito por toda a vida. E, na sequncia, alerta para o perigo de seensinar duas lnguas para uma criana em fase de alfabetizao, uma vez que, ao mudar aspalavras, mudam-se tambm as idias. Diz Rousseau: Condensai quanto possvel o vocabulrioda criana. grande inconveniente tenha ela mais palavras que idias, saiba dizer mais coisas doque pode pensar (pg. 57). E, mais adiante, acrescenta: Cada coisa pode ter, para ela, mil sinaisdiferentes; mas cadaidia s pode ter uma forma; ela no pode aprender, portanto, seno umalngua (pg. 100). Rousseau,Emlio ou da Educao,. Traduo de Srgio Milliet, Difusoeuropia do livro, So Paulo, 1968.455 Plato,Fedro, A Inveno da escrita apud Derrida, A Farmcia de Plato, op. cit. pg. 181.

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    Portanto, segundo Scrates, preciso muito cuidado ao escrever. Uma vezque o autor no poder garantir sua presena ao lado do texto, preciso se cercarde todas as precaues possveis para que o verdadeiro sentido no se perca emfalsas interpretaes ou ms tradues. Mas como garantir a fidelidade ao

    sentido do texto? Ao legtimo querer-dizer do texto, se o seu pai no estpresente para responder por ele? Todo texto est fadado a essa deriva? E Platonos consola: existe tambm o bom discurso, aquele conscienciosamente escritocom a cincia da alma, o discurso que capaz de defender a si mesmo, e sabediante de quem convm falar e diante de quem prefervel ficar calado. Esteseria, portanto, o discurso vivo e animado do homem sbio, do qual tododiscurso escrito poderia ser chamado de simulacro456. Percebemos, assim, quenem toda escrita igual; a escrita rigorosa e de acordo com a cincia da alma

    pode garantir e preservar o sentido. Por mais que seu autor no esteja presente, otexto ainda manteria uma relao de proximidade com ologos vivo.

    No entanto, nada melhor do que a fala para garantir a presena do sentido.Isto porque, diferena da escrita, a fala mais prxima dologos, umlogos que vivo porque tem um pai presente, isto , diz Derrida: Um pai que se mantm emp junto a ele, atrs dele, nele, sustentando-o com sua retido, assistindo-opessoalmente e em seu nome prprio457. por isso que, com a fala, o problemada deriva (e da indeterminao do sentido) se apaga, visto que o autor est

    presente para responder pelo seu querer-dizer, pelo sentido que desejaexpressar.

    nesse sentido que Aristteles no v problema em equiparar os estadosda alma com as coisas, visto que, explica Derrida:

    Exprimindo naturalmente as coisas, as afeces da alma constituem umaespcie de linguagem universal que, portanto, pode apagar-se por si prpria. aetapa da transparncia. Aristteles pode omiti-la s vezes sem correr riscos. Emtodos os casos, a voz o que est mais prximo do significado458.

    Para Aristteles, os sons emitidos pela voz so os smbolos dos estadosda alma, e as palavras escritas, os smbolos das palavras emitidas pela voz.

    456 Derrida, A Farmcia de Plato, op. cit. pg. 181.457 Derrida, A Farmcia de Plato, op. cit. pg. 181.458 Nessa passagem Derrida apia-se na leitura de Pierre Aubenque, Le problme de ltre chez Aristote. InGramatologia, pg. 14.

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    Quase 20 sculos depois, Rousseau afirma: A escritura no seno arepresentao da fala; esquisito preocupar-se mais com a determinao daimagem que do objeto459. E, ainda mais tarde, Saussure, o fundador daLingstica moderna, repete o gesto aristotlico ao afirmar: Lngua e escritura

    so dois sistemas distintos de signos; a nica razo de ser do segundo representar o primeiro460.

    Desse modo, o problema da representao permanece adstrito escrita, oumelhor, a uma certa escrita no comprometida com a verdade, visto que existeuma boa e uma m escritura: boa e natural, a inscrio divina no corao e naalma; perversa e artificiosa, a tcnica, exilada na exterioridade do corpo461.Assim, Scrates tambm falar da boa retrica, daquela que salva bons discursosdo esquecimento (como Plato gostaria de estar fazendo ao escrever os discursos

    de seu saudoso mestre):

    Quando algum semeia palavras de acordo com a arte dialtica, depois de terencontrado uma alma digna de receb-las; quando esse algum planta discursosque so frutos da razo, que so capazes de se defender por si mesmos e a seucultivador, discursos que no so estreis mas que contm dentro de si sementesque produzem outras sementes em outras almas, permitindo assim que elas setornem imortais. Aos que a levam consigo, tais sementes proporcionam a maiorfelicidade que dado ao homem possuir462.

    exatamente essa superioridade da fala sobre a escrita que serproblematizada por Derrida. Se a fala tem privilgio sobre a escrita, porque elaest mais prxima dologos, da presena, enfim, do sentido original. A escrita, porsua vez, apresenta uma duplicidade paradoxal. Por um lado, existe a escritasensvel, finita, artificiosa, um procedimento humano que traz consigo o risco dacorrupo do sentido, de desvio do verdadeiro querer-dizer; por outro lado, existeuma escrita inteligvel e intemporal, cuja continuidade Derrida ressalta, apesar dasdiversas metforas utilizadas para design-la. Esta seria a escritura daverdade naalma de Plato, a escrituradivina da Idade Mdia, a escrituranatural damodernidade (A natureza est escrita em linguagem matemtica Galileu).

    459 Rousseau, Fragmento indito de um ensaio sobre a lngua, apud Derrida,Gramatologia, op. cit.pg. 33.460 Derrida,Gramatologia, pg. 37 e 45461 Derrida,Gramatologia, pg. 21.462 Plato,Fedro, pg. 182. Cf. Trad. Jorge Paleikat, 4. ed. Globo, 1960.

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    Assim, no importa a metfora usada para designar o prprio da escritura, elasempre manter o privilgio dologos presente. Escreve Derrida:

    Como acontecia com a escritura da verdade na alma, em Plato, ainda na IdadeMdia um escritura entendida em sentido metafrico, isto , uma escrituranatural, eterna e universal, o sistema da verdade significada, que reconhecida nasua dignidade. Como noFedro, uma certa escritura decada continua a ser-lheoposta. Seria preciso escrever uma histria desta metfora que sempre ope aescritura divina ou natural inscrio humana e laboriosa, finita e artificiosa463.

    No entanto, dentre todas as metforas, que mereceriam estudodiferenciado, o corte mais decisivo, segundo Derrida, ocorre no momento dosgrandes racionalismos do sculo XVII, justamente na determinao da presenaabsoluta como presena a si, isto , como subjetividade. A partir da, a

    condenao da escrita decada tomar a forma da no presena a si. EmGramatologia, Derrida analisa a retomada do gesto platnico atravs do texto deRousseau, onde a boa escrita aparece sob a forma da presena a si no sentimento,no cogito sensvel que carrega em si a inscrio da lei divina464.

    Derrida nos mostra que, apesar da novidade do texto rousseauniano, ocarter secundrio e decado da escrita permanece intacto. Por exemplo, no textoEnsaio sobre a origem das lnguas, Rousseau definir a escrita sensvel comoletra morta, como portadora da morte, como algo que asfixia a vida. Por

    outro lado, eleva uma outra escrita, definida metaforicamente como natural,divina e viva. Esta seria equivalente voz da conscincia, lei divina inscritano corao dos homens. Escreve Rousseau:

    A Bblia o mais sublime de todos os livros...mas, enfim, um livro...no emalgumas folhas esparsas que se deve procurar a lei de Deus, mas sim no coraodo homem, onde a sua mo dignou-se a escrev-la. E adiante: Quanto mais euentro dentro de mim e me consulto, mais eu leio estas palavras escritas em minhaalma: s justo e sers feliz...465.

    Assim, a escritura natural encontra-se imediatamente unida voz que seouve ao se entrar em si, na presena plena do sentimento interior. Nesse sentido,sua natureza no gramatolgica, mas pneumatolgica466. Ela provm do sopro,

    463 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 19.464 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 20.465 Rousseau,Carta a Vernes, apud Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 19.466 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 21.

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    do corao, da phon. E mais: ela prescritiva como uma lei natural, umaarquifala que apenas pode ser ouvida na intimidade da presena a si. As oposiescontinuam, portanto, atuantes: escritura da alma e escritura do corpo, de dentro ede fora, inteligvel e sensvel, enfim, boa e m.

    Com efeito, impressionante as semelhanas entre Rousseau e Saussure, oque permite a Derrida retraar o fio que reconduz a lingstica moderna,especialmente a saussuriana, a Rousseau. Segundo Derrida, Rousseau e Saussureconcedem um privilgio tico e metafsico voz. Ambos estabelecem ainferioridade e a exterioridade da escrita em relao ao sistema interno dalngua (Saussure) e este gesto exprime-se em frmulas cuja semelhana literal por vezes surpreendente467. Vejamos um dos exemplos destacados por Derrida:

    Saussure: Quando se diz que preciso pronunciar uma letra deste ou

    daquele modo, toma-se a imagem pelo modelo...Para explicar esta bizarrice,acrescenta-se que, neste caso, trata-se de uma pronncia excepcional468.

    Rousseau: As lnguas so feitas para serem faladas, a escrita s servecomo suplemento da fala..., a escrita no seno a representao da fala469.

    Desse modo, escreve Derrida, a essncia formal do significado a presena, e o privilgio de sua proximidade aologos como phon o privilgioda presena470. E, consequentemente, a resposta pergunta o que o signo, ouseja, qual a sua essncia, apenas pode ser determinada a partir da presena. Mas

    a forma mesma da questo o que ..., pergunta inauguradora da filosofia, quedeve ser pensada. E, desse modo, talvez o signo desaparea no rastro de umapresena que nunca esteve presente.

    No entanto, lingstica deve ser reconhecido o mrito de ter levantado aquesto, por mais que suas respostas tenham restado insatisfatrias. Nesse sentido,a desconstruo atravessa as questes colocadas pela semiologia de Saussure epela semitica de Peirce, como desenvolvo na sequncia.

    467 Derrida, O crculo lingstico de Genebra in Mragens da Filosofia, op. cit. pg. 190.468 Saussure,Cours de linguistique gnrale, p. 45 apud Derrida, O crculo lingstico deGenebra in Mragens da Filosofia, op. cit. pg. 190.469 Rousseau, Fragmento sobre aPronncia, apud Derrida, O crculo lingstico de Genebra in Margens da Filosofia, op. cit. pg. 190.470 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 22.

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    5.3

    Gramatologia e Lingstica

    Retomando nosso argumento, vemos que, com a noo decriture,

    Derrida no apenas inverte a hierarquia entre fala e escrita, mas sobretudo,generaliza os traos atribudos escrita para a linguagem como um todo. Comesse gesto, a desconstruo quer revelar o carter de suplemento da linguagememgeral, a compreendida a fala e a escrita/grafia, seja ela considerada boa enatural, seja acusada de m e artificial. Desse modo, Derrida nos mostra queo sentido prprio da linguagem, enquanto escritura, a metaforicidademesma471. No h nenhum sentido originrio que o texto deveria transcrever oudescobrir. Com efeito, s h rastros.

    Assim, atravs da noo decriture, Derrida chama a ateno paranatureza muito mais complexa da linguagem em geral, que no pode ser reduzidaa uma forma de comunicao ou a um elemento exterior ao sentido. Naclausura dessa experincia, escreve Derrida, a palavra vivida como a unidadeelementar e indecomponvel do significado e da voz, do conceito e de umasubstncia de expresso transparente472. Se a escrita sempre foi consideradacomo derivada, inesperada, particular, exterior, porque a articulao do som e dosentido na fonia sempre representou a unidade imediata e privilegiada que

    fundamenta a significao. Em relao a essa unidade, a escritura ser sempresigno do signo, diziam Aristteles, Rousseau e Hegel473.

    E mesmo a Lingstica moderna, que surge na cena filosfica como acincia da linguagem 474, ou seja, como um estudo sobre a linguagem que sepretende no metafsico, permanece inteiramente encerrada na conceitualidadeclssica. Segundo Derrida, a maioria das investigaes semiolgicas oulingsticas remetem genealogicamente para Saussure como seu instituidorcomum475.

    471 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 18472 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 25.473 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 36.474 Em Lingstica e Gramatologia, Derrida critica a pretenso da lingstica de realizar umtratamento cientfico da linguagem sem questionar, contudo, a noo reduzida de linguagemfontica que comanda a histria das idias. Derrida, Gramatologia, op. cit. pg. 33.475 Derrida, A diferena in Margens da Filosofia, op. cit. pg. 41. NaGramatologia, Derridaescreve: Visto que a orientao deliberada e sistematicamente fonolgica da lingstica(Troubetzki, Jakobson, Martinet) realiza uma inteno que foi de incio a de Saussure, dirigir-

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    Com efeito, a distino inaugural da Lingstica a distino saussurianaentre significado e significante, as duas faces do signo. Por mais que Saussureafirme se tratar de duas faces da mesma moeda, a oposio continua atuante, vistoque a face do significado nos remete ao sentido ideal, inteligvel, enquanto que a

    face significante o smbolo sensvel, a grafia ou a voz reproduzida. Ademais, aprpria idia de signo no se sustenta sem conservar, ao mesmo tempo, maisprofunda e implicitamente, a referncia a um significado que possa ocorrer, nasua inteligibilidade, antes de sua queda, antes de toda expulso para aexterioridade do este mundo sensvel476.

    Assim, a distino saussuriana entre significado e significante, oposio deorigem estica e j presente na filosofia medieval (signans e signatum) pertence,segunda Derrida, poca dologos, portanto, do rebaixamento da escritura,

    pensada como mediao da mediao e queda na exterioridade do sentido. DizDerrida:

    A diferena entre significado e significante pertence de maneira profunda eimplcita totalidade da grande poca abrangida pela histria da metafsica (...)No se pode manter a oposio estica sem com isto trazer a si tambm todas assuas razes metafsco-teolgicas 477.

    Com efeito, como destaca Roman Jakobson478, desde a Antigidade, aconexo entre o som e o significado constitui-se como problema. Nesse sentido, aretomada feita por Saussure do signo (especialmente do signo verbal) comounidade indissolvel constituda por duas faces o significado e o significante deve o seu sucesso no sua originalidade, mas ao esquecimento a que ficousubmetida uma teoria que, na verdade, data de mil e duzentos anos atrs. Osesticos j consideravam o signo (smeion) como uma entidade constituda pelarelao entre o significante (smainon) e o significado (smainomenon). Oprimeiro era definido como sensvel (aisthton) e o segundo como inteligvel

    (noton). Em seguida, Santo Agostinho faz uma adaptao das pesquisas esticase recorre a termos decalcados do grego, com osignum como sendo constitudo

    nos-emos, no essencial e pelo menos provisoriamente, a esta ltima. O que dela diremos valera fortiori para as formas mais acusadas do fonologismo? O problema ser pelo menos colocado.Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 36.476 Derrida,Gramatologia, pg. 16.477 Derrida,Gramatologia, pg. 15.478 Jakobson, Roman. procura da essncia da linguagem in Lingstica e Comunicao,Cultrix, 2005.

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    pelo signans e pelo signatum. Esta doutrina tambm encontra-se na base dafilosofia medieval da linguagem e, segundo Jakobson, foi perfeitamenteassimilada pelo pensamento cientfico da Idade Mdia.

    No entanto, a noo de signo permanece no questionada. Para a

    desconstruo, o signo no pode mais ser utilizado impunemente, como se tratassede mera exterioridade, elemento secundrio e derivado do sentido original. Adistino significado/significante que define o conceito de signo deve serdeslocado, adianta Derrida j no incio daGramatologia479. Como j assinalamos,uma vez que a noo de significante do significante passa a descrever o prpriomovimento da linguagem, no h significado que subsista fora do jogo designificantes, independente ao movimento dadiffrance. O significado funciona,desde sempre, como significante. Logo, a linguagem enquanto escritura, um

    jogo de significantes. Escreve Derrida;

    a secundariedade que se acreditava poder reservar escrita, afeta todosignificado em geral, afeta-o desde sempre, isto , desde oincio do jogo (...) Oadvento da escritura o advento do jogo (...) Isso equivale, com todo rigor, adestruir o conceito de signo e toda a sua lgica480.

    Assim, alm da manuteno da oposio clssica entre o sensvel e ointeligvel, o prprio signo signo permanece no problematizado pelasemiologia clssica. O signo, diz-se correntemente, coloca-seno lugar da coisamesma, da coisa presente, seja a coisa entendida como sentido ou comoreferente. Assim, o signo representa o ente presente na sua ausncia, quando eleno pode se apresentarenquanto tal. Desse modo, o signo seria a presenadiferida. E exatamente dessa diferena originria que constitui o signo comosigno que a lingstica parece no conseguir extrair as devidas consequncias.Pois, como aponta Derrida: O signo, diferindo a presena, s pensvel a partirda presena que ele difere eem vista da presena diferida de que intentamos nos

    reapropriar481

    .No entanto, apesar da lingstica definir o signo a partir de uma presena

    no presente, a substituio da coisa pelo signo entendida como secundria eprovisria. Escreve Derrida: Secundria em relao a uma presena original e

    479 Derrida,Gramatologia, pg. 8.480 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 8.481 Derrida, A diferena in Margens da Filosofia, op. cit. pg. 40.

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    perdida de que o signo derivaria; provisria perante essa presena original eausente em vista da qual o signo encontrar-se-ia num movimento de mediao482.Desse modo, tal como determinado por Saussure, o princpio da semiologia geral,particularmente da lingstica (Saussure entende a lingstica como uma parte da

    semiologia483

    ), consiste no carter diferencial do signo e na sua arbitrariedade.Tais predicados so inseparveis, visto que, como diz Saussure: Arbitrrio ediferencial so qualidades correlativas484.

    Segundo Jakobson, a questo da arbitrariedade do signo aparece nafilosofia ocidental pela primeira vez noCrtilo de Plato. A questo a colocadadiscute se a linguagem liga a forma ao contedo por natureza ( physei), comodefendeCrtilo, ou por conveno (thesei) conforme os argumentos contrrios

    levantados por Hermgenes. Em outros termos, trata-se de saber como ocorre oprocesso de significao, ou seja, o que liga a palavra coisa. Scrates, enquantocondutor do dilogo, tende a reconhecer que a representao por semelhana superior ao emprego de signos arbitrrios. No entanto, forado a admitir ainterveno de um fator complementar que complica a oposio entre physei ethesei: a conveno, o hbito, o costume, ou, em termos contemporneos, o usoque fazemos das palavras nos variados contextos.

    Segundo Jakobson, o lingista americano Dwight Whitney (1827-1894)

    seguiu os passos do Hermgenes de Plato e definiu a lngua como um sistema designos arbitrrios e convencionais. Esta doutrina foi, por sua vez, retomada porSaussure que, somente na edio pstuma de seuCurso de Lingstica Geral,organizada por seus discpulos, declara: No ponto essencial, o lingista norte-americano nos parece ter razo: a lngua uma conveno e a natureza do signoque se convencionou indiferente485. Desse modo, ressalta Jakobson, o arbitrrio declarado o primeiro dos dois princpios gerais que permitem definir a naturezado signo lingstico, visto que o liame que une o significante ao significado arbitrrio. Isto eqivale a dizer que no existe relao entre sentido e som, visto

    482 Derrida, A diferena in Margens da Filosofia, op. cit. pg. 41.483 Veremos adiante que Barthes inverte tal proposio: a Semiologia que uma parte daLingstica, diz Barthes emElementos de Semiologia, pg 13, Cultrix, 2006.484 Derrida, A diferena in Margens da Filosofia, op. cit. pg. 42.485 Saussure apud Jakobson, procura da essncia da linguagem, op. cit. pg. 102.

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    que a lngua entendida exclusivamente como fala, ou seja, como a unidadesom/pensamento.

    Jakobson critica tal dogma da arbitrariedade do signo, no porquequestiona a reduo fontica realizada pela lingstica de Saussure, mas apenas

    porque duvida que o liame entre o som e o significado seja determinado porsimples contingncia ou hbito. Nesse sentido, Jakobson busca determinar algunselementos universais que possam explicar a relao entre significado esignificante de modo no arbitrrio486. No entanto, todos permanecem presos aoconceito de signo enquanto substituto, ou seja, algo que se coloca no lugar de.A discusso acerca do processo de significao, ou seja, do que efetivamente ligauma palavra uma coisa no coloca em questo a natureza fnica do signo. Emltima anlise, argumenta Derrida, no se questiona o fundamento fonolgico da

    cincia lingstica487.No entanto, como j assinalamos, Derrida considera a lingstica como

    uma possibilidade de arrombamento da metafsica e, sem dvida, a noo dediffrance deve muito ao princpio da diferena como condio da significao,tal como elaborado por Saussure. por isso que a desconstruo deve atravessar aLingstica e no apenas desconsider-la como simples metafsica. Derrida citauma passagem significativa a esse respeito. Escreve Saussure:

    Na linguagem no h seno diferenas sem termos positivos. Quer se tome emconsiderao o significado, quer o significante, a lngua no comporta nem idiasnem sons que pr-existiriam ao sistema lingstico, mas apenas diferenasconceituais ou diferenas fnicas resultantes desse sistema488.

    Assim como adiffrance, a diferena de que fala Saussure no umconceito, nem uma palavra entre outras. Ambas remetem para a possibilidademesma de qualquer conceitualidade, ao jogo de diferenas que constitui alinguagem. Ento, qual seria a diferena entre elas, ou seja, o que distingue a

    diferena semiolgica de Saussure dadiffrance derridiana?

    486 Jakobson analisa os estudos dos universais gramaticais de J.H. Greenberg, como a relao depredicao onde o sujeito sempre precede o predicado, a prioridade da proposio condicional emrelao concluso e as formas mais longas do plural e mais breves do singular presentes em todasas lnguas. No nos interessa aqui aprofundar tal discusso. Remetemos o leitor, portanto, ao textode Jakobson. Lingstica e Comunicao,Cultrix, 2005.487 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 35.488 Apud Derrida, A diferena in Margens da Filosofia, op. cit. pg. 42.

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    Em primeiro lugar, mesmo reconhecendo que a condio de possibilidadee de funcionamento de todo signo o jogo da diferena, Saussure no escapa daoposio fundadora da filosofia, a saber, a distino entre sensvel e inteligvel.Assim, o signo permanece a unidade de significao repartida em duas faces: o

    significado (face inteligvel) e o significante (face sensvel). Alm disso, a cincialingstica saussuriana determina a linguagem, em ltima instncia, como aunidade da phon e do logos. Assim, a unidade imediata e privilegiada quefundamenta a significao e o ato de linguagem , segundo Derrida, a unidadearticulada do som e do sentido na fonia489. E a escrita, em relao a esta unidadeexemplar, ser sempre derivada, isto , significante do significante.

    Mas a diffrance no pertence nem voz nem escrita, ela permaneceinaudvel e resiste ordem oposicional que comanda a metafsica. Com efeito, a

    diffrance que faz emergir os fonemas e os d a entender. Da que excede a ordemda verdade e no pode ser considerada como fundamento, nem como nada, nemcomo algo com existncia ou essncia e, sobretudo, ressalta Derrida, no daordem do teolgico490. Diz Derrida: adiffrance no apenas irredutvel a todareapropiao ontolgica ou teolgica onto-teolgica como, abrindoinclusivamente o espao no qual a onto-teologia a filosofia produz o seusistema e a sua histria, a compreende, a inscreve e a excede sem retorno491.

    No entanto, para a Lingstica saussuriana, a essncia da linguagem

    independente da escrita. A lngua tem uma tradio oral idependente daescritura492, afirma Saussure. E, mais adiante, reafirma: O objeto lingstico nose define pela combinao da palavra escrita e da palavra falada; esta ltima por sis constitui tal objeto493. Assim, a palavra falada a unidade do sentido, ou seja,a unidade do significado e do significante.

    por isso que Saussure contenta-se em pensar a linguagem segundo omodelo fontico. Uma vez que a palavra soprada j a unidade do sentido, entouma escrita s pode ser exterior, ou seja, uma representao sensvel do

    489 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 36.490 Derrida reconhece que a sintaxe de que se serve assemelha-se a da teologia negativa, masafirma que adiffrance resiste a qualquer categoria do ente, seja ele presente ou ausente. Adiffrance no um ente misterioso que mantm-se oculto no no-saber, enfim, no uma supra-essencialidade para alm das categorias finitas. Ver a respeito, Derrida, A diferena in Margensda Filosofia, op. cit. pg. 37.491 Derrida, A diferena in Margens da Filosofia, op. cit. pg. 37.492 Saussure,Curso de lingstica geral, apud Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 37.493 Saussure,Curso de lingstica geral, apud Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 37.

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    pensamento-som que opera a partir de unidades j constitudas. Nesse sentido,s existem dois sistemas de escritura para Saussure: ideogrfico ou fontico. Noprimeiro, cujo exemplo clssico a escritura chinesa, a palavra representada porum signo nico e estranho aos sons de que ela se compe. Este signo relaciona-se

    diretamente com a idia que exprime. J o sistema fontico reproduz a srie desons que se sucedem na palavra. Ambos compartilham o carter arbitrrio dosigno, ou seja, enquanto sistema de signos, ambos reproduzem representaes econsistem em marcas arbitrrias, artificiais, exteriores (em relao ao sentidonatural, interno que se apresenta no pensamento-som).

    Alm de todo o sistema de oposies metafsicas que permanece operanteem tais definies, Saussure ainda introduz uma outra limitao, qual seja: a sua

    lingstica limita-se ao estudo do sistema fontico, especialmente quele em usoatualmente, cujo modelo o alfabeto grego. Nesse sentido, destaca Derrida, acientificidade do projeto saussuriano assegurada por duas limitaestranquilizantes que, contudo, deixam em aberto inmeras questes. EscreveDerrida: A cientificidade da Lingstica tem, com efeito, como condio, que ocampo lingstico tenha fronteiras rigorosas, que este seja um sistema regido poruma Necessidade interna e que, de uma certa maneira, sua estrutura sejafechada494.

    No interior de tal sistema fontico, Saussure ainda prope uma distinorigorosa entre fala e lngua. Segundo ele, a lngua necessria para que fala sejainteligvel e produza todos os seus efeitos. E conclui: o princpio da lngua alinguagem menos a fala495. Assim, a linguagem, realidade multiforme einclassificvel, para ser bem ordenada e analisada, precisa ser dividida em lngua(puro objeto social ou conjunto sistemtico de convenes) e fala (ato individualde seleo e atualizao, fonao). Apenas atravs dessa abstrao que alinguagem oferece-se anlise do cientista. No entanto, como coloca Barthes, sejaqual for a riqueza de tal distino, ela no se sutenta sem trazer tona vriosproblemas. Por exemplo, como contestou Jakobson, a linguagem sempresocializada, mesmo no nvel individual. Nesse sentido, o idioleto (a linguagem

    494 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg.40.495 Apud Derrida, A diferena in Margens da Filosofia, op. cit. pg. 47.

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    enquanto falada por um s indivduo), conceito correlato fala revelado porSaussure, mostra-se insustentvel496.

    Alm disso, uma vez que a escritura no mais que a figurao dalngua, Saussure se autoriza a exclu-la da interioridade do sistema. Assim como a

    imagem deve poder se excluir sem danificar a realidade, a escritura exterior aosistema da lngua. A escritura torna-se, assim, estranha ao sistema interno dalngua. E vemos, novamente, toda a velha grade de oposies metafsicas retornarpara saciar o desejo de desenhar o campo de uma cincia: externo/interno;imagem/realidade; representao/presena. No entanto, lembra Derrida:

    A limitao saussuriana no satisfaz, por uma feliz comodidade, exignciacientfica do sistema interno. Esta exigncia mesma constituda, enquantoexigncia epistemolgica em geral, pela prpria possibilidade da escritura

    fontica e pela exterioridade da notao lgica interna497

    .

    Em outros termos, a escritura no somente um meio auxiliar a servio dacincia, mas a condio de possibilidade da objetividade cientfica. Como dizDerrida: Antes de ser seu objeto, a escritura a condio daepisteme498.

    No entanto, apesar de Saussure encerr-la fora do sistema, ele mesmoreconhece que: conquanto a escritura seja, por si, estranha ao sistema interno,impossvel fazer abstrao de um processo atravs do qual a lngua ininterruptamente figurada. Com efeito, Saussure dedica todo um captulo paraconhecer a utilidade, os defeitos e os incovenientes de tal processo499. Dessemodo, ressalta Derrida, a escritura incomodou Saussure, visto que era precisoproteger o sistema interno da lngua contra a ameaa dessa tcnica artificiosaque, assim como j dizia o Scrates de Plato no Fedro, vem de fora500.

    E Derrida nota que Saussure confere um tom moralista ao erro terico deinverter a relao entre a fala e a escrita. certo que Saussure rompe com afilosofia da conscincia ao considerar que a fala no uma simples vestimenta

    do pensamento, como afirmava j Husserl, porm a escrita continua sendo amatria sensvel, um corpo que apenas d forma fala. Nesse sentido, seria umpecado trocar o sopro proveniente do esprito por uma tranvestimenta de

    496 Barthes, Roland.Elementos de Semiologia, op. cit. pg. 21.497 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 41.498 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 34.499 Saussure,Curso de Lingstica Geral, pg. 33, apud Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 41.500 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 42.

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    perverso, de disfarce e de corrupo. Assim, a escrita no apenas imagem efigurao inocente, ela tende a usurpar o lugar do som, este sim o nico liamenatural com o significado. Este o pecado original da escrita: por sua facilidade,visto que a imagem grfica permanece e na maioria dos indivduos as impresses

    visuais so mais ntidas e duradouras que as impresses acsticas501

    , ela tende ase impor custa do som. Em outros termos, a relao natural inverte-se pordescuido e preguia, uma vez que a escrita mais apropriada que o som paramanter a unidade da lngua atravs do tempo. Escreve Saussure:

    Primeiramente, a imagem grfica das palavras nos impressiona como um objetopermanente e slido, mais apropriado que o som para constituir a unidade dalngua atravs do tempo. Pouco importa que esse liame sejasuperficial e crie umaunidade puramente factcia; muito mais fcil de aprender que o liamenatural, onico verdadeiro, o do som502. (grifo de Derrida)

    No entanto, pergunta Derrida, tal facilidade da escrita no seria tambmnatural? O que parece fascinar e irritar Saussure exatamente essa intimidadeentre a fonia e a grafia que facilita a inverso e a usurpao do papel principalocupado pela fala. Essa promiscuidade ou nefasta cumplicidade acarreta oesquecimento da origem simples, da nossa verdadeira natureza, diria Rousseau.A escrita acarreta a violncia do esquecimento da origem, ela uma mediao e,portanto, uma sada para fora de si dologos. Sem a escrita, este permaneceria em

    si, na sua relao imediata com o sentido. Mas a escrita nos seduz com suafacilidade, nos cega com sua visibilidade, nos faz esquecer a lngua viva. Comoum bom moralista, Saussure nos lembra que ceder ao prestgio da escrita ceder paixo, deixar o corpo dominar a alma e render-se passividade. A perversodo artifcio engendra monstros503, arremata Derrida.

    No entanto, como j assinalado acima, Derrida no pretende salvar ouinocentar a escrita de tal condenao. Ao desconstruir esta tradio que, de Platoa Saussure, condenou a escrita a um papel subversivo, Derrida no quer apenasinverter a relao e proclamar a inocncia da escritura. O que Derrida quer nosmostrar que a violncia da escritura no sobrevm a uma linguagem inocente. Se

    501 Saussure,Curso de Lingstica Geral, pg 35, apud Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 51.502 Saussure,Curso de Lingstica Geral, pg 35, apud Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 43.503 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 47.

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    h uma violncia da escritura porque a linguagem , primeiramente, escrita. Ausurpao comeou desde sempre504.

    O que est em jogo aqui exatamente a impossibilidade de uma escritapuramente fontica. Como escreve Derrida: a escrita dita fontica no pode

    funcionar, por princpio e por direito, seno admitindo em si mesma signos nofonticos (pontuao, espaamento)505. A diferena entre dois fonemas e quepermite que estes sejam e operem como tais, inaudvel. Com efeito, o jogo dadiferena silencioso. E isto implica em dizer que, por mais importante que seja,a escrita fonticano existe enquanto tal, afirma dramaticamente Derrida. Almda infidelidade radical ea priori necessria de toda prtica com seu princpio, osfenmenos de pontuao eespaamento interditam qualquer fala viva desde oseu ponto de partida. A usurpao grfica inscreve-se na prpria fala.

    E aqui retornamos tese da arbitrariedade do signo que, como assinalaDerrida, acaba por explodir os limites do sistema geral da lngua. Seconsideramos a distino saussuriana entre o fora e o dentro do sistemageral da lngua, e uma vez que a relao entre a fala (interior ao sistema) e a escrita(exterior ao sistema) no uma relao natural, ento resta perguntar o quesignifica natural e arbitrrio para Saussure. Como uma lingstica pode sergeral se ela define o seu dentro e o seu fora a partir de pressupostos internos earbitrrios? Como afirmar que a escrita signo do signo e a fala, apesar de seu

    carter arbitrrio, mantm uma relao natural com o sentido? Como colocaDerrida: A tese do arbitrrio do signo deveria proibir a distino radical entresigno lingstico e signo grfico506.

    No interior do sistema saussuriano, somente as relaes entre significantese significados, enquanto imagens acsticas, estariam sujeitos tese daarbitrariedade do signo. Com efeito, a princpio, Saussure considerava apenas osigno verbal como unidade ou moeda com duas faces, significado esignificante507. No entanto, no momento em que Saussure estende a noo de

    504 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 45.505 Derrida, A diferena in Margens da Filosofia, op. cit. pg. 36506 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 53.507 Como lembra Derrida, Saussure distingue a imagem acstica do mero som. Com efeito, aimagem acstica (significante) o entendido, ou seja, o ser-entendido do som. J o significado no a coisa, mas o conceito, ou seja, a idealidade do sentido, na linguagem fenomenolgica. Nessesentido, na interpretao fenomenolgica feita por Derrida, Saussure no pode ser acusado derecair no ponto de vista mentalista, como denuncia Jakobson. Derrida,Gramatologia, op. cit.pg. 78-79.

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    signo tanto para a fonia quanto para a grafia, ento a distino entre arbitrrio enatural deveria desaparecer. A idia mesma de instituio, ou seja, do arbitrriodo signo, impensvel antes da possibilidade da escrita. Apenas no momento emque o signo exteriorizado, isto , em que aparece no mundo como espao de

    inscrio, mesmo que apenas fnico, que ele pode ser entendido como arbitrrio.Assim, conclui Derrida:

    A tese do arbitrrio do signo contesta, indiretamente mas, sem apelo, o propsitodeclarado de Saussure, quando ele expulsa a escritura para as trevas exteriores dalinguagem. Esta tese justifica uma relao convencional entre o fonema e ografema mas probe, por isso mesmo, que este (o grafema) seja uma imagemdaquele (do fonema) (...) Portanto, deve-se recusar, em nome do arbitrrio dosigno, a definio saussuriana da escritura como imagem da lngua508.

    Paradoxalmente, nota Derrida, Saussure oferece o melhor de si exatamentequando no est falando da escrita, ou seja, quando acredita que resolveu oproblema ao expuls-la para fora do seu sistema. nesse momento que ele liberao campo de uma gramatologia geral, ou seja, de uma lingstica que no apenasaceita a escritura, como a considera a origem da linguagem. ento que sepercebe que, aquilo que havia sido desterrado, o errante proscrito da lingstica,nunca deixou de perseguir a linguagem como sua primeira e mais ntimapossibilidade509.

    Com e contra Saussure, o que preciso pensar agora a escritura comoalgo interior fala, visto que esta em si mesma uma escritura. A lngua ,desde sempre, uma escritura, sem a qual nenhuma notao seria possvel. nesse sentido que preciso pensar o rastro institudo a partir do qual todas asoposies ganham sentido. Mas o rastro institudo no arbitrrio no sentidooposto ao natural. preciso pensar a sua possibilidade aqum da oposio entrenatureza e conveno. interessante notar que Nietzsche, no texto Da origem dalinguagem de 1869-1870, citando oCrtilo de Plato, diz considerar a oposio

    entre physis e nomos um ponto de partida ingnuo para a apreenso da origem dalinguagem. No entanto, lembra Rosana Suarez, nos cursos de 72-73, ele parece

    508 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 55.509 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 53.

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    aceitar a tese convencionalista, ao afirmar que no existe absolutamentenaturalidade no retrica da linguagem qual apelarmos510.

    No entanto, Nietzsche complexifica a tese da arbitrariedade, ao questionaro sentido denomos que no seria apenas o arbitrrio ou artificial, em oposio ao

    natural. Com efeito, os dois sentidos principais denomos uso e norma. Dessemodo, a pureza da linguagem vincula-se no ligao natural entre a coisa e apalavra, mas sim ao emprego da linguagem sancionada pelousus dos indivduoscultos de uma sociedade511. Assim, a norma culta que define a pureza dapalavra e no a sua associao uma linguagem primeira, originria ou natural.Escreve Nietzsche:

    Em si, no h discurso puro nem impuro. muito importante a questo sobrecomo o sentimento de pureza se forma pouco a pouco numa sociedade queescolhe, at fix-lo, o campo global de sua linguagem. Manifestamente, elaprecede segundo leis e analogias inconscientes, at obter uma unidade, umaexpresso unificada. Assim como a uma tribo corresponde um dialeto, a umasociedade corresponde um estilo sancionado como puro512.

    Esta passagem anuncia uma instncia anterior oposio entre physis enomos, qual seja, o instinto inconsciente formador de linguagem. Nietzsche adefine como uma arte instintiva e inconsciente que conforma os organismos e omundo que eles percebem. E, no seu entender, essa arte transpositiva,trpica.

    Diz Nietzsche: sobre tropos e no sobre raciocnios inconscientes que repousanossa percepo. Comparar e descobrir semelhanas o processo original513.Nesse sentido, a percepo lana comparaes, recortes e acentos rtmicos, nosobre o mundo, mas sobre as marcas impressas na memria dos organismos apartir das primeiras excitaes que aferem.

    Essa , portanto, a concepo nietzschiana de linguagem, uma trpica dapercepo, onde a coisa , desde sempre, uma metfora. Nesse sentido, escreveNietzsche: Nossas expresses verbais se produzem desde que experimentamos

    510 Nietzsche, Retrica, apud Suarez, Rosana. Nietzsche e os cursos sobre a Retrica, op. cit.pg. 74.511 Nietzsche, Retrica, apud Suarez, Rosana. Nietzsche e os cursos sobre a Retrica, op. cit.pg. 74.512 Nietzsche, Retrica, apud Suarez, Rosana. Nietzsche e os cursos sobre a Retrica, op. cit.pg. 74.513 Nietzsche, Livro do Filsofo, apud Suarez, Rosana. Nietzsche e os cursos sobre a Retrica,op. cit. pg. 76.

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    uma sensao. No lugar da coisa, a sensao percebe apenas uma marca514. Ouainda: Todas as palavras so, desde seu comeo, tropos. Em lugar do querealmente se passou, elas instalam uma massa sonora que se esvanece com otempo: a linguagem no exprime jamais uma coisa em sua integridade, exibe

    somente uma marca que lhe parece salientar-se515

    . Desse modo, no so ascoisas que penetram em nossa conscincia, mas a maneira como nos relacionamoscom elas: a persuaso516.

    Desse modo, as investigaes nietzschianas sobre a Retrica sopreparatrias para a tese da metaforicidade geral da linguagem que aparecer emSobre Verdade e Mentira em sentido Extramoral, onde se diz que a metfora ame de toda linguagem e a av da linguagem conceitual. Ou ainda: Em todocaso, no da lgica que provm a linguagem, e, por decorrncia, toda a matria-

    prima com que o homem da verdade, o erudito, o filsofo trabalham e constrem,se no provm dos contos da carochinha, no provm tampouco, em todo caso, daessncia das coisas517.

    Nos termos de Derrida, ressoando ecos nietzschianos, o rastro institudo imotivado, mas no caprichoso. Ele rompeu com a amarra natural, mas nopode ser pensado fora da estrutura de remessa onde a diferena aparece e permitea ecloso dos termos plenos. A tese da arbitrariedade do signo no se sustenta,no porque o signo tenha uma relao natural com as coisas, mas porque ela

    necessita de uma sntese onde o totalmente outro anuncia-se como tal, semnenhuma identidade ou semelhana, com aquilo que no ele. E aqui est ocentro da questo metafsica, dahistria em geral: o signo coloca-se,enquantotal, no lugar daquilo que ele no , ou seja, do ente. Mas o ente, enquanto tal,simplesmente no existe antes do rastro, antes do jogo diferencial da linguagem.

    por isso que Derrida no se cansa de afirmar que preciso pensar orastro antes do ente, visto que o campo do ente estrutura-se conforme as diversaspossibilidades do rastro. Nesse sentido, o rastro anterior ao ente. omovimento do rastro (o jogo dadiffrance) que permite a apario do ente,

    514 Nietzsche, Retrica, apud Suarez, Rosana. Nietzsche e os cursos sobre a Retrica, op. cit.pg. 76.515 Nietzsche, Retrica, apud Suarez, Rosana. Nietzsche e os cursos sobre a Retrica, op. cit.pg. 78.516 Nietzsche, Retrica, apud Suarez, Rosana. Nietzsche e os cursos sobre a Retrica, op. cit.pg. 79.517 Nietzsche, Sobre Verdade e Mentira em Sentido Extramoral apud Suarez, Rosana. Nietzschee os cursos sobre a Retrica, op. cit. pg. 80.

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    mesmo que este movimento seja, por essncia, ocultamento, ou seja, mesmo queele no exista enquanto tal. Quando o outro anuncia-se, ele apresenta-se j edesde sempre, na dissimulao de si. Escreve Derrida; A apresentao do outrocomo tal, isto , a dissimulao de seu como tal, comeou desde sempre e

    nenhuma estrutura do ente dela escapa518

    .A estrutura do rastro imotivado ou arbitrrio de um vir-a-ser. Nesse

    sentido, no existe rastro imotivado, mas apenas o vir-a-ser imotivado dorastro. Assim, o rastro de que fala Derrida no mais natural que cultural, nomais fsico que psquico, biolgico que espiritual. simplesmente aquilo a partirdo qual um vir-a-ser imotivado do signo possvel519 e com ele, todas as demaisoposies da linguagem.

    Para Derrida, Peirce foi mais atento que Saussure a este carter de vir-a-

    ser do signo. Como destaca Jakobson, as notas de Semitica que Peirce escreveuao longo de meio sculo sua primeira tentativa de classificao dos signos datado ano de 1867 possuem importncia histrica e teriam exercido influnciampar se no tivessem permanecido inditas, para grande parte dos lingistas, at1930. Assim como Saussure, Peirce estabeleceu uma distino entre asqualidades materiais (o significante de Saussure) e o seu intrprete imediato(o significado). No entanto, para Peirce, a relao entre significado e significantemanifesta-se em trs tipos de signos (representamen na terminologia de Peirce)

    diferentes. Ocone opera pela semelhana; ondice opera pela contigidade defato; e osmbolo opera, antes de tudo, por contigidade instituda. Assim, aconexo entre significado e significante do smbolo consiste numa regra e nodepende da presena ou ausncia de qualquer similitude ou contigidade de fato.Desse modo, o intrprete de um smbolo deve obrigatoriamente conhecer a regraconvencional que liga o significado ao significante520. Nas palavras de Peirce:Um smbolo umrepresentamen cujo carter representativo consiste exatamenteem ser uma regra que determinar seu Interpretante. Todas as palavras, frases,livros e outros signos convencionais so Smbolos521.

    Com efeito, Saussure tambm se serviu, a princpio, do termo smbolo,com sentido bastante similar ao de Peirce. No entanto, recusou-o por este implicar

    518 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 57.519 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 58.520 Jakobson, procura da essncia da linguagem, op. cit. pg. 101.521 Peirce,Semitica, pg 71. Editora Perspectiva, 2005.

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    um certo liame natural entre significado e significante, o que contrariaria suatese da arbitrariedade do signo. Nesse sentido, Peirce foi alm de Saussure aochamar a ateno para o amlgama entre os componentes indicativos e icnicosdos smbolos. Saussure, ao contrrio, insiste no carter puramente convencional

    da linguagem. Uma vez que Peirce ressalta que o signo formado pelacontaminao de funes diversas, como o ndice, o cone e o smbolo, ento, oque distingue as trs classes de signos no a presena absoluta de similitude oucontigidade entre o significante e o significado, mas apenas a predominncia deum desses fatores sobre os outros. Assim, mesmo um ndice to tpico quanto umdedo apontado numa direo recebe, em diferentes culturas, significaesdiferentes. Por exemplo, cita Jakobson, para certas tribos da frica do Sul, indicarum objeto com o dedo amaldio-lo.

    Por outro lado, quanto ao smbolo, diz Peirce: ele implicanecessariamente uma espcie de ndice e sem recorrer a ndices, impossveldesignar aquilo de que se fala522. Assim, todo smbolo ou signo convencionalpossui componentes indicativos e icnicos. E, segundo Peirce, os signos maisperfeitos so aqueles nos quais o carter icnico, indicativo e simblico estoamalgamados em propores to iguais quanto possvel523. Desse modo,contrariamente a Saussure, para quem os signos inteiramente arbitrrios realizammelhor que os outros o ideal semiolgico, Peirce afirma:

    Os smbolos crescem. Retiram seu ser do desenvolvimento de outros signos,especialmente dos cones, ou de signos misturados que compartilham da naturezados cones e smbolos. S pensamos com signos. Estes signos mentais so denatureza mista (...) Assim, apenas a partir de outros smbolos que um novosmbolo pode surgir524.

    Esta a peculiaridade da semitica de Peirce que Derrida ressalta.Diferentemente de Saussure, Peirce teria reconhecido o vir-a-ser signo dosmbolo. E este carter de vir-a-ser do signo est presente em Peirce quando estereconhece o enraizamento do simblico no no-simblico. Mas esse enraizamentono compromete a originalidade estrutural do campo simblico, ou seja, nocompromete a autonomia do jogo, da remessa de signo a signo que constitui a

    522 Peirce, apud Jakobson, op. cit. pg. 104.523 Peirce, apud Jakobson, op. cit. pg. 104.524 Peirce,Semitica, op. cit. pg. 73.

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    linguagem. Isto porque o remetimento de signo a signo no pressupe nenhumsolo de no-significao, ou seja, nenhum significado transcendental do qual osigno seria a representao. Alis, um sistema de signos definido exatamentepela indefinidade da remessa. Afinal, como escreve Peirce: Um Smbolo uma

    lei ou regularidade do futuro indefinido525

    .Segundo Derrida, Peirce seria mais fiel fenomenologia do que o prprio

    Husserl que permanece preso apresentao originria da prpria coisa (averdade). J para Peirce, a manifestao, ela mesma, no revela uma presena,ela faz signo. O que implica dizer que a tal prpria coisa desde sempre umrepresentamen, uma vez que funciona somente suscitando um interpretante quetorna-se ele mesmo signo, e assim ao infinito. Isto implica dizer que o sentidooriginal, a origem ela mesma, o significado ltimo que poderia satisfazer o

    desejo do transcendental ao colocar um fim no movimento incessante dasignificao, essa origem outelos nunca se d, nunca est presente. O carterduplo do signo, seu jogo de presena/ausncia, o fato de apenas representar algoque no est presente, exatamente o seu carter mais prprio. Assim, o prpriodo signo no ser ele prprio. Derrida escreve:

    A tal prpria coisa desde sempre umrepresentamen subtrado simplicidade da evidncia intuitiva (...) A identidade a si do significado seesquiva e se desloca incessantemente. O prprio dorepresentamen ser si e umoutro, de se produzir como uma estrutura de remessa, de se distrair de si. Oprprio dorepresentamen no ser prprio, isto , absolutamente prximo desi526.

    nesse sentido que Derrida afirma que Peirce vai muito longe em direo desconstruo do significado transcendental que, num ou outro instante, dariaum final tranquilizante remessa de signo a signo527. E, como j assinalamos,Derrida identifica o logocentrismo e a metafsica da presena com o desejoexigente, potente, sistemtico e irreprimvel, de um tal significado. Assim, a

    noo de jogo para Derrida remete ausncia de significado transcendental e,portanto, ilimitao do jogo da linguagem e ao abalamento da onto-teologia eda metafsica da presena528. Para pensar o jogo radicalmente, ou seja, como

    525 Peirce,Semitica, op. cit. pg. 71.526 Derrida,Gramatologia, pg. 60.527 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 59-60.528 Derrida,Gramatologia, op. cit. pg. 61.

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    ausncia do significado transcendental, preciso, contudo, atravessar aproblemtica ontolgica e transcendental, isto , segundo Derrida, seguirefetivamente e at o fim o movimento crtico das questes husserliana eheideggeriana. Mas tambm atravessar as questes levantadas pela lingstica,

    uma vez que, desde que entramos no jogo, entramos no vir-a-ser-imotivado dosmbolo.

    No entanto, preciso lembrar que a imotivao do rastro no pode serentendida como um estado ou estrutura. O rastro movimento, operao. Da queseria melhor falar em movimento do rastro. Nesse sentido, a gramatologia seriaa cincia da imotivao do rastro, da escrituraantes e na fala. E aqui surge ainverso proposta por Barthes, ou seja, a de que a semiologia que uma parte dalingstica, visto que no h sentido antes do signo. Derrida aceita, porm

    radicaliza a proposio de Barthes ao propor uma gramatologia que libertaria oprojeto semiolgico das premissas logocntricas da lingstica, visto que o signolingstico ainda permanece o elemento exemplar para a semiologia.

    Portanto, Derrida radicaliza as concluses da Lingstica, especialmente daSemitica de Peirce, segundo a qual a condio de possibilidade mesma de umsistema de signos a remessa, o adiamento do sentido, a espera, a promessa depresena que no se dar, uma vez que a coisa sempre escapa. Na terminologiada desconstruo, pode-se afirmar que o trao de suplemento ou a

    suplementariedade contamina todo sistema de signos, ou seja, a linguagem emgeral, antes de qualquer locuo (entendida como primeira fase do ato de fala), oumelhor, no instante mesmo de toda locuo. Uma fala no pode ser plena, noporque o seu locutor no est presente ou porque dissimula seu querer-dizer.Uma fala no plena porque est previamente dividida e deportada, previamenteafastada de si mesma. Essa sua condio de possibilidade. Uma possibilidadenecessria que no pode ser considerada como mero acidente, nem ser postaem reserva para fins estratgicos de uma anlise pragmtica, como sugere, porexemplo, a teoria dosspeech acts, tal como desenvolvida por Searle.

    Mas resta o desafio de falar sobre essa contaminao constitutiva, decompreender melhor essa lei de suplementariedade que caracteriza a linguagem.Nesse sentido, Derrida cria a noo de quase-conceito ou indecidvel diffrance, restncia, rastro, dentre outros no intuito de apontar para aiterabilidade constitutiva de todo sistema de signos, o que exige uma outra

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    espcie de conceito, ou como coloca Derrida: Um conceito sem conceito,heterogneo ao conceito filosfico de conceito, um conceito que marca, ao mesmotempo, a possibilidade e o limite de toda idealizao, e pois de todaconceituao529. Assim, as noes de iterabilidade e de disseminao,

    desenvolvidas no texto Assinatura Evento Contexto, apontam nessa direo,como desenvolvo a seguir.

    529 Limited Inc. op. cit. pg 158.

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