13 DECIMA TERCEIRA LIÇÃO (L-S-ÉT)
Click here to load reader
-
Upload
profesteves -
Category
Documents
-
view
8 -
download
0
Transcript of 13 DECIMA TERCEIRA LIÇÃO (L-S-ÉT)
DECIMA TERCEIRA LIÇÃO
A doutrina da virtude em Aristóteles*
Seria natural decidir desta ou daquela maneira a dificuldade
surgida na formulação da questão de Aristóteles - trala-se de
virtudes de felicidade ou de virtudes morais? -, perguntando quai é
para ele o padrão de medida da reflexão prática. Na reflexão prática
(phronesis), trata-se do comportamento correto com relação aos
sentimentos imediatos, aos afetos, e já indiquei que, segundo o
padrão de medida deste '"correto”, seja a felicidade ou o louvor, as
virtudes se mostrarão como virtudes de felicidade ou como virtudes
morais. Como padrão de medida da reflexão, Aristóteles menciona,
todavia, “o meio- termo” (meson), e este conceito é tão
indeterminado que pode, por sua vez, ser compreendido, tanto em
um. como em outro sentido.
Examinemos os textos relevantes. O conceito de meio-termo é
introduzido em II, 5. Antes fora esclarecido que uma virtude
consiste em uma firme disposição da vontade com referência a um
domínio de afeto ou a um domínio de possibi
* Tradução de Fernando Pio de Almeida Fleck.
lidades de ação 1, mas, com Isto, a virtude é apenas classificada na
espécie propriedade do caráter , e a questão é saber de que maneira
uma propriedade boa do. caráter se distingue de ema propriedade má
do caráter, a virtode (areté), do vício (kakía), A resposta é a de que
a virtude é o meio-termo (meson) entr e um demais ( ein Zuviel) e um
de meno s (ein Zuwenig) com respeito ao continuum de um domínio
de afeto ou de um domínio de ação. Também aqui Aristóteles vale-
se de uma idéia já elaborada por Platão (Político 283s). Assim» a
coragem, por exemplo, é o meio-termo correto entre a covardia e a
temeridade, isto é, o meio-termo correto com referência a iperi ti) os
afetos medo e coragem (III, 9), e a generosidade, o meio-termo
correto com referência ao domínio de ação do dar e do receber
dinheiro, por oposição àprodigalidade e ã avareza (IV, I).
Aqui se põe imediatamente a questão de saber se “o meio-
termo” é um princípio genuíno. Certamente não, se com princípio
se quer dizer um critério através do qual é indicado onde se situa a
linha entre o demais e o de menos. Pode-se então perguntar: se o
princípio-não oferece tal critério, não é então uma fórmula vazia?
Aristóteles mencionou esta dificuldade em uma única pas-
sagem, que, no entanto, não pode ser desconsiderada e é siste-
maticamente importante. Esta passagem situa-se no início do Livro
VI. Aristóteles afirma que se, por exemplo, respondêssemos à
pergunta de como alguém se pode tomar são, dizendo apenas:
quando se encontra o meio-termo, quando não se faz nem demais,
nem de menos. nada se diria, e se acrescentássemos: é o experto
que decide onde está o meio-termo, também
1. N. Harímann fala em "âmbitos da vida' {“Lebensgebiete"). Com razão, sublinha que cada
virtude é a maneira correia de se comportar em um peri ti. Cf “D'. Wertdimensionen der
Nikomachischen Ethik" ('‘As Dimensões de Valor da E:ica c Nicômaco”], Berlim, 1944
(Abhandlungen der Preussischen Akademie), p 6s. :T- presso em suas Kleinere Schriften
{Escritos Menores], Berlim. 1957, li 19is.
270
nada seria dito, uma vez que a questão é: segundo que critério o
experto decide?2 O leitor espera aprender algo preciso sobre isto
neste Livro VI, dedicado às chamadas virtudes intelectuais e
especialmente à sabedoria prática (phronesis). Isto, todavia, não
ocorre, pois o juízo do que possui.a sabedoria prática Cphrónimos)
é por sua vez para Aristóteles o critério último 3, lã ao introduzir o
princípio do meio-termo, Aristóteles dissera (e repetira na
apresentação de cada virtude individual) que o meio-termo
consiste em que se sinta prazer ou despraze r, “onde se deve, com
referência ao que e com respeito a quem e em razão do que e como
se dev e” (110ób'21s). Sábio ou prudente é precisamente aquele que
reconhece isto, e para tal não se podem dar regras, Observe-se
também que na definição re- cém-citada, através da qual o meio-
termo é especificado, no “deve” várias vezes repetido, são já
mencionados critérios morais, que, porém, são conscientemente
deixados em aberto.
O resultado é mais insatisfatório do que Aristóteles admite,
pois não pode ser suficiente dizer que o modo como se deve agir é
indecidível segundo regras e que apenas pode ser indicado no caso
individual, pois tal indicação é feita por aquelas pessoas capazes de
julgamento no caso individual, e então se perguntará o que as
determina. Evidentemente .movemo-nos aqui em círculo. O
determinante em última instância é o fati- camente aprovado. Não
se tem de dizer então que Aristóteles simplesmente toma seu
critério da moral de seu tempo? E não se decide assim também a
questão de que parti no início desta lição, inequivocamente, em
favor da compreensão das virtudes como virtudes morais?
Esta é certamente em boa parte a explicação correta. Mas não
se pode abandonar aqui o problema, como habitualmente
2. Cf. todo o capítulo VI, I e especialmente 1 !38b29s.
3. Cf. já 1107a 1 s e passini.
se faz, pois é somente agora que ele propriamente começa. O
recurso, ao meio-termo entre extremos é realmente apenas uma
fórmula vazia? Não tocou aqui Aristóteles em aspectos genuínos do
moral, em. que falar de meio-termo na acepção de eqiá - librio
(Ausgewogenheit) tem um sentido- substancial? Certamente isto
pressuporia que pudéssemos identificar os extremos por si mesmos e
não apenas como demais e de menos com relação ao meio-termo.
Aqui, no que diz explicitamente, Aristóteles nos abandona.
Podemos» porém, prosseguir nesta investigação, entrando no
conteúdo de sua doutrina da virtude. Não basta dizer que Aristóteles
é um filho de seu tempo, pois faticamente ele não parece recorrer a
nenhum juízo moral realmente dependente do tempo4. Por isso
também não se pode dizer que Aristóteles compreende a morai que
nos apresenta como tradicionalista. O critério de .aprovação não é
uma tradição dada. Certamente ele não menciona nenhum outro
critério.
Parece sensato perguntar em primeiro lugar em que relação as
virtudes apresentadas por Aristóteles estão .para com os deveres,
tais como os conhecemos do coniratualismo e da concepção
kantiana, os conhecidos deveres negativos, positivos e cooperativos.
Aqui se produz aproximadamente o seguinte quadro:
exclusivamente o dever positivo do auxílio encontra
correspondência em uma virtude, a generosidade. Os deveres
cooperativos em sentido mais estrito (cumprir promessas) parecem
faltar em Aristóteles. O dever negativo, tão fundamental para a
concepção kantiana, é levado em conta por Aristóteles
4. Nem mesmo a coragem bélicae ãmegaioprepeia (magnificência) parecem constituir
exceções, apenas porque as condições para elas pressupõem um certo tamanho da
comunidade e um certo contexto de perigo; se estas condições se cumprirem, isto é. dados
estes âmbitos da vida. tais caracteres serão efetivamente dignos de aprovação.
272
em um de seus conceitos de justiça (1130b30s). Maclntyre também
chamou a atenção para isso (150s), embora diga, com razão, que as
explicações correspondentes de Aristóteles são, antes, “crípticas”.
Em nosso contexto basta, porém, observar que Aristóteles
reconhece inteiramente este domínio da moral,' e podemos talvez
complementar que para este domínio valem regras (são
precisamente aquelas que o juiz aplica, quando compensa um
ilícito cometido). Embora Aristóteles não se refira explicitamente a
regras, diz que falar de “meio-termo” aqui tem um outro sentido, a
saber, o da compensação (Aus- gleichs) í 1133b32). Aqui valem
regras, porque são ações que se proíbem.
Segue-se daí que o domínio que Aristóteles tem em vista com
as virtudes não é um equivalente talvez mal.definido dos deveres
de ação e omissão da concepção kantiana, mas que as virtudes os
complementam - com ou sem razão a partir de uma perspectiva
universalista — e justamente nesta complementação reside, em
primeiro lugar, uma ampliação essencial do positivamente mandado
com relação ao dever único de auxiliar na necessidade da
concepção kantiana, e, em segundo lugar, o que é mandado não
consiste nunca em ações, mas em atitude s.
A questão é agora como deve ser entendida esta comple-
mentação, que no interior da ética aristotélica podemos considerar
como uma complementação da justiça, e a questão ulterior será de
saber se esta complementação é estranha à perspectiva de uma
moral universalista (de que se deve agir e, eventualmente, ser
assim como é desejado a partir da perspectiva de qualquer um).
Aqui é importante atentar a que quase todas as virtudes
enumeradas por Aristóteles são virtudes so- ciais : concernem ao
modo como nos comportamos para com os outros, e não caem.
portanto, sob o veredicic de que em uma ética modernamente
entendida o modo como se plasma oró-
pria vida deve ser mantido fora da mora!, isto só não vale para -
uma das virtudes tal como Aristóteles as apresenta, a tempe- ranea
(sophrosyne), e para urna segunda virtude, a coragem ('Tapferkeit),
vale apenas de modo limitado {urna vez que a coragem é aqueSe
destemor que se deve manifestar especialmente quando se trata do
bem da comunidade). O falo de Aristóteles ter em vista em
primeira linha virtudes sociais torna-se também visível por ele
introduzir a virtude como atitude para com os afetos e por
apresentar os afetos na Retórica em gerai como referidos a outros
(cf. Í378a25 epipoiois). Ma enumeração dos afetos da Retórica,
isto somente não se aplica ao temor (cf. 1382a21s), na da Etica a
Nicômaco (1105b21 s) o desejo também não se ajusta a este
esquema; o desejo, de que Aristóteles necessita como fundamento
da virtude da temperança. não se ajusta, de resto, à definição dos
afetos. Recordemos aqui, todavia, que estas duas virtudes não
sociais são justamente as duas virtudes cardeais para consigo
mesmo a serem eventualmente entendidas como morais, assim
como as entenderam Hume e von Wright (acima p. 249-250).
Além disso, deve-se agora considerar que Aristóteles, no caso
da maior pane das virtudes, absolutamente não diz que se referem a
determinados domínios de afeto, mas a determina das ações ou
modos de comportar-s e (praxeis). Assim, a liberalidade é o justo
meio-termo entre o dar e o receber dinheiro, bem como a
megaloprepeia (magnificência). Similarmente, a megalopsychia
(magnanimidade), como meio-termo adequado entre vaidade e
pusilanímidade com referência ao aspirar por e ao comportar-se
face a honras prestadas, é primariamente referida à ação, e do
mesmo modo, enfim, as virtudes do comportamento no convívio
social: amabilidade, veracidade (por oposição à jactância, de um
lado, e à ironia, de outro) e amizade iphilía, cf. II, 7). Deve-se
considerar que as ações de que aqui se trata não são definidas por
um estado final a que se aspira. Aristóteles distingue ações neste
sentido, que ele desig-
274
na como movimentos, daquelas ações que se pode designar
atividades ( energeiai ) e que têm seu fim em si mesma s5. Às ações a
que se referem as virtudes na Ética a Nicômaco são todas atividades
(o que Aristóteles também denomina praxeis em sentido mais
estrito), pois de outro modo seriam- referidas ao útií, e o útil, bem
como o nocivo, são adjudicados por Aristóteles, ao domínio da
justiça (1134a8, cf. também H29b2). Atividades e ações referidas a
um fim podem naturalmente cruzar-se6; a praxis do comportamento
liberal por exemplo, implica que sejam praticadas ações individuais
referidas a um fim, o de auxiliar, mas o próprio comportamento
liberal é um ser-ativo ( ein Tatigsein ), tem um fim em si mesmo .
Agora vemos por que é impossível às virtudes no sentido de
Aristóteles (de modo inteiramente diverso ao das virtudes de Hume
e de vou Wright) indicar regras de ação; não apenas devido à com-
plexidade excessiva,.mas por não se referirem absolutamente a
ações que possam ser definidas pela indicação de seus fins.
Aristóteles reflete aqui, portanto, sobre um fato fenoménico que
desde o início não pode absolutamente ser definido por regras.
Agora também se pode compreender melhor até que ponto o ser-
assim que se expressa na virtude é o que é em primeira linha
aprovado, e as ações em que se manife sta, apenas secundariamente,
e na medida em que este ser-assim se m os- tra nelas. Comportar-se
liberalmente, por exemplo, é a energeia (atividade) de que se trata e
que somente pode ser alcançada, se determinadas ações referidas a
um fim forem praticadas - quais são estas, reconhece quem é capaz
de julgar-, em princípio analogamente, por exemplo, a nadar, que é
uma energeia (atividade), que somente pode ser realizada,
praticando-se determinadas ações finalísticas com braços e
pernas. .
5.Cf. Metafísica IX 6 e meu Selbstbewusstsein und Selbsibesümmung {Autoconsciên
cia e Autodeterminação] p. 21 ls.
6. Cf. Selbstbewusstsein und Selbstbestinunung. id.
Qual é, porém, o sentido de todas estas virtudes sociais como
modos de ser-assim? Tomemos a liberalidade (generosidade) e as
virtudes da .sociabilidade como exemplos. A liberalidade é chamada
de virtude do “dar e do receber”. Nela a pessoa assume ema
determinada.atitude no continuum destes modos de comportamento
inter-humano. O que importa ao virtuoso não é, em primeira tinha,
praticar esta ou aquela ação de dar ou de receber com seu fim
determinado, mas tal ação com seu fim será realizada em razão de
ema determinada atitude para com os- outros. Esta consiste em em
equilíbrio entre prodigalidade e avareza. O avaro fecha-se aos
outros, o pródigo de certo modo os persegue. De maneira similar, a
amabilidade é um equilíbrio em uma .outra dimensão do
comportamento humano entre a adulação e a grosseria.
Falar agora em equilíbrio não é mais empreg ar uma fór- mula
vazia, porque os extremos têm um sentido próprio: r epre- sentam as
possibilidades polares deficitárias na ponte que cada um lança aos
outros nas diferentes dimensões do convívio. To~ das estas vir tudes
sociai s são excelência^
em que nos .....abrimos ou nos jechanios diante dos outros. O
eompcrta rmento pa ra comos outros éjcomo um a tp^de equiji-
brismo entre a perda da relação e a perda de si m esmo, entre
autonomia e dependência (Bezogenheit). Os extremos são, de sua
parte, modos de ser identificáveis, e esta é a razão por que falar de
equilíbrio não é uma fórmula vazia.
Uma virtude estreitamente relacionada à amabilidade é a
cortesia. Através dela posso elucidar mais de perto a relação
entre a atitude e as ações em que se manifesta. Veremos ainda que
a cortesia é um modo de dar a entender que respeitamos os outros,
e nesta medida é uma virtude fundamental. Acontece-nos
freqüentemente de ir a outros países, onde não conhecemos os
costumes de cortesia. Saúda-se com inclinação, aperto de mão,
abraço, beijo, apenas verbalmente, ou de outra maneira? Tais são
as ações em que se expressa, em determina-
276
da sociedade, que os outros são reconhecidos. Quais são estas
ações, varia de sociedade para sociedade. Quem conhece ou- tras
culturas sabe que nestas ações, como tais, não reside absolutamente
liada, .mas elas são, dentro de cada sociedade, os símbolos
convencionais para expressar uma atitude que, po r sua vez, não é
convenciona!, E “quem é capaz de julgar” (phro- nimos) na
respectiva sociedade, que sabe quando, quem e como.alguém tem de
saudar . Assim se pode entender o que nas virtudes destacadas por
Aristóteles depende dos respectivos ■costumes de uma sociedade e
o que eventualmente é uma exigência mora! atemporal. Até agora
não se mostrou que ser cortês, amável, liberal etc. são exigências
morais universais; provisoriamente importa apenas observar que a
circunstância de sua configuração, ser convencional e distinta não é
uma razão contra isto.
Ambos os aspectos agoradestacados, o de que o equilíbrio nas
diferentes virtudes tem um sentido de conteúdo que deve ser
entendido como um estar relacionado permanecendo autônomo, e
que se deve distinguir entre a atitude nao-convencional expressa e
suas configurações convencionais, não foram mencionados por
Aristóteles, mas se impõem tão logo se considere mais de perto'as
virtudes sociais como ele as'descreve. Veremos na próxima lição
que somente a partir da filosofia modema, através da orientação
pelo esquema-sujeito-objeto, surgiu um ponto de vista que permite
apreender conceitual- mente esta estrutura bipolar, e somente com
Adam Smith encontraremos um critério que ppssibiiita um
julgamento morai-universal destas atitudes.
Podem também as demais virtudes mencionadas por Aris-
tóteles ser incorporadas neste esquema? Não apenas no caso da
temperança, mas também no da '"mansidão*’ (temperança na ira) e
no de outras reações afetivas ao comportamento, assim como no
bem-estar ou não dos outros, parece decisivo nas exposições de
Aristóteles que, tanto o transbordamento pelo res-
277
pectivo sentimento ou afeto, como a insensibilidade quanto ao
afeto - o embotamento - são desaprovados. Quem, nas situações
correspondentes, não sente ira, ciúme, inveja ou prazer, não está
aberto ao mundo, ou não está aberto aos respectivos bens e males
que na maior parte das vezes estio presentes no convívio. Também
esta abertura possui ema bipolaridade, embora não, entre a pessoa
e os outros. Isto toma mais difícil identificar os extremos como tais,
e atribuir, assim, um sentido preciso ao equilíbrio. Não obstante,
estas virtudes parecem também se conformar, ainda que de um
modo não tão simples, ao esquema que resultou no caso das
virtudes especificamente sociais. Ter-se-á, todavia, de dizer que
estas virtudes, uma vez que não são inter-humanas, também
quando contêm uma referência a outros, como no caso da ira, são
auto-referidas [selbst- bezogen), de ta! modo que, quando
voltarmos à diferença entre virtudes morais e virtudes de
felicidade, poderemos antes esperar que possam ser entendidas
como virtudes de felicidade. Certamente nos falta
provisoriamente um critério para esta distinção. Aristóteles não
faz diferença alguma entre estas duas espécies de virtudes -
sociais (inter-humanas) e auto-referidas -, e podemos explicar isto
considerando que o moral em uma ética ainda ligada a uma moral
tradicionalista não precisava limitar-se ao social.
Certamente teremos de nos perguntar também, inversamente,
se as virtudes sociais não têm de ser compreendidas, tanto como
virtudes morais, quanto como virtudes de felicidade. Isto nos
deveria tomar agora incertos, também quanto ao conteúdo, com
referência à diferença aparentemente nítida entre virtude moral e
virtude de felicidade, que fora teoricamente borrada pelo ponto de
partida de Aristóteles.
Embora Aristóteles, quanto ao conteúdo, se tenha orientado
pela moral de seu tempo sem questioná-la, e a terminologia na
doutrina da virtude seja inteiramente moral, se nele se devem
poder encontrar pontos de partida para uma fundamenta
278
ção de sua doutrina da virtude e especialmente de sua orientação
pela idéia de equilíbrio, tais pontos de partida devem ser procurados
antes de tudo em sua doutrina do prazer, pois ema fundamentação
especificamente moral inexiste em Aristóteles, até mesmo
conceitualmente. Aqui seria natural supor distinções
correspondentes em seus dois tratados do prazer (Ética a Nicômaco
¥11 12-15 e X 1-5). Já indiquei que a justificação de que um modo
de viver seja melhor para nós do que outro, somente é pensável
subjetivamente e que isto apenas pode ser alcançado por uma
diferenciação dentro do modo de falar de felicidade, gozo,
satisfação e prazer.
As considerações de Aristóteles sobre o prazer ou gozo
(heãoné) são merecidamente célebres e foram recentemente
retomadas7, mas se mostram insuficientes para nossa questão. O
cerne da teoria aristotélica é o de que o prazer não é also a •que
possamos aspirar por ele mesmo, que são, muito mai s. as
respectivas ativid ades, aquilo a que aspiramos, e que o gozo é algo
que então se acrescenta, mostrando que o que fazemos d e bom
grado (geme ) decorre sem impedimento (anempodiston 1153b 11).
O que Aristóteles procura aqui antes de tudo é a demonstração de
que não pode ser construída oposição alguma entre virtude e bem-
estar. Para aquele que a pratica por ela mesma, também, e
precisamente, a atividade virtuosa é uma atividade realizada com
gozo, se não for impedida. Precisaríamos, todavia, de algo mais:
da prova de que a atividade não- virtuosa é menos prazeros a.
Aristóteles dá um passo nesta direção apenas no tratado do Livro
VII e lá também somente com referência aos prazeres corporais,
buscando explicar por que os prazeres corporais são, por um lado.
os mais procurados pela maioria e, por outro lado, por razões
subjetivas, os menos
7. Cf. G. Ryle. Dilemmas, Oxford, 1954, capítulo 4* e A. Kenny, Actton. Emoiwn and Will, Londres, 1963, capítulo 6.
279
dignos de que a eles se aspire. A razão disto (1154a8s) está em que
em tais prazeres há uma gradação e, portanto, quanto a eles, de ema
parte, o contraste com a dor é constitutivo e, de outra parte, sempre
se pode aspirar a um prazer ainda mais intenso; para o intemperante
é característico querer não o prazer corporal como tal, mas seu -
excesso (1154a20). A isto se opõem os gozos ero atividades em
que não há dor e em que, portanto, não M possibilidade de excesso
(bl5s).
É certamente uma debilidade de toda a teoria do prazer da
Antigüidade ter-se orientado por urna única palavra (hedoné), e se
poderia perguntar diante disto se há sequer sentido em empregar a
mesma palavra para quando fazemos algo de bom grado- (geme) e
para o prazer corporal. Na próxima lição tratarei de distinções
traçadas por Ericfa Fromm, que levam essencialmente mais adiante
do que a teoría de Aristóteles, Quanto ao conteúdo, a distinção
feita por Aristóteles no Livro Vil não nos pode satisfazer, porque
ela não basta em sua problemática da virtude para distinguir o
prazer corporal do gozo em atividades; precisaríamos, muito mais.
de uma indicação sobre o caráter-de-ifcprazer’.( “Liist”-Charakter)
do equilibrio em comparação com o prazer no abandonar-se aos
afetos daquele que não vive equilibradamente, e isto não apenas
com referência aos prazeres corporais, mas também quanto aos
sentimentos em todos os domínios da vida.
Aristóteles fez, todavia, tal distinção em outra passagem, e
inteiramente na mesma perspectiva que já fora igualmente decisiva
para a distinção traçada no tratado do prazer: o ser humano tem
uma consciência do tempo, e, por isso. somente pode satisfazê-lo
um bem-estar que tenha uma certa constância e que não'seja
experimentado, como o prazer corporal, no instante e pelo
contraste com a dor ou com a ausência de prazer. A característica
da momentaneidade aplica-se inteiramente também aos
sentimentos não-corporais imediatos: se nos entregamos aos
sentimentos e afetos imediatos, como tais, ex-
280
perimeníamo-nos como joguetes dos sentimentos e das cir-
cunstâncias, resultando uma oscilação e um caos de sentimentos.
Aristóteles discute esta problemática em seu tratado da
amizade, onde, em IX, 4, suscita a questão da possibilidade de ser
amigo de si mesmo.'A resposta é a de que apenas o virtuoso é
amigo de si mesmo, o ma.u não o pode ser. Aqui o critério para a
amizade é o de que se compartilhe os sentimentos do amigo no
positivo e no negativo (! 166a7s) e que se queira conviver com
aquele de quem se é amigo (1166a?). Quem é virtuoso tem uma
atitude constante (e isto toma possível também, inversamente, ser
autenticamente amigo de outros, cf.ll66b29 e VIII, 4), o que
significa que para tal indivíduo sempre o mesmo é agradável ou
desagradável (Ilóóa28i e ele quer, por isso, sempre conviver
consigo mesmo (a23). Quem, em contrapartida. e um joguete de
seus sentimentos e possui uma vida interior que se encontra em
luta (bl9), foge de si mesmo (14). í4Se, portanto, viver assim é algo
muito infeliz, tem-se de fugir à maldade com toda a força e
procurar ser bom” (b27s).
Nesía frase, Aristóteles manifesta o enlace entre moral e
felicidade que até aqui faltara. Dado que Aristóteles jamais
elaborou estruturalmente o moral como la!, este enlace permanece
certamente insatisfatório. Ter-se-á especialmente de dizer que a
referência aqui afirmada por Aristóteles diz respeito a todas as
virtudes de equilíbrio, naturalmente também àquelas em que pus
em dúvida quanto à possibilidade de serem consideradas, quanto
ao conteúdo, virtudes especificamente morais.
Na verdade, o conceito de meio-termo não ocorre neste
capítulo, e poderíamos interpretara tese deste capítulo igualmente
de um modo mais fraco, de tal forma que cada moral,
independentemente de seu conteúdo, apresentasse uma deter-
minada concepção de vida e, nesta medida, algo constante
diante das casualtdades da vida dos sentimentos. Parece, todavia,
mais adequado compreender a tese de Aristóteles de que “a virtude
é algo constante” (1156bl2), também no que diz respeito ao
conteúdo, no sentido de sua concepção de equilíbrio. Em favor
disto depõe também a passagem correspondente na República
(443d-e), em que Platão diz igualmente que o virtuoso “tomou-se
amigo” de si mesmo. Nesta passagem, tor- na-se claro que também,
em Platão se tratada harmonia consigo mesmo e do equilíbrio. Âo
tomar-se virtuoso, o homem toma-se uno consigo mesmo. Falar em í4ser amigo de si mesmo” pode parecer duvidoso, caso se considere
o ser distinto como constitutivo da amizade. Na verdade, no tratado
da amizade, Aristóteles acentua constantemente o aspecto da igual-
dade, mas pode-se abstrair desta questão, uma vez que falar em ser
amigo de sí mesmo, tanto em Platão, como em Aristóteles, é uma
metáfora para significar ser uno consigo mesmo.
Não se recusará o capítulo IX, 4 da Ética a Nicômaco como
abstruso. O fragmento correspondente em Platão representa, sem
dúvida, sistematicamente, o ponto alto da doutrina da virtude na
República.
282