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151 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 30, p. 151-165, jun. 2008 Renato M. Perissinotto VALORES, SOCIALIZAÇÃO E COMPORTAMENTO: SUGESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA DA ELITE JUDICIÁRIA Recebido em 14 de maio de 2008. Aprovado em 30 de maio de 2008. Pedro Leonardo Medeiros Rafael T. Wowk I. INTRODUÇÃO Tomar como objeto de análise científica o ato de julgar dos magistrados – neste caso particular, o dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJ-PR) – implica romper com certo senso comum que enxerga na figura do Juiz um mero “aplicador da lei”, agente passivo e in- teiramente submetido aos protocolos de conduta do mundo jurídico. Lembrar que os juízes não são autômatos a executar uma programação de forma alguma significa fazer a apologia, mais ou menos envergonhada, da liberdade do “sujeito” ante as instituições: os magistrados, como quais- quer outros agentes sociais – e isto é um pressu- posto sociológico e não uma hipótese –, não são “livres”; ou melhor, não possuem um leque de possibilidades igualmente prováveis de ação. Se é inegável que os juízes estão submetidos aos constrangimentos institucionais do poder Ju- diciário (como leis, regimentos internos, jurispru- dências etc.), e que estes influem em suas deci- sões, também não se pode ignorar que, como agentes dotados de uma determinada trajetória social, os magistrados carregam para a sua atua- ção profissional um conjunto de valores adquirido ao longo de sua formação e de sua carreira. Des- se modo, no momento em que a formalização da conduta dos operadores jurídicos mostrar-se-ia mais frágil, abrindo algumas brechas para a “in- terpretação da lei”, surgiria não um sujeito livre de determinações, mas um agente portador de cren- ças e valores que, muito provavelmente, afetari- am o sentido daquela “interpretação”. Entende- mos, portanto, que é o conjunto de valores e cren- ças – adquirido tanto nas escolas de Direito como ao longo da própria atividade profissional – que intermedeia a relação dos magistrados com os constrangimentos institucionais. Em outras pala- vras, acreditamos que a relação entre os agentes e as “regras do jogo” jamais é imediata ou direta, mas mediada por toda a trajetória anterior de tais agentes, trajetória esta que se faz necessário ana- lisar 1 . Foi essa problemática que motivou a realiza- ção, no ano de 2006, de um conjunto de entrevis- tas com uma amostra dos desembargadores do 1 Adotando-se, portanto, o pressuposto daquilo que a literatura americana sobre as decisões da Suprema Corte chama de “modelo atitudinal”: “Contra o modelo legalista, apresentamos o modelo atitudinal, que defende que a justiça toma decisões considerando os fatos à luz de seus valores e atitudes ideológicos”. (SEGAL & SPAETH, 2002, p. 110). Evidentemente, como lembram os autores, trata-se de um “modelo” que, enquanto tal, não exclui outras determinações (legais e racionais, por exemplo) das decisões judiciais. Para uma revisão da literatura americana sobre os modelos explicativos das decisões judiciais, cf. Koerner (2007). Este artigo propõe estratégias de pesquisa que contribuam para uma Sociologia das Elites Judiciárias. Para tanto, defende a necessidade de articular pesquisas que, ao mesmo tempo, identifiquem os valores professados pelos agentes jurídicos, analisem as instituições no interior das quais tais agentes são sociali- zadas e, por fim, estudem as suas decisões. Na sua primeira parte, o artigo apresenta os resultados de um questionário aplicado aos desembargadores do Tribunal de Justiça do Paraná, no ano de 2006, no que diz respeito aos seus valores jurídicos. A segunda parte faz considerações sobre a necessidade de estudar os processos de socializações exógena e endógena dos entrevistados para que se possa entender algumas das respostas analisadas no item anterior. Por fim, defende-se, a necessidade de um estudo comportamental desses agentes por meio de pesquisas quantitativas e qualitativas de suas decisões (acórdãos). O artigo não pretende produzir conclusões definitivas, dado o caráter ainda inicial de algumas de nossas pesquisas. PALAVRAS-CHAVE: elite judiciária; Tribunal de Justiça do Paraná; valores jurídicos.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 16, Nº 30: 151-165 JUN. 2008

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 30, p. 151-165, jun. 2008

Renato M. Perissinotto

VALORES, SOCIALIZAÇÃO E COMPORTAMENTO:SUGESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA DA ELITE JUDICIÁRIA

Recebido em 14 de maio de 2008.Aprovado em 30 de maio de 2008.

Pedro Leonardo Medeiros Rafael T. Wowk

I. INTRODUÇÃO

Tomar como objeto de análise científica o atode julgar dos magistrados – neste caso particular,o dos desembargadores do Tribunal de Justiça doEstado do Paraná (TJ-PR) – implica romper comcerto senso comum que enxerga na figura do Juizum mero “aplicador da lei”, agente passivo e in-teiramente submetido aos protocolos de condutado mundo jurídico. Lembrar que os juízes nãosão autômatos a executar uma programação deforma alguma significa fazer a apologia, mais oumenos envergonhada, da liberdade do “sujeito”ante as instituições: os magistrados, como quais-quer outros agentes sociais – e isto é um pressu-posto sociológico e não uma hipótese –, não são“livres”; ou melhor, não possuem um leque depossibilidades igualmente prováveis de ação.

Se é inegável que os juízes estão submetidosaos constrangimentos institucionais do poder Ju-diciário (como leis, regimentos internos, jurispru-dências etc.), e que estes influem em suas deci-sões, também não se pode ignorar que, comoagentes dotados de uma determinada trajetóriasocial, os magistrados carregam para a sua atua-ção profissional um conjunto de valores adquiridoao longo de sua formação e de sua carreira. Des-se modo, no momento em que a formalização daconduta dos operadores jurídicos mostrar-se-iamais frágil, abrindo algumas brechas para a “in-

terpretação da lei”, surgiria não um sujeito livre dedeterminações, mas um agente portador de cren-ças e valores que, muito provavelmente, afetari-am o sentido daquela “interpretação”. Entende-mos, portanto, que é o conjunto de valores e cren-ças – adquirido tanto nas escolas de Direito comoao longo da própria atividade profissional – queintermedeia a relação dos magistrados com osconstrangimentos institucionais. Em outras pala-vras, acreditamos que a relação entre os agentes eas “regras do jogo” jamais é imediata ou direta,mas mediada por toda a trajetória anterior de taisagentes, trajetória esta que se faz necessário ana-lisar1 .

Foi essa problemática que motivou a realiza-ção, no ano de 2006, de um conjunto de entrevis-tas com uma amostra dos desembargadores do

1 Adotando-se, portanto, o pressuposto daquilo que aliteratura americana sobre as decisões da Suprema Cortechama de “modelo atitudinal”: “Contra o modelo legalista,apresentamos o modelo atitudinal, que defende que a justiçatoma decisões considerando os fatos à luz de seus valorese atitudes ideológicos”. (SEGAL & SPAETH, 2002, p.110). Evidentemente, como lembram os autores, trata-sede um “modelo” que, enquanto tal, não exclui outrasdeterminações (legais e racionais, por exemplo) das decisõesjudiciais. Para uma revisão da literatura americana sobre osmodelos explicativos das decisões judiciais, cf. Koerner(2007).

Este artigo propõe estratégias de pesquisa que contribuam para uma Sociologia das Elites Judiciárias.Para tanto, defende a necessidade de articular pesquisas que, ao mesmo tempo, identifiquem os valoresprofessados pelos agentes jurídicos, analisem as instituições no interior das quais tais agentes são sociali-zadas e, por fim, estudem as suas decisões. Na sua primeira parte, o artigo apresenta os resultados de umquestionário aplicado aos desembargadores do Tribunal de Justiça do Paraná, no ano de 2006, no que dizrespeito aos seus valores jurídicos. A segunda parte faz considerações sobre a necessidade de estudar osprocessos de socializações exógena e endógena dos entrevistados para que se possa entender algumas dasrespostas analisadas no item anterior. Por fim, defende-se, a necessidade de um estudo comportamentaldesses agentes por meio de pesquisas quantitativas e qualitativas de suas decisões (acórdãos). O artigo nãopretende produzir conclusões definitivas, dado o caráter ainda inicial de algumas de nossas pesquisas.

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TJ-PR. Por meio de questionário, aplicado a 71dos 120 magistrados (não muito longe, portanto,de nosso objetivo amostral de 84desembargadores), coletamos informações sobreas seguintes variáveis: dados pessoais; origemsocial; trajetória escolar; carreira profissional; va-lores jurídicos, políticos e sociais; atividade aca-dêmica e intelectual; participação eassociativismo2. Essa pesquisa, por sua vez, in-centivou o surgimento de outros dois estudos, umsobre a natureza das decisões produzidas no pro-cesso judicante pelos entrevistados e outro sobreo processo de socialização desses agentes. Excetoa aplicação do survey a que nos referimos anteri-ormente, todas essas outras pesquisas estão ain-da em andamento.

O objetivo deste artigo, portanto, não é apre-sentar conclusões finais. Na verdade, pretende-mos utilizar algumas de nossas estratégias de pes-quisa e alguns dos dados produzidos até o pre-sente momento para defender uma proposta noque diz respeito ao estudo da elite judiciária3. Comopode-se perceber por um contato mesmo super-ficial com a literatura sociológica sobre o poderJudiciário no Brasil, há um número cada vez mai-or de estudos demográficos sobre os operadoresjurídicos, nos quais predominam a preocupaçãocom a identificação da origem social, do gênero,do nível de renda, da trajetória profissional, en-fim, dos “atributos adstritos e adquiridos”(KELLER, 1971) que caracterizam os entrevista-dos. Ao contrário, há uma ausência quase absolu-ta (salvo algumas poucas exceções) de análisesdas instituições nas quais os operadores jurídicossão socializados e não menos escassos são osestudos acerca das decisões produzidas por es-ses agentes4.

Este artigo pretende defender a indissolubilidadeentre três tipos de pesquisa sociológica nos estu-dos sobre as elites, em geral, e sobre as elites ju-diciárias, em particular. A nosso ver, é fundamen-tal, num primeiro momento, mapear os valoresdo grupo a ser analisado por meio da aplicação deum survey, tomando-se como plausível a hipótesede que as condutas são, na maioria das vezes,normativamente orientadas; em seguida, é preci-so perguntar-se onde tais valores foram adquiri-dos, com vistas a recuperar o “trabalho pedagó-gico” por meio do qual as estruturas de socializa-ção são interiorizadas pelos agentes5. Por fim,somente um estudo comportamental (no caso,decisional) permitiria demonstrar (ou não) a efi-cácia do processo de socialização, revelando-se,ao mesmo tempo, a intensidade e a freqüência comque as condutas são de fato orientadas pelos va-lores identificados na primeira etapa da investiga-ção. Infelizmente, as pesquisas que nos fornece-ram alguns dados para elaborar esse artigo nãoforam pensadas de maneira integrada. O que pre-tendemos, portanto, é tão somente sugerir comoum estudo das elites judiciárias teria muito a ga-nhar com um desenho de pesquisa que procuras-se integrar esses três tipos de abordagem (dosvalores, da socialização e do comportamento).

Nesse sentido, este artigo está dividido em trêspartes. Na primeira delas, descrevemos os valo-res jurídicos detectados pela aplicação do nossoquestionário aos desembargadores do Tribunal deJustiça do Paraná, em 2006. Em seguida, discuti-mos a necessidade de fazer-se uma sociologia dosprocessos exógenos e endógenos de socializaçãodos entrevistados, supondo-se ter o primeiro ocor-rido no interior de duas instituições escolares es-tratégicas (etapa que nomeamos como “socializa-

2 O banco de dados completo encontra-se disponível noConsórcio de Informações Sociais (CIS) da AssociaçãoNacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais(Anpocs) (cf. CASTRO et alii, 2006).3 Acreditamos, inclusive, que as sugestões de pesquisaesboçadas neste artigo podem ser aplicadas ao estudo dasmais diversas elites sociais e políticas.4 Depois do predomínio de uma sociologia jurídica feitapor profissionais do campo do direito, apareceram no Brasilalguns trabalhos pioneiros, cujo objetivo era apresentaruma descrição quantitativa rigorosa e exaustiva de algunsatributos dos membros da magistratura brasileira. Nessecaso, merecem destaque os trabalhos de Vianna et alli (1996;1997). Seguindo o mesmo tipo de abordagem, podemoscitar os trabalhos de Sadek (1995; 2006) e Junqueira, Vieira

e Fonseca (1997). Alguns outros pesquisadores adotaramuma perspectiva mais qualitativa em seus estudos, em gerallançando mão dos instrumentos analíticos da sociologia dePierre Bourdieu e preocupados em identificar os processosde socialização que contribuíram para a autonomização docampo jurídico no Brasil, como, por exemplo, Bonelli (2002)e Engelman (2001a; 2001b; 2006). Com relação às análisesde decisões judiciais, cf. Ericeira (1994), Portanova (1997)e Rosa (2004). Para uma revisão mais extensa de partedessa literatura, cf. Perissinotto (2008).5 O “trabalho pedagógico” é entendido como um modo deinculcação – implícito ou explícito – de um determinadohabitus. Enquanto tal, engloba o aprendizado pedagógicoformal, mas não se reduz a ele (cf. BOURDIEU &PASSERON, 1992, p. 57).

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ção jurídica primária”), e o segundo, ao longo desuas atividades profissionais como operadoresjurídicos, seja como magistrados, como promo-tores públicos ou advogados6. Na última parte,apresentamos o que poderia ser visto como umaproposta para o estudo das decisões produzidaspor esses agentes, com vistas a averiguar em quemedida tais decisões são afetadas (se é que são)por condicionantes jurídicos e extrajurídicos. Porfim, à guisa de conclusão, sintetizamos os pontoscentrais de nossas considerações.

II. OS VALORES JURÍDICOS DOS DESEMBAR-GADORES

A eficácia simbólica do discurso jurídico resi-de, ao menos em parte, na coerência interna desuas proposições, coerência que o diferencia, porexemplo, dos atos arbitrários e forçosamente par-ciais dos indivíduos singulares. Se, como defen-de Bourdieu (1989, p. 216), o “espírito jurídico”consiste justamente nesta postura universalizante,torna-se compreensível que a existência de siste-mas de normas jurídicas concorrentes esteja, pordefinição, vetada (ao menos dentro de uma mes-ma unidade de jurisdição). Um discurso jurídico,a fim de impor-se como tal, precisa apresentar-secomo uma dedução necessária dos textos da lei,ou seja, como conseqüência lógica de um con-junto de proposições universalmente reconheci-das.

Quem sabe seja por este fato – o de o mundojurídico possuir a lógica da universalidade comoprincípio de funcionamento – que o declínio doparadigma normativo-formalista, com o conse-qüente aumento do pluralismo nas tendências ju-rídicas, seja elencado como um dos sintomas dachamada “crise do poder Judiciário”, que nadamais seria, segundo Werneck Vianna et alli (1997,p. 12), do que a difícil adaptação desse poder daRepública à nova conjuntura nacional surgida apartir da redemocratização e da promulgação daConstituição de 1988.

Ora, é preciso, antes de mais nada, lembrarque o mundo jurídico não se constitui num blocomonolítico ou num “aparelho”, unidade de talmodo racionalizada que não deixaria qualquer es-paço a conflitos, mas num “lugar de concorrên-

cia pelo direito de dizer o direito” (BOURDIEU,1989, p. 212), lugar onde se opõe diferentes clas-ses de agentes e instituições: advogados, juízes,promotores públicos, juristas, professores, tribu-nais estaduais, federais, faculdades etc., cada umdeles animado pelo interesse específico associa-do à sua posição no campo, bem como por umavisão particular do Direito. Obviamente, a neces-sidade de manter o princípio da universalidade,com o recurso ao cânone jurídico, constitui-senum limite severo para esta concorrência entre osagentes, assim como impede que o conflito deinterpretações se transforme numa ameaça à legi-timidade ou ao reconhecimento dos textos da leie, conseqüentemente, de seus “intérpretes”7. Taloscilação entre as inovações oriundas da concor-rência entre os agentes do campo e o necessáriotrabalho de racionalização e sistematização, sem oqual o Direito perderia sua coerência interna mí-nima, parece explicar, por exemplo, a ambigüida-de que todo código de leis comporta, a despeitodo esforço dos teóricos – Kelsen, em particular –de fazer do Direito um sistema auto-suficiente e,de sua “interpretação”, uma “ciência positiva”.

A ambigüidade dos códigos, justamente o prin-cípio do “espaço de jogo” à disposição dos “intér-pretes”, pode ser vista, nessa perspectiva, comoa acomodação dos diferentes interesses e orienta-ções, não apenas das diferentes corporações jurí-dicas, mas também dos diferentes grupos de eliteem concorrência. Tal ambigüidade fica ainda maisclara, como chama a atenção Werneck Vianna etalli, no caso das constituições posteriores à IIGuerra Mundial, em que foram introduzidos prin-cípios normativos de legitimidade absoluta – comouma concepção do “justo” ou da “dignidade huma-na” – que servem como fonte obrigatória de limita-ção ao Direito Positivo, em um claro enfraqueci-mento da oposição entre este e o Direito Natural(idem, 1997, p. 24-25).

Como parte desta tendência do constituciona-lismo moderno – a de acomodar um maior núme-ro de interesses e orientações, ao preço de umaumento da ambigüidade e da incoerência – a

6 Quanto a essas duas dimensões do processo desocialização (externa e interna), cf., por exemplo, Carp eStidham (2001, p. 272-279).

7 O apego à estabilidade e à previsibilidade jurídicas, mesmopor parte daqueles que defendem uma relação, por assimdizer, mais criativa com o direito, é um dos aspectosresponsáveis pelo ritmo pianíssimo das mudanças no interiordo campo jurídico. Com relação a este ponto, cf. Bancaud(1989).

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Constituição Federal de 1988 também deu lugar aum processo de “positivação do direito natural”8,com um conseqüente aumento do “espaço de jogo”e da potencialidade discricionária da atividadejurisdicional. Este maior espaço para as estratégi-as de argumentação somado à transformação dasrelações entre os poderes da República e destescom a sociedade civil, estaria, ainda segundoWerneck Vianna et alli, no princípio de uma“desneutralização” ou “politização” do poder Ju-diciário, instado, a partir de então, a assumir umnovo papel na dinâmica social (idem, p. 27).

II.1. O que pensam os desembargadores sobre opapel do poder Judiciário

É esta preocupação com a transformação dopapel e da posição do Judiciário, bem como comseu reflexo no pensamento e na prática dos ma-gistrados brasileiros, que tem motivado as pes-quisas a respeito dos valores destes agentes, dasquais Corpo e alma da magistratura brasileira(WERNECK VIANNA et alli,1997) e Magistra-dos: uma imagem em movimento (SADEK, 2006)

constituem destaques. Uma das questões comunsa estes trabalhos é justamente a do grau de ade-são, por parte dos juízes, ao paradigma normativo-formalista ou, ao contrário, a uma orientação maisafeta às implicações de ordem social e econômicadas decisões, com referência, por vezes, aos prin-cípios gerais de “justiça social” e “dignidade hu-mana”.

No questionário aplicado aos desembargadoresdo TJ-PR, também nos preocupamos em reser-var uma parte das questões para a indagação dosvalores jurídicos destes agentes, em especial quan-to aos temas da função e da autonomia do Judici-ário na sociedade brasileira atual. Inspirados naspesquisas acima mencionadas, procuramosmapear a visão dos magistrados a respeito do Di-reito e da atividade jurídica, em especial quanto àsalternativas de uma orientação centrada na “cer-teza jurídica”, com uma estrita observância aosprecedentes jurídicos, ou, ao contrário, na “justi-ça social”, princípio abstrato impulsionador deuma atitude supostamente mais disposta aos des-vios criativos em relação à jurisprudência.

8 A Constituição federal de 1988 expandiu as disposiçõessobre o “justo”, a “dignidade humana” etc. Exemplo distosão os fundamentos da República Federativa do Brasilprevistos no art. 1º da Constituição, entre eles a cidadania,a dignidade da pessoa humana e os valores sociais dotrabalho e da livre iniciativa. Estas disposições – juntamentecom a função social da propriedade – são tidas à primeiravista como meras normas “programáticas”, mas, na verdade,são essenciais para a hermenêutica constitucional e geramamplo debate jurídico, inclusive tornando inconstitucionais– mediante declaração judicial - disposiçõesinfraconstitucionais (entre elas, as leis).

QUADRO 1 – QUAL DEVE SER O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO?

FONTE: Castro et alii (2006).

A fim de mapear os valores jurídicos dosdesembargadores, começamos por indagá-los arespeito do papel do Judiciário em face à socieda-de brasileira, dando-lhes um conjunto de alterna-tivas, já utilizadas em Corpo e alma da magistra-

tura brasileira, que vão de uma posiçãomarcadamente não-intervencionista (“o poder Ju-diciário deve limitar-se a intervir quando mobili-zado por indivíduos ou grupos em conflito emtorno de um bem juridicamente tutelado”) ao seuoposto (“o poder Judiciário deve atribuir-se umpapel ético-moral na sociedade, educando-a paraa vida pública e a cidadania”), passando por umaposição intermediária (“o poder Judiciário devepromover a realização plena do Estado de Direito,garantindo a aplicação da lei e sua correta inter-pretação”). Como em Corpo e alma, a maior fre-qüência foi registrada na posição intermediária(64,8%), enquanto a opção marcadamenteintervencionista e o seu contrário ficaram em21,1% e 14,1%, respectivamente (naquela pes-quisa, seguindo a mesma ordem, os valores fica-ram em 74,8%, 14,6% e 10,6%).

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De modo coerente com a percepção acercado papel do poder Judiciário, os desembargadoresadotam uma compreensão sobre a sua atuaçãoprofissional que nem os reduz a meros aplicadoresdos códigos (“o Desembargador, assim como todoJuiz, é um aplicador imparcial da lei e, portanto,não cabe a ele perseguir a implementação de prin-cípios éticos, morais e políticos exteriores ao di-reito, mas sim a certeza jurídica), nem os conduza abandonar a “estrita observância da lei” (“a atu-ação profissional do Desembargador deve se pau-tar pela busca da justiça social e pelo atendimentodas reivindicações de sujeitos coletivos, mesmoque para isso tenha que romper com a estrita ob-servância da lei”). Desse modo, incentivados aidentificar qual deve ser o princípio norteador desua atuação profissional, a grande maioria (78,9%)optou por uma resposta intermediária, em que seaceita a intromissão, no ato de julgar, de princípi-os éticos, morais e políticos exteriores ao direito(tais como a justiça social, a cidadania etc.), des-de que submetidos ao respeito à lei (“princípioséticos, morais e políticos exteriores ao direito, taiscomo a justiça social, a cidadania etc., devem serperseguidos pelo Desembargador no exercício desua atividade profissional desde que isso não im-plique romper com a estrita observância da lei”).As posições extremadas (o Juiz como paladino dajustiça social à revelia do direito e o Juiz comomero garantidor da certeza jurídica) receberamadesão bem menor.

A diferença fundamental entre essas tomadasde posição é, evidentemente, a idéia de “estritaobservância da lei”. Parece-nos que ela serve bemcomo um indicador do grau de adesão doDesembargador ao marco da “certeza jurídica”.Em Magistrados, uma imagem em movimento(SADEK, 2006), optou-se, ao contrário, por abor-dar a questão dos valores jurídicos sem apelar adicotomias ou a uma contraposição entre as dife-rentes posições. No capítulo de Joaquim Falcão(2006), “O múltiplo Judiciário”, presente no li-vro, há, inclusive, uma crítica às pesquisas quefazem uso de uma demarcação clara entre “certe-za jurídica” e “justiça social”, pois estas partiri-am, segundo o autor, de uma visão “irrealista” ede uma “incompreensão do processo decisório dosjuízes” (idem, p. 132-133). Pensamos, contudo,que o mérito de questões dicotômicas é justamenteo de obrigar os respondentes a se situarem entrepólos contrários, que, como tais, serão necessa-riamente “irrealistas”, no sentido em que o são,

por exemplo, os tipos ideais weberianos.

O objetivo, assim, não é extrair dos agentesuma descrição realista de suas práticas (o que sóo cientista, ao fim da pesquisa, poderá estabele-cer), mas obter respostas necessariamente extre-madas (ou mesmo caricaturais) que, em sua par-cialidade, denunciem uma certa hierarquia de va-lores ou esquemas mentais e possibilitem a cons-trução de classificações. O sentido exato das res-postas obtidas através de um questionário fecha-do, entretanto, só pode ser auferido por meio depesquisas qualitativas (etnografia, entrevista emprofundidade etc.), pesquisas cujas diretrizes se-rão dadas justamente pelas tendências denuncia-das na etapa quantitativa.

Os dados apresentados até este momento mos-tram claramente que as maiores freqüências fo-ram registradas nas alternativas que representamposições intermediárias do espectro de valoresjurídicos, com o restante das respostas dividin-do-se entre os dois pólos opostos, um caracteri-zado por termos como “certeza jurídica” e “neu-tralidade” e outro, por termos como “justiça so-cial” e “cidadania”, com uma ligeira vantagempara este último. A realização plena do Estado deDireito (N = 46) e a busca de princípios éticos,morais e políticos exteriores ao cânone jurídico,desde que sem ruptura com a estrita observân-cia da lei (N = 56), foram as opções que maisatraíram os desembargadores, sendo que 38 de-les, em uma amostra de 71, concordaram comambas.

Tais dados estão em concordância com os ob-tidos por Werneck Vianna et alli (1997, p. 258-263) e sugerem que o aumento do pluralismo noespaço das tomadas de posição teóricas a respeitodo Direito não foi capaz de desintegrar o núcleocomum ao redor do qual as visões alternativasorbitam. Embora as tomadas de posição ligadas àidéia de “justiça social”, “cidadania” e “redução dasdesigualdades” pareçam ter um poder cada vezmaior de atração sobre a magistratura, a “realiza-ção plena do Estado de Direito” e a “fiel interpreta-ção da lei” continuam balizando o espaço mental domundo jurídico9. Nesse sentido, compreende-seque a grande maioria dos desembargadores entre-

9 Apesar de a comparação ser prejudicada por conta dasdiferenças metodológicas, os dados sobre valores jurídicosapresentados por Sadek (2006, p. 47-49) também sugeremum crescimento da atenção à “justiça social” (83,8% dos

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vistados (76,1%) concordem com a proposiçãosegundo a qual “o direito positivo brasileiro é sufi-ciente para solucionar os conflitos que se apresen-tam ao TJ”. Por sua vez, é também compreensívelque, dentre os 14 respondentes que se declararaminsatisfeitos, a proporção da recusa ao paradigmada “certeza jurídica” e de defesa da “justiça soci-al”, mesmo que ao preço da “estrita observância àlei”, seja maior do que entre os satisfeitos, o quesugere uma ligação entre orientações mais afasta-das do padrão normativo-formalista e sentimentosde insatisfação quanto ao Direito em vigor, ligaçãoque poderia estar relacionada, por exemplo, a umcomportamento mais propenso aos desvios criati-vos em relação aos precedentes jurídicos.

II.2. O que pensam os desembargadores sobre aautonomia do Judiciário e da magistratura

Se o espaço das tomadas de posição teóricas arespeito da função do Direito e do poder Judiciá-rio admite alguma pluralidade de orientações – fatocompreensível desde que tratemos o mundo jurí-dico não como um “aparelho”, mas como um lu-gar de concorrência entre diferentes tipos de inte-resses e disposições jurídicas –, o mesmo não podeser dito a respeito das questões relativas à auto-nomia da magistratura. Aqui, vê-se como a con-corrência entre diferentes concepções teóricaspode encobrir um amplo consenso quanto aosaspectos práticos de regulamentação e controleda atividade profissional da corporação.

QUADRO 2 – QUAL A MELHOR FORMA DE RECRUTAR OS MEMBROS DO PODER JUDICIÁRIO?

FONTE: Castro et alii (2006).

Quando instados a responder sobre a melhorforma de recrutamento dos magistrados, a esma-gadora maioria dos desembargadores (98,6%)optou pela proposição “o Estado Democrático deDireito é melhor assegurado pelo sistema de con-curso público para ingresso na magistratura, evi-tando a intromissão das diversas formas departicularismo no exercício da justiça”, no maisamplo consenso registrado em nosso questioná-rio; apenas um Desembargador optou pela propo-sição “a existência de juízes eleitos garantiria aopoder Judiciário uma proximidade efetiva com osvalores da comunidade, traduzindo-se em aprimo-ramento da ordem democrática”.

Tal consenso em torno da instituição do con-curso público se estende provavelmente por todaa magistratura10, já que encarna com perfeição

os ideais de universalidade e imparcialidade quecaracterizam a representação social a respeito detoda burocracia. A eleição como forma de recru-tamento, ao estabelecer inevitavelmente uma rela-ção de representação (ou ao menos a suspeita dela),parece tocar num ponto de honra dos magistra-dos: a independência em relação ao jogo político.Os dados de Sadek (2006, p. 49-56) mostram cla-ramente, por exemplo, a avaliação negativa que amagistratura faz do Supremo Tribunal Federal(STF) no que se refere à independência deste emrelação ao poder Executivo; a forma atual de com-posição do STF, com a indicação sendo feita peloPresidente da República e aprovada pela maioriaabsoluta do Senado, aparece, igualmente, comoamplamente reprovada – a opção de restringir oprocesso de indicação apenas à corporação, aocontrário, é a que conta com maior aprovação11.

magistrados na ativa, segundo esta pesquisa, concordamque se deve ter “compromisso com as conseqüênciassociais” das decisões, contra 64,1% dos aposentados; nocaso dos magistrados com até 5 anos de carreira, aporcentagem sobe para 90,2%).10 Os dados de Werneck Vianna et alii (1997, p. 296) sobreo tema, embora coletados há mais de dez anos, são também

bastante expressivos: 88% dos magistrados entrevistadosconcordava em algum grau com o recrutamento por concursopúblico.11 A fim de ilustrar ainda mais este ponto de honra dosjuízes brasileiros que é a independência em relação às forçasdo campo político, basta atentar a outro dado apresentado

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É preciso lembrar ainda que a opção pela elei-ção como modo de recrutamento para a carreira,em detrimento do concurso, representaria a per-da, por parte da corporação, do monopólio sobreos instrumentos de reprodução de seu corpo, jáque, atualmente, para o nosso objeto de estudo, oprocesso seletivo é realizado pelo próprio Tribu-nal de Justiça, sendo a comissão do concurso –responsável, inclusive, pela avaliação na prova oral– formada por desembargadores e por um advo-gado. Evidentemente, o processo seletivo é tam-bém uma forma de garantir um nível mínimo decompetência técnica, assim como uma certahomogeneização que não seria possível, ou seriabem menor, por meio de eleições.

Essa valorização da autonomia da corporaçãoé claramente reforçada pelas opiniões acerca daexistência de um controle externo sobre o poderJudiciário. Indagados a respeito da opção com aqual mais concordavam em relação ao problemado controle externo sobre o poder Judiciário,57,7% dos desembargadores entrevistados de-fenderam a posição de que não deve existir con-trole externo sobre a magistratura, numa inequí-voca rejeição a quaisquer mecanismos de cons-trangimento sobre os magistrados. A opção “ocontrole externo ao poder Judiciário deve serexercido por um órgão composto por magistra-dos, membros do Ministério Público e represen-tantes da OAB [Ordem dos Advogados do Bra-sil]” recebeu o apoio de 33,8% dos entrevista-dos, contra 5,6% da opção “o controle externodeve ser exercido por um órgão composto porrepresentantes dos três poderes”; finalmente, aproposição “o controle externo deve ser exerci-do por representantes das organizações da soci-edade civil” recebeu a adesão de apenas doisdesembargadores, ou seja, de 2,8% da amostra.

Os dados mostram claramente a opção dosentrevistados por uma magistratura livre de me-canismos de controle, numa aversão que cresce àmedida que tais mecanismos afastam-se do uni-verso burocrático e estatal: um órgão compostopor agentes do campo jurídico é mais aceito, pe-los desembargadores da amostra, do que um for-mado por representantes dos demais poderes; e

ambos são preferíveis em relação a um constituí-do por elementos da sociedade civil. Deduzimosdisso que os entrevistados percebem o corpo demagistrados como capaz de arbitrar e resolver osconflitos e problemas que se lhe apresentam, semnecessidade, portanto, de recorrer a forças exter-nas ao campo jurídico ou mesmo à corporaçãodos juízes, numa afirmação inconteste do “espíri-to de corpo” deste grupo, para além das diver-gências professadas em matéria de tomadas deposição teóricas.

III. A PRODUÇÃO DAS CRENÇAS E DOS VA-LORES JURÍDICOS DOS DESEMBARGA-DORES: SOCIALIZAÇÕES EXÓGENA EENDÓGENA

III.1. Socialização exógena: as escolas de Direitoe a socialização jurídica primária dosdesembargadores

Nenhum estudo de elites estará completo senão somar, ao mapeamento dos sistemas de va-lores e dos padrões comportamentais, uma aná-lise específica sobre o processo social de pro-dução dos membros destas elites. Em outras pa-lavras, é preciso ir além da mera descrição dosatributos de um grupo (religião, orientação polí-tica, profissão, status etc.) a fim de mostrar comoestas propriedades – as quais um estudosincrônico registra – foram-lhe de fato transmi-tidas. Para isso, é necessário tomar como objetode análise os mecanismos de socialização e re-produção por meio dos quais os diferentes gru-pos transmitem suas heranças (econômicas eculturais) e dentro dos quais a família e a escoladesempenham um papel preponderante. É, por-tanto, o processo de produção social do habitusdos desembargadores que devemos enfocar senão quisermos nos limitar a um estudosubstancialista de seus atributos.

Muito embora a socialização intra corporis te-nha certamente um peso considerável na produ-ção das disposições dos desembargadores e, poreste intermédio, em seus votos nos processos,gostaríamos de chamar a atenção, num primeiromomento, para as escolas de Direito, pois as con-sideramos lugares privilegiados de observação doprocesso pelo qual não apenas os magistrados,mas também advogados, promotores e juristas sãoproduzidos. Por serem a porta de entrada ao mundojurídico, as escolas são responsáveis pelos pri-meiros contatos sistemáticos com os temas, pro-

por Sadek (2006, p. 57): 86% dos entrevistados refuta aparticipação político-partidária de magistrados, contraapenas 9% favoráveis a ela.

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blemáticas, linguagens e interesses do campo12.Será, além disso, sobre esta “socialização jurídicaprimária” que a profissionalização dentro de de-

terminada carreira irá agir, da mesma forma comoo trabalho pedagógico da escola só pode incidirsobre disposições já formadas no seio familiar.

QUADRO 3 – INSTITUIÇÕES EM QUE OS DESEMBARGADORES FORMARAM-SE

FONTE: Castro et alii (2006).NOTA: PUC-PR: Pontifícia Universidade Católica do Paraná; UEL: Universidade Estadual de Londrina; UEM: UniversidadeEstadual de Londrina; UEPG: Universidade Estadual de Ponta Grossa; UFPR: Universidade Federal do Paraná; PUC-RJ:Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

12 Em famílias com tradição jurídica, o contato com ascoisas do Direito é, certamente, mais precoce, mas mesmoassim não pode ser comparado ao processo sistemático desocialização que somente a escola é capaz de promover.Essa afirmação é ainda mais verdadeira para o nosso caso,pois, ao contrário do que apregoa o senso comum, osdesembargadores entrevistados não são, na sua grandemaioria, oriundos de famílias jurídicas. Apenas 26,1% delesforam explicitamente incentivados pela família a seguir acarreira jurídica e somente 14,1% tinham o pai atuando nocampo jurídico.

A centralidade das escolas no conjunto dosmecanismos de socialização dos desembargadoresaumenta se levarmos em conta que apenas duasinstituições (Faculdade de Direito Curitiba e UFPR)foram responsáveis pela formação de 46 dos 71entrevistados (67,6%). Nos parece perfeitamenteplausível, portanto, transformar as tendências en-contradas na etapa quantitativa da pesquisa(mapeamento das propriedades dos agentes) emdiretrizes e hipóteses a serem operacionalizadasnum estudo a respeito destas duas instituiçõescentrais do campo jurídico paranaense.

Entre outras questões, é preciso relacionar osconsensos e dissensos que encontramos entre osdesembargadores – em matéria de orientação ju-rídica, de organização da carreira, de relação coma política – ao trabalho pedagógico ao qual estesforam submetidos em suas graduações. Um estu-do desse tipo deve necessariamente levar em contanão apenas as diferenças entre as instituições, mastambém entre as diferentes épocas de ingresso nocurso, variante fundamental no caso de nossaamostra, em que bacharéis formados em 1962convivem com outros formados já na década de1980. Não há como reconstruir este trabalho pe-dagógico e este processo geral de socialização aoqual os desembargadores, então estudantes deDireito, foram submetidos, sem produzir, porexemplo, uma história comparada dos currículosou sem analisar os sistemas de avaliação, que,como sugere Bourdieu (1974, p. 207), “indicamcom alguma defasagem as questões que orienta-ram e organizaram o pensamento de uma época”,ou, ainda, sem avaliar o peso concedido a cadadisciplina ou área do Direito – Público ou Priva-do, Direito Civil ou do Trabalho, Teoria Geral do

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Estado ou Sociologia do Direito – pelas institui-ções formadoras. Todos esses aspectos sãofacetas a serem exploradas por uma história dotrabalho pedagógico13 .

Pela configuração das relações de força im-plícitas aos currículos, poderíamos ter idéia dopeso, por exemplo, da “certeza jurídica” e do

paradigma normativo-formalista ou, ao contrá-rio, da “justiça social” e de paradigmas mais aber-tos às ciências históricas e sociais. Seria preci-so, ainda, contrapor o resultado de um estudodeste tipo à percepção dos própriosdesembargadores a respeito de suas formações,como indicam os dados do quadro 4.

13 A literatura sobre o ensino jurídico nacional divide-se,basicamente, entre aquela voltada para questões político-pedagógicas (como a série “OAB, Ensino Jurídico”) e outraque se concentra numa história geral do estabelecimento edesenvolvimento dos cursos de Direito (VENÂNCIOFILHO, 1977), ou, ainda, que procura relacionar o ensinojurídico e a cultura política nacional (ADORNO, 1988).

QUADRO 4 – QUAL PRINCÍPIO A SUA GRADUAÇÃO ENFATIZOU?

FONTE: Castro et alii (2006).

Os dados do quadro não mostram diferençasignificativa na avaliação das duas escolas, masao compararmos as opiniões dosdesembargadores formados em cada uma delas,algumas tendências aparecem. Por exemplo, di-ante da proposição “a emergência de novos sujei-tos sociais vem inaugurando lugares e procedi-mentos que estão desempenhando funçõessubstitutivas às do Judiciário; a democracia ga-nha mais com a difusão de vias paralelas ao poderJudiciário do que com sua expansão”, a propor-ção de adesão entre os formados na Faculdade deDireito Curitiba (FDC) e na UFPR foi praticamen-te inversa: 36,4% entre os formados na primeira e61,5% entre os da segunda. No que diz respeitoao papel do poder Judiciário, o percentual derespondentes da FDC que defende que este devese limitar a dirimir conflitos entre os indivíduosprivados (23,8%) é o dobro dos formados pelaUFPR (11,5%) que optaram pela mesma respos-ta; também representa o dobro o percentual dosformados pela FDC (14,3%), em relação aopercentual dos formados pela UFPR (7,7%), que

concordaram fortemente com a afirmação de queo direito positivo brasileiro é suficiente para resol-ver os conflitos que se apresentam ao TJ.

Não podemos, obviamente, sobretudo em fun-ção do caráter sincrônico dos nossos dados, es-tabelecer uma relação de causalidade entre essasduas variáveis (escola de formação e orientaçãonormativa). No entanto, as “coincidências”elencadas acima sugerem certamente uma dire-triz para a pesquisa qualitativa, única capaz de res-ponder de forma satisfatória às questões que aetapa quantitativa nos interpõe.

III.2. Socialização endógena: a produção internado ethos dos desembargadores

No caso de elites profissionais, como osdesembargadores aqui estudados, soma-se aindaa necessidade de atentar à socialização intracorporis, ou seja, à profissionalização, entendidacomo incorporação de capacidades, ao mesmotempo técnicas e sociais, exigidas por determina-da carreira ou atividade. No caso da magistratura,estas exigências vão desde o domínio sobre ocânone jurídico legado pela tradição do campo –cabedal de conhecimentos que diferencia o espe-cialista do leigo – até a adequação postural e lin-güística, sem a qual não haveria suficiente distin-ção entre os juízos autorizados do magistrado eas opiniões parciais e necessariamente interessa-das das partes em confronto. Com relação a esseponto, vale atentar para o fato de que o tempo

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médio de carreira dos desembargadoresentrevistados14 é de quase 29 anos, tempo sufici-entemente longo para que ocorra, se for o caso,um processo de socialização eficiente e a forma-ção de um ethos adequado ao tipo de atividadeexigida no campo em questão.

Uma forma de tangenciar os prováveis efei-tos desse longo período de trajetória profissionalaté chegar ao TJ-PR é analisar a percepção queos magistrados de carreira têm daquelesdesembargadores oriundos do mundo exterior àmagistratura e a visão que esses mesmos magis-trados de carreira têm de si próprios.

Como se sabe, há duas formas de ingressonos Tribunais de Justiça: uma reservada aos ma-gistrados de carreira, com alternância entre oscritérios de antiguidade e merecimento, e outra,conhecida como Quinto Constitucional15, abertaaos membros do Ministério Público e aos advo-gados. Por constituir-se numa “entrada lateral” aoprincipal Tribunal da Justiça estadual, o Quintorepresenta um tema privilegiado para captar asrelações entre as diferentes corporações do mun-do jurídico. Em nosso questionário, perguntamosaos desembargadores como eles se posicionavamdiante deste mecanismo institucional.

QUADRO 5 – OPINIÃO SOBRE O QUINTO CONSTITUCIONAL

FONTE: Castro et alii (2006).

14 O tempo médio de carreira foi contado a partir do iníciodas atividades do entrevistado na magistratura, para osmagistrados de carreira, no Ministério Público e naadvocacia, para os que ingressaram pelo QuintoConstitucional, até a entrada no TJ-PR.

15 Segundo o Art. 94 da Constituição Federal, um quintodos lugares nos tribunais de Justiça e tribunais RegionaisFederais devem ser reservados aos membros do MinistérioPúblico e aos advogados. A escolha é feita pelo Governadordo Estado, que seleciona um nome dentre três previamenteselecionados pelas associações das carreiras – OAB, nocaso dos advogados, e Associação do Ministério Público(AMP), no caso dos promotores.

Pouco mais da metade dos entrevistados(53,5%) optou pela proposição “o TJ funcionariamelhor se fosse formado integralmente por ma-gistrados de carreira, pois estes estão acostuma-dos com a prática judicante desde o início de suavida profissional, sendo, portanto, melhor treina-dos para o ato de julgar”; a proposição favorávelao Quinto, “o Quinto Constitucional é importanteporque com ele os promotores e advogados tra-zem a contribuição de suas experiências profissi-onais, arejando a prática judicante dentro do TJ”,contou com a adesão de 46,5% da amostra.

Se avaliarmos apenas as respostas dos magis-trados de carreira entrevistados, veremos que aoposição ao Quinto sobe para 63,8%, enquantoentre os demais desembargadores, vindos da ad-vocacia e do Ministério Público, ela é de apenas7,7% (curiosamente, um Desembargador oriun-do do Quinto posicionou-se contra este mecanis-mo). A rejeição, demonstrada pelos magistradosde carreira, é alta se pensarmos que ela tem como

objeto não agentes oriundos de campos sociaisdiversos, mas agentes do campo jurídico – deten-tores, portanto, do título de bacharel em Direito,assim como os magistrados de carreira. Ao queparece, a participação no “espírito de corpo”constitutivo do grupo dos desembargadores exi-ge algo mais que a pertinência ou a familiaridadeem relação ao mundo jurídico: faz-se necessário,também, um processo de socialização (e de con-sagração) específico à carreira, processo que seinicia com a aprovação no concurso e que culmi-na, depois da passagem pelas diversas entrâncias,com a eleição, pelos próprios desembargadores,para o Tribunal de Justiça.

Para captar de forma mais precisa este “espí-rito de corpo”, pedimos aos entrevistados que dis-sessem quais as três características, por ordemde importância, mais distintivas dosdesembargadores. A idéia, aqui, era mapear o tipo

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de representação social que este grupo tem a res-peito de si mesmo, o que pode dizer muito, pen-

samos, sobre a relação que mantêm com o mun-do jurídico em geral.

QUADRO 6 – CARACTERÍSTICAS DEFINIDORAS DO DESEMBARGADOR, POR ORDEM DE IMPORTÂNCIA

FONTE: Castro et alii (2006).

No quadro acima, apresentamos apenas ascaracterísticas que obtiveram maior presença noconjunto de respostas a três questões que preten-diam hierarquizar as características distintivas deum Desembargador, segundo eles próprios. Po-demos observar que o adjetivo “trabalhadores”,além de ser o mais citado como primeira caracte-rística definidora dos desembargadores, é tam-bém aquele que mais aparece se somarmos osresultados das três questões (N = 36). Tal dadoparece estar de acordo com a percepção correntea respeito da sobrecarga de trabalho da magistra-tura em geral, fator apontado como parte da “cri-se do Judiciário”16.

Vale observar que, com relação a esse ponto,os desembargadores encontram-se em uma situ-ação que bem poderia ser descrita pelo conceitode “ambivalência sociológica” (MERTON,1979)17. Nela, vivenciam uma forte tensão entre,por um lado, a necessidade de “julgar com pres-

sa” e, por outro, as exigências operacionais e éti-cas do ato de julgar. Ora, julgar, por definição,exige atenção, leitura rigorosa do processo, con-sulta aos códigos, enfim, trata-se de um ato de-morado. No entanto, o aumento vertiginoso dasdemandas colocadas à Justiça obriga osdesembargadores a apressar esse processo, cons-tituindo-se essa contradição numa das mais im-portantes fontes de tensão da profissão. Esta per-cepção negativa a respeito das próprias condiçõesde trabalho, no entanto, parece reverter-se, entreos desembargadores, como vimos pelos dados aci-ma, numa avaliação positiva a respeito de si mes-mos (“trabalhadores”) e, muito provavelmente,num fator de coesão e solidariedade entre o gru-po, reforçando justamente aquilo que chamamoso “espírito de corpo”.

A característica “íntegros” aparece também emtodas as hierarquizações, sendo a segunda maiscitada na primeira e na terceira delas; o mesmoacontece com “compromissados com a justiça/imparcialidade”, muito embora em freqüênciamarcadamente menor. O adjetivo “competentes”,

16 Cf. Sadek (2006, p. 32): 48,9% dos entrevistadosavaliaram como “ruim” a agilidade do poder Judiciário.17 Com o conceito de “ambivalência sociológica” Mertondescreve a existência de uma tensão gerada pelas exigênciasfuncionais de um papel social que constrangem o ator comimposições normativas contraditórias. No caso dosdesembargadores, espera-se deles que atendam a umademanda social cada vez maior e espera-se também que ofaçam com respeito às características necessariamentemorosas do ato de julgar. A ambivalência sociológica, inscritano nível da estrutura social (i. e., dos papéis sociais e das

expectativas a eles vinculadas) pode, como lembra Merton,traduzir-se em tensão psicológica (cf. MERTON, 1979, p.20-21). As informações acerca dessa ambivalência entre osdesembargadores foram retiradas de observações diretasfeitas por pesquisadores do Núcleo de Pesquisa emSociologia Política Brasileira, entre os dias 12 de maio e 6de junho de 2005.

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por sua vez, reuniu 25,4% das respostas à per-gunta “qual a segunda característica maisdefinidora dos desembargadores?” e 12,7% emrelação à primeira característica definidora. Oúnico atributo inequivocamente negativo a apare-cer em nossas respostas foi o de “distantes/in-competentes”, embora com uma freqüência mo-desta (N = 4).

Outro dado que nos parece bastante interes-sante é a presença, logo na primeira hierarquia decaracterísticas, do grupo de adjetivos afins “só-brios, formais, equilibrados, educados e atencio-sos”, que ilustram bem aquilo que Bourdieu (1989,p. 227) chama de habitus jurídico: “as atitudes aomesmo tempo ascéticas e aristocráticas, que sãoa realização incorporada do dever de reserva, sãoconstantemente lembradas e reforçadas pelo gru-po dos pares, sempre pronto a condenar e a cen-surar os que se comprometeriam de modo dema-siado aberto com questões de dinheiro ou de polí-tica”. A postura universalizante, parte deste habitus

específico que é o do mundo jurídico, implica, aoque parece, uma distância neutralizante em rela-ção aos interesses apaixonados das partes em con-flito, distância que pode ser vista, segundo o ob-servador, de forma positiva, como “sobriedade eequilíbrio”, ou, negativamente, como“conservadorismo e distanciamento em relação àscausas sociais”, características, todas elas, pre-sentes em nossos dados.

Essa percepção que os desembargadores têmde si mesmo como trabalhadores e íntegros reve-la, porém, um viés imposto pelo amplo predomí-nio numérico, entre os entrevistados, dedesembargadores que são magistrados de carrei-ra. Como se percebe pela tabela abaixo, essa mes-ma percepção se repete quando os entrevistadossão instados a identificar a principal característi-ca de um Juiz, mas percepções bem distintas apa-recem quando se trata de revelar quais são, paraeles, os traços definidores dos promotores públi-cos e dos advogados.

QUADRO 7 – PRIMEIRA CARACTERÍSTICA DEFINIDORA DO JUIZ, DO PROMOTOR PÚBLICO E DOADVOGADO18

FONTE: Castro et alii (2006).

18 Neste caso apresentamos apenas as três característicasmais citadas como a principal característica que define umjuiz, um promotor público e um advogado. Não há, portanto,como na tabela anterior, referências à segunda e à terceiracaracterísticas mais importantes.

Como, em função da própria composição doTJ, há um predomínio numérico muito grande dedesembargadores oriundos da magistratura, é com-preensível que as características mais citadas paraqualificar um Desembargador se repitam na ca-racterização dos juízes em geral. Desse modo,também são vistos como fundamentalmente tra-balhadores, competentes e íntegros. Por sua vez,as características definidoras dos promotores e

dos advogados, na visão de um grupo no qualpredominam juízes de carreira, são bem diferen-tes. Os promotores são vistos principalmentecomo corajosos e combativos, o que descreveriaadequadamente o lugar que o Ministério Públicoocupa no campo jurídico, como instituiçãodedicada a defender o “interesse público” e a com-bater os “interesses espúrios”. Os advogados,porém, são definidos de forma totalmente contra-ditória. Quase na mesma proporção, são vistostanto como competentes quanto como incompe-tentes e despreparados, o que talvez expresse ade-quadamente o desnível na qualidade dos cursosde Direito, em função da proliferação de cursosde graduação nessa área nos últimos anos.

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De qualquer modo, vale insistir que há um cer-to padrão nessas percepções, na medida em queadjetivos distintos são aplicados a categorias pro-fissionais distintas. Nesse sentido, essas formasde classificação de si próprios (os juízes) e dosoutros (advogados e promotores) pode ser o in-dício de um ethos profissional moldado por pro-cessos de socialização intra corporis.

IV. COMO OS DESEMBARGADORES JULGAM

Um dos pontos mais delicados para as preten-sões científicas da Sociologia reside na sua capa-cidade de desenvolver procedimentos que consi-gam revelar, ao menos em alguma medida, rela-ções causais entre processos de socialização, va-lores manifestos e comportamentos observáveis.No caso específico da Sociologia da elite judiciá-ria, acreditamos que um estudo comportamental,isto é, das decisões produzidas pelos seus agen-tes, pode ser um caminho frutífero para a realiza-ção de tal objetivo. Com relação a este ponto, ain-da não temos dados que possam ser apresentadosnem sequer de forma razoavelmente sistematiza-da. No entanto, acreditamos que vale a pena apre-sentar ao leitor o desenho da pesquisa em anda-mento e as questões de trabalho que servem defio condutor para a sua realização.

Dois importantes estudos norte-americanosserviram de inspiração para essa parte de nossapesquisa, a saber, os artigos de Steffensmeier eHebert (1999) e Steffensmeier e Britt (2001).Ambos os trabalhos lançam mão de umametodologia comum e de um mesmo banco dedados. A preocupação fundamental desses auto-res é saber se há alguma correlação entre o perfildos julgadores, o perfil dos julgados e a decisão.Do ponto de vista do perfil dos decisores e doperfil dos réus, os autores trabalham com as vari-áveis “gênero” e “raça”. A questão central da pes-quisa é saber se a raça e o gênero dos juízes afe-tam as suas decisões, levando-se em conta tam-bém a raça e o gênero dos réus. Para ser maisclaro, trata-se de saber em que medida um juiznegro é mais ou menos benevolente frente a umréu negro e em que medida uma juíza é mais oumenos benevolente com criminosos que comete-ram crimes contra as mulheres. Nos dos artigos,as correlações entre essas variáveis e as decisõesexistem, mas não são significativas (sobretudo noque diz respeito à raça), o que leva os autores adefenderam a proposição de que as decisões sãocondicionadas sobretudo por razões de ordem le-

gal e institucional. Ou seja, as decisões sofreriam oimpacto muito mais da socialização interna do queda socialização externa (i. e., a trajetória do juizcomo negro ou branco; como homem ou mulher).

Para montarmos o nosso banco de dados, par-timos da análise de dois tipos de crime distintosdo ponto de vista do capital que exigiriam paraserem cometidos. Ou seja, de um lado, os crimesde furto, que praticamente dispensam a posse dequalquer capital; de outro, crimes como peculatoe corrupção, que exigem capital social, econômi-co e político para que possam ser cometidos19.Cada um desses crimes tem, como se sabe, pe-nas que variam de um mínimo a um máximo le-galmente fixado. Dentro dessa escala, a pena efe-tivamente aplicada pelo Desembargador dependede uma série de outras variáveis legais e de cir-cunstâncias que permitem caracterizar melhor oato cometido pelo réu. Portanto, não há, nessescasos, uma aplicação mecânica da lei, na qual te-ríamos, para os mesmos crimes, sempre a mes-ma decisão. Desse modo, a extensão das penasvaria, ainda que dentro de limites legalmente fixa-dos. O nosso objetivo consiste exatamente emidentificar as causas dessa variação.

Para tanto, perguntamo-nos se há alguma re-lação explicativa entre o perfil do Desembargadorresponsável pela decisão (no caso, tomamos ape-nas a decisão do relator)20, o perfil do réu, o tipode crime cometido e a pena. Para o perfil dosdesembargadores foram utilizados os dadoscoletados pelo questionário descrito na primeiraparte deste artigo, em especial as informações re-lativas à raça, sexo, idade, religião (se é ou nãopraticante), instituição em que se graduou (FDCou UFPR) e trajetória profissional (se é ou nãomagistrado de carreira). Para o perfil do réu fo-

19 O banco de dados contém 173 entradas. Cada auto(“processo”) pode dar origem a mais de uma entrada, pois,em casos de concurso de agentes, individualizamos os réus,e, em casos de concurso material (crimes diferentescometidos por ações/omissões diversas, tendo em comumapenas o agente), individualizamos os crimes. Dessasentradas, 57 são de processos de crimes que exigem capitalsocial e 116 de crime de furto.20 O que não representa nenhum problema para a pesquisa,dado o baixo número de divergência entre osdesembargadores. A decisão nos tribunais de segundo grau,como o TJ-PR, é, em regra, colegiada, feita por umDesembargador (ou Juiz substituto em segundo grau) relator,um revisor e um vogal. Em apenas oito dos 173 casos(4,6%) analisados houve divergência de votos.

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ram utilizados os dados encontrados no próprio pro-cesso, tais como raça, gênero, religião, anteceden-tes criminais, profissão, renda e escolaridade. Porfim, pretendemos fazer uma análise qualitativa dosacórdãos produzidos para os casos analisados. Acre-ditamos que se alguma relação há entre os valoresidentificados pela aplicação do questionário, os pro-cessos de socialização externos e internos e as con-dutas dos desembargadores no momento de julgar,essa relação poderá ser identificada por meio destapesquisa ainda em andamento.

V. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como dissemos no início deste artigo, o nos-so objetivo não era apresentar conclusões já queas pesquisas descritas neste texto não foram pen-sadas de maneira integrada e algumas delas se en-contram ainda em andamento. Ainda assim, acre-ditamos que os dados preliminares aqui apresen-tados ao menos autorizam algumas de nossas pro-posições, apresentadas na forma de hipóteses detrabalho.

O mais importante, entretanto, reside, a nossover, na proposta teórica que motivou a elaboraçãodeste texto. Os estudos sobre elites, em especialaqueles dedicados às elites políticas, têm sidomuito criticados por se limitarem ao mapeamentodo perfil dos integrantes dos grupos analisados,sem que se desenvolva, ao mesmo tempo, umaanálise comportamental para averiguar em quemedida os atributos (sociais, econômicos, cultu-rais e políticos) de um dado grupo afetam (se afe-tam) o seu comportamento.

A nosso ver, não há por que reduzir os estu-dos das elites aos aspectos comportamentais. Noentanto, é inegável que se as trajetórias sociaisdos indivíduos e os atributos que eles adquiremao percorrê-las têm algum significado sociológi-co, este significado deve estar ligado, em algumamedida e de algum modo, ao comportamento ado-tado por eles. Deve-se supor, do ponto de vistasociológico, que se os indivíduos de um dado gru-po são portadores do mesmo habitus, então é pro-vável que eles adotem o mesmo comportamentofrente a situações sociais semelhantes.

Acreditamos que para revelar as conexões exis-tentes entre esses aspectos é preciso lançar mãode diferentes estratégias de pesquisa. Por essarazão, defendemos que é de fundamental impor-tância conjugar as pesquisas quantitativas, permi-tidas pela aplicação de questionários fechados oupor meio do preenchimento de fichasprosopográficas, com análises qualitativas e his-tóricas. No caso específico da elite judiciária es-tudada neste artigo, pensamos que a análise quan-titativa permite mapear os valores manifestos dosdesembargadores entrevistados e, no futuro, tor-nará possível captar um padrão decisional nos seusjulgamentos. Por sua vez, as análises históricas equalitativas permitirão recuperar a história das ins-tituições nas quais esses indivíduos foram sociali-zados e produzir uma abordagem verticalizada (porexemplo, por meio da análise do discurso) dostextos que compõem os acórdãos produzidos peloTribunal de Justiça do Paraná.

Renato Monseff Perissinotto ([email protected]) é Doutor em Ciências Sociais pela UniversidadeEstadual de Campinas (Unicamp), Professor Adjunto do Departamento de Ciências Sociais da Universi-dade Federal do Paraná (UFPR) e Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq).

Pedro Leonardo Medeiros ([email protected]) é Graduando em Ciências Sociais pela Universi-dade Federal do Paraná (UFPR) e Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvi-mento Científico e Tecnológico (CNPq).

Rafael Taraszkiewicz Wowk ([email protected]) é Graduando em Ciências Sociais pela UniversidadeFederal do Paraná (UFPR) e Bolsista de Iniciação Científica do Conselho Nacional de DesenvolvimentoCientífico e Tecnológico (CNPq).

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VALUES, SOCIALIZATION AND BEHAVIOR: SUGGESTIONS FOR A SOCIOLOGY OFTHE JUDICIARY ELITE

Renato M. Perissinotto, Pedro Leonardo Medeiros, Rafael T. Wowk

This article proposes strategies for research that contributes to a Sociology of Judiciary Elites. Forthese purposes, it advocates the need to articulate research that identifies the professed values ofjuridical agents and analyzes the institutions within which these agents are socialized while going onto study their decisions. The first part of this article, we present results of a questionnaire that weapplied to Paraná State (Tribunal de Justiça do Paraná ) court judges, during the year 2006,regarding their juridical values. The second part makes some considerations on the need to studyour interviewees’ exogenous and endogenous socialization processes, in order to be able to understandsome of responses we analyzed in the previous section. Finally, we advocate the need for behavioralstudy of these agents through qualitative and quantitative study of their decisions. The article doesnot intend to offer definitive conclusions, given the still preliminary nature of some of our research.

KEYWORDS: judiciary elite; Tribunal de Justiça do Paraná; juridical values.

VALEURS, SOCIALISATION ET COMPORTEMENT: SUGGESTIONS POUR UNESOCIOLOGIE DE L’ÉLITE JUDICIAIRE

Renato M. Perissinotto, Pedro Leonardo Medeiros, Rafael T. Wowk

Cet article propose des stratégies de recherche qui puissent contribuer à une Sociologie des ÉlitesJudiciaires. Il préconise donc la nécessité d’articuler les recherches qui, en même temps, identifientles valeurs prônées par les agents juridiques, analysent les institutions dans lesquelles ces agents sontsocialisées et, finalement, étudient leurs décisions. Dans la première partie, l’article présente lesrésultats d’un questionnaire appliqué auprès des magistrats de la Cour de Justice du Paraná, en2006, portant sur leurs valeurs juridiques. La deuxième partie discute de la nécessité d’étudier lesprocessus de socialisation exogène et endogène des interrogés pour qu’on puisse comprendre certainesdes réponses analysées précédemment. Enfin, on plaide la nécessite d’une étude comportementalede ces agents par l’intermédiaire de recherches quantitatives et qualitatives sur leurs décisions(jugements) L’article n’a pas l’intention de produire des conclusions définitives, compte tenu ducaractère primaire de certaines de nos recherches.

MOTS-CLÉS: élite judiciaire; Cour de Justice du Paraná; valeurs juridiques.