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1. Introdução
O presente estudo surgiu como decorrência do envolvimento
acadêmico desta pesquisadora com a temática do fracasso escolar, desde que
iniciou a pós - graduação em Educação, em nível de Mestrado.
A dissertação de mestrado produzida (NUTTI, 1996) relatou os
resultados do estudo realizado em um centro de saúde estadual, junto aos atores
sociais envolvidos no processo de encaminhamento e avaliação de alunos
considerados portadores de dificuldades ou distúrbios de aprendizagem:
professores, pais, alunos e profissionais de saúde (psicólogo, neurologista,
fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional).
O objetivo geral do estudo foi investigar as concepções dos
profissionais de Saúde, de Educação e dos usuários desse serviço,
especificamente do serviço de Psicologia do qual a pesquisadora fazia parte,
sobre o atendimento aos alunos considerados portadores de dificuldades de
aprendizagem, assim como o levantamento de ações alternativas que
possibilitassem o favorecimento de uma maior integração entre os profissionais
das duas áreas.
Tal integração teria como uma de suas finalidades propiciar um maior
conhecimento e compreensão sobre a atuação dos profissionais de saúde em
relação aos escolares, na perspectiva de subsidiar possíveis reformulações no
processo de atendimento dessa clientela.
Além dos profissionais de saúde, familiares e alunos encaminhados,
participaram desse estudo, nove professoras das quatro primeiras séries do
Ensino Fundamental de escolas públicas estaduais.
O estudo realizado revelou que essas professoras participantes
definiam fracasso escolar como o fato do aluno não alcançar os parâmetros
necessários para a promoção de uma série para outra, não apresentar rendimento
satisfatório nas tarefas escolares, pelas reprovações sucessivas e/ou atrasos no
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desenvolvimento cognitivo. No tocante às causas do fracasso escolar, a maioria
das professoras o atribuiu a fatores centrados no aluno (problemas de saúde,
psicológicos e/ou emocionais) ou em sua família (falta de estímulo e incentivo).
A prática de encaminhamento de alunos aos serviços de saúde,
todavia, é coerente com as concepções que essas professoras possuíam acerca das
causas do fracasso escolar e dificuldades/problemas de aprendizagem, isto é,
partindo-se da visão de que as dificuldades de aprendizagem são decorrentes de
problemas individuais, é correto e, até mesmo, esperado que o aluno seja enviado
a um profissional de saúde, quando se apresenta como um potencial candidato ao
insucesso acadêmico.
A realização de encaminhamentos por parte de professores,
coordenadores e diretores de escola, de alunos com baixo rendimento acadêmico
e histórico de repetências sucessivas a serviços e profissionais de saúde, em
busca de soluções para supostas dificuldades de aprendizagem vem sendo
denominado por COLLARES & MOYSÉS (1986: 10) como a “medicalização”
do fracasso escolar, ou seja, a busca de causas e soluções médicas ao nível
organicista e individual para problemas eminentemente sociais.
Os motivos de encaminhamento de alunos especificamente ao serviço
de Psicologia, apresentados pelas professoras do estudo, sugerem que elas se
sentiam despreparadas para lidar com os problemas dos seus alunos, incertas e
inseguras diante da prática pedagógica que vinham desenvolvendo com os
mesmos.
Apesar das considerações críticas feitas acerca da atitude e ideário das
professoras participantes do estudo, é importante colocar que a pesquisadora não
compartilha da idéia de que o professor, enquanto profissional, deva ser o único
responsabilizado pelos problemas educacionais ou pelo fracasso escolar pois,
nesse fenômeno, vários fatores estão em jogo, como a organização curricular e
social da escola, os recursos materiais disponíveis, a qualidade da formação
inicial e continuada oferecida aos professores, dentre outros.
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No entanto, os resultados dessa pesquisa evidenciaram que as
professores participantes compartilhavam de uma concepção bastante arraigada
de que as causas do fracasso estariam centradas no aluno e/ou em sua família e se
mostraram despreparadas para responder às demandas de suas classes, compostas
por um número bastante reduzido de crianças com dificuldades de aprendizagem
mais graves (NUTTI, 1996).
Ao ingressar na pós - graduação em Educação, agora em nível de
doutorado, o fracasso escolar permaneceu como temática de investigação. Dessa
vez, no entanto, o foco se deslocou para a situação de professores que se
encontrariam diante de classes compostas, na sua totalidade, por alunos com
histórico de sucessivas reprovações, que tivessem que realizar tarefas
diversificadas e, ainda, compartilhar de uma visão de fracasso escolar que não
atribui apenas ao aluno a responsabilidade pelo insucesso.
Esta era, supostamente, a situação de professores participantes de um
projeto educacional, proposto em 1997, pela Secretaria de Estado da Educação de
São Paulo, intitulado Reorganização da Trajetória Escolar no Ensino
Fundamental - Classes de Aceleração (ou, simplesmente Classes de Aceleração),
contexto de investigação do presente estudo.
Partindo dos resultados da pesquisa realizada no mestrado em
Educação, do questionamento sobre a situação de professores diante de políticas
e projetos educacionais de superação do fracasso escolar e das pesquisas atuais
sobre o pensamento prático do professor elaborou-se, inicialmente, uma questão
de pesquisa que procurava compreender de que maneira se daria a tradução de
um projeto educacional de superação do fracasso escolar para a prática escolar,
sob a ótica específica do professor.
No entanto, no decorrer do desenvolvimento desse estudo e,
principalmente, a partir do contato com as professoras participantes do estudo,
compreendeu-se que seria necessária a reformulação da questão de pesquisa
formulada, de forma a incluir a visão de outros agentes educacionais
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coordenadora pedagógica, capacitadora e supervisora de ensino da Diretoria
Regional de Ensino , percebidos pelas próprias professoras como importantes
elos no processo de tradução do projeto de Aceleração para a prática docente.
Assim, a questão de pesquisa foi reelaborada, contemplando-se os
outros agentes educacionais inseridos no processo de tradução do projeto de
Aceleração para a prática docente, e passou a ter o seguinte enunciado:
- como ocorre a tradução de um projeto educacional de superação
do fracasso escolar para a prática docente, sob a ótica de professores
e especialistas educacionais inseridos nesse contexto?
Em outras palavras, o que os professores e especialistas educacionais
pensam, refletem ou percebem sobre o processo de transformação das políticas
educacionais em práticas pedagógicas concretas?
Deve-se ressaltar que o termo “tradução” é utilizado, no contexto
desta investigação, com o sentido de interpretação ou representação (POLITO,
1994).
Também é importante esclarecer que, apesar da referência específica
ao projeto Reorganização da Trajetória Escolar no Ensino Fundamental - Classes
de Aceleração, não há a intenção de se analisar ou se avaliar o projeto em si
(como o fazem os estudos de PLACCO, ANDRÉ & ALMEIDA, 1999 ou
SOUSA, 1999). O projeto Classes de Aceleração é utilizado como cenário ou
contexto desta investigação, por ter sido o último projeto educacional
implementado na rede pública de ensino cujo objetivo principal foi a regularizar
a defasagem série/idade de alunos multirrepetentes e, conseqüentemete, corrigir o
fluxo escolar.
A seguir, apresentam-se questões complementares que irão contribuir
para a investigação do problema de pesquisa:
- como os professores avaliam o projeto Classes de Aceleração?
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- na opinião dos professores, quais são os pontos positivos e
negativos do projeto Classes de Aceleração?
- como os professores avaliam a formação continuada recebida para
atuar de acordo com esse projeto?
- como os especialistas educacionais avaliam o projeto Classes de
Aceleração, enquanto mediadores de sua tradução para a prática docente?
- na opinião dos especialistas, quais são os pontos positivos e
negativos do projeto Classes de Aceleração?
- como os especialistas educacionais avaliam a formação continuada
recebida e fornecida para atuar de acordo com esse projeto?
- quais crenças fundamentam ou direcionam a atuação de
professores bem - sucedidos na tradução do projeto Classes de Aceleração?
- na opinião dos professores e especialistas educacionais, qual o
conceito de sucesso de um projeto educacional que se proponha a superar o
fracasso escolar e quais os critérios que devem ser observados na elaboração
desse projeto para que tenha sucesso na prática docente?
Esta investigação possui como objetivo geral a análise de como as
políticas ou projetos de superação do fracasso escolar estão sendo traduzidos para
a prática docente, tomando como referencial básico o pensamento prático do
professor.
Como objetivos específicos têm-se a identificação e análise de
aspectos do pensamento prático do professor que atua em situação de fracasso
escolar, assim como dos fatores que podem estar relacionados ao sucesso do
professor na tradução de políticas ou projetos educacionais de superação do
fracasso escolar para a prática pedagógica.
A fim de se justificar a realização desse estudo parte-se, inicialmente,
do fato incontestável de que o fracasso escolar é um fenômeno presente há mais
de 60 anos no cenário educacional brasileiro e que se mostra longe de ser
superado.
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Diante dessa situação, alternativas como o projeto Classes de
Aceleração vem gerando polêmica. Apesar da repercussão positiva que vêm
alcançando1, para muitos estudiosos educacionais não passam de paliativos e
disfarces para criar uma falsa impressão de resolução do fracasso escolar.
Por partirem da crença de que existem diferenças fundamentais entre
os alunos (por exemplo, a defasagem série/idade) e que é necessário nivelar tais
diferenças por meio de projetos especiais ou da criação de subsistemas dentro de
um sistema mais amplo, propostas pedagógicas como a aceleração da
aprendizagem podem ser encaradas como reflexos, ainda que sutis, da concepção
de “educação compensatória” típica dos anos 60 e 70 (OLIVEIRA, 1997).
No entanto, de acordo com os seus idealizadores, a implementação do
projeto Classes de Aceleração não significa a retomada de uma educação
compensatória ou de um ensino menos exigente, mas sim a possibilidade de um
ensino de conteúdo elevado, com atividades estimulantes e com desafios
significativos que provoque expectativas em professores, alunos e pais (SÃO
PAULO - Estado, 1997b).
As propostas de aceleração da aprendizagem, em geral, e o projeto
Reorganização da Trajetória Escolar no Ensino Fundamental: Classes de
Aceleração, em específico, são um tema atual e relevante para a realização de
pesquisas educacionais por suscitarem discussões sobre sua eficácia e pertinência
e debates sobre a possibilidade ou não de virem a ser alternativas viáveis e
efetivas para a inclusão escolar de alunos que enfrentam o estigma social do
fracasso escolar.
Quanto às repercussões e contribuições de um estudo sobre o
pensamento de professores, reporta-se, dentre outros, a ALONSO (1995) quando
afirma que, a partir do conhecimento sobre o pensamento prático do professor e
de suas posições frente ao processo ensino - aprendizagem, é possível estabelecer
1 O projeto Classes de Aceleração recebeu em dezembro de 1997 o prêmio Unicef Criança e Paz - Betinho, outorgado a projetos ou instituições que se destacam em defesa da criança (NEUBAUER, 2000).
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ações efetivas e competentes para os programas de capacitação docente, devendo
esse conhecimento ser considerado, valorizado e utilizado pelos detentores do
poder e das tomadas de decisão no campo educacional.
Acredita-se que estudos sobre a atuação docente no contexto de
políticas educacionais de melhoria da qualidade do ensino e superação do
fracasso escolar podem contribuir para a reflexão sobre como essas políticas ou
projetos educacionais estão sendo elaborados, traduzidos e colocados em prática
no cotidiano escolar, de modo a validá-los e, se necessário, reformulá-los, com
vistas a uma efetiva contribuição para a melhoria da educação pública.
Apresentação dos capítulos
De forma a orientar a leitura desse trabalho, faz-se uma breve
apresentação do conteúdo dos principais capítulos que o compõe.
O próximo capítulo é reservado para a discussão do conceito de
fracasso escolar, através de uma descrição das várias definições e teorias
explicativas sobre esse fenômeno sócio - educacional, além de uma breve
retrospectiva sobre as principais políticas e projetos educacionais da última
década que objetivaram a melhoria da qualidade do ensino, incluindo-se uma
descrição detalhada do projeto Reorganização da Trajetória Escolar no Ensino
Fundamental - Classes de Aceleração.
O terceiro capítulo apresenta o eixo teórico que fundamenta esse
estudo, a partir da revisão dos principais aspectos das correntes atuais das
pesquisas sobre a formação e atuação docente, destacando-se as tendências sobre
a formação do professor como profissional prático - reflexivo e estudos sobre o
pensamento e crenças de professores, além de uma revisão bibliográfica de
pesquisas sobre a temática em questão.
No quarto capítulo descrevem-se todos os aspectos relativos à
metodologia da pesquisa realizada: caracterização do estudo, histórico e análise
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do desenvolvimento da pesquisa, identificação dos participantes e explicitação
dos procedimentos ou instrumentos de pesquisa utilizados.
Os capítulos 5, 6 e 7 são dedicados à descrição e análise dos
resultados obtidos junto aos professores e especialistas educacionais participantes
do estudo, na ordem em que tais participantes foram entrevistados.
O oitavo capítulo apresenta os resultados obtidos através da análise
documental de questionários aplicados pela Diretoria Regional de Ensino a
alunos egressos de Classes de Aceleração, sobre a sua experiência no projeto e
dificuldades atuais.
No nono capítulo são apresentadas as conclusões do estudo e algumas
reflexões que podem trazer subsídios para a discussão acerca das políticas ou
projetos educacionais de superação do fracasso escolar e de sua tradução para a
prática docente.
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