2 Fundamentação Teórica - DBD PUC RIO · Neste capítulo, procura-se mostrar os pressupostos...
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2 Fundamentação Teórica: Neste capítulo, procura-se mostrar os pressupostos teóricos nos quais se
fundamenta a pesquisa aqui desenvolvida. Serão mostrados os conceitos
fundamentais do modelo teórico minimalista, como esse modelo pode ser
articulado com teorias de processamento lingüístico e como o problema da
aquisição do número gramatical em PB pode ser formulado na perspectiva da
criança que processa estímulos lingüísticos. Apresenta-se ainda a hipótese do
bootstrapping, articulando-a com a concepção de língua proposta pelo
Minimalismo, aqui assumida. O objetivo deste capítulo, em suma, é delinear
um quadro teórico sob cuja perspectiva os resultados dos experimentos
realizados no âmbito desta dissertação possam ser analisados e discutidos.
Busca-se igualmente a construção de uma sustentação teórica para os
pressupostos aqui assumidos.
2.1 Conceitos Básicos do Minimalismo
O Programa Minimalista (1995) é uma das mais recentes versões da
Teoria Lingüística gerativista, na vertente chomskyana. Uma característica
distintiva do Minimalismo é que este se fundamenta na idéia de que a forma
das gramáticas das línguas humanas é função das imposições advindas das
interfaces de um módulo lingüístico com os chamados sistemas de desempenho
(perceptual-articulatório e conceptual-intencional), o que faz esta proposta
teórica ser particularmente interessante para uma teoria de aquisição de
linguagem baseada em processamento do material lingüístico pela criança. A
concepção de língua proposta pelo Minimalismo é a de que as línguas humanas
são constituídas por um sistema computacional lingüístico, comum à espécie
humana, e por um léxico, no qual residiriam as especificidades das línguas. O
Minimalismo propõe a abolição dos níveis de representação Estrutura-D e
Estrutura-S, assumindo a existência apenas dos níveis de interface com os
sistemas de desempenho. Assim, há, na concepção minimalista, apenas dois
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níveis de representação: PF (de Phonetic Form, Forma Fonética) e LF (de
Logical Form, Forma Lógica), o primeiro dos quais fazendo interface com o
sistema Articulatório-Perceptual (A-P) e o segundo com o sistema Conceptual-
Intencional (C-I).
O Minimalismo concentra-se na determinação de quais seriam os
princípios universais que regem as derivações lingüísticas, definindo deste
modo as propriedades da faculdade de linguagem, isto é, do estado inicial de
aquisição da língua. Esse estado inicial consiste de um sistema computacional
lingüístico universal, e a predisposição à formação de um léxico constituído de
traços semânticos, fonológicos e formais, estes últimos interpretáveis e não-
interpretáveis, ambos acessíveis ao sistema computacional universal na
derivação de uma expressão lingüística). Chomsky propõe o Princípio de
Interpretação Plena (Full Interpretation Principle - FI), que garante que uma
derivação lingüística convergente necessariamente resulta numa expressão
lingüística acessível aos sistemas de desempenho, ou seja, que os traços do
léxico que chegam aos níveis de interpretação PF e LF devem poder ser
legíveis pelos sistemas Articulatório-Perceptual (A-P) e Conceptual-
Intencional (C-I), respectivamente. Propõe ainda condições gerais de
economia, que se aplicam tanto ao formalismo adotado quanto às implicações
do mesmo para a derivação lingüística, ou seja, o sistema lingüístico
funcionaria de forma ótima, com o menor número de operações e construtos
teóricos possível.
Devido ao fato de o modelo PM ser compatível com a idéia de que toda
a informação relevante para a aquisição da língua encontra-se visível nas
interfaces, torna-se mais viável relacionar o modelo de língua com uma teoria
procedimental de aquisição, a qual combina a especificação do estado inicial, a
determinação do que tem de ser adquirido, e a implementação deste processo
pelos sistemas que atuam no processamento lingüístico.
2.1.1 A Aquisição do Número Gramatical na Perspectiva do Processamento de Informação de Interface
20
Uma criança adquirindo o PB terá se ser capaz de extrair dos
enunciados lingüísticos à sua volta informações concernentes às propriedades
do traço formal de número. Uma teoria de aquisição, por conseguinte, tem de
caracterizar que informações seriam estas, ou seja, como elas se apresentam
para a criança que adquire essa língua, além do lugar de onde seriam extraídas
e do modo como a criança procede a esta extração. Dito de outro modo, de que
modo a criança adquirindo o PB reconheceria informação relevante para que as
propriedades do traço formal de número sejam identificadas nas interfaces? O
processamento da informação de interface é, portanto, condição indispensável
para a aquisição de uma língua. Entretanto, não se pode pensar em
processamento unicamente em termos de segmentação do input em unidades
fônicas, prosódicas ou morfológicas, mas sim em termos do que estas unidades
processadas indicam acerca das relações sintáticas que subjazem aos
enunciados ouvidos pela criança.
Assim, a tarefa inicial da criança ao adquirir uma língua poderia ser a de
identificar regularidades de sua língua (como informações morfofonológicas
expressas por morfemas de tempo, número, gênero, pessoa) nos elementos de
categorias funcionais (elementos de classe fechada cuja identificação seria
facilitada por serem estas conterem um pequeno número de elementos, com
distribuição consideravelmente fixa no fluxo da fala. Evidências experimentais
apontam para uma habilidade de a criança delimitar determinantes no fluxo da
fala, bem como perceber alterações morfofonológicas entre os elementos desta
classe (Name & Corrêa, 2002). A identificação destes padrões seria tomada
como evidência da presença de traços formais, cujas propriedades deverão ser
progressivamente identificadas. O reconhecimento destes padrões seria
responsável pela inicialização do sistema computacional disponível no estado
inicial da aquisição da língua (cf. Corrêa, 2008, no prelo).
O modo como a criança relaciona as informações sobre regularidades
no material lingüístico percebido com distinções relevantes para a operação do
sistema computacional lingüístico (ou seja, como informações pertinentes aos
traços formais da língua em aquisição) pode ser caracterizado assumindo-se a
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idéia de bootstrapping fonológico1. Esta idéia concebe a aquisição da
linguagem concentrando-se no fato de que a criança percebe contornos
prosódicos e padrões fonotáticos, fonológicos e distribucionais, no primeiro
ano de vida. Estes são vistos como pistas para a delimitação de unidades
lexicais e sintáticas, relevantes para o processamento do material lingüístico. A
identificação de padrões morfofonológicos no âmbito dessas unidades seria
relevante para a identificação de propriedades gramáticas específicas da língua
em questão (Morgan & Demuth 1996; Christophe et al. 1997; Soderström et al.
2003; Gout & Christophe, 2006). Mais especificamente, o reconhecimento das
propriedades fônicas e distribucionais, convergindo para a distinção entre
classes fechadas e abertas do léxico, permitiria o desencadeamento
(inicialização) do sistema computacional lingüístico biologicamente
especificado, o qual conferiria leitura linguisticamente informada aos padrões
perceptualmente identificados (cf. Corrêa, 2008, no prelo).
Esta leitura lingüisticamente informada dos dados processados faz com
que o material lingüístico não se apresente à criança como mera seqüência
linear de elementos do léxico, opaca no que diz respeito às manifestações das
propriedades sintáticas dos traços lexicais, mas sim como indicativas da
estrutura hierárquica subjacente, a qual reflete as operações do sistema
computacional ocorridas na derivação lingüística. Logo, o processamento de
informações de interface por parte de uma criança que adquire uma língua deve
ser decorrente do próprio modo de funcionamento do sistema computacional,
dos princípios universais que a ele se aplicam, e do próprio modo como a
informação de interface se apresenta à criança.
Neste sentido, confere-se à operação sintática de concordância um
papel central no processo de aquisição. Entende-se por concordância a
operação em que traços [+ interpretáveis] são pareados com traços [-
interpretáveis] em uma configuração de c-comando. Toma-se aqui a
concordância como instrumental à aquisição de uma língua. Inicialmente
1 Teorias acerca do bootstrapping serão apresentadas em detalhes na seção 2.6.
22
concebida como operação de checagem de traços formais (Chomsky, 1995), a
concordância passou a ser descrita em termos de valoração destes mesmos
traços (Chomsky, 1999). Seja como for, a concordância afigura-se como uma
operação crucial no algoritmo de geração de sentenças concebido no
Minimalismo. Assim, uma vez que itens do léxico estejam combinados numa
estrutura hierárquica, há o pareamento de traços interpretáveis e não-
interpretáveis, com repercussão ou não na morfologia (por meio de morfemas
flexionais). No caso de haver expressão morfológica de concordância, esta
permitiria à criança identificar que há informação gramaticalmente relevante a
ser considerada, ou seja, representada como um traço formal. Assim, se se
pressupuser uma habilidade de a criança reconhecer as marcas de concordância
presentes na interface, bem como a capacidade de processar concordância,
pode-se assumir que a criança capta a expressão morfológica do traço de
número a partir do reconhecimento e processamento de informação de
interface, sendo que a interpretação semântica dessa expressão dependerá do
processamento do DP como uma expressão referencial.
Concluindo, uma teoria de aquisição da linguagem que leve em conta o
fato de que a criança está dotada de um leque amplo de habilidades perceptuais
e analíticas que a permitem extrair do sinal acústico informações relevantes
para a aquisição de sua língua materna, e a idéia da presença de um sistema
computacional lingüístico que opera sobre representações correspondentes a
traços formais, pode abrir caminho para a formulação de hipóteses sobre a
aquisição de categorias gramaticais baseadas no processamento de material
lingüístico e na atuação do sistema computacional da língua, demonstrando
assim ser necessária a conciliação de teoria lingüística e teoria psicolingüística
na descrição do processo de aquisição da linguagem.
2.2. Caracterização Lingüística do Número Gramatical
Do exposto na seção 2.1 acima, depreende-se a idéia de número como
traço, entendendo-se por traços um conjunto de unidades representacionais
23
atômicas que especificam propriedades fonológicas, sintáticas e semânticas de
uma língua. Pode-se conceber número como um traço formal (um traço φ,
como o de gênero e o de pessoa), concepção que tem permanecido de certa
forma constante nos diversos desdobramentos da teoria lingüística, desde o
Modelo Padrão (Chomsky, 1965) até o Minimalismo.
Na esteira dos trabalhos de Pollock (1989) e de Abney (1987),
desenvolvidos no âmbito do modelo de Princípios e Parâmetros (Chomsky,
1981), alguns teóricos inauguraram uma discussão a respeito da possibilidade
de o traço de número projetar um núcleo funcional NumP na sintaxe. Dentre os
trabalhos que seguem esta nova direção citam-se Bernstein (1991), Picallo
(1991), Ritter (1993), e Carstens (2000). Como se vê, trata-se de uma discussão
acerca da possibilidade de o número gramatical projetar, na sintaxe, uma
projeção de tipo X’, ou seja, uma projeção funcional, conforme defende a
chamada functional XP hypothesis (proposta por Pollock, 1989). Argumentos
de natureza morfológica, sintática e semântica têm sido aduzidos no afã de se
justificar a presença dessa projeção funcional. Além disso, têm sido discutidas
as implicações da postulação desta categoria funcional para a formalização da
concordância no DP, considerando-se sua atuação no processo de aquisição da
linguagem (Augusto, Ferrari-Neto & Corrêa, 2005).
Assume-se aqui, neste trabalho, a idéia de que número opcional é um
traço formal associado a uma categoria funcional NumP, sendo realizado por
um traço interpretável e por seu homólogo correlato não-interpretável. Essa
assumpção acarreta uma discussão a respeito do locus da interpretabilidade.
Chomsky (1995, 1999) postulou que o traço de número é interpretável nos
nomes e não-interpretável nos elementos que concordam com o nome. Já
Magalhães (2002) e Costa & Figueiredo Silva (2006) assumem, inversamente a
Chomsky (1995, 1999), que o traço de número é interpretável no determinante,
e não-interpretável nos nomes, tendo em vista a possibilidade de omissão do
morfema de número no nome, particularmente no PB. Certas evidências
empíricas parecem, no entanto, sustentar a presença de uma categoria
funcional Num entre os componentes do DP. Dada uma projeção funcional
Num relativa a número, o traço interpretável de número se encontraria nesta.
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Em PB, Num seria adjungido a N, tal como T o é com V e, nesse caso, D, N,
Adj, V, Predicativo apresentariam traço [– interpretável] de Número. Tal
posição, a de que número é interpretável em Num, é assumida aqui. As
evidências para NumP podem ser classificadas como morfológicas e, sintáticas,
e são apresentadas a seguir.
2.2.1 Evidências Morfológicas para NumP
A principal evidência morfológica para a postulação de um núcleo
funcional NumP reside no fato de existirem línguas nas quais a marcação de
número gramatical é feita mediante o uso de um morfema livre. Dryer (1989) e
Corbett (2000) chamam a estas palavras plural words. Estes morfemas
projetariam na sintaxe núcleos funcionais responsáveis pela concordância de
número no DP. Um exemplo de língua que apresenta plural words é o Yapese
(língua da Oceania):
a – ea rea kaarroo neey
SING carro este
“este carro”
b – ea gal kaarroo neey
DUAL carro este
“estes dois carros”
c – ea pi kaarroo neey
PLUR. Carro este
“estes carros”
Johnson (1999) afirma que dados como os do Yapese sugerem que os
princípios da Gramática Universal tratam a capacidade de um traço de
concordância projetar um núcleo funcional no mínimo como uma
possibilidade, ao lado do fato de poder igualmente estar especificado na
entrada lexical de um item do léxico, sendo o seu valor determinado de outras
formas.
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Em seu estudo sobre plural words, Dryer demonstra existir uma
correlação entre a ordem de palavras e uma possível presença de NumP. A
ordem entre nome e plural words exibe uma nítida correlação com a ordem de
verbos e complementos (objetos). É conhecido que modificadores
frequentemente precedem o nome em línguas OV (com a ordem objeto-verbo)
e o sucedem em línguas VO (com a ordem verbo-objeto). Portanto, era de se
esperar que as línguas com plural words apresentassem comportamento
semelhante, ou seja, dado que elas são tipicamente modificadores de nomes,
esperava-se que elas precedessem o nome em línguas OV e o sucedessem em
línguas VO. Entretanto, o que se observa é justamente o contrário: plural
words precedem o nome em línguas VO e o sucedem em línguas OV.
Para dar conta deste fato, Dryer sugere duas soluções: uma seria não
considerar plural words termos modificadores do nome, nem como
complementos de um núcleo N; outra seria tratá-los como possíveis núcleos da
categoria DP. A primeira proposta se baseia no fato de que, conforme Dryer,
plural words e adjetivos apresentam características sintáticas diferentes,
podendo inclusive co-ocorrer nas mesmas sentenças, e deste modo não
poderiam ser tratados ambos como núcleos da categoria AP; já a segunda se
apóia na existência (apontada por Dryer) de plural words que funcionam como
artigos, como é o caso do havaiano. Nesta língua, nã representa o plural do
artigo definido singular ka/ke, como mostram os exemplos ke keiki “a criança”
e nã keiki “as crianças”. Na maioria das línguas que apresentam artigos que
também são plural words, elas estão relacionadas à indicação de classes
semânticas tais como definitude, referencialidade, especificidade, animacidade,
etc.
Além disso, devido ao fato de algumas plural words possuírem
propriedades semelhantes aos artigos, os quais funcionam como núcleo da
categoria DP, é lícito supor que elas também possam se situar como núcleos de
uma categoria funcional, provavelmente Num, nos casos em que elas
constituam uma classe distinta dos artigos.
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Assumindo-se que plural words de fato projetam um núcleo funcional,
e estendendo esta proposta para o PB, tem-se que os numerais se afiguram
como os mais prováveis candidatos a ocupar esta posição sintática. De fato,
esta proposta parece interessante, pois confere um estatuto diferenciado aos
numerais, em face aos adjetivos e outros determinantes, com os quais podem
co-ocorrer em PB. Mas a questão que surge da aplicação direta de tal hipótese
ao PB, ou até a outras línguas que marcam o número gramatical através de um
morfema flexional é: também este morfema flexional projetaria um núcleo
funcional? O simples fato de existirem morfemas de número livres em muitas
línguas do mundo não seria suficiente para postular a existência de uma
projeção funcional relativa a número em todas as línguas conhecidas. É
preciso, portanto, procurar evidências mais universais para a proposta de
NumP.
Sendo assim, estas evidências passaram a ser buscadas na sintaxe,
procurando-se apontar compatibilidades e semelhanças entre o domínio verbal
IP e o domínio nominal DP (cf. Bernstein, 1991). O foco desta argumentação
reside no fato de que, se as flexões relativas ao núcleo verbal se projetam na
sintaxe, também assim o fariam as flexões concernentes ao núcleo nominal.
Daí postular-se a existência de uma operação de movimento de um núcleo
lexical nominal para esta posição na qual ele receberia a flexão correspondente.
Esta posição seria Num. A tarefa agora é, então, evidenciar movimento interno
no DP para uma posição associada à flexão nominal. Os trabalhos discutidos a
seguir apresentam algumas destas propostas.
2.2.2. Evidências Sintáticas para NumP Os estudos que buscam evidências sintáticas a favor de NumP
concentram-se na análise da manifestação de gênero e número no âmbito do
DP, mais do que tratar da formalização do mecanismo de concordância no DP.
Questões relativas à ordem também têm levado os estudos a considerarem uma
projeção intermediária entre NP e DP, sugerindo que essa projeção possa ser
NumP. Essa discussão é levantada em relação à ordem nome/adjetivo e
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verbo/advérbio, com a posição do adjetivo em relação ao nome, no nível do
DP, sendo considerada da mesma forma que a posição do advérbio face ao
verbo. Pollock (1989), comparando o inglês e o francês, propôs que a ordem
básica seria advérbio e verbo e a ordem exibida pelo francês (verbo/advérbio)
seria resultante do movimento do verbo para uma projeção funcional mais alta
(TP ou AgrP). Aplicando esse raciocínio ao DP, tem-se que as línguas
românicas tendem a apresentar a ordem verbo/advérbio, bem como a ordem
nome/adjetivo. Defendendo-se que a ordem básica (Cinque, 1994) seria
adjetivo e nome (conforme a ordem predominante nas línguas germânicas),
chega-se à conclusão, em paralelo ao defendido para o IP, de que a ordem
nome/adjetivo, encontrada nas línguas românicas, seria resultado de
movimento do nome para uma projeção funcional entre DP e NP.
Johnson (1999) mostra alguns casos de movimento do nome
internamente ao DP, os quais aconteceriam de modo análogo ao movimento
dos verbos em IP. Em outras palavras, o movimento que ocorre no DP
posiciona os nomes em um núcleo funcional relacionado à morfologia
flexional, da mesma forma que os verbos se movem para núcleos flexionais.
Com isso, se em IP, segundo Pollock (89), há os núcleos T e AGR,
correspondentes às flexões verbais, em DP haveria, para Johnson e uma série
de autores (Bernstein, 1991; Picallo, 1991; Ritter, 1993) os núcleos Num e
Gen, associados, respectivamente, às flexões de número e de gênero. Ao
sugerir que a posição de pouso do nome pode ser um núcleo funcional
concernente à morfologia de número gramatical, Johnson (1999) escapa ao
problema de relacionar movimento para um núcleo funcional flexional apenas
para dar conta da ordem aparente de palavras, passando a relacioná-lo com os
mecanismos de flexão nominal observados no âmbito do DP. Assim, trabalhos
como o de Bernstein (1991, com dados do francês e do valão) Picallo (1991,
com dados do catalão), Ritter (1993, com dados do hebraico) e Cerqueira
(1996, com dados do PB) se concentram na análise da manifestação de gênero
e número no âmbito do DP.
2.2.3 Evidências Semânticas para NumP
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No que tange às motivações semânticas concernentes a número,
algumas considerações podem ser feitas, juntando-se assim mais justificativas
em favor da proposta de um núcleo funcional NumP. Em um trabalho sobre o
alemão, Sauerland (2003) afirma que a semântica do número é largamente
influenciada pela distribuição de marcas morfológicas explícitas de número.
Bennett (1974) foi um dos primeiros a assumir que a marca de plural nos
nomes deveria ser de alguma maneira interpretável, enquanto esse traço no
verbo seria não-interpretável, um puro reflexo de concordância sintática com o
sujeito. Sauerland observa que, no alemão, a marca morfológica explícita de
plural aparece também no determinante, o que indica que haveria outras opções
a considerar em relação ao local de interpretabilidade semântica desse traço.
Sua proposta, no entanto, é de que o número nuclearia sua própria projeção,
localizada acima do DP, sendo que os traços de número seriam semanticamente
interpretados aí unicamente. A possibilidade de uma projeção relacionada ao
número semântico acima de DP se mostra relevante para dar conta de questões
de concordância sujeito/verbo com DPs coordenados, conforme ilustrado por
Sauerland (φP é a projeção de número):
(7)
Apontando para relações sintáticas e semânticas, Vangsnes (2001)
menciona que já Abney (1987) propõe uma projeção QP (Quantifier Phrase)
entre DP e NP. A distinção, no entanto, entre quantificadores existenciais e
universais levou à proposta de que os últimos estariam abrigados sob uma
projeção acima de DP (Shlonsky, 1991; Giusti, 1991). Vangsnes sugere que a
afinidade entre quantificadores existenciais e os numerais justificaria uma
φP and φP
φ P
φ andP
φ DP φ DP
[Sg] Kai [Sg] Lina
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identificação entre esse QP mais baixo e a projeção NumP, sugerida por Ritter
(1991), em associação à morfologia de número. Para Vangsnes, a presença de
NumP está relacionada à cardinalidade/contagem (countability), distinguindo
entre leituras massivas e contáveis do nome a que se associa. Vangsnes deriva
as propriedades referenciais de um DP a partir da presença de categorias
funcionais no domínio nominal. As categorias substantivas/lexicais contribuem
a intensão (sentido) do termo, enquanto as categorias funcionais fornecem uma
âncora extensional para o termo, isto é, a referência. A operação desempenhada
por número remete à definição do tipo de conjunto (átomos ou pluralidades)
que está sendo tomado.
Outro argumento que pode favorecer a proposta de uma categoria
independente dedicada a número é de natureza formal e diz respeito à
arquitetura defendida por Chomsky (1995 e subseqüentes) para caracterizar o
sistema computacional. O Minimalismo é parcimonioso em relação à presença
de projeções funcionais. Estas só se justificam se possuem importe semântico.
Sendo assim, a presença de NumP, em paralelo a TP, se sustenta uma vez que a
noção de número constitui um traço semanticamente interpretável, assim como
a presença da noção de tempo (interpretável) justifica T. Ainda, em relação à
arquitetura do sistema computacional e suas relações com as interfaces
lingüísticas, seria interessante verificar em que medida não se pode relacionar
o caráter intrínseco ou opcional dos traços à possibilidade de projeções
independentes. Os traços de caráter intrínseco estariam associados a itens
lexicais, fazendo parte da sua entrada lexical juntamente com traços de
natureza semântica ou fonológica, enquanto os traços de caráter opcional
fariam parte do léxico da língua em questão, mas não estariam diretamente
associados a itens específicos, sendo buscados no momento de formar a
Numeração, constituindo informação sintática independente que nuclearia uma
projeção independente. No caso de número, novamente, a semelhança com
Tempo se apresenta. Nesse sentido, traços formais com importe semântico
pertinente à referência constituiriam núcleos que projetariam categorias
funcionais independentes. Essa propriedade teria a vantagem de facilitar a
incorporação de operações computacionais em modelos de processamento (cf.
30
Corrêa & Augusto, 2005), o que é relevante para uma teoria de língua que se
apresenta como cognitiva.
Diante do exposto até aqui, crê-se que é possível sustentar a idéia de
que número e gênero, quando traços opcionais, podem ser tratados como
projeções funcionais, num DP estruturado de tal modo que Gen ocuparia uma
posição mais baixa que Num. A adoção deste ponto de vista traz implicações
para a descrição da aquisição do número em PB, bem como para a atuação do
mecanismo de concordância no DP. Essas questões serão discutidas nos itens a
seguir.
2.3 A Concordância no Programa Minimalista
A maneira como os mecanismos de concordância responsáveis pela
manifestação morfofonológica concernente a número foram concebidos
apresentou mudanças acentuadas no curso do desenvolvimento da teoria
gerativa. Da concepção proposta pelo modelo padrão (Chomsky, 1965) até as
formulações mais recentes constantes no Programa Minimalista (Chomsky,
1995, 1999), passando pelo modelo de Princípios e Parâmetros (1981), podem
ser apontadas alterações consideráveis. Isto abrange tanto a concordância
manifesta no IP quanto a do DP.
No modelo de checagem (Chomsky, 1995), tanto o traço interpretável
quanto o traço não-interpretável entram na Numeração2 com seu valor
definido. A concordância irá parear os elementos de mesma dimensão ou tipo
de traço (numa configuração local de c-comando) e de mesmo valor e checar e
eliminar o traço não-interpretável, pois ele não poderia ser lido na interface
semântica. Nesta concepção, a checagem se dá entre núcleos e seus
especificadores. Para checar um traço [- interpretável] seu, um elemento de
categoria funcional atrai o núcleo de uma categoria lexical no seu domínio. O
núcleo se move para a posição Spec (Specifier, especificador) da categoria
2 Por Numeração entenda-se o conjunto dos itens lexicais selecionados do léxico (a partir da operação Select) para constituir a derivação de uma sentença.
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funcional, checando seu(s) traço(s) [+ interpretável] com o(s) traço(s) daquela
categoria, que será(ão) apagado(s). Esse apagamento seria motivado, de acordo
com o Programa Minimalista, pelo Princípio da Interpretação Plena, o qual
exigiria a eliminação de traços não-interpretáveis nos níveis de interface da
língua. Desta maneira, traços [- interpretável] de categorias funcionais seriam
pareados com os traços [+ interpretável] de categorias lexicais e atraídos,
provocando um movimento sintático. Após este processo de concordância
haveria a eliminação de traços [-interpretável]. Vê-se, portanto, que traços [-
interpretável] precisam ser checados e eliminados, no curso da derivação.
Em versões mais recentes do Minimalismo, a concordância é concebida
como uma operação de valoração de traços (operação Agree – Chomsky,
1999). Nesta versão do Programa Minimalista, existem traços com valor e
traços sem valor pré-especificado. Um elemento com traços [- interpretável] é
denominado sonda (probe). Traços [- interpretável] entram na derivação sem
valor; por isso, a sonda busca, no seu domínio, um elemento com traço de
dimensão idêntica - esse elemento é chamado de alvo (goal). Quando este
elemento é encontrado, ocorre um pareamento entre a sonda e o alvo, e a
operação Agree se aplica se e somente se três condições estiverem satisfeitas:
se sonda e alvo estão apropriadamente relacionados (com o alvo na posição de
complemento da sonda); se sonda e alvo forem φ−completos (possuindo ambos
um conjunto completo de traços-φ); e se o alvo estiver ativo para valoração (o
que equivale a dizer que ele tem um traço ainda não valorado) (cf. Magalhães,
2002). O esquema abaixo ilustra o funcionamento do mecanismo: TP
Spec T’
[traços-φ -int] T VP
Spec V’
[traços-φ +int] eles
[Caso não valorado] V XP
choram
32
A sonda T, que possui traços-φ não interpretáveis, busca em seu
domínio um alvo com traços-φ interpretáveis com que possa valorar seus
traços. Este alvo é o DP eles, que está na posição de SpecVP e que possui
traços-φ interpretáveis e um traço de Caso que o torna visível para operações
de concordância. Ao encontrar o alvo, há a aplicação de Agree, e a sonda T
concorda com o alvo, ou seja, o elemento em SpecVP. T, então, valora seus
traços-φ não interpretáveis, ao mesmo tempo em que valora o traço de Caso do
alvo como nominativo, processo que elimina os traços-φ não-interpretáveis da
sonda. Após a aplicação de Agree, os traços não-interpretáveis e o Caso com
seus valores já determinados são removidos da derivação para que esta possa
convergir em LF, e o objeto sintático resultante é enviado para a fonologia.
Pode-se, a partir daí, admitir que os traços recebem um valor, obtendo
expressão morfofonológica não necessariamente somente após Spell-out,
alternativa afim com os modelos de Chomsky (1995, 1999) e com modelos que
vêm sendo propostos no âmbito da Morfologia Distribuída (Halle & Marantz,
1993; Embick & Noyer, 2001; Harley & Noyer, 1999), os quais tratam de
número em termos de um morfema abstrato estocado no léxico; ou assumir um
mecanismo de “montagem” de itens, o qual faria a adjunção do morfema de
número ao item lexical, antes de sua inserção.
As concepções para a operação de concordância propostos por
Chomsky (1995, 1999) tratam basicamente de concordância no domínio verbal.
Para a concordância entre Determinantes e Nome, foi proposta uma outra
operação, a qual Chomsky (1999), em nota, denomina Concord, diferençando-
a da concordância com movimento de traços, chamada de Agreement.
Magalhães (2003), aduz uma série de argumentos em favor da idéia de que não
seria preciso postular um outro mecanismo de concordância para dar conta da
operação de valoração de traços no âmbito do DP. Uma operação tipo
Agreement, a ser discutida em um tópico a seguir, ocorreria igualmente entre os
elementos do DP, sendo de suma importância para este trabalho, já que é neste
núcleo sintático que se processa a manifestação da concordância de número em
PB.
33
2.3.1 A Concordância no DP
Os primeiros trabalhos a estudarem a concordância nominal (aquela que
se manifesta entre os elementos que formam o DP), no contexto de P&P,
passou-se a buscava compatibilidades e semelhanças entre o domínio verbal IP
e o domínio nominal DP (cf. Bernstein, 1991). A estrutura do DP assumida por
estes trabalhos pressupunha a existência de núcleos sintáticos responsáveis pela
atribuição de valores de traços de gênero e número dentro do DP. Estes núcleos
seriam projeções dos traços de gênero e número, constituindo assim as
categorias funcionais GenP e NumP, propostas a fim de dar conta de questões
de ordem e movimento. A concordância como uma operação sintática que
transcorre durante uma derivação passou a ser concebida no contexto do PM,
visto que anteriormente as análises concentravam em caracterizar o
posicionamento de núcleo funcionais. As propostas surgidas no âmbito do
Minimalismo conceberam a concordância ou como operação de checagem ou
como operação de valoração, sem postularem categorias do tipo NumP, à
exceção do trabalho de Carstens (2000), o qual propõe uma categoria funcional
NumP e uma projeção intermediária Num, situadas entre NP e DP. D possuiria
traços de pessoa [+interpretável] e traços de número e de gênero [-
interpretável]. Num apresentaria traço de número [+interpretável] e traço de
gênero [-interpretável]. É justamente a diferença no valor do traço de gênero de
D que provocaria a elevação de N, primeiro para Num, onde teria seus traços
checados, e depois para D:
DP
D NumP [α pessoa] Num NP [β número] N XP [γ gênero]
34
A proposta de Magalhães (2003) assume que, basicamente, a
concordância entre os elementos do DP ocorre em etapas distintas.
Primeiramente, acontece a valoração dos traços-φ dos elementos concordantes,
e, em um segundo momento, todo o DP é valorado para Caso por uma sonda (T
ou v). O esquema a seguir ilustra o modelo de Magalhães:
DP
Spec D’
(sonda) D NP
As [+N/-G]
Spec N’
(alvo) N XP
Casas [-N/+G]
[-Caso]
A sonda D possui traço não-interpretável de gênero, o qual precisa ser
valorado, e busca um alvo com traço interpretável de gênero para que esta
valoração ocorra. O alvo N possui, por seu turno, traço interpretável de gênero
e, por isso, pode valorar o traço não-interpretável de D. Quanto ao traço de
número, D, que possui traço interpretável de número, valora o traço não-
interpretável de número de N no mesmo instante em que tem o seu traço de
gênero valorado. Observe que N mantém ainda um traço de Caso não valorado,
o que torna o DP ativo para uma nova relação de concordância com T ou v.
A proposta de Magalhães, se, por um lado, mostra que é possível pensar
a concordância no DP em termos semelhantes à concordância no IP, sem a
necessidade de se postular uma operação tipo Concord, por outro, levanta uma
instigante questão acerca do locus onde o traço de número seria interpretável.
Contrariamente a Chomsky (1995), que assume que o traço de número é
somente interpretável no nome, e que para outros itens esse traço é não-
interpretável, Magalhães postula que o traço de número é não-interpretável em
N e interpretável em D, seguindo um caminho aberto anteriormente por Abney
35
(1987), Olsen (1989) e Longobardi (1994). Segundo ela, tal visão poderia
lançar alguma luz em manifestações não-padrão de concordância em PB, tanto
nominal quanto verbal, como mostram os exemplos a seguir (citados pela
autora):
Os menino Nós vai.
Nos dois exemplos, o traço de número só se manifesta no argumento;
no momento em que se perde a redundância da realização da flexão nos
sintagmas, esta só se realiza no item na qual é interpretável.
Entretanto, dados empíricos do inglês fornecem contra-evidências a esta
proposta. Em inglês, a manifestação padrão de concordância é algo diversa do
PB, com o morfema de número aparecendo somente em N, onde, de acordo
com Chomsky, o traço de número seria interpretável:
The boys The houses
A existência de exemplos como os acima ilustrados dá uma idéia da
discussão que envolve o lugar da interpretabilidade do traço de número. A
proposta aqui assumida, entretanto, tendo em vista os argumentos para Num
apontados em 2.2.2., é a de que o traço de número é interpretável na categoria
funcional NumP. Tal proposta faz com que o traço de número passe a ser não-
interpretável tanto em D quanto em N, sendo a interpretação semântica de um
DP marcado para número garantida pela presença de NumP. O fato de o afixo
flexional de número não aparecer em todos os elementos lexicais do DP
(caracterizando desta forma variantes dialetais do PB) não se deve, por
conseguinte, a fatores ligados ao local da interpretabilidade do traço de
número, nem mesmo a esta interpretabilidade em si mesma – a concordância
ocorre mesmo que seus reflexos morfofonológicos não se façam visíveis na
interface fonética – mas sim devido a outros fatores, os quais discutem-se a
seguir.
36
Uma primeira proposta seria baseada na caracterização do morfema de
número feita por Embick & Noyer (2001), discutida e aplicada ao PB por Costa
& Figueiredo Silva (2006), segundo a qual o morfema de número é do tipo
singleton em PB, contrariamente ao PE, língua em que o morfema de número é
do tipo dissociated. Um morfema é do tipo dissociated quando não figura na
sintaxe propriamente dita, sendo inserido após spell-out pelo componente
morfológico, indicando a estrutura sintática apenas indiretamente. Já um
morfema é do tipo singleton quando se adjunge apenas ao elemento que
receber a interpretação semântica concernente (o que permite a formulação de
mais uma justificativa em favor da idéia, aqui defendida, de que o local de
interpretabilidade do traço de número é em Num). Segundo Costa &
Figueiredo-Silva (2006) tal divisão entre tipos de morfema explicaria as
diferenças observadas nos padrões de concordância interna ao DP verificados
quando do cotejo entre o PE e o PB, no tocante à concordância nominal, uma
vez que, em PE, o morfema de plural seria do tipo dissociated, ao inverso do
PB, língua em que o morfema de número é do tipo singleton (para uma
discussão contrastiva entre a concordância no DP em PE e em PB do ponto de
vista da aquisição da linguagem, ver Castro & Ferrari-Neto, 2006).
Uma segunda hipótese para a variação observada nos padrões de
concordância do PE e do PB seria a de que tal variação é devida ao
enfraquecimento do paradigma morfológico da flexão nominal de número, em
virtude do caráter foneticamente precário do morfema /-s/, precariedade já
manifesta desde a evolução do latim para o português, como demonstram
estudos sobre a evolução da morfologia de plural a partir da antiga língua latina
até o estádio atual do português (cf. Coutinho, 1963; Nunes, 1963), os quais
apontam que o português sempre tendeu para a diácope (supressão de
elementos fônicos em posição final de palavra). Guy (1981) em estudos de
cunho variacionista, complementa esta tendência, ao afirmar que a perda da
marca de plural em PB deve-se ao fato de o PB ter prevalência de sílabas CV
(consoante + vogal) e, por isso, segmentos consonantais finais, como –r e –s,
tendem a ser apagados. Ainda assim, é possível correlacionar esta evolução
com a idéia de parâmetro, se se pensar que, em PB, a tendência ao apagamento
de segmentos fônicos finais foi intensificada pelo processo de formação do PB,
37
diacronicamente em contato com línguas variadas, o que levou a constituição
de um sistema instável, em que a variação com que o input se apresenta pode
levar à fixação de diferentes valores de parâmetros, acarretando assim mudança
lingüística diacrônica (cf. Lightfoot, 1991). Tal assertiva pode ser evidenciada
quando da comparação entre os resultados de experimentos sobre
processamento da concordância de número na aquisição efetuados com
crianças lusitanas e brasileiras, nos quais as primeiras obtiveram resultados
significativamente mais consistentes de que as segundas (Castro & Ferrari-
Neto, 2006).
2.3.2 A Concordância no DP em PB
Com o que foi apresentado até aqui, acredita-se ser possível propor a
seguinte estrutura para o DP em PB:
DP
Spec D’
D NumP
Spec Num’
Num NP
Spec N’
N XP
No tocante à concordância, este trabalho assume, semelhantemente à
Magalhães (2003), que Agree tanto se aplica ao IP quanto ao DP, sem a
necessidade de se postular uma operação de tipo Concord, diferindo da
proposta anterior apenas pelo fato de considerar o traço de número
interpretável em Num, e não em D. Esta categoria conteria ainda um traço de
gênero não-interpretável, o que justificaria, em PB, a possibilidade de alguns
38
numerais apresentarem flexão de número (como em duas portas, por exemplo).
D teria somente traços não-interpretáveis de gênero e de número, e N teria
traço interpretável de gênero e não-interpretável de número. A derivação de um
DP como As garotas se daria da seguinte forma: DP
Spec D’
D NumP
As [-N/-G]
(2) Spec Num’
Valora –N de D Num [+N/-G] NP
(1) Spec N’
N XP Valora –N de N
e
Valora –G de D garotas [-N/+G] Valora –G de Num
Inicialmente, o radical garot- é retirado da Numeração e inserido na
derivação. Garot- tem traços [-interpretável] de número e [+interpretável] de
gênero. Num, então, é inserido na derivação e, como possui traços
[+interpretável] de número e [-interpretável] de gênero, pode valorar o traço
não-interpretável de N, ao mesmo tempo em que tem o seu traço não-
interpretável de gênero valorado. D, por seu turno, é inserido na derivação. D
possui traços [-interpretável] de gênero e de número, e passa a atuar como uma
sonda, buscando em seu domínio um alvo com traços interpretáveis que possa
valorar seus traços não-interpretáveis. Este requisito é parcialmente preenchido
por Num, que, por possuir traço interpretável de número, pode valorar este
traço de D, contudo, não pode fazer o mesmo com relação ao traço não-
interpretável de gênero de D. A sonda, então, continua a sua busca até N, onde
finalmente pode valorar seu traço de gênero3.
3 A análise ora apresentada não leva em conta uma projeção GenP por não estar nos limites a que esta tese propõe, ainda que a postulação dessa projeção seja teoricamente viável.
39
Uma vez que os traços estejam devidamente valorados, o objeto
sintático resultante da derivação pode ser enviado ao componente morfológico,
para que sejam inseridos os morfemas correspondentes. É preciso, neste ponto,
interpretar o sentido de valoração não apenas como uma operação sintática
indicativa de relações estabelecidas por elementos em uma estrutura frasal, mas
também como sendo uma instrução para que o componente morfológico insira
elementos mórficos do tipo especificado e no lugar indicado, tornando visíveis,
assim, as operações derivacionais processadas. Sendo o PE uma língua em que
o morfema de número é dissociated, espera-se que a marca de plural apareça
em todos os elementos que apresentem traços correspondentes valorados; em
PB; língua em que o mesmo morfema é singleton, prediz-se que esta marca só
apareça adjungida nos elementos em que é interpretável. No caso de Num
foneticamente nulo (não lexicalmente preenchido), a marca aparece em D ou
em N. Tal proposta poderia explicar, em termos gerais, a derivação de
sentenças como As garota, típica de certas variantes do PB, ou The houses,
ilustrativa da concordância padrão em inglês. O processo descrito acima é
igualmente aplicável a DP’s que possuam uma categoria lexical AP dentre os
seus componentes, a qual teria traços não-interpretáveis de gênero e de
número, à semelhança de D. Assumindo-se a noção, tradicional em teoria
lingüística gerativa, de que AP´s são elementos adjungidos ao nível
intermediário N´, tem-se o esquema abaixo, o qual ilustra o mecanismo de
concordância para um DP como As belas garotas:
DP
Spec D’
D [-N/-G] NumP
As
Spec Num’
(4)
Num [+N/-G] NP
Spec N’
(2)
40
AP [-N/-G] N’
(1) belas
(3) N [-N/+G] XP
(5) garotas
Em (1), a sonda A (núcleo de AP) busca em seu domínio um alvo com
o qual possa valorar os seus traços de gênero e de número. Ao encontrar N, tem
o seu traço de gênero valorado, mas não o de número. Quando Num é inserido
na derivação, ele valora o traço de número de A (2) e segue a busca até N, com
o qual valora o seu traço de número de N, ao mesmo tempo que tem o seu traço
de gênero valorado por N (3). D é então inserido, e parte até Num para valorar
o seu traço de número (4), indo depois até N para ter o seu traço de gênero
valorado (5).
Em línguas como o inglês, a posição canônica para AP parece ser a pré-
nominal. Já para línguas românicas, como o francês e o PB, ambas as posições
(pré e pós-nominal) parecem estar disponíveis. Assim, para o caso de DP’s que
contenham AP em posição pós-nominal, é necessário formalizar a derivação de
modo a permitir a ordem N-AP. Tradicionalmente, tem-se assumido, neste
ponto, a existência de uma operação de movimento de N para uma categoria
acima dele. Em termos minimalistas, trata-se de postular um movimento de N
para Num, para satisfazer o traço EPP forte desta última categoria. Desta
forma, para um DP como Os carros velozes, pode-se propor o seguinte:
DP
Spec D’
D [-N/-G] NumP
Os
Spec Num’
carrost
[+EPP] Num [+N/-G] AP
Spec A’
41
A [-N/-G] NP
velozes
Spec N’
N [-N/+G] XP
Esta operação de movimento seria motivada pelo fato de que a
diferença na ordem linear dos adjetivos em um DP acarreta diferentes
interpretações semânticas, como demonstram os exemplos a seguir:
O homem grande (o homem alto, de elevada estatura)
O grande homem (o homem importante, eminente)
Em suma, diante do exposto, assume-se uma análise da estrutura do DP
e da operação de concordância de número em PB que considera a presença da
categoria Num. Na seção seguinte, será mostrada uma proposta de articulação
entre o reconhecimento de informações lingüisticamente relevantes extraídas
das interfaces para a aquisição do PB e o processamento da concordância de
número no âmbito do DP, tomado como instrumental na aquisição. Com isso,
busca-se a elaboração de uma teoria de aquisição de linguagem que articule
teoria lingüística e teoria de processamento, conforme o defendido nesta tese.
2.4 A Aquisição da Linguagem sob a Hipótese do Bootstrapping e do Processamento da Concordância de Número no DP
A teoria de aquisição da linguagem aqui defendida sugere um modelo de
identificação do sistema de número gramatical calcado no modo como a
criança relaciona a informação captada perceptualmente com a informação de
natureza lingüística fornecida por um programa genético. Assim, as ações de
um parser e de um formulador sintático em modelos de processamento
lingüístico são concebidas em termos de uma computação de relações sintáticas
(como a concordância) processadas sobre traços formais de itens lexicais pré-
selecionados (cf. Côrrea, 2002, 2005; Corrêa & Augusto, 2005). No tocante à
42
aquisição da linguagem, assume-se, de acordo com o Minimalismo, que, em
estando o sistema computacional disponível já desde o estágio inicial do
processo de aquisição, a tarefa da criança ao adquirir uma língua seria a de
adquirir o léxico desta língua ou, dito de modo diverso e mais claro, reconhecer
quais são os traços formais da língua em aquisição, bem como os valores e as
propriedades destes mesmos traços, fixando assim os parâmetros concernentes
a eles. Portanto, o ponto de partida para o processo de aquisição da linguagem
é o processamento da informação de interface.
Uma teoria de aquisição deve considerar o modo como o sinal acústico
da fala é processado pela criança, com reconhecimento das unidades
lingüísticas e identificação das relações estabelecidas entre estas unidades.
Valores e propriedades destas unidades devem igualmente ser percebidos pela
criança que processa enunciados à sua volta, a fim de permitir a fixação dos
valores de parâmetros a elas correspondentes. Uma hipótese sobre como as
informações de interface são processadas e reconhecidas como
lingüisticamente relevantes se faz necessária.
O problema do bootstrapping consiste em explicar de que modo a
identificação de uma gramática pode ser “alavancada” a partir de informação
externa à língua e de capacidades ou habilidades não necessariamente
lingüísticas (Corrêa, 2008; no prelo). Inicialmente, considerou-se que a criança
está predisposta a atribuir sentido a enunciados lingüísticos e que, assim sendo,
a informação contextual poderia contribuir para que eventos fossem
relacionados a esses enunciados e papéis temáticos viessem a ser atribuídos a
constituintes sintáticos (Pinker, 1987). No entanto, para que isso aconteça é
necessário que a criança tenha segmentado o enunciado em palavras e
constituintes sintáticos, o que não era explicado até então. A hipótese do
bootstrapping fonológico vem de uma linha de pesquisa psicolingüística que
explorava o processamento do sinal acústico pela criança (Eimas, 1974; Mehler,
1988). Parte da hipótese de que a percepção de contornos prosódicos, padrões
fonotáticos, fonológicos e distribucionais contribui para a segmentação do fluxo
da fala em unicades sintáticas e lexicais, o que é crucial para o processamento
sintático (Morgan & Demuth,1996). Teorias de aquisição que assumem a
43
hipótese do bootstrapping fonológico, como é nomeada a hipótese acima
apresentada, concentram-se, pois, na teorização dos processos envolvidos na
identificação dos padrões regulares que seriam representados, pela criança,
como informação lingüisticamente relevante Dessa forma, o bootstrapping
fonológico permite explicar o modo como se dá a inicialização do
processamento sintático, fundamental para o reconhecimento da gramática de
uma língua em particular, visto que, é necessário que constituintes prosódicos /
sintáticos tenham sido delimitados de modo constituir um ambiente no qual
unidades lexicais sejam vistas como relacionadas entre si e padrões
morfonológicos em elementos de classe fechadas possam ser percebidos como
indicativos de informação pertinente aos traços formais da língua (Corrêa, no
prelo).
A teoria lingüística gerativa assume que a tarefa da criança na aquisição
de uma língua é a de fixar os parâmetros relativos aos traços formais relevantes
para a língua em aquisição. O modo como a criança procede para fixar o valor
desses parâmetros, com base nas informações extraídas da interface fônica,
constitui uma questão central, a qual não é tratada diretamente pela teoria
lingüística, porque foge de seu objeto de investigação. Uma teoria da aquisição
da linguagem busca, portanto, explicar como a criança fixa parâmetros a partir
do processamento do material acústico da fala. Com o Programa Minimalista,
essa questão pôde ser formulada em termos mais precisos, uma vez que o
Minimalismo apresenta um modelo de língua que permite uma articulação
entre o sistema da língua e sistemas de desempenho, possibilitando a
formulação de hipótese sobre o modo como a criança, em contato com a língua
de seu meio social, inicializa o sistema computacional lingüístico,
desencadeando (bootstrapping) o processo de aquisição da linguagem.
De acordo com a hipótese do bootstrapping tal como aqui assumida, a
aquisição de uma língua não se processa unicamente a partir do estímulo
externo: a identificação de padrões regulares nos dados lingüísticos primários,
a partir do processamento do material acústico, deverá inicializar o sistema
computacional lingüístico inato, o qual tomará a representação da informação
relativa aos padrões regulares como informação de natureza formal, relativa a
44
elementos funcionais e ordem. Segundo Corrêa, no prelo, elementos de classe
fechada são inicialmente representados como elementos funcionais sub-
especificados, com papel, eminentemente sintático, e a identificação
progressiva de padrões morfofonológicos no âmbito de classes fechadas
permitirá a identificação dos traços formais específicos da língua. Nesse
sentido, pressupor concordância entre os elementos percebidos como
relacionados em unidades sintáticas é fundamental para a identificação de
traços formais tais como o traço de número aqui considerado.
Para que isso ocorra, é necessário pressupor que a criança esteja dotada
de habilidades de processamento do material lingüístico desde o início do
processo de aquisição da linguagem. Estas habilidades, com efeito, parecem
estar disponíveis na criança precocemente, como indicam uma série de
evidências experimentais, as quais apontam para o desenvolvimento da análise
do material lingüístico nos dois primeiros anos de vida da criança.
Pesquisas recentes têm mostrado que os bebês já de muito cedo são
sensíveis a certas propriedades fonéticas. Estas mesmas pesquisas também
apontam para uma sofisticação crescente das habilidades discriminatórias da
criança, o que as permite segmentar o sinal acústico de modo a extrair
informações relevantes para a aquisição de sua língua materna.
Dehaene-Lambertz (1999), em um estudo sobre as bases cerebrais da
percepção de fonemas nos adultos e nos bebês, registrou os potenciais
evocados em bebês de três meses em tarefas de discriminação fonética e
acústica. Diferenças significativas na distribuição da voltagem no escalpo
sugerem que redes neuronais diferentes são ativadas segundo a natureza da
modificação. Existiria então, no bebê, como também no adulto, uma
organização em redes especializadas para o tratamento de estímulos auditivos.
A evolução das habilidades perceptuais ocorrida no primeiro ano de
vida indica que a criança desenvolve uma série de competências que podem ser
relevantes para o processamento do material lingüístico. Admite-se que tais
competências permitem a criança extrair do material lingüístico informações
45
sobre regularidades de sua língua, tais como propriedades fonotáticas (cf.
Friederici & Wessels, 1993), unidades supra-segmentais (padrões prosódicos e
melódicos de unidades lingüísticas), distribuição estrutural (posição de
determinados itens nas sentenças – Shady, 1996). Além disso, crianças em fase
de aquisição são capazes de diferenciar contrastivamente as vogais e as
consoantes possíveis nas línguas humanas, especializando-se em seguida no
reconhecimento de vogais e consoantes de sua língua materna. Ao atingir a
idade média de seis meses, perdem a sensibilidade a contrastes entre vogais
que não sejam de sua língua; e por volta de 10 a 12 meses, esta perda se
estende às consoantes (Peperkamp & Dupoux, no prelo, Polka & Werker,
1994, Werker & Tees, 1984).
Combinando-se o quadro evolutivo das habilidades precoces de
processamento elaborado por Name (2003) com a descrição apresentada por
Lust (2006), e acrescentando-se resultados de pesquisa em português, tem-se
um quadro sintético da evolução estas habilidades, as quais se referem tanto ao
desenvolvimento do processamento de informações acústicas quanto ao
desenvolvimento do processamento sintático: Idade Habilidade Referência
1-3 dias Distinção de pistas acústicas que possibilitam a distinção entre itens lexicais e funcionais
Shi et al. (1999)
2-3 dias Reconhecimento da voz mãe (mesmo quando “filtrada”)
De Casper and Fifer (1980)
2 meses Evidências da Percepção Categorial de Fonemas Eimas et al. (1971) 2 meses Recém-nascidos distinguem listas de palavras
lexicais e funcionais Shi, Werker & Morgan (1999)
3 meses Discriminação de certas variações alofônicas entre segmentos fônicos
Hohne & Jusczyk (1994)
4 meses Reconhecimento do próprio nome (baseado em informação segmental precisa)
Mandel, Jusczyk & Pisoni (1995)
4 meses Sensibilidade à fronteira de oração Hirsh-Pasek et al. (1987) Jusczyk (1989)
6 meses Início da perda de sensibilidade ao contraste entre vogais não nativas
Polka & Werker (1994)
6 meses Início da habilidade de isolar palavras no fluxo da fala
Jusczyk & Aslin (1995)
8 meses Reconhecimento de padrões fonotáticos específicos da língua materna
Jusczyk, Cutler & Redanz (1993)
9 meses Sensibilidade a fronteiras sintagmáticas Jusczyk et al. (1992) 9 meses Uso de informações fonotáticas para delimitação de
palavras Mattys & Jucszyk (2001)
9 meses Distinção de passagens com pausas entre palavras de passagens com pausas no interior das palavras
Myers et al. (1996)
9 meses Integração de fontes prosódicas e fonotáticas para localizar fronteiras de palavras no fluxo da fala
Aslin et al. (1998) Jusczyk (1997)
9 meses Preferência por palavras fonotaticamente legais Friederici & Wessels (1993)
46
(holandês) Jusczyk, Luce & Charles-Luce
(1994) (inglês) Jusczyk et al. (1993)
9-13 meses Atenção às propriedades comuns entre membros de uma classe pelo processo de nomeação
Balaban & Waxman, (1997); Waxman & Markow, (1995);
Waxman, (1998) 10 meses Vocabuário passivo de 10 pals. Benedict (1979) 10-12 meses Perda de sensibilidade ao contraste entre consoantes
não nativas Werker & Tees (1984)
10 ½ meses Sensibilidade a itens funcionais Shady (1996) 11 meses Sensibilidade à fronteira de palavras Myers et al. (1996) 11 meses Sensibilidade a morfemas funcionais Shafer et al. (1998) 12 meses Sensibilidade aos determinantes (em alemão) Höhle & Weissenborn (2000) 12-14 meses Sensibilidade a determinantes no português na
percepção da fala fluente (Name, 2002; Name & Corrêa,
2003) 12 meses Compreensão 40 pals. Benedict (1979) 12-13 meses Categorização de palavras novas como nome ou
adjetivo em função da sua apresentação com ou sem artigo e marca morfológica de adjetivo (em inglês).
Waxman (1999) Teixeira & Corrêa (2007; 2007)
13 meses Extensão vocabulário para referente/objeto similar Behrend (1988) 13 meses Atenção a propriedade ou elemento de uma classe
com base em pseudo-adjetivos e pseudo-nomes Waxman, (1999)
Teixeira & Corrêa (2007; 2007) 13 meses Sensibilidade ao padrão morfonológico de
morfemas flexionais do verbo Bagetti. Corrêa & Name, 2008
16 meses Compreensão de 100 pals. Benedict (1979) 16 meses Sensibilidade à posição estrutural dos itens
funcionais na sentença Shady (1996)
18 meses Sensibilidade a dependências descontínuas / janela de até 3 sílabas
Santelmann & Jusczyk (1998)
Especificamente com relação ao processo de reconhecimento e
identificação do número gramatical no PB, assumindo-se uma hipótese de
bootstrapping fonológico, pode-se esboçar um modelo da dinâmica deste
processo. Como será detalhado no capítulo 3, o PB apresenta
caracteristicamente marca morfológica de número plural em D. Uma criança,
ao adquirir uma língua como o PB, na qual número é um traço formal, deve
identificar tanto a presença do traço quanto as propriedades e os valores por ele
assumidos, a partir do reconhecimento das variações morfofonológicas
pertinentes a este traço, notadamente aquelas presentes em itens lexicais de
elementos funcionais. Como visto no quadro acima, há evidências
experimentais de que a criança possui habilidades de processamento que a
permitem reconhecer essas variações, como o estudo de Höhle & Weissenborn
(2000), o qual evidencia uma sensibilidade precoce da criança a determinantes,
e o de Name & Corrêa (2002) e Corrêa & Name (2003), que proveram
evidências sobre a sensibilidade da criança de cerca de 2 anos à concordância
de gênero entre determinante e nomes com gênero intrínseco, dado que a não
47
concordância afeta a compreensão. Ferrari-Neto (2003) não encontra evidência
semelhante à de Corrêa e Name (2003), fazendo uso de nomes conhecidos, mas
encontra indicação de que número pode ser percebido na mesma faixa etária
em experimento piloto como nomes inventados. Esse paradigma foi então,
explorado, no presente trabalho.
Dessa forma, o reconhecimento de variações fônicas nos elementos
contidos em um DP, notadamente a percepção de distinções morfofonológicas
constantes na categoria funcional D (Determinante) seria tomada pela criança
como indicativa da manifestação do número como um traço formal, bem como
dos valores assumidos por este traço em PB. Uma vez que a criança processe
um DP (ainda que subespecificado), e perceba marcas morfológicas como
possível evidência de concordância em um de seus elementos, ou seja,
variações morfofonológica entendidas como sendo produto de operações
computacionais, ao mapear esse DP com referentes, ela pode reconhecer nele a
presença da categoria funcional Num, responsável pela presença de um traço
interpretável de número.
Com base na argumentação delineada acima, é possível assumir que o
processamento da concordância entre determinante e nome é tomado como
instrumental na aquisição das propriedades do traço formal de número. Assim,
são as informações morfofonológicas extraídas da interface fônica que
constituem as primeiras “pistas” usadas pela criança na identificação do
sistema de número gramatical presente na língua em processo de aquisição.
Com a criança dotada não somente de habilidades perceptuais e de
processamento já desde tenra idade, mas também de um sistema computacional
lingüístico inato, o input lingüístico não se apresenta à criança como um fluxo
sonoro contínuo opaco quanto à sintaxe da língua, mas sim com informação
pertinente a uma interface fônica, ou seja, proveniente de operações de
computação sintática, gerando uma seqüência linear de elementos do léxico
(em determinados contornos prosódicos) que corresponde a uma estrutura
hierárquica, passível de ser processada por um aparato perceptual, analisada
por um parser (uma vez que o sistema computacional da língua já foi
inicializado) e, por fim, interpretada semanticamente.
48
Como o traço formal de número, por ser interpretável, possui um valor
semântico-conceptual, é preciso igualmente prever o modo como a criança
reconhece os valores semânticos associados ao traço de número. Partindo mais
uma vez da idéia de que toda informação relevante para uma criança
adquirindo uma língua se faz presente nas interfaces, propõe-se que a criança
adquire informação semântica sobre o traço de número com base no referente
de um DP flexionado em número, sendo que, para isso, é necessário que ela
processe o DP como uma expressão referencial. Adiante será mostrado que, no
processo de aquisição, a representação de Num como categoria funcional e sua
expressão morfológica será instrumental na distinção entre elementos
massivos/contáveis no processamento de DPs pela criança (vide capítulo 4). 2.5 Conclusão
A hipótese de trabalho adotada neste trabalho considera que o
processamento da concordância de número no âmbito do DP é crucial para a
identificação de número como um traço formal do português. Considerou-se na
formulação desta hipótese uma abordagem que conciliasse uma concepção
minimalista de língua com a hipótese do bootstrapping fonológico (Morgan &
Demuth, 1996; Christophe et al. 1997), que considera que o processamento do
material fônico pela criança em fase de aquisição fornece pistas para a
identificação da sintaxe da língua. Assim, neste capítulo, concepções de
concordância dentro da teoria lingüística gerativista foram apresentadas e
estudadas, em especial o mecanismo de concordância concebido como
operação Agree. O processamento da concordância de número no âmbito do
DP foi apresentado como sendo instrumental para a identificação dos traços
formais da língua. No que diz respeito à estrutura do DP, optou-se por uma
análise que incorpora a presença da categoria funcional Num, que se expressa
na morfologia de número. No caso do PB, Num fica evidente na flexão de
número do Determinante e, no dialeto padrão, em todos os elementos passíveis
de flexão de número no DP. O capítulo seguinte apresentará uma
caracterização da manifestação de número em PB, mostrando a variação
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morfofonológica e dialetal com que número se manifesta, tanto no que se
refere à pluralidade quanto à distinção massivo/contável em PB.