2001 Cunha e Almeida Populacoes Indigenas e Conservacao Capobianco Ed

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1 Populações Indígenas, Povos Tradicionais e Preservação na Amazônia 1 Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. Barbosa de Almeida 2001 Publicado em Biodiversidade na Amazônia Brasileira. Avaliação e Ações Prioritárias para a Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios., orgs. João P. R. Capobianco et al., São Paulo, Instituto Socioambiental e Estação Liberdade, 2001, pp. 184-193. Tradução revista do artigo de Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. B. de Almeida, “Indigenous People, Traditional People, and Conservation in the Amazon”, Daedalus. Journal of the American Academy of Arts and Sciences, vol. 129, n. 2, 2000, pp. 315-338. Numa surpreendente mudança de rumo ideológico, as populações tradicionais da Amazônia, que até recentemente eram consideradas como entraves ao 'desenvolvimento', ou na melhor das hipóteses como candidatas a ele, foram promovidas à linha de frente da modernidade. Essa mudança ocorreu basicamente através da associação entre essas populações e os conhecimentos tradicionais e a conservação ambiental. Ao mesmo tempo, as comunidades indígenas, antes desprezadas ou perseguidas pelos vizinhos de fronteira, transformaram-se de repente em modelos para os demais povos amazônicos despossuídos. 1 Esse artigo foi publicado em Biodiversidade na Amazônia Brasileira. Avaliação e Ações Prioritárias para a Conservação, Uso Sustentável e Repartição de Benefícios, orgs João P., R. Capobianco et al, São Paulo, Instituto Socioambiental e Estação Liberdade, 2001, pp. 184-193. É a tradução, com pequenas corrreções, do artigo de Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. B. de Almeida, “Indigenous People, Traditional People, and Conservation in the Amazon”, Daedalus. Journal of the American Academy of Arts and Sciences, vol. 129, n. 2, 2000, pp. 315-338.

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2001 Cunha e Almeida Populacoes Indigenas e Conservacao Capobianco Ed

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    Populaes Indgenas, Povos Tradicionais e Preservao na Amaznia1

    Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. Barbosa de Almeida

    2001

    Publicado em Biodiversidade na Amaznia Brasileira. Avaliao e Aes Prioritrias para a Conservao, Uso Sustentvel e Repartio de Benefcios., orgs. Joo P. R. Capobianco et al., So Paulo, Instituto Socioambiental e Estao Liberdade, 2001, pp. 184-193. Traduo revista do artigo de Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. B. de Almeida, Indigenous People, Traditional People, and Conservation in the Amazon, Daedalus. Journal of the American Academy of Arts and Sciences, vol. 129, n. 2, 2000, pp. 315-338.

    Numa surpreendente mudana de rumo ideolgico, as populaes tradicionais da Amaznia, que at recentemente eram consideradas como entraves ao 'desenvolvimento', ou na melhor das hipteses como candidatas a ele, foram promovidas linha de frente da modernidade. Essa mudana ocorreu basicamente atravs da associao entre essas populaes e os conhecimentos tradicionais e a conservao ambiental. Ao mesmo tempo, as comunidades indgenas, antes desprezadas ou perseguidas pelos vizinhos de fronteira, transformaram-se de repente em modelos para os demais povos amaznicos despossudos.

    1 Esse artigo foi publicado em Biodiversidade na Amaznia Brasileira. Avaliao e Aes Prioritrias

    para a Conservao, Uso Sustentvel e Repartio de Benefcios, orgs Joo P., R. Capobianco et al, So Paulo, Instituto Socioambiental e Estao Liberdade, 2001, pp. 184-193. a traduo, com pequenas corrrees, do artigo de Manuela Carneiro da Cunha e Mauro W. B. de Almeida, Indigenous People, Traditional People, and Conservation in the Amazon, Daedalus. Journal of the American Academy of Arts and Sciences, vol. 129, n. 2, 2000, pp. 315-338.

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    Vimo-nos na obrigao de escrever esse artigo em boa parte como resposta a dois mal-entendidos correntes. O primeiro consiste em questionar os fundamentos do compromisso das populaes tradicionais para com a conservao: ser que esse compromisso uma fraude? Ou, para formular a questo de forma mais branda, ser que no se trata de uma caso de projeo ocidental de preocupaes ecolgicas sobre um "bom selvagem ecolgico" construdo ad hoc? O segundo mal-entendido, obviamente relacionado ao primeiro, afirma que as organizaes no-governamentais e as ideologias "estrangeiras" so responsveis pela nova conexo entre a conservao da biodiversidade e os povos tradicionais. Este mal entendido causou estranhas parcerias entre militares e a esquerda de pases pobres. Para refutar essas concepes, vamos dedicar algum tempo a esclarecer o contexto histrico no qual ocorreu esse processo e os papis respectivos de distintos agentes na construo dessa conexo: as pessoas comuns, agentes urbanos, e "estrangeiros". Finalmente, iremos falar do significado que essa conexo assumiu localmente, de sua importncia para o Brasil e a comunidade internacional, e de algumas condies necessrias para o seu xito.

    QUEM SO AS POPULAES TRADICIONAIS?

    O emprego do termo "populaes tradicionais" propositalmente abrangente. Contudo, essa abrangncia no deve ser confundida com confuso conceitual.

    Definir as populaes tradicionais pela adeso tradio seria contraditrio com os conhecimentos antropolgicos atuais. Defini-las como populaes que tm baixo impacto sobre o o ambiente, para depois afirmar que so ecolgicamente sustentveis, seria mera tautologia. Se as definirmos como populaes que esto fora esfera do mercado, vai ser difcil encontr-las hoje em dia. verdade nos textos acadmicos e jurdicos costuma-se descrever categorias por meio das propriedades ou caractersticas dos elementos que as constituem. Mas as categorias sociais

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    tambm podem ser descritas "em extenso" -- isto , pela simples enumerao dos elementos que as compem. Por enquanto, achamos melhor definir as "populaes tradicionais" de maneira "extensional", isto , enumerando seus "membros" atuais, ou os candidatos a "membros". Esta abordagem est de acordo com a nfase que daremos criao e apropriao de categorias. E o que mais imporante, aponta para a formao de sujeitos atravs de novas prticas.

    Isto no to novo assim. Termos como "ndio", indgena", "tribal", "nativo", aborgene" e "negro" so todos criaes da metrpole, so frutos do encontro colonial. Contudo, embora tenham sido genricos e artificiais ao serem criados, esses termos foram sendo aos poucos habitados por gente de carne e osso. o que acontece, mas no necessariamente, quando ganham status administrativo ou jurdico. No deixa de ser notvel o fato de que com muita frequncia os povos que comearam habitando essas categorias pela fora tenham sido capazes de apossar-se delas, convertendo termos carregados de preconceito em bandeiras mobilizadoras. Nesse caso a deportao para um territrio conceitual estrangeiro terminou resultando na ocupao e defesa desse territrio. a partir desse momento que a categoria que comeou por ser definida "em extenso" comea a ser redefinida analiticamente a partir de propriedades.

    No momento, a expresso "populaes tradicionais" ainda est nas fases iniciais de sua vida. Trata-se de uma categoria pouco habitada, mas j conta com alguns membros e com candidatos entrada. Para comear, tem existncia administrativa: o "Centro Nacional de Populaes Tradicionais", um rgo do IBAMA. Inicialmente, a categoria congregava seringueiros e castanheiros da da Amaznia. Desde ento expandiu-se, abrangendo outras grupos que vo de coletores de berbigo de Santa Catarina a babaueiras do sul do Maranho e quilombolas do Tocantins. O que todos esses grupos possuem em comum o fato de que tiveram pelo menos em parte uma histria de baixo impacto ambiental e de que tm no presente interesses em

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    manter ou em recuperar o controle sobre o territrio que exploram. Mas acima de tudo, esto dispostos a uma negociao: em troca do controle sobre o territrio, comprometem-se a prestar servios ambientais1.

    COMO OS POVOS (PEQUENOS) FAZEM HISTRIA

    Nos ltimos vinte anos, os povos indgenas na Amaznia avanaram muito. Na dcada de setenta, governadores no se pejavam de referir-se a eles como "entraves ao progresso". Polticos da direita e militares colocavam-nos sob suspeio, achando que a nica explicao para; o interesse internacional dirigido a eles era a cobia. Nesse perodo, lamentar o "fim do ndio" era lugar-comum. Uns atribuam esse "fim do ndi" marcha inexorvel do desenvolvimento, enquanto alguns intelectuais de esquerda atribuam-no no menos inexorvel marcha da histria. A marcha acelerada desses batalhes no permitia sobreviventes. O rudo encobria causas mais imediatas do sofrimento, embora menos impressionantes e inexorveis do que os exrcitos da histria: a corrupo em muitos nveis, a cooptao por parte de madeireiros e mineradoras, a expulso de camponeses que se viam forados a intrusar as terras indgenas, e sobretudo as polticas governamentais que produziam projetos de infra-estrutura e incentivos agropecurios. Analogamente, o que iria alterar o curso dos acontecimentos seria a mobilizao poltica de uma ampla gama de atores brasileiros e internacionais, e no uma histria sem agentes.

    Em fins dos anos setenta, as questes indgenas transformaram-se em importante preocupao nacional.2 Na Constituio de 1934, e em todas as

    2 A nica mobilizao nacional comparvel em torno das terras indgenas ocorreu na primeira dcada

    do sculo vinte, resultando na criao do SPI em 1910. Os exemplos da Colnia so menos claros, mas pode-se, com certo anacronismo, incluir as lutas dos jesutas do sculo XVIII contra a escravido indgena entre os movimentos de grande escala. A criao do Parque Nacional do Xingu em 1961, embora tenha tinha muito apoio nas cidades, foi uma experincia isolada, a ponto de chegar-se a dizer que se tratava de uma vitrina. Os massacres, expulses e outras formas de violncia no eram

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    constituies brasileiras promulgadas desde ento (1937, 1946, 1967 e 1969), as terras indgenas e suas riquezas eram destinadas ao usufruto coletivo e exclusivo de grupos etnicos determinados. A propriedade da terra da Unio, e as terras indgenas no podem ser vendidas nem alienadas. Por outro lado, no Cdigo Civil de 1916, os povos indgenas eram agrupados junto com os maiores de 16 e menos de 21 anos como "relativamente capazes". Tratava-se de um remendo de ltima hora, j que Cdigo Civil no tratava das questes indgenas. "Pessoas com capacidade relativa", por serem fceis de enganar, gozam de proteo especial em assuntos comerciais. Embora o conceito de tutela sobre populaes indgenas parea no mnimo derrogatrio e anacrnico, na prtica deu-lhes uma proteo jurdica eficaz. Qualquer negcio feito em prejuzo de indgenas e sem assistncia jurdica pode ser questionado e anulado na justia. Alm disso, como no havia caso de ttulo fundirio coletivo na legislao brasileira, o status jurdico da tutela costumava ser compreendido como a base para a excepcionalidade dos direitos fundirios indgenas -- o que um erro, j que a ocupao prvia ( isto , a antigidade histrica) que fundamenta os dos direitos indgenas terra.

    Em 1978, um ministro props um decreto a proposta de emancipao dos chamados "ndios aculturados". A proposta significava que receberiam ttulos individuais de propriedade, que poderiam colocar no mercado. Em outras palavras, a terra indgena poderia ser vendida. Os efeitos de uma medida como essa so fceis de avaliar, havendo precedentes na histria do Brasil. As leis de 1850 e 1854 resultaram em trs dcadas de liquidao dos ttulos indgenas (M. Carneiro da Cunha, 1993).3

    Em 1978, a ditadura militar manietava todas as manifestaes polticas. Todavia, as questes indgenas no eram consideradas polticas. A

    normalmente tratados como temas nacionais, e sim como lamentveis atos de violncia localizada. No se percebia que havia condies estruturais para essas formas de violncia.

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    insatisfao reprimida, para surpresa de muitos, encontrou nessas questes um canal para expressar-se. A proibio de protestos polticos pode ter sido a razo pela qual o chamado projeto de emancipao, tema bastante distante para a maioria dos brasileiros urbanos, canalizou um protesto de tamanha amplitude. O projeto de emancipao foi finalmente descartado, embora resuscitando desde sob diferentes disfarces. A campanha contra a emancipao das terras indgenas marcaria porm o incio de uma dcada de intensa mobilizao em torno das lutas indgenas. Foi fundada3 a primeira organizao indgena de carter nacional, bem como um nmero significativo de Comisses Pr-ndio, formadas basicamente por voluntrios, sobretudo antroplogos e advogados. O CIMI (Conselho Indigenista Missionrio), integrante da influente CNBB (Confederao Nacional dos Bispos do Brasil), fortaleceu-se com a incluso de advogados militantes. A Associao Brasileira de Antropologia, que naquela poca tinha cerca de seiscentos membros, tambm tornou-se bastante na questo dos direitos indgenas. As principais instituies que que apoiavam este tipo de trabalho eram a ICCO, uma organizao holandesa de igrejas protestantes, a Fundao Ford, sediada no Rio de Janeiro e, em grau menor, algumas ONGs alems e a Oxfam Britnica. Todos esses agentes iniciaram aes judiciais, a maioria delas vitoriosas, e campanhas para a demarcao e proteo das terras indgenas.

    No obstante os resultados desiguais dessas campanhas, elas tiveram consequncias importantes. Em primeiro lugar, ajudaram a delinear quais eram as principais ameaas enfrentadas pelas populaes indgenas. Alm disso, geraram uma coalizo baseada na confiana mtua que resultou de estudos, metas e campanhas em comum. Sublinharemos apenas dois exemplos.

    3 A UNI (Unio das Naes Indgenas), que iria desempenhar um importante papel nos anos oitenta, a

    despeito de suas origens urbanas, ou exatamente por causa delas. Essa organizao seria sucedida no fim da dcada de oitenta e nos anos noventa por organizaes indgenas de base tnica ou regional.

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    O primeiro exemplo foi a aliana entre antroplogos e procuradores federais, construda em torno da necessidade que tinha o governo de se defender contra as aes de indenizao, em geral fraudulentas, movidas por supostos proprietrios de terras indgenas. Depois de perder ao aps ao na justia, e insatisfeitos com a assistncia que recebiam da da FUNAI (Fundao Nacional do ndio), a Procuradoria Geral da Repblica solicitou a ajuda da Associao Brasileira de Antropologia para ajud-la na investigao dos fatos. Os resultados positivos cimentaram um relacionamento duradouro de confiana mtua que daria frutos na Constituio de 1988.

    O outro exemplo foi o apoio da Associao Brasileira de Gelogos, proibio da prospeco mineral em indgenas, visando proteger as reservas minerais brasileiras contra um poderosssimo lobby de mineradoras multinacionais. Esse apoio foi construdo em torno de um projeto colaborativo desenvolvido pelo Centro Ecumnico de Documentao Indgena (CEDI), com a finalidade de mapear a superposio de terras indgenas e de reas solicitadas para prospeo mineral. O Projeto Radambrasil, levantamento por radar realizado na Amaznia na dcada de 70, havia suscitado grandes expectativas de riquezas minerais, causando uma corrida por concesses para pesquisa e minerao. Como na legislao a propriedade da terra no coincide com a propriedade do subsolo, sendo o subsolo propriedade federal, travou-se uma acirrada batalha para se decidir se podia ou no haver pesquisa e minerao em subsolo indgena.

    Em 1987, quando a Assemblia Constituinte comeou a debater a nova constituio, estabeleceu-se uma eficiente frente de lderes indgenas, antroplogos, advogados e gelogos. Havia uma definio clara dos direitos indgenas que deveriam ser assegurados na nova Constituio, e havia uma quase unanimidade no programa para a constituinte, com a exceo parcial do CIMI.

    No surpreende que as questes mais controversas girassem em torno da permisso para a construo de hidroeltricas e de acesso a terras

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    indgenas por parte de no-ndios. Os interesses das empresas privadas eram muito fortes no que diz respeito minerao. Enquanto estava sendo discutido um anteprojeto de constituio no qual se proiba qualquer tipo de acesso ao subsolo indgena, orquestrou-se uma enorme campanha de imprensa contra os direitos indgenas. Poucos dias antes do relator submeter o novo texto, cinco dos principais jornais em cinco capitais fizeram cobertura de pgina inteira durante uma semana, sobre uma suposta conspirao internacional para manter elevados os preos do estanho, barrando para isso a extrao de cassiterita das terras indgenas e impedindo assim que o estanho amaznico chegasse ao mercado. Outra bateria de acusaes foi dirigida contra o CIMI, que insistia no uso do termo "naes" para as sociedade indgenas -- um termo bem arcaico muito encontrado em documentos histricos at o final do sculo dezenove, quando foi substitudo pela palavra "tribo". Naes, no jargo contemporneo, poderia significar uma reivindicao de autonomia. A assinatura de um abaixo-assinado por austracos em favor dos direitos indgenas foi usada como prova da conspirao estrangeira que se escondia por detrs dos direitos indgenas. Essas e outras acusaes igualmente criativas, junto com a publicao de documentos forjados, mantiveram a temperatura alta at a divulgao da nova minuta da constituio. No surpreende que nesta verso os direitos indgenas tivessem sido drasticamente mutilados. A recuperao da maioria destes direitos no texto definitivo da constituio foi uma faanha poltica cujo mrito cabe macia presena indgena, sobretudo de Kaiaps, habilidade de negociao do falecido Senador Severo Gomes, e eficincia de um grande nmero de ONGs.

    Afinal os direitos indgenas foram includos em em uma seo prpria da Constituio de 1988. A definio de terra indgena no Artigo 231 explicitamente incluiu no somente os espaos de habitao e as reas cultivadas, mas tambm o territrio demandado para a preservao dos recursos ambientais necessrios ao bem-estar dos povos indgenas, bem

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    como da terra necessria para sua reproduo fsica e cultural, em conformidade com seus hbitos, costumes e tradies."

    Os direitos das terras indgenas foram declarados como sendo "originrios", um termo jurdico que implica precedncia, e que limita o papel do estado a reconhecer esses direitos, mas no a outorg-los. Esta formulao tem a virtude de ligar os direitos territoriais s suas razes histricas (e no a um estgio cultural ou a um situao de tutela). Reconheceu-se a personalidade jurdica dos grupos e das associaes indgenas, em especial sua capacidade de abrir processos em nome prprio, independentemente da opinio do tutor, incumbindo-se Procuradoria da Repblica a responsabilidade de de assisti-los perante os tribunais. Todas essas medidas constituam instrumentos bsicos para a garantia de seus direitos.5

    Ao longo desse processo, o xito das reivindicaes fundirias indgenas ganhou destaque, com o resultado inesperado e paradoxal de que outros setores despossudos da sociedade, como os quilombolas e, como veremos, os seringueiros, comeassem a emul-los.

    SERINGUEIROS E AMBIENTALISTAS

    No final da dcada de 1970. O governo do Estado havia publicado em 1975 anncios de jornal convidando os interessados a "plantar no Acre e exportar para o Pacfico", e a decadncia econmica dos antigos seringais baseados no sistema de aviamento criava oportunidades para compra de terra barata. O fato de que essas terras no tinham ttulos legais fazia com que a primeira tarefa dos compradores de terra fosse a de expulsar os seringueiros posseiros. Reagindo invaso de fazendeiros e especuladores que viam nas terras baratas do Acre uma nova fronteira para enriquecimento fcil, criou-se a partir de 1977 uma rede de sindicatos rurais que, aliados ao da Igreja, canalizaram a resistncia dos seringueiros contra a expulso. Essa luta contra a derrubada das florestas tomou a forma dos "empates",

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    liderados originalmente pelo presidente do STR de Brasilia, o sindicalista Wilson Pinheiro. Esse lder de aes de base foi assassinado no incio da dcada de 1980, mas Chico Mendes, no sindicato do municpio vizinho de Xapuri, continuou e ampliou a ttica dos empates. Por essa poca, o trabalho dos sindicatos era apoiado no apenas pela Igreja (em sua diocese do Rio Purus, e no pela Diocese do Rio Juru) mas por novas organizaes de apoio s lutas indgenas e de seringueiros.

    Em 1984, vrios sindicatos amaznicos propuseram, em reunio nacional da CONTAG, uma soluo de reforma agrria para seringueiros que previa mdulos de terra de 600 hectares, chocando muitos de seus companheiros que no entendiam a necessidade de tanta floresta para uma famlia s. E a partir de 1985, Chico Mendes resolveu agir audaciosamente para tirar o movimento dos empates da situao de defensiva em que havia sido colocado. Uma das aes consistiu em chamar os moradores das cidades para participar dos empates: assim, em 1986, jovem a professora e sindicalista Marina Silva, ao lado de dois agrnomos, um antroplogo e um fotgrafo, participaram ao lado de uma centena de seringueiros de mais uma operao de empate, com a diferena de que agora o movimento era claramente voltado, como as aes de desobedincia civil organizadas por Gandhi na ndia e por Luther King nos EUA, para a nao como um todo. O empate de 1986 terminou sob a emergente liderana de Marina Silva e o comando de Chico Mendes com a ocupao do IBDF e a ateno da imprensa para as irregularidades envolvidas nas autorizaes para derrubar a mata.

    Outra ao de Chico Mendes consistiu em propor a Mary Allegretti uma ao de impacto pblico em apoio aos seringueiros. Em resposta, Mary organizou em Braslia, com apoio de entidades no-governamentais e do governo, um surpreendente encontro em que 120 lideranas sindicais de toda a Amaznia, com perfil de seringueiros, se defrontaram diretamente com tcnicos governamentais responsveis pela poltica da borracha, com

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    deputados e ministros, com intelectuais e especialistas. Ao final do Encontro, eles haviam criado uma entidade igualmente estranha e no-planejada: o Conselho Nacional dos Seringueiros. E, coisa igualmente significativa, haviam produzido uma carta de princpios que inclua, em sua seo agrria, a reivindicao de criao de "Reservas Extrativistas" para seringueiros, sem diviso em lotes, e com mdulos de no mnimo 300 hectares.

    Embora os seringueiros estivessem h anos reivindicando uma reforma agrria que permitisse a continuidade de suas atividades extrativas, era a primeira vez que a palavra Reserva era utilizada, numa transposio direta da proteo associada s terras indgenas. Nos anos que se seguiram, os seringueiros perceberam que a conexo entre os empates contra o desmatamento e o programa de conservar as florestas em forma de Reservas Extrativistas tinha o potencial de atrair aliados poderosos.

    Os seringueiros que eram poucos anos antes uma categoria condenada ao rpido desaparecimento assumiram ao final dos anos oitenta uma posio de vanguarda em mobilizaes ecolgicas. No final de 1988, emergiu uma aliana para a defesa das florestas e de seus habitantes, com o nome de "Aliana dos Povos da Floresta", abrangendo os seringueiros e grupos indgenas atravs das duas organizaes nacionais que haviam se formado nos anos anteriores: o Conselho Nacional dos Seringueiros e a Unio das Naes Indgenas. A reunio de Altamira, organizada pelos Kaiaps contra o projeto da represa do Xingu, tinha uma conotao ambiental explcita. No final dos anos 1980, a conexo ambientalista tornara-se inevitvel. Em contraste com o modelo de Yellowstone que expulsava tribos indgenas para criar um ambiente americano "intocado", reivindicava-se aqui que as comunidades locais, que tinham protegido o ambiente e que baseavam sua vida nele, no fossem vtimas das preocupaes ambientais.

    Ao contrrio, para que o meio ambiente fosse protegido elas deveriam responsabilizar-se pela gesto e controle dos recursos naturais nos ambientes em que viviam. O que era novo era o papel ativo atribudo s

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    comunidades locais. No incio de 1992, a conexo explcita entre povos indgenas e e conservao ganhou dimenso internacional com a criao da Aliana Internacional dos Povos Tribais e Indgenas das Florestas Tropicais, da qual uma das organizaes fundadoras era a COICA (Confederao das Organizaes Indgenas da Bacia Amaznica). A Conveno para Diversidade Biolgica e a Agenda 21, aprovadas durante a Rio 92, reconhecia explicitamente o papel relevante desempenhado pelas comunidades indgenas e locais. Caberia Colmbia, em 1996, implementar em grande escala a idia de tornar as populaes indgenas oficialmente responsveis por uma grande extenso de florestas tropicais. No Brasil, como veremos abaixo, a mesma idia foi aplicada seis anos antes do que na Colmbia, numa escala menor mas nem por isso menos importante, nas Reservas Extrativistas. Foram aqui os seringueiros, e no os grupos indgenas, os primeiros protagonistas da experincia.

    TERRA INDGENA E UNIDADES DE CONSERVAO

    Calcula-se que a populao indgena no Brasil esteja em torno de 310.000 indivduos, dos quais 280.000 vivem em terras indgenas. Embora essa populao seja relativamente pequena, riqussima em diversidade social. H 206 sociedade indgenas, 160 das quais esto na Amaznia, e aproximadamente 195 lnguas diferentes. Estima-se que haja ainda 50 grupos indgenas arredios e sem contato contato regular com o mundo exterior.

    Com exceo do curto e violento do ciclo da borracha que durou de 1870 a 1910, a maior parte da Amaznia afastada da calha principal do rio Amazonas permaneceu relativamente indiferente ocupao europia. Em consequncia, a maioria dos grupos indgenas que sobreviveram e a maior parte das terras indgenas que conseguiram conservar esto na Amaznia.

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    Assim que esto na Amaznia quase 99 por cento das Terras Indgenas brasileiras.

    A extenso das terras indgenas em conjunto impressiona. Os ndios tm direito constitucional a quase 12 por cento do territrio brasileiro, com terras distribudas em 574 reas diferentes e abrangendo 20 por cento da Amaznia brasileira. As unidades de conservao na Amaznia onde permitida a presena humana, as unidades de conservao de uso direto, cobrem outros 8,4 % da regio.

    Na dcada de 1980, a extenso das terras indgenas no Brasil parecia exagerada: "muita terra para pouco ndio". Este enfoque mudou. A matria de capa de Veja de 20 de junho de 1999 falava dos 3.600 ndios xinguanos que "preservam um paraso ecolgico" do tamanho da Blgica. O ponto era que um pequeno nmero de ndios podia cuidar bem de um vasto territrio. A idia de que as pessoas mais qualificadas para fazer conservao de um territrio so as pessoas que nele vivem sustentavelmente tambm a premissa da criao das Reservas Extrativas.

    claro que nem todas as reas de conservao podem ser administradas pelos habitantes preexistentes nelas. Mas tambm claro que no Brasil uma poltica ecolgica slida e vivel tem que incluir as populaes locais. Alm disso, expulsar as pessoas das reas de preservao sem oferecer-lhes meios alternativos de subsistncia uma rota segura para desastres.

    OS POVOS TRADICIONAIS SO MESMOS CONSERVACIONISTAS?

    Os inimigos da participao das populaes tradicionais na conservao argumentam (1) nem todas as sociedades tradicionais so conservacionistas e (2) mesmo as que o so hoje podem mudar para pior quando tiverem acesso ao mercado.

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    Durante muito tempo, existiu entre antroplogos, conservacionistas, governantes e as prprias populaes tradicionais aquilo que um antroplogo chamou, em outro contexto, de "mal-entendido til". Esse mal-entendido gira em torno do que se pode chamar de essencializao do relacionamento entre as populaes tradicionais e o meio ambiente. Um conjunto de idias que representam os grupos indgenas como sendo naturalmente conservacionistas resultou no que tem sido chamado de "o mito do bom selvagem ecolgico""46 bvio que no existem conservacionistas naturais, , porm, mesmo que se traduza "natural" por "cultural", a questo permanece: as populaes tradicionais podem ser descritas como "conservacionistas culturais"?.

    O ambientalismo pode designar um conjunto de prticas, e pode referir-se a uma ideologia. H portanto trs situaes diferentes que tendem a ser condundidas quando se utiliza um nico termo para designar todas as trs.

    Primeiro, pode-se ter a ideologia sem a prtica efetiva trata-se aqui do caso de apoio verbal conservao. Em seguida, vem o caso em que esto presentes tanto as prticas sustentveis como a cosmologia. Muitas sociedades indgenas da Amaznia defendem uma espcie de ideologia lavoisieriana na qual nada se perde e tudo se recicla, inclusive a vida e as almas. Essas sociedades tm uma ideologia de explorao limitada dos recursos naturais, onde os seres humanos so os mantenedores do equilbrio do universo que inclui tanto a natureza como a sobrenatureza. Valores, tabus de alimentao e de caa, e sanes institucionais ou sobrenaturais, lhes fornecem os instrumentos para agir em consonncia com esta ideologia. Tais sociedade podem facilmente se enquadrar na categoria de conservacionistas culturais. O exemplo dos Yagua peruanos vem logo mente.5

    4 Kent Redford e A. Stearman 1991, 1993; A. M. Stearman 1994.

    5 Chaumeil 1983.

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    Finalmente, pode-se ter as prticas culturais sem a ideologia.6 Neste caso, podemos pensar em populaes que, embora sem uma ideologia explicitamente conservacionista, seguem regras culturais para o uso dos recursos naturais que, dada a densidade populacional e o territrio em que se aplicam, so sustentveis. Vale observar que, para conservar recursos, uma sociedade no necessita evitar completamente a predao. Basta que a mantenha sob limites. Se uma sociedade aprova a matana de um bando de macacos, inclusive fmeas e prole, e se esse massacre, embora repugnante, no tem altera o estoque da populao, ento a sociedade no est infringindo as prticas de conservao. O que se pode perguntar se os hbitos em questo so compatveis com o uso sustentvel, e no se eles so moralmente errados. Podemos objetar caa esportiva em nossa sociedade; o fato que associaes norte-americanas cuja origem so organizaes de caadores, como a Federao da Vida Silvestre (Wildlife Federation) esto tendo uma crescente preocupao com a conservao ambiental, com resultados positivos. Os grupos indgenas poderiam, da mesma maneira, conservar e gerir o ambiente em que vivem, com criatividade e competncia7. Contudo, isso no decorre necessariamente de uma cosmologia de equilbrio da natureza, e pode resultar antes de consideraes ligadas ao desejo de manter um estoque de recursos.

    Grupos indgenas e mesmo alguns grupos migrantes como os seringueiros de fato protegeram e talvez tenham at enriquecido a biodiversidade nas florestas neotropicais. As florestas amaznicas so dominadas por espcies que controlam o acesso luz solar. Grupos humanos, ao abrir pequenas clareiras na floresta, criam oportunidades para

    6 N. Gonzales 1992.

    7 Bale faz uma reviso pormenorizada das evidncias de que as sociedades amaznicas enriquecem os

    recursos naturais, sejam eles rios, solos, animais ou diversidade botnica.W. Bale 1989, W. Balee e A. Gentry 1989, A. Anderson 1991, H. Kaplan e K. Kopischke 1992 etc.

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    que espcies oprimidas tenham uma janela de acesso luz solar -- como quando cai uma grande rvore.89

    O segundo argumento prope que, embora as sociedades tradicionais possam ter explorado o ambiente de forma sustentvel no passado, as populaes de fronteira com as quais interagem iro influenci-las com estratgias mopes de uso dos recursos. Na ausncia de instituies adequadas e pouca informao sobre oportunidades alternativas, a anomia iria dissolver moralmente os grupos sociais, medida em que jovens com esprito empresarial entrassem em conflito com os antigos costumes e com os valores de reciprocidade.

    Segundo essa linha de argumentao, embora a "cultura tradicional" tenha promovido a conservao no passado, as necessidades induzidas pela articulao com a economia de mercado iro levar inevitavelmente a mudanas culturais e superexplorao dos recursos naturais. De fato, com certeza haver mudanas, mas no necessariamente superexplorao. Pois o que a situao equilibrada anterior ao contato tambm implica que, dadas certas condies estruturais, as populaes tradicionais podem desempenhar um papel importante na conservao.

    O que este cenrio deixa de reconhecer que a situao mudou, e com ela a validade dos antigos paradigmas. As populaes tradicionais nem esto mais fora da economia central nem esto mais simplesmente na periferia do sistema mundial. As populaes tradicionais e suas organizaes no tratam apenas com fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Tornaram-se parceiros de instituies centrais como as Naes Unidas, o Banco Mundial e as poderosas ONGs do primeiro mundo.

    Tampouco o mercado onde hoje atuam as populaes tradicionais o mesmo de ontem. At recentemente, as sociedades indgenas, para obter

    8 Bale 1994:119-123.

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    renda monetria, precisavam de mercadorias de primeira gerao: matrias-primas como a borracha, castanha-do-par, minrios e madeira. Pularam a a segunda gerao de mercadorias com valor agregado industrial, e mal passaram pelos servios ou mercadorias de terceira gerao. E comeam a participar da economia da informao -- as mercadorias de quarta gerao -- atravs do valor agregadp ao conhecimento indgena e local.9.10 E entraram no mercado emergente da de "valores da existncia", tais como a biodiversidade e as paisagens naturais. Em 1994, havia compradores que pagavam por um certificado de um metro quadrado de floresta na Amrica Central, sabendo que nunca veriam esse metro quadrado.

    COMO QUE A CONSERVAO ADQUIRE SENTIDO LOCAL? UM ESTUDO DE CASO

    Uma dificuldade no chamado envolvimento de comunidades locais em projetos de conservao que via de regra primeiro esses projetos so elaborados por algum em posio de poder, e s depois vem a fase de "envolver" grupos locais neles. Mas mesmo nos casos em que a origem de projetos conservacionistas so iniciativas de grupos locais, resta a dificuldade de ajustar os planos de ao em diferentes esferas, de conseguir recursos externos, de obter a capacidade tcnica necessria. No que segue, narraremos sumariamente o processo de combinao entre conservao e reforma agrria que resultou na inveno das Reservas Extrativistas. Ao fazer isso entraremos em detalhes na aparncia minsculos, para evidenciar o papel desempenhado pela iniciativa local e tambm por universidades e organizaes no-governamentais e governamentais, brasileiras e estrangeiras.

    Em 23 de janeiro de 1990 foi criada a Reserva Extrativista do Alto Juru, atravs do do decreto nmero 98.863. Era a primeira unidade de

    9 Cunningham 1991, G.Nijar 1996, St.Brush 1993, M. Carneiro da Cunha et alii 1998 and 1999.

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    conservao desse tipo, um territrio de meio milho de hectares que passaria do controle de patres para a condio jurdica de terra da unio destinada ao usufruto exclusivo de moradores, atravs de contrato de concesso, e cuja administrao poderia ser por lei realizada atravs de convnios entre governo e as associaes representativas locais.

    Essa conquista foi o resultado de uma articulao de organizaes e pessoas em diferentes nveis, incluindo militantes das delegacias sindicais da floresta, lideranas do Conselho Nacional de Seringueiros (sediado na capital do Acre), pesquisadores e assessores, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico, a Procuradoria Geral da Repblica e algumas ONGs brasileiras e estrangeiras. E foi tambm o resultado de acontecimentos inesperados e de conexes contingentes, de um efeito do "desenvolvimento desigual e combinado" que colocou na linha de frente do ambientalismo um dos lugares mais remotos e isolados do pas, onde a luta dos seringueiros no se dava contra os novos fazendeiros e sim contra os patres de barraces. 11

    Nos anos anteriores, a idia das Reservas Extrativistas havia se difundido no Brasil e no estrangeiro com sucesso, associando-se s idias de programas sustentveis baseados nas comunidades locais.10 Quando a palavra "reserva" veio a pblico em 1985, lida por Chico Mendes na declarao que encerrou o Encontro Nacional de Seringueiros realizado em Braslia, ela no tinha um significado preciso. O que ele indicava, conforme a delegao de Rondnia que o introduziu no texto, era que as terras de seringueiros deveriam ter a mesma proteo que as reservas indgenas.

    O termo s veio a ganhar um significado mais especfico dezembro de 1986 na zona rural do municpio de Brasilia, Acre, numa paisagem de castanheiras sobreviventes em uma paisagem devastada. Nessa reunio de trabalho que inclua os membros do Conselho Nacional dos Seringueiros, e

    10 M. Alegretti 1990, Schwartzmann 1989.

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    um pequeno grupo de assessores, um dos temas era o estatuto fundirio das Reservas Extrativistas. A condio expressa no documento de Braslia dizia apenas que as terras no podiam ser "divididas em lotes", devendo-se respeitar o sistema tradicional das colocaes. Uma antroploga com experincia na FUNAI explicou a situao jurdica das terras indgenas e outras alternativas fundirias. Lderes seringueiros socialistas inclinavam-se para o sistema das terras indgenas, porque era o nico que impedia por completo qualquer possibilidade de reprivatizao da floresta atravs da venda da terra. Assim, aps deliberar a portas fechadas, sem interferncia da assessoria, o Conselho optou pela soluo de "propriedade da unio" e "usufruto (coletivo) exclusivo da terra" por seringueiros.

    Outro tema importante dessa reunio de Brasilia foi a questo econmica. At ento, todas as lideranas sindicais dos seringueiros, inclusive Chico Mendes, estavam convencidas de que a produo da borracha amaznica tinha uma importncia fundamental para a economia nacional. Essa crena era aparentemente confirmada pela importncia da atividade extrativa na economia do Estado do Acre. Uma exposio realizada por um dos assessores resumiu alguns fatos bsicos, dentre eles o fato de que a borracha natural amaznica fornecia apenas uma pequena parcela da borracha utilizada pela indstria nacional, com preos protegidos pelo governo j que era mais barato para as empresas importar do que comprar no pas. Mesmo que a populao dos seringais nativos fosse apoiado pelo governo, a produo total da Amaznia provavelmente no passaria das 40.000 toneladas que havia atingido no pico do ciclo da borracha, ainda muito aqum do volume de matria-prima demandado pela indstria nacional, e um volume quase insignificante no mercado mundial. Alm do mais, naquela ocasio, 1986, comeavam a ser desmantelados os mecanismos de proteo aos preos e de subsdios aos patres seringalistas. Um dos lderes presentes, exatamente aquele que defendera a soluo coletivista para as Reservas, e que havia perguntado antes o que era "ecologia", quebrou o

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    silncia dizendo que se no queriam borracha, pelo menos havia quem quisesse a ecologia. E isso eles sabiam fazer.

    Ao longo de 1987, a conexo entre reforma agrria de seringueiros e a questo ambiental foi ampliada na forma de uma aliana entre seringueiros em ambientalista11. Mas a essa altura as Reservas Extrativistas eram parte de um programa agrrio, e no de um programa ambiental, e as primeiras iniciativas legais dirigiam-se para o INCRA, e no para o IBAMA. Antes de 1988, de fato, poucas pessoas, como Mary Alegretti, cogitavam da possibilidade das Reservas Extrativistas serem institudas como reas de conservao. Para os seringueiros, a questo de fundo era ainda agrria e sindical.

    Em outubro de 1989, o Partido dos Trabalhadores perdeu as eleies presidenciais no segundo turno, com a vitria de Collor sobre Lula. Em vista da base poltica de direita do recm eleito presidente, esmoreceu a esperana por uma reforma agrria em nvel federal, alis j seriamente abalada desde a derrota sofrida pelo programa agrrio da esquerda em 1985. Mas havia uma janela aberta: se as reservas extrativistas fossem decretadas como reas de conservao, o procedimento de desapropriao no precisaria enfrentar todas as dificuldades encontradas no mbito do INCRA. Assim, logo aps as eleies de outubro, o Conselho Nacional dos Seringueiros, baseado no caso especfico da Reserva Extrativista do Alto Juru, com meio milho de hectares completamente fora dos palnos do INCRA, deu o sinal verde para o encaminhamento de uma soluo no mbito do IBAMA,. Mas depois que a Reserva Extrativista de Juru foi decretada em 23 de janeiro de 1990, com uma vitria dos seringueiros daquela remota regio contra os patres liderados por Orleir Cameli, outros trs projetos foram preparados e submetidos em regime de urgncia, seguindo o mesmo modelo. Esses trs projetos, no Acre (Reserva Extrativista Chico Mendes),

    11 Mendes 1989, S. Hecht e Cockburn 1989, Shoumatoff 1991.

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    em Rondnia e no Amap, foram aprovados na noite do ltimo dia do governo Sarney, em 15 de maro de 1990, aps uma demorada sabatina com militares na SADEM.

    A aliana conservacionista foi assim uma estratgia. E criar as Reservas Extrativistas como unidades de conservao foi uma escolha ttica. Dizer que a aliana conservacionista foi uma estratgia, porm, no quer dizer que ela fosse uma mentira, quer em substncia, quer em projeto. Quanto ao projeto, ele ainda est sendo traduzido para o plano local. Quanto substncia, os seringueiros de fato estavam protegendo a biodiversidade. No alto Juru, como j dito, a borracha era explorada havia mais de 120 anos, e a rea comprovou-se um hot spot de diversidade biolgica, com 549 espcies de aves, 103 tipos de anfbios e 1.536 espcies de borboletas.12

    verdade que, como o monsieur Jourdain que falava prosa e no sabia, os seringueiros conservavam a biodiversidade sem saber. Os seringueiros pensavam que estavam produzindo borracha, e no biodiversidade. A borracha tangvel e individualizada. No obstante as oscilaes de preo, tinha um valor relativamente estvel em comparao com o poder de compra da moeda. Quando a inflao devastava o pas inteiro, e os salrios no fim do ms valiam menos da metade do que no comeo do mesmo ms, os seringueiros conseguiam medir o valor de seu trabalho na borracha, tanto para trocas entre eles mesmos, como para compras externas. Se algum quisesse contratar os servios de um seringueiro como diarista, ouviria um preo de uma diria expresso como o valor de 10 kg de borracha. Em comparao com o resto do pas, essa diria era alta. Isso no significa que todo seringueiro produzisse 10 kg de borracha por dia todos os dias. Um seringueiro mdio explorava duas estradas de seringa e cada rvore era sangrada duas vezes por semana, no mximo durante oito meses. Com duas estradas, trabalharia quatro dias por semana,

    12 K. Brown Jr. e A. V. Freitas, no prelo.

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    usando o resto para caar no inverno e pescar na estao seca. Alm do mais, 10 kgs de borracha por dia no eram a produtividade de toda a regio, e sim um padro das reas mais produtivas. Como diria, porm, esses 10 kgs representavam dignidade e independncia: o que um homem podia ganhar num dia se ele quisesse, cuja dimenso monetria era o que os economistas chamam de custo de oportunidade do trabalho (os raros empresrios que tentaram estabelecer plantaes de seringueiras no alto Juru logo descobriram que um dos problemas principais era achar trabalho). A casa de um seringueiro depende simultneamente da extrao de borracha (para conseguir dinheiro), da agricultura de coivara (para obter a base alimentar que a farinha), da criao de uma pequena criao de ovelhas, porcos ou algumas vacas (como poupana para o futuro), e da carne obtida com a caa e a pesca. Tambm tem importncia a coleta sazonal de frutos das palmeiras e alguns outros itens alimentares, bem como materiais de construo, remdios e txicos. Mesmo quando no esto fazendo borracha, os seringueiros esto longe de estarem desempregados.

    Sabe-se que as plantaes de seringueiras no prosperam na Amaznia, principalmente por causa do mal-das-folhas -- pelo menos se plantadas com a densidade das plantaes asiticas. As seringueiras permanecem saudveis sob a condio de estarem dispersas pela floresta. Uma estrada de seringa consiste de cerca de 120 rvores do gnero Hevea. Uma casa de seringueiro utiliza em mdia duas estradas e s vezes trs, e a rea total cobrir no primeiro caso pelo menos 300 ha, ou 3 km2. Essa uma rea mnima, mas se inclumos toda a floresta, inclusive as zonas que no so atravessadas por estradas de seringa, mas so habitadas pelas caas, na Reserva Extrativista do Alto Juru as casas ocupam uma rea mdia de 500 hectares ou 5 km2. Esse fato -- a baixa densidade natural das prprias seringueiras na floresta virgem -- explica a baixa densidade humana nos seringais, por volta de 1,2 pessoas por quilmetro quadrado (uma famlia com 6 pessoas por 5 km2). Essa densidade compatvel com a conservao da floresta. Nessa rea total, a extenso desmatada para os pequenos roados

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    dos seringueiros (mas incluindo aqui os pastos da pequenas fazendas margem do rioJuru) mal chegam a 1%.

    Como seria de esperar, a traduo local do projeto de conservao variava de acordo com as situaes e planos. Enquanto no leste acreano os compradores "paulistas" derrubavam a floresta e enfrentavam os empates dos seringueiros, no oeste acreano ainda prevalecia nos anos oitenta o antigo sistema dos seringais. Algumas empresas paulistas haviam comprado a terra, mas nao para uso imediata, e sim como investimento especulativo, espera da pavimentao da estrada BR-364. Enquanto isso no vinha, arrendavam a floresta para os patres locais como Orleir Cameli, que por sua vez sub-arrendavam a outros patres comerciantes. Em cada boca de um rio importante estabelecia-se um depsito ou barraco de mercadorias fornecidas a crdito. O mesmo barraco era onde o candidato a seringueiro registrava-se como "titular" de uma parelha de estradas, sob a condio de pagar 33 kgs de borracha anuais por cada. Um chefe de famlia era assim por um lado arrendatrio de estradas de seringa junto ao patro, e por outro lado fregus devedor de mercadorias junto ao mesmo patro.

    O importante para o patro era manter o monoplio sobre o comrcio. Os patres procuravam controlar o fluxo de borracha, para evitar que seringueiros endividados (a grande maioria) vendesse borracha para regates e marreteiros, o que sempre ocorria em alguma medida. Esse contrabando era motivo de expulso de seringueiros de suas colocaes, com uso de policiais chamados da cidade para esse fim.

    Assim, os seringueiros do Juru, em contraste com os seringueiros do leste acreano, eram considerados cativos. Os seringueiros do vale do Acre, a leste, abandonados pelos antigos patres que haviam vendido seus ttulos aos recm-chegados fazendeiros, eram libertos, podiam vender a quem quisessem. Na prtica, era impossvel controlar pessoas espalhadas por um grande territrio de floresta. Durante os anos oitenta, os patres do Juru que eram mais bem sucedidos economicamente eram aqueles que ofreciam

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    mercadorias abundantes em seus barraces, graas a fartos financiamentos subsidiados pelo Banco do Brasil. O valor de um patro era medido pelo tamanho de sua dvida. E o de um seringueiro tambm.

    Os latifundirios acreanos que eram tambm os monopolistas comerciais tinham uma base legal mnima para suas pretensas propriedades. Nos anos oitenta, quando havia algum ttulo legal, ele cobria uma frao mnima da terra, em torno de 10% quando muito. A renda de 33 kgs de ha por estrada de seringa, e no pela terra em si, era uma renda pr-capitalista. Sendo fixa e em espcie, no dependia da produo efetiva ou potencial das estradas, nem dos preos vigentes. Mas era representava o reconhecimento por parte dos seringueiros de que o patro era "dono das estradas", e legitimava assim o status de proprietrios de que gozavam os patres, seu animus domini. A batalha dos seringueiros do alto Juru no era contra fazendeiros, e sim contra uma situao humilhante de servido. O programa bsico das primeiras reunies sindicais era a recusa a pagar a renda, e o protesto contra a violncia usada para proibir o livre comrcio. As primeiras escaramuas dessa luta, bem antes do projeto de Reserva Extrativista, foram as excees ao pagamento da renda (caso dos seringueiros que abriam suas estradas, ou de velhos), e depois a luta contra o pagamento de toda renda. 15

    A rebelio contra o pagamento da renda e contra a violncia do monoplio explodiu de vez em 1988, depois de uma reunio com 700 seringueiros na pequena cidade de Cruzeiro do Sul, capital do oeste acreano. Durante esse mesmo ano, haviam comeado as reunies em que a proposta de uma Reserva Extrativista comeou a ser discutida. Seguindo-se ao assassinato de Chico Mendes no final de 1988, no incio de 1989 foi fundada no rio Tejo uma associao de seringueiros para gerir uma cooperativa com capital de giro, concedido pelo BNDES. Isso significa um desafio direto ao monoplio patronal, junto recusa a pagar a renda. Vencendo aes judiciais de interdito patrocinadas pela UDR, conflitos violentos, prises e ameaas, por volta de maio de 1989 uma procisso de

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    barcos da "cooperativa" entrou triunfalmente no rio Tejo, no que viria a se tornar a Reserva Extrativista, carregada de mercadorias, numa carga apotetica e simblica que simbolizava o fim de uma era.16 Essa primeira tentativa de criar um sistema de comercializao e abastecimento cooperativista descapitalizou-se aps dois ou trs anos de funcionamento, e uma das razes que quase ningum entendia de administrao, muito menos em um ambiente de altssima inflao. Outro problema que muitos seringueiros no pagaram suas dvidas, em meio a uma rede de boatos patronais que diziam que "o dinheiro do governo, no precisa pagar".

    Mas a importncia da iniciativa era que, aps o primeiro ano de funcionamento da Associao, foi criada a Reserva Extrativista do Alto Juru, em 23 de janeiro de 1990, sob jurisdio do IBAMA. Era uma soluo a um problema fundirio e social (entre os quais os indcios da "escravido por dvidas" em seringal arrendado por Orleir Cameli), mas era tambm uma soluo a um problema de conservao, apoiada em pareceres de peritos e relatrios de bilogos.

    Em contraste com os empates contra a derrubada das rvores em Xapuri, no Juru as mobilizaes no eram abertamente ecolgicas -- exceto pelo fato de que os delegados sindicais antecipavam o incio iminente da explorao de mogno ao estilo praticado por Orleir Cameli, e denunciavam o desleixo com as estradas de seringa. Mas aps a criao da Reserva, e ao lado da atividade cooperativista, comeou uma atividade de construo de novas instituies em torno da Associao dos Seringueiros e Agricultores, a comear pelo Plano de Utilizao elaborado e aprovado em assemblia no final de 1991. Iniciaram-se projetos de sade e sobretudo um projeto que envolvia pesquisa, assessoria e formao de pessoal, com patrocnio de entidades que iam da McArthur Foundation FAPESP e ao IBAMA, e a participao de vrias universidades do pas -- com a meta de demonstrar que em condies adequadas era possvel que populaes locais gerenciassem uma rea de conservao. Essas condies incluem direitos

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    legais bem definidos, qualidade de vida aceitvel, instituies democrticas no plano local, acesso a recursos tecnolgicos e cientficos. O projeto apoiou a Associao em muitas atividades, desde a realizao de cadastros, mapas e projetos, at a intermediao junto a organismos nacionais e internacionais. Numa fase seguinte, o prprio IBAMA iniciou a canalizar recursos dos pases europeus (projeto PPG-7) para a rea, como uma das experincias "piloto" de conservao.

    O impacto dessas polticas sobre todos os aspectos da vida no alto Juru foi notvel, mas no surpreende que tenha sido bem diferente do esperado. Um exemplo que o povo do Juru desenvolveu sua prpria verso da conservao ambiental. Enquanto os jovens tendiam a entrar na arena poltica atravs da Associao e depois dos cargos locais, os homens mais maduros e respeitados constituram um quadro de "fiscais de base", cuja linha de conduta seguia o modelo dos velhos "mateiros" dos seringais. Os mateiros eram trabalhadores especializados que fiscalizavam o estado das estradas de seringa e tinham autoridade para impor sanes (tais como interditar estradas) em caso de corte mal feito e que ameaava a vida das rvores. Os novos "fiscais de base", com contraste com os velhos mateiros, no tinham autoridade para impor punies, e reclamaram muito disso, at receberem o status de "fiscais colaboradores" com uma autoridade limitada para realizar autos de infrao.

    Com ou sem autoridade formal, os fiscais de base conduziram sua misso com um intenso zelo. As principais infraes eram relativas caa. Toda e qualquer forma de atividade de caa era proibida sob o cdigo florestal com penas draconianas, como se sabe; mas localmente essa legislao severa era traduzida basicamente como uma poltica de equidade social. Assim, no Plano de Utilizao aprovado em assemblia aps muito debate, foi proibida no apenas a caada comercial (e havia um pequeno mercado local para a carne de caa no que era ento a Vila Thaumaturgo, logo depois transformada em capital municipal), os seringueiros proibiram a

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    "caada com cachorros". H dois tipos de cachorros na rea: os cachorros "p-duro" e os caros "cachorros paulistas". Ningum sabe com certeza se esses cachorros mestios vieram mesmo de So Paulo, ou se o nome vem de suas capacidades predatrias exageradas, mas em todo caso os "paulistas" so cachorros que perseguem a caa grande com muita persistncia, depois de localiz-la sem desviar a ateno -- ao contrrio dos pequenos cachorros "p-duro" que vo atrs de qualquer animal cujo rastro encontram. O problema com os cachorros paulistas, segundo o raciocnio do Juru, que eles assustam a caa, "quando no matam, espantam", e tornam a caa de animais maiores (veados, porcos silvestres) quase impossvel para quem no os possui. Havia ento um conflito local em torno do acesso igual caa, e os seringueiros decidiram igualar a todos por baixo: nada de cachorros. Essa proibio tornou-se a principal bandeira do conservacionismo local. No ter cachorros, no comeo os paulistas e depois todo e qualquer cachorro, tornou-se o sinal exterior de adeso ao projeto da Reserva, talvez at mais do que comprar na cooperativa e no nos patres que continuavam a atuar como comerciatnes itinerantes.

    H uma dissonncia importante que tem a ver com a prpria noo de produzir e manter a biodiversidade. Como mencionamos acima, o que os seringueiros pensavam estar produzindo era primeiro o seu sustento, e para isso a borracha destinada ao mercado. Em relao a tudo que est na floresta, a regra geral era a limitao, a absteno superexplorao, o compartilhamento social, as precaues mgicas e os pactos de vrios tipos entabulados com mes e protetores do que podemos chamar de domnios reinos, tais como a me-da-seringueira, a me da caa e assim por diante. A agricultura, por outro lado, no tem me. So as pessoas, pensa-se, que controlam aqui todo o processo. H assim uma radical separao entre o que explorado na natureza e o que controlado por homens e mulheres, uma aguda disjuno entre o domesticado e o selvagem. Pode-se perceber isso, por exemplo, no fato de que no existe categoria correspondente ao que chamamos de "plantas": a palavra "planta" existe, claro, mas refere-se

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    apenas ao que chamaramos de plantas cultivadas, um significado que parece alis evidente para quem sabe que "planta" vem de "plantar". E como as espcies silvestres no so plantadas, como cham-las de "plantas"? Na mata h sim paus, palheiras, cips, enviras.

    Outra pista na mesma direo a distino entre brabo e manso. No uso regional, brabo se traduz aproximadamente por "selvagem, silvestre, no-civilizado ou inculto", por oposio a domesticado. Em termos mais gerais, pode referir-se ao contraste entre criaturas que fogem do homem e as que no tem medo dele. No sentido mais restrito de no-domesticado ou inculto, a palavra brabo aplicada aos recm-chegados inexperientes com o trabalho e a sobrevivncia na floresta: na Segunda Guerra Mundial, os soldados da borracha eram chamados de "brabos", ou "selvagens", o que no deixa de ser um tanto surpreendente. Eram deixados na floresta com vveres e insrues, s vezes com a orientao de seringueiros mais experientes, a fim de serem "amansados".

    A oposio entre o brabo e o domesticado pervasiva e radical. "De tudo nesse mundo tem o brabo e tem o manso: tem a anta e tem a vaca, tem o veado e tem o cabrito, tem o quatipuru e tem o rato, tem a nambu e tem a galinha. At com gente tem os mansos e tem os brabos, que so os cabocos" (seu Lico, fiscal de base).

    Produzir a biodiversidade, produzir a natureza, pois um oxmoro, uma contradio em termos (locais). Mas justamente isso que os recursos do G-7 esto financiando. Como que isso se deveria traduzir em termos de polticas? Uma resposta econmica direta seria pagar diretamente aos seringueiros por aquilo em que o mercado mundial est realmente interessado hoje em dia, que a biodiversidade. Mas isso vai contra a percepo local. A biodiversidade um subproduto de um modo de vida, o equivalente do que economistas chamam de externalidade positiva. As externalidades so produtos que resultam de uma atividade do produtor e que so "consumidos' por outros livremente, como a fumaa de uma fbrica

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    que inalada pelo vizinho (externalidade negativa) ou a segurana da rua que trazida por uma casa bem protegida (externalidade positiva). O mercado ignora externalidades. Mas a biodiversidade e os servios (e desservios) ambientais comeam a ser levados em considerao, e seus benefcios comeam a ser tratados como algo a ser remunerado. Isso consequncia, alis, de uma noo ampliada do que o sistema como um todo. Se os servios ambientais forem pagos diretamente na Reserva, isso inverte o que figura e o que fundo: o que era um subproduto, uma consequncia no planejada de um modo de vida, tornar-se-ia o prprio produto.

    Por outro lado, o IBAMA e outros rgos concentraram seus esforos no desenvolvimento dos chamados produtos florestais sustentveis, e esperam que as Reservas sejam economicamente viveis com base nesses produtos, sem incluir em sua contabilidade os servios de conservao. O problema poderia ser resolvido por meio de uma combinao criteriosa de produtos florestais de boa qualidade, como fonte de renda monetria para as famlias, e um fundo que remunerasse globalmente a diversidade biolgica proporcionando benefcios coletivos relacionados ao bem-estar da populao, bem como recursos para financiar as organizaes coletivas locais e projetos sustentveis. Deve-se lembrar que at agora, com base na idia naturalizada de povos da floresta que so essencialmente conservacionistas, no se reservam fundos permanentes para os custos de governo local na floresta, apesar dos altssimos custos de viagem para todas as lideranas que moram nos altos rios.

    Essas tendncias comeam a acontecer. A conservao foi inicialmente uma arma poltica em uma luta pela liberdade e por direitos fundirios. Hoje, os recursos para a conservao esto sendo utilizados para conseguir motores de canoa, barcos, escolas, instalaes de sade. A conservao est se tornando parte de projetos locais e sua importncia est crescendo.

    Revisitando os povos tradicionais

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    Comeamos com uma definio em extenso e dissemos que viria depois uma definio analtica. Do que vimos, j podemos dar alguns passos nessa direo e afirmar que populaes tradicionais so grupos que conquistaram ou esto lutando para conquistas (atravs de meios prticos e simblicos) uma identidade pblica que inclui algumas, no necessariamente todas, as seguintes caractersticas: o uso de tcnicas ambientais de baixo impacto, formas equitativas de organizao social, a presena de instituies com legitimidade para fazer cumprir suas leis; liderana local e, por fim, traos culturais que so seletivamente reafirmados e reelaborados.

    Portanto, embora seja tautolgico dizer que "povos tradicionais" tm um baixo impacto destrutivo sobre o ambiente, no tautolgico dizer que um grupo especfico como o dos coletores de berbigo de Santa Catarina so, ou tornaram-se, "povos tradicionais", j que se trata de um processo de auto-constituio. Internamente, esse processo auto-constituinte requer o estabelecimento de regras de conservao, bem como de lideranas e instituies legtimas. Externamente, precisa de alianas com organizaes externas, fora e dentro do governo.

    Deve estar claro agora que a categorias de "populaes tradicionais" ocupada por sujeitos polticos que esto dispostos a conferir-lhe substncia, isto , que esto dispostos a constituir um pacto: comprometer-se a uma srie de prticas, em troca de algum tipo de benefcio e sobretudo de direitos territoriais. Nessa perspectiva, mesmo as sociedades que so culturalmente conservacionistas so, no obstante, em algum sentido, neotradicionais ou neoconservacionistas.

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    REFERNCIAS

    Allegretti, Mary H. 1990. "Extractive Reserves: An Alternative for Reconciling Development and Environmental Conservation in Amazonia". In A. Anderson (ed.) Alternatives for Deforestation: Steps Toward

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