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SEGURANÇA PÚBLICA E DIREITOS HUMANOS ENTREVISTA DE LUIZ EDUARDO SOARES A SÉRGIO ADORNO* RESUMO Nesta entrevista ao sociólogo Sérgio Adorno, Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de Segu- rança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, fala sobre os avanços e percalços de sua recente gestão naquele órgão, sobretudo no tocante aos projetos inovadores levados a cabo e às tensas relações políticas mantidas com as cúpulas das Polícias Civil e Militar e o governador Anthony Garotinho. Discute ainda os dilemas da incorporação dos direitos humanos na agenda da segurança pública e opina sobre a atual política nacional de segurança do governo federal. Palavras-chave: segurança pública; polícia; criminalidade; direitos humanos. SUMMARY In this interview conducted by Sérgio Adorno, former Rio de Janeiro state Security, Justice, and Citizenship secretary Luiz Eduardo Soares speaks of the advances and obstacles experienced during his recent tenure, focusing especially on the innovative projects he introduced and on the tense political relations he had with the upper echelons of the civil and military police and with state governor Anthony Garotinho. He also discusses the dilemmas involved in introducing human rights to the public safety agenda, and gives his opinion on the federal government's current security policies. Keywords: public safety; police; criminality; human rights. A partir de dezembro de 1999, o então coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Soares, começou a ter uma série de divergências que logo viriam a público com o governador Anthony Garotinho (PDT). Até aquele momento, Luiz Eduardo, intelectual reconhecido nacional e internacionalmente por sua atuação e produção junto a instituições como o Iser (Instituto de Estudos da Religião) e o Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) e por sua ativa participação no debate público, em especial em temas relativos a violência e direitos humanos, vinha realizando um ambicioso programa voltado para a segurança pública e os direitos humanos, que contava com o apoio e a confiança do governador. De dezembro até sua exoneração anunciada por Garotinho pela televisão, em 17 de março de 2000 —, Luiz Eduardo se viu envolto numa série de polêmicas que, para além do seu imediatismo, foram reveladoras de uma concepção bastante JULHO DE 2000 141 (*) Realizada por correio ele- trônico no início de junho de 2000.

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  • SEGURANA PBLICA EDIREITOS HUMANOS

    ENTREVISTA DE LUIZ EDUARDO SOARESA SRGIO ADORNO*

    RESUMONesta entrevista ao socilogo Srgio Adorno, Luiz Eduardo Soares, ex-coordenador de Segu-rana, Justia e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, fala sobre os avanos e percalos de suarecente gesto naquele rgo, sobretudo no tocante aos projetos inovadores levados a cabo es tensas relaes polticas mantidas com as cpulas das Polcias Civil e Militar e o governadorAnthony Garotinho. Discute ainda os dilemas da incorporao dos direitos humanos na agendada segurana pblica e opina sobre a atual poltica nacional de segurana do governo federal.Palavras-chave: segurana pblica; polcia; criminalidade; direitos humanos.

    SUMMARYIn this interview conducted by Srgio Adorno, former Rio de Janeiro state Security, Justice, andCitizenship secretary Luiz Eduardo Soares speaks of the advances and obstacles experiencedduring his recent tenure, focusing especially on the innovative projects he introduced and onthe tense political relations he had with the upper echelons of the civil and military police andwith state governor Anthony Garotinho. He also discusses the dilemmas involved inintroducing human rights to the public safety agenda, and gives his opinion on the federalgovernment's current security policies.Keywords: public safety; police; criminality; human rights.

    A partir de dezembro de 1999, o ento coordenador de Segurana,Justia e Cidadania do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Soares,comeou a ter uma srie de divergncias que logo viriam a pblico com o governador Anthony Garotinho (PDT). At aquele momento, LuizEduardo, intelectual reconhecido nacional e internacionalmente por suaatuao e produo junto a instituies como o Iser (Instituto de Estudos daReligio) e o Iuperj (Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro)e por sua ativa participao no debate pblico, em especial em temasrelativos a violncia e direitos humanos, vinha realizando um ambiciosoprograma voltado para a segurana pblica e os direitos humanos, quecontava com o apoio e a confiana do governador. De dezembro at suaexonerao anunciada por Garotinho pela televiso, em 17 de maro de2000 , Luiz Eduardo se viu envolto numa srie de polmicas que, paraalm do seu imediatismo, foram reveladoras de uma concepo bastante

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    (*) Realizada por correio ele-trnico no incio de junho de2000.

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    precisa do lugar do intelectual na vida poltica brasileira e, em especial, deuma reflexo em torno do papel decisivo a ser desempenhado pelo Estadonuma poltica para segurana pblica e direitos humanos.

    A relevncia do tema e a importncia de mantermos o debate vivoentre ns levaram Novos Estudos a convidar Srgio Adorno, professor doDepartamento de Sociologia da USP e pesquisador do Ncleo de Estudos daViolncia da mesma universidade, a realizar esta entrevista com LuizEduardo Soares, que atualmente reside em Nova York. (Omar RibeiroThomaz)

    O governo Fernando Henrique Cardoso, em seu primeiro mandato(1995-98), esboou proposta ampla e mesmo audaciosa de poltica para area de segurana pblica. Partindo de um diagnstico sucinto, pormpreciso, do cenrio de insegurana no Brasil contemporneo, explicitadoem Mos obra (Cardoso, 1994), o governo teve por objetivo principalrecuperar o controle estatal do crime e da violncia mediante amploprograma que insistia em lei e ordem. Atuou basicamente em trs direes:amplas iniciativas e aes no campo dos direitos humanos; iniciativas nocampo do controle do uso abusivo e do comrcio ilegal de drogas; geren-ciamento de problemas administrativos inerentes s agncias de contenorepressiva, em especial a Polcia Federal. Possivelmente, um dos principaisresultados foi o de se haver colocado os direitos humanos na agenda polticanacional. Neste campo, o conjunto de iniciativas, sobretudo visando coibirarbitrariedades das autoridades e agncias pblicas na conteno do crimee da violncia, conheceu avanos que os demais campos no experimenta-ram. A despeito disso, no se logrou reduzir ou mitigar os sentimentoscoletivos de medo e insegurana do cidado comum. Do mesmo modo, essasiniciativas pouco parecem ter tido efeito na reduo do crime urbano. Comoestabelecer um link entre direitos humanos e segurana pblica? Como serpossvel, para o cidado comum, reconhecer e aceitar que o respeito aosdireitos humanos constitui requisito para a implementao de polticas desegurana pblica eficazes?

    Em primeiro lugar, algumas observaes sobre a poltica nacional (ousua ausncia) para a segurana pblica. inegvel que o governo federalvem investindo, desde o primeiro mandato, na valorizao dos direitoshumanos. A presena do Dr. Jos Gregori frente da Secretaria Nacional deDireitos Humanos constituiu em si mesmo um fato digno de nota, cujasconseqncias no podem ser negligenciadas. Passos significativos foramdados, mas terminaram obstados pela sucesso politicamente motivada de ministros da Justia nem sempre identificados com os princpiosdefendidos pela Secretaria de Direitos Humanos, que enfrentou, tambmpor isso, dificuldades para sair do isolamento e receber os recursos

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    merecidos. Uma iniciativa especialmente relevante para a rea da seguranapblica, desencadeada pelo Dr. Gregori no incio do primeiro mandato dopresidente Fernando Henrique Cardoso, foram as reunies entre secretriosde segurana, chefes de polcia e especialistas voltadas para a definio deuma agenda comum, que viesse a constituir as bases para uma polticanacional. O esprito democrtico da iniciativa, em si mesmo elogivel, foi suaperdio, pois atribuiu por decorrncia quase natural da dinmica doprocesso poder de veto a cada participante, inibindo qualquer avano.Lembremo-nos que nessas reunies se sentavam lado a lado secretriosprogressistas e alguns conhecidos defensores e praticantes da barbrie. Oesforo serviu para sublinhar a importncia de muitos temas, como a reformadas polcias e sua fuso institucional, mas acabou sendo frustrante para osque apostavam em mudanas.

    Com a posse dos novos governadores, em 1999, as secretariasestaduais de segurana e as polcias estaduais ocuparam todo o espaopoltico, at mesmo por conta de suas responsabilidades constitucionais.Isso ocorreu at a nomeao do Dr. Jos Carlos Dias, que liderou a gestomais ousada e criativa do Ministrio da Justia em nosso perodo democrti-co. Aceitando correr riscos polticos, ele no hesitou em liderar a formulaonacional de uma poltica de segurana que conjugasse respeito autonomiados estados com orientao firme no sentido inovador, democrtico eracionalizador. Reuniu os parceiros estaduais que se dispuseram a somaresforos na direo da mudana, evitando as armadilhas paralisantes dabusca de um consenso invivel. Paralelamente, comeou a conceber eaplicar estratgias reformistas igualmente ambiciosas no campo jurdico.Problemas internos ao governo federal interromperam a trajetria promisso-ra e original do Dr. Jos Carlos Dias. O anncio do sucessor calou o protestocontra a sua exonerao, porque a opinio pblica mais sensvel ao ideriodemocrtico sabe que entre o Dr. Gregori e seu antecessor h apenasdiferenas de mtodo e de estilo; as metas e os princpios so os mesmos eportanto, supe-se, sero preservados.

    Seguem abertas, conseqentemente, as possibilidades de mudana,desde que o novo ministro no permita que sua fidelidade aos valoresdemocrticos o leve to longe a ponto de aceitar a paralisia do processo demudanas, em respeito ao consenso (inalcanvel) e a um equilbrio(inverossmil) que pode ser fatal para os propsitos reformistas. No o digocom arrogncia. Seria pattico e ridculo pretender "ensinar o pai-nosso aovigrio". Digo-o porque me repugna a postura dos que torcem pelo pior paracolher dividendos polticos. Eu toro pelo xito do ministro, seja porrespeit-lo, seja por ansiar pelas reformas que lhe compete liderar, e por issoprocuro prestar minha colaborao, alertando para alguns riscos. Riscos quej se insinuam nas entrelinhas do Plano Nacional de Segurana, cujadisperso pode ser o prenuncio do fracasso. O Plano compromete-se comum cardpio to amplo, variado e ambicioso de objetivos, que termina porperder substncia e credibilidade. At porque no apresenta todos os meios,recursos, mtodos e agentes necessrios para sua realizao. Alm da

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    amplitude do espectro, os itens assinalados so muito desiguais, seja emtermos de relevncia, seja quanto natureza do envolvimento do Estado,pois h inclusive aqueles que so meras obrigaes constitucionais, perma-nentemente esquecidas, cujo cumprimento no se merece destacar comoobjeto de um elenco de medidas especiais. O excesso de promessas podearmar frustraes, alm de impedir que o foco propiciado por um filtroseletivo comece a engendrar algo mais prximo de uma poltica integrada.Pois at agora falta uma poltica, e o plano divulgado, em seu formato atual, o modo mais suntuoso e elegante de no se ter uma poltica. No vcuo deuma poltica mencionam-se problemas de toda sorte, revelando preocupa-o e sensibilizando a opinio pblica, na suposio de que seja suficiente asimples listagem de problemas, com uma ou outra aluso a caminhos eprocedimentos alternativos, e com a referncia a dotaes oramentriasmodestas. Estamos no sexto ano de um governo que destacara a seguranapblica em seus compromissos de campanha, em 1994. tarde para o meroreconhecimento do terreno. mais que hora para uma interveno decidida,com foco claro, com objetividade seletiva e pragmtica. A hierarquia deprioridades condio do xito de uma ao governamental na rea desegurana pblica, no contexto que o nosso, no Brasil, to complexo eatravessado por contradies de todo tipo. No haver como escapar aosconflitos com as corporaes, s resistncias e s chantagens. Mas a opiniopblica dar suporte se estiver convencida da convenincia das medidas,sobretudo nesse caso, em que contamos com um ministro que tem crdito,por sua histria pessoal, e merece toda a confiana.

    Quanto a persuadir a opinio pblica de que vale a pena apoiarpolticas que procurem compatibilizar o respeito aos direitos humanos coma eficincia policial, eis a um tremendo desafio, talvez o maior de todos, atporque indissocivel dos demais. Explico: no limite, talvez s venha a serpossvel conquistar com consistncia o apoio da maioria da populao parauma poltica civilizada racional, democrtica e respeitosa dos direitoscivis e humanos quando demonstrarmos, na prtica, que ela realmentepossvel e produz resultados positivos. Temos de evitar o debate meramen-te ideolgico, porque nesse terreno tendemos a assumir posturas defensi-vas, uma vez que a mar montante, em sintonia com os brados que clamampor represso a qualquer preo, quase sempre a do crime ou, pelo menos,so os casos rumorosos e trgicos, dos quais h, infelizmente, exemplosdirios, no Rio e em So Paulo. Portanto, a meu juzo, o melhor caminhopara conquistar a adeso da sociedade demonstrar as vantagens prticas,sensveis, concretas das polticas que combinam eficincia com respeito.

    O problema repe-se a, neste crculo vicioso: como implantar polticasinovadoras e positivas, cujo sucesso eventualmente conquistar a opiniopblica para os princpios que as sustentam, se tal implantao depende, emltima instncia (consideradas as mediaes), do prprio apoio dessaopinio coletiva que se deseja conquistar? O gap ter de ser preenchido pelainiciativa de um ator poltico que se disponha a colocar em risco seu crditoeleitoral, a investir nessa poltica nova, na expectativa de recuperar, adiante,

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    o capital poltico investido, colhendo os frutos proporcionados pelo xito dapoltica implementada. Todavia, para que a iniciativa do ator poltico noseja um salto no escuro e uma agresso ao senso comum moldado einterpretado pela mdia, e para que seja possvel a obteno de uma trguapoltica, necessrio que os formadores de opinio e a mdia estejamconscientes da necessidade de que se assuma esse caminho, em benefciodo futuro da democracia e da prpria civilizao no Brasil. H todo umtrabalho a se fazer nessa esfera, para o qual os estudiosos, os pesquisadorese especialistas so decisivos. No Rio de Janeiro, virtude e fortuna, por vezestangidas pelo infortnio e a tragdia, teceram, em 1993, uma coalizo muitoampla no campo da sociedade civil, envolvendo representantes dos maisdiversos setores e de praticamente toda a mdia carioca: o Viva Rio.Superamos a tradio denuncista e investimos na construo de alternativas,ouvindo experientes vozes internacionais e locais e propondo polticaspblicas aos agentes governamentais, desde 1994. Esse esforo modulou otratamento que a mdia conferia violncia e criminalidade e nos tornou atodos mais maduros no enfrentamento coletivo do desafio da seguranapblica.

    O fato que os partidos no se prepararam para lidar com oproblema: os conservadores acostumaram-se a pedir mais do mesmo,indiferentes s conseqncias deletrias do recurso a mtodos policiaisbrbaros para combater a barbrie do crime. Seu domnio secular natura-lizou sua poltica: lanar os agentes da lei como ces contra os pobres, osnegros, os favelados, os habitantes dos bairros populares, para isol-los,cercando-os com o cordo sanitrio de uma ordem excludente e discrimi-natria. O crescimento acelerado dos anos 60 e 70, que nos fez um pasurbano da noite para o dia sem a proteo de um sistema adequado dewelfare, sem mecanismos democrticos de participao e integraopoltica, sem um planejamento urbano compatvel com a magnitude damigrao interna que o processo desencadeou , transformou a capital donovo estado do Rio em um arquiplago de favelas verticais. Tornou-seinvivel a soluo isolacionista. A cidade partida passou a exibir sem pudorsua fratura. Todas as classes compartilham o cotidiano do Rio, as praias ea violncia. Mas a poltica conservadora sequer se adaptou s novascircunstncias. A energia antes voltada para o isolamento desloca-se para opatrulhamento intimidatrio e as incurses blicas, como um suplementode fora que apenas agrava a brutalidade.

    Por outro lado, os partidos que se proclamam progressistas mantive-ram-se atados clave negativa e denuncista, desempenhando bem seu papelcrtico mas falhando na proviso de polticas pblicas de segurana alternati-vas. Como se bastasse suspender a prtica do "p-na-porta" para resolver osproblemas. Mesmo para as populaes pobres e faveladas essa no asoluo, porque no vem acompanhada da represso inteligente e adequadaao domnio territorial do trfico, que inferniza a vida das comunidades.As esquerdas custaram a despertar para a evidncia de que a inseguranaatinge toda a sociedade, principalmente os que tm menos recursos de

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    autodefesa. Custaram a compreender que ou haver segurana razovelpara todos ou ningum estar seguro. Esse reconhecimento tampouco consensual entre as elites, que por vezes ainda supem possvel proteger-seerguendo muros mais altos e contratando mais segurana privada.

    O discurso dos direitos humanos foi vocalizado pelas entidades dasociedade civil no contexto de posturas crticas, ou seja, negativas e de-nuncistas. Claro que h lugar para as crticas, que cumpriram papel degrande importncia em nossa histria recente, ainda cumprem e continuaroa faz-lo. Eu prprio me orgulho de ter contribudo nessa direo. Entretan-to, como as crticas ocuparam todo o espao e no foram complementadaspor discursos propositivos, fixou-se nos imaginrios popular e corporativo-policial a idia de que os que clamam por direitos humanos so contrrios sinstituies policiais e se opem sistematicamente a todo esforo deconteno da criminalidade. Da definio perversa, "quem fala em direitoshumanos est do lado dos bandidos", foi um pulo um pulo que contoucom o empurro ardiloso de segmentos irresponsveis e inescrupulosos damdia e de polticos demaggicos e populistas.

    Amparados na nova linguagem da cultura cvica carioca e fluminense,que a coalizo atualizada pelo Viva Rio inventava e animava, muitos de ns,militantes dos direitos humanos e estudiosos da problemtica da seguranapblica, comeamos a tentar desfazer os mal-entendidos e procurar umareaproximao construtiva com as polcias, aliando-nos a seus segmentosmais sensveis necessidade das mudanas. Por isso, desde a campanhaeleitoral de 1998 definamos nosso caminho como uma terceira via, distanteda barbrie tradicional, mas tambm crtica da omisso dos que opuseram barbrie a simples inrcia outra forma, alis, de conservar estruturasenvelhecidas. Contra a dupla barbrie, do crime e da polcia corrupta, seriapreciso uma poltica capaz de modernizar as instituies policiais na esferado gerenciamento e das tecnologias empregadas, moraliz-las por meio demecanismos de controle interno e externo, e de mobilizar a sociedade civil,sem cuja participao seria invivel restituir credibilidade e legitimidade spolcias (sabendo-se que essas qualidades no so adjetivas; pelo contrrio,so condies indispensveis para a eficincia policial, como demonstra aexperincia internacional).

    Desde os primeiros dias de janeiro de 1999 visitei batalhes edelegacias, para desfazer mal-entendidos e reduzir os desacordos e asresistncias s suas reais e, portanto, inevitveis dimenses. Com minhaequipe, da qual participavam policiais de ambas as corporaes, apresentavao conhecido modelo do gradiente de uso da fora, instrumento elementar detreinamento policial: primeiro, a menos que haja evidentes obstculos, deve-se tentar o comando verbal; havendo resistncia, legtimo recorrer fora,cujas expresses ampliam-se na exata medida da resistncia com que sedefronta e dos riscos envolvidos para o agente da lei. No limite, o policialpode e deve recorrer ao uso da arma, cujo efeito letal ser legtimo eperfeitamente coerente com o respeito s leis, aos direitos humanos e civis,quando a resistncia sua ao representar ameaa sua prpria vida,

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    esgotados todos os demais recursos de persuaso e coero fsica. Oprincpio da legtima defesa compatvel com os direitos humanos, assimcomo a funo coercitiva legal e legtima. Se o profissional da seguranapblica for bem treinado na aplicao do gradiente do uso da fora, agir emconformidade com a lei e os direitos humanos e cumprir com competnciasua misso. Isso que para ns um trusmo soava chocante e surpreendentepara grande parte dos policiais, sobretudo os que ocupavam as posieshierrquicas inferiores. A concluso era simples e perturbadora: quemdefende os direitos humanos no quer que os policiais cruzem os braos,mas que eles sejam competentes, isto , usem a fora segundo as necessida-des, trabalhando em conformidade com as leis em circunstncias que exijama ao policial. Nesse contexto, as noes de competncia e respeito quasese sobrepem, o que demonstra a correo de nosso princpio matricial.

    O resultado do primeiro ano foi estimulante: reduzimos em quase40% as mortes provocadas por aes policiais, assim como diminuiu signi-ficativamente o nmero de policiais mortos, em um contexto muito distanteda inrcia, pois foram apreendidas mais de nove mil armas em poder doscriminosos, um recorde histrico, e os nmeros da criminalidade registra-ram, na mdia, estabilizao relativamente a 1998, ano em que os in-dicadores, ainda que muito elevados, haviam sido os mais baixos da ltimadcada.

    Nas delegacias, eu costumava dizer aos policiais: "Vocs acham queoferecemos um servio de qualidade aos nossos clientes? Qual a qualidadede nossos produtos? Os produtos que geramos so o atendimento aopblico, a investigao bem-sucedida, a reduo da impunidade, a recon-quista da confiana da sociedade, o reerguimento da imagem institucional.Podemos melhorar a qualidade dos produtos? Qual a importncia dasatisfao dos consumidores, dos clientes, na proviso de segurana, que nossa responsabilidade? Quando h um erro, devemos ocult-lo, justific-lo ou assumi-lo, reconhecendo a verdade que todos admitem? Quandoprotegemos os policiais dizendo que tudo est sempre certo, que asacusaes so calnias, mesmo quando no so, estamos ajudando apreservar a imagem da instituio ou empurrando-a para o precipcio?Vamos refletir sobre um exemplo imaginrio: o que seria mais grave parauma empresa como a Coca-Cola: um incndio que consumisse vriasfbricas ou a descoberta de um rato em uma garrafa? Um rato em uma nicagarrafa, entre milhes, uma nica vez, em um pas obscuro, seria maisdesastroso para a Coca-Cola do que todos os incndios somados. Por qu?".

    Discutindo desse modo indireto a temtica dos direitos humanos,substituindo algumas palavras-chave, falando em cliente e consumidor,produto e servio, imagem e empresa, eu obtinha resultados surpreendente-mente positivos. Moral da histria: como todo mundo, os policiais tambmquerem ser modernos e sonham com uma instituio que lhes restitua aauto-estima. E a maioria perfeitamente capaz de compreender a necessida-de dos controles interno e externo, a importncia da ouvidoria e do rigor nocombate corrupo, inclusive a convenincia de atitudes governamentais

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    transparentes, fortemente anticorporativistas, porque percebeu que "varrer olixo para debaixo do tapete" no funciona mais, sobretudo hoje, quando o"rei est nu": a sociedade quer uma polcia diferente. Enfim, a maioria estpreparada para aceitar atitudes novas por parte das autoridades da rea dasegurana pblica e j admite que, independentemente do pendor tico oumoral de cada um, h um sentido pragmtico, de grande interesse pblico einstitucional, na poltica de enfrentamento explcito da corrupo policial,em todas as suas manifestaes.

    Em sntese, a meu juzo preciso combinar novas abordagens daproblemtica dos direitos humanos evitando posturas defensivas e infun-dindo-lhes significados pragmticos, ajudando a formar uma cultura cvicamais sensvel ao tema e mais democrtica com propostas construtivas depolticas pblicas realistas e eficientes.

    Em vrias entrevistas e artigos voc afirma que o programa desegurana pblica do governo Garotinho era (ou ainda ) o mais audaciosoprograma jamais tentado por qualquer governo estadual anteriormente. Defato, trata-se de um programa que buscou no apenas intervir em pontostradicionais de estrangulamento (como os de gerenciamento administrati-vo, tcnico e de recursos humanos), mas enfrentar reas naturalmentemuito conflituosas (trfico de drogas, crime organizado, corrupo polici-al), alm de inovar no sentido de alcanar reas pouco atendidas (entre asquais proteo de grupos cujos direitos so sistematicamente violados, comoas mulheres, negros, crianas e adolescentes, homossexuais) e de ampliar ainterveno civil no controle das instituies encarregadas do controlesocial. Em suma, um programa que pretendeu instituir uma nova diviso detrabalho e poder entre diferentes atores e agncias, intervindo nos tradicio-nais nichos de poder que estabelecem cumplicidades entre parcelas doaparelho policial, segmentos da classe poltica que controlam poder local esegmentos do crime organizado (nichos constitutivos da chamada "bandapodre" da polcia). Considerando o feixe de alianas que sustem o governoestadual, voc acreditava mesmo ser possvel erradicar da rea de seguran-a pblica esta herana conservadora e autoritria? Voc continua achan-do que, mesmo aps o desfecho dos acontecimentos que redundaram em seuafastamento do governo, ainda possvel levar frente um programa comaquela amplitude e escopo?

    Um amigo que ocupa importante cargo de representao do Brasil noexterior me disse pouco depois de minha exonerao do governo do estadodo Rio: "Eu no sei se seu caso prova que possvel ou que no possvelrealizar mudanas profundas na segurana pblica do Rio de Janeiro".Pensando sobre essa hesitao, eu me dei conta de que eu prprio no teriacomo oferecer uma resposta conclusiva. O quadro to grave quantocomplexo: estamos diante de um universo corporativista fechado, fortemen-te marcado por comprometimentos e cumplicidades degradantes, comimagem pblica negativa, atado a tradies autoritrias e burocratizantes,infenso ao planejamento, avaliao, refratrio ao controle externo e

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    insensvel s demandas da sociedade, com baixa qualificao, em mdia, edebilitado por amplos bolses de incompetncia. A Polcia Militar vertebra-se em torno da hierarquia e mostra-se mais gil e apta a reorganizar-se, aindaque seu rigor focalize sobretudo o comportamento interno do policial,concentrando-se por vezes em temas e cdigos bizantinos e anacrnicos. APolcia Civil, no Rio de Janeiro, est fragmentada em baronatos feudais, queso as decadentes delegacias distritais, e tem se mostrado resistente apadronizaes universalizantes, controles administrativos, modernizaogerencial e organizao uniforme e sistemtica das informaes. Por isso, oprojeto Delegacia Legal, se continuar a ser implantado, pode significar umaverdadeira revoluo tecnolgica e gerencial, alterando rotinas, estruturasfuncionais, equipamentos e atendimento do pblico.

    Uma dificuldade adicional que enfrentamos todos os que desejamosreformas alcanar o equilbrio entre as respostas imediatas aos dramas detodos os dias e o investimento nas transformaes que realmente podemfazer a diferena, mas que precisam de tempo para amadurecer. Sem essatrgua poltica, sob a presso das cobranas e as acusaes inconseqentesdos polticos oportunistas, que torcem pelas desgraas e se alimentam dastragdias, como abutres, muito difcil avanar o suficiente. At porque,enquanto as cobranas e presses ecoam na mdia, os policiais corruptos eassociados ao crime ameaam, acuando as autoridades, temerosas de umadesestabilizao ainda mais grave. Esses mesmos policiais so muitas vezescompetentes e sedutores: prometem resultados vistosos e rpidos, comprises espetaculares. Ameaados e ao mesmo tempo atrados por propostasinsinuantes, os governantes e as autoridades da segurana pblica terminamfreqentemente por capitular e render-se ao convvio promscuo com oscorruptos na polcia, em nome da governabilidade, dos clculos de oportu-nidade e das convenincias eleitorais. Transferem a lgica positiva dasalianas pluralistas com que operam na poltica para o terreno pantanoso dasegurana, onde as coalizes se degradam em cumplicidade. A expectativade aliar-se para cooptar e subordinar frustrou-se at hoje onde quer quetenha sido praticada: so os criminosos travestidos de policiais que acabampor dar as cartas, fortalecendo-se na exata medida em que destroem asinstituies a que servem, arruinando sua credibilidade e seu poder deenfrentar a criminalidade. A aliana com policiais corruptos a aliana com ocrime deixemos de meias-palavras. Como combater o crime tripulandoessa aliana? O irnico est em que os defensores dos direitos humanossomos rotulados de brandos e tolerantes com os criminosos, quando ostolerantes com os criminosos so os scios do crime nas polcias e nosgovernos, por mais duros que sejam seus discursos e at algumas de suasatitudes, com as quais, propositalmente, inflacionam o mercado ilegal nasfranjas dos morros, em que se trocam dinheiro, armas e drogas por vida eliberdade.

    Retorno a esse relato, que me custou particularmente muito caro,porque acredito que, com freqncia, minha exonerao ter sido interpre-tada como erro de avaliao sobre a correlao de foras, precipitao no

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    ritmo das reformas ou contradio entre a extenso das mudanas e aprecariedade das bases polticas que lhe serviriam de suporte e condicionari-am sua viabilizao. Claro que a discusso sria desse ponto exigiria muitaspginas. Sintetizando meu argumento, com o risco de descaracteriz-lo, eudiria que j h na sociedade fluminense, em especial na sociedade carioca,amplssimo apoio para todas as mudanas necessrias nas polcias e nasegurana pblica, mesmo as mais radicais. Os formadores de opinio estoconvencidos e o repdio corrupo policial generalizado. A imagem daspolcias corresponde ao que elas tm sido. Quem se dispuser a lanar-se novespeiro e atacar o problema certamente contar com apoio popular,suporte na mdia e adeso da sociedade civil organizada. Nas polcias, seriaingenuidade supor que se contaria com apoio majoritrio, a menos que asmudanas viessem associadas concesso de benefcios corporativos ex-pressivos. No creio que uma corporao se autotransforme radicalmente,ferindo interesses cristalizados. No vejo alternativa a intervenes dotadasde algum grau de jacobinismo, operadas por agentes externos, em nome dademocracia e dos interesses mais amplos da sociedade.

    Entretanto, devo registrar que a intelectualidade da PM e boa partedos oficiais superiores compreendiam e apoiavam a maioria dos projetosque implementvamos as excees eram os projetos mais diretamentevoltados para modificaes nas estruturas institucionais e nos regimentosdisciplinares. A Polcia Civil um caso parte: sua resistncia era grande,ainda que setores crescentes comeassem a identificar-se com a nova pol-tica, medida que comeavam a perceber que as delegacias legais noeram um engodo retrico, mas uma realidade tangvel e seria impossveldeixar de reconhecer o extraordinrio salto de qualidade que as novasdelegacias representavam, inclusive para a auto-estima dos policiais (e paraseus bolsos, dado que os selecionados para trabalhar nas delegacias legaiseram automaticamente inscritos em cursos de capacitao, os quais rever-tiam em vantagens imediatas: uma bolsa que lhes duplicava os salrios).Com o apoio da sociedade, da liderana da PM e de setores da Polcia Civil,a poltica de segurana que implementvamos no Rio tinha tudo para seguiradiante, dependendo, claro, da varivel-chave: o posicionamento dogovernador, que resultaria da avaliao que faria a respeito da convenin-cia de aprofundar as reformas, arriscando-se a pagar os preos que adviriamdos confrontos inevitveis com os bandos corruptos nas polcias. Essaavaliao foi feita e refeita inmeras vezes, em momentos distintos.

    Em maro de 2000 o governador considerou que, dada a minharecusa em participar da aliana que se instalara em dezembro, com aindicao de um novo chefe da Polcia Civil, seria mais conveniente para ogoverno demitir-me para evitar conflitos e problemas e manter a coalizoestabelecida, o que implicaria a imposio de limites implantao dosprincipais projetos previstos na poltica que definramos. A existnciadesses limites no impediria, contudo, sua realizao, desde que moderada,superficial, com algumas inauguraes festivas, mas pouca substncia paraevitar ferir determinados interesses. Eis a a equao que, a meu juzo, levou

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    o governador a optar pela minha exonerao: mantenhamos a polticapreservando os princpios e os discursos, executemos os projetos de maisimpacto, sublinhando sua dimenso visvel, mas evitemos ultrapassarcertos limites para que no se exponha a risco a aliana armada (aliana queapenas se consolidou com a troca do comandante geral da PM, em junhode 2000). De meu ponto de vista, esse equilbrio condenar toda a poltica,anulando o que lhe dava corpo, alma e consistncia.

    Sendo assim, repousando exclusivamente na deciso do governador ocaminho a seguir, no sendo mais possvel, por um lado, ampliar a rede desustentao que j era to extensa quanto possvel, na sociedade, namdia, nos partidos que apoiavam o governo e nos setores policiais sensveisaos clamores populares por mudanas e por outro manter o convvio comos aliados internos Polcia Civil sob pena de descaracterizao da pol-tica que eu representava , no havia alternativa seno obter do governadorsua opo. Jornalistas especializados e setores organizados da sociedade jcobravam de mim, em off um posicionamento em face das alianas cele-bradas pelo governador desde dezembro de 1999 e da semiparalisia dosprojetos. Diziam que eu corria o risco de tornar-me "santo de bordel".Estavam certos. Eu no poderia continuar coonestando aquela aliana e ojogo a que ela servia, no qual os projetos seriam progressivamente despoten-cializados e descarnados da unidade lgica e poltica que lhes dava forma efora, densidade e consistncia.

    Ser que se as mudanas ditadas pela poltica que implantvamosfossem mais lentas o governador decidiria mant-las e manter-me? Ser que,mais lentas, elas no seriam mais palatveis aos policiais civis que maisfortemente resistiram? Nesse caso, o convvio com esse grupo de policiaisno poderia ter se estendido mais, em benefcio da implantao dosprojetos? No tenho dvidas de que sim, o governador preservaria apoltica, se ela fosse menos incmoda e radical, e provavelmente memanteria no cargo, mas tampouco duvido de que transformaes maislentas e/ou mais superficiais negariam a prpria possibilidade de qualquerreforma digna desse nome. Esse o ponto crucial de minha resposta, aindaque eu saiba que para demonstr-lo teria de expor a anlise que fao dasdinmicas intra-institucionais e micropolticas nas polcias e suas interfacescom a poltica e as dinmicas sociais. Fico devendo essa coda, adiandoassim a seqncia do dilogo, o que timo, quando se tem o privilgio decontar com um interlocutor to fino e sofisticado quanto Srgio Adorno.Quanto convenincia de estender meu convvio com a aliana construdapelo governador na segurana pblica, acho que a leitura dos jornais, quepublicaram trechos das denncias contra esses aliados ou seus aclitos,seria suficiente para sugerir os motivos pelos quais a resposta inescapvelteria de ser, por todas as razes, negativa.

    Por ocasio do famoso episdio do topless nas praias do Rio de Janeirovoc escreveu interessante artigo, publicado em janeiro deste ano no Jornaldo Brasil, em que o antroplogo Luiz Eduardo Soares afirmava que "a

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    segurana pblica indissocivel da percepo coletiva". No artigo vocchamava a ateno para a complexidade subjacente ao episdio queentrelaava, em momento de transformao social e cultural, reaes ecomportamentos relacionados ao corpo feminino, disciplina e autorida-de masculinas, s fronteiras entre o pblico e o privado, ao papel da polciacomo instrumento de lei e ordem no contexto de um governo que reivindicapara si uma nova identidade poltica. Voc conclua o artigo dizendo que"se as polcias no compreenderem essa complexidade vo perder a chanceextraordinria de se renovar e de reconquistar parte da credibilidadeperdida". Voc acha mesmo que cabe aos agentes policiais compreenderessa complexidade do social para nele atuarem? Ou cabe a ns, cientistassociais, compreender a lgica, a mentalidade, o universo de smbolos evalores que presidem o mundo dos policiais para, como intelectuais, parti-cipar do debate pblico e colaborar na formao da vontade poltica detransformao social e institucional?

    Claro que cabe a ns, enquanto cientistas sociais, estudar, interpretar ecompreender essa lgica. Voc tem toda a razo. Meu erro, entretanto, teveuma razo de ser. No foi ingnuo. Foi proposital e voluntrio. Como eu nopodia citar explicitamente o secretrio de Segurana e o governador, recorriao sujeito amplo e vago, "as polcias". Por outro lado, como no tinhaespao, naquele momento, para dizer ao governador, diretamente, que aonipotncia o prenncio da derrota, que a arrogncia se traduz em com-portamentos e decises autoritrios, insensveis e contrrios ao esprito e substncia de nossa poltica de segurana, escrevi sobre os benefcios dahumildade na vida, na poltica e, particularmente, na poltica de segurana.Para reforar o elogio da humildade, assinalei a complexidade envolvida emquestes que pareciam menores e que passaram a ser tratadas, desde a novacomposio poltica na rea da segurana, formada em dezembro de 1999,com a sutileza das bodurnas e dos aougues.

    Em janeiro de 2000 vivemos alguns episdios dramticos, intensa-mente polmicos, que nos foram lanando a campos opostos, sistematica-mente: em primeiro lugar ocorreu o episdio do topless, que o secretrioproibiu para em seguida autorizar, depois que o enfrentei privada epublicamente. A imagem de policiais armados com fuzis cercando eprendendo uma senhora e seu esposo na praia s no era cmica porqueo pattico beirava o trgico. O desgaste para as polcias e o governo s nofoi maior porque consegui reverter as decises e o encaminhamentooriginal em trs ou quatro dias. O governador s percebeu que eu tinharazo em valorizar o episdio quando o Rio inteiro comentava o caso. Seriaimpossvel preservar inclume o governador evanglico, nesse caso. Eleteria de optar entre a contemporaneidade e os dogmas. Sairia perdendo dequalquer modo. E j que haveria uma opinio conservadora, minoritriamas expressiva, perderia duplamente se adotasse postura liberal: na faixaconservadora e entre os evanglicos tradicionalistas. No entanto impunha-se um posicionamento altura do nosso tempo e das ambies presiden-ciais; impunha-se condenar a represso. O governador no entendeu que

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    quanto mais adiasse sua escolha mais teria a perder, sendo impossvel, emum caso como esse, no perder. A questo para ele era como perder omenos possvel. Meu clculo, evidentemente, era outro. Eu seguia meusvalores e os princpios de nossa poltica e por isso condenava a represso,que me parecia inteiramente ridcula e despropositada. Felizmente, diantedesse dilema, o lado em que o governador calculou que perderia menos erao meu e eu venci a disputa.

    Na semana seguinte vivemos outro drama e outro confronto: o casodos angolanos. Houve luta entre traficantes pelo domnio da Favela da Mar,com vrias mortes. Um delegado disse imprensa que migrantes angolanosestariam envolvidos. No dia seguinte a hiptese estava nas manchetes, comsugestes de que tticas de guerrilha teriam sido adotadas na invaso. Emmenos de 24 horas os angolanos que viviam na Mar comearam a sofrertodo tipo de agresso e ameaa. Perderam empregos, contratos orais dealuguel foram interrompidos, ouviram o que no mereciam e passaram a"comer o po que o diabo amassou". No satisfeitos com os efeitosdesastrosos sobre tantas vidas de inocentes, a delegacia responsvel pelarea resolveu, por determinao do secretrio, convocar todos os angolanospara reviso de documentos e checagem de sua legalidade. Como umrebanho, feito gado, homens, mulheres e crianas angolanos se amontoaramao longo de um dia inteiro, vulnerveis s fotos, s imagens e a toda sorte devoyeurismo estigmatizante. No deveria passar desapercebida a dimensotnica do drama coletivo: os moradores da favela suspeitos de trfico eramnegros, o que concorria para sublinhar o estigma, no quadro de nossoracismo latente. Com a vice-governadora Benedita da Silva, encontrei-mecom representantes da comunidade angolana e declarei aos jornais: "Ima-ginem se fizssemos isso no Leblon, convocando todos os dinamarquesespara comparecer a uma delegacia porque houvesse suspeitas de que umdinamarqus teria participado de algum crime. Seria um escndalo e todos serevoltariam. Pelas mesmas razes, um escndalo, inaceitvel o que estacontecendo aos angolanos". O episdio assumiu propores muito maioresdo que o provincianismo de alguns auxiliares do governador o instou aprever. Felizmente, depois de uma carta pessoal de seis laudas que entregueiao governador, menes da imprensa iminncia de minha desistncia depermanecer no governo, iniciativas da vice-governadora e muita presso porparte da Embaixada de Angola, do Itamaraty, de entidades anti-racistas e damdia, o governador cedeu: desautorizou o secretrio de Segurana, pediu-me que redigisse a carta de desculpas que o governo de Angola exigia e queeu queria que fosse escrita e divulgada desde o primeiro dia, chamou-me aoPalcio para o encontro com o cnsul e encerrou o caso. Foi uma semanapenosa de desgaste intil, que culminou com o recuo e a adoo da posioque eu defendera desde o primeiro momento.

    Srgio Adorno, nas impropriedades que voc com razo identificouem meu artigo para o Jornal do Brasil eu estava operando uma linguagemcifrada, referida a um jogo muito pesado que se jogava longe dos olhos dopblico. O episdio do topless, assim como a estigmatizao coletiva dos

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    migrantes angolanos, prenunciavam as crises ainda mais graves que logo seprecipitariam, conduzindo ao desfecho conhecido. Mas para mim e minhaequipe representavam sinais muito claros de que o governo comeava a seinclinar em direo a novos rumos, muito diferentes dos que estabelecra-mos como as metas de nossa poltica, mas perfeitamente coerentes com asalianas firmadas pelo governador em dezembro, acolhendo na cpula dasegurana o chamado grupo Astra. A substncia da poltica escapava sobnossos ps. Em breve, no valeria mais a pena agarrar-se forma.

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