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    As atividades para a construo dos textos de

    memrias literrias formam vnculos fortes ehumanizados. que para escrever esses textos

    os alunos estabelecem contato com uma pessoa

    mais velha de sua comunidade e ouvem as

    histrias, impresses e experincias de vida que

    ela tem para contar. A narrativa traz uma viso de

    mundo particular, em geral distante da realidade

    dos alunos, que so convidados a recriar o que

    ouviram, escrevendo um texto.

    O lugar onde vivem narrador e ouvinte objeto

    para a reflexo dos dois: daquele que lembra e

    daquele que pergunta para depois reconstituiro que lembrado. Trata-se de uma ao que

    estabelece compromisso: Eu conto a minha

    histria; voc a salva do esquecimento.

    Esse compartilhar de experincias, num encontro

    de geraes, est presente nos textos a seguir.Um encontro permeado de memria e de espao

    de vivncia comum que refora identidades.

    Agora, voc, leitor, poder saborear as histrias

    escritas por alunos que foram conduzidos por

    professores numa viagem fantstica!

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    M

    emrias

    literrias

    Wanderley Williams Santos Silva

    Elias Antnio da Silva Filho

    Francieli Mabel Villagra

    Andressa Cristina Carneiro

    Gizeli Alves de Oliveira

    Taynara Leszcgynski

    Marlete Littig

    Nicole Aparecida Andrade da Silva

    velin Cristina Nascimento da Silva

    Eduardo Carneiro Freire

    Eduarda Moura Pinheiro

    Jernimo Pereira de Lima

    Mariana Pedrosa Alves

    Sumrio 60 Acorda, vem ver!

    62

    As guas do rio Sirigi

    64 A minha cidade querida

    66 A princesa dos campos

    68 Branca lembrana de uma infncia

    70 Como nos velhos tempos

    72 Como viver

    74 Com os olhos do corao

    76 Da escurido para o colorido

    78 De retirantes a amantes

    80 Cho varrido

    82 Do canto ao conto

    84 Engenho da minha infncia

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    Sabrina de Souza Rozado

    Saionara A. SantAna dos Santos

    Maciel Rodrigues de Sousa Jnior

    Leslly da Silva Massalino

    Aline Cristina dos Santos

    Edson Liberato Pereira de Arajo

    Sarha Dias Hottes

    Joyce Hellen Braga de Jesus

    Bruna Elisa Lasch

    Danley Dnis da Silva

    Priscilla Nicola Silva

    Daniele Oliveira Cunha

    Rayane Ferreira Santos

    Ccero Augusto Carvalho Abreu

    Brunna Elosa Coletto

    Bruna Menezes Carvalho

    Ian Azevedo de Oliveira

    Isla Magda Moura do Nascimento

    Deisy Luana Teixeira de Souza

    Munike Carvalho

    Franciele de Castro Sehn

    Joo Pedro de Santana Silva

    Andria Marinho de Sousa

    Kellen Cristina Felipe do Nascimento

    Louise Barbosa de Souza

    86 Entre baldes e fantasmas

    88

    Gotas de chuva... leve barulhoda saudade!

    90 Histrias de um av

    91 Saudoso recanto

    92 Histria que o tempo no apaga

    94 Histrias, um poema, uma cano

    96 V Neuza e as histrias do Vale Feliz

    98 Lembranas da nova capital

    100 Lembranas que no se apagam

    102 Lembranas que o tempo no apagou

    104 Luz, f, sabor e ao

    106 Memrias de um ribeirinho

    108 Minha infncia

    110 Minha vida de menina

    112

    Moinho das saudades

    114 Olhar distinto

    116 O guardio da estao

    118 O pulsar da vida no cair da tarde

    120 O sonho vermelho

    122 Rainha do carnaval

    124 Reconstruindo espaosatravs da memria

    126 Revirando o ba

    128 Trilhos de um p vermelho

    130 Uma histria de saudades

    132 Um cantinho da minha cidade,um patrimnio real

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    Acorda, vem ver!Aluno: Wanderley Williams Santos Silva

    H alguns dias, durante a madrugada, ouvi um enorme barulho na porta de casa. Eu pensei

    que havia algum brigando, corri e chamei meu pai. Imaginei que ele iria chamar a polcia, mas

    foi at a cozinha e pegou um litro de refrigerante, uma pequena quantia em dinheiro e abriu a

    porta. Fiquei muito assustado, mas pude observar que meu pai tinha entregado o dinheiro e a

    bebida a um dos homens que estavam em minha porta e todos saram felizes de casa em casa.

    Eu perguntei o por qu, e ele me respondeu com um belo sorriso que era s uma brincadeira.Depois de alguns dias vi o homem a quem meu pai havia dado o dinheiro e pergun-

    tei-lhe por que nos acordou com aquele tipo de brincadeira em plena madrugada, e ele

    decidiu me contar:

    Tudo comeou h quarenta e cinco anos, com o nascimento do meu irmo Nias. Meu

    pai, muito feliz com a chegada de mais um filho, decidiu comemorar: reuniu alguns amigos,

    os quais trouxeram zabumba, sanfona e tringulo e saram todos de porta em porta acor-dando os demais com uma enorme cantoria, acompanhada de instrumentos musicais e

    muitos fogos. Afinal, no estava comemorando somente o primeiro dia de vida do meu ir-

    mo, iniciava-se tambm o ms de comemorao dos santos juninos. Muito alegre e acom-

    panhado pelos companheiros, meu pai cantava:

    Acorda, vem ver

    vem ver recordao.

    Acorda o povo todo,

    hoje primeiro de So Joo.

    O primeiro de So Joo,

    dia de alegria,

    brincam homem e mulher

    at amanhecer o dia.

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    Segundo meu pai, naquela poca, alguns levantavam assustados e enfurecidos por te-

    rem sido acordados, mas tudo era explicado com uma enorme cantoria.

    Meus amigos, me desculpem

    por ter vindo lhes acordar.

    Hoje primeiro de So Joo,

    vamos juntos comemorar.

    Depois de muita explicao cantada, alguns deram dinheiro para comprar bebidas e

    outras coisas para a comemorao e a maioria juntava-se ao grupo, que saa cantando.Tudo terminou com um belo caf da manh preparado com o que fora arrecadado du-

    rante o cortejo. Aps o caf, aos poucos, todos iam embora, mas ficou a promessa que tudo

    iria se repetir no ano seguinte. E assim foi feito.

    Todos os anos, aps a meia-noite, iniciava-se a brincadeira, a qual passou a fazer parte

    dos festejos juninos de nossa cidade e ficou conhecida por todos como Acorda, vem ver!.

    Depois de alguns anos, meu pai faleceu. A pedido dele e da comunidade continuei comaquela tradio, a qual sempre esperada por todos na cidade.

    (Texto baseado na entrevista feita com o sr. Jos Paulo dos Santos, 39 anos.)

    Professora: Arlene Erclia de Jesus InvenoEscola: E. M. Jos Joaquim Pacheco Cidade: Malhador SE

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    As guas do rio SirigiAluno: Elias Antnio da Silva Filho

    No maravilhoso e tranquilo Engenho Pirau passei grande parte de minha vida. Recor-

    do-me de que jogvamos bola s margens do enorme rio Sirigi que corta a cidade de Alian-

    a. Esse rio foi muito importante em minha vida, pois era a nossa principal fonte de diverso

    e renda. Era sua vida que mantinha a nossa vida. Sobrevivamos tirando as areias que nele

    repousavam e vendamos aqui em Aliana e depois do trabalho descansvamos em suas

    guas claras e fresquinhas.Oh, saudoso rio Sirigi, tuas guas alimentaram meus sonhos e minha realidade!

    Hoje fico triste ao olh-lo: suas guas esto escassas e poludas. E as pessoas no mais

    o tm como tesouro.

    Lembro-me ainda claramente de mame atravessando o rio para me levar escola, que

    por sinal era bastante modesta. Ao se despedir, ela sempre dizia: Boa aula, meu filho! Sei

    que voc muito inteligente e vai me dar muito orgulho! Mas eu no era exatamente as-sim. Aquilo de que mais gostava era da hora da merenda. Depois, pulava o muro da escola,

    voltava s refrescantes guas do Sirigi. L, eu ficava tomando banho at dar a hora de ir

    para casa. E a sensao que tinha naqueles momentos era que estava em um sonho do qual

    jamais queria acordar. Hoje me arrependo daquelas fugas da escola!

    Ao voltar para a minha humilde casa de taipa feita de madeira e barro caminhava

    direto para o p de manga e me lambuzava naquela fruta deliciosa. Demorava-me horas

    entre as folhas daquela mangueira. Esquecia-me de tudo: do trabalho pesado, da escola e

    de todos os momentos de sofrimento. Sentia-me como um passarinho repousando no ni-

    nho e s despertava ao escutar a doce voz de minha me chamando para jantar.

    Recordo-me da alegria das festas de So Joo. Esperava por elas o ano inteiro. Nesses

    dias, acordvamos cedinho para colher milho no quintal e ajudar na produo das comidas.

    Lembro-me de que quando mame desviava o olhar colocvamos o dedo na panela para

    provar aquelas delcias. Adorava ajudar a fazer pamonhas e canjicas... Acho at que isso me

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    Professora: Maria Hosana Ribeiro da SilvaEscola: Dom Bosco Cidade: Aliana PE

    fez trabalhar vendendo aquelas delcias de minha infncia (hoje fao comidas tpicas de

    milho para vender). noite, nos arrumvamos para o forr: as meninas, todas de tranas,

    parecendo bonecas de milho; ns, homens, fazamos bigodes com pedras de carvo para

    impressionar os brotinhos. A sanfona e a zabumba comeavam a tocar e o corao da gen-

    te disparava, pois chegava a hora da paquera. Ao som alegre da sanfona, danvamos bem

    agarradinhos e confessvamos ao p do ouvido os segredos mais ntimos. A noite ia embo-

    ra e o forr continuava at os raios do sol aparecerem. Que saudades daquele tempo!

    Ainda me lembro de que um dia, eu menino j grande, enquanto caminhava pelas

    imensas terras do engenho, achei uma passagem de trem. Nem acreditei. Era felicidade

    demais! Pois o sonho de todo menino de engenho era viajar naquela mquina puxadapela maria-fumaa. No disse a ningum o meu achado. Naquela noite nem dormi, de

    tanta ansiedade. No outro dia, cedinho, acordei e fui para a estao esperar o trem.

    Quando o avistei de longe, meu corao disparou e bateu to alto quanto o apito que saa

    dele. Entrei, sentei e o sonho comeou...

    O deslizar suave pelos trilhos me proporcionou uma sensao que jamais esqueci: o

    vento batia em meu rosto, acompanhado de uma viso maravilhosa. Passavam por mimcasas, animais, rvores, pessoas... Para onde me levaria no perguntei, no queria saber.

    Estava fora de mim. Porm, algo me trouxe de volta realidade: avistei meu rio Sirigi,

    distante de mim. Naquele momento surgiu um grande medo e comecei a chorar. Queria

    voltar para o meu rio, porque ele era a minha vida.

    Rio e trem so lembranas que jamais sairo de minha memria.

    (Texto baseado na entrevista feita com o sr. Luiz Fbio Barbosa da Silva, 48 anos.)

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    A minha cidade queridaAluna: Francieli Mabel Villagra

    Conversando com a minha av, fiquei sabendo mais sobre a sua vida.

    Quando cheguei a esta terra, ainda adolescente, vinda do serto nordestino, estranhei

    muito: as comidas diferentes, o sotaque, muitas coisas que eu conhecia com um nome aqui

    tinham outros.

    Meu pai era agricultor, logo arrumou emprego numa fazenda bem prxima, e minha

    me era professora; ela bordava muito ponto cruz, que era moda; as vizinhas encomenda-vam e ela fazia. Nas horas de folga dava aulas particulares para algumas crianas cujas

    mes a procuravam por no ter uma escola por perto.

    Era uma vila, com um canavial ao redor das poucas casas que existiam e muitos plantios de

    mandioca. Como era difcil transitar nos dias de chuva! Mas isso no impedia nossos passeios.

    Aqui moravam poucas famlias, somente as duas primeiras fundadoras e proprietrias

    do local.Diverso no local no existia, tnhamos que nos deslocar at a cidade vizinha para as

    festas do padroeiro ou quermesse (festas juninas), que eram as mais frequentadas pelas

    famlias. Outra diverso era ir ao cinema de seu Antnio, que trazia os filmes da capital e

    passava para os poucos habitantes existentes. Lembro-me bem de Love story e A lagoa

    azul.Como eram bonitas as histrias de amor contadas naquele tempo! Lembro-me do

    Charles Chaplin, que era muito engraado, a gente dava muitas risadas com seus trejeitos.

    Foram chegando famlias de outros Estados e construindo suas casas e montando seu

    comrcio. Primeiro, foi a marcenaria de seu Honrio, gacho, que comeou a fazer mveis,

    cada um mais bonito que o outro. Depois, seu Jos e d. Zezinha, que montaram um arma-

    zm onde encontrvamos muitas coisas. L comprvamos para pagar no final do ms, quan-

    do o meu pai recebia o salrio, mas para isso tnhamos uma caderneta em casa, onde

    minha me controlava tudo para no ultrapassar o ganho de meu pai e ainda sobrar para

    comprar roupas e calados para todos.

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    A cidade foi crescendo, e foi criada uma escola, onde a primeira professora foi minha

    me, d. Elza. Tinha somente uma sala de aula, e foi l onde terminei o primrio. Tambm foi

    nessa poca que conheci o meu primeiro namorado. Estudvamos na mesma srie e come-

    amos a flertar, que era como se chamava a paquera de antigamente. Ele havia chegado

    de So Paulo com seu pai, que comprara uma fazenda pertinho daqui, mas demorou pouco,

    resolveu ir embora para estudar.

    Como era saudvel o namoro daquele tempo. A gente trocava bilhetinhos amorosos;

    tambm brincava de passar o anel. Fazamos um crculo e uma pessoa ia passando o anel e

    s o deixava cair na mo de quem gostasse mais. Era uma brincadeira simples, mas, para

    ns, divertida.A vila cresceu rpido, virou cidade, e logo foram construdas escolas municipais, estaduais

    e particulares. Tambm foi quando apareceu um italiano que construiu uma indstria de fari-

    nha de trigo que depois passou a fazer macarro, arroz e biscoito. Esta trouxe muitas famlias

    para trabalhar aqui, e a populao foi aumentando. Da veio a necessidade de mais casas, e

    apareceram os conjuntos habitacionais, e hoje temos esta cidade bonita e acolhedora.

    Formei-me no magistrio e comecei a lecionar em uma das escolas estaduais, depois fizo curso de matemtica e continuei como professora. Um dia chegou um rapaz para a vaga

    de portugus. Ele era muito srio, mas simptico. Fui a primeira a puxar conversa com ele,

    ficamos amigos e depois comeamos a namorar, foi pouco tempo de namoro. Naquela

    poca o rapaz no podia alisar banco por muito tempo e logo nos casamos. Tivemos dois

    filhos, que nos deram quatro netos.

    Hoje estamos aposentados, tenho 65 anos e ele, 70. Passeamos na casa dos filhos, eestamos muito felizes com a famlia que construmos, com a vida que temos e com a cidade

    em que vivemos, porque ela nos acolheu como filhos e passamos a am-la como se fosse a

    nossa terra natal. Por isso a chamamos de minha cidade querida.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Dulce Pereira Melo, 65 anos.)

    Professora: Maria das Graas de S CavalcanteEscola: Leonor de Souza Arajo Polo Cidade: Nova Alvorada do Sul MS

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    A princesa dos camposAluna: Andressa Cristina Carneiro

    A vida em Tatu sempre foi muito tranquila, ainda mais para mim, que sempre vivi num

    pequeno stio do bairro dos Mirandas.

    Minha casa era uma construo bastante antiga, do tempo dos escravos, ainda feita de

    sap e barro.

    Papai, nessa poca, trabalhava numa lavoura de algodo, uma imensido de terras co-

    bertas por um branco sem fim, que pareciam mesmo campos repletos de neve.Nessa poca, tudo era mais difcil. Alm de ajudarmos na lavoura, tirvamos gua do

    poo para nossas atividades domsticas. O banheiro ficava fora, era uma latrina: no cho,

    assim rstica, um buraco, onde cada passeio era uma excitao mental extraordinria.

    A cada dia, o passeio at o banheiro era uma surpresa diferente, mas havia sempre uma

    especial: Josu, que estava sempre l. Ele era alegre, cantava sem parar, me fazendo com-

    panhia e afastando a magia fantasmagrica das trevas noturnas.E antes que eu esquea... preciso lembrar que Josu era um sapo, muito grande, verde,

    de olhos esbugalhados. Por muito tempo foi meu amigo mais fiel, at que conheci um novo

    mundo o da escola.

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    Como nosso bairro era muito pequeno, no tinha escola, e os patres de meu pai acha-

    vam importantssimo que eu tivesse estudo. Assim, decidiram que meu pai me levaria todos

    os dias de carroa para a cidade e eu achava tudo isso a mais incrvel aventura, como as das

    novelas do rdio, que ouvamos na poca.

    Sentia-me como uma princesa ou uma herona do velho oeste em cima da velha car-

    roa, recoberta com um pelego bastante quente, que nos dias de frio me aquecia e nos de

    calor me acalorava ainda mais.

    O primeiro dia na escola foi algo bastante incomum, todos se conheciam, pois, como

    diziam, moravam na cidade, e eu... com meus ps sujos de terra vermelha, roupas simples,

    sem uniforme, e uma sacolinha de pano, onde levava a minha merenda: po feito pela mi-nha me, recheado com banana, e o mais puro leite numa garrafinha de vidro.

    Transformei-me logo no alvo da risada de todos, eles no compreendiam que eu vinha de

    longe e que tudo isso era o melhor que podia ser conferido a ns que morvamos no stio.

    Estava deslocada, um passarinho fora da gaiola. A professora d. Lgia, vendo-me acua-

    da, tratou logo de reverter a situao, acolheu-me como me. Contou que tambm morava

    num stio e pediu-me um pouco do meu lanche e o saboreou como um banquete.Por um momento, foi como se o mundo tivesse parado, todos atordoados com os acon-

    tecimentos. Nem podiam acreditar, pois a professora que nunca mostrava afeio por nin-

    gum estava bem ali do meu lado, como uma velha e querida amiga.

    Desse dia em diante todos passaram a me respeitar, no mais me esquecia de chegar

    cidade e limpar os ps, trocar os sapatos e escond-los na rvore defronte da escola para

    que nunca mais meu lugar ficasse cheio da terra vermelha, terra de que tanto me orgulhava

    no caminho feito de carroa conduzida por papai, com o dia claro ou com as luzes dos ve-

    lhos lampies a gs.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Bernadete Poles Andr, 58 anos.)

    Professora: Arethuza Barbosa CirineuEscola: E. M. E. F. Professora Lgia Vieira de Camargo Del Fiol Cidade: Tatu SP

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    Branca lembrana de uma infnciaAluna: Gizeli Alves de Oliveira

    Naquela poca, o carreirinho que ia igreja j estava branquinho de neve, como se ti-

    vesse chovido algodo sobre a mata ainda virgem. Os galhos dos pinheiros at os mais

    fortes quebravam devido ao peso da neve. Os barrancos ficavam todos cobertos por uma

    manta branca e suave, formando um verdadeiro escorregador. Fazamos bonecos de neve

    com nariz de cenoura, braos de galhos secos e uma panela velha como chapu. Foi a nos-

    sa maior diverso!Contrastando com a neve, estava o marrom carnado do pinho no cho. Pinho, tinha

    bastante! Por isso era pinho no almoo, na janta... Como a comida era pouco diversificada,

    a gente dava graas quando tinha alguma coisa diferente. O pinho dava um sabor a mais

    a nossas refeies!

    A gente sabia que o pinho s dava no inverno, mas queria catar pinho o ano todo.

    Ah, que saudades daquela poca em que a gente fazia o sapecado! O pinho quentinho eo chimarro eram nossos tesouros, nossa tradio...

    Velhos e bons tempos eram aqueles!

    Namoro? S com o pai no meio de ns dois, mesmo ns sabendo que no podamos

    nem pegar na mo! Os bailes eram bonitos e nos clubes Guarani e 1- de Janeiro eram agi-

    tados, uma alegria s! Quando os casais comeavam a danar, todo mundo aplaudia, com

    muito respeito. Respeito, por sinal, era a marca registrada daquela poca.A escola no era to fcil, assim como hoje. No podia olhar para o lado que a pro-

    fessora j dava a palmatria. A temida e respeitada palmatria! Talvez, devido a ela, havia

    mais respeito com os pais, com os professores e com as pessoas mais velhas. Bastava uma

    olhadinha e ns j sabamos o que era!

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    Tenho saudades daquele tempo, do sabor do pinho e da suavidade da neve que

    quando passava deixava tudo com um inesquecvel gosto de quero mais...

    Nessa cidade, que hoje no mais to pequena, e bastante diferente da Santa Cecliade antigamente, eu morei e moro at hoje, relembrando o passado. E de onde no quero

    sair, porque para mim o meu cantinho gelado, mas o melhor para viver, enquanto existirem

    as lembranas dessa terra de alma suave como a neve e imponente como a araucria.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Isaura Grimes dos Santos, 78 anos.)

    Professor: Elizeu Domingos TomasiEscola: E. E. B. Irm Irene Cidade: Santa Ceclia SC

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    Como nos velhos temposAluna: Taynara Leszcgynski

    Os momentos passam, as pessoas se vo, a vida muda, o progresso aumenta, e de

    minha to amada poca s ficaram lembranas. Minha casa era pequena, um bero de

    humildade, construda com madeira lascada de pinheiro, no existia energia eltrica, tnha-

    mos apenas um lampio de querosene. ramos pobres, mas vivamos num lar feliz, apesar

    das dificuldades em at conseguir o que comer.

    No quintal havia um paiol onde guardvamos o pilo, feito de um tronco de madeiramacia escavada, onde socvamos amendoim para fazer paoca. Tinha tambm o monjolo

    dgua e a jorna, que usvamos para fazer farinha e quirera.

    Sempre aps as chuvas minha me ia plantar na horta. Eu a acompanhava, levando

    a enxada, para ajudar a capinar. O cheiro de terra molhada e o azul do cu se misturavam

    com as cores dos ips, despertando magia, e formavam uma aquarela de fantasia, que

    tomava minha mente e fazia de mim um pssaro, um menino livre, pronto para realizarmeus sonhos.

    Mal via a hora de chegar o domingo, reunir meus amigos, esquecer do mundo e brin-

    car. Nossas brincadeiras eram simples, porm muito divertidas. Brincvamos de trilha, bli-

    ca, esconde-esconde, pular corda, leno atrs, peteca feita com pena de galinha e palha de

    milho, bocha com bola feita de tronco de varaneira e carrinhos feitos de tabuinhas.

    s vezes meu pai e minha me iam passear casa de meus avs. Eu e meus irmosamos junto. A viagem durava o dia inteiro, o percurso era longo, a estrada, cercada por

    uma bela mata ainda pura. Quando a escurido j tomava seu lugar, chegvamos. A lua

    clareava o cu, meu pai fazia uma fogueira no meio do terreiro, eu e meus irmos puxva-

    mos uns bancos e sentvamos todos em volta da fogueira, observando as estrelas e escu-

    tando as piadas, prosas e causos contados por meu av.

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    Quando algum adoecia, minha av preparava seus chs; se no estivessem fazendo

    efeito, meu pai calava alpargatas e esporas, colocava os arreios no cavalo, e saa a galopar

    em busca de curandeiros ou benzedeiras. Para ir mais rpido, ele e seu tordilho iam pelos

    carreiros do meio da mata, percorriam longos caminhos at chegar ao destino.

    Em meio a tantas dificuldades, at hoje moro na cidade de Santa Maria do Oeste, as

    barreiras aos poucos foram sendo enfrentadas e, com muita luta, vencidas.

    De minha juventude, recordo-me bem; jogava truco e pife nos torneios. Nos bailes, chi-

    mangos e quermesses podiam se ver todos os rapazes e as mocinhas embalados pelo vanei-

    ro e fandango. Eu tocava gaita, sanfona, fazia chorar a viola, fazia gemer o fole da cordeona.

    Minha felicidade era ver a animao do povo, cantando, danando, divertindo-se.

    Hoje minha alegria sentar no banco da varanda e tomar meu chimarro. O vento

    assovia e traz a saudade que me faz lembrar de minha querncia, de minhas razes, de mi-

    nha religio.

    Lembranas que estavam adormecidas aos poucos vo despertando e renascendo em

    mim como em um filme. A magia se mistura com a saudade e por um instante sinto como

    se ainda fosse criana. Mas eis que um forte impulso me puxa. a realidade que me avisa:

    O passado no vai voltar. Vejo ento que toda essa fantasia fruto da imensa saudade que

    teima em me perseguir.

    E, como dizia uma velha msica, meu chapu de palha, meu chicote de couro. Sim,

    sou caipira filho de canarinho, neto de sabi. Guardo essas minhas histrias em minha

    memria dentro de meu corao, pois espero que nossa cultura no morra e que se renove

    de gerao para gerao. Coisa rara em meio a tantas evolues. S desejo que o progresso

    no mate nossos sentimentos, nem domine nossos coraes.

    (Texto baseado na entrevista feita com o sr. Jos Leszcgynski, 66 anos.)

    Professora: Julieta Maria Cartelli SimonEscola: Colgio Estadual Jos de Anchieta Cidade: Santa Maria do Oeste PR

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    Como viverAluna: Marlete Littig

    s vezes minha mente flutua no universo e para exatamente na minha infncia.

    O calor das minhas cobertas era interrompido por uma manh gelada. Com apenas

    metade de um olho aberto pensava que estava viajando entre as nuvens. Infelizmente era

    s a neblina que tentava engolir minha casa. Ao sair da cama j sentia o cheiro do caf, que,

    ao entrar no meu nariz, esquentava meu corpo e at tirava o frio das minhas veias. Na va-

    randa o caf descia pela minha garganta em goles rpidos. Olhando para onde eu pensavaser o comeo do mundo, via o sol chegando e as pequenas gotas de gua que evaporavam

    devagar da imensa mata que parecia tocar as mais altas nuvens no cu; o crrego dentro

    da mata corria devagar... Pertinho de casa, do outro lado do terreiro, tinha ps de laranja e

    de jabuticaba, que pareciam bolas de gude.

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    Professora: Sirlei Del Puppo de AguiarEscola: E. E. E. F. M. Gisela Salloker Faiet Cidade: Domingos Martins ES

    Todos os dias saa de casa correndo rumo escola que ficava bem, bem longe... Uma

    grande aventura, mas para meus irmos menores era um desafio de seus medos, por

    passarmos em um estreito caminho dentro de uma mata sombria. As marcas do longo

    caminho ficavam no meu ombro pelo peso do embornal (sacola que era como uma mo-

    chila na poca, feita em casa pelas prprias mes). Sempre na volta da escola um inimigo

    me perseguia: o sol que sufoco!

    Eu e meus nove irmos precisvamos ajudar nossos pais na roa. Apesar de o trabalho

    ser duro, nunca reclamei, pois eu no gostava de contrariar meu pai. Quando chegvamos

    a casa, aps um demorado dia na roa debaixo daquele sol forte, s pensava em uma coisa:

    descanso!

    noite, depois de um banho que aliviava meu cansao e de ter saboreado a comida

    preparada por mame no fogo a lenha, ia me deitar. A fumaa que a lamparina a quero-

    sene produzia polua meus pensamentos, a ltima chama antes de ser apagada incendiava

    meus sonhos!

    Hoje, no sei o que sou, ou o que eu fui, mas tenho certeza de que fui e sou muito

    feliz! Apesar das inmeras dificuldades que enfrentei, nunca desanimei. Agora as coisas

    so bem mais fceis, mesmo assim as pessoas no do valor vida. Percebo, sou feliz por

    sempre saber viver!

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Anna Tschaen, 82 anos.)

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    Com os olhos do coraoAluna: Nicole Aparecida Andrade da Silva

    Dizem que os olhos so o espelho da alma. Fora as rugas do meu rosto, so os meus

    olhos que trazem de volta de forma quase mgica, setenta e seis anos de um passado cheio

    de alegria, tristeza e luta.

    Sou Maria, no uma Maria cheia de graa, mas cheia de histria!

    Nasci no interior de So Paulo, em Santo Antnio do Pinhal. Passei a minha vida inteira

    em um bairro chamado Renpolis, que hoje traz poucos vestgios do passado, exceto as

    estradas de terra, que trazem de volta, no cheiro da poeira, meus tempos de outrora.

    Nasci em uma famlia humilde de oito irmos. Fui uma criana que teve mais trabalho que

    diverso. Naquele tempo, os meninos aprendiam desde cedo a trabalhar na roa, e as meni-

    nas, a cuidar dos deveres de casa. Lembro-me, como se fosse hoje, de que, com apenas dez

    anos, eu subia em um banquinho de madeira feito pelo meu pai para alcanar o fogo a lenha

    e fazer o almoo para meus pais que vinham famintos da nossa plantao de verduras e frutas.

    Acreditem, naquela idade eu j lavava a roupa da famlia inteira beira do rio, que erao ponto de encontro de todas as lavadeiras do bairro. Naquela poca, as guas eram to

    cristalinas que conseguiam refletir a imagem perfeita da menina franzina que eu era. Hoje,

    o mesmo rio, que lavava a minha alma cheia de sonhos, j quase no existe mais, vtima do

    descuido e da eroso causada pelos moradores.

    Que tempos aqueles! Sinto saudade das brincadeiras entre mim e meus irmos, ao cair

    da tarde e incio da noite, onde o cenrio perfeito para nossa imaginao era a nossa casade barro, o cu e a luz da lua. Era assim que nossa infncia era iluminada, pois a luz eltrica

    ainda era um sonho distante.

    Enquanto brincvamos minha me preparava, com mos de fada e luz de lampari-

    nas lmpada com pavio abastecido com querosene , o delicioso doce de goiaba com

    frutas colhidas de nossa prpria plantao. Aquilo era fruto proibido para ns, porque era

    com o dinheiro da venda que a minha me comprava sapatos e tecidos para fazer nossas

    roupas. Para as meninas, ela comprava a chita tecido simples, barato e extremamente

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    colorido, que atualmente usado em festas juninas e carnavais. Era um pouco transparente,

    e lembro que isso me incomodava.

    E foi nessa exploso de cores que nasceu uma nova Maria, a menina que trocou as

    bonecas de pano pelo brilho do rougee do batom cor de carmim maquiagem muito usa-da no meu tempo de mocinha.

    Casei-me muito cedo, pois naquela poca as meninas j nasciam com um nico destino

    casar e ter filhos. E muitos filhos! E por isso muitas no estudavam e poucas aprendiam a escre-

    ver o nome. , os tempos mudaram! Hoje as moas se casam com a idade em que eu j era av.

    E foi assim que Deus me deu seis filhos, dos quais cuidei como pedras preciosas na

    mesma terra onde nasci. Passei por muitos apuros. Depois de um dia inteiro de trabalho naroa, passei muitas noites em claro bordando blusas de l para vender em Campos do

    Jordo cidade turstica de clima muito frio. Meu Deus, eu ia a p, j que o meu bairro fica

    prximo a essa cidade. Tudo isso para economizar o dinheiro do bondinho, trem que at

    hoje faz o mesmo percurso e cujo preo da passagem era bem salgado como chamva-

    mos, naquele tempo, o preo alto.

    Graas ao meu amor de me, que no poupou nenhum tipo de sacrifcio, formei duas

    filhas professoras. Que orgulho! Antigamente, ser professora era uma profisso de desta-

    que. No como hoje, uma profisso to desvalorizada.

    Mas, infelizmente, a vida e o tempo nos do bens preciosos e permitem que os perca-

    mos tambm. H dezessete anos, perdi um dos meus orgulhos, a Vera minha filha mais

    velha. Acho que enterrei com ela uma parte do meu passado, e, como consequncia do

    meu sofrimento, perdi a viso, resultado de uma diabetes emocional.

    Hoje o mundo me parece obscuro, muito do que fui j no existe mais. Da minha janela,viajo no tempo. Sinto o cheiro da poeira e de tudo o que plantei neste cho!

    E assim que consigo ser feliz de novo, porque passei a enxergar a vida com os olhos

    do corao!

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Maria Jos dos Santos, 76 anos.)

    Professora: Tnia Cristina RibeiroEscola: E. M. Prefeito No Alves Ferreira Cidade: Santo Antnio do Pinhal SP

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    Da escurido para o coloridoAluna: velin Cristina Nascimento da Silva

    Tristeza! o que sinto quando abro meus olhos e vejo a mais terrvel escurido, que no

    cessa. O nico remdio fech-los e deixar-me levar pelas lembranas.

    Lembro-me como se fosse ontem: bem cedinho, o sol no havia nem acordado ainda,

    eu j estava na estrada da minha cidade Santa Branca que nem asfaltada era, pura terra,

    com uma brochura e alguns lpis dentro de uma sacolinha de arroz pois nossa vida era

    difcil e papai s ganhava o suficiente para no morrermos de fome e frio. Enquanto cami-nhava, a poeira batia em meus olhos e os fazia ficar cheios dgua.

    Eu ia cantarolando que nem um sabi at chegar escola Baro de Santa Branca,

    hoje bem conhecida na cidade e antigamente a nica. Recordo-me de que l havia um

    muro para meninos e meninas no ficarem misturados. Bobagem! Ai de ns se tentssemos

    olhar para elas... A rgua cantava na palma de nossas mos, parecia que os professores

    sentiam prazer em fazer isso, eram rgidos demais.

    Assim que saamos da escola, eu e meus amigos amos nadar atrs da fbrica de tri-

    go, que hoje no existe mais nem a fbrica, nem as guas limpas. Depois amos jogar

    bola atrs do mercado municipal, onde hoje o posto de sade. Ficvamos parecendo

    tatus, a terra grudava nas roupas e na pele molhada. Depois disso dvamos mais um pulo

    na cachoeira, pois se chegssemos assim em casa a vara de amora era o presente para

    nossas pernas.

    O mais engraado era ver d. Dolores dirigindo. Se surgia uma nuvem de poeira, poda-

    mos ter a certeza de que era ela com seu Chevrolet. Afinal, era a nica mulher de Santa

    Branca que dirigia.

    No posso me esquecer dos cortejos: a cidade inteira seguindo um caixo, sem saber

    quem estava dentro. Havia uma banda que tocava para o defunto e ele tinha direito at a

    foto. D para acreditar nisso? Mame me dizia para no dar risadas nem ir ver o rosto do

    morto, principalmente se fosse gente ruim, seno ele poderia voltar para assombrar. O sino

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    da delegacia tocava pontualmente s 21 horas para todos se recolherem, era uma poca

    bem perigosa. De noite a cidade era iluminada por lampio de querosene isso a deixava

    mais sombria.

    Foi minha melhor poca, mas hoje sou velho, e a cegueira tomou conta dos meus olhos.Tenho saudade do colorido que hoje s vejo em minha mente atravs das lembranas do

    passado. Escurido o que eu vejo, mas jamais sair de mim a magia de recordar.

    (Texto baseado na entrevista feita com o sr. Sarkis Ramos Alwan, 41 anos.)

    Professora: Fernanda de Souza MendezEscola: E. M. E. F. Professora Palmyra Martins Rosa Perillo Cidade: Santa Branca SP

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    De retirantes a amantesAluno: Eduardo Carneiro Freire

    Defronte a minha casinha de taipa eu via se perder na imensido da areia da caatinga

    o azul do cu, misturando aos poucos ps de caju, uma mistura feita de cores sob o sol

    abrasador, daquele serto to seco.

    Isso aconteceu nas eras de 50, quando a seca castigava sem pena e sem d o nosso povo.

    Samos de l pelas varedas, arrudiados de paus secos, onde os jumentos abriam ca-

    minhos por entre os xiquexiques j amarelados pelo sol escaldante, onde o nico verde querestava era um juazeiro, sob o qual colocamos nossos objetos, armamos nossas redes en-

    cardidas e sujas por no ter gua para lavar.

    Ali naquele descanso meu pai abriu um pote de barro com farinha e rapadura, que co-

    mamos com uma gula infinita. Meu pai regrava a comida, lembrando-se dos dias vindouros.

    ramos os chamados retirantes que na estrada sem fim, de poeira e terra seca, encon-

    trvamos outros que iam e vinham em busca de uma vida mais farta.

    Em meio aos jumentos, cangalhos, caus (espcie de bolsa de couro que os animais

    carregam) e traalheiras, vi um rosto triste, mas de olhos grandes e pretos, como a grana

    (que j no existia mais no serto). Era meu amor, que encontrei diante de tanta misria.

    Conseguimos enfim nos salvar daquela seca medonha e nos casar quando a chuva chegou.

    Nosso amor no era seco como nos tempos passados, era meloso como o mel que a

    jandara (abelha) fazia nos galhos da umburana que ficava no terreiro da nossa casa, tam-

    bm de taipa, com redes limpinhas, vasilhas de barro e fogo a lenha. Os bancos de madei-ra que ficavam em frente a minha casa serviam para as vizinhas sentarem e prosearem du-

    rante a noite ou nas debulhas de feijo. A gua limpa do pote servia para matar a sede da

    boca adoada pelo doce de gergelim com canela. O cheiro do caf da madrugada envolvia

    o serto com um aroma gostoso, que convidava os vaqueiros a se apearem dos cavalos e se

    deliciarem ao nascer do sol.

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    Professora: Maria Giselia Bezerra GomesEscola: E. M. E. F. Urcesina Moura Cantidio Cidade: Alto Santo CE

    Hoje tudo diferente... ningum mora mais em casas de taipas, ningum v a seca

    como um inimigo, ningum encontra um amor em meio ao vai e vem de retirantes.

    O casamento no dura mais para sempre, pois hoje as pessoas no dizem mais que vo

    casar, dizem que vo ficar.Tudo diferente da minha mocidade.

    Sozinho, morando na casa de outros, sinto uma saudade... uma saudade sem fim. Meu

    amor j se foi... meu ranchinho continua em p l no serto, como tambm o p de umbu-

    rana no terreiro, quem sabe, esperando novos retirantes, para fazer uma jura de amor

    eterno, igual ao que eu vivi.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Maria Isaura da Costa, 75 anos.)

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    Cho varridoAluna: Eduarda Moura Pinheiro

    No quero esquecer aquele cantinho s meu, cheio de vida, de sons e de cores que h

    muito tempo s existe em minha memria: a casinha de tbua onde morvamos; o fogo a

    lenha num dos cantos da cozinha, que tisnava tudo, manchando de preto narizes, paredes

    e o teto de palha; a casa de farinha lugar de suplcio para mim, que odiava lavar mandio-

    ca , e a densa floresta ao redor, interrompida por pequenos roados, de onde papai e

    mame tiravam, com muita dificuldade, o sustento da famlia...Ali, meus velhos s viviam para o trabalho. E aos sbados, que nem burrinhos de carga,

    lotados de cestas, iam ao antigo mercado vender o que colhiam na lavoura e comprar o

    rancho, como denominavam a feira semanal.

    Eu, menina levada, e minhas trs irms, apesar dos trabalhos que ramos obrigadas

    a fazer (pastorar arroz, raspar e lavar mandioca, arrancar ervas daninhas dos roados),

    nos divertamos tambm. Brincvamos de casinha, de esconde-esconde e, s vezes,quando papai nos mandava pastorar o plantio do arroz, para enxotar passarinhos, ns

    aproveitvamos para jogar pedrinha diverso arriscada, que papai nem sonhava acon-

    tecer! Por isso quando vamos vir em direo do roado, comeava a gritaria desenfreada:

    X, passarinho, x!.

    Mas eu gostava mesmo era de ir ao roado sozinha, porque ali procurava um galho de

    alguma rvore cada e passava a tarde me balanando e cantando o mais alto que eu podia.

    Eu adorava cantar e achava que estava abafando! Gostava de ouvir o eco da minha voz

    mata adentro...

    Porm, as lembranas que mais me emocionam so da natureza e da simplicidade da

    vida naquele recanto: os riachos de gua lmpida e fria, onde passvamos parte do tempo

    nos banhando, mesmo a contragosto de nossos pais; as plantinhas de cores variadas,

    cheias de besouros coloridos; as espigas de milho, que para mim eram bonecas de cabelos

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    lindos cor-de-rosa, amarelinho, esverdeado...; os passarinhos diversos: rolinhas, curis,

    beija-flores, sanhaos e outro monto de que nem me lembro mais os nomes. Nunca me

    esqueci do canto da passarada ao amanhecer: era trinado sem fim, uma festa diria na

    mata. Durante o dia, o cu limpinho me parecia ter sido varrido por algum, assim como euvarria o terreiro. Santa inocncia!

    E as noites de vero? Como me encantavam as sombras das rvores que a lua cheia

    projetava no terreiro, onde ficvamos at mais tarde observando as estrelas, contando-as,

    nomeando-as, e elas me pareciam mais numerosas que hoje, penduradas no cu como

    enfeites de rvore de Natal... De repente, aquele estado de contemplao era interrompido

    por um tiro no meio da mata. Era uma armadilha de papai anunciando que havia paca outatu para o almoo de domingo. E l se ia meu velho heri, portando um terado, uma

    lanterna a pilha, e acompanhado de um vira-lata corajoso em busca de caa j agonizante.

    Tempos bons aqueles!

    Mas, hoje, s saudades... Daquele lugar mgico, que minha memria resgata com tanta

    vivacidade, s vejo breves resqucios, prestes a se desfazerem tambm. Aquela exuberncia

    em verde e vida de toda a natureza ao redor foi apagada em nome do progresso. Pouco a

    pouco, o verdor da floresta foi sendo engolido pela motosserra, as guas, lambidas pelo

    fogo, as matas tombaram e cederam lugar a ruas, casas, igrejas, escolas, pastos... E eu,

    impotente, assisti a tudo, dando a cada dia um novo adeus lacrimejante a algum elemento

    que se ia embora, sem chance de regresso.

    Mataram-me a mata e parte da minha histria, destruram meus castelos de sonho, e

    nada pude fazer para impedir. Aquele mundo encantado, que existiu concretamente, e ficava

    aqui em Cruzeiro do Sul, interior do Acre, agora abstrato, s existe em minha memria.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Elisngela Oliveira Silva de Arajo, 31 anos.)

    Professora: Elisngela Oliveira Silva de ArajoEscola: E. M. E. F. Francisca Rita de Cssia Lima Pinto Cruzeiro do Sul AC

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    Do canto ao contoAluno: Jernimo Pereira de Lima

    Quando escolhi o poeta Xexu para falar de suas lembranas, imaginei um arsenal de

    memrias se transformando em versos. Acolhi-o sob sua relquia: a mangueira-rosa.

    Nasci no Stio Lages, um lugarejo do municpio de Santo Antnio, no Rio Grande do

    Norte, h setenta e dois anos. Olhando para a mangueira-rosa retorno ao passado. Fui

    criado sombra desse legado que minha me plantou. E, por falar nisso, aprendi a decla-

    mar fazendo versos sob essa frondosa rvore. Eu declamava e cantava muito! Por essa razo

    puseram meu apelido de Xexu passarinho cantador aqui da regio.

    Desde criana fui apaixonado pela literatura popular. A paixo pelas letras se concreti-

    zou quando comprei uma cartilha do ABC. Encontrar algum no caminho que soubesse ler

    era motivo para uma explicao. Foi assim que aprendi a ler. No meu tempo era muito dif-

    cil o acesso escola. Atualmente, h mais escolas e at transporte escolar! Se eu fosse

    desta gerao, seria um doutor.

    As cantorias de viola fizeram parte do meu conhecimento sociocultural, desde a minha

    infncia. Sinto saudades do tempo que papai me levava s feiras livres. amos a p ou a

    cavalo porque naquele tempo os meios de transporte motorizados ainda no haviam pene-

    trado. Quando eu via um autor ou vendedor de folhetos cantando versos, eu achava muito

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    bonito e queria ser tambm um protagonista daqueles. As bancas armadas disputavam

    espao com as cores e os cheiros das frutas e tecidos, nos sbados de nossa cidade. Os

    cantadores eram os artistas conhecidos de uma poca que no conhecia o rdio nem a te-

    leviso. Agora, o rdio faz chegar a voz dos violeiros atravs da Rdio Agreste AM, sediadaem nosso municpio.

    Tudo funcionava na Rua Dr. Pedro Velho. O prdio da prefeitura ficava defronte igreja

    e era denominado Intendncia. Hoje a paisagem uma bela praa que descreve a religio-

    sidade de um povo atravs da imagem de Nossa Senhora da Conceio, a padroeira da ci-

    dade. Essa rua transformou-se na famosa Avenida Lindolfo Gomes Vidal, onde o cheiro do

    asfalto misturado poluio sonora marca a evoluo deste lugar.Naquela poca, encontros entre vizinhos eram tambm motivos de lazer. O feijo arma-

    zenado em casa era debulhado aps um perodo de safra. Era um momento atrativo para

    ouvirmos histrias de Trancoso: contos populares. O que mais me assustava era o lobiso-

    mem e o papa-figo! De vez em quando degustvamos caf com tapioca... Hum! As noites

    de muito trabalho eram chamadas de debui.

    Voc sabe o que isso?

    Era debulhar feijo a noite toda.

    J se foi o tempo em que a literatura oral marcava presena nos lares do nosso munic-

    pio. Agora a tecnologia que fala mais alto: os jogos eletrnicos impedem por aqui uma

    tradio deixada pelos nossos antepassados. Resta-me concluir que este receptculo de

    memria representa para os leitores um presente eterno.

    Vivenciei as memrias de Joo Gomes Sobrinho (Xexu), passeando no tnel do tempo

    as emoes prprias de sua poca.

    (Texto baseado na entrevista feita com o sr. Joo Gomes Sobrinho, Xexu, 72 anos.)

    Professora: Mrcia FontouraEscola: E. M. Dr. Hlio Barbosa de Oliveira Cidade: Santo Antnio RN

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    Engenho da minha infnciaAluna: Mariana Pedrosa Alves

    Recordo muitos casos, dos tempos da minha infncia, do engenho de cana-de-acar que

    havia aqui no Stio Bonfim dos Pedrosas, uma pequena comunidade onde moro, a 2 quilme-

    tros da cidade de Carrapateira, no alto serto da Paraba. Lembro-me muito bem do perodo

    das moagens, era uma verdadeira festa, a que vinham muitos habitantes das cidades vizinhas

    e at mesmo de outros Estados, como Cear, Pernambuco e Rio Grande do Norte.

    O engenho, que foi fundado em 1935, tinha grandes moendas de ferro puxadas por

    boi, energia eltrica no havia por aqui, vivamos no escuro, luz de lampies e candeeiros,

    mas isso no importava. Em noites de moagens os trabalhadores se reuniam no galpo do

    engenho e enquanto o mel engrossava para dar o ponto da rapadura contavam histrias,

    anedotas e at contos de assombrao. Eu adorava ouvir essas conversas, esperando o

    momento do ponto da rapadura nas gamelas sair repartimentos onde colocavam o mel

    em ponto de rapadura: era o momento mais esperado por todos ns para comermos a rapa

    quentinha da rapadura que sobrava nas gamelas.

    Todos os anos, a partir do ms de agosto at meados de novembro, realizavam-se as

    moagens durante vrias semanas. Eram tempos de muito trabalho, mas tambm de festa e

    alegria. Em noite de lua cheia meus amigos e eu brincvamos na bagaceira da cana, que

    mais parecia um escorregador, no qual rolvamos de cima a baixo, num sobe e desce de

    fazer gosto! Pela madrugada, meu pai me acordava, era hora de carregar os jumentos com

    a cana, que era levada do stio para o engenho para alimentar os bois que puxavam amoenda. Eram tempos difceis, de trabalho rduo, mas os donos do engenho e os produto-

    res ficavam satisfeitos, pois gerava renda e emprego para muita gente. A rapadura era o

    produto mais famoso do engenho, que ainda hoje guardo na memria o cheiro e o doce que

    no encontro nas rapaduras de hoje.

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    O velho engenho cansou, funcionou pela ltima vez em 1976, ficamos tristes, o silncio

    no nosso vilarejo fazia doer, tentamos reergu-lo, mas o esforo foi em vo. Em outros cen-

    tros a produo era mais rpida e com baixo custo, enquanto o nosso trabalho era quase

    artesanal e a precariedade j estava sendo vista a olho nu.O engenho deixou tambm um rastro de tragdia e desespero: a filha de um dos donos

    do engenho caiu dentro de um cavudo buraco onde jogavam as brasas do engenho , a

    menina gritava, chorava e no conseguia sair, seu corpo derretia nas brasas como plstico

    velho em chamas. Revivo esse momento como se fosse agora, choro e me arrepio de emoo.

    A menina sobreviveu, ficou com um dos braos paralisado e marcas e cicatrizes em

    todo o corpo, mas ela foi forte, lutou e venceu.Ainda hoje sento-me debaixo de um juazeiro e, olhando o lugar em que era o engenho,

    me vem a lembrana daqueles momentos. Hoje sou agricultor e aqueles tempos que pare-

    ciam mais como festa de criana ficaro para sempre guardados em minha memria.

    (Texto baseado na entrevista feita com o sr. Antnio Pedrosa da Silva, 64 anos.)

    Professora: Valma Laene Pedrosa RobertoEscola: E. M. E. F. Galdino Antnio da Silva Cidade: Carrapateira PB

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    Entre baldes e fantasmasAluna: Sabrina de Souza Rozado

    Minha infncia foi muito difcil. Trabalhava na roa para ajudar no sustento da famlia.

    Ns passvamos por momentos tristes: a falta de comida, roupas e remdios. Naquela

    poca era comum que as crianas ajudassem a famlia e com isso acabavam largando cedo

    os estudos.

    Ah, os baldes! Esses me deram foras... (risos). Tnhamos que caminhar at um rio mui-

    to longe para pegar gua que servia para a nossa alimentao e higiene. Os baldes ficavam

    mais pesados a cada passo do interminvel caminho. Mas, apesar das dificuldades, lem-

    bro-me desse tempo com muito carinho: o pedido de desculpas no olhar dos meus pais e

    os sonhos que tinham para o nosso futuro.

    Naquele tempo, o jeito de namorar tambm era diferente. Recordo que quando conhe-

    ci meu marido s podia namorar em casa com a vigilncia dos meus pais. Sabia tambm

    que j estava metida em compromisso srio, pois no podamos correr o risco de ficar mal

    faladas no bairro.

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    Casei e vim para a cidade grande procura de uma vida melhor, uma oportunidade

    de emprego. Morei um tempo na cidade de Canoas e, mesmo trabalhando, soframos com

    as prestaes do aluguel, pois a famlia foi crescendo e as despesas tambm. Ento surgiu

    a oportunidade de comprarmos uma casinha em So Leopoldo; assim, vim morar no bairroCohab. Lembro-me de que quando cheguei aqui as pessoas falavam que este lugar tinha

    sido um grande cemitrio. Alguns moradores ficavam assustados, porque coisas estranhas

    aconteciam em suas casas. At hoje, quando contam causos de assombrao, sempre tem

    algum que se lembra da histria do cemitrio e dos tais fantasmas que assombravam suas

    casas. Fui me apegando a este lugar e enfrentando os fantasmas da vida. Quando relembro

    So Leopoldo me emociono muito.Minha casa era pequena e no tinha conforto. Os mercados eram distantes, as paradas

    de nibus exigiam longas caminhadas e os horrios de transportes eram restritos. Minha

    histria foi se transformando dentro de minha So Leopoldo. Hoje, posso dizer que moro no

    maior bairro da cidade, conhecido como a Grande Feitoria. H um comrcio em cada es-

    quina, posto de sade e escolas espalhadas pelo bairro. Hoje So Leopoldo nos enche de

    orgulho com suas riquezas culturais e histricas: Casa do Imigrante, Unisinos (Universidade

    do Vale do Rio dos Sinos), Santurio Padre Reus, e at o trem que aqui j chegou. Claro, o

    progresso tambm tem suas consequncias. Fico triste quando ouo falar da poluio do

    rio dos Sinos. Lembro-me dos velhos baldes dgua e da felicidade que temos no simples

    ato de abrir a torneira. Ao voltar no tempo, penso que mesmo na dificuldade minha vida

    sempre foi regada por momentos bons. Nesse vale vivo realizada. Sou uma senhora feliz,

    que entre baldes e fantasmas construiu sua vida.

    Peo ao nosso querido padre Reus que me d muitos anos ainda para que eu possa

    seguir crescendo com essa cidade, e quem sabe um dia uma menina querida escreva

    nossa histria.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Marinalda da Silva de Oliveira, 57 anos.)

    Professora: Daniela Corra da SilvaEscola: E. M. E. F. Professora Dilza Flores Albrecht Cidade: So Leopoldo RS

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    Gotas de chuva... leve barulho da saudade!Aluna: Saionara Aparecida SantAna dos Santos

    Mais uma vez sinto o calor da lembrana, e o calafrio da saudade... Meu ser anuncia a

    hora de relembrar o maravilhoso tempo de criana, as ideias inesquecveis, brincadeiras

    memorveis e contagiantes daquele tempo...

    Bons tempos aqueles: morvamos num lugar pequeno, cheio de matas e animais, casas

    rsticas, construdas pelos moradores com paredes de pau a pique um tranado de ripas

    como estrutura para fixar o barro batido nos buracos. Hoje as casas so de alvenaria, as

    matas desapareceram e com elas os animais. O lugar chamado de Crrego Baixo Moacir,

    municpio de Governador Lindenberg, interior do Esprito Santo.

    Naquela poca, com movimentos rpidos das mos, vamos a agulha franzir o babado:

    era nossa me costurando nossos vestidos para irmos missa aos domingos. Nossos

    olhares de crianas puras brilhavam feito pequenas esmeraldas, curiosos em saber qual

    seria o modelo mais belo. Agora o carinho das mos habilidosas de nossa me foi substi-

    tudo pela frieza das mquinas. Logo aps a missa, na estrada de terra esta pelo menosainda existe! , voltvamos a p e l de longe j sentamos o cheiro do frango caipira,

    coradinho com a tinta retirada dos fartos ps de urucum que vov socava no pilo. O

    frango era acompanhado pela polenta, uma herana da cultura italiana. O aroma que vinha

    da janela da casa da vov era convidativo e fazia com que apressssemos o passo.

    Eu estimava os dias de chuva, quando bastava ouvir um leve toque anunciando que a

    festa ia comear. Era s abrir a porta e meus amigos transformavam-se em campainhas,cujo barulho de felicidade era demonstrado aos berros, ao sentir o prazer de cada gota

    caindo sobre seus corpos, que refrescava a alma. A chuva caa vagarosamente e num passe

    de mgica transformava-se numa cachoeira em gotas. Mas ns no estvamos satisfeitos e

    bastava a distrao dos familiares para que corrssemos estrada afora e de poa em poa

    descobrssemos mais um mistrio. Esses eram os dias de que mais gostvamos: os mgicos

    dias de chuva, que hoje j no so to frequentes.

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    J nos dia em que o sol recobria o telhado de palha de coqueiro, feito por nossas pe-

    quenas mos, nossa diverso era construir nossos prprios brinquedos. Tudo era utilizado:

    pequenos frutos e pedaos de gravetos. Carretis e madeira eram usados para fazer os

    carrinhos, tambm brincvamos de bonecas costuradas com palha e sabugo de milho colhi-dos no quintal, o que hoje j no acontece, pois as crianas de agora pensam somente nos

    brinquedos falantes, jogos eletrnicos e em tudo o que no desperta a curiosidade, a inte-

    ligncia, e faz com que no usem suas mos para inventar e construir, preferindo apertar

    somente um boto.

    Nos fins de semana, reunia os amigos para colhermos frutos e degust-los. Uma delcia!

    Hoje os frutos so poucos e quando no contaminados pelo excesso de agrotxicos naslavouras. Nossas roupas branquinhas passadas a ferro em brasa at ento no existia

    energia eltrica , os vestidos engomados com uma mistura de gua e polvilho, muito usa-

    da na poca, estavam completamente sujos, o que nos rendiam alguns sermes de nossas

    mes. E, assim, aps o banho, eu ia casa da vov ouvir o vov contar histrias relembran-

    do seu passado, suas memrias, que me faziam adormecer em sonhos, saboreando as pri-

    mcias de uma infncia bem vivida.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Olga Bertti SantAna, 68 anos.)

    Professor: Edmar Garcia NicoleEscola: E. E. E. F. M. Irineu Morello Cidade: Governador Lindenberg ES

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    Histrias de um avAluno: Maciel Rodrigues de Sousa Jnior

    H sessenta anos Souznia era uma cidade de interior muito diferente daquelas que

    temos hoje. E como as coisas mudaram... No meu tempo as pessoas sabiam se divertir de

    verdade. O dia comeava com o canto do galo para despertar todo mundo e as crianas que

    iam para a escola guardavam na capanga o dever enquanto a mame arrumava a merenda.

    A cidade se resumia igreja, poucas casas e uma vendinha. Nas pequenas ruas de terra

    onde a gente andava a cavalo e jogava bolinha de gude no havia cinemas, shoppingsou lan

    house. Bola, a gente jogava na rua, e quando aparecia um carro apostvamos corrida com ele.

    Minhas tardes eram feitas das aventuras de menino, eu no tinha computador, videoga-

    me,nem muitos brinquedos, mas me divertia um bocado subindo para pegar fruta no p e

    saltando nos rios...

    Quando eu fiquei crescido vieram as obrigaes de adulto: cuidar da fazenda, do gado,

    da ordenha... O trabalho difcil era recompensado pelo po de queijo e pelo cheiro do caf

    quentinho, feito no fogo a lenha da casa to simples.Na varanda, sentado no cho, eu ouvia as modas que o papai cantava enquanto o vov

    tocava a viola. O pessoal ia se reunindo, os filhos respeitavam os pais, velhice era sinnimo

    de sabedoria... Naquele tempo televiso era s sonho.

    A casa ia aos poucos ficando quieta e, enquanto eu ia para a cama, papai apagava as

    velas e a lamparina. Energia eltrica a gente no tinha, refrigerante era presente de aniver-

    srio e nibus, coisa da capital...As coisas foram mudando. Veio a internet, e o progresso trouxe o conforto, tudo mu-

    dou, mas s vezes penso que o tempo levou com ele o que todo mundo do meu tempo

    sabia bem: preciso bem pouco para ser feliz.

    (Texto baseado na entrevista feita com o sr. Jos Elias Mendona, 70 anos.)

    Professora: dria Lorena OliveiraEscola: Colgio da Polcia Militar de Gois, Unidade Dr. Cezar Toledo Cidade: Anpolis GO

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    Saudoso recantoAluna: Leslly da Silva Massalino

    Faz muitos anos que moro em Santa Luzia do Norte. Antigamente existiam poucas

    casas. Quando caa a noite, nesse saudoso recanto, conversvamos sobre lendas, casos

    acontecidos durante o dia, conversas de compadres e comadres, como se dizia.

    Quando criana, brincava de pega-pega, pular corda, essas brincadeiras seguiam de

    quintal em quintal, at que se ouvia a voz de mame chamando para entrar, j que a noite

    se aproximava e a luz era de candeeiro.

    O cheiro quente e gostoso da comida tratava de convencer-me, se as tentativas de mi-

    nha me no conseguissem. Ah, que lembrana gostosa! Tudo feito no fogo a lenha!

    A casa onde morvamos era pequena e de taipa, casa feita artesanalmente de barro e

    madeira, nela s existiam trs cmodos. Da cozinha via-se o quintal, celeiro de grandes

    momentos de felicidade, pequeno com um imenso p de jambo.

    A ida escola era uma festa, a no ser os momentos de sufoco pelos quais passava

    quando tinha que repetir, exaustivamente, a tabuada. Se no conseguisse, viria o inevitvel:o temido castigo.

    Quando a luz eltrica chegou aqui ao municpio, foi um acontecimento: dormimos luz

    de lamparinas e acordamos luz da eletricidade.

    Algumas poucas casas tinham televisores e, claro, nelas aglomeravam-se muita gente

    para se encantar com as maravilhas proporcionadas pela tecnologia.

    E s se ouviram as falaes: Como que aparece esse povo ai falando de to longe!Por volta de 1990 consegui minha primeira TV, foi realmente um progresso. Senti como

    se o mundo entrasse todos os dias dentro da minha casa.

    Minha cidade , ainda hoje, pouco desenvolvida, mas repleta de antigas histrias que

    habitam na memria de quem at hoje reside nela.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Zeferina Rosa da Silva, 70 anos.)

    Professora: Darlene Gomes da SilvaEscola: E. M. de 1-Grau Santa Luzia de Siracusa Cidade: Santa Luzia do Norte AL

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    Histria que o tempo no apagaAluna: Aline Cristina dos Santos

    Numa quarta-feira pela manh papai saiu correndo para chamar a parteira mulher

    que realizava partos naturais em casa. No demorou muito e escutaram um chorinho: era

    uma linda menina. Foi assim que nasci. Adorava quando minha me contava essa histria.

    Vim de uma famlia simples e pobre, a casa onde morava era pequena, com poucos

    mveis: uma velha mesa e um fogo a lenha que aquecia nossos corpos e coraes nas

    noites frias e longas. Ficava no So Miguel, bairro pioneiro de Uchoa. Foi ali que a cidade

    comeou em volta de uma capela. Tinha poucas ruas, todas de terra, algumas casas, de

    onde era possvel sentir o gostoso cheiro da mata verde que a rodeava por todos os lados.

    Muito pequenina, j ia para a roa, mame me acomodava em uma manta em cima de

    um saco branco, o que impedia que as formigas me picassem enquanto ela colhia algodo.

    Assim tirava nosso sustento. ramos onze, fora papai e mame.

    Agora me arrisco a dizer papai, mas minha convivncia com ele... Era um homem se-

    vero. Falava, todos respeitavam, obedeciam e pronto!Mame, no. Era uma rosa e com seu amor irradiava ternura pelos quatro cantos da

    casa, dava ateno e acarinhava sempre que algum precisava.

    Fazia roupinhas para minhas bonecas de espiga de milho, limpava as palhas com jeiti-

    nho, penteava o cabelo para fora e desenhava seu rostinho com carvo. Assim era minha

    melhor boneca. Ah, como eu adorava!

    Meus domingos eram uma festa! Acordava com o perfume do po feito na hora, queaflorava pelas frestas da taipa do quarto em que dormamos todos amontoados. Saamos

    em disparada, trombando, para pegar o primeiro pedao passar manteiga feita em casa ,

    que derretia e chegava a escorrer na toalha manchada pelo tempo. Cada mordida era como

    se estivssemos comendo pela primeira vez.

    Mas a data mais esperada por mim era o Natal. Aguardava o bom velhinho o ano todo,

    porque era o dia que comia frango assado, macarronada com molho e tomava gasosa

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    refrigerante da poca , cujo nome lembro at hoje Itubana! Como era gostoso sentir

    aquelas bolhinhas formigando minha lngua como se estivesse adormecida.

    Ganhava tambm um doce, que mame comprava na venda e guardava escondidinho.

    Comia aos poucos para que durasse dias. Saboreava cada pedacinho!Tempos muito difceis. Presente nunca ganhei, no. Era muito diferente dos natais de

    hoje. Mas aprendi uma simpatia: quando aparecia manchinhas brancas em minhas unhas

    deveria colocar as mos nos bolsos da cala de meu pai, porque assim ganharia presente.

    Fazia isso enquanto desamassava os montes de roupas com o pesado ferro de brasa.

    Nunca funcionava, mas no custava tentar.

    As brincadeiras daquele tempo? Ah, que gostosas eram! Todas na rua e usava a imagi-nao, mas gostava mesmo era de pular corda que mame improvisava com um cip e

    como ela me enfeitava com trancinhas coloridas. Enquanto pulava, meu cabelo balanava

    como folha de rvore em dia de ventania.

    Sair de casa no podia. Somente nos dias santos que ia missa ou procisso, e

    quando acabava ficava fazendo footing dava voltas e mais voltas no jardim da praa

    da matriz.

    Ali, conheci meu primeiro namorado e depois marido, que apesar de no ter sido

    escolhido por mim foi muito bom enquanto o tempo no o levou, juntamente com dois

    de meus filhos.

    Hoje, com 80 anos, muitas vezes me pego dando corda no relgio do passado. Fico

    emocionada com passagens que o tempo no conseguiu apagar e com lembranas vivas

    que teimam em no adormecer.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Jandira Teixeira dos Santos, 80 anos.)

    Professora: Marisa de Carvalho PacciEscola: E. M. E. F. E. I. Professora Hermnia Rodrigues Mafra Cidade: Uchoa SP

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    Histrias, um poema, uma canoAluno: Edson Liberato Pereira de Arajo

    De minha carteira, me deparo com ela: Deise. o nome da superao das minhas ex-

    pectativas para saber sobre razes de sua vida, onde ela e eu vivemos.

    Chegou alegre e disposta, j eu, com o rosto fechado e sem pensamentos. Quem diria

    que uma pequena e doce criatura de cabelos grisalhos fosse to grande fonte de sabedoria.

    No brao seu violo, revestido de capa preta para a caminhada, tambm um sorriso enor-

    me e brilhante em seu rosto j um pouco envelhecido.

    E comeou a contar suas lembranas como num filme, daqueles de cinema, em que

    voc se senta l atrs, quase no entende, mas sabe que uma grande histria...

    Onde moro tinha antigamente apenas duas ruas: Rua de Cima e Rua de Baixo. Na Rua

    de Cima passavam grandes caminhes, daqueles de carroceria de todo tamanho. Na Rua de

    Baixo... Bem, para falar a verdade, ficava debaixo da Rua de Cima e tinha escondidinha,

    entre um matagal, um enorme espao onde havia uma grandiosa rvore, aonde eu e a

    molecada amos para brincar e chorar s escondidas.Na cidade, havia tambm um clube, que era dividido em Rioacimense e Sansa. Rioaci-

    mense era o mais pobre. Eles no se misturavam. Havia bailes. As moas juntamente com

    suas mes faziam roupas exuberantes. Meu Deus! Os rapazes iam todos de social. Dan-

    vamos todos bem agarradinhos. Os moos chamavam as meninas para danar; se no

    quisessem, no tinha conversa e pronto! Na dcada de 1980, surgiu o Belisquete, sua

    graa, em mim faziam contoro. E era louca a vontade de rir de tudo aquilo, parece atcom esses funks,axs, no sei! Danava todo mundo separado. As bebidas, na festa, ns

    mesmos fazamos: hi-fi,o chique da poca, era laranja com rum; cuba-libre, que era vodca

    com limo; caipirinha; e cerveja s nos dias quentes. Esse prdio no mais assim. Hoje o

    salo vazio enche de saudades os jovens daquela poca.

    Havia um trem que saa as cinco e meia da manh e voltava s quatro e quarenta da

    tarde, cuspindo gente! Eram os jovens das cidades vizinhas, ou at mais longe, como alguns

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    bairros de Belo Horizonte. As meninas e os meninos, principalmente eu e meus colegas,

    fazamos a maior zoeira nos Lots, que eram os passeios para esperar o trem na estao.

    No se tem mais trem, e a estao transformou-se na biblioteca pblica.

    Muitas construes foram feitas e as duas ruas multiplicaram para tantas, que nem sed para contar de cor. De estao, hospital e centro social urbano, temos agora o CRAS,

    muitas escolas municipais, cerca de sete a oito, aougues, muitas lojas de roupas, de

    calados, coisas que antes, roupas e sapatos, s nossos pais faziam. A carne era de crio,

    bovinos, sunos, aves...

    O carnaval era o centro das atenes para os de outras cidades. Rio Acima, nem se fala!

    No tinha espao para ver os bonecos, muito parecidos com os de Olinda. Meu pai eraquem os fazia, grandes e coloridos um encanto! Tinham por dentro uma pessoa que

    manipulava as armaes, que fazia tudo neles se movimentar, como se fosse realmente uma

    pessoa. Engraado... At hoje no descobri o que faziam os olhos vermelhos piscarem!

    Bons tempos os que vivi! Com um pouco de dificuldade, mas com grandes momentos

    de felicidade que, num todo, compem minha histria.

    Chegando ao fim, Deise pegou seu violo em que cada corda era um som que faz meu

    corpo e mente se encantarem. Tocou um samba em homenagem ao seu esposo.

    Memrias so o seu forte, pois leu um poema que comps com as memrias de seu pai que

    comea assim: Quem melhor para falar dessa cidade do que algum mais velha do que ela?

    E l foi ela. Na capa, o violo. Em sua bagagem, suas memrias.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Deise Fernandes Correa Elias, 52 anos.)

    Professora: Mrcia Luiza CatarinoEscola: E. M. Honorina Giannetti Cidade: Rio Acima MG

    V N hi i d V l F li

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    V Neuza e as histrias do Vale FelizAluna: Sarha Dias Hottes

    Era um vale montanhoso, extenso, imponente, bonito, verde e principalmente frio onde

    eu morava com minha famlia. Nossa casa era de pau a pique e havia apenas um nico c-

    modo de tijolo. Meu despertador? Voc no vai acreditar! Era o galo, que rigorosamente

    despertava s quatro horas da manh: Co-co-ri-c... J sabia que era hora de levantar,

    olhava pela janela e via o cu alaranjado como uma abbora, e de longe via os primeiros

    raios de sol que rompiam a aurora dourando os montes. Com muita destreza corria para

    ajudar minha mame nos afazeres domsticos. Preparvamos o caf com os gros que co-

    lhamos no stio, modos na hora, no antigo moinho preso na parede da cozinha. Ah, e o

    coador era de flanela! O aroma de caf ia rapidamente misturando com o da broa de milho

    assando no fogo a lenha e se espalhava pela casa toda.

    Papai e mame saam para a lida, era chegado o tempo da colheita do caf e o inverno

    tambm batia porta. No meio da lavoura, o frio era impiedoso e cortante como uma na-

    valha, o vento se encarregava de fazer o indescritvel bal de folhas secas que rodopiavamfeito bailarinas. Eles retiravam os gros madurinhos das varetas com toda a delicadeza,

    todo o cuidado era pouco. Papai dizia que o caf era nosso ouro.

    A vida era difcil, porm tinha o seu lado bom. Brincava com o meu irmo, se bem me

    lembro brincvamos de fazendinha e cozinha. Como ramos pobres, no tnhamos brinque-

    dos, mas na nossa imaginao podamos tudo... Ento fazamos bois de chuchu, bonecas

    de espiga de milho, peteca de palha e penas de galinha e at foges com pedaos de tijo-los. Mal acabvamos de brincar, almovamos, e eu prontamente preparava nossa meren-

    da. Colocava arroz, feijo e lambaris fritos, que papai, como sempre, trazia, tampava as

    marmitas, amarrava nossos pertences e partamos.

    Nesse nterim vivamos uma aventura. Passvamos por um curral onde pegvamos pe-

    daos de cana, usada para tratar o gado, e amos chupando torres de acar. Atravess-

    vamos um pasto muito grande, com muitas vacas bravas na poca no sabia, mas hoje sei

    que era por causa de seus instintos maternais Recordo ainda da antiga pinguela hoje

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    que era por causa de seus instintos maternais. Recordo ainda da antiga pinguela hoje

    uma ponte que, em poca de chuva, a gua transbordava por cima e ela balanava de um

    lado para outro. Era uma beleza ver aquilo, mas difcil passar por l, no havia outro lugar

    por onde pudssemos passar, e no podamos chegar tarde porque a professora era muitobrava, por qualquer motivo nos fazia chorar. Naquele tempo havia poucas normalistas...

    Estudar naquela escola era um privilgio. V Vitalina contava orgulhosa que o governador

    de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, havia inaugurado pessoalmente o Grupo Escolar

    Interventor Jlio de Carvalho. Como ela sabia disso? Vov esteve na inaugurao. O que ela

    no sabia que ele se tornaria o mais ilustre presidente que o pas tivera.

    O sol comeava a se pr, anunciando que a noite se aproximava; ento eu ouvia uma

    voz doce que soava como notas musicais nos meus ouvidos: Neuza, entra! Vem tomar ba-

    nho. Era mame. Nosso banheiro era o cmodo de tijolos com telhado baixo, cho de

    terra batida. Mame passava uma mistura de coco e gua, no fedia, todo cho de nossa

    casa era banhado por esse extrato, que, depois de seco, transformava-se num imenso tape-

    te verde. Essa antiga tcnica mame aprendera com V Vitalina e, acredite, at hoje ainda

    utilizada. Tomvamos banho numa bacia grande de alumnio muito bem areada. Mame

    sempre me apressava.

    Todas as noites recebamos os vizinhos para ouvir novela num radinho de pilha, nosso

    nico artigo de modernidade. Assim que terminava a novela nos despedamos e nossos vi-

    zinhos desapareciam na escurido. Rezvamos juntos. Papai e mame nos abenoavam,

    apagvamos as lamparinas, era hora de dormir...

    Conta mais, v, conta!

    Ela no respondeu. Ento percebi que ela havia adormecido, embalada pelas suasrecordaes presas no tempo.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Neusa Maria Dias Hottes, 58 anos.)

    Professora: Arglia PeixotoEscola: E. E. Interventor Jlio de Carvalho Cidade: Espera Feliz MG

    L b d it l

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    Lembranas da nova capitalAluna: Joyce Hellen Braga de Jesus

    Conheci Braslia l pelos idos de 1964, quando vim visitar meu irmo que veio trabalhar

    aqui. Ele nos mostrava a cidade e ia dizendo: Aqui vai ser o Teatro Nacional, aqui vai ser o

    setor hospitalar, aquele prdio que est sendo construdo vai ser o Banco Central, e assim

    por diante. Eu dizia: No quero morar aqui, numa cidade onde tudo ainda vai ser...

    Os espaos vazios, com sua terra vermelha, era o que eu avistava quando subia na

    torre de TV. Um prdio aqui, outro acol; no traado que se avistava podia se perceber

    perfeitamente o projeto original: o avio com suas asas bem definidas norte e sul. No eixo

    monumental avistava j os ministrios, porm sem seus anexos, que s foram surgindo

    tempos depois.

    Quando mudei para c, j era uma Braslia diferente, onde o que ia ser j era.

    Muita coisa ainda tinha para se fazer, mas a nova cidade j estava bem pronta para

    acolher e para se criar os filhos.

    Das cidades-satlites s me lembro do Ncleo Bandeirante Cruzeiro Taguatinga e Cei-

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    Das cidades satlites s me lembro do Ncleo Bandeirante, Cruzeiro, Taguatinga e Cei

    lndia. O acesso para Taguatinga e Ceilndia era a mesma Estrada Parque, hoje conhecida

    como CPTG; lembro-me muito de um restaurante do Jlio e s muito tempo depois que

    surgiu a Via Estrutural. Uma caracterstica bem marcante de Braslia era a poeira ou lamacom as construes que iam brotando da noite para o dia. Um lindo canteiro de obras era

    o nosso visual dirio!

    A W3, tanto Sul como Norte, era como o projeto previa: residncias de um lado e co-

    mrcio de outro.

    A Asa Sul ficou pronta primeiro e aos poucos iam surgindo as construes da Asa Norte.

    Para as compras, tinha o Ceasa, a Feira do Guar, e a rede de supermercado que existia

    era o Jumbo, hoje Po de Acar.

    No trnsito, eu treinava descendo e subindo as tesourinhas para aprender a dirigir em

    Braslia, que tinha um nmero de veculos bem reduzido comparado com o que temos hoje.

    Era muito tranquilo dirigir na cidade, no se falava em engarrafamento isso era coisa do

    Rio de Janeiro e de So Paulo.

    Hospitais foram surgindo; faculdade particular, lembro-me bem, era s a Ceub, a UnB

    hoje uma cidade universitria e as escolas pblicas foram previstas para todas as quadras.

    A igrejinha de Nossa Senhora de Ftima j nos encantava, a catedral j aparecia exube-

    rante, assim como a Igreja Dom Bosco, pontos tursticos obrigatrios.

    Os museus, no incio, eram poucos. Hoje temos o Memorial JK, o Museu do ndio, Mu-

    seu da Arte etc.

    Orgulho-me muito de falar de Braslia. Nas minhas recordaes percebi que o passado,

    junto com o presente, se confundem, para mostrar que todos os sonhos podem se tornarrealidade: basta acreditar e agir.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Maria Lcia Azevedo Campos, 68 anos.)

    Professora: Odenice Rodrigues Lopes MarizEscola: Centro de Ensino Fundamental 05 de Braslia Cidade: Braslia DF

    Lembranas que no se apagam

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    Lembranas que no se apagamAluna: Bruna Elisa Lasch

    Completei meus 93 anos h poucos dias. Nasci e cresci nesta pequena e aconchegan-

    te cidade chamada Lagoa dos Trs Cantos. Aqui vivo imensamente feliz, recordando as

    lembranas que nem o tempo, nem a idade apagaro.

    Lembro-me muito bem das casas existentes na poca, feitas de madeira bruta e tbuas

    largas. Era numa dessas casas que eu morava. L eu vivia de forma simples e tranquila, sem

    muito luxo, e eu era feliz... Dentro da casa havia o bsico: um armrio para guardar po e

    schimia, mais um outro armrio que servia para guardar louas, e na parte superior as

    portinhas de vidro exibiam lindos guardanapos bordados pela vov. Ainda me recordo das

    cadeiras feitas com belas tranas de palha e dos colches de palha que faziam um tremendo

    barulho quando a gente se virava.

    Recordo-me ainda do fogo preto com flores coloridas que fazia as deliciosas comidas e

    servia para deixar o cheiro do feijo no ar, sem deixar de comentar que as louas a gente lavavaem enormes bacias de alumnio com panos e sabo feitos num tacho preto, l fora no terreiro.

    Naquele tempo, as ruas eram de terra e pedregulho, passavam as carroas puxadas

    por bois ou charretes puxadas a cavalos e claro... passavam alguns poucos carros. E quando

    estes passavam ao anoitecer a poeira ficava pelo ar, parecendo uma verdadeira nuvem

    marrom que demorava para passar, dando muitas vezes a sensao de sufoco e falta de ar.

    Aos domingos a gente visitava os vizinhos, sentava ao redor do fogo a lenha, enchia ochimarro com a gua da chaleira e contava causos. Os brinquedos ento nem se fala, no

    tinha essas coisas de internet, MSN, Orkut. As crianas se envolviam em brincadeiras sa-

    dias em potreiros, com bolas de meias ou bonecas feitas de pano. Ah, se eu me lembro

    daquelas tardes em que a gente procurava os barrancos, sentava em cima de tbuas e

    resvalava! Que sensao maravilhosa! Eu hoje vejo que tudo muito fcil, vai-se s lojas e

    compra-se tudo pronto: os brinquedos, as comidas...

    Eu caminhava quilmetros at chegar escola, descalo, tanto no vero como no in-

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    q g , ,

    verno. Levvamos merenda de casa e se no gostssemos a gente trocava o lanche com

    outros colegas. Huuuuumm, que delcia! A merenda dos outros era sempre melhor.

    Em poca de estiagem, quando o poo l de casa secava, caminhvamos quilmetrosem busca de gua, carregando cestos de roupa para lavar. Hoje em dia as pessoas simples-

    mente jogam as roupas dentro da mquina, apertam uns botes e pronto... O aparelho

    puxa a gua, lava, bate, enxuga e torce. E, puxa vida!, as pessoas vivem insatisfeitas, pare-

    cem que esto sempre de mal com a vida.

    E assim o tempo foi passando e a cada novo dia agradeo a Deus por ter me dado

    tantos anos de alegria e rezo ao meu anjo da guarda que continue me iluminando e meprotegendo no decorrer do meu caminho para que eu possa continuar acompanhando,

    com a bno divina, o progresso deste lugar lindo onde eu vivo.

    (Texto baseado na entrevista feita com a sra. Ilsi Irma Cassel, 72 anos.)

    Professora: Loreni Lenita LaschEscola: E. E. E. M. Joaquim Jos da Silva Xavier Cidade: Lagoa dos Trs Cantos RS

    Lembranas que o tempo no apagou

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    Lembranas que o tempo no apagouAluno: Danley Dnis da Silva

    Ainda recordo as frias escolares do ms de julho... sempre com endereo certo. En-

    quanto outros garotos sonhavam com viagens para lugares desconhecidos, eu contava os

    dias para retornar ao meu pequenino cantinho do mundo nem se chamava Campo Gran-

    de do Piau. pois no passara ainda para a categoria de cidade, naquela poca, apenas um

    pequeno povoado s margens da BR-316. Hoje, sim, Campo Grande do Piau, terra do caju.

    Hoje sou adulto e carrego nos ombros as responsabilidades que a vida me trouxe, mas

    quero me reportar quele tempo de garoto, quando andava descalo, camisa aberta no

    peito, cabelos revoltos pelo vento e o sol a seguir-me pelas longas trilhas. Eram as minhas

    frias de julho, no to prolongadas como as de final de ano, mas era naquela poca que a

    farinhada acontecia.

    A casa de farinha de padim Joo Marcos era assim que a meninada o chamava; j

    os adultos tratavam-no por tio Joo ou seu Joo. Lembro-me de que era um velhinho alto,

    acho que o mais idoso da regio, j envergado pelo peso da idade companheiro insepa-rvel de uma bengala que lhe servia de apoio nas suas incansveis idas e vindas dirias.

    Eu no sei o que me atraa tanto naquela casa de farinha, tinha horas que aquilo l fervi-

    lhava de gente: uns trabalhando, outros passeando e os mais preguiosos sem nada a fazer.

    Quando o motor comeava a triturar a mandioca, os trabalhadores, nas suas conversas,

    tentavam superar o barulho infernal que se fazia no ambiente.

    Na casa principal disso tenho a ntida lembrana , era l que estava meu encantopessoal. A sala no era um cmodo grande, encostada numa parede ficava uma cristaleira

    que tinha como principal adorno o smbolo das bodas de ouro do senhor daquela casa e de

    sua esposa. No centro da sala uma rede, sempre estirada, um verdadeiro convite para uns

    vai e vem. Ao p da rede reinava uma cadeira senhora quase absoluta daquele ambiente

    simples , e sobre ela, sempre de prontido, duas tigelinhas: uma, contendo farinha, e na

    outra, rapadura.

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    Para a minha curiosidade, principalmente de literatura, ali encontrava-se uma verdadei-

    ra biblioteca, que, na verdade, consistia numa capemba de coco babau dependurada naparede e l dentro repousavam vrios livrinhos como se estivessem adormecidos: eram

    versos escritos na forma de literatura de cordel. NoAlmanaque do Pensamentoera possvel

    verificar as fases da lua, no que eu entendesse algo daquilo, mas queria desvendar o mis-

    trio das palavras. E foi nesse pequeno acervo, que considerava minha biblioteca particular,

    que descobri o incrvel prazer da leitura.

    Hoje sei que a casa de farinha ainda est em p, mas nenhuma atividade; as trilhas cede-ram lugar s ruas e avenidas; a minha biblioteca, no sei dizer o que lhe aconteceu; no en-

    tanto, falo do tesouro que ficou guardado na minha memria e da saudade que corrompe

    meu corao, fazendo rolar uma lgrima quando lembro os tempos que no voltam mais.

    (Texto baseado na entrevista feita com o sr. Francisco Jos Bezerra, 46 anos.)

    Professora: Ana Clemilda BezerraEscola: Unidade Escolar Moiss Bezerra Cidade: Campo Grande do Piau PI

    Luz, f, sabor e ao

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    Luz, f, sabor e aoAluna: Priscilla Nicola Silva

    Impossvel esquecer-me da linda cidade onde passei toda a minha vida. Quando pe-

    quena, recordo ser tambm a cidade uma criana que comeava a crescer junto comigo.

    Luz! Os postes de madeira foram colocados nas poucas ruas da minha cidadezinha. Eu

    ficava maravilhada com aquelas estrelas to prximas, possveis de serem tocadas. Os

    adultos diziam: obra do governo, o progresso chegou. Acostumados com a novidade,

    voltamos nossa rotina.

    A Igreja Matriz: pedacinho do cu mesmo, sabe por qu? Foi construda pela comuni-dade, cada um cuidando da sua maneira; com o que podia e com seus respectivos talentos.

    No ano de 1920 ficou totalmente pronta. Nas paredes e no teto, passagens bblicas que

    retratam a vida do nosso padroeiro, So Joo Batista. A imagem que mais me impressiona-

    va era a da cabea de So Joo numa bandeja. Mame me explicou o motivo que levara o

    nosso santinho morte. Eu sentia medo, pena, e ficava profundamente triste com tanta

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    maldade. Terminada a missa, bastava sair da igreja para os meus sentimentos comearem

    a mudar. Ali o cheiro da comida mineira dominical alvoroava minha vontade de comer. Era

    perceptvel o cheiro da macarronada, do frango caipira e do doce caseiro, que era meumaior desejo. Como eu gostava de doces! E por me lembrar de gostosuras me vm me-

    mria as festas de So Joo. Noites claras, enluaradas, enfeitadas e temperadas com brin-

    cadeiras, leiles, guloseimas, bingos e barraquinhas. Eu no tinha dinheiro para comprar

    nada do que via; no entanto, papai trabalhava mais do que nunca nessa poca para, ao

    menos, comprar para mim e meus irmos um lindo e saboroso cartucho recheado com os

    docinhos que faziam um rio correr na boca.

    Outra diverso daquele tempo era participar das brincadeiras do circo. Constantemen-

    te, nossa cidade recebia a visita de parques e do circo Lexo-Lexo. Confesso que tinha enor-

    me preferncia por este ltimo! Ali, no terreno onde montavam aquela tenda, meus sonhos

    se erguiam tambm. Nos teatros, eu era sempre uma personagem. Faltava um autor, outro

    ator, eu e meu irmo Antnio tnhamos o que fazer; corramos em volta daquele circo o dia

    todo e nos divertamos muito, pois quando entrvamos em cena o circo j estava lotado. E

    era possvel ouvir algum dizendo: Olha, os filhos do Filipim. Eu me sentia bastante orgu-lhosa, quase me esquecia o que tinha para representar, mas a era que todos gargalhavam...

    Hoje, apesar da saudade daqueles tempos, vejo com grande satisfao as mudanas

    desta cidade. Lugar tranquilo, terra de amigos que no se encontram em canto nenhum.

    uma cidade pequena, se comparada a outras, vizinhas, mas posso garantir que aquela

    que se destaca por sua beleza, pelos recursos e empregos e por sua gente to capaz e

    competente, gente feliz.(Texto baseado na entrevista feita com a sra. Terezinha Peres da Silva Nicola, 65 anos.)

    Professora: Joelma Freitas da FonsecaEscola: Colgio Municipal Arceburguense Cidade: Arceburgo MG

    Memrias de um ribeirinho

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    Aluna: Daniele Oliveira Cunha

    J faz tanto tempo, mas as lembranas dos meus tempos de infncia vividos na zona

    rural no me saem da memria.

    Ao primeiro cantar do galo, meu pai j estava de p e pronto para comear mais um

    longo e fatigado dia de trabalho. O vento frio da manh acariciava nossos rostos, eu e

    meus irmos pulvamos da cama e corramos para a lojinha, atrados pelo delicioso chei-

    ro de caf que s a mame sabia preparar. A mesa estava repleta dos produtos da terra,

    frutos do suor de um incansvel ribeirinho que trabalhava de sol a sol para garantir osustento da famlia.

    E, nos maravilhosos dias de sol, quando ainda brincvamos sem nos preocupar

    com a intensidade dos raios solares, amos para o rio das Velhas, que passava perto l

    de casa. O cheiro de mato verdinho adentrava em nossas narinas. O cu azul lmpido

    irradiava felicidade.

    Ah, como era gostoso! Saamos correndo e tchibum! Caamos na gua, nadvamos comopeixinhos, flutuvamos sobre as guas que ainda no haviam sofrido os efeitos da poluio e

    chegvamos a adormecer, recebendo aquela brisa suave misturada ao calor do sol.

    Ento, j cansados e famintos, amos fazer a festa nos ps de jacas, subamos nos mais

    altos galhos daquela frondosa rvore e saamos de l fartos. Como no tnhamos compro-

    misso com horrio, retornvamos ao rio para pescar.

    Quando me lembro disso, lgrimas vm aos olhos, pois aquele majestoso rio, palco dasnossas peraltices de criana, transformou-se em um pequeno riacho ofegante, que insiste

    em ressurgir aps cada temporada de chuva. Mas nada altura do que era antes. Naquela

    poca, ele corria solto, tanto que uma das nossas brincadeiras prediletas era disputar

    quem conseguia chegar outra margem.

    Nisso passvamos quase o dia inteiro.

    Naquelas guas claras e lmpidas perdamos tempo a observar a briga dos peixes que

    di t f l ti A i d d t t d t d O

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