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Lógicas de Vinculação 2010 Sílvia Pinto Universidade do Minho | ECREA Hamburgo 2010 1 Introdução O termo “vinculação”, original da etologia e desenvolvido pelo psicólogo John Boulby nos anos 50, refere-se à necessidade de estabelecermos laços afectivos específicos. Daniel Goleman (2006) utiliza a expressão “redes de vinculação” para falar das grandes redes neurais das principais forças afectivas. Estes circuitos neurais interagem em diversas combinações no amor, na nossa capacidade para nos conectarmos na amizade, na compaixão, ou até mesmo com um gato. Estes mesmos circuitos podem operar, em maior ou menos grau, em domínios como o anseio espiritual ou a paixão pelos espaços abertos e praias desertas. Para Daniel Goleman (2006), a mais fundamental das descobertas da neurociência social foi ter descoberto que fomos concebidos para conectar. A ponte neural que estabelecemos quando interagimos, permite-nos afectar os cérebros dos outros - e através deles, os seus corpos - assim como eles nos afectam a nós. Os nossos cérebros interligam-se com uma espantosa facilidade, espalhando as nossas emoções como um vírus. Os nossos relacionamentos moldam, numa medida antes inimaginável, não só a nossa experiência, mas também a nossa biologia. Por outro lado, o cérebro responde à ilusão criada por imagens com os mesmos circuitos neurais com que responde à vida real. Neste sentido, a responsabilidade social começa na mais pequena interacção. O mundo imagético toma parte desta lógica da interacção. No nosso tempo, em que a ciência nos demonstra a importância crucial dos relacionamentos e pensamentos positivos, as interconexões humanas parecem cada vez mais ameaçadas pela corrosão social e desconexão crescente. O século XX realçou o que nos divide, confrontando-nos com os limites da nossa empatia colectiva. O desafio crucial deste século parece ser, segundo o autor de “Inteligência Social”, “expandir o círculo daqueles que contamos entre Nós, e reduzir o número dos que consideramos Eles” (Goleman, 2006: 463). Esta ideia, que se assemelha a um prolongamento pragmático do conceito de unidade bíblica, levar-nos-á a pensar a arte segundo uma um novo olhar.

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Introdução

O termo “vinculação”, original da etologia e desenvolvido pelo psicólogo John Boulby

nos anos 50, refere-se à necessidade de estabelecermos laços afectivos específicos.

Daniel Goleman (2006) utiliza a expressão “redes de vinculação” para falar das grandes

redes neurais das principais forças afectivas. Estes circuitos neurais interagem em

diversas combinações no amor, na nossa capacidade para nos conectarmos na amizade,

na compaixão, ou até mesmo com um gato. Estes mesmos circuitos podem operar, em

maior ou menos grau, em domínios como o anseio espiritual ou a paixão pelos espaços

abertos e praias desertas.

Para Daniel Goleman (2006), a mais fundamental das descobertas da neurociência

social foi ter descoberto que fomos concebidos para conectar. A ponte neural que

estabelecemos quando interagimos, permite-nos afectar os cérebros dos outros - e

através deles, os seus corpos - assim como eles nos afectam a nós. Os nossos cérebros

interligam-se com uma espantosa facilidade, espalhando as nossas emoções como um

vírus. Os nossos relacionamentos moldam, numa medida antes inimaginável, não só a

nossa experiência, mas também a nossa biologia. Por outro lado, o cérebro responde à

ilusão criada por imagens com os mesmos circuitos neurais com que responde à vida

real. Neste sentido, a responsabilidade social começa na mais pequena interacção. O

mundo imagético toma parte desta lógica da interacção.

No nosso tempo, em que a ciência nos demonstra a importância crucial dos

relacionamentos e pensamentos positivos, as interconexões humanas parecem cada vez

mais ameaçadas pela corrosão social e desconexão crescente. O século XX realçou o

que nos divide, confrontando-nos com os limites da nossa empatia colectiva. O desafio

crucial deste século parece ser, segundo o autor de “Inteligência Social”, “expandir o

círculo daqueles que contamos entre Nós, e reduzir o número dos que consideramos

Eles” (Goleman, 2006: 463). Esta ideia, que se assemelha a um prolongamento

pragmático do conceito de unidade bíblica, levar-nos-á a pensar a arte segundo uma um

novo olhar.

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A obra de arte produzida nos seus primórdios só muito mais tarde foi reconhecida

como tal. Da mesma forma, a obra de arte actual adquiriu a função artística, o que no

futuro poderá tornar-se novamente acidental (Benjamin, 1992). Esta ideia pressupõe

uma outra: que as mudanças ao nível da função social da arte, vistas como sintomas de

uma crise na comunicação entre a arte e o público, contêm os sinais de uma ruptura e

renovação ao nível de um conjunto de ligações com o outro, a vida, a morte, a história

ou o tempo, a que chamaremos “lógicas de vinculação”.

Um crucifixo não era, inicialmente, uma escultura, assim como uma Madona não

era um quadro. A imagem assumiu sempre, de volta em volta, a função de mediadora

entre os vivos e os mortos, o homem e os deuses, as comunidades e as cosmologias, o

visível e o invisível. Seguindo uma perspectiva histórica, tentaremos mostrar essa

evolução, a partir de algumas das concepções de arte mais relevantes ao longo dos

tempos: a arte como actividade mágica, a arte como mimesis, a arte como linguagem, a

arte como vida, a arte sob a lógica do índice, a revolução da imagem, e a “arte da luz”.

Por princípio, a obra de arte sempre foi reproduzível. Os homens sempre puderam

imitar o que outros fizeram. Porém, a descoberta da diferenciação entre original e cópia,

poderá ter sido um mero “efeito em cadeia” (Hofmann) no início do processo de

produção de imagens. Na mesma ordem de ideias, com os Gregos, o aparecimento da

indústria da reprodução para venda retirou a imagem do contexto para o qual foi

concebida, introduzindo-a nas casas das pessoas - o contexto da arte, até então

inexistente – e atribuindo-lhe uma nova função. Por este motivo, podemos dizer que os

gregos inventaram a arte.

No nosso tempo, mais do que em qualquer outra época, o mundo ocupa-se de arte

(Argan, 1984: 15) e nunca, como hoje, a pintura gozou de tão elevado prestígio. Durante

os anos 70, cada cidade queria ter o seu museu, como à alba do século XI, cada cidade

queria ter a sua catedral. Hoje, é o culto da arte que regula as transumâncias culturais do

turismo ocidental (Clair, 1992: 9-14). Poucas são as obras que resistiram aos laços

seculares com a sua terra e os seus motivos e permanecem no seu lugar original de

exposição e culto. Circular tornou-se, no século XX, um valor em si, independente de

qualquer juízo expresso sobre os objectos introduzidos no circuito. Jean Clair (1992)

individua uma relação directa entre a proliferação dos meios de divulgação e dos

museus de Arte Moderna e a sua crise, como se a compulsão para a conservação das

suas obras fosse a tentativa de mascarar o pressentimento de um fim.

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Os museus impuseram ao espectador uma relação totalmente nova com a obra.

Até ao século XIX, só aos olhos do pintor a pintura era pintura. O museu suprime os

retratos ao mesmo tempo que extirpa a função às obras de arte. Não reconhece santos

nem Cristo; objectos de veneração, de semelhança, de imaginação ou de posse, mas

apenas imagens de coisas, diferentes das próprias coisas. Desta diferença específica,

retira a sua razão de ser. O museu ressuscitou um conjunto de artes ao mesmo tempo

que matou outras cujo domínio permanece vasto e complexo (Malraux, 2000: 11-12).

Quando Benjamin escreve que na era da reprodutibilidade da obra de arte “é a

aura que murcha”, refere-se a este deslocamento do lugar de culto das obras, da sua

terra natal, para o lugar da ocorrência de massa. Este, estendeu-se, actualmente, dos

livros à circulação online no cibermuseu.

Este percurso permitir-nos-á compreender não só o deslocamento histórico da

passagem (pós)moderna de uma estética da analogia a uma estética do contacto – mas

também, repensar o nosso lugar entre as diferentes fases históricas da criação – o nosso

desejo de exercer poder (“mágico”) sobre a existência; a nossa necessidade de imitar e

fazer amar aquilo que se emita; a nossa necessidade de fazer ver e ser-mos vistos… – a

necessidade de vínculos. Esta perspectiva crítica possibilitar-nos-á, ainda, compreender

o que têm em comum a fotografia como prática social e a prática artística, e religar

ambas à tradição das imagens sagradas, das “imagens-verdade”, à magia, à loucura, ao

amor e à morte, que sempre foram motores fundadores da criação artística.

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I. A Arte como Actividade Mágica

Para os nossos dias, nada há de mais intrigante na história da percepção sensorial da arte

do que imaginarmos imagens de bisontes, mamutes e renas mergulhadas na escuridão

de cavernas acessíveis somente por soturnos corredores e iluminadas, subitamente, pela

lanterna de um guia (Gombrich, 1985: 22). A aparente incoerência do dispositivo

parietal e da sobreposição das imagens umas sobre as outras terá sido, durante muito

tempo, motivo de evidência da ausência provável de qualquer função expressiva ou

decorativa na sua origem. Para além disso, dada a sua inacessibilidade e total ausência

de luz, tudo levava a crer que estas imagens não teriam sido feitas para serem vistas.

Estudos recentes (Groenen, 2003: 52) indicam-nos o contrário: que o dispositivo

parietal não só foi concebido para ser visto como foi concebido para ser “observado”

segundo específicas modalidades do olhar. Nem os motivos nem os espaços parecem ter

igual valor. As figuras distribuem-se segundo uma vocação própria. A iluminação

vivifica ou adormece as figuras a partir das escolhas topográficas. A dicotomia de luz e

sombra realça as duas realidades presentes no mundo subterrâneo da qual os mitos dão

testemunho – o plano do visível e o plano do invisível.

Dos mais antigos aos mais recentes estudos, todos parecem estar de acordo quanto

à função ou motivação primeira que estaria por trás da produção destas imagens. O

pintor da era paleolítica é simultaneamente o pintor e o caçador que acredita encontrar-

se na posse do próprio objecto a partir do momento em que possui a sua imagem. A sua

representação não é um belo objecto de contemplação mas um projecto de acção que

vale como antecipação do efeito desejado – um poderoso instrumento ao serviço da vida

e da subsistência. A representação e a coisa representada são ainda uma e a mesma

coisa, assim como o desejo e a sua realização. A única diferenciação entre a imagem e a

realidade parece estar no tempo que as separa. (Cfr. Gombrich, 1986; Hauser, s/d).

Para Debray (1994: 13-43) a arte chega à imagem quando a magia se retira.

Efectivamente, a noção que criamos de “arte” - que é grega - é concebida na mimesis.

Mas se a arte, dita mágica, o possa ter sido involuntariamente, no início dos tempos, os

aspectos que dela persistem não brotaram unicamente do “encontro entre o pânico e a

técnica”. As imagens, quer provoquem alívio, terror, ou deleite, contêm sempre a

potência de um efeito. O que muda, em função dos lugares e dos tempos, é a sua

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capacidade – e a daqueles a quem são dirigidas – de dar resposta ao seu apelo. A

inscrição que se pode ler numa estátua funerária ou votiva é sempre o resultado de um

laço ou de um voto – um pacto - que através dela se estabelece.

Ao contrário da mimesis, concepção que dominará a arte ocidental desde a

Antiguidade até ao modernismo, a representação não é aqui uma projecção do passado

mas uma imagem de visualização (espera-se) do futuro. Sob este ponto de vista, esta

prática não parece longe dos difíceis exercícios de imaginação nos quais somos hoje

introduzidos no âmbito dos mais actuais estudos e práticas do pensamento positivo.

Apesar disso, a nós, herdeiros da diferenciação entre realidade e aparência, poderá

parecer-nos que a nossa condição contemporânea em tudo se distancia desta primeira, e

que o “pensamento mágico” em nada nos caracteriza.

Contudo, ai de nós, no momento em que nos enfiassem dois alfinetes nos olhos!

Imagem literal ou realidade vivida, em casos como este, a diferença em nada evitaria

uma súbita sensação de rejeição e repulsa e um apego irracional à “crença universal no

poder das imagens” (Gombrich, 1986). Tanto a manipulação e a tortura, como a

publicidade e o cinema tiram partido deste conhecimento: que o racionalismo da

imagem pouco efeito tem sobre os homens quando se encontram perante aquilo a que

Damásio (2003) chamou de “objectos emocionalmente competentes”.

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II. A Arte como Mimesis

Desde a Antiguidade que a questão da semelhança e o sujeito representado é

objecto de reflexão filosófica. Porém, os estudos sistemáticos dos efeitos de

representação mimética – aquilo a que hoje chamamos psicologia da percepção –

começaram por ser um problema prático no ensino da arte do século XVIII. Procurava-

se a relação entre o problema da inabilidade em copiar a natureza e a incapacidade de a

ver. A questão que se desenhava era se os pintores tinham sucesso na imitação da

realidade por “verem mais” ou viam mais por terem adquirido a habilidade da imitação?

Gombrich (1986) percorre o percurso histórico que leva à “conquista das

aparências” do paleolítico ao “milagre grego” e deste à Arte Moderna. Segundo o autor,

o sucesso da semelhança parece estar limitado não só pelos meios de expressão que o

artista utiliza como também pela sua habilidade em utilizá-los no processo de “ensaio e

erro” associado a uma schemata dada. Por outro lado, a importância que as relações

estabelecem na arte, não só dentro de um quadro, mas também entre diferentes quadros,

envolve o papel das nossas expectativas ou “contextos mentais” na decifração dos

códigos. Toda a comunicação depende de uma interacção deste tipo, entre expectativa e

observação, conjecturas acertadas e jogadas em falso. A projecção que é lançada para

interpretar uma imagem é uma hipótese, entre outras descartadas, para lhe “dar sentido”.

Com a emergência da Arte Moderna e a ruptura do pacto mimético, a estética e a

crítica de arte começaram a abandonar o problema da representação convincente e o

preconceito de que a excelência artística se identificaria com a exactidão fotográfica.

Neste processo, começou-se a associar irrelevância artística e simplicidade psicológica,

e a defender, que as questões da representação, inclusivamente, nunca tiveram nada a

ver com a arte.

Na Antiguidade, porém, a conquista da ilusão pela arte era uma proeza tão recente

que toda a discussão sobre pintura e escultura girava em torno da imitação. Maravilhar-

se era o primeiro passo no caminho da sabedoria e esses fantasmas da realidade visual a

que chamamos pinturas, eram autênticas maravilhas! Longe de seguir o procedimento

natural, de ficar com a schemata e repeti-la infinitamente, a acumulação gradual de

correcções dos artistas gregos, num esforço de contínua empatia imaginativa, constitui a

grande excepção. A conquista do naturalismo que aqui se inicia, através da descoberta

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do escorço, da conquista do espaço e da luz é, literalmente, uma aproximação à vida – a

vida parece penetrar no mármore e acordar, como por milagre, a “bela adormecida”.

Segundo os dados recentes da Neurociência Social (Goleman: 2006), o cérebro

responde à ilusão criada pelas imagens com os mesmos circuitos com que responde à

vida real. Estudos desenvolvidos sobre o contágio ecrã-espectador mostram como “os

filmes que vemos dominam o nosso cérebro”. As emoções são contagiosas tanto na vida

como na arte, porque “uma coisa é real se é real nas suas consequências” (Goleman,

2006: 37). Assim, o cérebro responde a situações de empatia, reais ou representadas,

“acendendo” determinados circuitos neurais.

Quando duas pessoas sentem uma relação, as suas fisiologias sintonizam-se: os

olhos encontram-se, os corpos aproximam-se… e nos relacionamentos fortes, as

posturas e os movimentos entre as pessoas, copiam-se. Aristóteles identificou o prazer

da imitação no processo de aprendizagem. Os circuitos desta ressonância parecem estar

incorporados no próprio sistema nervoso humano, uma vez que ainda no útero, o bebé

já sincroniza os seus movimentos com os ritmos da fala humana. Pelo contrário, quando

a relação não se estabelece, a voz e os corpos desenham o retrato de uma desconexão –

a impossibilidade de estabelecer laços.

A necessidade de mimesis - imitar, contemplar e fazer amar aquilo que amamos -

parece justificar-se no prazer das relações afectivas positivas: a mesma química percorre

os nossos cérebros. A prática do “retrato de amor “não desmente esta teoria.

Investigadores suecos descobriram ainda que sempre que olhamos para uma foto

de alguém cujo rosto revela uma emoção forte, os nossos músculos faciais começam

automaticamente a imitar a expressão que vemos, desencadeando em nós os sentimentos

que mostramos. Este fenómeno, denominado “imitação reflexa”, é mais uma ponte

cérebro-a-cérebro pela qual nos expomos involuntariamente a influências emocionais,

reproduzindo circuitos neurais mais ou menos desejáveis. Esta descoberta reforça a

importância das imagens a que somos expostos para a nossa saúde mental/emocional e

salienta a responsabilidade da arte enquanto criadora de emoções.

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III. A Arte como Linguagem

Para Rosalind Kraus (2002: 63-75) a ambição naturalista com que os impressionistas

saíram dos seus ateliers para conquistar o mundo, foi-se convertendo progressivamente,

numa introversão e imprecisão crescentes, numa perda de inteligibilidade. O estilo

tornou-se num obstáculo à criação de vínculos entre o pintor e o seu sujeito. A ilusão

pictórica fragmentou-se em depósitos de pigmentos, camadas de tinta e manchas

brancas de tela por pintar. As telas impressionistas são apontamentos inacabados de luz

e cor, em forma de manchas justapostas – aquilo que no passado se denominava

“esboços”. Até à data, para que um quadro fosse considerado como tal, era necessária

uma visão unificadora que estruturasse e estabelecesse vínculos entre os elementos.

A lição que a fotografia havia revelado aos impressionistas era clara: a distância

existente entre a percepção e a realidade excluía-os do alheamento da natureza. A

assombrosa gama e nitidez de contrastes e pormenores inscritos na placa do

Daguerreótipo evidenciava a precariedade da percepção humana. Os impressionistas,

transformando a unidade visível da sua própria introspecção numa organização

sistémica da percepção, criaram uma nova função para a arte – a arte como linguagem

ou sistema de signos - para muitos, o primeiro capítulo da Arte Moderna.

A Arte Moderna nasce da aquisição teórica e operativa da natureza convencional

e abstracta da linguagem artística. Essa aquisição opera uma verdadeira ruptura

epistemológica na problemática da arte em relação a uma concepção naturalista da

linguagem, problematizando o pressuposto de uma correspondência imediata entre

linguagem e realidade. Segundo esta concepção, a arte que não se apercebeu desta

passagem sem retorno, não é Arte Moderna mas somente cronologicamente

contemporânea (Menna, 1983: XI).

Filiberto Menna mostra como a “linha analítica da Arte Moderna” contribui para

pôr em crise no campo da arte uma episteme fundada sobre a continuidade e a

semelhança, abrindo a via a uma episteme fundada sobre a descontinuidade e a

diferença. No Simbolismo, a arte é ainda ciência da analogia; uma hermenêutica

enquanto técnica de decifração dos signos da natureza. Com o Impressionismo, e em

particular, Cézanne e Seurrat, a pintura torna-se semiologia. A Arte Conceptual e as

pontas mais extremisticamente analíticas da Art-Language marcam o auge da

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refundação da linguagem da Arte Moderna levando até às últimas consequências o

processo de abstracção da linguagem artística.

É suposto que uma linguagem sirva para partilhar e tornar comum, a outros, a

nossa experiência do mundo – que comunique. Porém, a arte começa a tornar-se

linguagem no momento em que, com o formar-se da Estética, reclama o seu direito à

autonomia em relação a qualquer função social, funcional, hedonística ou moral.

A origem da “arte pela arte” remonta a Aristóteles, mas a ruptura com a tradição

dá-se com as Luzes. Benjamin (1992: 83) explica-a como uma reacção à crise

oitocentista que se manifestou numa “teologia da arte (pura)”. A prática artística deixa

de ser mimesis – uma experiência deduzida da natureza enquanto princípio metafísico

de revelação – para se tornar poiesis – sem qualquer fim para além do seu próprio fazer.

A palavra “autonomia” traduz a condição do que é para si e apenas para si próprio

(Steiner, 1993: 58). Com a emergência da Arte Moderna e a ruptura do pacto mimético

que regia o (re)conhecimento do mundo até ao fim da idade clássica, a arte que afirma a

sua autonomia, reduz-se à sua própria linguagem.

Na era da informação e da comunicação, o homem vive mergulhado na fala, no

gesto e na imagem, a um ritmo impensável no início da modernidade. Se o

Renascimento substitui o culto de Deus pelo do Homem, o século XX substitui o

Homem por uma análise sistémica - a linguagem. “O homem como linguagem”, “a

linguagem no lugar do homem”, introduz a ciência da linguagem por todo o lado (Cfr.

Kristeva, 2007: 9, 14).

1Até ao final do século XVI, porém, a linguagem não é um ser arbitrário que

prolifera indistintamente, nem um mero episódio na história da língua. A linguagem foi

dada ao mundo por Deus e marcada (“assinada”)2 pela sua imagem e sombra, tal como

todas as coisas da natureza. Não há diferença entre as marcas visíveis que Deus colocou

sobre a Terra e as palavras legíveis da Sagrada Escritura ou de outros textos antigos que

a tradição escolheu. A relação com os textos é da mesma natureza que a relação com as

coisas - ambos se propõem aos homens como enigmas a decifrar. E é de sinais

(“signatures”) que os homens se servem, num e noutro caso, para conhecer. A

1Para todas as considerações feitas sobre a linguagem até aos séculos XVI e XVII cfr. FOUCAULT, M.

(1966/1998), “A Prosa do Mundo” in As Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia do Saber, Lisboa:

Edições 70, p. 73-99. 2No original da obra de Foucault (1998) a que aqui nos referimos, o capítulo dedicado às “marcas” é

intitulado “signatures”, p. 81.

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experiência da linguagem pertence à mesma rede arqueológica a que pertence a

representação e o conhecimento das coisas da natureza. Conhecer é apropriar-se do

sistema das semelhanças3 tornando-as próximas e solidárias umas das outras.

A ruptura do pacto com a linguagem, que reflecte a nossa relação com Deus e os

homens, constitui uma das mais profundas revoluções do espírito na história do

Ocidente e define a própria modernidade (Steiner, 1998: 87-89). Aqui é desfeito o acto

de confiança semântico que ocorre na linguagem quando esta é capaz de estabelecer

vínculos entre os seres, e entre estes e os objectos a que se referem. A aliança entre as

palavras/imagens e as coisas pressupõe que o ser é suficientemente “dizível”. A

modernidade é inseparável do enfraquecimento da crença (Lyotard, 1999: 21)

Foucault mostra como o quadro “As Meninas” de Velásquez, representa já a

irredutibilidade da linguagem pictórica à linguagem verbal. Enquanto construção e

desconstrução desacreditada do espectáculo da representação clássica, esta obra assinala

a desaparição daquilo que a funda – o “Mesmo”, ou o modelo da semelhança. (Foucault,

1998 :59-71).

Não obstante a redução da arte a semiótica, projectada pelas pesquisas mais

analíticas da Arte Moderna, a semelhança e as suas figuras não cessam, todavia, de agir

improvisamente dentro da nova episteme, encontrando no campo da arte, um terreno

rico de possibilidades de novas situações de equilíbrio com as novas tendências

analíticas.

“A arte é um modo especial de pensar” (Rosenberg, 2000) no qual se inventam

novos “modos de fazer mundos” (Goodman, 1995); não pode renunciar à sua função

hermenêutica, como gostaria o projecto mais rigorosamente analítico, nem à sua exigência

irrenunciável de nomeação - essa é a sua condição primeira, enquanto linguagem. E este

é o abismo desse encontro: a denominação poética e a denominação comunicativa (Cfr.

Menna, 1999: 99).

3“A trama semântica da semelhança no século XVI é muito rica: Amicitia, Aequalitas (contractus,

consensus, matrimonium, societas, pax et semilia), Consonantia, Concertus, Continuum, Paritas,

Propotio, Similitude, Conjunctio, Copula” (Foucault, 1998: 73).

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IV. A Arte como Vida

A relação entre as emoções suscitadas pela arte e as emoções implicadas nos

acontecimentos mais marcantes da nossa vida - da tristeza à euforia, do desespero à

esperança - sugere que as primeiras não passam de pobres substitutas da realidade,

como na tese da Alegoria da Caverna de Platão (Goodman, 1998: 211-217). Perante o

infortúnio humano e em muitas outras ocasiões, a arte que suprimiu o contexto social na

sua fixação pela experimentação, parece ter verdadeiramente pouca importância. E este

é um facto inegável: que o que é ou não importante, está (de novo) em jogo na arte4.

A partir dos anos 605, a experiência estética é vivida sob o signo de duas

constantes - por um lado, o artista concentra-se sobre si mesmo, reflectindo sobre os

próprios procedimentos; por outro lado, estende-se sobre o mundo, penetra no espaço e

modifica-o. Arte Conceptual e Arte do Comportamento operam no interior desta

bipolaridade da centralidade e da dispersão. No momento da concentração, a arte dá-se

como experiência do vazio e da ausência do rumor do mundo. No momento da

expansão, a arte fornece modelos alternativos de comportamento, transforma-se ela

própria em acção estética e em evento vital. A passagem dos limites é a sua técnica

preferida; os seus veículos privilegiados são o gesto e o corpo na sua totalidade.

(Menna, 1983: 3).

Desde os anos 60 que muitos artistas usam os próprios corpos para explorar

conceitos construídos socialmente como o de identidade, género, sexualidade e raça. O

corpo fala simbolicamente na tentativa de reunificar aquilo que a metafísica separou

através da “psico-logia” – o consciente do inconsciente; a alma do corpo. O corpo, e a

mente - que também é corpo – que é o campo de batalha das nossas maiores lutas,

também é o jardim das nossas maiores delícias.

Segundo Lea Vergine (2000: 7) na base da Body Art há a necessidade inapagável

de um amor incondicional por aquilo que se é ou se deseja ser, que nunca se teve. A

agressividade que distingue estes objectos e eventos nasce, precisamente, deste amor

“primário” não correspondido que é, então, dirigido para o “outro-si mesmo” duplicado,

4 Como atesta a obra de Ben Vautier “Para a importância da não importância”.

5 Em particular, a partir das repercussões do “Evento sem título” realizado no Black Mountain College,

em 1952; das criações do grupo Fluxus e da exposição comissariada por Harald Szeenann na Kunsthalle

Berne, em 1969, intitulada “When Attitudes become Form – Live in your Head”.

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camuflado, idealizado - numa espécie de romance de si. A criação é aqui uma actividade

de valências simbólicas em que “a mentira se santifica e a vontade de ilusão tem de si

tranquila consciência” (Vattimo, 1990: 84); um jogo de forças múltiplo e complexo dos

impulsos dionisíacos para se tornarem forma apolínea – invenção e máscara.

Vários artistas6, entre aqueles que têm usado o corpo como meio de expressão,

praticaram exercícios dolorosos, levaram a concentração e o esforço físico para além

dos limites toleráveis e puseram em risco a própria vida. O seu objectivo era sensibilizar

a sociedade anestesiada para uma nova percepção da dor e da violência. Em Insbruch, as

auto-mutilações dos “nus artísticos – semelhantes a desastres” de Rudolf

Schwartzkogler levaram-no à morte, em 1969. Alguns destes artistas7, que iniciaram a

sua carreira nesta linha, abandonaram-na, após vários anos em que puseram em risco a

própria vida (Goldberg, 2007: 197-202).

É impossível não ver nestes documentos, cujo estilo existencial permanece fora da

própria arte, tentativas desesperadas de relação com o outro - tentativas de recuperação

do objecto amado, o que é sempre uma reelaboração da imagem materna

originariamente perdida. Para Virilio, a Madonna constitui a primeira imagem

comunicativa no sentido em que é mediadora do “menino-deus” na sua capacidade de

“ver tudo o que está ao alcance do seu olhar”; funciona como uma espécie de bilhete de

identidade com a inscrição “eu posso” (Merleau-Ponty, in Virilio, 1998:17-18). Pelo

contrário, o estado de angústia do “ser-no-mundo”, para estes artistas; a dor pela

impossibilidade de se meter em real relação com esse - eis, o motivo destes delírios

narcísicos por protecção e afecto.

Gravações, traçados e registos são os meios aos quais se recorre para narrar todo o

tipo de episódios auto-biográficos. Tudo se torna recuperável; a inteira esfera do privado

é empregue como material de repertório, despudoradamente. O artista é o seu próprio

objecto e em qualquer percepção o corpo está lá, numa espécie de “compulsão em se

mostrar para poder ser”. Por este motivo, o consenso do espectador é essencial para o

reconhecimento da peça e para a salvação do artista. A vinculação acontece (ou não) se

o gesto de quem propõe for recebido no plano da cumplicidade. (Vergine, 2000: 7-27).

6 Como Gina Pane, Vito Acconci, Chris Burden, Abramovic, entre muitos outros.

7 Como Chis Burgen, Acconci e Oppenheim.

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V. A Arte sob a Lógica do Índice

A concepção da fotografia baseada na noção peirceana do índice permitiu revelar

uma nova relação na representação do real desde os primórdios da representação, o que

se pode resumir ao facto de a representação ter nascido por contacto (Bazin, 1981;

Dubois, 1992).

A concepção da fotografia baseada na lógica do índice tem como ponto de partida

a sua natureza técnica, o princípio de impressão luminosa. A fotografia integra aqui a

categoria dos signos entre os quais se incluem “o fumo (índice de um fogo), a sombra

projectada (índice de uma presença), a cicatriz (marca de uma ferida), a ruína (vestígio

do que lá esteve), o sintoma (de uma doença)…” (Dubois, 1992: 44) 8

.

Porém, o princípio do vestígio assinala apenas um momento no conjunto do

processo fotográfico9. No entanto, é ele que lhe confere uma genética nova,

substancialmente diferente da pintura. Primeiro: o vestígio, a marca, o sedimento; só

depois: a codificação perceptiva do fotógrafo atrás da câmara e a do espectador perante

a imagem. Somente durante o instante do acto a fotografia pode ser considerada um

“puro acto-vestígio” ou, segundo a terminologia bartheana, “uma mensagem sem

código” (Barthes, 1089: 125). Nesse instante de esquecimento dos códigos, há uma

falha na qual é registada uma existência, como no livro da vida.

Através da singularidade extrema desta relação de conexão, a imagem-índice

reenvia a um seu referente determinado, designando-o e testemunhando a sua

existência, mas não o seu sentido (Barthes, 1989: 17). O “isto foi” com que Barthes

enuncia o noema da fotografia não nos diz o que “isto quer dizer”; é uma realidade

“branca”. Enquanto índice, a imagem fotográfica reduz a sua semântica à sua própria

pragmática (Dubois, 1992: 46).

8 Em Platão, as imagens “naturais” (acheiropoetós), tal como as sombras e os reflexos (phantasmata),

correspondem à moderna definição de índice – não são imitações “medíocres” da realidade, como “os

objectos do mundo” e “todas as representações deste género”; estas eikonès são instrumentos de

revelação e mistério (Cfr. Joly, 2005: 62-63). 9 Esta é a evolução das concepções da fotografia: mimesis; desconstrução da mimesis; recolocação

positiva do realismo referencial sem a obsessão e a angústia do ilusionismo. “A fotografia é

primeiramente, índice. Somente depois pode tornar-se semelhante (ícone) e adquirir sentido (símbolo)”

(Dubois, 1992: 47).

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Tudo leva a crer que a fotografia invadiu os espaços de exposição da arte e o

campo da crítica no momento de afirmação da própria Modernidade, enquanto

continuidade restabelecida depois da ruptura. O surgimento de um comércio

especializado, os preços alcançados pelas “tiragens de época” e o florescimento de uma

literatura especializada parecem assinalar o ressurgimento de uma nova forma de aura,

mesmo passando pela substituição fetichista daquela que envolvia a obra de arte

tradicional (Cfr. Damisch in Krauss, 2002: 8).

O conceito de aura ou a “manifestação única de uma lonjura, por muito próxima

que esteja”, não se aplica apenas aos objectos históricos, mas também aos objectos

naturais (“a uma cordilheira no horizonte, ou a um ramo que lança a sua sombra sobre

aquele que descansa”), e aos outros. A perda do seu “aqui e agora” anula o testemunho

singular do encontro físico que assenta no seu “sentido para o semelhante no mundo”

(Benjamin, 1992: 77-81).

Roland Barthes retoma o sentido deste encontro no seu punctum e a mesma

sensação de inacessibilidade, relacionando a experiência fotográfica com o sentimento

amoroso – “O quase: regime atroz do amor (e do sonho)”. O punctum começa no

particular absoluto e na contingência soberana do “isto foi”. Ele salta da cena, quando

salta – “uma determinada foto acontece-me, uma outra não” - como uma picada

mortífera; fere, ao lembrar a relação dolorosa do tempo com a morte; a marca

inequívoca do ter sido (Barthes, 1989: 95, 17, 37).

A fotografia deixa-se interpretar em termos congruentes com a história da arte

mas isso não define a sua essência. A fotografia esquiva-se às tentativas de definição:

não constitui um corpus, “apenas alguns corpos”. Sob a lógica do índice, a fotografia é

o objecto teórico através do qual é possível calibrar a sua relação bruta com outros

sujeitos/objectos. A fotografia não se deixa reduzir às categorias artísticas porque

também opera em espaços não artísticos. Obedece menos à lógica do discurso estético

do que à lógica do álbum, do arquivo, da viagem e da reportagem. Uma foto nunca se

distingue completamente do seu referente. E essa “fatalidade do referente” arrasta a

fotografia para a desordem imensa dos objectos do mundo (Barthes, 1989: 16, 18-19). A

“teimosia do referente” que a imagem manifesta, revela o estado da nossa alma.

Historicamente, a noção peirceana inscreve-se num projecto global de passagem

da categoria do ícone à categoria do índice. Esta passagem – uma marca da

modernidade - é um verdadeiro deslocamento histórico, onde uma estética (clássica) da

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mimesis e da analogia (a ordem da metáfora) cede o lugar a uma estética do vestígio, do

contacto e da contiguidade referencial (a ordem da metonímia). A ordem do índice

revela-se, assim, um instrumento conceptual singular para dar conta do funcionamento

das novas formas da Arte Contemporânea.

Rosalind Krauss (2002) aprofunda a emergência e radicalização da lógica do

índice na Arte Contemporânea: não só identifica claramente o espaço outorgado à

fotografia nos movimentos da segunda vanguarda do século XX, como a Body Art ou a

Land Art, como reconhece nestas manifestações artísticas a influência do modelo

fotográfico; do traço, do rastro e do vestígio – exibido no corpo ou marcado no chão –

enquanto índice de um gesto e sintoma de um tempo. O próprio ready-made

duchampiano, concebido como instantâneo, transforma-se no traço de um

acontecimento particular – um acto de enunciação – o equivalente dos significantes

verbais do tipo “isto” ou “aquilo” que Barthes teoriza (Krauss, 2002: 84-85).

A fotografia serviu, em determinado momento, para abalar o universo estético da

diferenciação, introduzindo a inquietante eventualidade da substituição da diferença

qualitativa por uma simples palheta de diferenças quantitativas, como acontece com as

séries. Esse desmoronamento da noção de diferença, com enorme impacto nas práticas

artísticas tradicionalmente “distintas”, revela, em todo o gesto artístico, a

multiplicidade, a ficção, a repetição e o estereótipo (Krauss, 2002: 223-224).

A prática do múltiplo – quer se trate de centenas de cópias reproduzidas a partir

do mesmo negativo, ou de centenas de fotos indiferenciáveis, como as que turistas

poderiam tirar, abala a distinção entre o original e a cópia, os autores e os outros, e a

própria noção de autenticidade, assente na consciência de si do conceito de autor. O

fotógrafo profissional e o fotógrafo de família estão ligados por uma mesma prática.

O observador é chamado a tomar parte activa na recepção da imagem desde o

interior das cavernas – autênticas “obras em situação” (Robert Moris). O poeta é

testemunha ocular (tanto quanto podemos saber) desde Homero. Se admitirmos, com

Joly (2005: 80) que a força da imagem está ligada ao seu carácter histórico dominante

de índice, efectivamente, a sua força permanece ligada ao tempo, cujo poder de

autenticação excede o do objecto. A lógica do índice demarca, porém, claramente o seu

carácter enquanto “prova de existência” e “prova de sentido”. E a sua significação

mantêm-se enigmática a todo aquele que não tome parte na sua enunciação.

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Moisés pede a Deus para ver “a sua glória”. Deus tapa-lhe o rosto, em sinal de

protecção, e mostra-lhe o rasto da sua passagem (Êxodo 33: 12-23). Com este pedido

que Moisés dirige a Deus, enuncia-se toda uma tradição em que nos inscrevemos, que é

caracterizada pela nossa insuficiência e insegurança, e pela nossa necessidade de ver e

ser-mos vistos pelo rosto de quem amamos, de receber um qualquer sinal da sua

presença, nem que seja o rasto/resto da sua passagem. Esta é a lógica do índice, conceito

que atravessa toda a obra de Benjamin, e que chega até nós através da reflexão

fotográfica.

O homem é caçador há milhares de anos. Talvez o gesto mais antigo da

humanidade seja o do caçador procurando o rasto da sua presa (Joly, 2005: 80). A

prática do múltiplo fotográfico fez regressar a distinção entre o original e a cópia à

indiferenciação, como nos primórdios dos tempos. O artista contemporâneo (devoto,

apaixonado ou turista) é novamente um caçador à procura da sua presa – uma tabuinha

onde possa (como Gilgamesh) testemunhar – a esperança de um olhar para conectar.

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VI. A Revolução da Imagem

As novas tecnologias não só estão a ampliar os poderes da visão como estão a alterar a

sua natureza. A “revolução da imagem” constitui uma expansão da visão e um

alargamento das nossas expectativas visuais, permitindo ver coisas novas, de novas

maneiras. Esbatem-se os limites entre o visível e o invisível; o “dentro e o fora”; o

infinitamente grande e o infinitamente pequeno. Por outro lado, os dispositivos ópticos,

dos óculos aos telescópios, da luz eléctrica à fotografia, o cinema e o computador, não

só ampliaram a nossa visão do mundo como alteraram a nossa sincronia biológica com

os outros. (Barr, 2003: 11-12).

A nossa exterioridade visual aumentou. Porém, o aumento da nossa exterioridade

visual parece não ter favorecido a nossa interioridade. A antiga distinção entre “ver com

os olhos” e “ver com os olhos da alma” permanece válida. Tendo em conta o volume de

imagens que circulam e os dispositivos imagéticos que as reproduzem, hoje, vemos, e

somos muito vistos. Mas seremos “bem-vistos”?

No livro “A Máquina da Visão”, Paul Virilio (1998) defende a tese de que a visão

se tem tornado cada vez mais automatizada. A linguagem visual/verbal já não comunica

connosco mas infiltra-se em nós, como um vírus. Já não somos nós que vemos o

exterior mas é o exterior que nos vê a nós, atravessando-nos, como a uma imagem

transparente. Neste contexto, em que o mundo se manifesta pela possessão, e onde não

há espaço para o silêncio, o único silêncio possível é o desaparecimento de si (“self”) –

o nosso - excepto na condição de permanecermos um reflexo espectral do mundo – uma

“imagem-eco”(tal como a Ninfa Eco) condenada à condição de ser vista, para poder ser

(Cfr. Hiebert, 2002).

Como vimos, a necessidade de mimesis parece justificar-se no prazer das relações

positivas. Mas a “imitação reflexa” é “uma ponte cérebro-a-cérebro pela qual nos

expomos involuntariamente a influências emocionais, reproduzindo circuitos neurais

mais ou menos desejáveis” (Cfr. “A Arte como Mimesis”). A importância das imagens a

que somos expostos é de tal forma vital para a nossa saúde mental/emocional, que

perante situações nocivas, quer pelos seus conteúdos, quer pelo excesso de informação,

não nos resta que a desconexão.

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VII. Para uma Arte da Luz

A luz foi celebrada e venerada como fonte de vida, benignidade e ordem, em muitas

civilizações antigas, o que não é de estranhar, se pensarmos que a luz do sol é a fonte de

energia mais importante para o mundo vegetal e o nosso principal meio de interacção e

informação com o exterior. No paradigma da ciência moderna, reafirmou-se esta antiga

convicção: de que a luz é a fonte da vida terrestre e tudo o que existe no Universo foi

condicionado pela sua presença. Enquanto intermediária da visão, a luz é sujeito e

objecto de investigação, uma vez que sem luz, não poderíamos viver10

.

Porém, a Física diz-nos que vivemos de luz emprestada, uma vez que a luz que

nos chega do céu é enviada pelo sol, a uma distância de milhões de Km (~172-236)

através de um universo escuro para uma terra escura. A luz foi o problema fundamental

da Física até aos finais do século XIX e as suas principais vicissitudes actuais

continuam ligadas ao estudo da sua propagação. As novas teorias físicas relacionadas

com a luz colocam ainda importantes problemas filosóficos, como as relações de

causa/efeito e de determinação/indeterminação (Alzetta - Santamato, 1986: 173-192).

Mas o tema da luz é recorrente, na Física, na Metafísica, na Teologia e nas Artes.

O simbolismo da luz data, provavelmente, de época tão antiga quanto a história do

homem. A luz personifica o bem, assim como as trevas personificam o mal. Este

dualismo de forças antagónicas em luta, percorre mitos e crenças de muitos lugares e de

muitos tempos. É que na percepção, a obscuridade não é vista como uma ausência de

luz, mas como um princípio tão activo quanto a própria luz. Na Bíblia, a luz identifica-

se com Deus. Em Descartes, a luz identifica-se com a razão. Para Damásio (2000), a luz

é uma metáfora para os processos cognitivos da consciência – uma revelação

progressiva da existência.

Assim, a luz não é um problema exclusivo da percepção visual ou da prática

artística mas, como refere Arnheim (1991), é a causa física do que vemos, o pré-

requisito para quase todas as nossas actividades e uma das experiências mais

fundamentais e poderosas que existem. A luz interpreta para os nossos olhos a

10

Estima -se, que no processo da visão, cada célula do córtex cerebral estabeleça milhares de sinapses

com outras células corticais. O fluxo de informação que a visão é capaz de fornecer é

extraordinariamente maior relativamente aos intermediários de qualquer outro processo sensorial. Por

este motivo, quem usa óculos sabe que, sem eles, tão pouco consegue ouvir.

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passagem do tempo, e para a nossa alma, o calor, a energia e o amor indispensáveis à

vida. Por este motivo, ela é tão celebrada e tema de estudo nas mais variadas disciplinas.

A arte constitui uma das fontes de informação mais importantes sobre a percepção

humana e percorre toda a história da percepção. Mas a arte não é a única fonte de

informação que existe sobre a luz, e as conclusões que sobre ela podemos tirar,

ultrapassam largamente o campo artístico.

O nosso conhecimento actual sobre a luz contamina as diferentes áreas que se

foram estratificando em compartimentos estanques, ao longo dos séculos. Hoje, a luz

como fonte de vida é, simultaneamente, bíblica e biológica. O mundo físico deixa-se

sobrepor pelas camadas de metáforas, mais ou menos silenciosas, mais ou menos

transparentes, dos “olhos da alma”, da psique ou da consciência. As “luzes da razão”

aquietam-se perante os circuitos neurais involuntários das emoções. Podemos ver bem,

sem nenhuma luz. E nada discernir, apesar da vista. A interioridade e a exterioridade da

visão revelam-se como expressões intermutáveis. Uma imagem é sempre, porém, o

registo daquilo que alguém viu, ainda que mais ou menos voluntariamente.

A história da percepção da luz na arte mostra-nos como diferentes são as formas,

os âmbitos e as estratégias em que a luz, ora se manifesta, ora se esconde. Das

medievais auréolas dos santos ao alto contraste criado por Caravaggio; da unidade da

luz na paisagem holandesa à sua contingência na paisagem impressionista; das

iluminuras dos livros das horas às “catedrais” de néon minimalistas... torna-se claro

como a diferentes percepções de luz correspondem diferentes concepções de luz, isto é,

distintas semióticas. O teatro grego, a literatura sacra e a literatura laica, o Iluminismo e

todo o nosso passado cultural nos falam da existência “da luz e das trevas”. Post

Tenebras Spero Lucem lê-se na folha de rosto da edição original do Dom Quixote de

Cervantes. A psicologia contemporânea não desmente a sabedoria antiga. Nem as

pinturas negras de Goia, do Caravaggio ou da Nan Goldin.

Na filosofia grega, cada nova descoberta ocorre entre os dois pólos dialécticos da

“aletheia” e do “lethe”. Em grego, “lethe” significa obscuridade e “aletheia”, o seu

contrário – “claridade”, “clareza”. Aletheia e lethe, alternadamente, desenvolvem

intuições e definem conceitos. As obras de arte “da luz” encerram segredos e suscitam

questões. Quando nos tocam, iluminam-nos: a experiência com que se nos revelam e

nos abalam, ao mesmo tempo, estende os nossos limites – o círculo daqueles que,

segundo Goleman (2006), contamos entre Nós - e alarga a nossa consciência.

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