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CARMILLA J. Sheridan Le Fan Tradução, comentários e notas: L P Baçan

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Livro que inspirou a estória do Conde Drácula!

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  • CARMILLA

    J. Sheridan Le FanTraduo, comentrios e notas: L P Baan

  • 2J. Sheridan LeFanu

    CARMILLATraduo, comentrio e notas L P Baan

    1A. Edio Eletrnica

    Copyright 2009 L P Baan

    Londrina PR Brasil

    Setembro de 2009

  • 3CarmillaJ. Sheridan LeFanu

    1872

    Joseph Thomas Sheridan Le Fanu (1814-187373), foi jornalista e escritor irlands e suamemria venerada como a do precursor das histrias de fantasmas, que fixou o gnero deterror gtico, com sua novela mais famosa, Carmilla, escrita em 1872 que, segundo se afirma,influenciou Bram Stoker no clssico Drcula.

    J. Sheridan Le Fanu, como mais conhecido, nasceu em 28 de agosto de 1814. Seu pai,Philip Thomas Le Fanu, foi um um clrigo e Emma Lucretia Dobbin Le Fanu era o nome desua me. O contato com as supersties e tradies irlandesas influenciaram o futuro escritorque com elas conviveu desde a mais tenra idade.

    Graduou-se em Direito em 1839, mas dedicou-se carreira de jornalista. Em 1838escreveu sua primeira histria de terror, publicado na Revista da Universidade de Dublin.

    Em 1844 casou com Susanna Le Fanu Bennett e teve quatro filhos. Em 1851, mudou-separa uma casa, na Merrion Square, em Dublin, onde viveu at sua morte.

    Com a morte de sua esposa, em 1858, recolheu-se em sua residncia naqueles que foramseus anos mais produtivos como escritor.

    Morreu em 7 de Fevereiro de 1873, em sua casa e foi enterrado no Cemitrio MountJerome, em Dublin, Irlanda.

    Mais detalhes sobre sua biografia e obras podem ser encontrados na wikipdia e nos sitesBiografia de Sheridan Le Fanu e Ensaios sobre Joseph Sheridan Le Fanu, na Internet.

  • 4COMENTRIO

    No h como negar o mrito de Le Fanu, ao criar um gnero totalmente novo e dar a eleimportncia e discpulos que, ao longo dos sculos, s cresceram. Se influenciou ou no BramStoker, to ou mais famoso que ele nesse gnero literrio, questo de somenos importncia,porque nada ou ningum vai tirar-lhe o mrito de ter criado o gnero vampiresco. O gticoganhou expresso na literatura e o terror foi um tema que cativou autores do mundo todo,cujos exemplos nem precisam ser citados aos aficionados.

    A novela Carmilla, editada e reeditada dezenas de vezes ao longo dos anos, adaptadapara o cinema, comentada e criticada, foi um marco, sem dvidas. Como texto literrio,analisando seu contedo, tem suas falhas, mas nada que lhe tire o mrito, pois nos faz supor ebuscar explicaes e concluses que nos desafiam e nos confundem. Isso a mantm viva,porque no se esgota em si mesma.

    No entanto, de autor para autor, ele bem que poderia ter melhor explicado a natureza,presena e destino dos coadjuvantes de suas cenas de caadas. A dama de veludo negro, ococheiro, os batedores, a carruagem e todos os outros acompanhantes que se fizeram presentesem suas aparies, mas ausentes quando a descobriram e... Seria antecipar o texto. Leiam eentendero.

    Um outro aspecto, o da verossimilhana, que pode facilmente ser superada pelasagacidade do autor, fica inexplicada e difcil de ser aceita, em termos convencionais e atuais.Ele prprio, na personagem que narra, confessa a incapacidade de explicar, o que foi muitointeligente e estratgico. Como Carmila entrava e saia do tmulo sem danificar o cimento ouarranhar o reboco? Se estava em seu corpo fsico, matria, no h como explicar matria -entenda-se aqui carne, sangue, ossos e roupas contrariando as leis da fsica, ocupando osmesmos lugares no espao, ainda que transitoriamente? Um fantasma, um ectoplasma, umasombra ou um esprito poderiam passar atravs de uma barreira slida, se isso fosse posto ans, meros leitores. Mas no um corpo fsico, em plena vida.

    Outro aspecto dessa verossimilhana cobrada por mim, apenas, at agora o doporqu Carmilla no despertou ou reagiu quando foi descoberta no tmulo, sendo que emtodas as outras ocasies em que foi ameaada e atacada, livrou-se de golpes de espadasimplesmente teletransportando-se de um lugar ao outro com uma velocidade que deixouatnito quem testemunhou a cena.

    Foi passiva demais no final do texto. Poderia se tornar um mito forte e supostamenteindestrutvel como Bram Stoker fez seu Drcula, lutando pela sobrevivncia at o final. Dequalquer forma, Le Fanu iniciou o mito e, como iniciante, fez maravilhosamente bem seupapel. Os autores que se seguiram, escrevendo sobre vampiros, foram apurando a lenda edetalhando o mito.Podemos olhar criticamente o texto hoje, quase duzentos anos depois, encontrar um e outrodetalhe passvel de comentrio, mas no podemos diminuir o brilho daquele que, pela primeiravez, tirou tudo isso do nada e o ps no papel. Maravilhoso ofcio que desempenhou comexcelncia, pois praticou o que todo escritor busca: a originalidade. Sem falar no atrevimentode, em plena era vitoriana, dar um toque fantstico e sutil de lesbianismo ao seu texto.Atrevido e original, atributos de um grande escritor!

  • 5PRLOGO

    Atravs de um documento anexado narrativa que se segue, o doutor Hesselius1escreveu uma nota bastante elaborada, que fez acompanhar com uma referncia ao seu Ensaiosobre o estranho assunto que ser narrado.

    Esse misterioso assunto tratado por ele, nesse ensaio, com sua habitual perspiccia esabedoria e com notvel retido e condensao. Constitui um volume nico da srie dedocumentos coletados por esse homem extraordinrio.

    Como publico o caso neste livro apenas para o interesse dos leigos, devo preservar amulher inteligente que o relatou e, aps a devida considerao, decidi, portanto, abster-me deapresentar qualquer resumo do raciocnio erudito do Doutor ou extrato de suas declaraessobre um tema que ele descreve como envolvendo, no improvavelmente, um dos maisprofundos arcanos de nossa dupla existncia e seus intermedirios.

    Eu estava ansioso, ao ler essas anotaes, para reabrir a correspondncia iniciada peloDoutor Hesselius, tantos anos antes, com uma pessoa to inteligente e cuidadosa como suainformante parece ter sido. Para o meu pesar, no entanto, descobri que ela havia morrido nesseintervalo.

    Ela, provavelmente, teria acrescentado muito pouco narrativa que se segue, com, atonde posso dizer, tanta conscincia e particularidades.

    1 O Dr. Martin Hesselius considerado o primeiro detetive de fico ocultista, cinco de cujos casos aparecemna coleo de contos de Sheridan Le Fanu, In a Glass Darkly (1872).

  • 6IUm Susto Inicial

    Na Estria2, ns, pessoas da nobreza sem recursos, habitamos um castelo ou schloss. Umapequena renda, nessa parte do mundo, vale muito. Um pouco ao ano faz maravilhas. Nossaescassez controlada era responsvel pelas pessoas da casa. Meu pai o Ingls e eu ostento umnome ingls, embora nunca tenha visto a Inglaterra. Mas aqui, neste lugar solitrio e primitivo,onde tudo to maravilhosamente barato, eu realmente no vejo como mais dinheiro iria, dealguma forma, acrescentar algo ao nosso conforto ou mesmo aos nossos luxos.

    Meu pai fora do Servio Austraco e, reformado, com uma penso e com seupatrimnio, comprou esta residncia feudal e o pequeno terreno em que se encontra por umapechincha.

    Nada pode ser mais pitoresco ou solitrio. Fica numa ligeira elevao em uma floresta. Aestrada, muito antiga e estreita, passa em frente de uma ponte levadia, jamais erguida em meutempo, e seu fosso tem um poleiro e muitos cisnes. Flutuando sobre a superfcie da gua,frotilhas de lrios brancos.

    Dominando tudo isso, o schloss mostra sua fachada com muitas janelas, suas torres e suacapela gtica.

    A floresta abre-se em uma pitoresca e irregular clareira e muito antes do porto, direita,uma ngreme ponte gtica acompanha a estrada que serpenteia ao longo de um riacho quemergulha em profundas sombras atravs do bosque. Eu disse que este um lugar muitosolitrio. Julgue se digo a verdade. Olhando da porta da sala de entrada, a floresta em quenosso castelo se localiza estende-se quinze milhas para a direita e doze para a esquerda. Aaldeia habitada mais prxima dista cerca de sete de suas milhas inglesas, esquerda. O schlosstradicional mais prximo o do velho General Spielsdorf, cerca de vinte milhas de distnciapara a direita.

    Eu disse a aldeia habitada mais prxima porque h, apenas trs milhas a oeste, ou seja,na direo do castelo do General Spielsdorf, uma aldeia arruinada, com sua pitoresca eminscula igreja, agora sem teto, em cujo corredor esto os tmulos desfeitos da orgulhosafamlia Karnsteins, agora extinta, que uma vez possuiu igualmente o desolado chateau que, naespessura da floresta, contempla do alto as silenciosas runas da cidade.

    A respeito da causa da desero do inesquecvel e melanclico local, existe uma lendaque vou narrar a voc em uma outra ocasio.

    Devo dizer-lhe agora como muito pequeno o grupo que constitue os habitantes donosso castelo. No incluo servos, dependentes ou aqueles que ocupam cmodos nos edifciosanexos ao schloss. Oua e admire! Meu pai, que o mais gentil homem sobre a face da terra,mas velho, e eu, que na data da minha histria contava apenas dezenove anos. Oito anos sepassaram desde ento.

    Eu e meu pai constituamos a famlia no schloss. Minha me, uma senhora estiriana,morreu na minha infncia, mas eu tinha uma bondosa governanta que esteve comigo, eupoderia dizer, desde a minha infncia. No consigo me lembrar de um momento em que seugordo e bondoso rosto no fosse uma figura familiar em minha memria.

    2 Provncia da ustria, cuja capital Graz.

  • 7Essa era Madame Perrodon, nascida em Berna, cujo cuidado e bom carter, em parte,supriu para mim a perda de minha me, de quem eu nem me lembro de to cedo que a perdi.Ela era a terceira pessoa em nossa pequena confraria no jantar. Havia uma quarta,Mademoiselle De Lafontaine, uma mulher como voc denomina, creio eu, uma educadora derefinamento. Falava francs e alemo, Madame Perrodon francs e ingls incorreto, a que omeu pai e eu acrescentvamos o ingls que, parte para evitar tornar-se uma lngua perdida entrens e parte por motivos patriticos, falvamos todos os dias. A conseqncia era uma Babel daqual estranhos costumavam rir e que no vou tentar reproduzir nesta narrativa. Havia dois outrs jovens amigas, prximas da minha idade, que eram visitantes ocasionais em perodos maislongos ou mais curtos. A essas visitas ocasionalmente eu retribua.

    Esses eram nossos recursos sociais disposio, mas, evidentemente, havia apossibilidade de visitas de vizinhos de apenas cinco ou seis lguas de distncia. Minha vida era,no obstante, solitria, posso assegurar-lhe.

    Minhas governantas exerciam tanto controle sobre mim que voc poderia supor o quetais sbia pessoas fariam no caso de uma menina bastante mimada, cujo nico parentepermitia-lhe escolher seu prprio caminho em quase tudo.

    O primeiro acontecimento em minha vida que produziu uma sensao terrvel em minhamente, que na realidade nunca foi apagada, foi um dos primeiros incidentes de que posso melembrar. Algumas pessoas vo pensar que foi to insignificante que no deveria ser aquiregistrado. Voc ver, no entanto, mais adiante, por que o menciono. O berrio, como erachamado, onde eu tinha tudo para mim, era um grande aposento na parte superior do castelo,com um ngreme telhado de carvalho. Eu no devia ter mais de seis anos de idade quando,uma noite, acordei. Olhando ao redor do quarto, de minha cama, no consegui ver o que verianormalmente. Minha bab no estava l e me vi sozinha. Eu no estava assustada porque erauma dessas crianas que so felizes estudadamente mantidas na ignorncia das histrias defantasmas, de contos de fadas e de todas essas bobagens que nos fazem cobrir a cabeaquando uma porta se entreabre de repente ou o brilho de uma vela se extinguindo faz umasombra danar na parede, perto de ns. Eu estava aborrecida e insultada por achar-me, comoimaginava, negligenciada, e comecei a choramingar, preparatrias para uma amvel descarga dechoro que se seguiria. Foi quando, para minha surpresa, vi um rosto solene, mas muito lindo,olhando-me ao lado da cama. Era o de uma jovem ajoelhada, com as mos sob o cobertor.Olhei para ela com uma espcie de prazerosa admirao e parei de choromingar. Ela meacariciou com as mos e ficou ao lado da cama, atraindo-me para ela, sorrindo. Senti-meimediata e deliciosamente calma e adormeci novamente. Fui acordada pela sensao de duasagulhas penetrando meu peito profundamente e chorei muito alto. A jovem recuou, com osolhos fixos em mim e em seguida deslizou para o cho e, supus, escondeu-se debaixo da cama.

    Eu estava agora, pela primeira vez, assustada e gritei com todas as minhas foras.Camareiras, babs, governantas, todas acudiram e, aps ouvir a minha histria, fizeram poucodela, enquanto faziam de tudo para acalmar-me. Mas, criana como era, podia perceber queseus rostos estavam plidos e com um inesperado olhar de ansiedade. Eu as vi olhar debaixoda cama, pelo quarto, sob mesas e entreabrir armrios. A camareira sussurrou para aenfermeira:

    Pe a sua mo ao longo desta parte da cama. Algum esteve aqui e tenho certeza deque no foi voc. O lugar ainda est quente.

    Lembro-me da bab tomando-me no colo e todas as trs examinaram meu peito, ondeeu disse que senti a puno, afirmando que no havia qualquer sinal visvel de que tal coisativesse acontecido comigo.

  • 8A governanta e as duas outras servas que estavam a cargo do berrio permaneceramsentadas durante toda a noite e, a partir daquele momento, uma serva sempre permaneceu aliat que eu tivesse cerca de quatorze anos.

    Andei muito nervosa por um longo tempo depois disso. Um mdico foi chamado, eraplido e idoso. Quo bem me lembro de seu rosto muito triste, ligeiramente picado pelavarola, e sua peruca castanha! Por um bom tempo, a cada dois dias, ele vinha e me davaremdios que, claro, eu odiava.

    Na manh aps ter visto essa apario, eu estava em estado de terror e no podiasuportar ficar sozinha nem a luz natural, mesmo que fosse por um momento.

    Lembro-me de meu pai chegando e ficando beira do leito, conversando animadamente,fazendo enfermeira uma srie de perguntas, rindo muito amavelmente em uma e outraresposta, acariciando-me no ombro, beijando-me e dizendo-me para no ter medo, que no eranada mais do que um sonho e que nada iria me machucar.

    Mas no fiquei confortada, pois eu sabia que a visita da mulher no fora um sonhoestranho e continuei terrivelmente assustada.

    Fiquei um pouco consolada quando a bab assegurou-me que era ela que havia chegado,olhado para mim e se deitado na cama ao meu lado e que eu deveria estar meio adormecidapara no ter reconhecido seu rosto. Mas isso, apesar de apoiado pela enfermeira, no mesatisfez totalmente.

    Lembro-me, no decurso desse dia, de um venervel senhor, numa batina preta, vindo ato aposento com a bab e a governanta, falado um pouco com elas e muito gentilmentecomigo. Seu rosto era muito doce e suave e ele me disse que iam rezar. Uniu as mos e pediu-me para dizer, suavemente, enquanto eles oravam:

    Senhor, ouvi todas as boas oraes por ns, pela graa de Jesus.Acho que estas foram as palavras exatas, pois eu muitas vezes as repeti para mim e

    minha enfermeira obrigou-me a diz-las em minhas oraes.Lembro-me muito bem do rosto doce e pensativo do velho homem de cabelo branco

    em sua batina negra, de como ele permaneceu no aposento, com o inexpressivo mobilirio detrezentos anos ao seu redor e a escassa luz entrando em sua atmosfera sombria atravs dasestreitas trelias. Ele se ajoelhos com as mulheres e orou em voz alta com uma voz defervoroso trinado, pareceu-me, por um longo tempo. Eu esqueci de toda a minha vida anteriora esse evento. De algum tempo depois, tudo tambm obscuro, mas as cenas que acabo dedescrever destacam-se vvidas como isoladas imagens da fantasmagoria cercada pela escurido.

  • 9IIA Convidada

    Vou lhe dizer uma coisa to estranha que ir exigir toda sua f em minha sinceridadepara acreditar em minha histria. No s verdade, apesar de tudo, mas a verdade da qual fuiuma testemunha ocular.

    Era um agradvel vero e meu pai convidou-me, como s vezes fazia, para um pequenopasseio com ele ao longo dessa linda vista da floresta que j descrevi e que se estendia diantedo schloss.

    O General Spielsdorf no poder vir at ns to logo quanto eu esperava dissemeu pai, enquanto prosseguamos em nossa caminhada.

    Ele deveria ter-nos pagado uma visita de algumas semanas e ns espervamos suachegada no dia seguinte. Ele deveria trazer uma menina, sua sobrinha e aia, MademoiselleRheinfeldt, que eu nunca tinha visto, mas de quem tinha ouvido a descrio de ser uma meninamuito encantadora e em cuja companhia eu havia prometido a mim mesma muitos dias felizes.Fiquei mais decepcionada do que uma menina que vive em uma cidade ou um bairromovimentado pode imaginar. Essa visita, e o novo conhecimento prometido, tinhampreenchido meus sonhos dirios por muitas semanas.

    E quando ele vira? perguntei. No at o outono. Nem por dois meses, me atrevo a dizer respondeu. E estou

    muito feliz agora, querida, que voc nunca conheceu Mademoiselle Rheinfeldt. E porqu? perguntei, tanto mortificada quanto curiosa. Porque a pobre moa est morta ele respondeu. Eu esqueci completamente

    que nada lhe havia dito a esse respeito, pois voc no estava no aposento quando eu recebi acarta do General essa tarde.

    Fiquei muito chocada. O General Spielsdorf tinha mencionado em sua primeira carta,seis ou sete semanas antes, que ela no estava to bem como ele gostaria que estivesse, masno havia nada que sugerisse a remota suspeita de perigo.

    Aqui est a carta do General disse ele, entregando-a para mim. Temo que eleesteja em grande aflio, a letra parece-me de ter sido escrita muito distraidamente.

    Ns nos sentamos num rude banco, sob um grupo de magnficas tlias. O sol se punha,com todo seu melanclico esplendor, por trs do horizonte silvestre. O riacho que corre aolado de nossa casa e passa sob a ngreme e velha ponte a que j referi, surgia atravs de umgrupo de rvores nobres, quase aos nossos ps, refletindo em sua corrente o desbotadocarmesim do cu. A carta do General Spielsdorf era to extraordinria, to veemente e, emalguns trechos, to contraditria, que a li duas vezes a segunda vez em voz alta para o meupai e ainda assim fui incapaz de dar conta de seu contedo, a no ser supor que o luto haviatranstornado sua mente.

    Ele disse: Eu perdi a minha querida filha, como tal, pois assim eu a amava. Durante os ltimos diasda doena de Bertha, no fui capaz de escrever para voc. At ento eu no tinha idia do perigo que ela corria.Eu a perdi e, agora, soube de tudo, demasiado tarde. Ela morreu na paz da inocncia e na esperana de umglorioso e abenoado futuro. O demnio que traiu a nossa dedicada hospitalidade fez tudo. Eu pensava queestivesse recebendo em minha casa inocncia, alegria, uma encantadora companhia para minha perdida Bertha.Cus! Como fui tolo! Agradeo a Deus que minha criana morreu sem suspeitar da causa de seu sofrimento.Ela se foi sem muito conjecturar sobre a natureza de sua doena e a amaldioada paixo do agente de toda essa

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    misria. Devotarei meus dias restante para perseguir e extinguir um monstro. Digo que espero realizar meujusto e misericordioso propsito. Atualmente, existe apenas um vislumbre de luz para guiar-me. Amaldioovaidosa incredulidade, o meu desprezvel fingimento de superioridade, a minha cegueira, minha obstinao tudo demasiado tarde. No consigo escrever ou falar coerentemente agora. Estou distrado. Ento, logo quedeva ter-me recuperado um pouco, pretendo dedicar um tempo para investigar, o que pode eventualmente levar-me to longe como Viena. Em algum momento, no outono, dois meses por conseguinte, ou mais cedo, se eu viver,vou v-lo isto , se voc me permitir. Vou ento dizer-lhe tudo o que eu sequer ouso colocar no papel agora.Adeus. Reze por mim, querido amigo.

    Nesses termos terminou essa estranha carta. Embora eu nunca tenha visto BerthaRheinfeldt, meus olhos encheram-se de lgrimas na sbita revelao. Fiquei assustada, bemcomo profundamente decepcionada.

    O sol j tinha se posto e era crepsculo quando devolvi a carta do General a meu pai.Era uma noite clara e suave e ns divagamos, especulando sobre os possveis

    significados das violentas e incoerentes frases que eu havia acabado de ler. Tivemos decaminhar cerca de uma milha antes de atingir a estrada que passa em frente ao schloss e nomomento em que a lua luzia brilhantemente. Na ponte levadia, encontramos MadamePerrodon e Mademoiselle De Lafontaine, que tinham sado, sem suas toucas, para desfrutardas delcias do luar.

    Ouvimos as vozes tagarelando em animado dilogo enquanto nos aproximvamos. Nsnos juntamos a elas na ponte levadia e nos viramos para admirar com elas a bela cena.

    A clareira atravs da qual havamos recm-caminhado estendia-se a nossa frente. A nossaesquerda, o estreito caminho estende-se ao longe sob aglomeraes de vetustas rvores e seperdia de vista no meio da floresta espessa. direita, a mesma estrada atravessa a ngreme epitoresca ponte, que fica perto de uma torre arruinada que uma vez guardara aquela passagem.Para alm da ponte, uma abrupta elevao se erguia, coberta de rvores e mostrando nassombras algumas rochas cinzentas cobertas de hera.

    Ao longo do gramado e das reas baixas, uma fina pelcula de nvoa ia avanando comofumaa, marcando as distncias com um vu transparente. Aqui e ali podamos ver o rioligeiramente cintilando ao luar.

    Nenhuma cena mais suave e mais doce poderia ser imaginada. A notcia que acabara deouvir tornou tudo melanclico, mas nada poderia perturbar o seu carter de profundaserenidade e a encantada glria e impreciso da perspectiva.

    Meu pai, que apreciava o pitoresco, e eu ficamos olhando em silncio ao longo daextenso abaixo de ns. As duas boas governantas, de p um pouco atrs de ns, comentarama cena e foram eloquentes sobre a lua.

    Madame Perrodon era gorda, de meia-idade e romntica, falou e suspirou poeticamente.Mademoiselle De Lafontaine em razo de seu pai, que era um alemo, assumir ser psicolgo,metafsico e de certa forma um mstico agora declarava que, quando a lua brilha com uma luzto intensa, era bem sabido que indicava uma especial atividade espiritual. O efeito da lua cheiaem tal estado de brilho era manifesto. Ele agia em sonhos, ele agia em loucuras, ele agia empessoas nervosas, tinha influncias fsicas maravilhosas relacionadas com a vida. Mademoisellerelatou que seu primo, que era tripulante de um navio mercante, tendo tirado uma soneca noconvs em uma noite assim, deitado de costas, com o rosto voltado luz na lua, tinhaacordado, aps um sonho com uma velha mulher agarrando-lhe a bochecha, com suas marcashorrivelmente desenhadas em uma face e seu semblante jamais recuperou seu equilbrionovamente.

    A lua, esta noite, ela disse est cheia de idlica e magntica influncia e veja,quando voc olha para a frente do schloss, como todas as suas janelas piscam e bruxuleiam com

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    um esplendor prateado, como se mos invisveis iluminassem as salas para receber hspedesencantados.

    H indolentes estados de esprito nos quais, indispostos para falarmos, o falar dos outros agradvel aos nossos apticos ouvidos e olhei, satisfeita com o tilintar da conversa dassenhoras.

    Estou em um de meus deprimentes estados esta noite disse meu pai, depois deum silncio e, citando Shakespeare, a quem, para manter ativo nosso ingls, ele costumava lerem voz alta, disse:

    Na realidade no sei por que sou to triste. Isso me aborrece: voc diz que isso aborrece voc; mascomo me tornei isso conseguiu-o. Eu esqueci o resto. Mas sinto como se algum grande infortniopairasse sobre ns. Suponho que a aflita carta do pobre General tenha alguma coisa a ver comisso.

    Nesse momento, o inesperado som de rodas de uma carruagem e de muitas patas, naestrada, chamou a nossa ateno.

    Pareciam se aproximar do terreno alto com vista para a ponte e, rapidamente, assilhuetas surgiram a partir daquele ponto. Dois cavaleiros inicialmente atravessaram a ponte e,em seguida, veio um carro puxado por quatro cavalos e dois condutores.

    Parecia ser uma carruagem de viagem de uma pessoa de classe e todos ns ficamosimediatamente absorvidos em assistir a esse espetculo muito incomum. Tornou-se, empoucos momentos, muito mais interessante, assim que o transporte passou na cimeira dangreme ponte. Um dos cavalos lderes, assustando-se, transmitiu seu pnico aos outros e, apsuma empinada ou duas, todo o grupo disparou junto num galope selvagem e impetuoso.Passandso entre os cavaleiros que estavam frente, vieram ao longo da estrada trovejantes emnossa direo com a velocidade de um furaco.

    A excitao da cena tornou-se mais dolorosa pelos claros e interminveis gritos de umavoz feminina vindo da janela da carruagem.

    Fomos tomados de curiosidade e horror: eu em silncio, o resto com variadasmanifestaes de terror.

    Nossa expectativa no durou muito. Mesmo antes de chegar ponte levadia do castelo,na rota em que se aproximavam, h, beira da estrada, uma magnfica rvore viscosa. Dooutro lado, uma antiga cruz de pedra, vista da qual os cavalos, agora indo em um ritmototalmente assustador, desviou de forma a levar a roda sobre as razes projetadas da rvore.

    Eu sabia o que iria acontecer. Cobri meus olhos, incapaz de ver e virei minha cabea. Aomesmo tempo, ouvi um grito de minhas damas amigas, que haviam recuado um pouco.

    A curiosidade abriu meus olhos e eu vi uma cena de total confuso. Dois dos cavalosestavam no cho, o transporte jazia a seu lado com as rodas no ar. Os homens ocupavam-se,removendo os destroos e uma mulher com ar e figura senhoriais tinha sado e ficado com asmos crispadas, erguendo o leno que estava nelas e depois levando-o aos olhos.

    Atravs da porta da carruagem foi erguida uma jovem que parecia estar morta. Meuvelho e querido pai j estava ao lado da idosa senhora, com o chapu na mo, evidentementeoferecendo sua ajuda e os recursos de seu schloss. A mulher no parecia ouvi-lo ou ter olhospara qualquer coisa, a no ser para a delicada menina que estava sendo colocada contra oencosto do banco.

    Aproximei-me. A mocinha estava aparentemente atordoada, mas certamente no estavamorta. Meu pai, que atribua-se ter alguma coisa de mdico, apenas tocou seus dedos no pulsodela e garantiu mulher, que se declarou ser a prpria me, que o pulso, embora fraco eirregular, estava, sem dvida, ainda perceptvel. A mulher crispou suas mos e olhou para o

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    alto, como se em um momentneo arroubo de gratido, mas imediatamente ela adotounovamente uma postura teatral, que , creio, natural para algumas pessoas.

    Ela era o que se chama de uma mulher bem apessoada para sua idade e deve ter sidobonita. Ela era alta, mas no magra, vestida de veludo preto e parecia bastante plida, com umorgulhoso e autoritrio semblante, mas agora estranhamente agitada.

    Quem nunca foi to sujeita calamidade? Eu a ouvi dizer, com mos crispadas,quando me aproximei. Aqui estou eu, em uma jornada de vida e morte, em um processoonde perder uma hora ser possivelmente perder tudo. Minha criana no ter se recuperado osuficiente para retomar seu percurso por quem pode dizer quanto tempo? Devo deix-la: euno posso, no ouso, demorar. Quo distante, senhor, pode me dizer, est o povoado maisprximo? Devo deix-la e no verei minha querida, ou mesmo ouvirei dela, at o meu regresso,trs meses, portanto.

    Eu puxei meu pai pelo casaco e fervorosamente sussurrei em seu ouvido: Oh, papai, pea a ela para deix-la ficar com a gente, seria to delicioso. Pea, pea! Se a Madame entregar sua filha aos cuidados de minha filha e da sua boa governanta,

    Madame Perrodon, e permitir-lhe permanecer como nossa convidada, sob meu encargo, atseu retorno, vai nos conferir uma distino e uma obrigao e vamos trat-la com todo ocuidado e dedicao que to sagrada confiana merece.

    Eu no posso fazer isso, senhor, seria atarefar sua bondade e generosidadecruelmente disse a mulher, distraidamente.

    Seria, pelo contrrio, conferir-nos uma grande graa no momento em que maisprecisamos dela. Minha filha acaba de ser decepcionada por uma cruel desdita, por uma visitapela qual tinha longamente antecipado momentos de grande felicidade. Se voc confiar estamoa aos nossos cuidados, ser seu melhor consolo. A aldeia mais prxima de seu percurso distante e no oferece uma pousada onde voc poderia pensar em colocar a sua filha. No sepode permitir que ela continue a viagem para qualquer distncia considervel sem perigo. Se,como voc disse, no pode suspender sua viagem, deve despedir-se dela esta noite e emnenhum lugar pode fazer isso com as mais honestas garantias de cuidados e de ternura do queaqui.

    Havia algo no ar dessa senhora de aparncia to ilustre e at mesmo impositiva e na suaforma to envolvente capaz de impressionar qualquer um, alm da dignidade de seusapetrechos, com a convico de que ela era uma pessoa de responsabilidade.

    Por esse tempo, a carruagem fora posta em sua posio vertical e os cavalos, muitodceis, atrelados novamente.

    A mulher lanou a sua filha um olhar que eu percebi no ser to afetuoso como algumpoderia ter antecipado a partir do incio da cena. Depois, ela acenou ligeiramente para meu pai,afastou-se dois ou trs passos com ele da audincia e conversou com ele com um semblantefixo e severo, diferente daquele com que tinha falado at ento.

    Eu estava cheia de admirao por meu pai no parecer perceber a mudana e tambminenarravelmente curiosa para saber o que poderia ser o que ela estava falando, quase em seuouvido, com tanta seriedade e rapidez.

    Dois ou trs minutos, no mximo, eu acho que ela se manteve ocupada nisso, ento elase virou e, caminhou poucos passos at onde jazia sua filha, apoiada por Madame Perrodon.Ela se ajoelhou a seu lado por um momento e sussurrou, como Madame sups, uma brevebno em seu ouvido. Depois de apressadamente beij-la, subiu em sua carruagem, a porta foifechada, os cocheiro em seus majestosos librs saltaram para a bolia, o batedores apressaram-se, os postilhes estalaram seus chicotes, os cavalos saltaram, repentinamente mergulhados em

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    um trote furioso que em breve tornou-se novamente um galope e o transporte rodou paralonge, seguido no mesmo ritmo rpido pelos dois cavaleiros na retaguarda.

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    IIIComparando Sonhos

    Seguimos o cortejo com os olhos at que ele se perdeu rapidamente de vista no brumosobosque e o prprio som das patas e das rodas desapareceu no ar da noite silenciosa.

    Nada ficou para nos garantir que a aventura no tinha sido uma iluso de momento, ano ser a jovem, que s naquele momento abriu os olhos. Eu no podia ver, pois o rosto delano estava voltado para mim, mas ela levantou a cabea, aparentemente olhando ao redor, e euouvi uma voz muito doce queixosamente perguntar:

    Onde est mame?Nossa boa Madame Perrodon respondeu carinhosamente e acrescentou algumas

    palavras de conforto.Eu ento a ouvi perguntar: Onde estou? Que lugar este? e, depois disso, ela disse eu no vejo o carro. E

    Matska, onde est ela?Madame respondeu a todas as suas perguntas, na medida em que as entendia e

    gradativamente a jovem foi se lembrando de como o contratempo surgira, ficando feliz aoouvir que nenhum dos acompanhantes ou da carruagem se ferira. Ao saber que sua me adeixara ali at seu retorno, em trs meses, ela chorou.

    Eu ia juntar meu consolos aos de Madame Perrodon quando Mademoiselle DeLafontaine, colocando a mo em meu brao, disse:

    No se aproxime, uma s no momento tudo com quem ela pode conversar. Umapequena emoo poderia possivelmente subjug-la.

    Logo que ela estiver confortavelmente na cama, pensei, vou correr at ao quarto e v-la.Meu pai, nesse meio termo, tinha enviado um servo a cavalo para buscar o mdico, que

    vivia cerca de duas lguas de distncia. Um aposento estava sendo preparado para receber ajovem.

    A estranha ento ergueu-se e, apoiada no brao de Madame, caminhou lentamente aolongo da ponte levadia para o porto do castelo.

    No hall de entrada, servos esperavam para receb-la e ela foi conduzida imediatamentepara seu quarto. A sala que costumvamos usar como nossa sala de estar longa, com quatrojanelas que olhavam para o fosso e a ponte levadia, acima do cenrio da floresta que acabei dedescrever.

    decorada com carvalho antigo entalhado, com grandes armrios esculpidos, com ascadeiras revestidas com veludo carmesim de Utrecht. As paredes so cobertas com tapetes,cercados por grandes molduras douradas, com cenas to grandes como a vida, com antigos emuito curiosos hbitos e temas representando a caa, falcoaria e geralmente festivos. No demasiado pomposo para no ser extremamente confortvel e ali ns tomvamos nosso ch,pois com sua habitual e patritica inclinao, papai insistia que a bebida nacional devia fazer asua apario regular junto com nosso caf e chocolate.

    Sentmo-nos ali naquela noite e, iluminados por velas, estvamos conversando sobre aaventura da noite.

  • 15

    Madame Perrodon e Mademoiselle De Lafontaine estavam ambas em nossa reunio. Ajovem estrangeira mal se deitou, j mergulhou em um sono profundo e aquelas senhoras atinham deixado aos cuidados de uma serva.

    Como lhe parece nossa convidada? perguntei, logo que entrou Madame. Diga-me tudo sobre ela!

    Eu gostei muito dela respondeu Madame ela , ao que me parece, a criaturamais bonita que eu j vi. Tem aproximadamente a sua idade e muito doce e agradvel.

    Ela absolutamente linda disparou Mademoiselle, que tinha dado uma olhadelapor um momento no quarto da forasteira.

    E que voz doce! acrescentou Madame Perrodon. Vocs observaram que havia uma mulher na carruagem, aps ter sido endireitada

    novamente, que no saiu, mas apenas olhou pela janela? indagou Mademoiselle. No, ns no a tnhamos visto.Em seguida, ela descreveu uma horrvel mulher negra, com uma espcie de turbante

    colorido na cabea, que ficou olhando todo o tempo da janela da carruagem, acenando com acabea e sorrindo zombeteiramente para as senhoras, com reluzente olhos brancos e grandesolhos, e seus dentes arreganhados como se em fria.

    Vocs notaram que bando de homens mal-encarados eram os servos? indagouMadame.

    Sim disse meu pai, que tinha acabado de entrar, feios, indivduos com umacara de vira-latas como eu nunca vi na minha vida. Espero que eles no roubem a pobresenhora na floresta. Eles so espertos viles e se apossam de tudo em minutos.

    Atrevo-me a dizer que esto muito desgastados com a longa viagem disseMadame. Alm do olhar malvado, seus rostos eram to estranhamente magros, escuros emal-humorados. Estou muito curiosa, eu prpria, mas atrevo-me a dizer que a moa vai noscontar tudo sobre isso amanh, se ela estiver suficientemente recuperada.

    Eu no acho que ela vai disse meu pai, com um sorriso misterioso e um pequenosinal de cabea, como se ele soubesse mais sobre ela do que cuidou em nos dizer.

    Isso nos deixou ainda mais curiosas pelo que havia se passado entre ele e a mulher develudo preto, na breve mas fervorosa entrevista que havia imediatamente precedido suapartida.

    Estvamos praticamente sozinhos, quando lhe roguei que me dissesse. Ele no mepareceu muito interessado.

    No h razo especfica para que eu no deva lhe dizer. Ela expressou uma certarelutncia em perturbar-nos com o cuidado da filha, dizendo que ela tinha sade delicada enervosa, mas no objeto de qualquer tipo de apreenso ela manifestou isso nem iluso,sendo, na realidade, perfeitamente s.

    Muito estranho ela dizer isso tudo! interpolei. Foi to desnecessrio. De qualquer forma, foi dito, riu ele e como voc deseja saber tudo o que se

    passou, o que foi de fato muito pouco, vou dizer. Ela ento disse: Estou fazendo uma longa viagemde vital importncia ela enfatizou a palavra rpida e secreta. Vou voltar para a minha filha em trs meses.No entanto, ela ser omissa quanto a quem somos, de onde viemos e para onde estamos indo. tudo o queela disse. Ela falou um francs muito puro. Quando ela disse a palavra secreta, ela pausoudurante alguns segundos, olhando severamente, seus olhos fixos nos meus. Eu imagino que eladeu grande importncia a isso. Voc viu como ela rapidamente foi embora. Espero no terfeito uma coisa muito tola, responsabilizando-me pela jovem.

  • 16

    De minha parte, fiquei encantada. Eu ansiava ver e falar com ela e apenas esperava que omdico o permitisse. Vocs, que vivem em cidades, no podem ter idia de quo grandeevento a apresentao de um novo amigo, em tal solido como a que nos cercava.

    O mdico no chegou at quase uma hora da manh, mas eu no podia mais ir para aminha cama e dormir, tanto quanto poderia ter ultrapassado, a p, a carruagem com que aprincesa em veludo preto tinha ido embora.

    Quando o mdico veio at a sala de estar, tinha um relatrio muito favorvel sobre suapaciente. Ela estava sentada agora, seu pulso bem regular, aparentando estar perfeitamentebem. Ela no sofrera nenhum ferimento e o pequeno choque nervoso tinha sido um tantoinofensivo. No poderia haver prejuzos certamente em minha visita a ela, se ambasdesejvamos isso. Com essa permisso, enviei, de imediato, algum para saber se ela mepermitia visit-la por alguns minutos no quarto dela.

    A serva retornou imediatamente dizendo que ela nada desejava mais.Voc pode ter certeza que eu no estava muito longe de avaliar por mim mesma essa

    permisso.Nossos visitantes ficam em um dos mais agradveis aposentos do schloss. Era, talvez, um

    pouco pomposo. Havia uma sombria pea de tapearia no lado oposto ao p da cama,representando Clepatra com a spide em seu peito, e outras clssicas e solenes cenas eramexibidas, um pouco desbotadas, nas outras paredes. Mas havia ouro entalhado e ricas e variadascores suficientes nas outras decoraes do quarto para mais do que resgatar a escurido daantiga tapearia.

    Havia velas beira do leito. Ela estava sentada. Sua delgada e bonita figura envolta naseda macia do roupo de banho, bordado com flores e alinhavado com espessas almofadas deseda, que a me havia atirado sobre os ps dela enquanto jazia sobre o cho.

    O que foi que, quando alcancei a lateral do leito e mal havia comeado minha saudao,atingiu-me mudamente no momento e fez-me recuar um passo ou dois diante dela? Vou dizer-lhe.

    Eu vi o mesmo rosto que visitara-me em minha infncia, noite, que se manteve to fixoem minha memria e sobre o qual, por muitos anos, tantas vezes ruminei com horror, quandoningum suspeitava sobre o que eu estava pensando.

    Era lindo, lindo mesmo, e quando eu a olhei inicialmente, tinha a mesma expressomelanclica.

    Mas isso quase instantaneamente iluminou-se em um estranho sorriso dereconhecimento.

    Houve um silncio completo de um minuto e, em seguida, na sequncia ela falou. Euno pude.

    Que maravilhoso! ela exclamou. Doze anos atrs, eu vi seu rosto em umsonho e ele tem-me assombrado desde ento.

    Maravilhoso realmente! repeti, com um esforo para superar o horror que tinhapor algum tempo suspenso minhas palavras. Doze anos atrs, em viso ou realidade, eucertamente vi voc. Eu no poderia esquecer o seu rosto. Manteve-se diante dos meus olhosdesde ento.

    Seu sorriso havia suavizado. Seja como for que tivesse me sentido estranha com isso,havia dissipado isso e suas bochechas com covinhas estavam agora deliciosamente bonitas einteligentes.

    Senti-me tranquilizada e prossegui no rumo que a hospitalidade indicava para dar-lhe asboas-vindas e para lhe dizer quanto prazer sua chegada acidental tinha dado a todos ns e,especialmente, que felicidade foi para mim.

  • 17

    Eu tomei sua mo enquanto falava. Eu estava um pouco tmida, como o so as pessoassolitrias, mas a situao fez-me eloquente e mesmo corajosa. Ela apertou-me a mo, ps asdela sobre a minha e seus olhos brilharam, enquanto, olhando precipitadamente nos meus, elasorriu novamente e corou.

    Ela respondeu a minhas boas-vindas muito gentilmente. Sentei-me ao seu lado, aindamaravilhada, e ela disse:

    Devo contar-lhe minha viso sobre voc. muito estranho que voc e eupudssemos ter tido, uma da outra, um sonho to vvido, que cada uma pudesse ter visto, eu avoc e voc a mim, olhando-nos como o fazemos agora, quando, claro, ambas ramosapenas crianas. Eu era uma criana de cerca de seis anos, despertei de um sonho confuso eincmodo e encontrei-me em um aposento, diferente de meu berrio, desajeitadamenteguarnecido com uma madeira escura, com armrios, camas, cadeiras e bancos dispostos nele.As camas estavam, imaginei, todas vazias, bem como o prprio aposento sem ningum almde mim. Eu, depois de olhar ao meu redor por algum tempo e admirar especialmente umcastial de ferro com dois ramos, que iria conhecer novamente, arrastei-me de uma das camaspara alcanar a janela. Mas quando entrei debaixo da cama, ouvi algum chorando e, olhandopara cima, enquanto ainda estava ajoelhada, vi voc seguramente voc como eu a vejoagora: uma bela jovem, com cabelos dourados, grandes olhos azuis e lbios seus lbios como a vejo aqui. Sua aparncia conquistou-me. Eu subi na cama e pus meus braos sobrevoc e eu acho que ns duas adormecemos. Fui despertada por um grito. Voc estava sentadagritando. Eu fiquei assustada e escorreguei para baixo no assoalho e, pareceu-me, perdi aconscincia por um momento. Quando voltei a mim, estava novamente em meu berrio, emcasa. Seu rosto eu nunca esqueci desde ento. Eu no poderia ser induzida a erro por merasemelhana. Voc a jovem que me vi, ento.

    Foi ento a minha vez de narrar a minha viso correspondente, o que fiz, para oindisfarvel admirao de minha nova conhecida.

    Eu no sei porque tivemos tanto medo uma da outra disse ela, sorrindonovamente. Se voc fosse menos bonita, acho que deveria ter muito mais medo de voc,mas sendo como voc , e voc e eu somos to jovens, sinto apenas que a conheci doze anosatrs e tenho j direito a sua intimidade. Durante todos os acontecimentos, parece queestvamos predestinadas, desde nossa tenra infncia, a sermos amigas. Gostaria de saber sevoc se sente to estranhamente atrada por mim como eu por voc. Eu nunca tive uma amiga.Encontrarei uma agora? suspirou e seus olhos perfeitos fixaram-se apaixonadamente emmim.

    Agora, a verdade que eu me senti bastante desconfortvel em relao bela estranha.Eu me senti, como ela havia dito, atrada por ela, mas tambm havia algo de repulsa. Nessesentimento ambguo, porm, o sentimento de atrao imensamente prevaleceu. Ela meinteressou e ganhou-me. Era to bonita e to indescritivelmente atraente.

    Eu percebi, ento, algo de langor e exausto acentuar-se nela e apressei-me em desejar-lhe boa noite.

    O mdico acha acrescentei que deve ficar uma serva com voc esta noite. Umadas nossas est esperando e voc ver que se trata de uma criatura muito til e pacata.

    Que gentileza a sua, mas eu no poderia dormir, eu nunca conseguiria com umapessoa no quarto. Eu no preciso de qualquer ajuda e, devo confessar a minha fraqueza, souassombrada por um terror de ladres. Nossa casa foi assaltada uma vez e dois empregadosassassinados. Assim, eu sempre tranco minha porta. Tornou-se um hbito e voc parece toamvel que sei que vai me perdoar. Vejo que h uma chave na fechadura.

  • 18

    Ela me tomou bem prximo em seus lindos braos por um momento e sussurrou aomeu ouvido:

    Boa noite, querida, muito difcil despedir-me de voc, mas boa noite. Amanh, masno mais cedo, irei v-la novamente.

    Ela despencou de volta no travesseiro com um suspiro e seus olhos perfeitos meseguiram com um um olhar apaixonado e melanclico. Ela murmurou novamente:

    Boa noite, querida amiga!Os jovens gostam e at mesmo amam por impulso. Fiquei lisonjeada pela evidente,

    porm, ainda imerecida, afetuosidade que ela me demonstrou. Gostei da confiana com queme recebeu de imediato. Ela estava determinada que deveramos ser amigas muito prximas.

    O dia seguinte chegou e ns nos encontramos novamente. Fiquei encantada com minhacompanheira em muitos aspectos.

    Sua aparncia nada perdeu luz do dia. Ela era certamente a mais bela criatura que eu jtinha visto e a desagradvel lembrana do rosto, apresentado em meu antigo sonho, tinhaperdido o efeito do primeiro e inesperado reconhecimento.

    Ela confessou que tinha experimentado um choque semelhante ao ver-me e exatamentea mesma antipatia desvelada que se misturava com a minha admirao por ela. Ns rimosjuntas agora sobre de nossos horrores momentneos.

  • 19

    IVSeus Modos - Um passeio

    Eu disse que fiquei encantada com ela na maior parte dos detalhes.Houve alguns que no me agradaram muito.Ela estava acima da altura mdia das mulheres. Vou comear por descrev-la.Era magra e maravilhosamente graciosa. Exceto por seus movimentos serem langorosos

    muito langorosos na verdade, nada havia em sua aparncia que indicasse uma invlida. Suaaparncia era rica e brilhante; suas faces eram pequenas e maravilhosamente formadas; seusolhos grandes, escuros e brilhante; o cabelo dela era maravilhoso, nunca vi fios tomagnificamente delgados e longos, quando eles caiam sobre seus ombros. Frequentementecolocava minhas mos sob eles, sorrindo com admirao pelo seu peso. Eram requintadamentefinos e macios, de uma cor marrom escuro muito rica, com algo de ouro. Eu gostava de solt-los, fazendo cambalhotas com seu prprio peso, enquanto, no quarto dela, ela se sentava emsua cadeira, falando com sua voz doce e baixa. Eu costumava separ-los, tran-los, espalh-lose brincar com eles. Cus! Se eu soubesse de tudo!

    Eu disse que havia detalhes que no me agradavam. J lhe disse que ela ganhou-me aconfiana na primeira noite em que a vi, mas achei que ela mantinha, com relao a ela, suame, sua histria, tudo na verdade ligado vida dela, planos e pessoas, uma incessante reserva.Atrevo-me a dizer que eu no estava sendo razovel, talvez eu estivesse errada. Ouso dizer queeu deveria ter respeitado a solene injuno estabelecida sobre meu pai pela majestosa dama develudo preto. Mas curiosidade uma paixo inquieta e sem escrpulos e uma menina no podesuportar, com pacincia, que ela seja frustrada por uma outra pessoa. Que mal haveria emalgum me dizer o que to ardentemente desejava saber? Ela no tinha confiana na minhahonra ou bom senso? Por que ela no acreditou em mim quando lhe assegurei, de formasolene, que no iria divulgar uma slaba do que ela me dissesse, a qualquer mortal vivo.

    Havia uma frieza, pareceu-me, alm de sua vida, na recusa de seu persistente sorrisomelanclico em dar-me o menor raio de luz.

    No posso dizer que discuti sobre esse ponto, porque ela no aceitaria qualquerdiscusso. Foi, naturalmente, muito injusto da minha parte pression-la, muito mal-educado,mas eu realmente no poderia ajudar e poderia muito bem t-la deixado quieta.

    O que ela me disse resultou, em meu julgamento exorbitante, em nada.Tudo pode ser resumido em trs vagas revelaes.Primeiro - O nome dela era Carmilla.Segundo - A famlia dela era muito antiga e nobre.Terceiro - Sua casa ficava na direo do oeste.Ela no me disse o nome de sua famlia, nem falou-me de seu braso de armas, nem o

    nome de sua propriedade, nem mesmo o do local em que viviam.Voc no est supondo que eu a tenha atormentado incessantemente sobre esses temas.

    Vi oportunidades que tanto insinuaram quanto encorajaram meus questionamentos. Uma ouduas vezes, na verdade, eu a abordei mais diretamente. Mas no importava qual fosse a minhattica, o fracasso absoluto foi invariavelmente o resultado. Censura e carinho foram todasperdidas com ela. Mas, devo acrescentar isso, que sua fuga era conduzida com to lindamelancolia e splica, com tantas, e mesmo apaixonadas declaraes do quanto gostava de mim

  • 20

    e, creia em minha honra, com tantas promessas de que eu iria saber, finalmente, de tudo, queeu no poderia encontrar em meu corao lugar para me sentir ofendida por ela.

    Ela costumava colocar seu lindo brao ao redor de meu pescoo, atrair-me para si,colando nossas faces, murmurando com seus lbios junto de minha orelha:

    Querida, seu pequeno corao est ferido. No me ache cruel porque obedeo leiirresistvel da minha fora e fraqueza. Se o seu corao est ferido, querida, meu coraoselvagem sangra com o seu. No arrebatamento de minha enorme humilhao eu vivo em suavida clida, e voc deve morrer morrer, docemente morrer na minha. E no posso ajud-la.Como eu me aproximo de voc, voc, por sua vez, ir aproximar-se de outros e aprender oarrebatamento dessa crueldade que ainda o amor. Assim, por enquanto, no procure sabermais de mim e dos mneus, mas confie em mim com todo o seu esprito amoroso.

    E quando ela falou isso, ela me apertou mais forte em seu trmulo abrao e seus lbios,em suaves beijos, suavemente arderam em minha face.

    Sua perturbao e sua linguagem foram ininteligvelis para mim.A partir desses tolos abraos, que no eram muito frequentes, devo admitir, eu quis me

    libertar, mas minhas foras pareciam falhar. Seus murmrios soavam como uma cano deninar em meu ouvido e amorteciam minha resistncia em um transe, a partir do qual eu sparecia recuperar-me, quando ela retirava seus braos.

    Com essa misteriosa atitude eu no gostava dela. Experimentei uma estranha etumultuada agitao que foi prazerosa, s vezes, misturada com um vago sentimento de medoe repugnncia. Eu no tive pensamentos distintos sobre ela, enquanto durava tais cenas, maseu estava consciente de um amor que crescia em adorao e tambm em repdio. Isso paradoxal, eu sei, mas no posso fazer qualquer outra tentativa de explicar o sentimento.

    Eu agora escrevo, aps um intervalo de mais de dez anos, com mo trmula, com umaconfusa e horrvel recordao de certos acontecimentos e situaes, no calvrio pelo qual euestava passando inconscientemente, apesar de uma recordao viva e muito clara dosprincipais acontecimentos de minha histria.

    Mas, suponho, em todas as vidas, h certas cenas emocionais, aqueles em que as nossaspaixes foram mais selvagem e terrivelmente despertadas, que so de todas as outras as maisvaga e palidamente lembradas.

    s vezes, aps uma hora de apatia, a minha estranha e bela companheira tomava aminha mo e segurava-a com uma carinhosa presso, renovada seguidamente, corandosuavemente, encarando-me com olhos langorosos e ardentes, respirando to rpido que seuvestido erguia-se e abaixava-se com a tumultuoda respirao. Foi como o ardor de um amante,que me embaraou. Foi odioso e ainda assim, dominador. Com os olhos sedutores, ela atraia-me para ela e seus lbios ardentes passeavam ao longo de meu rosto em beijos. Ela sussurrava,quase em soluos:

    Voc minha, voc ser minha, voc e eu somos uma para sempre.Ento ela se jogava de volta em sua cadeira, com suas pequenas mos sobre os olhos,

    deixando-me trmula. Ser que estamos ligadas? eu costumava perguntar. O que se pode dizer de

    tudo isso? Lembro-lhe, talvez, algum a quem voc ama, mas no deveria, eu odeio isso, euno conheo voc. No conheo a mim mesma quando voc me olha e fala assim.

    Ela costumava suspirar diante de minha paixo e depois afastar-se e largar minha mo.A respeito dessas to extraordinrias manifestaes eu me esforcei em vo para formar

    qualquer teoria satisfatria. Eu no podia interpret-las como fingimento ou truque. Foiinegavelmente a momentnea fuga do instinto reprimido e da emoo. Era ela, apesar de suame voluntariamente negar, sujeita a breves visitas da insanidade ou havia ali um disfarce e um

  • 21

    romance? Eu tinha lido, em um velho livro de histrias, alguma coisa parecida. Poderia ser queum jovem amante tivesse encontrado o caminho da minha casa e tentado prosseguir em suaconquista disfaradamente, com a ajuda de uma velha e esperta aventureira. Mas havia muitascoisas contra essa hiptese altamente interessante para a minha vaidade.

    Eu no podia me vangloriar das mnimas atenes que a galenteria masculina costumaoferecer. Entre esses momentos apaixonados houve longos intervalos de convivncia rotineira,de alegria, de introspectiva melancolia, durante o quais detectava seus olhos to cheios deardente melancolia seguindo-me e muitas vezes eu parecia ser nada para ela. Salvo nessesbreves perodos de excitao misteriosa, seus modos eram de menina e havia sempre umlangor envolvendo-a, absolutamente incompatvel com um corpo masculino em pleno vigor.

    Em alguns aspectos seus hbitos eram estranhos. Talvez no to singulares, na opiniode uma mulher da cidade como voc, tal qual pareceria para ns, pessoas rsticas. Elacostumava descer muito tarde, geralmente nunca antes de uma hora, em seguida tomava umaxcara de chocolate, mas nada comia. Ento saamos para uma caminhada, que era um meropasseio, e ela parecia, quase que imediatamente, esgotada. Ou retornvamos para o schloss ousentvamos em um dos bancos que haviam sido colocados aqui e ali, entre as rvores. Essa erauma prostrao fsica com que sua mente no simpatiza. Ela era sempre uma conversadoraanimada e muito inteligente.

    Ela fazia aluso s vezes, por um momento, a sua prpria casa, ou mencionava umaaventura ou situao, uma recordao antiga, o que indicava ser uma pessoa de estranhoscostumes. Descreveu costumes dos quais nada sabamos. Eu deduzi, a partir dessas pistasinesperadas, que seu pas era muito mais distante do que eu inicialmente imaginara.

    Quando nos sentamos assim, um sbado tarde sob as rvores, um funeral passou porns. Foi o de uma bonita rapariga, a quem eu tinha visto muitas vezes, a filha de um dosguardas da floresta. O pobre homem caminhava atrs do caixo de sua querida. Era sua nicafilha e ele parecia muito inconsolvel.

    Camponeses, caminhando dois a dois, vinham atrs, cantando um hino fnebre.Eu me ergui para demonstrar meu respeito enquanto passavam e uni-me ao canto que

    eles muito suavemente cantavam.Minha companheira sacudiu-me de um modo um tanto grosseiro e eu me virei

    surpreendida.Ela disse bruscamente: Voc no percebe quo contraditrio isso? Acho que muito terno, pelo contrrio respondi, apoquentada com a interrupo

    e muito desconfortvel, porque as pessoas que compunham a pequena procisso deviam terobservado e reprovao que eu estava recebendo.

    Eu reiniciei o canto, pois, instantaneamente, e fui novamente interrompida. Voc fura meus ouvidos disse Carmilla, quase raivosamente, cobrindo as orelhas

    com os minsculos dedos. Alm disso, como voc pode achar que a sua religio e a minhaso as mesmas? Suas cerimnias ferem-me e eu odeio funerais. Que barulho! Por que vocdeve morrer todos tm de morrer e todos ficam felizes quando o fazem. Vamos embora.

    Meu pai foi com o padre para o adro. Eu pensei que voc soubesse que ela seriaenterrada hoje.

    Ela? Eu no preocupo minha cabea com camponeses. No sei quem ela respondeu Carmilla, com um relampejar de seus lindos olhos.

    Ela a pobre menina que imaginou ter visto um fantasma h quinze dias e agonizoudesde ento, at ontem, quando expirou.

    Nada me fale de fantasmas. No vou dormir esta noite, se o fizer.

  • 22

    Espero que no haja peste ou febre se aproximando. Tudo isso se parece muito comoela eu continuei. A jovem esposa do guardador de porcos morreu apenas uma semanaatrs. Ela imaginou que algo a agarrou pela garganta, enquanto estava em sua cama, e quase aestrangulou. Papai diz que tais horrveis fantasias se fazem acompanhar de algumas formas defebre. Ela estava muito bem no dia anterior. Ela definhou em seguida e morreu em menos deuma semana.

    Bem, seu funeral j se foi, espero, junto com seu hino. Nossos ouvidos no devemser torturados com a discrdia e o jargo. Ps-me nervosa. Sente-se aqui, ao meu lado. Senteperto, segure minha mo, aperte forte, forte e mais forte.

    Recuamos um pouco e chegamos a um outro banco.Ela se sentou. Seu rosto sofreu uma mudana que me assustou e mesmo aterrorizou por

    um momento. Escureceu e se tornou horrivelmente plido; os dentes e as mos crisparam-se.Ela franziu as sobrancelhas e comprimiu seus lbios, enquanto baixava os olhos para o solo aseus ps, trememdo toda continuamente com um estremecimento irreprimvel como o de umafebre. Todas as suas energias pareciam tensas para reprimir um ataque, com o que ela foi entoficando sem respirao. Em breve um grito fraco e convulsivo de sofrimento partiu dela, e,progressivamente, a histeria foi se acalmando.

    Veja! Isso vem de hinos que estrangulam as pessoas! disse ela, finalmente. Abraa-me, segure-me ainda. Est passando.

  • 23

    E assim gradualmente ocorreu e, talvez para dissipar a triste impresso que o espetculohavia deixado sobre mim, ela se tornou extraordinariamente animada e tagarela. Assimchegamos em casa.

    Essa foi a primeira vez que eu a vi exibir qualquer definvel sintomas dessa delicadeza desade de que a me dela havia falado. Foi a primeira vez, tambm, que a vi expor seutemperamento.

    Isso passou como uma nuvem de vero e nunca alm de uma outra vez, testemunhei suaparticipao em um transitrio sinal de raiva. Vou dizer-lhe como que aconteceu.

    Ela e eu estavvamos olhando por uma das longas janelas da sala de estar, quandosurgiu, alm da ponte levadia, uma figura de um vagabundo que eu conhecia muito bem. Elegeralmente costumava visitar o schloss duas vezes por ano.

    Era um corcunda, com a figura acentuadamente magra que geralmente acompanha adeformidade. Usava uma barba preta pontuda e ria de orelha a orelha, mostrando seus dentesbrancos. Vestia-se de amarelo-claro, preto e escarlate e cruzado com mais correias e cintos doque eu poderia contar, a partir dos quais pendiam todos os tipos de coisas. Atrs, eletransportava uma lanterna mgica e duas caixas, que eu conhecia bem, em uma das quais haviauma salamandra e na outra, uma mandrgora. Esses monstros costumavam fazer rir meu pai.Eram compostas de partes de macacos, papagaios, esquilos, peixes e ourios, secos e cosidos,unidos com maravilhosa ordem e surpreendente efeito. Tinha um violino, uma caixa deaparelhos mgicos, um par de adagas e mscaras presas a seu cinto, vrias outras caixasmisteriosas suspensas ao seu redor e uma lana negra com ferragens de cobre em sua mo. Seucompanheiro era um rude cachorro magrelo, que o seguia ao calcanhar, mas parou, de repente,inquieto na ponte levadia e logo comeou a uivar tristemente.

    Nesse meio tempo, o saltimbanco, em p no meio do ptio, levantou seu chapugrotesco e fez-nos uma muito cerimoniosa saudao, arrematando seu cumprimento muitorapidamente em execrvel francs e alemo no menos execrvel.

    Em seguida, sacando seu violino, comeou a raspar uma animada ria que cantou comuma alegre desarmonia, danando de uma forma ridcula e cheia de energia que me fez rir,apesar do co barulhento.

    Ento ele avanou para a janela com muitos sorrisos e saudaes, seu chapu na moesquerda e seu violino debaixo do brao. Com uma fluncia que nunca tomava flego, elebalbuciou um longo enunciado de todas as suas realizaes, os recursos das vrias artes que elecolocava a nosso servio e as curiosidades e entretenimento que trazia em seu poder, a nossoconvite, para exibir.

    Ser que suas senhorias teriam o prazer de comprar um amuleto contra o oupire3, oque est rondando como o lobo, ouvi, atravs desses bosques disse ele, largando o chapusobre o pavimento. Est morrendo gente a torto e a direita e aqui est um encanto quenunca falha. Basta preg-lo no travesseiro e voc pode rir na cara dele.

    Estes encantos consistiam de folhas de velino oblongas, com cifras cabalstica ediagramas neles. 3 A descrio do vampiro morto-vivo na Polnia e na Rssia dado no captulo 13 da edio de 1753 dotratado sobre vampiros e revenantes pelo monge dominicano francs e estudioso, Dom Augustine Calmet. Suafonte foi um artigo publicado em 1693-1694 numa edio do jornal francs Mercure Gallant. Segundo este, oprimeiro oupire come sua mortalha de linho quando revive de sua morte. O oupire pode aparecer a partir domeio-dia meia-noite. noite, ele ataca os seus amigos e principalmente seus familiares, abraando-os eento sugando seu sangue. A maneira de destruir um oupire exumar o cadver e depois decapit-lo ou "abrirseu corao."

  • 24

    Carmilla imediatamente comprou um e eu tambm.Ele estava olhando para cima e nos debruamos sorridentes sobre ele, divertidas, pelo

    menos posso responder por mim. Seus olhos negros e penetrantes, assim que nos olhou nasfaces, pareceu detectar algo que acendeu por um momento sua curiosidade,

    Num instante ele desenrolou um estojo de couro, cheio de todos os tipos de pequenosinstrumentos de ao.

    Veja aqui, minha senhora disse ele, mostrando-o, e dirigindo-se a mim, euprofesso, entre outras coisas menos teis, a arte da odontologia. A praga tomou o co! interpolou. Silncio, besta! Ele uiva tanto que seus suas senhorias dificilmente podem ouviruma palavra. Sua nobre amiga, a moa a sua direita, tem o mais aguado dente, longo e fino,apontado como um furador, como uma agulha, ha, ha! Com minha aguada e ntida viso,quando olhei para cima, eu o vi nitidamente. Agora se acontecer de estar ferindo a menina, eacho que est, aqui estou eu, aqui esto minha lima, minha puno e meu alicate. Vou deix-loredondo e rombo, se a sua senhoria permitir. No mais o dente de um peixe, mas o de umamoa bonita como ela . Ei? Est a moa zangada? Terei sido demasiado audacioso? Terei eu aofendido?

    A jovem, na verdade, parecia muito irritada, quando se retirou da janela. Como se atreve esse saltimbanco a nos insultar dessa forma? Onde est seu pai? Vou

    pedir justia dele. Meu pai teria amarrado o desgraado bomba dgua, aoitado com umltego e o queimado at os ossos com o ferro de marcar gado!

    Ela se afastou da janela um passo ou dois e sentou-se, sem ter perdido de vista seuofensor, quando a sua ira abrandou-se repentinamente da mesma forma como surgira e elarecuperou gradualmente a seu tom habitual, parecendo ter esquecido o pequeno corcunda esuas bobagens.

    ***Meu pai estava triste naquela noite. Ao chegar, ele nos disse que tinha havido um outro

    caso muito semelhante aos outros dois acidentes fatais que haviam ocorrido recentemente. Airm de um jovem campons em sua propriedade, apenas a uma milha de distncia, estavamuito doente. Tinha sido atacada, como ela mesma descreveu, quase da mesma maneira eagora estava lenta mas constantemente sucumbindo.

    Tudo isso disse meu pai estritamente relativo a causas naturais. Essa pobregente contamina uma outra com suas supersties e, por isso, repetem em imaginao asimagens de terror que tm afetado seus vizinhos.

    Mas essa mesma circunstncia assusta qualquer um horrivelmente disse Carmilla. Como assim? perguntou meu pai. Fico to assustada s de imaginar ver essas coisas. Penso que seria to ruim quanto a

    realidade. Estamos nas mos de Deus: nada pode acontecer sem a Sua permisso e vai acabar

    tudo bem para aqueles que O amam. Ele nosso fiel criador. Ele nos fez a todos e vai cuidarde ns.

    Criador! Natureza! disse a moa, em resposta ao meu gentil pai. E esta doena,que invade o pas, natural. Natureza! Todas as coisas vierem da Natureza, no vieram? Todasas coisas no cu, na terra e debaixo da terra agem e vivem como ordena a Natureza? Acho quesim.

    O mdico disse que viria aqui hoje falou meu pai, depois de um silncio. Quero saber o que ele pensa sobre isso e aquilo que acha melhor que faamos.

    Os mdicos nunca me fizeram algum bem disse Carmilla. Ento, voc j esteve doente? perguntei.

  • 25

    Mais do que voc jamais esteve ela respondeu. H muito tempo? Sim, h um longo tempo. Eu sofri muito com essa doena, mas esqueci tudo, menos

    minha dor e fraqueza e elas no so assim to ruins como as sofridas em outras doenas. Voc era muito jovem, ento? Ouso pedir, no vamos mais falar disso. Voc no feriria uma amiga, no?Languidamente ela olhou em meus olhos e passou amorosamente seu brao ao redor de

    minha cintura, levando-me para fora da sala. Meu pai foi se ocupar de alguns papis perto dajanela.

    Porque seu pai queria nos assustar? disse a linda jovem com um suspiro e um leveestremecimento.

    Ele no queria, querida Carmilla, mais coisa de sua mente. Voc est com medo, minha querida? Eu deveria estar muito mais se eu imaginasse haver qualquer perigo real de ser

    atacada como as pobres pessoas foram. Est com medo de morrer? Sim, todos tm. Mas, para morrer como as amantes devem morrer, morrer juntas para que possam

    viver juntas.As meninas so lagartas, enquanto vivem no mundo, para serem, finalmente, borboletas

    quando chega o vero. Mas, enquanto isso, h larvas e larvas, cada uma com suas peculiaresinclinaes, necessidades e estrutura. Assim diz Monsieur Buffon4, em seu grande livro, na salaao lado.

    Mais tarde, no mesmo dia, o mdico veio e fechou-se com papai durante algum tempo.Ele era um homem hbil, de sessenta anos ou mais, usava um guarda-p e escaneava seu

    rosto plido to suave como uma abbora. Ele e pai emergiram da sala e ouvi papai rir e dizer,emquanto saam:

    Bem, eu pergunto a um homem sbio como voc: o que voc diria de hipogrifos edrages?

    O mdico estava sorrindo e respondeu, chacoalhando a cabea. Apesar disso, vida e morte so estados misteriosos e ns sabemos pouco sobre os

    contedos de ambas.E assim eles foram caminhando e eu no os ouvi mais. Dessa forma, no sabia se o

    mdico havia levantado uma questo, mas acho que suponho isso agora.

    4 Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon (7 de setembro de 1707 - 16 Abril 1788) foi um naturalista francs,matemtico, cosmlogo e autor enciclopdico. Suas informaes coletadas influenciaram as prximas duasgeraes de naturalistas, incluindo Jean-Baptiste Lamarck e Cuvier. Buffon publicou trinta e cinco volumesde sua Histria Natural durante sua vida e mais nove volumes foram publicados aps sua morte.

  • 26

    VMaravilhosa Semelhana

    Nessa noite chegou l, vindo de Graz, o filho do restaurador de telas, de cara sria eescura, com um cavalo e uma carroa carregada com dois grandes caixotes, com muitosquadros em cada um. Era uma viagem de dez lguas e sempre que um mensageiro chegava aoschloss, vindo de nossa pequena capital de Graz, costumvamos cerc-lo no hall para ouvir asnovidades.

    Essa chegada causou, em nossa isolada moradia, muita sensao. Os caixotespermaneceram na sala e o mensageiro foi atendido pelos servos at que tivesse comido suaceia. Em seguida, com os auxiliares, armado com martelo, entalhadeira e chave de fenda, elenos encontrou no hall, onde tnhamos nos reunido para testemunhar a abertura das caixas.

    Carmilla sentou-se, olhando desinteressadamente ao redor, enquanto uma aps outra astelas antigas, quase todas retratos, que tinham passado por um processo de restaurao, eramtrazidas luz. Minha me era de uma velha famlia hngara e a maioria dessas imagens, queestavam prestes a ser devolvidas a seus lugares, tinham chegado at ns atravs dela.

    Meu pai tinha uma lista na mo, a partir do qual ele lia, enquanto o artista retirava osnmeros correspondentes. No sei se as imagens eram muito boas, mas eram, sem dvida,muito antigas, algumas delas muito curiosas tambm. Tinham, na sua maior parte, o mrito deserem agora vistas por mim, posso afirmar, pela primeira vez. A fumaa e a poeira do tempo astinham apagado de minha lembrana.

    H uma foto que eu no vi ainda disse meu pai. Em um canto, no topo damesma, est o nome, mais ou menos eu podia ler Marcia Karnstein e a data 1698. Estou curiosopara ver como ficou.

    Eu me lembrava dela. Era uma pequena imagem, cerca de um p e meio de altura, quasequadrada, sem uma moldura, mas estava to escurecida pelo tempo que eu no podia distingui-la.

    O artista a restaurara e a exibia com evidente orgulho. Era muito bonita, esurpreendente. Parecia viva. Era a efgie de Carmilla!

    Carmilla, querida, aqui est um verdadeiro milagre. Aqui est voc, viva, sorridente,pronta para falar, nesta foto. No bonita, papai? E veja, o mesmo pequeno sinal de nascenaem sua garganta.

    Meu pai riu e disse: Certamente uma maravilhosa semelhana! disse, mas desviou o olhar para longe

    e, para minha surpresa, pois parecia pouco surpreso com ela, passou a conversar com orestaurador, que tambm era um tipo de artista, discursando com inteligncia sobre os retratose outras obras que sua arte tinha acabado de trazer luz e cor, enquanto eu permanecia mais emais perdida em indagaes, quanto mais olhava para o retrato.

    Voc me deixa pendurar este retrato em meu quarto, papai? perguntei. Certamente, querida disse ele, sorrindo. Estou muito feliz que voc o deseje.

    mais bonito ainda do que eu pensava que fosse.A jovem convidada no tomava conhecimento desse belo discurso, no parecia ouvir.

    Estava inclinada para trs em seu assento, seus olhos perfeitos sob seus longos clios fixavam-se em mim em contemplao e ela sorriu numa espcie de arrebatamento.

  • 27

    E agora voc pode ler claramente o nome que est escrito no canto. No Mrcia.Parece feito em ouro. O nome Mircalla, Condessa Karnstein. Isso um pequeno ornato,acima e abaixo, A. D. 1698. Eu sou descendente dos Karnsteins, isto , mame era. Ah! disse a moa, languidamente assim sou eu, imagino, de uma descendncia muita longa,muito antiga. Existem Karnsteins vivos agora?

    Nada que use o nome, creio eu. A famlia foi arruinadas, creio que, em algumasguerras civis, h muito tempo, mas as runas do castelo esto apenas cerca de trs milhas dedistncia.

    Que interessante! disse ela, languidamente. Mas veja que belo luar! Elarelanceou os olhos atravs da porta da sala, que ficara entreaberta. Acho que vou dar umpequeno passeio em volta do ptio e olhar para baixo a estrada e o rio.

    como a noite em que voc veio at ns disse eu.Ela suspirou, sorrindo.Ergueu-se e cada uma com o brao na cintura da outra, saimos para o pavimento.Em silncio, ela caminhou lentamente at a ponte levadia, onde a bela paisagem abria-se

    diante de ns. E ento voc estava pensando na noite em que vim parar aqui? ela quase

    sussurrou. Voc est feliz por eu ter vindo? Encantada, caro Carmilla! respondi. E voc pediu para pendurar em seu quarto a imagem que julga parecida comigo

    murmurou com um suspiro, enquanto estreitava minha cintura e deixava sua linda cabeapousar em meu ombro.

    Como voc romntica, Carmilla! eu disse. Quando voc me contar suahistria, ela ser composta principalmente de algum grande romance.

    Ela beijou-me silenciosamente. Estou certa, Carmilla, voc est apaixonada. Existe, neste momento, um assunto de

    corao acontecendo. No estou apaixonada por ningum e nunca estarei sussurrou a menos que

    seja por voc. Que linda ficou olhando o luar!Tmido e estranho foi o olhar com que ela rapidamente escondeu seu rosto em meu

    pescoo e cabelos, com tumultuosos suspiros que parecia quase soluar. Apertou-me a mocom mo trmula.

    Sua face suave ardia contra a minha. Querida, querida ela murmurou. Eu vivo em voc e voc poderiria morrer por

    mim, eu a amo tanto.Afastei-me dela.Ela me olhava com os olhos de onde todo o fogo e todo sentido haviam sumido e seu

    rosto tornou-se plido e aptico. Existe um calafrio no ar, querida? ela disse, sonolenta. Eu quase arrepiei.

    Estive sonhando? Vamos entrar.Venha, venha, venha logo! Voc parece doente, Carmilla, um pouco fraca. Voc certamente deve tomar um

    pouco de vinho eu disse. Sim. Eu vou. Estou melhor agora. Vou estar muito bem em alguns minutos. Sim, d-

    me um pouco de vinho respondeu Carmilla, enquanto nos aproximvamos da porta. Vamos olhar novamente por um momento. a ltima vez, talvez, que verei o luar

    com voc.

  • 28

    Como voc se sente agora, querida Carmilla? Voc est realmente melhor? perguntei.

    Eu estava comeando a ficar alarmada, com medo de que ela pudesse ter sido contagiadapela estranha epidemia que diziam ter invadido a regio ao nosso redor.

    Papai ficaria desmedidamente aflito acrescentei se ele achar que voc estmesmo ligeiramente adoecida, sem imediatamente nos deixar saber. Temos um hbil mdicoprximo de ns, o mdico que esteve hoje com papai.

    Tenho certeza que ele . Sei quo gentis vocs todos so, mas, querida criana, estoumuito bem de novo. No h nada errado comigo alm de um pouco de fraqueza. As pessoasdizem que eu sou frfil, que sou incapaz de esforos. Mal posso caminhar to longe como umacriana de trs anos e mesmo agora e ento, a pouca fora que tenho vacila e fico como acaboude me ver. Mas depois disso, facilmente me recomponho novamente. Em um momento estouperfeitamente bem. Veja como me recuperei!

    Ento, na verdade, havia se recuperado e ela e eu conversamos muito. Ela estava muitoanimada e o resto da noite decorreu sem qualquer repetio do que eu chamei de suasobsesses. Quero dizer sua fala maluca e aparncia que embaraavam e ainda me assustavam.

    Mas ocorreu naquela noite um evento que deu a minhas dedues um novo rumo epareceu transformar at a natureza langorosa de Carmilla em energia momentnea.

  • 29

    VIAgonia Muito Estranha

    Quando chegamos a sala de estar e sentamo-nos para nosso caf e chocolate, apesar deCarmilla nada tomar, ela parecia muito ensimesmada novamente. Madame e Mademoiselle DeLafontaine juntaram-se a ns e formamos um pequeno grupo de cartas, at que papai veio sejuntar a ns para o que ele chamava de seu bule de ch.

    Quando o jogo terminou, sentou-se ao lado Carmilla no sof e perguntou a ela, umpouco ansioso, se ela havia tido notcias de sua me desde a sua chegada.

    Ela respondeu: No.Ele ento perguntou se ela sabia onde uma carta poderia chegar at ela no momento. No posso dizer respondeu ambiguamente, mas tenho de pensar em sair

    daqui. Vocs j tm sido muito hospitaleiros e muito amveis comigo. Tenho-lhes dado umainfinidade de problemas e gostaria de tomar uma carruagem amanh e sair no encalo dela. Seionde encontr-la no fim das contas, embora eu ainda no ouse dizer-lhes.

    Mas voc no deve sonhar com tal coisa exclamou meu pai, para meu grandealvio. Ns no podemos nos dar ao luxo de perd-la dessa forma e no vou permitir quenos deixe, exceto sob os cuidados de sua me, que to bondosamente consentiu que vocficasse conosco at que ela pudesse voltar. Ficarei muito feliz se souber que voc ouviu issodela. Esta noite, porm, as notcias do avano da misteriosa doena que invadiu nossavizinhana tornaram-se ainda mais alarmantes e, minha bela hspede, sinto a responsabilidade,desassistido sem a presena de sua me. Mas darei o melhor de mim e uma coisa certa: vocno deve pensar em nos deixar sem a distinta autorizao dela para isso. Sofreremos muito emseparar-nos de voc para consentir com isso facilmente.

    Obrigada, senhor, mil vezes por sua hospitalidade ela respondeu, sorrindotimidamente. Vocs tm sido muito gentis comigo, eu raramente fui to feliz em toda aminha vida antes, como em seu belo castelo, sob seus cuidados e na companhia de sua queridafilha.

    Ento ele galantemente, na sua maneira antiga, beijou a mo dela, sorridente e satisfeitocom seu pequeno discurso.

    Acompanhei Carmilla, como de costume, at seu quarto e conversei com ela enquantoela se preparava para dormir.

    Voc acha eu disse em seguida que nunca vai confiar plenamente em mim?Ela virou sorrindo, mas no deu qualquer resposta, apenas continuou a sorrir para mim. Voc no vai responder? disse eu. Voc no pode responder amigavelmente.

    Eu no devia ter perguntado. Fez muito bem em me perguntar isso, ou qualquer outra coisa. Voc no sabe como

    querida por mim ou no pode imaginar nenhum segredo grande demais para saber. Masestou sob juramento, nenhuma freira faria um voto to terrvel e no ouso contar minhahistria ainda, at mesmo para voc. Est muito perto o tempo quando dever saber de tudo.Voc acha que sou cruel, muito egosta, mas o amor sempre egosta, quanto mais ardente,mais egosta. O quanto sou ciumenta voc no pode imaginar. Voc deve vir comigo, me amar,

  • 30

    morte ou ento me odiar e ainda vir comigo. E odiar-me na morte e depois. No existe apalavra indiferena na minha aptica natureza.

    Agora, Carmilla, vai falar com seu seu extravagante disparate novamente? eu disseapressadamente.

    No eu, pequena tola como sou e cheia de caprichos e desejos. Para seu bem voufalar como um sbio. J teve uma bola? No? Como que a fazia rolar? Como ? Como deveter sido encantador. Eu quase esqueci, foi h anos.

    Eu ri. Voc no to velha. No pode j ter esquecido sua primeira bola. Lembro-me de tudo com certo esforo. Eu vejo tudo, como mergulhadores devem

    ver o que est passando acima deles, atravs de uma nvoa densa, ondulante, mas transparente.Ocorreu naquela noite o que tem confundido as imagens e feito desmaiar suas cores. Fui quaseassassinada em minha cama, ferida aqui ela tocou o peito e nunca mais fui a mesmadesde ento.

    Esteve perto de morrer? Sim, muito, uma cruel amor, estranho amor, que teria tomado a minha vida. Amor

    tem seus sacrifcios. Nenhum sacrifcio sem sangue. Vamos dormir agora, eu me sinto topreguiosa. Como poderia levantar-me agora e trancar minha porta?

    Ela estava deitada com suas minsculas mos enterradas em seu rico cabelo onduladosob sua face, sua cabecinha sob o travesseiro e seus olhos brilhantes me seguiam para onde eume movesse, com uma espcie de sorriso tmido que no consegui decifrar.

    Eu lhe desejei boa-noite e deslizei para fora do quarto com uma sensaodesconfortvel.

    Eu sempre me perguntava se a nossa bela hspede nunca dizia suas oraes. Certamentenunca a vi de joelhos. De manh, ela nunca descia at muito tempo depois que terminvamosnossas oraes familiares. noite, ela nunca deixava a sala de estar para assistir s nossasbreves oraes da noite no hall.

    Se no tivesse sido casualmente que surgira, em um de nossas descuidadas conversas,que tinha sido batizada, eu teria duvidado dela ser uma crist. Religio foi um assunto sobre oqual eu nunca ouvi dela uma s palavra. Se eu conhecesse melhor o mundo, esta particularnegligncia ou antipatia no teria me surpreendido tanto.

    As precaues de pessoas nervosas so contagiantes e as pessoas de um temperamentosemelhante com muita certeza, depois de um tempo, imitam-nas. Eu tinha adotado o hbito deCarmilla de trancar a porta do quarto, tendo em minha mente todas as suas caprichosasprecaues sobre invasores da meia-noite e assassinos espreita. Eu tambm tinha adotado suacautela de fazer uma breve busca pelo seu quarto, para satisfazer a si prpria de que nenhumassassino oculto ou ladro estava ali escondido.

    Tendo tomado essas sbias medidas, fui para minha cama e adormeci. Uma luz queimavaem meu quarto. Este era um hbito antigo, desde muito tempo e que nada poderia tentar-medispensar.

    Assim protegida eu poderia descanar em paz. Mas sonhos vieram atravs de paredes depedra, salas escuras ou na penumbra e pessoas faziam suas sadas e suas entradas como lhesaprouvesse, rindo do porteiro.

    Eu tive um sonho nessa noite que foi o incio de uma agonia muito estranha.No posso cham-lo de um pesadelo, pois eu estava bem consciente de estar dormindo.

    Mas estava igualmente consciente de estar em meu quarto e deitada na cama precisamentecomo realmente estava. Eu vi, eu vi ou imaginei, o quarto e os seus mveis, tal como eu tinhavisto antes de dormir, exceto que era muito escuro. Vi uma coisa que se deslocava em volta

  • 31

    dos ps da cama, que inicialmente no podia distinguir com preciso. Mas logo vi que era umanimal preto fuliginoso semelhante a um monstruoso gato. Pareceu-me ter cerca de quatro oucinco ps de comprimento, plenamente medindo o comprimento do tapete diante da lareira,uma vez que passou por ele e ficou indo e vindo com a gil e sinistra agitao de uma bestanuma gaiola. Eu no podia gritar, embora, como pode supor, estivesse apavorada. Seu ritmofoi crescendo mais rpido. Rapidamente o quarto foi ficando cada vez mais escuro e maisescuro e, finalmente, to escuro que eu j no podia ver nada, exceto seus olhos. Senti-o saltarlevemente sobre a cama. Os dois grandes olhos se aproximaram de meu rosto e, de repente,senti uma dor pungente, como se duas grandes agulhas picassem, uma polegada ou duasdistantes uma da outra, profundamente em meu seio. Eu acordei com um grito. O quartoestava iluminado pela vela que ardera l durante toda a noite e eu vi uma figura feminina de paos ps da cama, um pouco na lateral direita. Trajava um vestido preto longo e solto e seuscabelos estavam cados, cobrindo seus ombros. Um bloco de pedra no poderia estar maisimvel. No havia a menor agitao de sua respirao. Enquanto eu a encarava, a figurapareceu ter mudado de lugar e estava agora mais perto da porta, em seguida, junto dela, abriu-ae saiu.

    Eu me senti ento aliviada e capaz de respirar e mover-me. O meu primeiro pensamentofoi que tinha sido Carmilla dando-me um susto e que eu tinha esquecido de trancar minhaporta. Apressei-me at ela e a encontrei trancada, como de costume, por dentro. Eu estavacom medo de abri-la. Fiquei horrorizada. Eu saltei para minnha cama, cobri minha cabea comas cobertas e fiquei ali mais morta do que viva at de manh.

  • 32

    VIIDecadncia

    Seria intil minha tentativa de dizer-lhe o horror com que, mesmo agora, eu lembro aocorrncia daquela noite. No foi esse terror passageiro que um sonho deixa para trs.Pareceu-me aprofundar-se com o tempo e ligar-se ao aposento e aos prprios mveis quehaviam acompanhado a apario.

    No pude suportar ficar sozinha por um momento nos dias seguintes. Nada disse apapai, por duas razes opostas. Por um lado, pensei que ele ia rir de minha histria e eu nopodia suportar que aquilo fosse tratado como uma brincadeira. Por outro, pensei que elepoderia imaginar que eu tinha sido atacada pela misteriosa enfermidade que tinha invadidonossa regio. Eu, pessoalmente, no tive receio disso e como ele tinha sido quase um invlidopor algum tempo, tinha medo de alarm-lo.

    Eu estava suficientemente confortvel com minhas bondosas companheiras, MadamePerrodon e a vivaz Mademoiselle Lafontaine. Ambas perceberam que eu estava deprimida enervosa e, em pormenores, disse-lhes o que havia de to pesado em meu corao.

    Mademoiselle riu, mas eu percebi que Madame Perrodon pareceu inquieta. A propsito disse Mademoiselle, rindo. O enorme limoeiro, atrs da janela do

    quarto de Carmilla, assombrado! Disparate! exclamou Madame, provavelmente julgando o tema bastante

    inoportuno. E quem contou essa histria, minha cara? Martin disse que ele veio duas vezes, quando o antigo porto do ptio estava sendo

    reparado, antes do nascer do sol, e viu duas vezes a mesma figura feminina andando pelaavenida do limoeiro.

    Ento, ele certamente viu as vacas de leite nos campos do rio disse Madame. Eu presumo, mas Martin prefere ficar assustado e nunca vi um tolo mais assustado. Voc no deve dizer uma palavra sobre isso a Carmilla, porque ela vai ver isso da

    janela do quarto dela interpus e ela , se possvel, mais covarde do que eu.Carmilla desceu bem mais tarde do que era usual naquele dia. Eu fiquei to assustada na noite passada disse ela, assim que nos encontramos.

    Estou certa de que devo ter visto algo terrvel se no fosse pelo talism que comprei do pobrecorcunda, a quem tratei com to duras palavras. Eu tive um sonho com alguma coisa pretarondando minha cama e despertei em completo horror. Pensei, por alguns segundos, ter vistouma figura escura perto da abboda da lareira, mas enfiei-me debaixo do travesseiro e omomento em que meus dedos tocaram o talism, a figura desapareceu. Tive certeza de que, seno o tivesse perto de mim, algo terrvel teria feito a sua apario e, talvez, me sufocado comofez a essas pobre pessoas de quem ouvimos falar.

    Bem, oua-me comecei e recontei minha aventura, ao fim da qual ela pareciahorrorizada.

    E voc tinha o talism perto de voc? perguntou, seriamente. No, eu o deixei em um vaso de porcelana da sala de estar, mas vou certamente lev-

    lo comigo esta noite, j que voc tem tanta f nele.Aps esse tempo todo, no consigo lhe dizer, ou mesmo entender, como superei meu

    horror to eficazmente para dormir sozinha em meu quarto naquela noite. Lembro-me

  • 33

    claramente que preguei o talism em meu travesseiro. Adormeci quase imediatamente e dormi,ainda mais pesado do que era habitual, a noite toda.

    A noite seguinte noite passei da mesma forma. Meu sono foi deliciosamente profundo esem sonhos.

    Mas acordei com uma sensao de lassido e melancolia, que, contudo, no excedia umnvel que era quase confortvel.

    Bem, eu lhe disse isso falou Carmilla, quando descrevi meu sono tranquilo. Eutambm tive esse delicioso sono na noite passada. Eu preguei o talism no peito de minhacamisola. Ele estava muito longe na noite anterior. Estou absolutamente certa de que era tudoimaginao, exceto os sonhos. Eu costumava pensar que os espritos maus criavam os sonhos,mas nosso mdico disse-me que no isso. S uma febre passando ou alguma outraenfermidade como ocorre muitas vezes, ele disse, batendo porta e, no sendo capazes deentrar, passam com esse alarme.

    E o que voc acha que o talism? disse eu. Foi fumigado ou imersos em alguma droga e um antdoto contra a malria ela

    respondeu. Ento, ele atua somente sobre o corpo? Certamente. Voc no supe que os espritos maus ficam assustados com pedaos de

    fita ou o perfume de uma droga? No, essas doenas, vagando no ar, comeam por tentar osnervos e assim afetar o crebro. Antes, porm, que elas possam apoderar-se de voc, oantdoto as repele. Do que tenho certeza o que o talism fez por ns. No nada mgico, simplesmente natural.

    Eu poderia ter ficado mais feliz se pudesse ter concordado com Carmilla o bastante, maseu fiz o meu melhor e a sensao foi aos poucos perdendo sua fora.

    Por algumas noites eu dormi profundamente, mas ainda todas as manhs eu sentia amesma lassido e um langor pesava sobre mim todo o dia. Sentia-me uma pessoa diferente.Uma estranha melancolia foi se infiltrando em mim, uma melancolia que eu no queriainterromper. Obscuros pensamentos de morte comearam a surgir e uma idia de que euestava afundando lentamente tomou gentil e, de alguma forma, no indesejvel, posse de mim.Se era triste, o estado de esprito que induzia era igualmente doce.

    Seja l o que fosse, minha alma submeteu-se a isso.No vou admitir que fiquei doente, no aceitaria dizer a meu pai ou ter chamado o

    mdico.Carmilla tornou-se mais dedicada a mim do que nunca e seus estranhos paroxismos de

    langorosa adorao, mais freqentes. Ela costumava observar-me com ardor crescente medida que minhas foras e esprito diminuam. Isso sempre me chocou como ummomentneo reflexo de insanidade.

    Sem o saber, eu j estava em um estgio bastante avanado da mais estranha doena quemortal algum jamais sofreu. Havia um inexplicvel fascnio em seus sintomas iniciais que maisdo que me resignava com o incapacitante efeito daquela fase da doena. Esse fascnio cresceupor algum tempo, at que alcanou um certo ponto quando, gradualmente, um sentimento dohorrvel mesclou-se a ela, aprofundando-se, como voc vai ler, at que descolorisse epervertesse toda a minha condio de vida.

    A primeira mudana que experimente foi bastante agradvel. Foi muito perto da virada apartir da qual comeou minha descida ao inferno.

    Certas sensaes vagas e estranhas visitavam-me em meu sono. A prevalecente era desseagradvel, peculiar tremor frio que sentimos no banho, quando nos movemos contra acorrente de um rio. Essa foi logo acompanhada por sonhos que pareciam interminveis e eram

  • 34

    to vagos que nunca pude rememorar suas paisagens e pessoas ou qualquer parte conexa desuas aes. Mas deixava uma pssima impresso e um sentimento de exausto, como se eutivesse passado por um longo perodo de grande esforo mental e perigo.

    Depois de todos esses sonhos, permaneceu em viglia uma lembrana de ter estado emum lugar quase escuro e de ter falado com pessoas que eu no podia ver, sobretudo de umavoz clara, feminina, muito profunda, que falou como se distncia, lentamente e produzindosempre a mesma sensao de indescritvel solenidade e medo. Por vezes, vinha a sensaocomo se uma mo deslizasse suavemente ao longo de meu rosto e pescoo. s vezes era comose lbios quentes me beijassem mais e mais demoradamente e mais amorosamente, at queatingissem minha garganta, mas ali a carcia se detinha. Meu corao batia mais rpido, minharespirao subia e descia rapidamente e ofegava plenamente. Um soluo, que cresceu em umasensao de estrangulamento, surpreendente e transformou-se numa convulso horrvel, emque meus sentidos me abandonaram e fiquei inconsciente.

    Fazia, ento, trs semanas desde o incio desse inexplicvel estado.Meus sofrimentos tinham, durante a ltima semana, se refletido em minha aparncia. Eu

    empalidecera, meus olhos estavam dilatados e com olheiras e a apatia que h muito eu tinhasentido comear, manifestava-se em meu semblante.

    Meu pai perguntou-me muitas vezes se eu estava doente, mas, com uma obstinao queagora parece-me estranha, eu persistia em assegurar-lhe que estava muito bem.

    Em um certo sentido isso era verdade. Eu no podia me queixar de nenhuma dor ousofrimento fsico. A minha queixa parecia ser da imag