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    Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p. 185-198, set./dez. 2014 185

    Marilda Oliveira de Oliveira Cristian Poletti Mossi

    *Professora no Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Santa Maria(PPGE/CE/UFSM). Doutora em Histria da Arte. Mestre em Antropologia Social, ambos pelaUniversidad de Barcelona Espanha. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte,Educao e Cultura Diretrio CNPq (GEPAEC). E-mail: [email protected]

    **Doutorando pelo Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de SantaMaria (UFSM). Bolsista da Capes. Mestre em Artes Visuais. Membro do Grupo de Estudos ePesquisas em Arte, Educao e Cultura (GEPAEC). E-mail: [email protected]

    Resumo: O presente artigo objetiva refletir acerca de possveis inflexesofertadas pela proposta metodolgica amplamente conhecida comoCartografia. Procurando cumprir tal intuito, primeiramente, explanaremosminimamente de que se trata a perspectiva cartogrfica e em que ela diferede outros modos de fazer pesquisa, baseados, sobretudo, no impactoepistemolgico conduzido por Deleuze e Guattari propositores desseconceito no campo da filosofia e que acaba por respingar no que concerne produo investigativa na rea das cincias humanas, em geral, eespecialmente no campo da educao. Nesse sentido, o conceito de Rizomaproposto pelos autores (DELEUZE; GUATTARI, 1995) pode ser til paraentendermos de que se trata tal giro filosfico/epistemolgico.Posteriormente, utilizando como motor reflexivo a imagem da intervenoartstica Espiral do Conhecimento (2011) de Andr Dalmazzo interveno essa proposta em uma aula de Metodologia da Pesquisa emEducao (Seminrio de Tese/Programa de Ps-Graduao em Educaoda Universidade Federal de Santa Maria) pretendemos inferir algumas

    noes e estender nossa reflexo acerca de inflexes que pesquisas emeducao permeadas por traos metodolgicos cartogrficos parecemapresentar. Trs questes/inflexes foram selecionadas para seremdesenvolvidas no texto, a partir do evento citado. So elas: primeiramente,o incmodo causado na turma mediante uma situao inusitada; a seguir, a

    Marilda Oliveira de Oliveira*

    Cristian Poletti Mossi**

    10Cartografia como estratgia metodolgica:inflexes para pesquisas em educao

    Cartography as methodological strategy:

    inflections for research in education

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    Cartografia como estratgia metodolgica: inflexes para pesquisas em educao

    questo de que para cada um que se embrenhou no espao da sala de aulatomada pela interveno artstica Espiral do Conhecimento, a experincia

    ocorreu de uma forma, contudo, fazer tal afirmativa no se trata de reduziros pontos de vista a mero subjetivismo e, finalmente, a questo/inflexoque nos parece cintilar da experincia relatada diz respeito complexidadedo evento de pesquisar e construo investigativa como uma produo apartir de fragmentos, sobras, vestgios. Desses trs apontamentos conclumosque a Cartografia (como estratgia metodolgica) parece criar inflexes deacordo com os terrenos mltiplos que o pesquisador encontra, desdobrando-se por esferas e caminhos que oferecem material para a produo de sentidose composies diversos.

    Palavras-chave: Pesquisa. Educao. Rizoma. Cartografia.

    Resumen: El presente artculo objetiva reflexionar acerca de posiblesinflexiones ofrecidas por la propuesta metodolgica en general conocidacomo Cartografa. Buscando cumplir con tal fin, primero explanaremosmnimamente qu es la perspectiva cartogrfica y cmo se diferencia deotras formas de hacer investigacin, basadas principalmente por el impactoepistemolgico realizado por Deleuze y Guattari proponentes de esteconcepto en el campo de la filosofa y que acaba por salpicar en las

    producciones investigativas del rea de las humanidades en general, yespecialmente en el campo de la educacin. En este sentido, el conceptodel Rizoma propuesto por los autores (DELEUZE Y GUATTARI, 1995)puede ser til para que entendamos de qu se trata tal giro filosfico/epistemolgico. Por ltimo, utilizando como motor reflexivo la imagen dela intervencin artstica Espiral del Conocimiento (2011) de AndrDalmazzo propuesta en una clase de Metodologa de la Investigacin enEducacin (Seminario de Tesis Programa de Posgrado en Educacin de laUniversidad Federal de Santa Mara) intentamos inferir algunas nociones

    y ampliar nuestra reflexin acerca de las inflexiones que investigaciones eneducacin permeadas por rasgos metodolgicos cartogrficos parecenpresentar. Tres cuestiones/inflexiones fueron seleccionadas para serdesarrolladas en el texto, a partir del evento citado. Son ellas: inicialmente,la molestia causada en la turma mediante una situacin inusitada, acontinuacin la cuestin de que cada uno que entr en el espacio de la salade aula ocupada por la intervencin artstica Espiral del Conocimiento,vivi la experiencia de una forma distinta, sin embargo, hacer tal afirmacinno se trata de reducir los pontos de vista a mero subjetivismo y, finalmente,la cuestin/inflexin que nos parece cintilar de la experiencia relatada dice

    respecto a la complexidad del evento de investigar y a la construccininvestigativa como una produccin a partir de fragmentos, sobras, vestigios.De estas tres notas concluimos que la Cartografa (como estrategia

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    Marilda Oliveira de Oliveira Cristian Poletti Mossi

    metodolgica) parece crear inflexiones de acuerdo con los terrenos mltiplosque el investigador encuentra, se desplegando por esferas y caminos que

    proporcionan material para la produccin de varios sentidos ecomposiciones.

    Palabras-llave: Investigacin. Educacin. Rizoma. Cartografa.

    Primeiros traos cartogrficos: agrimensando o terreno dasinvestigaes em Cincias Humanas

    recorrente no cenrio acadmico de produo de investigaes nocampo das cincias humanas onde, vale dizer, se inscrevem as pesquisasem educao a discusso que busca evidenciar, para alm dasdemarcaes entre natureza quantitativa e/ou qualitativa das pesquisas,quais os mtodos mais adequados para a produo das mesmas, ou seja,quais caminhos seriam mais adequados a fim de levar a cabo os objetivospreviamente propostos, respondendo, assim, aos questionamentos e aosanseios investigativos.

    Poderamos afirmar que os mtodos, os procedimentos e os traados

    de caminhos possveis rumo aos dados e aos resultados produzidos pelasinvestigaes esto, de certa forma, ligados natureza investigativa,levando em conta que, enquanto as pesquisas quantitativas sepreocupariam mais com scriptspreexistentes e com a produo de dadosmais padronizados pertencentes aos universos matemtico e estatstico,as investigaes, do ponto de vista qualitativo, se afirmariam emdetrimento de procedimentos mais abertos, dispostos ao acaso e inveno processual. (PASSOS; KASTRUP; ESCSSIA, 2010).

    Atravessando transversalmente tais intuitos de fixao binria(qualitativo/quantitativo), surge especialmente a partir da obraMil platsescrita por Deleuze e Guattari publicada no Brasil, nos anos 90 (sc.XX) um modelo de pensamento/conceito intitulado pelos autores deRizoma o qual nos apresenta outras possibilidades metodolgicas, nosremetendo, assim, ao princpio da Cartografia como perspectivaprocessual de investigao. Muito superficialmente, mediante tal frentede trabalho, a distino entre natureza qualitativa e natureza quantitativa,embora ainda pertinente, se mostra insuficiente visto que, alm de utilizar

    dados de diversas naturezas e mescl-los na produo de resultados paraas pesquisas que as autorizam, compreende que as realidades se expressam

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    Cartografia como estratgia metodolgica: inflexes para pesquisas em educao

    de maneiras amplamente complexas, no cabendo ao pesquisador reduzi-las a elementos de uma s natureza. (PASSOS; KASTRUP; ESCSSIA, 2010).

    Contudo, ainda que a perspectiva cartogrfica de pesquisa entendidacomo estratgia metodolgica apresente possibilidades de ampliao naproduo de investigaes no campo das Cincias Humanas, h de selevar em conta que a mesma, quando proposta por Deleuze e Guattari,em Mil plats, tinha intuitos muito especficos. Os autores escreviamem uma Frana dos anos 60, 70, 80 condicionados por, em algunscasos, uma forte renncia ao vis epistemolgico do estruturalismo, emoutros, por uma postura de ampliao de algumas iniciativas e correntes

    de pensamento propostas por tal movimento de pensamento, ou taismovimentos de pensamento se considerarmos que no houve apenas umestruturalismo, mas diversas dianteiras que configuraram mltiplosestruturalismos, conforme afirma Sales (2006). Ou seja, Deleuze eGuattari se propunham a travar uma luta armada contra o pensamentocontinuista/causal do campo da histria contra o sentido oculto/obscuroa ser desvelado no campo da lingustica, contra o insciente psicanalticoe contra a filosofia hermenutica/interpretativa.

    Pautado por esse plano de pensamento, o presente texto tem portrave refletir acerca de possveis inflexes ofertadas pela propostametodolgica amplamente conhecida como Cartografia, tomando porbase que as pesquisas na contemporaneidade no teriam mais por querenunciarem drasticamente a um passado ou se chocarem de frente comcertas perspectivas de trabalho algo que bastante justificvel emdeterminado momento histrico, mas que perde fora se pensarmos napluralidade de pensamentos presentes atualmente nos mais variadoscampos do saber mas assegurar reflexes implicadas em promover o

    dilogo entre diferenas sem, no entanto, sucumbi-las em nveis iguais.Nesse sentido, o pensamento cientfico ps-moderno possui entre suascaractersticas, segundo Romagnoli a humildade epistemolgica ao noperseguir a verdade, a busca de ferramentas teis para o entendimentodo mundo e o abandono da ideia de um lugar privilegiado a partir doqual podemos compreender definitivamente as relaes que noscircundam. (2009, p. 168).

    Para tanto, primeiramente, explanaremos minimamente sobre de

    que se trata a perspectiva cartogrfica e em que ela difere de outrosmodos de fazer pesquisa, baseados, sobretudo, no impacto epistemolgicoconduzido por Deleuze e Guattari no campo da filosofia e que acaba

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    Marilda Oliveira de Oliveira Cristian Poletti Mossi

    por respingar no que concerne produo investigativa na rea dascincias humanas, em geral, e especialmente no campo da educao.

    Nesse sentido, o conceito de Rizoma proposto pelos autores (DELEUZE;GUATTARI, 1995) pode ser til para entendermos de que se trata tal girofilosfico/epistemolgico. Posteriormente, utilizando como motorreflexivo a imagem da interveno artstica Espiral do Conhecimento(2011) de Andr Dalmazzo interveno essa proposta em uma aulade Metodologia da Pesquisa em Educao (Seminrio de Tese/Programade Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Santa Maria) pretendemos inferir algumas noes e estender nossa reflexo acerca

    de inflexes que pesquisas em educao, permeadas por traosmetodolgicos cartogrficos, parecem apresentar.

    A paisagem que se modifica: sulcar outros caminhos para a pesquisaem educao

    Na introduo de sua obra Mil plats livro publicado em cincovolumes, no Brasil de 1995 a 1997 Deleuze e Guattari (1995) lanama noo de Rizoma que, para alm de um conceito, tambm um

    modelo de pensamento para pensar o prprio pensamento e o modocom que nos deslocamos cognitivamente ante as plurais realidades queatravessamos. Que caminhos tomamos nesse deslocamento? Queconfiguraes assumimos e o que somos capazes de produzir nessesatravessamentos?

    Um rizoma no comea nem conclui, ele se encontra sempre no meio,entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A rvore filiao, mas o rizoma aliana, unicamente aliana. A rvore impe o verbo ser, mas o rizomatem como tecido a conjuno e... e... e... H nesta conjuno forasuficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai voc? Deonde voc vem? Aonde quer chegar? So questes inteis. Fazer tbularasa, partir ou repartir de zero, buscar um comeo, ou um fundamento,implicam uma falsa concepo da viagem e do movimento. (DELEUZE;GUATTARI, 1995, p. 37).

    Em se tratando de ponderar acerca do percurso de uma investigao,

    como nos dobramos e desdobramos mediante os contextos em queatuamos, como pesquisadores embasados por nossas questesinvestigativas, a noo de Rizoma nos remete perspectiva cartogrfica

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    Cartografia como estratgia metodolgica: inflexes para pesquisas em educao

    como forma de sulcar caminhos em uma paisagem em constantemovimento, observada e registrada por olhos e mos que, a cada instante,

    no so mais os mesmos: o eu-pesquisador tambm inseparvel do quepesquisa, portanto, uma realidade to efmera quanto sempre em devir.Nesse sentido, os pontos de partida e de chegada so o que menosimporta em se tratando de um meio, de um entre, que permeado porvelocidades repletas de potncias.

    Para minimamente compreendermos quais so os impactos da frentede pensamento deleuzeana/deleuzeguattariana nos modos de fazerpesquisa a partir da noo de Cartografia, nos parece vlido lanar um

    olhar, ainda que rpido, ao giro proposto por esses autores nos modosde produzir filosofia, entendendo que ambas se tratam de instauraesconceituais sempre inacabadas no campo do saber.

    Ainda que Deleuze e Guattari tenham escrito pouco ou quase nadaa respeito da educao especificamente, e mesmo muito pouco acercado ato de produzir pesquisa, de pesquisar, as noes, as prticas e osconceitos problematizados por esses autores tm impactado diversasinvestigaes no s no campo educativo, mas tambm nas pesquisas

    decorrentes das cincias humanas, em geral, nos ltimos anos. Arriscamospontuar que tanto os modos de investigar (esfera metodolgica) comode pensar a investigao (esfera epistemolgica) sulcam caminhos nuncaantes vistos e reconfiguram novas paisagenspensamentais. Corazza (2012)nos ajuda a formular a questo: Quem so esses autores e o que, mesmo semquerer, querem do campo educacional e da produo de pesquisas no mesmo?

    Talvez, uma das principais ponderaes do pensamento deleuzeano,por diversas vezes associado s formulaes do psicanalista e tambmfilsofo Flix Guattari (emMille plateaux, em Quest-ce que la philosophie?

    e em Pourparlers, por exemplo) expandir na filosofia uma iniciativaanticartesiana que pretende deslocar o cogito penso, logo existo quecoloca o euplenamente consciente, unvoco e autnomo no centro dosprocessos cognitivos em busca de interpretar uma realidade estvel nointuito de empreender estruturas do pensar de outras ordens, quedesconsideram um inconsciente fixo.

    Ponderando que pensar algo tambm inventar o objeto pensadoe, claro, o prprio observador os quais no se apresentam dissociados

    um do outro Deleuze e Guattari (1992) afirmam que, ao invs de afilosofia propor modelos conceituais para re(a)presentar a realidade(historicamente causal e linear), ela se proporia, primordialmente,

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    criao de conceitos sobre um plano de imanncia. Ou seja, cunhar-se-iam realidades plurais e flexveis, atravessadas por multiplicidades e

    intensidades minoritrias, como acontecimentos, que se destinam a operara partir do presente, em um plano pertencente ao aqui e agora, distantesde planos superiores de apuramento cognitivo e de transcendncia.

    Diferentemente do que se observa na filosofia clssica, na filosofiadeleuzeana/deleuzeguattariana, o pensamento no visto como algonatural e inato ao ser humano (Penso, logo existo) identificando-ocomo uma espcie mais apurada diante das outras. O pensamento seria,por assim dizer, algo a ser acionado, violentado por diferentes encontros

    e afeces, associado ao prprio pensamento. (LEVY, 2011).Portanto, para alm de redimensionar os modos de produzir filosofia,

    a virada acima descrita reconduz de forma diversa as possibilidades decompor e produzir pesquisas nas cincias humanas e, dessa forma, nocampo da educao, remostrando o que seria o prprio pensamento, oprprio pensar.

    O mapa da pesquisa ou a pesquisa como mapa

    No que resulta uma pesquisa para alm de seus resultados? Em umtexto encadernado? Em modelos, mtodos, saberes, conceitos, entreoutros, que sero reproduzidos e remodelados por outras prticas einvestigaes futuras? Destarte, antes de pensarmos em sua materialidadepropriamente dita, podemos afirmar que toda pesquisa implica a ideiade uma seleo que feita mediante dados de diversas naturezas, a fimde dar conta de um percurso, de uma trajetria complexa. Mas isso,somente, por si seu resultado fsico no define o que a pesquisa

    nem a que ela se prope, tampouco o modo/mtodo como ela produzida: seu processo.

    A Cartografia como estratgia metodolgica insurge justamente danecessidade de mtodos que no apresentem somente os resultados finaisda pesquisa desconsiderando os processos pelos quais a mesma passouat chegar sua instncia final, mas que acompanhem seu percursoconstrutivo sempre em movimento e o percebam como algo incompleto,transitrio e que multiplica as possibilidades ao invs de restringi-las. Apesquisa, por assim dizer, sempre um mapa que possibilita mltiplasentradas e onde possvel transitar livremente, agrimensando um terrenoem permanente mutao.

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    Cartografia como estratgia metodolgica: inflexes para pesquisas em educao

    O mapa aberto, conectvel em todas as suas dimenses, desmontvel,reversvel, suscetvel de receber modificaes constantemente. Ele pode

    ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, serpreparado por um indivduo, um grupo, uma formao social. Pode-sedesenh-lo numa parede, conceb-lo como obra de arte, constru-lo comouma ao poltica ou como uma meditao. [...] Um mapa uma questode performance. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 22).

    A ao investigativa, nesse sentido, no se apresenta somente comouma possibilidade representativa de realidades, nem como algo a ser

    interpretado, no sentido de um objeto que oferece verdades e significadosocultos esperando por serem desvelados, mas como uma antiestruturainventiva, rizomtica, que oferece elementos a serem experimentados esempre recriados na superfcie.

    De acordo com Romagnoli (2009), a cincia no Ocidente se fundaespecialmente na migrao do polo religio (Deus) para o polo razo(cincia determinista, matematizada, fundamentada em leis e baseadaem esquemas de eficcia e rendimento), a fim de explicar os fenmenossociais e naturais. Segundo a autora, os pressupostos bsicos dessa cincia

    so a objetividade, a causalidade, a sistematizao e a produtividade ao do homem sobre a natureza , e o sujeito que produz tal cincia neutro, plenamente consciente, racional, soberano em relao aosfenmenos, implicado com o progresso e a totalidade do mundo.

    Morin (1983 apud ROMAGNOLI, 2009) infere que o paradigmamoderno de cincia o paradigma da simplificao, j que opera porreduo e gera, por sua vez, uma leitura simplificada, ordenada efragmentada da realidade, ou seja, atravs de uma operao de disjuno,

    onde objeto e meio so separados, isolados, acaba-se por acarretarcategorias e disciplinas que no interagem entre si. Nesse sentido,portanto, a Cartografia prope aproximar-se de uma realidade complexavista como abordagem no dualista (no h separaes entre natureza/cultura, natural/artificial, objeto/sujeito, etc.), com uma postura semprequestionadora com relao s abordagens tradicionais de produo deconhecimento. Entendendo a palavra complexidade no como sinnimode algo difcil ou incompreensvel, mas aprendido como algo que no sereduz a unidades simplistas de explicao, requerendo olhares plurais

    para poder ser experienciado.

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    Marilda Oliveira de Oliveira Cristian Poletti Mossi

    Se as realidades plurais e complexas que investigamos so comoterrenos a serem agrimensados, e se ns e tais paisagens estamos

    constantemente nos modificando, a Cartografia, como estratgia paraproduzirmos pesquisas s quais nos propomos, considera mais o percursoda viagem do que os pontos de partida e/ou chegada. Para cada um queexplorar certo terreno a paisagem ser diferente, e tal constatao no setrata de mero subjetivismo, visto que cada paisagem tambm produzirum observador diferente que s poder ver o que lhe possvelmomentaneamente.

    Sendo assim, talvez no possamos dar conta da perspectiva

    cartogrfica com ummtodo, mas como um conjunto metodolgicoque no decidido a priorie que surge, vai sendo inventado, no decorrerdo caminho, na prpria caminhada, de acordo com as necessidadesinstauradas pelo relevo imposto pelo percurso. Passamos a pensar nomais em um mtodo (met-hdos) como um conjunto de metas paraatravessar seguramente o caminho mas um hdos-mta entendidocomo instaurao de instrumentais possveis no prprio caminhar.(PASSOS; KASTRUP; ESCSSIA, 2010).

    Desse modo, conhecer algo no se limita somente a reconhecer, oure(a)presentar algo, mas significa tambm criar/inventar aquilo que seconhece, assim como produzir a si prprio nesse processo. A Cartografiapassa a ser no s uma estratgia metodolgica, mas tambm uma posturado pesquisador diante de sua prpria vida.

    Sobre inflexes para enfrentar o campo de pesquisa

    Em uma certa manh de outono de 2011, os acadmicos da

    disciplina Seminrio de Tese I disciplina componente da gradecurricular do Curso de Doutorado em Educao do Programa de Ps-Graduao em Educao da Universidade Federal de Santa Maria(UFSM) tiveram uma grata surpresa. Um de seus participantes, AndrDalmazzo, havia preparado, no intuito de problematizar os textos queiriam balizar as discusses inerentes disciplina naquela manh, umainterveno artstica na sala de aula que estava programada para ocorrerno encontro.

    Assim que doutorandos e professores abriram a porta da sala e

    entraram, no encontraram por l o que se espera de uma sala de aulacomum, como mesas e cadeiras dispostas de forma organizada. A sala

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    Cartografia como estratgia metodolgica: inflexes para pesquisas em educao

    estava tomada por inmeros copos plsticos com a boca para baixo,arranjados em forma de espiral no cho. Por cima deles e amarrados nas

    cadeiras da sala que circundavam a grande espiral, atravessavam-se fiosde l vermelhos, formando uma espcie de emaranhado (figura 1).

    Figura 1 Detalhe da interveno Espiral do Conhecimento (2011)

    Fonte:Acervo do autor.

    A reao da turma foi imediata: imensa surpresa e dificuldade deenfrentar aquilo que se impunha aos seus olhos. Alguns que ali estavamchegaram at a sugerir que a turma fosse ter aula em outro espao, como intuito (que no era suficiente) de no destruir a interveno que ocolega Andr Dalmazzo intitulara Espiral do Conhecimento.

    O que aqueles copos faziam organizados naquele lugar? Estariamdispostos para a aula, ou teriam os alunos entrado na sala equivocada?O que copos plsticos e fios de l estariam fazendo numa sala de aula

    dispostos daquela maneira? O que copos plsticos e fios de l teriam aver com pesquisa? O que teriam a ver com acadmicos buscando umttulo de doutorado em educao?

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    Marilda Oliveira de Oliveira Cristian Poletti Mossi

    Tesouras em mos, professores e alunos decidiram no fugir do desafioque se colocava e optaram por adentrar a obra. Cortavam os fios e

    empurravam os copos para o centro da sala no intuito de produzir comaquele espao e com aquela materialidade outras possibilidades deocupao.

    O estranhamento com aqueles objetos fora de seu contexto, somadoao medo da desordem, quase os fez fechar a porta, virar as costas eprocurar outra sala a fim de ter aula. Uma aula provavelmente igual atodas as outras que tiveram at ento, ou que ao menos a maioria estariatendo nas tantas outras salas de aula ao seu redor. Naquele dia, a aula foi

    diferente: em torno dos copos e dos fios de l que se amontoavam nocentro da sala surgiam concepes de pesquisa e inmeras relaes degrande potncia para se pensar a prpria ao de pesquisar.

    Procuraremos resgatar algumas delas, pontuando-as, conforme nosso objetivo no presente texto, em relao s inflexes que insurgemmediante a perspectiva metodolgica da Cartografia. Para atender a talintuito, selecionamos trs questes/inflexes que desenvolveremos aseguir.

    Primeiramente, a questo/inflexo que nos parece importante ado incmodo causado por uma situao fora do esperado. Pesquisamosno para conhecer o que no conhecamos antes e assim nos tornarmosmelhores e mais apurados em determinados assuntos, mas paracolocarmos em movimento instncias que estavam, ao menos para ns,estagnadas, estabelecidas, dadas. O trabalho do cartgrafo sempre nasuperfcie, ainda que no superficial. Ele procura vivificar seus camposde pesquisa e os instrumentais com os quais trabalha de uma potnciade vida que se confunde com a sua prpria, visto que tambm

    constantemente produzido em meio a essa ao complexa.Assim, voltemos ao que nos propem Deleuze e Guattari no que

    concerne produo filosfica: o pensamento algo que precisa seracionado, acoplado ao prprio pensamento. preciso que algo nosincomode a ponto de nos sentirmos violentados para podermos pensare produzir conceitos. Nesse sentido, toda pesquisa um enfrentamentono pacfico com temticas, problemas e posicionamentos metodolgicosque se mostram adequados para corresponder aos nossos anseios. Tal

    enfrentamento diz respeito no s ao embate com as situaes que nosdesacomodam e nos colocam a pensar, mas tambm com a defesa deperspectivas e pontos de vista que acabam por nos produzir mediante o

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    Cartografia como estratgia metodolgica: inflexes para pesquisas em educao

    terreno em que adentramos. Perspectivas e pontos de vista que so revistosconstantemente, visto que, se o horizonte est sempre em mudana,

    nossa chegada sempre provisria.Outra questo/inflexo que nos parece emergir a de que para cada

    um que se embrenhou no espao da sala de aula tomada pelainterveno artstica Espiral do Conhecimento a experincia se passoude uma forma, contudo, fazer tal afirmativa no se trata de reduzir ospontos de vista a mero subjetivismo. Pensar que para cada um ocorreude modo diverso, simplesmente porque cada um de ns uma pessoadiferente, seria considerar, ao modo do paradigma moderno j citado,

    que h sujeitos plenamente formados, estveis, conscientes e racionais,que executavam a ao. Desse modo, para cada um foi uma experinciadiferente simplesmente porque cada um tambm estava se flexionando,se dobrando sobre si mesmo diferentemente e via o que podia ver nomomento, pensava o que podia pensar e formulava as acepes que erampossveis.

    Como pondera Costa,

    nossas ferramentas tericas so como culos, lentes, que nos permitemenxergar algumas coisas e no outras. Nossas perspectivas de anliseno nos ajudam apenas a compreender um problema, elas nos ajudama compor o problema. Ao problematizarmos um determinado campo,objeto ou fenmeno, ns estamos inventando algo novo com as nossaslentes. (2006, p. 72-73).

    Poderamos, portanto, afirmar que, ao pesquisarmos algo, tambmestamos inventando aquilo que pesquisamos, e mais: inventando tambm

    a prpria forma de pesquisar. Em se tratando de pensar a perspectivacartogrfica, isso se impe de forma mais clara, visto que os arsenais deque dispomos vo sendo produzidos no prprio caminhar.

    Uma terceira questo/inflexo que nos parece cintilar da experinciarelatada diz respeito complexidade do evento de pesquisar e construoinvestigativa como uma produo a partir de fragmentos, sobras, vestgios.Tradicionalmente, as pesquisas ditas acadmicas foram construdas, comoafirmado anteriormente, mediante padres de neutralidade e

    distanciamento com relao aos objetos investigativos. Sendo assim, asrealidades pesquisadas precisavam ser vistas como totalidades facilmentemanipulveis, mensurveis, interpretveis. Imaginar que a ao

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    Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p. 185-198, set./dez. 2014 197

    Marilda Oliveira de Oliveira Cristian Poletti Mossi

    investigativa uma composio a partir de sobras coletadas no caminho,no enfrentamento do campo aberto da pesquisa, muitas vezes, pode

    assustar dada a carga de responsabilidade abonada s pesquisas e aospesquisadores como descobridores de verdades universais e irrevogveis.

    Contudo, com as inmeras transformaes epistemolgicas que vmsofrendo a cincia, o que temos podido perceber que as realidades noso to simples e to pouco complexas e que aprision-las em respostasto diretivas , de certa maneira, reduzi-las demasiadamente, castr-las de suas infinitas possibilidades. (KINCHELOE; BERRY, 2007). O quenos parece resultar das pesquisas que desenvolvemos um imenso

    emaranhado de fragmentos compostos com o que nos possvelmomentaneamente.

    Retomando o evento descrito, podemos pensar que, em nossaspesquisas, inmeras vezes, a vontade de fechar a porta e ir embora,procurar um lugar seguro, igual aos tantos outros lugares em queestivemos at ento, ou pelo menos, seguir em frente sem serimportunado pelos limites, pelas tenses, pelo desconforto gerado nafalta de uma ordem. Acabamos, em alguns momentos, procurando

    verdades estveis, grandes achados que estavam ocultos s esperandoserem encontrados. Do que por vezes no nos damos conta que a talordem a que chamamos de normalidadetambm uma inveno, umaconveno, e que, por assim dizer, pode ser revista, reinventada ereinterpretada quantas vezes quisermos. E que a desordem no nadaalm do que outra ordem. No nos damos conta de que osenfrentamentos que nos violentam pelo caminho so os mesmos quenos colocam a buscar modos de composio singulares, que nos produzemconstantemente. Tambm no prestamos ateno aos fragmentos que

    reluzem prenhes de possibilidades produtivas e de tensionados diversos.A Cartografia (como estratgia metodolgica) parece criar inflexes

    de acordo com os terrenos mltiplos que o pesquisador encontra,desdobrando-se por esferas e caminhos que oferecem material para aproduo de sentidos e composies diversos. Nota-se que no se tratade simplesmente revogar o passado continusta, causal, interpretativoda pesquisa, mas de engendrar-se nesse mesmo passado para ampliarsuas possibilidades. certo que a prpria Cartografia, como conjunto

    de mtodos, ou melhor, como possibilidade para mirar o(s) objeto(s)investigativo(s) como campo aberto, no se condiciona a uma definioatemporal ou a um arsenal de instrumentos fixos. preciso que, ainda

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    198 Conjectura: Filos. Educ., Caxias do Sul, v. 19, n. 3, p. 185-198, set./dez. 2014

    Cartografia como estratgia metodolgica: inflexes para pesquisas em educao

    que nos oferecendo uma novidade em comparao aos modos maistradicionais de fazer pesquisa, ele se redesenhe constantemente.

    Referncias

    CORAZZA, Sandra Mara. Contribuies de Deleuze e Guattari para a pesquisa emeducao. Revista Digital do LAV (UFSM),Santa Maria, ano 5, n. 8, p. 1-19, 2012.Disponvel em: Acesso em: 18 mar. 2013.COSTA, Marisa Vorraber. O magistrio e a poltica cultural de representao eidentidade. In: ______. O magistrio e a poltica cultural.Canoas: Ed. da Ulbra,2006. p. 69-92.

    DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Flix.Mil plats:capitalismo e esquizofrenia. Riode Janeiro: Ed. 34, 1995. v. 1.

    ______. O que a filosofia?Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

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    Submetido em 30 de junho de 2013.Aprovado em 25 de junho de 2014.