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Ciências Sociais Unisinos 50(1):65-76, janeiro/abril 2014 © 2014 by Unisinos - doi: 10.4013/csu.2014.50.1.08 Resumo Este trabalho examina algumas das principais teorias acerca da estigmatização, do com- portamento desviante, da marginalização e da criminalização e submete a situação dos indígenas de Mato Grosso do Sul a uma análise segundo essas teorias. Na primeira parte, trata das abordagens sociológicas de Goffman, Becker e Elias, que apontam as razões e os efeitos da estigmatização, da rotulação e da marginalização e expõem caracterís- ticas elementares da relação estabelecidos-outsiders. Na segunda, estuda o fenômeno da criminalização e a característica da seletividade do sistema penal, sob o enfoque da criminologia crítica. Por fim, busca apontar a estigmatização, a rotulação, a marginali- zação e a criminalização dos indígenas de Mato Grosso do Sul, observando os conceitos fundamentais das teses tratadas nas duas primeiras partes do texto. Palavras-chave: criminologia crítica, estigma, indígenas, sociologia das relações de poder, sociologia do desvio. Abstract This paper examines some of the main theories about stigmatization, deviance, mar- ginalization and criminalization, and submits the situation of the indigenous peoples in Mato Grosso do Sul to a brief analysis according to these theories. In first part, it deals with the sociological approaches of Goffman, Becker and Elias, who point out the reasons and effects of stigmatization, labelling and marginalization and explain elementary fea- tures of the relationship between established people and outsiders. In the second part, it discusses the phenomenon of criminalization and the selectivity the of criminal justice system from the point of view of critical criminology. Finally, it seeks to identify the labelling, stigmatization, marginalization and criminalization of indigenous people in Mato Grosso do Sul in the light of the fundamental concepts of the theses dealt with in the first two parts of the text. Keywords: critical criminology, stigma, indigenous people, sociology of power relations, sociology of deviance. Da sociologia do desvio à criminologia crítica: os indígenas de Mato Grosso do Sul como outsiders From the sociology of deviation to the critical criminology: The indigenous people of Mato Grosso do Sul State as outsiders 1 Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Rua Emílio Mascoli, 275, Centro, 79950-000, Naviraí, MS, Brasil. 2 Universidade Federal da Grande Dourados. Faculdade de Direito e Relações Internacionais. Rua Quintino Bocaiúva, 2100, Jardim da Figueira, 79824-140, Dourados, MS, Brasil. Igor Henrique da Silva Santelli 1 [email protected] Antonio Guimarães Brito 2 [email protected]

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  • Cincias Sociais Unisinos50(1):65-76, janeiro/abril 2014 2014 by Unisinos - doi: 10.4013/csu.2014.50.1.08

    Resumo

    Este trabalho examina algumas das principais teorias acerca da estigmatizao, do com-portamento desviante, da marginalizao e da criminalizao e submete a situao dos indgenas de Mato Grosso do Sul a uma anlise segundo essas teorias. Na primeira parte, trata das abordagens sociolgicas de Goffman, Becker e Elias, que apontam as razes e os efeitos da estigmatizao, da rotulao e da marginalizao e expem caracters-ticas elementares da relao estabelecidos-outsiders. Na segunda, estuda o fenmeno da criminalizao e a caracterstica da seletividade do sistema penal, sob o enfoque da criminologia crtica. Por fim, busca apontar a estigmatizao, a rotulao, a marginali-zao e a criminalizao dos indgenas de Mato Grosso do Sul, observando os conceitos fundamentais das teses tratadas nas duas primeiras partes do texto.

    Palavras-chave: criminologia crtica, estigma, indgenas, sociologia das relaes de poder, sociologia do desvio.

    Abstract

    This paper examines some of the main theories about stigmatization, deviance, mar-ginalization and criminalization, and submits the situation of the indigenous peoples in Mato Grosso do Sul to a brief analysis according to these theories. In first part, it deals with the sociological approaches of Goffman, Becker and Elias, who point out the reasons and effects of stigmatization, labelling and marginalization and explain elementary fea-tures of the relationship between established people and outsiders. In the second part, it discusses the phenomenon of criminalization and the selectivity the of criminal justice system from the point of view of critical criminology. Finally, it seeks to identify the labelling, stigmatization, marginalization and criminalization of indigenous people in Mato Grosso do Sul in the light of the fundamental concepts of the theses dealt with in the first two parts of the text.

    Keywords: critical criminology, stigma, indigenous people, sociology of power relations, sociology of deviance.

    Da sociologia do desvio criminologia crtica: os indgenas de Mato Grosso do Sul como outsiders

    Fro m the sociology of deviation to the critical criminology: The indigenous people of Mato Grosso do Sul State as outsiders

    1 Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Rua Emlio Mascoli, 275, Centro, 79950-000, Navira, MS, Brasil.2 Universidade Federal da Grande Dourados. Faculdade de Direito e Relaes Internacionais. Rua Quintino Bocaiva, 2100, Jardim da Figueira, 79824-140, Dourados, MS, Brasil.

    Igor Henrique da Silva [email protected]

    Antonio Guimares [email protected]

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    Igor Henrique da Silva Santelli, Antonio Guimares Brito

    Trs abordagens sociolgicas de estigma, desvio e marginalizao

    Estigma e desvio em Goffman

    s marcas que eram cravadas nos corpos dos escravos, criminosos e traidores para sinalizar que eram pessoas ms, com as quais no era aconselhvel relacionar-se, os gregos deram o nome estigma. O termo, hoje, sem se afastar em essncia de seu sentido de origem, designa um trao distintivo de algum, que atrai a ateno e indica a existncia de um atributo socialmente indesejvel. Na verdade, mais do que sinal de uma degenerao, a palavra estigma por vezes passou a ser invocada para apontar a prpria degenerao (Goffman, 2008, p. 12).

    Goffman se ocupa do estudo da condio da pessoa es-tigmatizada em sua interao com os outros indivduos. Ele defi-ne estigma como uma associao de um atributo, quase sempre depreciativo, a um esteretipo (2008, p. 13). So trs espcies bsicas de estigmas (Goffman, 2008, p. 14):

    Em primeiro lugar, h as abominaes do corpo as vrias deformidades fsicas. Em segundo, as culpas de carter in-dividual, percebidas como vontade fraca, paixes tirnicas ou no naturais, crenas falsas e rgidas, desonestidade, sendo essas inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distrbio mental, priso, vcio, alcoolismo, homos-sexualismo, desemprego, tentativas de suicdio e comporta-mento poltico radical. Finalmente, h os estigmas tribais de raa, nao e religio, que podem ser transmitidos atravs de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma famlia.

    O que h de comum em qualquer um desses estigmas que sua presena em determinadas pessoas salta aos olhos dos indivduos normais, fazendo com que estes se atentem quase que exclusivamente para o atributo ruim que o estigma sinaliza, reduzindo a possibilidade de percepo de todas as outras carac-tersticas que o estigmatizado possa ter. Alm disso, outras de-

    generaes so deduzidas a partir da degenerao originalmente imaginada (Goffman, 2008, p. 14-15).

    A reao social ao estigma pode at mesmo incluir a ne-gao da natureza humana pessoa estigmatizada, o que fo-menta discriminaes que diminuem as suas possibilidades de vida. Diz Goffman (2008, p. 15):

    Construmos uma teoria do estigma, uma ideologia para expli-car a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em ou-tras diferenas, tais como a de classe social. Utilizamos termos especficos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso dirio como fonte de metfora e representao, de maneira caracterstica, sem pensar no seu significado original.

    Goffman no enxerga o desvio como simples infringn-cia das normas sociais; enxerga-o, antes, como diferena, incon-formidade com as expectativas comungadas pelos normais e impostas a partir destes a todos. Estudar o desvio, nesse sen-tido, implica estudar a diferena (2008, p. 139). Mas entender a diferena algo que no se pode fazer olhando apenas para o diferente, esperando identificar ali algo de anormal; preciso olhar para o comum, pois as normas sociais, especialmente as normas referentes identidade e ao ser, ao definirem o que normal, criam os desvios e seus desviantes (2008, p. 139).3

    Desviantes sociais so, geralmente, as pessoas vistas como inaptas para prover o progresso nos moldes delineados pela sociedade, os desobedientes, os carentes de moralidade e os smbolos de fracasso para os propsitos sociais.4

    Podem apresentar-se com mais clareza como desviantes as pessoas chamadas por Goffman de desafiliados, pessoas em-penhadas em uma negao coletiva da ordem social. Os desafi-liados so tanto os inconformados com o lugar social que lhes destinado, que no se ajustam s regras atinentes famlia, idade, ao gnero sexual e ao trabalho, como os discriminados em razo da classe social e da raa (2008, p. 153-154).5

    A estigmatizao possui uma funo bsica: recrutar apoio para a sociedade entre aqueles que no so apoiados por

    3 Numa viso que contempla mais a posio do indivduo ante a sua cultura, Velho (2003, p. 21-22) diz o seguinte: Com um conceito de Cultura menos rgido, pode-se verificar que no que o inadaptado veja o mundo essencialmente sem significado, mas sim que veja nele um significado diferente do que captado pelos indivduos ajustados. O indivduo, ento, no , necessariamente, em termos psicolgicos, um deslocado e a cultura no to esmagadora como possa parecer para certos estudiosos. Assim a leitura diferente de um cdigo sociocultural no indica apenas a existncia de desvios, mas, sobretudo, o carter multifacetado, dinmico e, muitas vezes, ambguo da vida cultural. O pressuposto de um monolitismo de um conceito sociocultural leva, inevitavelmente, ao conceito de inadaptado, de desviante etc. A Cultura no , em nenhum momento, uma entidade acabada, mas sim uma linguagem permanentemente acionada e modificada pelas pessoas que no s desempenham papis especficos, mas tm experincias existenciais particulares. A estrutura social, por sua vez, no homognea em si mesma, mas deve ser uma forma de representar a ao social de atores diferentemente e desigualmente situados no processo social. Estrutura social tout court, pouco pode valer se no for utilizada com a preocupao de perceber no s a continuidade da vida social, mas a sua permanente e ininterrupta transformao. Os conceitos de inadaptado ou de desviante esto amarrados a uma viso esttica e pouco complexa da vida sociocultural. Por isso mesmo devem ser utilizados com cuidado.4 As prostitutas, os viciados em drogas, os delinquentes, os criminosos, os msicos de jazz, os bomios, os ciganos, os parasitas, os vagabundos, os gigols, os artistas de show, os jogadores, os malandros das praias, os homossexuais, e o mendigo impenitente da cidade seriam includos (Goffman, 2008, p. 154-155).5 Segundo Goffman (2008, p. 154-155), quando existe um agrupamento de desviantes sociais em uma subcomunidade, um ambiente onde o comportamento desviante seja coletivo, este agrupamento pode ser chamado de comunidade desviante, como no caso dos guetos tnicos e raciais.

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    ela (Goffman, 2008, p. 148). Mas as tenses que ocorrem na interao entre normais e estigmatizados, quando tm como base estigmas muito depreciativos e evidentes ou que so her-dados dos ascendentes, resultam em efeitos profundos, com um mal muito relevante para os estigmatizados, casos em que, alm da funo social geral da estigmatizao, ela adquire uma funo adicional que varia conforme a espcie de estig-ma. A estigmatizao de pessoas com maus antecedentes, por exemplo, converte-se em instrumento de controle social formal, enquanto a estigmatizao de grupos raciais, tnicos e religiosos serve para afastar o acesso de tais minorias a condies de com-petitividade (Goffman, 2008, p. 149).

    Desvio e rotulao em Becker

    Contemporneo e da mesma escola que Goffman, Be-cker, em seus estudos sociolgicos sobre o desvio, preconiza uma inverso de perspectiva sobre a explicao do fenmeno: do enfoque do desvio e das suas condies socioeconmicas para o enfoque da reao social ao comportamento desviante. A rotulao afigura-se, nessa abordagem, um elemento funda-mental e indissocivel do desvio.

    Os estudos de Becker a respeito se prestam a combater a concepo sociolgica que pressupe que desvio a simples transgresso a uma norma sobre a qual existe certo consenso. Segundo o prprio Becker (2008, p. 21-22):

    Tal pressuposto parece-me ignorar o fato central acerca do des-vio: ele criado pela sociedade. No digo isso no sentido em que comumente compreendido, de que as causas do desvio esto localizadas na situao social do desviante ou em fatores sociais que incitam sua ao. Quero dizer, isto sim, que grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infrao constitui desvio, e ao aplic-las a pessoas particulares e rotul-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio no uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequncia da aplicao por outros de regras e sanes a um infrator. O desviante algum a quem esse rtulo foi aplicado com sucesso; o compor-tamento desviante aquele que as pessoas rotulam como tal.

    Ao definir desvio como consequncia da reao a um ato, Becker afasta a possibilidade de serem indistintamente agrupa-dos os infratores em uma categoria homognea os crimino-sos, os desviantes , j que passa a considerar que nem todas as pessoas que so rotuladas de desviantes realmente comete-ram um desvio e que, ao revs, nem todos os que de fato come-

    teram um ilcito so rotulados como desviantes. Se falta homo-geneidade, se h falhas na deteco do desvio, um grande erro identificar os fatores da criminalidade na personalidade ou na situao de vida daqueles que so rotulados. O que basicamente os outsiders tm em comum apenas o fato de terem sido ro-tulados como desviantes, e no defeitos morais ou psquicos ou problemas de condio social (Becker, 2008, p. 22).

    Para um ato ser encarado como desviante, depender em boa medida de quem o cometer, pois comum que se exija a observncia de regras mais de umas pessoas do que de outras.6 Embora no seja verdadeiro que a situao socioeconmica de uma pessoa a induza a praticar um crime, certo que a reao social a pessoas de situaes socioeconmicas dspares dife-renciada e, assim, determina a rotulao de algumas pessoas e a no rotulao de outras como desviantes. Mesmo que cometam um mesmo crime, como o de estupro, por exemplo, brancos tm menos chances de ser punidos do que negros, do mesmo modo que ricos possuem menor probabilidade de ser rotulados do que pobres como vadios.7

    Alm disso, no a violao a toda e qualquer regra que enseja uma rotulao. H, pois, regras cuja violao tolerada, como no caso de alguns crimes de abuso de autoridade, ao passo que h outras regras cuja transgresso raramente fica impune aos olhos da reao social, como no caso dos crimes patrimoniais (Becker, 2008, p. 26).

    Fica bvio, ento, que o fato de ser um ato tachado de desviante ou no depende muito mais do modo como as pessoas reagem a ele do que propriamente da sua natureza se ilcito ou no. Para rotular um comportamento desviante, no se pergunta foi infringida uma regra por algum?; na verdade, as questes que se apresentam como fundamentais so qual regra foi in-fringida? e quem a infringiu?. Costumeiramente, mormente quando se busca apoio em estatsticas oficiais da criminalidade, incorre-se na iluso de se supor tratar-se de desviante todo e qualquer ilcito e toda e qualquer pessoa que transgrida uma regra; desviantes, todavia, so mesmo os atos e as pessoas assim rotuladas. Como sintetiza Becker (2008, p. 27):

    Se tomamos como objeto de nossa ateno o comportamento que vem a ser rotulado de desviante, devemos reconhecer que no podemos saber se um dado ato ser categorizado como desviante at que a reao dos outros tenha ocorrido. Desvio no uma qualidade que reside no prprio comportamento, mas na interao entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele.

    6 Como ilustra Becker (2008, p. 25): Meninos de reas de classe mdia, quando detidos, no chegam to longe no processo legal como os meninos de bairros miserveis. O menino de classe mdia tem menos probabilidade, quando apanhado pela polcia, de ser levado delegacia; menos probabilidade, quando levado delegacia, de ser autuado; e extremamente improvvel que seja condenado e sentenciado.7 [...] a lei diferencialmente aplicada a negros e brancos. Sabe-se muito bem que um negro que supostamente atacou uma mulher branca tem muito maior probabilidade de ser punido que um branco que comete a mesma infrao (Becker, 2008, p. 25). Outro exemplo, incontestvel, de que a rotulao escolhe determinadas pessoas em razo de sua condio o de que relaes sexuais entre solteiros no encontram geralmente significativa censura, mas a solteira que engravida rotulada de promscua, enquanto o pai solteiro quase nenhuma reprovao social sofre pelo mesmo motivo (Becker, 2008, p. 26).

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    Os outsiders, por serem definidos como pessoas que des-cumprem as regras sociais, so relegados, colocados margem do grupo dos normais.8 No entanto, para desconstruir essa vi-so, Becker aponta para a necessidade de se questionar: regras de quem? (2008, p. 27). H muito tempo, tornou-se quase im-possvel haver uma sociedade uniforme, na qual todos os seus integrantes anuem com as normas vigentes, j que as sociedades atuais so marcadas internamente por notveis diferenas cul-turais, socioeconmicas e tnicas entre seus grupos; e grupos diferentes no comungam das mesmas regras. Apesar de exis-tir um conjunto de regras formalizado, institudo, grupos criam suas regras prprias (Becker, 2008, p. 27):

    Os problemas que eles [os diferentes grupos] enfrentam ao lidar com seu ambiente, a histria e as tradies que carre-gam consigo, todos conduzem evoluo de diferentes con-juntos de regras. medida que as regras de vrios grupos se entrechocam e contradizem, haver desacordo quanto ao tipo de comportamento apropriado em qualquer situao dada (Becker, 2008, p. 27).

    possvel, ento, que regras formais, criadas por um gru-po especfico que detm o poder, sejam tidas como inadequadas pela maioria das pessoas. O condenado pode ter uma compre-enso completamente diferente sobre a regra que infringiu em relao pessoa que o condena; pode simplesmente no aceitar uma regra para cuja elaborao no colaborou. Contudo, inde-pendentemente de concordncia, os mais velhos impem suas regras para os mais jovens, os homens para as mulheres, os bran-cos para os negros, a classe mdia para a classe baixa. Grupos cujo status social superior, enfim, como grupos armados ou que de algum modo dominam o poder constitudo, encontram mais facilidade para impor suas regras a outros grupos (Becker, 2008, p. 27-29).9

    Portanto, alm do fato de que os desvios so criados pela reao social, no se pode olvidar que as regras em funo das quais se promove a rotulao no contam com uma ade-so universal (Becker, 2008, p. 30): ao contrrio, constituem objeto de conflito e divergncia, parte do processo poltico da sociedade.10

    As razes da estigmatizao e da marginalizao em Norbert Elias

    Em Os estabelecidos e os outsiders, Norbert Elias, estu-dando uma pequena comunidade da periferia de uma cidade in-glesa, qual deu o fictcio nome Winston Parva, esclarece como e por que um grupo de pessoas trata outro grupo como outsider, estigmatizando-o e o marginalizando (Elias e Scotson, 2000).

    A comunidade estudada por Elias era dividida em dois grupos, que, embora no se percebessem como iguais, no eram diferentes em razo de classe social, padro habitacional, status profissional, nacionalidade, etnia, cor ou raa: os es-tabelecidos, grupo formado por pessoas residentes ali por mais tempo; e os outsiders, grupo formado por moradores recm-chegados comunidade. Elias encontra na relao entre as pessoas desses dois grupos constantes universais de qualquer figurao estabelecidos-outsiders (Elias e Scotson, 2000, p. 22).

    Grupos humanos mais poderosos, em qualquer parte, pen-sam ser superiores aos outros, acham-se revestidos de um certo carisma grupal, possuidores de uma virtude exclusiva. Esses gru-pos atribuem a si mesmos caractersticas humanas mais elevadas, excluem os membros dos outros grupos do contato social com os seus membros, fazem fofocas elogiosas a si e ameaam com fofocas depreciativas os membros dos outros grupos, para inibir as transgresses destes. E, a depender da fora do poder de es-tigmatizar dos grupos estabelecidos, podem fazer at mesmo com que os grupos menos poderosos pensem a si prprios, de fato, como inferiores, menos virtuosos (Elias e Scotson, 2000, p. 21-22).

    Mas qual seria a razo de um grupo de estabelecidos es-tigmatizar e marginalizar um grupo de outsiders? O que o leva a proceder desse modo? Elias repudia uma explicao pautada ex-clusivamente em objetivos econmicos. No necessariamente em funo de uma dominao econmica, afinal, que um grupo marginaliza outro (Elias e Scotson, 2000, p. 21-22, 199-200).11

    O modo como o conflito se desenha em Winston Parva, confrontando dois grupos que em aparncia se assemelham, per-mite vislumbrar o que h de mais elementar em qualquer relao estabelecidos-outsiders e que, na maioria dos casos, permane-ce despercebido. Isso porque, apesar de ocorrer comumente em

    8 Velho (2003, p. 11-12) pontua que a assimilao de desviantes como pessoas doentes, insanas, anormais, resulta de uma concepo do desvio como um mal que estaria contido no indivduo, um mal geralmente definido como fenmeno endgeno ou mesmo hereditrio. Trata-se da aplicao da lgica mdica da patologia sociedade; segundo essa lgica, onde h desvio h anormalidade; e a anormalidade pode conduzir disfuncionalidade, anomia.9 Segundo Becker (2008, p. 30): Diferenas de idade, sexo, etnicidade e classe esto todas relacionadas a diferenas em poder, o que explica diferenas no grau em que grupos assim distinguidos podem fazer regras para outros.10 Nas palavras de Velho (2003, p. 25): [...] certos grupos sociais realizam determinada leitura do sistema sociocultural. Fazem parte dele e, em funo de sua prpria situao, posio, experincias etc., estabelecem regras cuja infrao cria o comportamento desviante. Uma das principais contribuies de Becker, assim como de Kai Erikson e de John Kitsuse, foi perceber que o comportamento desviante no uma questo de inadaptao cultural, mas um problema poltico, obviamente vinculado a uma problemtica de identidade.11 Segundo Elias: Mesmo nos casos em que a luta pela distribuio dos recursos econmicos parece ocupar o centro do palco, como no caso da luta entre os operrios e a direo de uma fbrica, h outras fontes de disputa em jogo alm da relao entre salrios e lucros. Na verdade, a supremacia dos aspectos econmicos tem acentuao mxima quando o equilbrio de poder entre os contendores mais desigual quando pende mais acentuadamente a favor do grupo estabelecido (Elias e Scotson, 2000, p. 33).

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    quadros de agudas diferenas tnicas, raciais, de nacionalidade ou classe social, a relao estabelecidos-outsiders no se constitui em razo dessas diferenas caractersticas, mas sim em razo da busca do monoplio de poder por parte do grupo estabelecido (Elias e Scotson, 2000, p. 21-22). Para Elias, as denominadas re-laes raciais, por exemplo, so somente mais uma espcie de relao estabelecidos-outsiders, sendo que diferenas de aparn-cia dos grupos envolvidos nessas relaes servem para viabilizar a identificao mais fcil dos membros do grupo estigmatizado e propiciar a marginalizao destes (Elias e Scotson, 2000, p. 31-32).

    Embora muitos sejam os aspectos que possam pr em re-levo relaes estabelecidos-outsiders, todas elas so, na essn-cia, lutas para modificar o equilbrio do poder (Elias e Scotson, 2000, p. 37): os outsiders, silenciosa ou declaradamente, buscam reduzir os diferenciais de poder que os inferiorizam; os estabe-lecidos, manter ou aumentar esses mesmos diferenciais de poder (Elias e Scotson, 2000, p. 37).

    E no a raa nem a cor e tampouco o status social ou o poder econmico que constituem o diferencial de poder que faz do grupo estabelecido o mais forte, mas o maior nvel de coeso que existe entre seus membros. A coeso desempenha o papel de viabilizar a reserva das posies sociais de maior poder aos membros do grupo estabelecido, excluindo dessas posies os membros do grupo de outsiders; essa reserva, a seu turno, fortalece ainda mais a coeso grupal dos estabelecidos e, inver-samente, impede os outsiders de se fortalecerem em unidade. Esse alto nvel de coeso conquistado tambm por dois esfor-os bsicos do grupo dominante: realar as boas caractersti-cas dos estabelecidos, destacando as qualidades da minoria de melhores desse grupo, de modo a assegurar que seus membros desejem pertencer a ele para comungar dessas qualidades; e, por outro lado, realar tambm as ms caractersticas dos outsiders, destacando os defeitos da minoria dos piores desse grupo, de modo a estigmatizar todos os que a ele se vinculem, dificultando a formao de um orgulho grupal e, consequente-mente, enfraquecendo ainda mais qualquer coeso acaso exis-tente do lado outsider (Elias e Scotson, 2000, p. 22-23).

    Para um indivduo, vantajoso esforar-se para comungar do orgulho grupal que recobre os estabelecidos, porque dessa forma sustenta o status pessoal de pertencente ao grupo dos melhores. O preo da participao no carisma grupal dos esta-belecidos a submisso, por parte de cada um de seus membros, s normas prprias do grupo, notadamente a de restrio ao con-tato com qualquer outsider. Opostamente, os indivduos do grupo outsider so vistos como descumpridores dessas normas e, por-tanto, transgressores, anmicos, de maneira que o contato com um outsider passa a ser visto como contagioso contaminao anmica. Justifica-se nisso o fato de os estabelecidos evitarem os outsiders; muito propagado , pois, o medo da poluio que

    esse contato possa ocasionar (Elias e Scotson, 2000, p. 26). No passa distante dessa explicao a costumeira estigmatizao de outsiders como indisciplinados, desordeiros, no confiveis e, tornando o quadro ainda mais repugnante e ofensivo, sujos, imundos (Elias e Scotson, 2000, p. 26-28).

    A estigmatizao presente na relao estabelecidos-out-siders est ligada geralmente ao imaginrio criado pelo grupo estabelecido acerca dos outsiders, que simultaneamente repro-duz e justifica a antipatia dos seus integrantes por integrantes do grupo oposto. Como comum, o preconceito dos estabele-cidos sobre os outsiders relacionado a uma caracterstica fsica destes, como a cor da pele ou outros traos biolgicos, com isso conseguindo materializar-se. Na representao dos estabeleci-dos, o estigma fsico torna-se um dado objetivo, no atribudo por eles, mas criado por divindades ou pela natureza justamente para simbolizar a imperfeio e a inferioridade do grupo outsi-der. Dessa maneira, passa a ser possvel aos estabelecidos a re-ferncia a esse estigma de modo incontestvel e sem culpa, pois no seriam eles mesmos os responsveis pela criao desses estigmas, considerados obras de foras mticas ou naturais (Elias e Scotson, 2000, p. 35-36).

    Elias ainda trata de outro modelo de relao estabe-lecidos-outsiders, o do confronto entre o grupo de brancos, composto tanto por brancos ricos e educados como por bran-cos pobres e analfabetos, e o grupo de negros de Maycomb, no contexto local do sul dos EUA, na primeira metade do sculo XX. Trata-se de uma configurao estabelecidos-outsiders igual em essncia de Winston Parva, at porque no fundo sempre se trata do fato de que um grupo exclui outro das chances de po-der e de status, conseguindo monopolizar essas chances (Elias e Scotson, 2000, p. 208), mas um pouco diferente em alguns aspectos relevantes, principalmente o do recurso violncia pe-los estabelecidos contra os outsiders (Elias e Scotson, 2000, p. 199-213). Negros suspeitos de usurpar privilgios de brancos, como a posse de armas e a prtica de relaes sexuais com mu-lheres brancas, eram castigados fisicamente e at mortos, sendo que, com a marginalizao dos negros, brancos se protegiam de possvel quebra de toda a ordem que lhes atribua preciosas ex-clusividades (Elias e Scotson, 2000, p. 207).

    Fazer uso das tcnicas de estigmatizao e de margina-lizao contra os outsiders satisfaz, por assim dizer, um instin-to coletivo de sobrevivncia dos estabelecidos, j que um grupo sempre supe precisar sobrepor-se a outro, rebaixando-o, para se considerar, comparativamente, mais forte. Parecer mais forte que o outro alimenta a capacidade de resistncia a ele, e por toda a humanidade comum que se enxergue no outro uma ameaa constante prpria sobrevivncia (Elias e Scotson, 2000, p. 212).12 J o uso da violncia contra os outsiders, que no ocorre em todos os casos, pode ser determinado pelo nvel de segurana

    12 A fora vivificadora do sentimento de valor prprio se mostra na universalidade da tendncia de elevar o valor do prprio grupo s custas do valor de outros grupos. As pessoas em Winston Parva ganharam um acrscimo considervel de autoestima ao excluir os outsiders. Talvez eles precisassem dessa elevao de seu valor prprio (Elias e Scotson, 2000, p. 212).

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    dos estabelecidos acerca do seu prprio valor grupal: quanto me-nor sua autoestima, quanto mais inseguros sobre sua capacidade de manter seu poder, maior ser a agressividade empregada em desfavor dos outsiders (Elias e Scotson, 2000, p. 212).13

    A criminalidade construda pelo sistema penal na criminologia crtica

    A perspectiva terica da criminologia crtica

    Em sua origem, a criminologia, enquanto criminologia positivista, buscou, com Lombroso, Garfalo e Ferri, explicar as causas do crime pelas caractersticas biolgicas, psicolgicas e socioambientais do criminoso, traando uma linha divisria en-tre os indivduos normais e os criminosos. luz desse pen-samento criminolgico tradicional, o crime foi apontado como resultado de uma propenso natural do indivduo criminoso, determinada por hereditariedade ou pelo meio (Baratta, 2002, p. 29-30; Andrade, 2003, p. 66-67).

    A criminologia positivista, pondo-se a servio da ideologia da defesa social, atestava personalidades delinquentes a partir da discriminao do que denominava sinais antropolgicos do crime, viabilizando o tratamento do mal contido nas pessoas potencialmente criminosas por meio da interveno penal. Uma vez identificadas as pessoas fadadas criminalidade, tornava-se possvel consert-las ou ao menos arrebat-las do convvio com os homens sos. No era, portanto, o delito, mas o delinquente, um ser diferente, o objeto de observao da criminologia posi-tivista (Baratta, 2002, p. 29-30, 38-39; Andrade, 2003, p. 68-71).

    A criminologia deslocou seu foco, mais tarde, a partir dos anos 30 do sculo XX, para a anlise dos fatores sociais do crime, sem deixar, no entanto, de destinar seus esforos apurao das causas da delinquncia, vista ainda como patologia social, ano-malia. Ou seja, o conhecimento criminolgico tornou-se menos dedicado ao estudo da pessoa criminosa, mas se manteve atre-lado ao paradigma etiolgico, alm de permanecer aceitando como fonte exclusiva de dados as prprias agncias criminais, porque eram apenas as condies sociais das pessoas definidas

    como criminosas pelos servios de segurana pblica que eram estudadas (Baratta, 2002, p. 30-31).

    A grande transformao da criminologia se deu quando ela incorporou os avanos das teorias sociolgicas que se desen-volviam a partir da perspectiva da reao social, tais como as teorias interacionistas de Goffman e Becker, alinhando-se no mais ao paradigma etiolgico, mas ao do labelling approach enfoque do etiquetamento (Baratta, 2002, p. 85-92; Andrade, 2003, p. 198-203).

    Desse momento em diante, sistematizou-se uma nova criminologia, a criminologia crtica. Esta no mais tem como objeto de estudo a pessoa do criminoso, tampouco dedica a sua ateno s supostas causas sociais da delinquncia. A criminolo-gia crtica preocupa-se com mais vigor em questionar o como e o porqu de certas pessoas serem definidas e punidas como cri-minosas. A nova criminologia recusa-se assentir ideia de que o crime um mal e que seus motivos podem ser vislumbrados na pessoa do criminoso ou no seu meio social; denunciando essa fa-lcia, estabelece como tema fundamental de seu exame o papel das agncias de controle penal na construo da criminalidade (Andrade, 2003, p. 205-207; Baratta, 2002, p. 101-106).

    O conhecimento criminolgico-crtico, tendo redirecio-nado completamente os rumos da criminologia com a apropria-o das teorias sociolgicas do labelling approach, alimenta-se tambm das teorias conflituais como complemento ao enfoque do etiquetamento14, aliando-as, ainda, a uma interpretao das estruturas sociais reais (Baratta, 2002, p. 143-145).

    Com isso, a nova criminologia consegue explicar a quem, de fato, pertence o poder de definir crimes e criminosos, quem so os reais criminalizados nas sociedades atuais e como o siste-ma penal se efetiva como instrumento de controle social. Nessa inovadora perspectiva, criminoso no um indivduo diferente, anmalo, mas um status social atribudo por quem tem o poder de definir, status este desigualmente distribudo entre os indiv-duos da sociedade; a punio que o direito penal promove, por sua vez, no tem sua intensidade dosada com preponderncia do critrio da gravidade da ao e da transgresso da norma, mas com uma considerao quase absoluta da posio social do criminalizado. Enfim, voltam-se os olhos para o papel das pr-prias agncias pblicas encarregadas de promover a interveno penal e suas relaes com os grupos sociais interessados na cri-minalizao de outros grupos (Baratta, 2002, p. 161-164).

    13 [...] talvez possamos dizer que grupos at certo ponto seguros de seu prprio valor, grupos com uma autoestima relativamente estvel, tendem mais para a moderao e a tolerncia em relao aos outsiders; e por outro lado, aquelas sees de um grupo estabelecido em que os membros so mais inseguros, mais incertos acerca de seu valor coletivo, tendem mais aguda hostilidade na estigmatizao de grupos outsiders, a ser implacveis na luta pelo status quo e contra uma queda ou abolio dos limites entre estabelecidos e outsiders. Normalmente so eles quem mais tem a perder no caso de uma ascenso dos outsiders. Em Maycomb isto era evidente (Elias e Scotson, 2000, p. 212).14 Como explica Andrade: So as teorias conflituais (Coser, Simmel, Turk, Quinney), contudo, que iro desenvolver a dimenso do poltico no interior do paradigma da reao social, reconduzindo-a das estruturas paritrias dos pequenos grupos e dos processos informais de interaes que se desenvolvem no seu interior s estruturas gerais da sociedade e aos seus conflitos de interesse e hegemonia que aparecem como princpio explicativo fundamental dos processos de criminalizao (2003, p. 213).

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    71Da sociologia do desvio criminologia crtica: os indgenas de Mato Grosso do Sul como outsiders

    O sistema penal e sua inevitvel seletividade

    O sistema penal, em verdade, no visa a combater a crimi-nalidade e promover a proteo de bens jurdicos relevantes: esses so apenas os seus objetivos declarados. No fundo, o sistema pe-nal busca perpetuar desigualdades existentes e manter as classes subalternas em posio de subordinao, revigorando a estrutura vertical-autoritria da sociedade (Santos, 2010, p. 5-6).

    Por meio da criminalizao primria15, levada a efeito pela definio legal de crimes e penas, e da criminalizao secund-ria16, posta em prtica por todo o aparentemente neutro sistema de justia criminal polcia, justia e crcere , excluem-se os que j se encontram em desvantagem de poder nas relaes sociais17, viabilizando-se a reproduo da ordem vigente, com a preserva-o dos poderes estabelecidos, em prol dos grupos sociais hege-mnicos (Baratta, 2002, p. 175-176; Santos, 2010, p. 7-9).

    A seletividade do sistema penal impregna todas as fa-ses da criminalizao. Sem dvida alguma, a criminalizao secundria atinge poro desprezvel de todos os fatos amol-dveis s descries hipotticas da criminalizao primria. Entra na cifra negra da criminalidade18 a esmagadora maio-ria das infraes delituosas, cometidas em quantidade deveras impossvel de ser precisada em nmeros (Zaffaroni et al., 2006, p. 43-44):

    A criminalizao primria um programa to imenso que nun-ca e em nenhum pas se pretendeu lev-la a cabo em toda a sua extenso, nem sequer parcela considervel, porque inimaginvel. A disparidade entre a quantidade de conflitos criminalizados que realmente acontecem numa sociedade e aquela parcela que chega ao conhecimento das agncias do sistema to grande e inevitvel que seu escndalo no lo-gra ocultar-se na referncia tecnicista a uma cifra oculta. As agncias de criminalizao secundria tm limitada capacida-de operacional e seu crescimento sem controle desemboca em uma utopia negativa. Por conseguinte, considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleo de criminalizao secundria apenas como realizao de uma parte nfima do programa primrio.

    Na criminalizao primria, no que diz respeito ao con-tedo da definio legal de crimes, denuncia Baratta (2002, p. 176) haver uma influncia dos valores morais da cultura indivi-dualista-burguesa. Reala-se, nessa linha, a repreenso de com-portamentos ofensivos ao patrimnio particular, principalmente aqueles comportamentos prprios dos grupos mais pobres e ex-cludos, ao mesmo tempo em que so pouco tipificados os des-vios do colarinho branco19, que so os comportamentos ilcitos tpicos das classes dominantes.

    Alm disso, h bem mais brechas nos j relativamente escassos tipos penais que incriminam as condutas imputveis s classes mais abastadas. Os integrantes destas classes possuem,

    15 Como definem Zaffaroni et al. (2006, p. 43), a criminalizao primria o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punio de certas pessoas. Trata-se de um ato formal fundamentalmente programtico: o deve ser apenado um programa que deve ser cumprido por agncias diferentes daquelas que o formulam. Em geral, so as agncias polticas que exercem a criminalizao primria [...].16 Enquanto a criminalizao primria (elaborao de leis penais) uma declarao que, em geral, se refere a condutas e atos, a criminalizao secundria a ao punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agncias policiais detectam uma pessoa que supe-se tenha praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na agncia judicial, que legitima tais iniciativas e admite um processo (ou seja, o avano de uma srie de atos em princpio pblicos para assegurar se, na realidade, o acusado praticou aquela ao) [...] (Zaffaroni et al., 2006, p. 43).17 Vive-se hoje a era da globalizao da tolerncia zero, do senso comum punitivo, da criminalizao da pobreza, da passagem do Estado-providncia que no Brasil jamais chegou a se consolidar ao Estado-penitncia, um tempo em que a diminuio da satisfao das necessidades sociais e econmicas das massas, como parte da poltica neoliberal, faz-se acompanhar de um recrudescimento dos servios de segurana pblica (Waqcuant, 2001, p. 30-38). um momento histrico em que os incapazes de consumir, os estranhos do mundo do consumo, so punidos por isso mesmo, tal como na reflexo de Bauman (1998, p. 59): Cada vez mais, ser pobre encarado como um crime; empobrecer, como produto de predisposies ou intenes criminosas abuso de lcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os pobres, longe de fazer jus a cuidado e assistncia, merecem dio e condenao como a prpria encarnao do pecado.18 Chama-se cifra negra da criminalidade a defasagem que medeia entre a criminalidade real (isto , as condutas criminalizveis efetivamente praticadas) e a criminalidade estatstica (oficialmente registrada). [...] a criminalidade estatstica no , em absoluto, um retrato da criminalidade real, mas o resultado de um complexo processo de refrao existindo entre ambas um profundo defasamento no apenas quantitativo, mas tambm aqui qualitativo. Pois o efeito-de-funil ou a mortalidade de casos criminais operada ao longo do corredor da delinquncia, isto , no interior do sistema penal, resulta de ampla margem de discricionariedade seletiva dos agentes do controle (Andrade, 2003, p. 262-263).19 Sobre a criminalidade de colarinho branco, diz Andrade (2003, p. 261): J em seu clssico artigo White-Collar Criminality, Sutherland (1940) mostrava, com apoio de dados extrados das estatsticas de vrios rgos americanos competentes em matria de economia e comrcio, a impressionante proporo das infraes a normas gerais praticadas neste setor por pessoas colocadas em posio de alto prestgio social, bem como analisava as causas do fenmeno, sua ligao funcional com a estrutura social e os fatores que explicavam a sua impunidade. Posteriormente, em um artigo sugestivamente intitulado Is White-Collar Crime Crime?, Sutherland (1945), mostrando uma viso mais sofisticada da criminalidade do que a do paradigma etiolgico que antecipava at a viso do labelling indagava precisamente se, devido quela impunidade, eram crimes os crimes de colarinho branco. Instaurada assim ficava a respectiva investigao. Por outro lado, as propores da criminalidade de colarinho branco ilustradas por Sutherland e que remontavam aos decnios precedentes, provavelmente aumentaram desde que ele escreveu seu artigo. Elas correspondem a um fenmeno criminoso caracterstico no s dos Estados Unidos da Amrica do Norte, mas de todas as sociedades.

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    destarte, mais chances de escapar da punio; j os tipos penais relativos a delitos patrimoniais so mais fechados, possuem malhas mais justas e ainda so acompanhados de majorantes quase sempre incidentes, sendo difcil, por exemplo, que se co-meta um furto simples (Baratta, 2002, p. 176).

    Por outro lado, ainda quanto seletividade da crimi-nalizao primria, mas no que diz respeito aos no conte-dos da definio legal de crimes, por meio do princpio da fragmentariedade do direito penal viabiliza-se o afastamento dos comportamentos que esto especialmente implicados no processo de acumulao de riquezas da zona de interveno penal. , por exemplo, sob o argumento de no ser adequado natureza do direito penal, enquanto ultima ratio, que se reluta em incriminar a degradao ambiental por parte das indstrias, as violaes a garantias trabalhistas fundamentais, as improbi-dades administrativas, os crimes financeiros, etc. Desse modo, aes tpicas de grupos dominantes, prejudiciais sobretudo s classes socialmente mais dbeis, permanecem penalmente imu-nes (Baratta, 2002, p. 176).

    Na criminalizao secundria, o cunho seletivo do siste-ma penal nitidamente acentuado. O papel das polcias, juzes e demais operadores do Direito na construo de um certo perfil de criminalidade e de criminosos indisfarvel. Assinala Vera Regina Pereira de Andrade (2003, p. 260):

    A lei penal configura to s um marco abstrato de deciso, no qual os agentes do controle social formal desfrutam ampla margem de discricionariedade na seleo que efetuam, desen-volvendo uma atividade criadora proporcionada pelo carter definitorial da criminalidade. Nada mais errneo que supor (como faz a Dogmtica Penal) que, detectando um comporta-mento delitivo, seu autor resultar automtica e inevitavel-mente etiquetado. Pois, entre a seleo abstrata, potencial e provisria operada pela lei penal e a seleo efetiva e defi-nitiva operada pelas instncias de criminalizao secundria, medeia um complexo e dinmico processo de refrao.

    Indubitavelmente, a seletividade da criminalizao se-cundria constituda mais de omisses na funo de qualificar alguns fatos concretos como criminosos e apur-los como tal do que de aes punitivas efetivas, at porque esse o nico modo de proceder praticvel pelas agncias, de modo que a impunidade sempre a regra e a criminalizao secundria, a exceo (Zaffaroni et al., 2006, p. 44-45). Criminalizar, afinal, tudo o que se pode enquadrar na criminalizao primria algo

    impensvel e absolutamente inexequvel. Alis, nem seria dese-jvel que as agncias criminais agissem de modo a criminalizar tantas pessoas quantas cometessem crimes, j que dessa manei-ra, fatalmente, todos seriam os criminalizados, o que ensejaria o total engessamento social. O grande problema que, na impos-sibilidade de se punirem todos os crimes e todos os infratores, s agncias criminais resta o poder de decidir efetivamente quem so, no os criminosos, mas os criminalizados, para a desventura dos socialmente mais vulnerveis (Zaffaroni et al., 2006, p. 44-45). Logo, o sistema penal estrutura-se justamente para que a legalidade no seja observada integral e indiscriminadamente (Andrade, 2003, p. 265).

    Ante a constante divulgao de crimes grosseiros co-metidos por pessoas marcadas por traos de baixa classe social, etnias minoritrias ou at mesmo de aparncia fsica fora do padro de beleza dominante, transmite-se a ideia de que es-tes so os nicos crimes cometidos e estas, as nicas pessoas criminosas. A comunicao social concorre, assim, com outros fatores para criar na representao coletiva esteretipos do criminoso. Gera-se uma imagem pblica do delinquente com componentes de classe social, tnicos, etrios, de gnero e es-tticos (Zaffaroni et al., 2006, p. 46). E o esteretipo prepon-dera sobre qualquer outro critrio de seletividade da crimina-lizao levada a efeito por todo o sistema de justia criminal20. Aquilo que a criminologia positivista concebia como causas da delinquncia deformidades fsicas, esttica desfavoreci-da etc. constitui, em vez disso, as causas da criminalizao (Zaffaroni et al., 2006, p. 46).

    Como explicam Zaffaroni et al., a criminalizao recai sobre as pessoas vistas com o figurino social de delinquente (2006, p. 47):

    A inevitvel seletividade operacional da criminalizao secun-dria e sua preferente orientao burocrtica (sobre pessoas sem poder e por fatos grosseiros e at insignificantes) pro-vocam uma distribuio seletiva em forma de epidemia, que atinge apenas aqueles que tm baixas defesas perante o poder punitivo, aqueles que se tornam mais vulnerveis criminali-zao secundria porque: (a) as suas caractersticas pessoais se enquadram nos esteretipos criminais; (b) sua educao s lhes permite realizar aes toscas e, por conseguinte, de f-cil deteco e; (c) porque a etiquetagem suscita a assuno do papel correspondente ao esteretipo com o qual seu com-portamento acaba correspondendo ao mesmo (a profecia que se autorrealiza).

    20 Para Baratta (2002, p. 178): A posio social do suspeito, investigado ou acusado, por exemplo, geralmente tomada como questo decisiva para o tratamento que recebe do sistema de justia criminal: existe uma tendncia por parte dos juzes de esperar um comportamento conforme lei dos indivduos pertencentes aos estratos mdios e superiores; o inverso ocorre com os indivduos provenientes dos estratos inferiores. Outra situao interessante informada por Baratta (2002, p. 178): Considerando, enfim, o uso de sanes pecunirias e sanes detentivas, nos casos em que so previstas, os critrios de escolha funcionam nitidamente em desfavor dos marginalizados e do subproletariado, no sentido de que prevalece a tendncia a considerar a pena detentiva como mais adequada, no seu caso, porque menos comprometedora para seu status social j baixo, e porque entra na imagem normal do que frequentemente acontece a indivduos pertencentes a tais grupos sociais, enquanto, ao contrrio, para reportar as palavras de um juiz pertencente a um grupo sobre o qual foi dirigida uma pesquisa, um acadmico na priso [...] , para ns, uma realidade inimaginvel. Assim, as sanes que mais incidem sobre o status social so usadas, com preferncia, contra aqueles cujo status social mais baixo.

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    Quanto a esse ltimo aspecto o da assuno do papel correspondente ao esteretipo , o direcionamento da crimi-nalizao aos grupos sociais marginalizados, de fato, tem como efeito, at pelo fato de envolver a aplicao de sanes estig-matizantes, a consolidao de carreiras criminosas entre essas pessoas que ficam mais expostas ao sistema penal. Cuida-se do fenmeno tambm chamado de delinquncia secundria, que envolve o mecanismo tratado pelos socilogos do labelling approach como self-fullfilling-prophecy profecia que se au-torrealiza (Baratta, 2002, p. 179):

    A constituio de uma populao criminosa como minoria marginalizada pressupe a real assuno, a nvel de compor-tamento, de papis criminosos por parte de um certo nmero de indivduos, e a sua consolidao em verdadeiras e prprias carreiras criminosas. E j vimos que isto se verifica, sobretu-do, como tem sido colocado em evidncia por alguns tericos americanos do labelling approach, mediante os efeitos da estig-matizao penal sobre a identidade social do indivduo, ou seja, sobre a definio que ele d de si mesmo e que os outros do dele. A drstica mudana de identidade social como efeito das sanes estigmatizantes tem sido posta em evidncia como se recordar por Lemert e por Schur. A teoria por eles construda demonstra a dependncia causal da delinquncia secundria, ou seja, das formas de reincidncia que configuram uma verdadeira e prpria carreira criminosa, dos efeitos que sobre a identidade social do indivduo exerce a primeira condenao; isto coloca uma dvida de carter fundamental sobre a possibilidade mes-ma de uma funo reeducativa da pena.

    A atestar a tese da consolidao das carreiras criminosas existe o fato de a maioria da populao carcerria ser constituda de reincidentes.21 E claro que so membros das classes pobres, praticantes dos crimes mais toscos, como dito por Zaffaroni, os mais sujeitos delinquncia secundria, pois so justamente a eles que as penas que mais marcas trazem personalidade em especial a de priso so impingidas. Paradoxalmente, como diz uma expresso que j se tornou um clich, o prprio sistema penal que, utilizando penas que supostamente se propem a reeducar, atua como escola do crime (Baratta, 2002, p. 178-

    181). Opta-se, no entanto, por persistir em tentar reeducar o criminoso excludo sob a falcia de reinclu-lo na sociedade, ao invs de tentar modificar a prpria lgica excludente com que opera a sociedade (Baratta, 2002, p. 186).

    Estigmatizao, rotulao, marginalizao e criminalizao dos indgenas de Mato Grosso do Sul

    O contexto de estigmatizao, rotulao, marginalizao e criminalizao que envolve os grupos indgenas de Mato Gros-so do Sul pode ser examinado enquanto exemplo de incidncia das principais premissas tericas de Goffman, Becker, Elias e es-tudiosos da criminologia crtica.

    Dentro dos limites territoriais do Estado se concentra a segunda maior populao indgena do Brasil mais de 73 mil indgenas , menor apenas que a do Amazonas (IBGE, 2011), mas com as peculiaridades da altssima concentrao demogrfica nos aldeamentos e da situao de extrema miserabilidade, com carncias no s de sustento como tambm de reproduo de suas culturas. Guarani e Kaiow so as etnias mais numerosas e mais afetadas.22

    Em Mato Grosso do Sul, entre ndios e no ndios so mantidas relaes extremamente instveis, marcadas cotidiana-mente por discriminaes e violncia.

    O cenrio de alta conflituosidade liga-se ao processo de colonizao do Estado durante todo o sculo XX. Dcada a dca-da, os indgenas foram expulsos das terras que tradicionalmente ocupavam e confinados em pequenas e dispersas reservas, que atualmente se encontram acostadas s zonas urbanas.23

    As terras das quais os indgenas foram expulsos esto lo-calizadas hoje em grandes propriedades rurais da regio, muito propagandeadas, pelo Governo Estadual e pela mdia local, como as grandes responsveis pela sustentao econmica do Estado o que fomenta na populao no indgena certo sentimento de idolatria pelo agronegcio. Algumas dessas terras j foram

    21 O Conselho Nacional de Justia estima que, atualmente, 70% dos aprisionados no Brasil sejam reincidentes (Portal CNJ, 2011).22 Oficialmente, reconhecem-se as seguintes etnias presentes em Mato Grosso do Sul: Atikum, Guarany (Kaiw e Nhandwa), Guat, Kadiwu, Kamba, Kinikinawa, Ofai, Terena e Xiquinato (Funai, 2011; Biblioteca IBGE, 2011; Instituto Socioambiental, 2014).23 O confinamento dos indgenas em Mato Grosso do Sul resultou de um longo e tortuoso processo de colonizao no sculo passado. Entre 1915 e 1928, para desocupar e viabilizar a colonizao do territrio ento mato-grossense no qual os indgenas viviam, o Governo Federal demarcou 18.124 hectares de terras. Essas terras demarcadas eram divididas em espaos reduzidos e afastados uns dos outros; nelas foram reunidos ndios de todo o Estado, de diversas etnias. Era o primeiro de vrios atos pblicos de sujeio dos ndios aos planos de explorao econmica do territrio dessa regio. Na dcada de 40, em meio marcha para o oeste de Vargas (Garfield, 2000, p. 15-18), as terras povoadas pelos Guarani-Kaiow foram vendidas como se fossem terras devolutas, sendo que os ndios foram forados a deixar os locais de suas moradias e a se recolher a espaos pequenos de terra. A partir da dcada de 50, vieram as fazendas agropecurias e, com elas, o desmatamento, razo pela qual os grupos indgenas refugiados nas matas foram obrigados a se encaminhar s reservas. Na dcada de 70, veio regio a produo de soja, agravando-se o problema com a mecanizao da produo agrcola. E a situao ficou ainda pior com a instalao das usinas de cana-de-acar a partir da dcada de 80, o que se intensificou na dcada de 90 e continua ocorrendo at hoje. Atualmente, tendo a populao indgena praticamente dobrado desde a dcada de 20, metade dos ndios Kaiow-Guarani que esto nas reservas demarcadas encontram-se concentrados em trs terras Dourados, Amamba e Caarap que tm, juntas, um total de 9.498 hectares de terra. Essas informaes so fornecidas com base no item Breve panorama das transformaes histricas do MS, que integra o trabalho Situao dos detentos indgenas no Estado de Mato Grosso do Sul (CTI, 2008, p. 15-19).

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    demarcadas pela Funai, aguardando apenas homologao do Governo Federal para a sua restituio aos indgenas; outras so objeto de estudos antropolgicos que visam ao reconhecimento e delimitao dos territrios indgenas; outras, ainda, so ob-jeto de duradouras disputas judiciais.24

    H um generalizado sentimento de repulsa e descon-fiana por parte da populao no indgena. Ironicamente, os indgenas que so vistos por ela como invasores; em relao a eles, os no indgenas s alimentam expectativas ruins h al-gumas geraes.

    O fato de as reservas indgenas, altamente populosas, margearem as cidades do sul do Estado propicia o aumento da tenso entre indgenas e no indgenas. Os Guarani-Kaiow, por exemplo, que vivem na reserva indgena de Dourados, entram na zona urbana, tornando-se parte de seu dia a dia interagir com a populao no indgena, sendo que alguns deles at mesmo pos-suem uma vida na cidade, com atividades laborais e estudantis, e outra na aldeia. Isso, ao contrrio do que se poderia imaginar, no favorece um contato amistoso; em verdade, indgenas rela-tivamente urbanizados esto mais sujeitos a diversas atitudes discriminatrias. Por outro lado, grupos indgenas que ocupam fazendas onde se encontram suas terras ainda no demarcadas ficam mais suscetveis a atos mais graves de violncia, como se-questros e assassinatos.25

    A figurao estabelecidos-outsiders que pe em po-los extremos, respectivamente, no indgenas e indgenas de Mato Grosso do Sul se estabelece por quatro vias bsicas, as quais, em sua concretizao, de to entrelaadas, chegam a se confundir: estigmatizao, rotulao, marginalizao no sentido de excluso, inclusive com o emprego de violncia e criminalizao.

    A estigmatizao dos indgenas de Mato Grosso do Sul severa. corrente entre os no indgenas definir os indgenas como preguiosos, vadios, mal-educados, incultos, no afeitos ao trabalho, inadaptados ao sistema produtivo e socieda-de atual, sujos, desobedientes e falsos ndios por vestirem roupas normais e no viverem (n)da floresta. comum ainda assacar aos indgenas rtulos que os sugerem como transgres-sores morais: no confiveis, ladres, estupradores, alcolatras, drogados, aproveitadores de programas assistenciais e desestru-

    turados em sua organizao familiar. No meio no indgena, os indgenas so naturalmente chamados de bugres num sentido pejorativo, estando implcita no termo toda essa carga de atri-butos depreciativos.

    Esses so os estigmas mais frequentemente invocados pelos no indgenas como explicao para o quadro de pen-ria sociocultural que afeta os prprios indgenas e so tambm associados alta taxa de criminalidade em que supostamente incorrem. Os indgenas so etiquetados, assim, de modo que re-presentem os destruidores de si mesmos responsveis por seu prprio caos sociocultural , um entrave ao progresso e uma ameaa segurana, o que permite aos no indgenas conside-rarem a si mesmos sem culpa pelos problemas indgenas e, ao mesmo tempo, fundamenta suas atitudes de segregao.

    Casos de crimes cometidos pelos indgenas so divulgados com bastante nfase na imprensa local, sendo costumeiramen-te destacada a condio de indgena do infrator, que, assim, vinculada criminalidade.26 Ultimamente, surgiu um notrio esforo por parte de rgos de segurana pblica e da mdia na exposio de terras indgenas localizadas no sul do Estado como rotas do trfico, dando-se uma enorme e injustificvel relevncia a pequenssimas apreenses de drogas nesses locais, envolvendo, em quase todos os casos, indgenas que possuam drogas para consumo prprio ou serviam de ocasionais mulas. As operaes investigativas e o noticirio policial sugerem que as comunidades indgenas so facilmente aliciveis por trafi-cantes da fronteira e, portanto, representam um risco grande e constante segurana da coletividade.27

    Quanto violncia empregada contra os indgenas pe-los no indgenas, o quadro escandalosamente grave. Segundo pesquisa do Conselho Indigenista Missionrio (2010), entre os anos de 2005 e 2008 foram registrados 151 assassinatos de ind-genas em Mato Grosso do Sul; s em 2009, foram praticados 33, isto , mais da metade de todas as ocorrncias de homicdios de indgenas do ano no Brasil; no mesmo ano, registraram-se ainda nove homicdios tentados, um nmero expressivo de ameaas de morte e de outras ordens em torno de disputa e ocupao de terras, sendo que 24 indgenas levaram aos rgos oficiais esse nmero representa uma quantia nfima em relao realidade no informada a notcia de que foram agredidos fisicamente.

    24 Uma exposio clara sobre o desenrolar da destituio das terras indgenas e da luta desses povos para reaver essas terras em Mato Grosso do Sul como de resto em todo o Brasil pode ser encontrada em Povos indgenas e a lei dos brancos (Arajo et al., 2006, p. 24-28).25 Enumerar, aqui, os atentados contra os indgenas algo impossvel, dada a enorme quantidade de ataques que eles sofrem dia a dia no Estado, nem todos levados ao conhecimento das autoridades. Um caso bem representativo e recente do dia 18 de novembro de 2011 pode ser aqui mencionado apenas para que se compreenda o modo como esses atentados so promovidos: no acampamento Guaiviry, onde cerca de 100 indgenas Kaiow-Guarani se encontram, localizado em fazendas do sul do Estado, 40 (quarenta) homens encapuzados, altamente armados, chegaram em camionetes, invadiram o local dos abrigos dos indgenas, executaram o lder Nsio Gomes na frente dos seus parentes, colocaram seu corpo na carroceria de um dos veculos e fugiram, levando sequestrados ainda outros indgenas. A terra foi objeto de estudo antropolgico cujo laudo ainda no havia sido publicado, e os ndios j haviam noticiado ameaas do proprietrio da fazenda (Conselho Indigenista Missionrio, 2011).26 Apenas para ilustrar, de se mencionar uma recente notcia publicada em um popular site de Amamba, municpio onde esto localizadas algumas importantes terras indgenas, com a foto de um indgena e a manchete em letras garrafais Indgena preso pelo Exrcito por trfico de drogas Amambai Notcias (2011).27 Como exemplo, cite-se NE10 (2011).

  • Cincias Sociais Unisinos, So Leopoldo, Vol. 50, N. 1, p. 65-76, jan/abr 2014

    75Da sociologia do desvio criminologia crtica: os indgenas de Mato Grosso do Sul como outsiders

    Em relao criminalizao dos indgenas, a situao tam-bm alarmante. O Mato Grosso do Sul a unidade da federao que possui, de longe, o maior nmero de ndios encarcerados em suas penitencirias. Segundo pesquisa empreendida pelo Centro de Trabalho Indigenista em parceria com a Universidade Catlica Dom Bosco (CTI, 2008, p. 33-50), em 2006 existiam pelo menos 103 processos criminais em razo dos quais havia ndios presos em Mato Grosso do Sul obviamente, com uma mdia maior que a de um preso por processo , sendo que 68 destes processos eram da comarca de Dourados. De todas essas detenes, 63% eram pro-venientes de priso em flagrante, 28% de prises preventivas e apenas 3% de sentena condenatria,28 o que demonstra, irrefu-tavelmente, que a priso cautelar contra os indgenas no tem sido usada com a observncia da sua necessidade e excepcionalidade.

    A taxa de encarceramento dessa populao e encarce-ramento cautelar , como se v, demasiadamente alta. No caso Guarani-Kaiow, chamam a ateno alguns casos em particular, em que a criminalizao tamanha a ponto de pr fim a deter-minados agrupamentos indgenas e nos quais os indgenas so tratados, na persecuo penal, com um rigor anormal, indisfar-avelmente maior do que o verificado nos casos de investigados e acusados de crimes contra os indgenas.29

    O panorama , sem dvida, de injustia, dominao e ex-cluso dos indgenas sul-mato-grossenses, prprio de uma au-tntica figurao estabelecidos-outsiders, na qual as tcnicas de estigmatizao, o recurso violncia propiciado pelo alto grau de insegurana que no indgenas tm em relao perpetua-o da posse das terras pertencentes aos indgenas e o uso da criminalizao contra os outsiders se fundem.

    A violncia que os indgenas sofrem de no indgenas, especialmente das instncias oficiais repressoras da criminali-dade, demonstrativa de que os ndios so, de fato, tratados

    como outros, desviantes, pessoas de menor valor humano, su-balternos e inimigos das classes ou grupos hegemnicos locais. um absurdo quadro de opresso tnica, ignorado, apoiado e, por vezes, provocado pelos agentes estatais.30

    A marginalizao e a concepo dos indgenas como des-viantes cumpre a funo de manter o estgio atual de injustia na distribuio de terras no Estado e preservar o esquema de poderes estabelecidos, em benefcio principalmente do grupo mais poderoso entre os no indgenas locais os proprietrios rurais. Consegue-se, desse modo, retardar o atendimento premente necessidade de que sejam demarcadas as terras que antes habitavam e das quais hoje dependem para a sobrevivncia biolgica e cultural de seus povos.

    Estigmatizando indgenas a fim de conquistar o apoio so-cial necessrio para manter e aumentar seu poder, no indgenas afetam seu sentimento de autoestima, dificultam a formao de laos coerentes entre seus membros, reduzem-lhes as chances de vida, negam-lhes a dignidade que reconhecem a si, privam-nos de qualquer valor humano. Indgenas, imensamente mais vul-nerveis que no indgenas nesse local, sofrem as mais brbaras violaes aos seus direitos humanos.

    Normalmente, estabelecidos e outsiders envolvem-se num duplo vnculo de dependncia, sendo o contato entre eles neces-srio. H, todavia, excepcionais casos em que esse duplo vnculo inexiste, o que se d quando o diferencial de poder to grande que os outsiders passam a no ter importncia alguma para os estabelecidos: simplesmente esto em seu caminho e, com muita frequncia, so exterminados ou postos de lado at perecerem (Elias e Scotson, 2000, p. 32). Como exemplifica o prprio Norbert Elias, o caso dos indgenas latino-americanos (Elias e Scotson, 2000, p. 32). E o caso, em especial, dos indgenas Guarani-Kaio-w de Mato Grosso do Sul, lugar onde o discurso do progresso vela um projeto genocida at ento tristemente bem sucedido.

    28 No trabalho Situao dos detentos indgenas no estado de Mato Grosso do Sul (CTI, 2008, p. 34), ressalva-se que, por tramitarem sob segredo de justia, dezesseis outros processos crimes sexuais envolvendo menores no foram computados, no se podendo saber com preciso quantos ndios estavam presos em razo deles. No h dados oficiais quanto a isso porque, por mais estarrecedor que parea, no existe um sistema pblico de identificao e registro de indgenas presos, apesar de constituir uma obrigao legal do Estado fornecer assistncia jurdica a esses detentos por meio da Funai. Como a pesquisa do CTI foi feita, na verdade, com base em consulta somente aos dados oficiais disponibilizados pelas agncias pblicas do sistema penal, de se esperar, naturalmente, que a taxa de aprisionamento dos indgenas seja muito maior do que a aqui exposta.29 O caso mais revelador desse processo criminalizante o de Passo Piraju, no municpio de Dourados. Ali simplesmente se criminalizou praticamente toda a comunidade e em especial as lideranas, no intuito de desmantelar e expulsar o grupo de uma nfima parte de seu territrio tradicional retomado. Como fato mais recente podemos citar a armao feita por policiais que levou priso cinco membros desta comunidade, em fevereiro de 2009. A apreenso e a busca das casas aconteceram de forma violenta e truculenta (Heck, 2010, p. 24-25). Outro exemplo o de Kurusu Amb. As lideranas esto sendo criminalizadas e uma delas teve que deixar sua comunidade, buscando segurana. Neste local houve prises de vrias lideranas desde 2007, quando quatro delas foram condenadas a 17 anos e meio de recluso. Foi um processo relmpago, que desde o inqurito at a condenao levou apenas sete meses, quando casos envolvendo assassinatos de lideranas indgenas levam dezenas de anos para serem concludos ou simplesmente prescrevem, como o caso do assassinato de Maral de Souza Tupi. Um indicador dessa agilidade de condenao indgena so os mais de 200 ndios nos presdios do cone sul do Mato Grosso do Sul, o maior nmero de indgenas encarcerados num estado no pas (Heck, 2010, p. 25).30 Os assassinatos praticados possuem agravantes como a priso arbitrria, a tortura, o uso de meios cruis, a impossibilidade de defesa das vtimas e estas so as expresses de um racismo institucional contra os povos indgenas em Mato Grosso do Sul. impossvel imaginarmos que a lista de assassinatos, que se renova a cada ano, seja um mero reflexo de fatos isolados, ou que eles sejam apenas sintomas de um desvio na conduta de alguns indivduos. Esse tipo de violncia est inegavelmente relacionado s instituies sociais e s prticas contemporneas de discriminao e segregao social protagonizadas, em grande medida, pelos prprios rgos pblicos quando participam diretamente de aes de despejo, quando facilitam ou incitam invases de reas indgenas, quando discriminam indgenas presos, que passam anos sem ateno jurdica adequada e quando sequer asseguram o direito a um intrprete quando vo a julgamento (Bonin, 2010, p. 17-18).

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    Cincias Sociais Unisinos, So Leopoldo, Vol. 50, N. 1, p. 65-76, jan/abr 2014

    Igor Henrique da Silva Santelli, Antonio Guimares Brito

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    Submetido: 26/01/2012Aceito: 25/11/2013