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    * Este artigo constitui uverso alterada de miapresentao no ST 28 Re

    Amerndias: Sujeitos, Sares, Discursos, em 201034 Encontro Anual da pocs. Agradeo a DominGallois, Renato SztutmBeatriz Perrone-Moyss, Mcela Coelho de Souza e rina Vanzolini pela leituraverses anteriores deste t

    e suas preciosas contribui

    ** Antroploga, professna Unifesp e pesquisadassociada ao CEstA (Cede Estudos Amerndios) da e Pesquisa Temtica FapRedes Amerndias. [email protected]

    Vetorespor evaina cosmopolticaGuarani*

    Porand vaivectors in Guarani

    cosmopolitics

    Valria Macedo**

    Resumo: Este texto se volta para articulaes entre chefia e xama-nismo na cosmopoltica guarani, particularmente na conjuntura con-tempornea de adensamento de relaes institucionalizadas com osno-indgenas. Seu ponto de partida so contrastes enunciados pelos

    Guarani Mbya e Nhandva nas regies Sul e Sudeste do pas, entreas posies de tami(avs e xams) e xondro(auxiliares, guerreiros,guardies ou mensageiros). A servio do tami, modalidades de xond-ropodem incorporar foras ligadas animalidade ou restritas ao planoterrestre. Por sua vez, aos tamicabem excorpor-las, extraindo-asdos corpos por meio de capacidades xamnicas vinculadas a domnioscelestes. Oposies complementares associadas a ambas posiesremetem a vetores ou princpios agentivos classificados como vai(feio, ruim, vinculado predao e perecibilidade) epor (belo,bom, vinculado ao que incorruptvel e imperecvel) atuantes emdiferentes escalas da socialidade guarani.

    Palavras-chave: Guarani; Cosmopoltica; Chefia.

    Abstract: This article focuses on articulations between chieftainshipand shamanism in Guarani cosmopolitcs, particularly in the contem-porary situation in which institutionalized relationships involvingIndians and non-Indians have become denser. The argument beginswith contrasts stated by the Guarani in the South and Southeast re-gions of the country between the positions of tami(grandfathers andshamans) and xondro(assistants, warriors, guardians or messengers).Serving the tami, some xondromodalities may incorporate forcestied to animality or restricted to earthly domains. In turn, it is the task

    of the tamito extract forces of this kind from bodies using shamaniccapacities linked to celestial domains. Complementary oppositionsassociated with both positions are connected with vai(ugly, bad,tied to predation and extinction) andpor(beautiful, good, tied toincorruption and everlasting) vectors or agency principles that actin different scales of Guarani sociality.Key words: Guarani; Cosmopolitics; Chieftain.

    Tellus,ano 11, n. 21, p. 25-52, jul./dez. 2011Campo Grande, MS

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    O itinerrio deste texto toma como ponto de partida a articulao dosprincpios vai(feio, ruim, vinculado predao e perecibilidade) e por(belo, bom, vinculado ao que incorruptvel e imperecvel) na concepode pessoa entre os Guarani. Na seo seguinte, volta-se para a configuraode coletivos, abordando a centralidade do tami (av; xam) no domnio

    poltico tradicional. Discorre ento sobre diferentes modalidades de xondro(auxiliares, guerreiros, guardies ou mensageiros) e suas vinculaes com otami, buscando, em seguida, pensar ambas as posies no contexto contem-porneo, com o protagonismo crescente dos caciques e novas lideranas coma multiplicao de projetos, polticas e eventos aps a Constituio de 1988.Por fim, a ltima seo constitui uma reflexo sobre a transversalidade dosprincpios vaie porem diferentes escalas da socialidade guarani e a multi-plicidade de seus equacionamentos.

    ***Uma das narrativas guarani sobre os habitantes primordiais da primeira

    terra conta que o demiurgo e seu irmo engravidaram uma mesma mulher,Nhandexy (Nossa Me), no ventre da qual as duas pores de smen foramdepositadas de modo a permanecerem diferenciadas, replicando a proximida-de e descontinuidade entre ambos os irmos e antagonistas1. Os Guarani comquem convivi no litoral paulista2tambm contam que, enquanto o demiurgoNhanderu Ete3(Nosso Pai Verdadeiro/Primordial) criava com seu soproos seres e coisas deste mundo, seu irmo Xari procurava fazer o mesmo demodo a super-lo, mas acabava se atrapalhando e fazendo seres imperfeitos;por exemplo, a galinha (uru), em que ele se esqueceu de revestir o pescoo.

    Dizem que os brancos, comumente chamadosjurua(literalmente boca comcabelo), so obra do sopro de Xari, enquanto os Guarani foram sopradospor Nhanderu Ete4.

    1Esta narrativa foi registrada por Pierre Clastres (2003) e citada por Tania Stolze Lima (2005,p. 131).2O campo etnogrfico que subsidia este texto corresponde minha pesquisa de doutorado,realizada entre 2005 e 2009, cujo trabalho de campo foi centrado na Terra Indgena do RibeiroSilveira, incidente nos municpios paulistas de Bertioga e So Sebastio, mas incluiu visitasa aldeias na capital e contato com moradores de outras aldeias no Sul e Sudeste do pas, emrazo do intensofluxo de pessoas entre elas que tambm inclui partes do Paraguai, Argentinae Uruguai. Portanto, expresses, narrativas e reflexes dos Guarani aqui apresentadas dizem

    respeito a pessoas que circulam nesse complexo de aldeias de maioria Mbya, mas que incluiNhandva. No diz respeito aos Kaiova e Nhandva habitantes do Mato Grosso do Sul, quecompartilham muitos aspectos cosmolgicos com os Guarani no Sul e Sudeste, mas no fazemparte da rede de trocas, visitaes e casamentos na regio em foco na minha pesquisa.3A maioria das palavras na lngua guarani oxtona e com pronncia aberta das vogais ee o, de modo que s acentuarei as paroxtonas. O dialeto Mbya foi priorizado na meno aestas palavras ou expresses guarani por ser Mbya a maioria de meus interlocutores em campo.4Ou por seu filho, Kuaray, o Sol, tambm chamado Nhanderu Nhamandu Papa Mir, enquantoseu pai tambm chamado de Nhanderu Papa Tenonde.

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    O princpio agentivo que caracteriza esse sopro o nhee, traduzidopor Cadogan (1959) como alma-palavra por corresponder lngua ou lin-guagem que singulariza as diferentes modalidades de sujeito que povoam omundo, com suas respectivas capacidades de entendimento e ao. A alma,na formulao do autor, remete portanto ao carter agentivo ou afectivo da

    linguagem, implicando modos de produzir e sofrer efeitos nas relaes entreos sujeitos. A particularidade de nhandvae- aqueles que somos ns, auto-denominao de todas as parcialidades guarani - est na provenincia de seunheeem domnios do cosmos onde nada perece ou tem fim, as moradas deNhanderu e Nhandexy kury(Nossos Pais e Mes seguido do coletivizadorkury, habitantes imortais desses domnios5), em contraste com o confinamentodos outros sujeitos no patamar terrestre ou em domnios prximos a yvy rupa,a superfcie da terra6. A matriz comum do nheeentre os Guarani codificadapelo compartilhamento de uma lngua e modulada por nomes enviados dessesvrios domnios aos que nascem, portanto associados a diferentes Nhanderu

    e Nhandexy,os quais so tambm respectivamente chamados nhee ru eteenhee xy ete(verdadeiros/primordiais pais e mes do nhee) (Macedo, 2011)7.O corpo dos Guarani tambm habitado, de modo permanente ou

    provisrio, por outros agentes que so confinados nesta terra. Um Mbya meexplicou que, quando algum fica sob certo ngulo de luz, aparecem quatrosombras.

    Uma que preta, outra mais clarinha, outra ainda mais clarinha e a clara.Essas sombras que se desprendem quando a gente morre, e cada esprito

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    Meus interlocutores identificam esses domnios num eixo vertical, dispostos em regiesindicadas como mais prximas ou distantes da superfcie da terra, assim como no nascente,poente, norte, sul e centro do cu. Mas para chegar a esses domnios preciso atravessar o mar,que se estabelece como uma dobra entre mundos, convergindo os eixos vertical e horizontal,ou remetendo a transversalidades (Macedo, 2011).6 Contudo, Nhanderue Nhandexykurypodem enviar seus filhos/extenses, nhee kury (demesma matriz que o nhee nos corpos dos Guarani), a esta terra no corpo de pssaros e algunsoutros animais. Portanto, os animais cujo dono (-ja) Nhanderuou Nhandexyno esto confinadosnesta terra. Os porcos do mato, por exemplo, so xerimbabo(animal de criao) de NhanderuMir.7O demiurgo aquele que engendrou a si mesmo e fez os demais Nhanderue Nhandexy NhanderuPapa Tenonde, ou simplemente NhanderuEte, como dito. Com frequncia, os GuaranimencionamNhanderuno singular sem acrescentar complemento, em referncia a esse demiurgoou mesmo ao conjunto de Nhanderue Nhandexy. Aqueles que foram humanos e adquiriramimortalidade se despindo da poro carnal do corpo ainda em vida, so chamados Nhanderu

    Mir(Mir pequeno, mas tambm pode ter conotao de sublime). Os cinco principaisNhanderue Nhandexyso casais (Ete e seus filhos Kuaray, Karai, Tup e Jakaira) e vivem emdiferentes moradas (tet) com outros nheeruete e nhee xy ete (incluindo nomes femininoscomo Takua, Jera, Jaxuka etc., e nomes masculinos como Vera, Jeguaka, Jejoko, Jaxy etc., cadaqual associado a um desses cinco domnios). O primeiro nome de um Guarani (que podem ternomes compostos) geralmente corresponde ao seu nhee ru ete(para os homens) ou sua nheexy ete(para mulheres). Para mais informaes sobre os nomes Guarani Mbya, ver Cadogan(1959) e Ladeira (2007), entre outros.

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    vai pegando espao. Quando a pessoa morre essas sombras saem e nheeporvai de volta.8

    Tais sombras mais escuras so vinculadas poro perecvel do cor-po o sangue, a carne , em contraste com a imperecibilidade da sombramais clara nhee por, vinculada aos ossos e respirao (e, por extenso,

    palavra, ao canto e ao sopro de tabaco). A poro agentiva que se desprendedo morto e fica confinada na terra chamada gue (literalmente, aquilo queteve sombra (), que j foi corpo). Na forma de gue que pode atacar outroscorpos, causando doenas e infortnios se no for extrada pelo xam ouainda em vida, tal poro agentiva chamada de nhee vai.

    Podemos assim reconhecer em diferentes escalas no ventre de Nhande-xy, em yvy rupa(a superfcie da terra) e na pessoa guarani foras interseccio-nadas que no devem se indiferenciar e cujos vetores podem ser identificadoscomo vaiepor. Outros classificadores recorrentes entre os Guarani encontramalguma analogia com este par de opostos, entre os quais mar(perecvel) e

    marey(imperecvel). No por acaso, a terra dos imortais, chamada de yvymarey, literalmente terra que no estraga, foi traduzida como Terra semMal dada a averso dos Guarani ao que se deteriora, associado mortalidadee ao confinamento. Outro par de opostos guaxu(grande) e mir(pequeno).

    Mir um diminutivo, mas com frequncia qualifica o que veio de Nhanderu.Por exemplo, alm de yvymarey, um nome dado terra dos imortais9 yvyjumir(pequena terra dourada). Outro diminutivo, i, tambm recorrentementeusado para adjetivar o que divino, na traduo de meus interlocutores.

    Mirou i so associados leveza, ao que intangvel e pode transitar noseixos horizontais e verticais do cosmos. Jguaxuno raro associado ao que

    terreno, vaidoso, arrogante, carnal e pesado, por isso predisposto ao confi-namento. Por exemplo, mbae guaxu(aquilo que grande) como chamam ocorpo do morto, que fica nesta terra enquanto nhee porvolta ao seu domnioceleste de origem. Guaxu tambm um dos nomes para o animal veado e umagria referente aos homossexuais. Outro classificador estreitamente associadoao que vem de Nhanderue, portanto, plenitude e imperecibilidade, ete(verdadeiro, sublime). Seu termo oposto pode ser considerado ranga(sombra,imagem, cpia), como chamam os seres que vivem nesta terra e tudo aquiloque tenta ou parece ser o que no . Assim, temos vai(feio, ruim), mar(pe-recvel),guaxu(grande) e ranga(cpia) em contraposio apor(belo, bom),marey(imperecvel), mir(pequeno) e ete(verdadeiro, sublime).

    Essa ltima srie associada pelos Guarani a Nhanderue Nhandexykury,enquanto a primeira aos animais, a guekurye aos donos (-ja) extrahumanos

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    Ladeira (2007) registrou depoimento semelhante.9Segundo Flvia Mello (2006), yvyju mire yvy mar ey constituem dois patamares diferencia-dos do cosmos. Mas essa diferenciao no consensual entre meus interlocutores guarani .

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    de diferentes domnios do patamar terrestre em que se realiza a humanidade.Tais princpios em oposio complementar so indissociveis da condiohumana guarani, composta de sopro (palavra, canto, respirao) e carne/sangue, associados respectivamente divindade e animalidade, isto ,aos eixos vertical e horizontal da alteridade. O desafio a que se prope este

    texto pensarfi

    guraes e reconfi

    guraes desse campo gravitacional emcoletivos guarani, com nfase nas posies de tamie xondro na regio emfoco na minha pesquisa, cuja etnografia est concentrada na Terra IndgenaRibeiro Silveira, habitada por Guarani Mbya e Nhandva que integram umcomplexo aberto de aldeias na regio Sul e Sudeste do Brasil, alm de partesda Argentina, Paraguai e Uruguai.

    A polissemia do tami e modulaes do xamanismo

    Entre os Guarani das regies Sul e Sudeste do Brasil, a designao maisrecorrente para xam nas interlocues em lngua portuguesa paje, emguarani, tami, que no domnio do parentesco significa av. No raro, otami lder de um grupo local e responsvel por uma opy, casa de rezas,na traduo corrente entre os Mbya, que constitui uma construo onde serealizam curas, cantos e outras celebraes voltadas para Nhanderu e Nhan-dexy kury.

    Ser reconhecido e se reconhecer como paj costuma envolver expe-rincias de adoecimento e adversidades a serem enfrentadas de modo a seadquirir mbaraete, que os Guarani traduzem como fortalecimento espiritual,

    ou simplesmente fora. Nos dias de hoje, xerami, meu av, tambmuma expresso usada para se referir aos pajs de qualquer idade ou vnculode parentesco. Por exemplo, chamam de xeramia um rapaz de 14 anos que um reconhecido xam em uma aldeia de Santa Catarina. E, assim comoexistem pajs que no so av, h pajs que no lideram parentelas e podemviver sozinhos ou em posio poltica marginal no grupo.Tami tambm umaexpresso com que se referem aos mais velhos de modo geral, mesmo os queno so considerados pajs. Xerami, a despeito de ser o modo conjugado naprimeira pessoa do singular de tami, uma expresso usada com frequnciapara se referir a qualquer tami, ou ento nhanerami kury, nossos avs, em

    referncia aos mais velhos.Igualmente polissmica a expresso nhanderu, nosso pai. Alm de

    seu uso no domnio do parentesco, utilizada para os pais imortais do nhee,como j comentado, e tambm uma designao alternativa para os pajs.Meu pai e meu av so, portanto, designaes recorrentes para aquelescom capacidade maximizada de conexo com os pais e mes imortais do nhee.Os vnculos do nhee,por sua vez, no espelham o parentesco no domnio so-

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    ciolgico, ou no eixo horizontal da existncia. Ou seja, em uma famlia cujosirmos compartilham o mesmo pai e me, a vinculao cosmolgica de seusrespectivos nheedependem de seus nomes. Irmos com o mesmo nome (porex., ambos se chamam Tup, ou Karai etc.) tm o nheeoriundo do mesmolugar, pois tm o mesmo nhee ru ete(pai verdadeiro-imortal do nhee), mas

    irmos com diferentes nomes tm diferentes pais do nhee, e, por extenso,diferentes provenincias e destinos aps a estadia nesta terra. A questo daancestralidade apresenta, portanto, maior complexidade no caso guarani,em que cada sujeito o ponto articular entre o plano sociolgico e o planocosmolgico do parentesco, que no so necessariamente coincidentes.

    Alm de tamie nhanderu, outra designao recorrente para paj karai.Aqueles com discursos eloquentes, uso da linguagem de Nhanderue Nhandexykury avyu rapyta, lngua primordial, ou nhee por, belas palavras oubela linguagem, que inclui um repertrio especfico de expresses, cujo uso apenas apropriado na opy e poder de viso do que est longe ou est por

    vir, geralmente so chamados karai (que tambm o nome de um nhee ru ete).J aos que realizam curas com sopros de tabaco chamam opitaivae, aqueleque fuma. E aos que lideram o canto (mborai) coletivo de interlocuo comNhanderu e Nhandexy na opy chamam oporaiva (ou oporaivae), aquele quecanta. Nem todos aqueles reconhecidos como paj renem essas capacida-des xamnicas de modo maximizado, assim como nem todos que possuemalgumas dessas capacidades so considerados pajs. Geralmente o opitaivae um karai, da o uso indistinto de ambos os termosentre muitos de meusinterlocutores. Por sua vez, ser karaie ou opitaivae, na grande maioria doscasos, implica tambm ser oporaiva, tendo seu canto enviado (geralmente em

    sonho ou estados excepcionalmente concentrados em viglia) de Nhanderu.J um oporaivapode no ser opitaivae, havendo no Silveira vrios jovens ouadultos que possuem seu mborai(canto), mas no realizam curas.De todomodo, mesmo que no estejam convergidos em uma pessoa, aquele quefala (karai), aquele que fuma (opitaivae) e aquele que canta (oporaiva)operam modalidades de sopro, associadas leveza, respirao, ao que divino e imperecvel.

    H ainda que se mencionar a designao yvyraija, literalmente, donosda pequena madeira ou, segundo Cadogan (1959), donos do basto ritual.Os xams e seus auxiliares so com frequncia chamados de yvyraija, assim

    como seus espritos auxiliares (geralmente um Nhanderu). Trata-se, portanto,de um termo relacional, que diz respeito a agenciamentos xamnicos pormeio da transferncia de capacidades objetificadas pela voz, pela fumaa oupor objetos como opopygua(clave de som composta por duas hastes de ma-deira ligadas por um fio), o mbarak(violo ou chocalho), o takuapu(bastomarcador de ritmo feminino) ou a vara que o xam pode segurar ao iniciarsua interlocuo com Nhanderukurye os presentes na opy.

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    Tanto o sopro da voz pela fala ou canto como o sopro de tabaco pelocachimbo (petyngua) so caminhos ou canais de comunicao e transmissode capacidades por Nhanderu eNhandexy kuryacessveis a todos os Guaraniem razo de seu nhee. Todos fumam e soltam fumaa no amba(local ondeficam os instrumentos musicais e demais objetos rituais) da opyou no alto da

    cabea dos outros a quem querem proteger. Mas apenas os opitaivaepodemver a doena nos corpos, com as mos e a fumaa, e ento extra-la por meioda suco de corpos diminutos, por vezes invisveis, como pedras, insetose torres de terra. Assim como a posio de opitaivae implica a capacidadede ver a doena nos corpos, invisvel aos demais, a posio de karaiimplicaver o que est longe no espao ou no tempo, atuando na proteo de pessoassingulares ou coletivas, indicando aes ou precaues. Designaes e aesconcernentes ao xamanismo remetem assim a uma polissemia de termos ediferentes modulaes xamnicas, que convergem, contudo, na incorporaode foras no eixo vertical advindas de Nhanderutet, os lugares celestes dos

    Nhanderu e na excorporao de foras no eixo horizontal, expulsando doscorpos e de outros lugares agentes patognicos. Ou, ainda, convergem na capa-cidade maximizada de trnsito do nheepor diferentes tempos e lugares pormeio dos cantos, danas, sonhos e fumaa em contraste com o confinamentona superfcie desta terra, yvyrupa,tambm chamada yvyvai (terra ruim,corruptvel) por parte daqueles desprovidos dessas capacidades.

    O tamie seusxondro

    Na primeira dcada do sculo XX, Nimuendaju (1987 [1914]) deu no-tcia de que agrupamentos guarani vinham migrando do Paraguai rumo costa brasileira desde o sculo XIX, sempre liderados por um paj. Taisdeslocamentos remetem a uma disjuno histrica anterior entre chefes deguerra e profetas, ou mboruvixae karai, segundo anlises de Pierre Clastres(2003 ) e, sobretudo, de Hlne Clastres (1978). A centralizao crescente dopoder por chefias de guerra teria incorrido nos movimentos profticos tupidesde antes da chegada dos europeus, quando populaes abandonavamaldeias e seguiam os karai(profetas, na traduo dos autores) em busca dachamada Terra sem Mal, reiterando assim a descentralizao do poder. Os

    karaiseriam por isso vetores da sociedade contra o Estado, ou da mqui-na de guerra, em formulaes de Pierre Clastres, promovendo a inibiode poderes estveis pela reconfigurao constante de alianas e inimizades.Contudo, segundo Hlne e Pierre Clastres, os karaitambm acabaram por seconverter em lderes polticos, levando, entre os Guarani, interiorizao dotema da Terra sem Mal, cujo acesso se daria por meio do ascetismo religiosoa partir do sculo XX.

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    De acordo com H. Clastres (1978), em seu movimento de desterritoria-lizao, o profetismo guarani correspondia recusa deste mundo, tendo nohorizonte a terra divina sem regras e restries sociais, em que a abundnciafaz prescindir a necessidade de trabalho e enseja festas sem fim. A seu turno,Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro (1985) apontaramm, no profetismo

    atuante nessas populaes, no a negao da sociedade, mas os motores desua (re)produo. O canibalismo tupi engendra a individuao e articulaode pessoas e grupos, em que matar ou consumir a carne do inimigo fontede conhecimento e reconhecimento, bem como de acesso terra da imortali-dade. Ainda, por meio de uma espiral de vinganas, constri a percepo depassado e futuro, entre o que foi e o que ser. De modo anlogo, assinalam osautores que o profetismo tambm gerador de tempo e de coletivos10. Assim,seja pela via da natureza (o devir animal) ou da sobrenatureza (o devirdivino), canibalismo e profetismo so dispositivos de devir outro, constituindoo cerne de ontologias amerndias (Viveiros de Castro, 1986 e 2002)11.

    Entre os Guarani, Susnik (1983) discorre sobre a configurao em rededos grupos locais desde o perodo colonial, formando conjuntos multicomu-nitrios, ou guara,com limites flexveis e sem centro. A seu turno, Ladeira(2007) comenta que a presena de dois lderes poltico-espirituais em ummesmo tekoa (expresso cuja traduo corrente hoje aldeia) fonte poten-cial de conflitos ou migraes. A essa disposio segmentaridade, ou recusa(ou ainda instabilidade) da unidade em favor da multiplicidade, P. Clastreschamou de sociedade contra o Estado, como dito, e poderamos design-la,num idioma wagneriano (Wagner, 1981), socialidade contra o estvel, peladisposio diferenciante de individuao de sujeitos (singulares e coletivos)

    em meio a redes de parentesco e corresidncia. No por acaso, foi a partirde um dilogo com um karaiguarani que P. Clastres formulou sua tese daaverso ao Um como denominador comum nas sociedades indgenas, sendoo Estado o principal emblema da unidade sobrecodificadora. Nas palavras(traduzidas) do karai: As coisas em sua totalidade so uma: e para ns queno desejamos isso, elas so ms (P. Clastres, 2003a, p. 188).

    Os autores aqui mencionados e boa parte da literatura sobre os Guaraniapontam a convergncia da liderana poltica e espiritual (ou xamnica)entre os Guarani pelo menos desde o sculo XX. Como me explicou um mbya,o ruvixavepe, lder maior, sempre paj. Alm do domnio poltico de seu

    10Ver tambm Sztutman (2005), que desenvolve e amplia esse argumento.11Viveiros de Castro atribui ao devir o sentido que lhe foi dado por Gilles Deleuze e FelixGuattari (2004), qual seja: como um modo de experienciar a alteridade em que esta constituiuma qualidade do verbo, no um predicado do ser, sendo avessa distino realidade/repre-sentao. Assim, o ser Tupi-Guarani um devir-outro, seja qual for o objeto desse devir (deus,jaguar, inimigo, cristo...), o acento se d no ato e no no sujeito. O cerne est na diferena, eno nas propriedades do diferente (Viveiros de Castro, 2002, p. 195).

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    grupo local, os pajs lideram os cantos (mborai) e danas (jeroky) a Nhanderue Nhandexy kury, pelos quais, dizem meus interlocutores e outros registrosguarani na literatura (por exemplo, Nimuendaju, 1987), antigamente algunsconseguiam fazer o corpo to leve que se despiam de sua poro carnal e al-canavam yvy mar ey, a terra divina onde nada perece (ou Terra sem Mal),

    sem passar pela morte e a perda dos ossos (associada verticalidade). Taiscantos e danas exausto eram associados fumaa de tabaco e a jejuns basede milho e hidromel. Nos dias de hoje, dizem que tal feito invivel devidoao peso do corpo advindo da comida jurua, com muito leo e sal. Para queo corpo adquira leveza, recorrente o comentrio de que os pajs devem sesubmeter a uma srie de restries alimentares, sexuais e comportamentais.Mesmo em relao aos demais guarani, idealmente no se deve ingerir carneou alimentos industrializados antes dos mborai.

    Em conversas sobre os pajs antigos e os de hoje, meus interlocutoresguarani comentam que as atividades que deviam ser regradas ou interditas

    entre os pajs, como a caa e a guerra, eram de responsabilidade dos xondro,personagem pouco destacada na literatura sobre os Guarani. Ao comentaremas primeiras migraes mbya para o litoral, dizem que os tamitinham sempreconsigo os xondro, expresso derivada da palavra soldado, que eram res-ponsveis pela caa, por aplicar sanes violentas, por enviar mensagens ouacompanhar pessoas, e por proteger o agrupamento contra ataques dejurua(os brancos, como j dito), outros indgenas ou animais selvagens nas aldeiasou nos caminhos. Kelvein (Karai Tup), nascido no Paran (aldeia Cascavel)e, na poca deste relato, morador do Silveira, assim contou:

    Na poca eles [os tami] tiveram a ideia de colocar jovens pra serem

    xondro. Eles sonharam isso. Ento num tamios deuses colocavam emsonho todas as coisas que ele tinha que fazer. Tinha a casa de reza ondeviviam os pajs e os xondrotinham uma casa prpria deles, que era maisafastada. Era como se fossem uns soldados. O tamidizia ao lder, xon-dro ruvixa: amanh eu quero que os xondrosaiam na mata e peguemtrs antas. E de manh eles iam caar. Tudo em grupo. De repente, pajfalava: quero que voc mande os xondrol em outra aldeia pra buscarum parente. No tempo antigo no tinha estrada, s umas trilhas de matafechada. Perigoso. Ento nessa viagem os xondromorriam, assim tipoduas pessoas, mas o restante voltava, porque eles tiveram conhecimentode que a fora de um animal poderiam tirar e colocar neles. Ento essa

    fora de um animal eles usavam muito. Eles iam em cada aldeia, naquelapoca vrias aldeias eram muito longes, e algumas partes das aldeiaseram muito atacadas por vrios animais da mata, por exemplo a ona,coisas assim, ento quando no tinha xondronesse lugar, morria muitoparente. At hoje em umas partes das aldeias perigoso ainda.

    Assim como Kelvein, seu tio paterno e morador no Silveira, SrgioMacena (Karai Tataendy), cujos pais nasceram no Paraguai e migraram

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    para o Paran, conta que na aldeia Pinhal (TI Rio das Cobras, PR) os xondrojamais ficavam na opy, e uma casa separada era construda para abrig-los.Suas danas e treinamentos ocorriam tambm fora da opy, antes do anoite-cer. Tal separao de casas reiterava a distino entre os vetores vertical ehorizontal dos agenciamentos, ou da transmisso de capacidades. Os tami

    tinham a fora de Nhanderue, como disse Kelvein, os xondrodispunhamda fora de um animal, que podiam pr e tirar de si mesmos. AdolfoTimoteo (Vera Mir), atual cacique do Silveira, tambm comenta que haviacrianas que eram preparadas desde o nascimento para serem xondro, demodo que seu corpo era embebido em ervas e gordura de ona. No mesmosentido, Timteo (Vera Popygua), cacique na aldeia Tenonde Por, na capitalpaulista, assim relata:

    Antigamente, os xondroeram treinados para cuidar da opy. Viviamemjeroky[danas, ou treinamento12], passavam ervas medicinais emseu corpo e saam procura de alimentos nas matas. Essa era uma

    das danas que eram to perigosas, que chegavam at a morte, poisosxondro eram treinados com os espritos dos mortos. E existiammuitos na floresta, eles at desafiavam, entravam em conflitos, quandoeles estavam em nhetangarai[...]. Antigamente os Guarani no falavamxondro, e sim tangariou tangarai, e quando iam fazer essa dana, di-ziam nhatangarai vi, vamos danar na preparao de guerreiros [...].Esses costumes no so mais utilizados, os prprios pais tm medode seus filhos crescerem agressivos. (Delane, Almeida e Samuel dosSantos, 2008, p. 34).

    Timteo chama de tangaraia dana dos xondro, mas Kelvein me disseque essa uma das diversas modalidades de dana, a mais bonita e difcildas xondro jeroky(dana de xondro). Ele conta que para aprender mesmo adana do tangara, em que se reproduz seus pulos e passos cruzados, precisocapturar um desses pssaros13. Mas ele ressalvou que no podia fazer issoporque era agora oporaiva, liderava o canto na opy, condio que no permitea captura do pssaro para incorporar sua dana.Nessa direo, cabe aos xon-droagenciar foras de animais, segundo Kelvein, e de espritos dos mortos(gue), segundo Timteo, sendo uns e outros habitantes desta terra e semacesso s moradas celestes que eles e outros alegam que devem ser alheiasaos cantadores (oporaiva) e excludas da opy, aonde Nhanderue Nhandexykury

    12Esta verso corresponde a uma traduo do depoimento para a lngua portuguesa feita pelosprofessores mbya Delane, Almeida e Samuel dos Santos (2008). Estes traduziram jerokycomotreinamento, mas deixei a expresso no original por significar tambm dana, que constituiuma forma de treinamento para adquirir agilidade e leveza.13No encarte do CD andearandupygu,tangara definida como modalidade de dana femi-nina e j ouvi tal afirmao no Silveira, mas Kelvein comenta que sabe dan-la, e Timteo,conforme citao acima, diz que tangarai (no diminutivo) era o nome de toda dana xondro.

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    so celebrados e se fazem presentes14. Por sua vez, pajs e outros que nosejam xondro vaidevem evitar o contato com foras ligadas animalidade,sob pena de no adquirir aguyje, o estado de plenitude, ou divinizao,advindo da destituio da parte carnal do corpo, que d acesso Terra semMal (yvy marey) sem passar pela morte.

    Nesse sentido, h que se destacar a relevncia dos nhemongarai, que osGuarani traduzem como batismos. H os nhemongaraiou yykarai, que corres-pondem escuta do nome (hery) das crianas, ou seja: qual sua proveninciacsmica, enunciado por nhee ru etee nhee xy eteao tami(que o comunicaaos pais). H ainda os nhemongaraide itens que correspondem a ddivas deNhanderu, ou seja, que foram postos no mundo por Nhanderupara que sejamconsumidos pelos Guarani, por exemplo avaxi ete(espcie de milho), ei(mel)e kaa (erva-mate). Amostras desses produtos (no caso do milho tambm pormeio do po, mbojape) so postas na opye ento batizadas por meio da fuma-a dospetyngua,dos cantos, danas e evocaes a Nhanderue Nhandexykury.

    Conforme me foi explicado por alguns Guarani, o batismo faz com que essesprodutos possam ser consumidos como coisas que no pertencem a esta terra.Em contraposio carne e, mais recentemente, a produtos industrializadosdosjurua, tais produtos favorecem ijaguyje, sendo associados ao eixo verticalda existncia ou ao no confinamento nesta terra.

    Nos anos 1980, poca de diversas migraes mbya da regio Sul e dasprimeiras demarcaes de Terras Indgenas no Estado de So Paulo, formaram-se grupos de xondroem algumas aldeias, como no Silveira e na Barragem(aldeia hoje chamada Tenonde Por). No Silveira, eram responsveis peladefesa do territrio contra caadores, palmiteiros e as motosserras dosjuruaque queriam implantar loteamentos. Naquele perodo, o litoral norte deixariade ser uma das regies mais despovoadas do estado para converter-se, com aampliao e asfaltamento da malha viria15, em um de seus mais concorridospolos tursticos.

    Na Barragem os xondro, tambm eram solicitados a fazer trabalhoscomunitrios (Nogueira da Silva, 2008). Kelvein conta que participava dogrupo de xondro na Barragem, cujos treinamentos eram intensos. Um xondro,de acordo com ele, pode adquirir tamanha leveza e rapidez no corpo que capaz de pegar umaflecha em movimento e se tornar quase invisvel na mata.

    Adlio, mbya morador da aldeia Morro dos Cavalos, SC, em depoimento aMoreno Martins, conta que antigamente os xondrotinham que tirar um dente

    14Durante os mborai, nhee kury, os filhos/extenses de NhanderueNhandexykury cuja matriz a mesma do nheeno corpo dos Guarani, como dito descem opye participam dos cantos,danas e curas, mas de modo invisvel aos humanos, com exceo dos xams.15Esta comeou com a construo da rodovia Anchieta nos anos 1940 e culminou com a con-cluso das rodovias Rio-Santos e Mogi-Bertioga, nos anos 1980 (Cherobim, 1986).

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    de ona para pegar a alma dela e assim ficarem leves e rpidos. Ele aindaassocia os movimentos do xondro capoeira e s artes marciais, com objeti-vo de andar na mata e escapar dos perigos (apudMartins, 2007, p. 74). NoSilveira tambm ouvi, diversas vezes, a meno de que os xondroidealmenteso como os samurais, por sua destreza e leveza do corpo.

    Montardo (2009, p. 128) tambm ouviu dos Mbya que os xondroeramto leves e rpidos que se esquivavam at de bala. No treinamento dadana, os jovens passavam pelo mestre e ele atacava comojaguarete(ona) eoutros bichos, e os jovens tinham que se defender (Montardo, 2009, p. 219).Na aldeia do Silveira e em outras da regio Sudeste, esse tipo de atividade bastante apreciada, em que um mestre (xondroruvixa: lder ou mestredos xondro) prope desafios com bastes e chicotes, demandando rapideze destreza dos xondropara no serem acertados pelos objetos. Tal prticageralmente ocorre antes, depois ou durante a dana xondro, sendo estacaracterizada por passos ritmados para frente e para trs, entremeados por

    giros, com frequncia em um crculo16, ao som de rave(rabeca), mbarakamir(chocalho), mbaraka(violo) e agu pu(tambor).

    Como atenta Montardo (2009), essa modalidade de xondrojerokyide-almente corresponde preparao de jovens guerreiros. Nessa direo, ouvino Silveira que antigamente os xondrotinham o hbito de arrancar uma tirade pele na sobrancelha do inimigo e que a levavam consigo como uma marcade distino. Tal descrio me remeteu ao guerreiro tupinamb, que ganhavamarcas no corpo quando matava um inimigo ou colecionava seus crnios.Contudo, quando os Guarani de hoje descrevem os xondro,h uma nfasemenor no combate do que no papel de guardies e mensageiros (tembi-

    guai), assim como na habilidade de se esquivar (-jeavy uka) de ona, de bala,de flecha..., nos exemplos citados e tornar-se invisvel. Mesmo na anlise dosmovimentos da msica e na dana xondro, Montardo destaca a centralidadedo esquivar-se:

    A anlise do movimento coreogrfico d pistas sobre o significado damsica que est sendo danada. O esquivar-se, enfatizado como oobjetivo da dana, gerado por uma tenso provocada pela msica,a qual joga com intervalos de tera menor e maior alternadamente. Oritmo cheio de contratempos tambm colabora para a criao da tenso.(Montardo, 2009, p. 195).

    Como dito, a carne impede o acesso perspectiva divina, devendo ostamievit-la e cabendo aos xondroa atividade de caa e outras ordens demanejo da animalidade, de onde tiravam sua potncia, por exemplo, aotirar a alma da ona ou do pssaro tangara. Entretanto a relevncia do es-

    16S de rapazes, como mais comum, ou s de moas (xondria kury), ou ainda misto, casomais raro.

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    quivar muito mais destacada do que a do atacar, assim como a levezado corpo um ideal tanto do tamicomo do xondro. De modo que a oposioentre ambos no espelha uma dicotomizao absoluta ou rgida, pois tambmcabe aos xondrose despojarem do peso da carne; e, nas sesses de cura comfumaa de tabaco, os tamienfrentam, nos corpos das pessoas doentes, aquilo

    que os xondroenfrentavam na mata: espritos desta terra (dos mortos, dosanimais e outros donos extra-humanos). Ademais, h um marcador etriobastante relevante na ocupao dessas posies, o que corrobora para suano substantivao. Como disse Kelvein no primeiro depoimento citado, ostamicolocavam unsjovenspara ser xondro. Com o avanar da idade, al-guns xondropassam a atuar como xondro ruvixa(mestre xondro), mas outrospassam a ser tami, no s porque tomaram a posio de av em sua famliaou de homem mais velho no coletivo em que vivem, mas porque podem terrecebido seu canto de Nhanderue passarem a ser oporaiva(cantador) ou mesmoopitaivae(que realiza curas). Assim, a despeito de haver pajs (chamados por

    isso de xerami)muito jovens, essa uma sabedoria-capacidade potencializa-da ao longo da vida, com suas experincias e provaes (como os Guaranicostumam dizer em portugus), por isso associada prioritariamente aos maisvelhos (tami). Por sua vez, os xondro que manejam as foras da animalidadeso, via de regra, jovens solteiros ou recentemente casados.

    Nos dias de hoje, como dito em relao aos pajs que j no ijaguyje,quase no se tem mais grandes xondropor causa do peso do corpo pelo con-sumo cotidiano da comida dos brancos. Mas, se os xondrode outrora ficaramraros, o uso do termo xondrohoje bastante extensivo e compreende diversas

    modalidades. H os xondroque atuam dentro, fora e na porta da opy. Comodito, so xondroos grupos e a modalidade de dana e jogos coletivos quefigura na maioria das apresentaes aosjurua, e que tambm divertimentocoletivo de jovens e crianas nas aldeias. Tambm recebem o nome de xondroe xondriaaqueles que danam e cantam no interior da opy, acompanhando ooporaiva (cantador-rezador). H os xondrookaigua(do terreiro), que devemficar na porta opypara vigiar entradas e sadas, cuidando para que ela estejasempre fechada durante os cantos-reza, impedindo assim a entrada de gue. Hos que so designados para trabalhos coletivos, como reformar a opy, limparos banheiros na vspera de visita de uma escola, capinar um terreno, entre

    outras atividades. Estes mesmos xondroem geral so responsveis por vigiarse uma norma est sendo cumprida, por exemplo, no trazer bebida alcolicapara a aldeia; ou por executar uma sano a algum que fez algo reprovadopelo tamie demais lideranas. Talvez estes ltimos correspondam ao que nopassado tinham funo guerreira e so chamados xondrovai. Em analogia aosistema policial, Edson (Vera Mir) descreve as atividades dos xondrocomose fossem comandos:

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    Na verdade, antigamente j existia xondro. Tinham vrias funes, vrioscomandos. O primeiro comando s cuidava da guerra, a parte externa,contra outras aldeias e contra os brancos tambm. O segundo comando para cuidar do pessoal que vive dentro da aldeia, para eles no saremmuito. Tem horrio de sada e horrio de entrada, quando o sol estcomeando a sair e a se pr. O terceiro comando cuida da casa de reza,

    se alguma criana est passando mal na casa de algum, eles que vobuscar. Se alguma criana est com comportamento muito difcil, entoeles tambm so chamados. Ficam fora e na porta da opy. Mas os xondroque cuidam de fora da aldeia no podem entrar na opy, porque j forampara guerra, so autorizados a matar, so eles que cuidam da parte feiada aldeia. Ento no so autorizados a entrar na opy. Eles so protegidospor vrios espritos, tm a habilidade e a inteligncia prpria para isso.Desde criana so treinados pra isso. Geralmente so protegidos por itajae kaguyja, porque itajad a eles o poder da proteo e kaguyjao poderde camuflar na floresta.

    Assim como Timteo os associa aos espritos dos mortos, e Kelvein, aosdos animais, Edson reconhece nos xondroque no entram na opya potnciados donos extra-humanos das pedras (itaja) e da mata (kaguyja). Como dizEdson, os xondrocuidam da parte feia da aldeia, o que necessrio paraa vida nesta terra, yvyvai.

    Sem ter como referncia a expresso xondro, Ladeira (1997) comentaque meninos escolhidos em cada famlia ficavam recolhidos no amba arandu17,uma casa em que recebiam ensinamentos filosficos religiosos que regem ossentimentos e as normas sociais de comportamento. Com o estreitamento dasrelaes com osjurua, arandu(sabedoria) passou a abranger o conhecimento

    das coisas dos brancos, de modo que, em algumas aldeias, esse lugar passoua ser tambm destinado para reunies sobre problemas atuais e articulaesentre jovens lderes. Ainda segundo a autora, passaram a ser chamados deiaranduos jovens que se expem mais ao enfrentamento de questes com osbrancos, no que auxiliam os pajs.

    Tal como mostra Ladeira (1997), nos depoimentos aqui expostos, emvez de um antagonismo, prevalece uma relao de complementaridade eassimetria entre tamie xondro, ou entre oporaivee iarandu(na terminologiaregistrada pela autora). Ademais, em razo da polissemia desses termos, elesapenas se contrastam em certos contextos enunciativos. Ainda, como dito, um

    xondropode vir a ser um tami, tanto pelo avanar da idade, quanto porquepode passar a participar da vida na opy. A diferena, portanto, no substanti-vada ou fixa. A questo que a transmisso de capacidades que particularizaum tami no sentido de paj e um xondro na modalidade xondro vai(ruim) atualiza a oposio complementar entre os eixos horizontal e vertical

    17Literalmente, lugar de sabedoria, ou de conhecimento.

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    no manejo da alteridade. Como comentado no incio, tal oposio reitera oinvestimento pela no indiferenciao de foras, por sua vez inseparveis,que se atualiza em diferentes domnios relacionais, incluindo pessoas singu-lares e coletivas. Tamie xondronem sempre configuram uma oposio, masquando o fazem, so complementares e assimtricos. O tamimanda e precisa

    do xondro, havendo muitas vezes, entre ambos, uma relao de sogro-genro.Ainda, o tami, quando realiza curas (opitaivae), interage com agentespatognicos (dos mortos, dos donos extra-humanos) nos corpos das pessoas,e, ao extra-los, por vezes atingido por eles. J presenciei, diversas vezes,um paj precisar ser amparado por um auxiliar depois de extrair a doena,por estar vomitando, ou tossindo, ou tendo uma fraqueza ou tremedeira naspernas, que so ento massageadas por aquele que o auxilia. J ouvi tambmcasos de tamique adoeceram e at morreram depois de curar uma doenade outro. Dessa maneira, tanto o tamiquanto o xondrovaiinteragem comagentes vinculados animalidade ou morte, a questo que cabe ao tami

    extra-los dos corpos (ou ento ir se enfraquecer) e ao xondro incorpor-los(para se fortalecer).

    Caciques tamie caciquesxondro

    Em cada aldeia, como vimos, o ruvixavepe, lder maior, era comfrequncia um tami, a quem estava submetido o xondro ruvixa, lder dosxondro. Um Mbya no Silveira me contou que antigamente os tamipoucosaam da opy. Ficavam em sua rede, fumandopetyngua, e eram os xondroque

    faziam toda a mediao com o mundo de fora. Por isso muitos brancos nemsabiam da existncia de um lder por trs dos xondro. Como me explicou umtami, com resignao, antes quem mandava era o paj, s depois que veiocapito, cacique.

    A criao do posto de capito pelo rgo indigenista oficial entre osGuarani parece no ter feito frente autoridade dos chamados lderes poltico-espirituais (tami), segundo pesquisadores que estiveram em aldeias da Serrado Mar em dcadas passadas, como Schaden (1974) e Cherobim (1986). Ocapito era algum com maior domnio da lngua portuguesa designado peloSPI (Servio de Proteo aos ndios e Trabalhadores Rurais) para representar

    o rgo junto comunidade, assim como a comunidade junto ao rgo. Emsua pesquisa na dcada de 1940, Schaden (1974) descreveu como precria aoperacionalidade desse cargo no litoral de So Paulo, pela pouca autoridadeque os capites exerciam, a qual estava concentrada nos pajs. Por vezes, dizo autor, os capites tentam ser chefes de polcia despticos, mas em geralno obtm xito (Schaden, 1974, p. 66). J Mauro Cherobim (1986, p. 149)comenta que este contraste entre capites e lderes espirituais na dcada de

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    1970 no mais se verificava de modo relevante, pois o cargo de capito foisendo justaposto ao de cacique e este tambm tinha que ser rezador (paj).

    Nos anos 1980, so os tamios principais articuladores guarani no pro-cesso de demarcao de terras no estado de So Paulo. Na maioria dos casos,ocupavam a posio de cacique, termo que veio substituir o de capito

    e que no concerne somente ao papel de mediao com os brancos, mas liderana poltica interna aldeia. Contudo, se a liderana dos tami dizrespeito, sobretudo, a um coletivo, independente do suporte fsico no qualse assenta no momento (j que seguem juntos em caminhadas e formao denovas aldeias), a liderana do cacique geralmente remete a uma aldeia, umespao fsico circunscrito, a despeito de sua fluidez populacional em razoda multilocalidade caracterstica da socialidade guarani18.

    A convergncia das posies de cacique e tamino contexto do conjuntode demarcaes de TIs na Serra do Mar e planalto paulista na dcada de 80 explicitada nesse comentrio de Timteo Vera Popygua: eles so fortes, a

    parte espiritual, ento eles conseguiram [as demarcaes]. A fora dessestami-caciques (cuja convergncia de papis no era necessria, mas espe-rada) estava vinculada tanto capacidade de constituio de alianas comos brancos como sua conexo com Nhanderukury. Contudo, no que dizrespeito aosjurua, sua interlocuo estava voltada, sobretudo, para membrosde ONGs, rgos do governo e das igrejas. Tais parceiros eram os porta-vozesdos interesses e discursos dos Guarani na mdia e nos autos dos processos

    judiciais. Assim, cabia prioritariamente aos apoiadoresjuruafazerem a me-diao nos conflitos com adversriosjurua nas disputas fundirias, bem comoenunciar a cultura guarani, que passou a ser a estratgia predominantena reivindicao das terras. Os advogados Marco Antonio Barboza e CarlaAntunha, ento membros da ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI),explicitam tal investimento de conferir visibilidade e contornos culturaguarani no seguinte texto, publicado no ano da homologao das terras ecomo introduo verso em portugus da obra clssica de Nimuendajusobre os Apapapocuva Guarani:

    Ainda com muito apoio da imprensa [...], vrios segmentos da populaopaulista tomaram conhecimento, pela primeira vez, desses ndios, queviviam at ento como que escondidos ou fugitivos em pontos da Serrado Mar. Juntamente, ento, com o andamento dos processos, foram os

    Guarani buscando meios de se fazer mais visveis aos olhos da populaoenvolvente. (Antunha e Barbosa, 1987, p. x).

    18Os coletivos esto sempre se reconfigurando em razo da multilocalidade caracterstica dasocialidade guarani, em que a mobilidade diz respeito no apenas a mudanas de local porgrupos, como tambm de grupo local por parte de indivduos, no raro movidos pela buscade casamentos ou por separaes (Pissolato, 2007).

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    Na anlise das fontes disponveis, evidencia-se que o processo de re-conhecimento oficial das TIs nos anos 80 levou cena sobretudo enunciadossobre os Guarani, por adversrios e aliados, mas pouco contou com enunciados

    guaraninos autos dos processos, na mdia e em outras publicaes, a no serpor meio de seus porta-vozes advogados, antroplogos ou indigenistas, ou

    ento em breves e raras citaes em matrias de jornal. Entretanto algunskunumgue como chamam aqueles sados da infncia (kyrgue)e ainda noconsiderados adultos (tuja), geralmente traduzido como jovens que acom-panhavam os mais velhos em reunies e articulaes polticas nesse perododos 80, converteram-se em lideranas importantes na elaborao e veiculaode discursos no mbito das demandas fundirias, das polticas pblicas e deeventos culturais que foram se ampliando aps a Constituio de 88. Muitasdessas lideranas ocupam posio de cacique ou de liderana nas aldeias emque hoje vivem, como Timteo Vera Popygua na Tendonde Por, Marcos Tupno Krukutu (e antes em Jaexa Por), Adolfo Timteo Vera Mirna TI Ribeiro

    Silveira e os irmos Macena, hoje no Silveira e no Jaragu (Tekoa Pyau). Almde acompanharem tamicomo Jos Fernandes, Altino e Samuel nas reuniese articulaes polticas, a maioria dessas lideranas teve alguma experinciaescolar, o que ampliou suas possibilidades de agenciamentos junto aosjurua.

    Esses caciques e lideranas que foram tomando a linha de frente nainterlocuo com os brancos hoje tm entre 40 e 45 anos, sendo alguns j avsou com filhos crescidos, mas at o momento no so pajs. Nos casos de al-deias em que o cacique um paj, como no Tekoa Pyau (na capital paulista),as lideranas mais jovens atuam como assessores ativos e imprescindveis,tomando a frente no contato com os juruaem muitos contextos, atuando,

    portanto, como uma espcie de xondro. No Silveira, no perodo em que eraum tamique ocupava o posto de cacique, me explicaram que as lideranaseram xondro do xerami.

    Quando perguntei por que hoje muitos tamij no assumem a posiode cacique nas aldeias guarani, um morador do Silveira alegou que antes noera preciso saber muito do mundo dosjuruapara ser cacique, j que a Funaiou as igrejas vinham e davam comida, roupa, remdios. Mas, hoje em dia, preciso saber fazer projeto, falar bem o portugus, saber mexer com dinheiro,documentos, associao, enfim, com kuaxia (papel). Dessa maneira, na atualconjuntura, o cacique pode ter acesso limitado linguagem dos imortais, nhee

    por (bela fala ou linguagem) ou ayvurapyta (palavras primordiais), mastem que dominar, muito mais do que a lngua portuguesa, a retrica da cul-tura no sentido atribudo ao termo por Carneiro da Cunha (2009), comoum metadiscurso. Da, o uso das aspas sobre sua singularidade, em que aformulao da alteridade suscita um investimento em conferir inteligibilidadeao enunciado ou em causar efeito por meio dele, mesmo que significados nosejam compartilhados pelos interlocutores, isto , que os signos em jogo sejam

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    interpretados luz de diferentes nexos ou matrizes de produo de sentido.Assim, se a bela linguagem confere aos homens a perspectiva divina, outradiscursividade precisa ser manejada na perspectiva institucional do Estado eda sociedade civil. Nesse sentido, significativo que a posio de xondrosejaextremamente associada de tembiguai, mensageiro. Como dito, eram os

    xondroque faziam a mediao entre o mundo da opy(ou o mundo do tami)e o mundo de fora, ou dos outros tal como os caciques-xondrode hoje.Na conjuntura atual, os tamij no ficam tanto tempo na opy, mas no

    costumam tomar a frente na enunciao da cultura para os brancos, muitasvezes por no dominarem a lngua portuguesa to bem como os mais jovens,tampouco os procedimentos institucionais e redes de relaes do mundo dosprojetos. Entretanto so eles os principais portadores desse conhecimento aser traduzido pelas lideranas mais jovens. Desse modo, a atuao ou a refe-rncia a nhanerami kury, nossos avs ou nossos mais velhos, tem gran-de relevncia em diversos contextos, sendo convidados ou protagonizando

    encontros e publicaes de temas como medicina, culinria, educao,entre muitos outros, sempre seguidos da rubrica tradicional. E, para almdos projetos com os brancos, no cotidiano das aldeias boa parte dos coletivosorbita em torno de um xeramie ou xejaryi (meu av e minha av), quetm consigo descendentes com cnjuges e agregados, e ainda mais quandotm sob sua responsabilidade uma opy. No mbito das aldeias ou em encon-tros polticos interaldeias, dificilmente as decises dos caciques contrariamou desconsideram orientaes, ressalvas ou pressgios dos tami. Durante umencontro de lideranas mbya, Leonardo, da aldeia Morro dos Cavalos (Palho-a, SC), assim comparou a diviso de poderes entre os Guarani e osjurua19:

    Podemos considerar que quem funciona como o Poder Judicirio nasaldeias o paj. s vezes, o cacique e a comunidade se perguntam: Oque vamos fazer?. E, quando as coisas no vo muito bem, algum diz:Vamos perguntar para o paj. Quando perguntam para o paj o queele acha, ele vai explicar como a comunidade tem que fazer para dartudo certo. como se estivssemos consultando nosso Poder Judicirio. assim que fazemos para no errarmos o caminho e fazermos as coisascertas. Na aldeia, como se o cacique fosse nosso Poder Executivo e aslideranas fossem nosso Poder Legislativo, j que so elas que fazemas leis.

    19Essa fala integra um documento disponibilizado apenas em sua verso traduzida para alngua portuguesa no website do CTI, que constitui a sntese de um Encontro da Comissode Terras Yvy Rupa, composta por lideranas guarani do Sul e Sudeste para tratar questesfundirias. Nesse encontro, os participantes guarani receberam os advogados Carlos Mars eTheo Mars, que discorreram sobre o Estado brasileiro e sua legislao, principalmente aquelareferente questo indgena. Alguns Guarani exerciam o papel de tradutores (no apenas noplano lingstico, mas sobretudo conceitual) das explicaes dos advogados, estabelecendopara isso uma srie de analogias, como esta dos trs poderes.

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    De acordo com essa analogia, o paj (como se fosse o Poder Judici-rio) aquele que sabe o que deve ser feito, enquanto o cacique aquele quefaz, seguindo sua orientao (como se fosse o Poder Executivo). Talvezpossamos reconhecer aqui a complementaridade que remete oposio entretamie xondro. Como o domnio poltico cada vez mais implica destreza na

    relao com os brancos e suas instituies, a posio de cacique viria entodeslocando a chefia poltica do vetor-tamipara o vetor-xondro, sem estancara conectividade inerente a ambos os domnios.

    Na TI Ribeiro Silveira, durante um perodo de instabilidade poltica,em que um tamideixou e retomou diversas vezes o cargo de cacique, umdos moradores assim justifica sua sada:

    O paj tem vrias regras que ele tem que seguir na parte de como agir,como falar e tambm na alimentao. Tem alimento forte que o paj nopode comer. Ento por isso ele no pode viajar muito. Ento Samuel[paj no Silveira] pediu pra outra pessoa assumir essa parte [a posio

    de cacique]. Mas ele continua sendo forte, porque o paj o maior lderque tem na aldeia, o cacique s uma parte.

    A complementaridade e assimetria podem ser reconhecidas no coment-rio de que o paj considerado o maior lder na aldeia, enquanto o cacique s uma parte (como os xondro). Mas a condio de paj impe restriese uma interlocuo regrada com os brancos, cuja posio guarda algumahomologia com os animais e os espritos dos mortos, sendo todos habitantesdesta terra e nela confinados, o que possui uma srie de implicaes afecti-vas/agentivas20. O problema na formulao de que o paj o lder maior naaldeia ocorre quando a Terra Indgena no possui apenas um grupo local, ou

    um nico tamicomo lder. Nesse caso do Silveira, grande parte dos conflitosadvm da existncia de cinco ncleos habitacionais, com suas respectivas opye tamie ou -jaryie. Aquele que substituiu o tami na posio de cacique umdaqueles que cresceram acompanhando as lideranas na dcada de 1980 e sefirmaram como interlocutores junto aos brancos e como articuladores interal-deias ou intergrupos locais no interior de uma Terra Indgena.

    Assim, a capacidade de manejar conflitos e ameniz-los demandadaao cacique21, sobretudo em casos como na TI Ribeiro Silveira, cuja demarca-o da terra e a infraestrutura que a sucedeu (escola, posto de sade, alm deassistencialismo, projetos etc.) tiveram como desdobramento a instalao de

    20Entre os Guarani com quem tive contato, no h consenso a respeito da origem e destino donheedos brancos, mas predomina a hiptese de que seu princpio vital seja confinado nestaterra, no tendo acesso a Nhanderutet.21Acompanhei a destituio de um sujeito pelas demais lideranas do posto de cacique sobalegao de que ele era muito nervosinho, com facilidade gritava com as pessoas, e isso odesabilitava a exercer a liderana, que implica fala comedida, autoridade e, nos dias de hoje,capacidade de atrair recursos dos brancos.

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    diversos ncleos habitacionais, sob a liderana de diferentes tami, em umamesma TI. Manter a posio de cacique nos dias de hoje, particularmente noSilveira, onde coexistem cinco ncleos e seus adensamentos relacionais, im-plica o exerccio retrico constante de equacionar interesses e mundos, como asocialidade contra o estvelguarani com sua disposio segmentaridade,

    por meio da reconfi

    gurao constante dos coletivos e o Estado brasileiro. Oexerccio da liderana pelo cacique, portanto, implica destreza retrica paraos de dentro e para os de fora. Ou seja, orquestrar tenses nas redes de paren-tesco e xamanismo, com o movimento incessante de individuao/alteraode pessoas e coletivos; e, ainda, manejar a linguagem identitria das polticase projetos com os brancos, em que cultura e comunidade no raro sotomadas como unidades tnicas e sociolgicas, respectivamente.

    Desta feita, atualmente, a oposio complementar tami-xondro seatualiza nas relaes (sobretudo as institucionalizadas) com os brancos, quedevem ser evitadas ou minimizadas pelos tamie protagonizadas ou media-

    das pelos caciques e lideranas que os assessoram, xondroe de prefernciaoradores tanto nhande py(na nossa lngua, guarani, em articulaes intere intra-aldeias) comojurua py(na lnguajurua, em demandas e interaes comos brancos). certo que os discursos dessas lideranas no correspondem aognero narrativo dos karai(ayvurapyta)e demandam diferentes agenciamen-tos. Em sentido anlogo, entre os Wajpi, Gallois (2001, p. 212) destaca osdiscursos polticos como gnero oral surgido no mbito de relaes intert-nicas, que qualificam como nossas falas duras. A autora tambm contrastao poder dos xams, que se constri na exacerbao das tenses entre gruposresidenciais, e dos lderes polticos nos contextos de interao com os brancos

    e na institucionalizao dessas relaes por meio de marcadores tnicos, cujasestratgias de enfrentamento incluem discursos sobre a tradio.Entre os Guarani, h muito, a diferena em relao aos brancos tema

    de reflexo nos discursos dos karai, como registraram missionrios no sculoXIX e autores como Nimuendaju, Mtraux, Schaden e Baldus. A enunciaode um coletivo ento j passava pela excluso dos brancos nas relaes ideaisde parentesco, mas no era voltada aos brancos nem pautava a interlocuocom estes, em que predominava, ao contrrio, uma estratgia que podemoschamar de invisibilidade cultural (ver, entre outros, Macedo, 2011). Comoapontou Ladeira (2007), as opycostumavam ser escondidas dos brancos, e a

    presena destes era interdita (e em muitos casos ainda ), j que osjuruanopodem e no devem participar da conexo com NhanderueNhandexy kurypor meio dos cantos, danas e fumaa de tabaco. Tal opacidade, por sua vez, acompanhada de grande plasticidade em relao ao que visvel no mundodosjurua, como roupas e outras coisas que adquirem nas cidades ou junto aosbrancos que visitam as aldeias. Por essa razo, os Guarani so frequentementeassociados mendicncia e aculturao.

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    quando a cultura passa a atuar como mote de apoios e recursosjunto aosjuruae suas instituies sobretudo aps a Constituio de 88 e amultiplicao de polticas e projetos voltados a populaes indgenas, fun-damentados no direito a uma culturadiferenciada que a diferena passa aser enunciada aos brancos e sob demanda dos brancos, a um s tempo eclip-

    sando (sem jamais anular) e potencializando multiplicidades imanentes socialidade guarani. Assim, se as bela linguagem dos imortais so fonte deconhecimento (j que sua matriz Nhanderu) e de reconhecimento (daquelesque atuam como mediadores/tradutores na conexo xamnica entre huma-nos e imortais), discursividades associadas cultura para osjuruatambmdemandam conhecimentos e capacidades distintivas, mediando/traduzindodiferentes cdigos, ou diferentes mundos. Assim, se o xam um tradutorde mundos (Carneiro da Cunha, 1998), os caciques e lideranas polticas, demodo distinto, tambm precisam ser.

    preciso ressalvar, contudo, que tal traduo no se restringe a um

    exerccio retrico. Como foi comentado no incio do texto, a alma-palavraremete ao carter agentivo da linguagem e, portanto, a suas implicaes cos-mopolticas22. As doenas, mbaeaxy(o que sofrimento, dor), por exemplo,constituem um vigoroso idioma nessas configuraes relacionais. recorrenteentre os Guarani, e eu diria que de modo incisivo entre os jovens, o que cha-mam em portugus de doena espiritual (mas que em guarani chamamigualmente de mbaeaxy). O sujeito tomado de uma forte melancolia, ou fria,perdendo o discernimento de quem ou do que est sua volta. Entre os queocupam cargos de liderana ou assalariados, j ouvi diversas acusaes de queadoeceram em razo da inveja de outros Guarani por seus cargos, salrios e

    prestgio. Mas, com frequncia, tais adoecimentos so diagnosticados pelostamicomo associados proximidade excessiva dos brancos, suas coisas esaberes, gerando insatisfao e afastamento do nheepor do corpo. Umaimportante liderana guarani na rea da educao no Estado de So Paulo,por exemplo, foi acometida de uma forte doena espiritual, em que mal con-seguia se levantar da cama. Ele ouviu do tamique o tratava que o trabalhona escola e nas reunies polticasfizeram com que ele fosse se afastando tantode Nhanderuque no tinha mais fumaa de tabaco alguma no corpo, por issoficou suscetvel a mbaeaxy (Macedo, 2011)23.

    22De acordo com a acepo de Stengers (2007) de cosmopoltica e, particularmente, tal comoapropriada por Latour (2007), como redes cujos actantes no esto restritos ao domnio consi-derado humano, podendo ser singulares e coletivos.23

    certo que tais adoecimentos tambm podem ser associados a outras causas que no osbrancos, como tristeza (ndovyai) por separaes de cnjuges ou de parentes consanguneos,que fragilizam o corpo para a entrada de agentes patognicos. Ou ento, por agenciamentoxamnico de outro guarani, ao que chamam ipaje, feitio. De todo modo, a aproximaoexcessiva com os brancos e suas coisas/conhecimentos, ou a abertura a eles para as coisas/

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    Outro aspecto a ser ponderado nessa traduo de mundos diz respeitoao campo dos projetos. Para boa parte dos agentes da poltica indigenista,como destaca Gallois, o que diferenciado pressupe um aglomerado tnico supostamente indiferenciado mas para muitas populaes indgenas asdiferenas valorizadas so justamente aquelas que marcam distncias entre

    seus subgrupos, enfatizando distines ou afi

    rmando autonomia nas alianaspolticas que cada subgrupo estabelecer com no-indgenas (Gallois, 2005, p.115). Nessa direo, Pissolato (2007) comenta que projetos de desenvolvimen-to junto aos Mbya frequentemente expressam um objetivo comunitrio,tomando como coletivo os habitantes de uma rea e desconsiderando princ-pios que orientam o parentesco e a subsistncia. Mas o que geralmente acabaocorrendo que o projeto no se efetiva de forma comunitria, havendouma reapropriao dos recursos disponibilizados e a redefinio dos objetivosiniciais, muitas vezes incorrendo em conflitos e acusaes na disputa pelosrecursos e, em alguns casos, em reconfiguraes polticas.

    Nas iniciativas que pude acompanhar entre os Guarani, parece prevale-cer um interesse maior na proposio de projetos do que em sua efetivao edesenvolvimento. So recorrentes as dificuldades ou o pouco investimento nocumprimento dos prazos e de um cronograma pr-estipulado de trabalho, naconfeco dos relatrios e na prestao de contas, entre outros aspectos. Muitosparceirosjuruase veem indignados pelos Guarani no raro se comportaremcomo se estivessem fazendo um favor ou obrigao em trabalhar nos projetosque visam sua autossustentabilidade. Entretanto os ideais de autonomiaentre os Guarani no parecem ser os mesmos dosfinanciadores de projetos. Aomenos no Silveira, somando-se s histricas relaes de comrcio e doaes,

    o mundo dos projetos aparece como nova frente de agenciamentojuruae deagenciar osjurua, importando menos pelos resultados e indicadores do quepelas configuraes relacionais que engendram, tanto em distines internas(entre indivduos e grupos guarani), como no manejo entre descontinuidadee proximidade (incluindo vrias ordens de troca) com os jurua, que umexerccio incisivo entre os Guarani (Macedo, 2010).

    Transversalidadespore vai

    Na cosmopoltica guarani, como vimos, h uma nfase acentuada natransmisso de potncias de Nhanderu e Nhandexy kury queles a quemenviam os nhee(todos os Guarani) e, marcadamente, aos xams. Trata-se,

    conhecimentos guarani pode ou no ter implicaes negativas. No parece haver uma interdioapriorido que se deve ou no fazer ou mostrar; ou, se h, ela pode ser revertida de acordo comas circunstncias. As afeces a que cada um est sujeito dependem da configurao relacionalem jogo, em que as posies no so fixas e os agentes so mltiplos (Macedo, 2011).

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    portanto, de um caso emblemtico de xamanismo vertical (Hugh Jones, 1996;Sztutman, 2005), em contraste ao xamanismo predominantemente horizontalde outros amerndios, em que cabe aos xams se apropriarem de potnciasanimais e de outros agentes (visveis e invisveis) que habitam num mesmoplano de existncia, cujo prottipo da relao a afinidade e no a ancestra-

    lidade. Como destaca Sztutman, tal xamanismo vertical vai ao encontro doprofetismo, enquanto o xamanismo horizontal remete ao canibalismo comodispositivo ontolgico. Contudo o autor aponta a continuidade lgica entreambos, como um grupo de transformaes que se desloca do eixo horizontalpara o eixo vertical. Ao invs de seu oposto, o profetismo seria ento a radi-calizao da guerra, convertendo a violncia em palavra potente (Sztutman,2005, p. 383).

    Viveiros de Castro (2008) tambm problematiza a tipificao de cosmo-polticas indgenas a partir da coordenadas horizontais e verticais, propondoa forma da transversalidade. Associada ao pensamento de Deleuze e Guatarri

    (2004), transversalidade remete comunicao entre heterogneos por meiode multiplicidades intensivas ou rizomticas (Viveiros de Castro, 2008, p. 81).Na paisagem amaznica, ainda com o autor, tanto o xam como o guerreiroconstituem comutadores de perspectivas, o primeiro na zona interespecficae o outro na zona inter-humana ou intersocietria. Tais zonas constituemintensidades superpostas, no guardando entre si uma relao de adjacncia(horizontal) ou de englobamento (vertical). Da a instabilidade da posio dehumano e o confronto de perspectivas inexoravelmente implicado nas cosmo-polticas amerndias (Viveiros de Castro, 2008, p. 96). Contudo o autor destacao rendimento do recorte analtico entre verticalidade e horizontalidade por

    suas diferentes nfases no que diz respeito alteridade. No caso do xamanismohorizontal, a diferena entre humanos vivos e humanos mortos se aproximada semelhana entre humanos mortos e no-humanos vivos. Todo mortocontinua um pouco bicho; todo bicho continua um pouco gente (Viveiros deCastro, 2008, p. 101). J no xamanismo vertical os mortos humanos passam aser vistos mais como humanos do que como mortos, sob a figura do ancestral.Neste ltimo caso, a posio do xam tende a se hipertrofiar, constituindo ocentro no qual orbita o coletivo.

    Entre os Guarani, a despeito do tamicorresponder posio hipertro-fiada, ou magnificada (Wagner, 1981; Sztutman, 2005)24, sua conexo com osxondrofaz emergir essas transversalidades. Como transformao do guerreiro

    24Expresso cunhada por Wagner (1981) ao discorrer sobre apessoa fractalentre os melansios,magnificao remete capacidade relacional maximizada de um sujeito conter outros sujeitose causar aes. A seu turno, Sztutman (2005) conferiu grande rendimento a essa acepo nombito das cosmopolticas amerndias, estabelecendo analogias entre processos constitutivosde pessoas e grupos sociopolticos.

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    tupi, o xondroagencia foras no eixo horizontal da alteridade, enquanto otamiprivilegia o eixo vertical. Ambas as posies no espelham, porm, umacartografia fixa nesses eixos. Como pudemos acompanhar, os xondrodevemser leves (como o sopro e no a carne) e submissos aos tami, e estes ltimosdevem interagir com agentes patognicos (inscritos na carne dos sujeitos) nas

    curas xamnicas. Assim, vetores vaiepor talvez sejam mais produtivos parapensar tais cosmopolticas do que os eixos horizontal e vertical, a despeitode estarem associados a eles. Vai remete aos agenciamentos confinados econfinantes nesta terra, yvyvai. Como ouvi do tamiJejoko, mboxy oin ko arai

    guyrupigua(o que causa raiva ou dor existe aqui debaixo das nuvens). J ovetorporremete ao que transita entre mundos, tendo acesso aos patamarescelestes de Nhanderutet.Mas a condio humana/guarani implica a inexo-rvel conexo entre esses vetores, tanto por parte dos tamicomo dos xondroou de qualquer um cujo corpo convirja nhee pore nhee vai.

    Podemos ainda reconhecer a transversalidade imanente aos vetores

    vaieporna triangulao das posies de tamie xondrocom a de ipajevae,traduzido pelos Guarani como feiticeiro, ou aquele que faz feitio. UmMbya me disse no Silveira quepaj,na lngua guarani, um termo considera-do pejorativo, referente a feiticeiro (ipaje: feitio), mas, em lngua portuguesa,adquiriu o sentido semelhante a tami. Outra designao para aqueles quetraduzem como feiticeiros mbovykyvae, aquele que brinca, ou aqueleque maltrata.

    Como entre muitos outros amerndios, improvvel encontrar algumque se apresente como feiticeiro. Mas igualmente improvvel algum que

    no acuse ou ao menos desconfi

    e de outros como feiticeiros. Ocorre que, namaioria dos casos, o suposto feiticeiro um tami, algum que j realizoucuras e liderou cantos na opy. Nimuendaju (1987), ao comentar sobre os agru-pamentos guarani que migravam do Paraguai para o Brasil, ressalta que eleseram guiados por um paj, por vezes um terrvel feiticeiro.

    Tive oportunidade de ouvir esse tipo de acusao em diversas ocasiesde minha experincia etnogrfica. Por exemplo, um rapaz acusou um tamideoutra aldeia de ser o responsvel por seus adoecimentos e outros infortnios,o que esse rapaz descobriu em sonho. Outro exemplo envolve dois homensde um mesmo grupo local. Um sujeito com srios problemas de alcoolismo

    se submeteu a sesses xamnicas com seu cunhado (marido de sua irm),que vem almejando ser reconhecido como tami.Esse sujeito contudo passoua acusar o cunhado-tamide estar enfraquecendo-o em vez de fortalec-lo,impedindo assim sua recuperao. Em uma de suas bebedeiras, tal sujeitoagrediu a filha de sete anos do cunhado com a irm para se vingar e depoisteve que fugir para outra aldeia. Um terceiro caso a ser mencionado comoexemplo envolve dois tamide diferentes ncleos habitacionais da mesma

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    Terra Indgena. A relao entre ambos marcada por grande rivalidade e,durante a dcada de 1990, um desses tamise encantou por uma das filhasdo outro. Ele conta que no conseguia parar de pensar nela e desej-la,diagnosticando tal sentimento como feitio do tami rival. Tais supostosfeiticeiros inserem doenas/afetos nos corpos de suas vtimas de modos

    intangveis, contando com espritos auxiliares, como donos extra-humanosou gue, para introduo de agentes patognicos que s so materializadosquando extrados pelo tami.

    Enquanto, na dupla tamie xondro vai, os princpiospore vaiatuam emcomplementaridade e assimetria, a dupla de posies tamie ipajevaeestovirtualmente superpostas na mesma pessoa. Aquele que reconhecido poruns como tamipode ser reconhecido por outros como ipajevae. Todo tamitraz em si essa ambiguidade. Mas aquele que agencia foras junto aos gueou a donos extra-humanos de yvy vai(esta terra) no agencia foras oriundasde Nhanderue Nhandexykury. Alguns Guarani discordam dessa proposio,

    afirmando que um mbovyky vaepode enganar Nhanderu,cantando para elee, ao mesmo tempo, capturando foras com agentes agressores confinadosnesta terra. Seja como for, o que na dupla de posies ipajevae e tami umacontradio ou uma transgresso, na dupla tamie xondrovai uma soluo,mantendo separadas as pores de smen no ventre de Nhandexy.

    J no que diz respeito dupla de posies xondro vaie ipajevae,ambasesto associadas incorporao do princpio vai. No caso dos xondro, porm,essa incorporao se d sob regras acordadas pelo coletivo (retomando umafala j citada: os xondrovaicuidam da parte feia da aldeia) e sob orientaodo tami. J o ipajevae aquele cuja atuao no legitimada ou regrada pelocoletivo, constituindo o avesso do tami. Outro contraste a ser mencionado que os xondrovaiincorporam foras de animais, dos mortos ou de donosextra-humanos para combaterem (ou se esquivarem) por meio da destrezado corpo. J a guerra dos ipajevae invisvel, afetando os corpos por meio dedoenas ou sentimentos. Assim, a posio antagnica ao tami a de ipajevae,no havendo ali a complementaridade assimtrica da relao com o xondrovai. Contudo tamie ipajevaeso posies que podem incidir em uma mesmapessoa, a depender da perspectiva do outro.

    Desse modo, como sujeito magnificado, que traz consigo uma mul-

    tiplicidade de outros, o tamitem junto a si e, como sujeito-coletivo, temem si os xondro, e ainda, virtualmente, o ipajevae. certo que os Guaranidiferenciam vetores vai epor, ouaquele que canta e aquele que caa,mas a existncia de ambos imanente pessoa e vida nesta terra onde serealiza a humanidade. A pessoa guarani habitada por nheepore nheevai,por desejos de partir e de ficar, de rezar e de comer, de danar e de caar(ou casar).

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    Os brancos, nessa configurao de agncias, so associados ao princpiovai. Como comentado em nota anterior, a hiptese mais frequente entre osGuarani de que o nheedosjuruaseja confinado nesta terra ou em patamaresprximos a ela. No por acaso, uma das designaes alternativas parajuruayvypo, que pode ser traduzido como aqueles que foram feitos e pertencem

    terra (ver tambm Ladeira, 2007). Seu nheefaz dosjuruaconfinados e con-finantes. A comidajuruadeixa o corpo pesado, o pensamentojurua presoao kuaxia(papel), as cercasjuruarestringem cada vez mais a possibilidadede formao de novas aldeias, entre outras afeces (Macedo, 2010). Da oprotagonismo crescente dos xondro, tomando a frente no mundo dos projetose polticas. A um s tempo, da o protagonismo reiterado dos tami, tomandoa frente na cosmopoltica que incide nos corpos por meio de agenciamentospatognicos e curas xamnicas. Ambas as posies, tamie xondro, atuali-zam assim o desafio de Nhandexy (ou de todo Guarani), fazendo com que asduas pores de smen compartilhem um mesmo ventre (ou numa mesma

    yvyvai) sem que sucumbam ao Um, seguindo diferenciadas e diferenciantes.

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