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 Merleau-P onty leitor dos clássicos Carlos Alberto Ribeiro de Moura [email protected] Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil resumo Este trabalho pretende comentar a doutrina que Merleau-Ponty expõe, em seus distin- tos períodos, sobre o que caracteriza a obra clássica e sua interpretação. Aponta-se como pressupostos dessa doutrina a admissão de uma certa filosofia da linguagem, bem como de uma particular teoria da produtividade. Em função disso, pergunta-se se, efetivamente, foi feita, ali, uma crítica radical da “filosofia da consciência”, como usualmente se supõe. palavras-chave arte; filosofia; criação; interpretação; linguagem; intencion alidade I Qual seria, para Merle au-P onty , o ver dadeiro ou autênti co “praze r do texto”? Se esta p ergunta mimetiz a, em sua própria formulação , o título de um livro que Roland Barthes publi cou em 1973, é porque soa constante , na filosofia de Merleau -Ponty , apontar para uma convergência plena entre arte e filosofia,ao menos em nosso mundo c ontempo râneo. Assim, se a “metafí sica clássica podia ser considera da como uma “esp ecial idade inteiramente divorciada da literatura, para Merleau-P onty é exatamente isso que muda, quando se abr e uma n ova “dimensão de pesquisa”que, se na ver dade não foi inaugurada pela “filoso fia da existência ”, toda via encontra, nesta,o seu mais fo rte eco e a sua legitima ção ofic ial. Nesta no va “dimensão d e pesquisa ”, não se trata mais de “explicar” o mund o, através de uma teia de conceitos, nem mesmo de investi gar as suas “condições de possibi lidad e”. Agora se recon hece que a vida é metafísica latente, assim 97 doispontos, Cu rit ib a, o C ar lo s, v ol.9,n.1, p .97-119,ab ril, 2012 Recebido em 20 de dezembro de 2011.Aceito em 10 de fevereiro de 2012.

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Merleau Ponty leitor dos classicos.

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  • Merleau-Ponty leitor dos clssicos

    Carlos Alberto Ribeiro de [email protected] de So Paulo, So Paulo, Brasil

    resumo Este trabalho pretende comentar a doutrina que Merleau-Ponty expe, em seus distin-

    tos perodos, sobre o que caracteriza a obra clssica e sua interpretao. Aponta-se como

    pressupostos dessa doutrina a admisso de uma certa filosofia da linguagem, bem como de

    uma particular teoria da produtividade. Em funo disso, pergunta-se se, efetivamente, foi

    feita, ali, uma crtica radical da filosofia da conscincia, como usualmente se supe.

    palavras-chave arte; filosofia; criao; interpretao; linguagem; intencionalidade

    I

    Qual seria, para Merleau-Ponty, o verdadeiro ou autntico prazer dotexto? Se esta pergunta mimetiza, em sua prpria formulao, o ttulo deum livro que Roland Barthes publicou em 1973, porque soa constante,na filosofia de Merleau-Ponty, apontar para uma convergncia plena entrearte e filosofia, ao menos em nosso mundo contemporneo. Assim, se ametafsica clssica podia ser considerada como uma especialidadeinteiramente divorciada da literatura, para Merleau-Ponty exatamenteisso que muda, quando se abre uma nova dimenso de pesquisa que, sena verdade no foi inaugurada pela filosofia da existncia, todaviaencontra, nesta, o seu mais forte eco e a sua legitimao oficial.Nesta novadimenso de pesquisa, no se trata mais de explicar o mundo, atravsde uma teia de conceitos, nem mesmo de investigar as suas condies depossibilidade.Agora se reconhece que a vida metafsica latente, assim

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  • como a metafsica explicitao da vida, e o que se torna urgente formular uma experincia do mundo, situada aqum de todo sobrevooconceitual. E se assim, a filosofia e a literatura tm a mesma tarefa, poisse a verdadeira filosofia significa reaprender a ver o mundo, ento umahistria narrada pode significar o mundo tanto quanto um tratado defilosofia (MERLEAU-PONTY, 1945, p. XVI). E essa comunidade deobjeto e de tarefas levar a uma homogeneidade das tcnicas de exposio,a expresso filosfica assumindo, doravante, as mesmas ambiguidadesda expresso literria (MERLEAU-PONTY, 1966, p.49).

    Se no mundo contemporneo a arte e a filosofia caminham de mosdadas, rezando ambas pela mesma cartilha, aquela da volta ao concreto, porque, aqui e ali, se redescobre o mundo percebido. Este mundopercebido aquele em que vivemos, mas que fomos levados a esquecer,dada a ao deletria da filosofia francesa - ou antes, do espritofrancs em geral. Porque so estes dois irmos siameses que o desva-lorizam sistematicamente, enquanto mera aparncia, aquilo que apenasencobriria e velaria o verdadeiro mundo, soletrado sempre e apenaspela cincia (MERLEAU-PONTY, 2002, p.12). E se essa censura norepresenta qualquer desmentido da cincia, porque se trata, sobretu-do, de perguntar se esta nos fornece uma representao to completado mundo, que no daria mais lugar a nenhuma questo vlida, ao ladode sua tpica prpria, sempre restrita s leis, ao clculo e mensurao.Mais ainda, a prpria cincia contempornea, liberta dos mitos da cin-cia clssica, que nos convida a esta reabilitao do mundo percebido, aoreconhecer-se como sempre aproximativa.Afinal, o concreto no podeser deduzido das leis, ao contrrio, a lei sua expresso aproximativa, oque deixa sempre subsistir uma opacidade. E se doravante o concretoconvida a cincia a uma elucidao interminvel, ele no pode mais serconsiderado, ao modo clssico, como uma aparncia a ser sempreultrapassada (MERLEAU-PONTY, 2002, p.15).

    Vem da o elo estreito entre uma filosofia da percepo, que se dedi-ca a reaprender a ver aquele mundo, sempre recalcado pelo espritofrancs, e a arte em geral, ou a pintura, em particular, que nos reconduz viso da coisa mesma (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 53).Tanto napercepo quanto na arte, a definio e a anlise no substituem a expe-rincia direta.Tanto no poema quanto na coisa percebida, no se pode

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  • separar o fundo e a forma, o que apresentado e a maneira pela qualaquilo se apresenta. E por isso mesmo o romance bem sucedido noexiste como soma de ideias ou de teses, mas sim como uma coisa sens-vel, que se trata de perceber nos seus detalhes.Assim como na literatura,tanto na percepo quanto na pintura impossvel separar a coisa de suasmaneiras de aparecer (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 56). Por isso,nenhuma surpresa se Czanne, lido por Merleau-Ponty, fosse apresenta-do por ele como sendo o retratista, por excelncia, do horizonte da pr-objetividade, tal como este era descrito na Fenomenologia da percepo.Afinal, Czanne no separava as coisas de suas maneiras de aparecer e,por isso mesmo, ao seu modo, ele j retraava a genealogia do objetivoa partir do pr-objetivo, do determinado a partir de sua fonte noindeterminado positivo, ele se dedicava a pintar a vibrao das aparn-cias que o bero das coisas (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 30). Emsuma, Czanne j pintava a mesma etiologia que a Fenomenologia dapercepo nos narrava.

    E sabe-se que esta convergncia entre arte e filosofia no , de formaalguma, uma obsesso exclusiva do jovem Merleau-Ponty, atrelada suafilosofia da existncia.Ao contrrio, ela permanecer reafirmada em Ovisvel e o invisvel.Afinal, ali se dir que a filosofia faz ver por palavras, eque ela faz isso simplesmente como toda a literatura (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 319). Se o sensvel e a vida no inspiram nada a quemno escritor, eles so plenos de coisas a se dizer para aquele que fil-sofo, - quer dizer,escritor. E, por isso, a filosofia do sensvel poderser apresentada como literatura (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 305). EMerleau-Ponty no deixar de indicar que uma de suas metas, neste seultimo perodo, era precisamente retomar e aprofundar a viso de Souriau,aquela que considerava a filosofia como sendo nada mais, nada menos, doque a arte suprema (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 251).

    Isso significaria que o prazer merleau-pontyano do texto seria umprazer esttico, no sentido usual ou corriqueiro da palavra? As suaspginas indicam, de forma bem barulhenta, que se trata exatamente docontrrio.Afinal, mesmo nos ensaios em que comenta exclusivamente asobras de arte, e no de filosofia, Merleau-Ponty no deixar de exprimirsua exasperao diante dos temas usuais da esttica, a ponto de relembrarum texto em que Heidegger censurava uma certa esttica, por situar,

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  • abusivamente, a obra de arte nos domnios do confeiteiro.Assim, quan-do analisa a pintura de Czanne, Merleau-Ponty faz questo de sublinharque sua obra no qualquer fabricao orientada pelos desejos dobom gosto (MERLEAU-PONTY, 1966, p 30). Uma tese que, no finaldas contas, devemos simplesmente generalizar, reconhecendo que nemmesmo existe arte de agrado (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 32). Essaobsesso permanecer no perodo intermedirio da filosofia deMerleau-Ponty, com o reconhecimento de que o insubstituvel na obrade arte aquilo que faz dela muito mais que um meio de prazer: umrgo do esprito (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 96). E o ltimo textoque Merleau-Ponty publica em vida, O olho e o esprito, discorrer longa-mente sobre a pintura, sem enunciar, em momento algum, qualquerjuzo de gosto.

    Nos textos de seu primeiro perodo, o essencial da arte, assim como dafilosofia, estar na criao de um sentido absolutamente indito.Tese quesofrer uma certa inflexo, no perodo intermedirio.Assim, se Balzac eCzanne so mais que animais cultivados, precisamente pelo reco-nhecimento de que o fundamental na arte a criao de um sentidointeiramente novo, e no propiciar qualquer prazer esttico. Afinal,sempre se pode fabricar objetos que do prazer, simplesmente ligandode outra maneira ideias j prontas e apresentando formas j vistas(MERLEAU-PONTY, 1966, p. 32). A verdadeira arte expresso, -coisa que ningum deve confundir com a mera traduo de um pensa-mento j dado. Assim, se exprimir criar, e se a criao no se d semsituao e sem motivao, resta que o sentido daquilo que o artistavai dizer no est em parte alguma, nem nas coisas, que ainda no sosentido, nem nele mesmo, em sua vida no formulada (MERLEAU-PONTY, 1966, p. 32).Assim, no primeiro perodo de sua filosofia, paraMerleu-Ponty expresso esta operao difcil e genial, no sentidokantiano da palavra, em que, por princpio, a concepo no podepreceder a execuo. E nessa mesma linha que a Fenomenologia dapercepo opor a fala autntica, aquela que formula pela primeira vez,a uma expresso segunda, que constitui o uso comum de nossalinguagem emprica (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 207). Overdadeiro autor, partilhando com seu leitor a mesma linguagem insti-tuda, insensivelmente desvia os signos de seu sentido comum, e empurra

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  • o leitor para um outro sentido, que este terminar por alcanar. O livro um aparelho para criar significaes, a linguagem falante a ope-rao pela qual um certo arranjo dos signos e significaes disponveissecreta uma significao nova (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 19/20).Assim, o prazer merleau-pontyano do texto sempre aquele trazido pelocontato com um sentido indito.

    Isso excluir liminarmente, do comentrio merleau-pontyano da arteou da filosofia, categorias como imitao ou semelhana. Se o quadrorepresenta objetos, ou at mesmo pessoas que tm nomes, sua funo no, de forma alguma, nos dirigir a algo de exterior. Isso seria supor que asignificao da pintura est fora dela, em coisas para as quais ela apontaria.Mas no este o trabalho da pintura vlida, como aquela de Czanne,que longe de ser imitao do mundo, sempre um mundo para si(MERLEAU-PONTY, 2002, p. 56). Na experincia do quadro, no hreenvio a algo de exterior, ou semelhana em relao a algum modelo.O espetculo presente na tela algo que se basta. E o mesmo vale paraa literatura, desde que saibamos distinguir, com Mallarm, o uso poticoda lngua, da tagarelice quotidiana. Se o tagarela apenas nomeia coisasno uso emprico da linguagem, a fala potica inteiramente guiada pelaprpria linguagem, sem referncia direta ao prprio mundo, nem verdade prosaica (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 60). E tem todo cabi-mento estender ao romance e literatura em geral, o que Mallarm diziada poesia. E exatamente isso que Merleau-Ponty estender, tambm, prpria filosofia.Afinal, neste momento, s podia ser de bom tom procla-mar, em alto e bom som, que a filosofia no o reflexo de uma verdadeprvia mas, assim como a arte, a realizao de uma verdade(MERLEAU-PONTY, 1945, p. XV).

    Nos textos de seu primeiro perodo, esta criatividade era comentadapor Merleau-Ponty, seguindo fielmente as lies de Goldstein, comosendo uma produtividade do homem (MERLEAU-PONTY, 1945, p.229). Mas resta que, nesse momento, a palavra homem s podia sercompreendida, por Merleau-Ponty, no interior de uma certa filosofia daconscincia. E isso no era, de forma alguma, sem consequncias.Assim,quando se procurava descrever a inteno significativa em estadonascente, esta tarefa no se fazia sem instalar uma oposio entrenatureza e cultura. Afinal, Merleau-Ponty descrever este momento da

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  • criao como sendo aquele em que a existncia se polariza em umcerto sentido que no pode ser definido por nenhum ser natural. E afala autntica ou criadora ser compreendida, neste momento, comosendo o excesso de nossa existncia em face do ser natural(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 229). E sabe-se que esta existncia serpura e simplesmente identificada ao cogito tcito. Por trs da palavrahomem, o cogito tcito que sempre se transcende em direo a umcomportamento novo..., ou em direo ao seu prprio pensamento pormeio de seu corpo e de sua fala (MERLEAU-PONTY, 1945, pp. 462/226) uma conscincia a soberana detentora daquela produtividadeou potncia aberta e indefinida de significar, o polo de onde se irradiaum sentido indito, que posteriormente se sedimentar na cultura. EMerleau-Ponty no deixar de indicar que essa produtividade deve servista por ns como um fato ltimo, pois qualquer explicao resul-taria em neg-la, seja a explicao empirista, que reconduz as signifi-caes novas s significaes dadas, seja a explicao idealista, que pe umsaber absoluto imanente s primeiras formas do saber (MERLEAU-PONTY, 1945. p. 447). Nessas circunstncias, como no haveria umadvida de Czanne? Se a criao tem sua fonte exclusiva em um cogi-to insular, como no suspeitar, a cada momento, tanto da validade daobra, para o seu prprio criador, hoje e amanh, quanto da sua comuni-cabilidade s outras conscincias?

    Nos textos do perodo intermedirio de Merleau-Ponty, a vida dopintor ou do escritor j no ser mais to dura. E isso porque, ali, j seprepara a reabilitao ontolgica do sensvel, a inscrio plena dointeligvel no sensvel. Uma vez neutralizado o poder imperial daconscincia, no se dir mais que o sentido daquilo que o artista vaidizer no est em parte alguma. Se permanece verdadeiro que a pinturanunca representao, mas sim expresso criadora, resta que, doravante,o pintor concentra, na tela, um sentido difuso no que ele v, o estilogermina na superfcie de sua experincia, onde um sentido operante elatente encontra os emblemas que o libertam e o tornam manejvel peloartista, ao mesmo tempo que acessvel aos outros (MERLEAU-PONTY,1960, p 66). Da mesma forma, se o escritor faz um uso criador dalinguagem, a fala autntica apenas libera um sentido cativo nas coisas, agrande prosa no seno a arte de captar um sentido que jamais tinha

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  • sido objetivado at ento, e de torna-lo acessvel a todos os que falam amesma lngua (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 45). Assim, se a obraliterria certamente criada, resta que essa criao no se faz mais ex nihi-lo, mas sim a partir daquilo que o escritor v (MERLEAU-PONTY,1996, p. 217). E, por isso mesmo, entrar em eclipse a ideia de um mila-gre da expresso, to presente na Fenomenologia da percepo. Assim, sedoravante a criao artstica sempre metamorfose de um sentido cativonas coisas, ela no o no sentido dos contos de fadas, milagre,magia,criao absoluta em uma solido que, agora, Merleau-Pontyconsiderar agressiva, e que era, certamente, a solido de seu antigoCzanne.Agora, longe de celebrar qualquer solido ontolgica, a meta-morfose do sentido cativo nas coisas ser sociabilidade originria,resposta quilo que o mundo, o passado, as obras feitas pediam(MERLEAU-PONTY,1960, p. 73).Assim, doravante todas as artes devemser vistas como leituras criativas do mundo. E se antes a filosofia era arealizao de uma verdade, o contrrio mesmo de qualquer reflexo deuma verdade prvia, a partir de agora ela se tornar aquela discreta leitu-ra do mundo, que Foucault expressamente censurar: sua tarefa sertraduzir o simbolismo tcito da vida em um simbolismo consciente,seu papel ser aquele de gestora da passagem do sentido latente aosentido manifesto (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 58).

    Por isso, claro que, no interior deste novo cenrio, no haver maislugar algum para qualquer dvida de Czanne. Muito pelo contrrio.O Czanne comentado por Merleau-Ponty no seu primeiro perodo,ainda era algum visado atravs das lentes de uma filosofia da mambiguidade, aquela que se comprazia com uma pura mistura da fini-tude e da universalidade, da interioridade e da exterioridade(MERLEAU-PONTY, 2000, p.48). Doravante, aquela dvida arcaicade Czanne ceder seu estrelato a uma convico nova e bem firme,como aquela de Stendhal, com a sua certeza de que seria lido em cemanos (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 93).Afinal, no interior desta novainterpretao, o pblico ao qual a arte se dirige, antes de ser antecipada-mente dado, suscitado pela prpria obra. O artista mais forma o seupblico do que o segue, ele lhe prope valores que apenas a seguir estepblico reconhecer como seus valores. Mais ainda, se h um julgamentoda obra, ele se confunde com o dilogo perptuo entre todas as falas, e a

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  • antiga dvida ser substituda pela certeza interior de ter dito aquiloque, nas coisas, esperava ser dito, e que, portanto, no poderia deixar deser entendido por X... (MERLEAU-PONTY, 1960, pp. 92/3). E seexpresso caminha de homem a homem atravs do mundo comum queeles vivem, ento ser preciso reconhecer que, em regime de boaambiguidade, ningum precisa escolher entre o para si e o para outrem,visto que, no momento da expresso, o autor e seu publico esto liga-dos sem concesso (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 92). Se aquilo que oescritor diz no pr existe sua obra, todavia no h mais qualquer difi-culdade em compreender como pode haver criao de um sentido novoe, ao mesmo tempo, sua compreenso por outrem.Afinal, o mundo queo escritor diz o mundo visvel, sensvel e mudo,ao qual estamos todosabertos (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 203).

    Mas certo tambm que esta celebrao eufrica do sentido indi-to, em qualquer uma de suas variantes, seja em sua criao absoluta,nos textos do primeiro perodo, seja na sua metamorfose criadora deum sentido latente na experincia, ali na fase intermediria, ainda nopermite, por si s, que se possa discernir entre o autor clssico e o noclssico. Se essa distino, trivialmente necessria, s levemente sugeri-da nos textos da primeira fase, ela ser explicitada por Merleau-Ponty emseu perodo intermedirio.Agora se dir que aquilo que faz da obra dearte um rgo do esprito, que tem seu anlogo em todo pensamentofilosfico ou poltico, desde que este seja produtivo, conter,melhorque ideias, matrizes de ideias, cujo sentido ns nunca terminaremos dedesdobrar (MERLEAU-PONTY, 1960, pp. 96/7).A obra clssica aque-la que se presta a um comentrio infinito. Em suas corriqueiras analogiasde tudo com a decodificao fenomenolgica de nossa vida perceptiva,Merleau-Ponty dir que o grande livro to singular e inesgotvelquanto a coisa vista (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 16). E se assim,apenas a obra clssica pode ser caracterizada como uma instituio. Se ainstituio matriz simblica, que faz com que haja abertura de umcampo, de um porvir, porque ela o estabelecimento, em uma expe-rincia, de dimenses em relao s quais toda uma srie de outrasexperincias tero sentido, ela inaugura uma histria (MERLEAU-PONTY, 2003. p. 38). Por isso, se a significao total de um livro sexiste no infinito, como soma dos encontros de outros espritos com a

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  • obra, resta que este sentido externo s existe graas a um sentidointerno obra, que sempre aberto (MERELAU-PONTY, 2003, p.41). Desde ento, se Goethe dizia que o gnio produtividade pstu-ma, na traduo proposta por Merleau-Ponty ns deveremos afirmarque toda instituio gnio (MERLEAU-PONTY, 2003, p. 38).

    primeira vista, esta tese de Merleau-Ponty parece apenas reeditarum lugar comum bastante trivial, por todos ns bem conhecido.Afinal,quando talo Calvino se perguntava o que um clssico, sua resposta iaexatamente nesta direo: a obra clssica aquela que faculta inmerasleituras. E desde os anos 1950, Umberto Eco apresentava como carac-terstica mais marcante da nova arte querer compreender-se semprecomo obra aberta, aquela que deixa a critrio exclusivo de seu distintopblico as suas inevitavelmente mltiplas interpretaes. Mais ainda,quando Walter Benjamin se referia aura da obra de arte, ele sinalizavacom isso a evidncia que a obra de arte um produto, mas to enig-mtico, que nenhuma inspeo de seu consumidor seria capaz de esgo-tar a sua significao. E se quisermos recuar para bem mais longe notempo, ali no 49 da Crtica da faculdade de julgar, Kant apresentava aideia esttica como uma representao que d muito a pensar, massem que qualquer pensamento determinado, qualquer conceito, lhe sejaadequado.Assim, a ideia esttica nos conduz a vrios pensamentos deter-minados, sem que qualquer um deles a exprima adequadamente. Por isso,Kant dir que nenhuma lngua pode exprimir completamente uma ideiaesttica, e torn-la inteligvel. Mas ento, ser que Merleau-Ponty apenasreataria com este iderio, h muito tempo enraizado, e por isso mesmobastante difuso? Digamos, na contracorrente, que o especfico de suacompreenso da obra clssica s se revela quando situamos a sua teseno interior do cenrio filosfico em que ela se instala, e que lhe d, alis,seu fundamento. E esse cenrio envolve uma determinada filosofia dalinguagem, bem como uma particular filosofia da produtividade.

    II

    Esta compreenso de Merleau-Ponty sobre o que um clssico indisso-civel, em primeiro lugar, de sua tese segundo a qual toda linguagem

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  • criadora indireta ou alusiva. Se o escritor fosse, invariavelmente, umbem sucedido prosador sartriano, - este personagem sempre siderado pelassignificaes diretas, - nem haveria lugar para mltiplas interpretaesde uma obra.Afinal, se ao contrrio do poeta, que transforma as palavrasem coisas, o prosador ao gosto de Sartre algum que lida com signifi-cados, ele tem na sua linguagem um instrumento para a busca da verdade.Se a prosa essencialmente utilitria e o prosador se serve das palavras,aqui a linguagem se presta a um uso bem definido. A arte da prosa seexerce sobre o discurso, sua matria naturalmente significante: vale dizer,as palavras no so, de incio, objetos, mas designaes de objetos(SARTRE, 1989, p. 18). Se a linguagem do prosador essencialmentedesignativa, ento se deve dar razo a Valry: existe prosa quando nossoolhar atravessa a palavra como o sol ao vidro. E por isso, garante Sartre,frequentemente estamos em posse de uma ideia, que nos foi comunicadapor palavras, sem que nos lembremos de nenhuma delas. E se assim, naprosa bem sucedida a prpria linguagem deve se apagar, ou se fazer esque-cer, ao colocar o seu feliz leitor em contato direto com a coisa mesma.

    Este prosador sartriano era, por isso, apenas um usurio a mais daqui-lo que Merleau-Ponty chamava de fantasma de uma linguagem pura.Essa linguagem pura era aquela sempre cativa da concepo clssica daexpresso, invariavelmente compreendida como uma pura relao dedenotao entre signos e significaes (MERLEAU-PONTY, 1969, p,40). Essa linguagem direta, que se faz esquecer em benefcio da coisamesma, trata a literatura como mera variante do enunciado, supostaforma pura de expresso, que associa signos a acontecimentos ou aideias, e nos faz simplesmente escorregar do signo para o objeto que eledesigna. Sabe-se qual ser a objeo de fundo que Merleau-Ponty dirigira essa concepo clssica da expresso: se este trivial simples ainda podecomentar a nossa linguagem instituda ou emprica, resta que ele incapaz de dar conta da linguagem criadora ou transcendental.Aquelaexpresso pura ser sempre une jeune fille range, visto que ela scontm aquilo que mostra (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 7). Se a fala puro signo para uma pura significao, ento no h virtude da fala,nenhum poder nela escondido (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 12).

    justamente este poder escondido da fala criadora que Merleau-Ponty pretende resgatar, atravs de sua muito particular apropriao das

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  • teses de Saussure. O que ter por resultado final, como se sabe, umacompreenso no mais instrumentalista ou sartriana da linguagem. Longede entrar na sua nova cena como simples meio para um fim que lhe exterior, mera traduo de um texto ideal pr-dado, a linguagem serinterpretada, doravante, como uma espcie de ser (MERELEAU-PONTY, 1960, p. 54). Ela ter, portanto, uma vida prpria, e por issomesmo nunca se reduzir pura denotao de uma significao que lheseria prvia. Afinal, a lio a se extrair de Saussure a de que os signosnada exprimem quando tomados um a um, isoladamente, mas apenas emseu jogo com os demais signos. Se os signos so diacrticos, se eles sdizem alguma coisa enquanto se perfilam sobre os outros signos, entoo sentido a maneira pela qual um signo se comporta em relao aosoutros signos, a relao lateral de signo a signo que funda a relao finaldo signo ao sentido (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 51). E se essalinguagem criadora assim sempre indireta ou alusiva, o sentido no podeser destacado da prpria linguagem, e esta no pode se fazer apagar ouesquecer, em benefcio de um suposto sentido puro.Ao contrario doque ocorria em regime de expresso pura, a linguagem indireta, longede ser um mero ndice para significaes prontas, aquilo que faz existiras significaes (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 53). E se assim, nenhu-ma linguagem se perfaz para fazer aparecer a coisa mesma, visto que osentido est implicado pelo edifcio das palavras, antes que designado porelas (MERLEAU-PONTY, 1960, p, 103). E se a coisa mesma, asignificao sem signo, no passa de pura iluso, ns deveremos aban-donar tambm os outros mitos conjugados quele da expresso pura, bemcomo extrair as consequncias desta nova interpretao.

    Assim, se nossa linguagem nunca denotativa, se no podemos nemmesmo sonhar com uma linguagem que nos d acesso a significaesnuas, se os signos tomados um a um no tm poder significante que sepossa isolar, se o prprio sentido no nada de prvio linguagem, mass existe graas ao seu trabalho, ento ser preciso renunciar ao lxico cls-sico da adequao entre um representante e um representado, visto queno h significao prvia linguagem qual esta deveria se adequar.Desde ento, se deve reconhecer que no h expresso absoluta ouconsumada, assim como nenhuma comunicao poder ser integralou definitiva (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 42). Por isso, se o prosador

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  • segundo Merleau-Ponty tambm se ocupa com a verdade, assim comoo seu homnimo sartriano, ele saber, contudo, que sua linguagem apenasfaz transparecer o verdadeiro, mas no o toca. E se assim, se alinguagem nunca cessa para dar lugar a um sentido puro, existir sempreuma opacidade da linguagem, sancionada por sua perptua referncia asi mesma (MERLEAU-PONTY, 1960, pp. 98/ 54).

    Mas para Merleau-Ponty esta opacidade, longe de representar umobstculo a ser ultrapassado por alguma ao purificadora sobre anossa linguagem, justamente o que faz desta linguagem um poder espi-ritual, algo que d a pensar, que sempre pode inaugurar umadiscusso, ao invs de monotonamente reproduzir coisas.Assim sendo, apenas quando concebemos a linguagem como indireta que se podecompreender porque uma obra clssica contm, antes que ideias, matrizesde ideias, que nunca terminaremos de desdobrar. E por isso o prosador aogosto de Merleau-Ponty estar bem distante daquele outro, que tinha seurosto rascunhado por Sartre.Ao menos, ele sempre saber que so apenashomnimos entre si o romance como resenha de acontecimentos,como enunciado de ideias, teses ou concluses, como significao mani-festa ou prosaica, e o romance como operao de um estilo, significaooblqua ou latente (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 96).

    esta doutrina da linguagem indireta que estar subjacente s teses doMerleau-Ponty leitor ou historiador dos clssicos da filosofia. Se o livrovlido aquele que se ultrapassa enquanto acontecimento datado, porque ele tem sentido fora de seu contexto histrico. Mais ainda,ele stem sentido fora desse contexto (MERLEAU-PONTY, 1964. p. 253).Se esta filosofia fala falante, no fala falada, porque a prosa da filosofiatambm no ser tecida por qualquer linguagem direta.Ao contrrio, paraMerleau-Ponty a filosofia inseparvel da expresso literria, daexpresso indireta (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 391). Essa aproximaofinal entre arte e filosofia trar o benefcio que se conhece: se a prosafilosfica , ela tambm, expresso indireta, ser preciso reconhecer queuma filosofia, assim como uma obra de arte, um objeto que podesuscitar mais pensamentos que aqueles ali contidos (MERLEAU-PONTY, 1964. p. 253). Mas essa tese, justamente, suscita uma questopreliminar, que dar incio ao severo processo de Merleau-Ponty contra ahistria objetiva da filosofia, que ter em Gueroult o seu alvo principal:

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  • ser que podemos, efetivamente, recensear os pensamentos realmentecontidos em uma filosofia?

    Em histria da filosofia, ser que estaramos invariavelmente condena-dos alternativa entre, por um lado, deformar a obra ou, por outro, repro-duzi-la literalmente? Seramos sempre ou verdicos ou falsificadores? ParaMerleau-Ponty, quem acredita nessa alternativa pensa que o filsofo sempre um prosador sartriano a mais e, por isso, quer que a significaode uma obra seja inteiramente positiva e suscetvel, de direito, a uminventrio que delimite aquilo que ali est e aquilo que ali no est(MERLEAU-PONTY, 1960, p. 202). Mas essa pretenso seria, ao menos,minimamente sensata? Existem razes de sobra para se duvidar. Emregime de linguagem indireta, ser preciso reconhecer que a filosofia,assim como a arte, no cerca seu objeto, no o tem em mos de maneiraque no deixe nada a desejar (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 129).Assim, nenhuma surpresa se, na estante de Merleau-Ponty, Sartre e Guer-oult estiverem situados na mesma prateleira. Contra Sartre, vale a penarelembrar que nenhuma fronteira indica at onde vai Descartes, e em queponto comeam seus sucessores. Por isso, tem tanto cabimento enumeraros pensamentos que esto em Descartes, e aqueles que esto em seussucessores, quanto fazer o inventrio de uma lngua (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 146). Gueroult e Sartre rezam pela mesma cartilha, e isso que fica claro para quem avalia o sentido das metamorfoses dopensamento de Descartes.

    Por um lado, bem certo que Espinosa, Malebranche e Leibnizreivindicam, cada um deles, o seu Descartes e, sua maneira, distribuemdiferentemente os acentos, bem como mudam a relao entre figura efundo na obra de Descartes (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 129). Masser que devemos falar, ao estilo da histria objetiva, que cada um deles,ao seu modo, falsifica Descartes? prefervel reconhecer que, emregime de linguagem indireta, a oposio entre o verdadeiro e o falso no to pertinente para a avaliao de conjunto de uma interpretao.Afinal, o pensamento do filsofo, - o mais decidido que este seja a serexplcito, a se definir, a se distinguir assim como a pensamento alusivodo romancista, no exprime sem subentendido (MERLEAU-PONTY,1969, p. 137). Desde ento, se Descartes Descartes, ele tambm tudoaquilo que o anunciava e tudo aquilo que derivou dele, como o

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  • ocasionalismo de Malebranche, escondido em um canto da Diptrica(MERELAU-PONTY, 1969, p. 130). Nessas circunstancias, teria cabi-mento traar o limite entre aquilo que Descartes pensou e aquilo que sepensou a partir dele? Vem da a comparao que Merleau-Ponty farentre o campo do esprito e o campo visual: assim como este, aqueletambm no limitado por qualquer fronteira ntida, mas se perde emuma zona vaga, em que a alternativa entre a presena plena e a puraausncia no tem mais lugar (MERELAU-PONTY, 1969, p. 131).

    Mas se isso aponta apenas para uma mera analogia entre ver e ler,sempre contestvel, como qualquer analogia, resta que Merleau-pontyformular ainda uma razo de princpio para que se proba, liminar-mente, o inventrio dos pensamentos que estariam realmente contidosem alguma filosofia. A saber, o pensamento de um filsofo no umasoma de ideias, mas antes, um movimento que deixa atrs de si seurastro e antecipa seu porvir (MERLEAU-PONTY, 1969, p. 132). Se aoinvs de ser positiva, a significao da obra aberta, essa significaocomo que solicita a sua prpria metamorfose, e em vo que seprocurar algum pensamento que s pertenceria a Descartes. Por isso, seem regime de linguagem indireta o fechamento de um pensamento impossvel, a questo de se saber a quem um pensamento pertence, nolimite, no pode ter qualquer sentido. (MERLEAU-PONTY, 1969, p.133). E por isso ter todo cabimento propor, ao lado da histria dafilosofia la Gueroult, uma histria do subentendido, em que alinguagem filosfica no ser mais considerada como soma de enuncia-dos e de solues (MERELAU-PONTY, 1964, p. 252).

    Mas esta prpria histria do subentendido suscita uma certa suspei-ta, aquela relativa ao Gueroult que posa, pomposamente, diante de seudistinto pblico, como o campeo mximo da objetividade em histriada filosofia. Que sentido pode ter esta objetividade se, em regime delinguagem indireta, a adequao apenas sinalizada, mas nunca efetiva-mente alcanada? (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 391). E se danatureza mesma da expresso o fato de que ali no se pode enumerar oque dito e o que subentendido, ento toda interpretao de umafilosofia envolve uma escolha subjetiva. A prpria interpretao deDescartes por Gueroult envolve uma perspectiva subjetiva. E paraMerleau-Ponty o subjetivo, ali, j est exatamente na pressuposio de

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  • que toda filosofia feita de problemas, que ela criao e soluo deproblemas (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 241). Afirmar que a filosofiagira em torno de problemas, que ela se resume a determinar incgnitasa partir de termos conhecidos, no efetivamente uma escolha subjetiva?Afinal, se nas Regulae Descartes define assim as suas questes, resta queestas no recobrem a totalidade de sua filosofia (MERLEAU-PONTY,1996, p. 221). E sabe-se que Merleau-Ponty recusar, expressamente, apertinncia da noo de problema para comentar a sua prpria filosofia.

    Isso significaria reconhecer que, em histria da filosofia, estaramoscondenados, de antemo, seja a uma histria que se quer objetiva, e quepor isso mesmo insignificante (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 239),seja ao puro e simples carnaval da subjetividade, ao relativismo e ao ceti-cismo? No se trata disso.Trata-se, sobretudo, de indicar que no estamosobrigados a escolher entre Gueroult ou Hegel. O que Merleau-Pontyprocura definir uma histria da filosofia que no seja nem o aplaina-mento da histria em uma filosofia, mas que tambm no seja idolatria,retomada ou repetio de Descartes (MERELAU-PONTY, 1964, p.251). Mas como obter este difcil equilbrio, um meio termo nuncaprevisto por qualquer dos membros de nossas escolas ou escolhas rivais?Trata-se de encontrar um terceiro caminho que escape ao dilema que seformula a partir da pergunta feita por Gouhier: pode-se colocar a umafilosofia questes que ela no se colocou? Responder no, fazer delasobras separadas, negar a filosofia. Responder sim, reduzir a histria filosofia (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 252/3). Merleau-Ponty histo-riador de Husserl ser o bom exemplo da tentativa de se percorrer umaterceira via, que escape daquela disjuno.

    Afinal, pode-se muito bem ler Husserl, mantendo a profiltica equidis-tncia daqueles vcios simtricos e inversos, a saber, sem mutil-lo avara-mente do que ele deu a pensar aos outros, como faz a histria objetiva,mas tambm sem fazer dessa leitura uma deformao arbitrria. Para tanto,basta comear por reconhecer a existncia de um impensadode Husserl,algo que, por um lado, dele,mas que, por outro lado,d acesso a outracoisa (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 202). Mas para empreender estatarefa, preciso comear por circunscrever um certo plano em que sesitua esta leitura vertical ou filosofante da histria da filosofia. E isso sefaz diferenciando, na obra, entre os objetos de pensamento ou as coisas

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  • ditas, por um lado, e as articulaes entre as coisas ditas, por outro.Como sempre em Merleau-Ponty, vale a analogia entre a obra e a vidaperceptiva.Assim como as coisas percebidas tm seus horizontes,que noso coisas e que no so nada, as obras de pensamento so feitas tambmde certas articulaes entre as coisas ditas. Mas essas articulaes noso objetos de pensamento e por isso, nesse plano,no h dilema da inter-pretao objetiva e do arbitrrio (MERELAU-PONTY, 1960, p. 202).Assim como o horizonte do percebido no subsiste isoladamente, a obrano deve ser submetida ao pensamento isolante, e s seremos fiis s suasarticulaes pensando-as novamente. Por isso, se existe uma verdade deDescartes, sob a condio de que a leiamos entre as linhas(MERLEAU-PONTY, 1964, p. 242). Se pensar equivalente a circuns-crever um horizonte, ento pensar no possuir objetos de pensamento, circunscrever, por eles, um domnio a pensar, que portanto nopensamos ainda (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 202). Correlativamente,compreender a obra ser explorar o horizonte que ela abre, serapreender por coexistncia, lateralmente, por estilo, e atravs dissoalcanar, de um s golpe, os longnquos desse estilo e deste aparelhocultural (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 242).

    Mas claro, tambm, que esta histria vertical da filosofia no sesustenta sem a arcaica postulao de uma philosophia perennis.Assim, pode-se repetir, exausto, que nessa histria no se reduz as filosofias a umafilosofia, a um plano nico, mas que, ao contrrio, se reconhece nelas umescalonamento em profundidade (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 239).Mas se a nica maneira de restituir a Descartes a sua verdade pens-lanovamente,quer dizer, a partir de ns (MERELAU-PONTY, 1964, p.251), o historiador vertical precisar distinguir, ao menos idealmente,entre os problemas de Descartes e Malebranche, tais como eles ospensam, e os problemas que os movem verdadeiramente. Mas essesproblemas que os movem verdadeiramente, so aqueles que ns formu-lamos (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 253). Assim, este historiadorconhece Descartes e Malebranche bem melhor do que estes conhecerama si mesmos, seu olhar privilegiado o nico a circunscrever os proble-mas que os movem verdadeiramente. E se Merleau-Ponty historiadorafirma que, na prtica, nem necessrio fazer essa distino entre osproblemas deles e aqueles que ns formulamos, porque parte-se da

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  • convico de que a projeo de um pensamento no outro sempre deixatransparecer um mesmo ncleo de ser. O escalonamento em profun-didade das filosofias no probe que elas reenviem umas s outras, vistoque, aqui como ali, trata-se do mesmo Ser (MERLEAU-PONTY,1964, p. 239).

    Por isso, se Gueroult recomenda que sigamos os filsofos em seusproblemas, resta que seus problemas so interiores quele do Ser: isso,eles o professam todos, e portanto ns podemos, ns devemos, pens-losnesse horizonte (MERELAU-PONTY, 1964, p. 251). Assim, se ahistria vertical no impe a Descartes um ponto de vista exterior suafilosofia, uma questo que no seria sua, porque se supe, singelamente,poder mostrar que h um absoluto, uma filosofia, que imanente histria da filosofia (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 242). E se assim,todas as filosofias clssicas estaro, doravante, em regime de eternidadeexistencial, e a histria vertical, que as l e interpreta, no pode inspirarqualquer relativismo, visto que o pensamento interrogativo, que fazcada filosofia falar, no nem pode ser ultrapassado pelo que virdepois (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 253).Afinal, os diferentes balbu-cios do Ser ecoam, sempre, o mesmo Ser. Por isso, se a histria objeti-va de Gueroult criticvel por ser racionalismo dogmtico, por seruma filosofia, e no aquilo que ela pretende ser,histria daquilo que ,a histria-Dichtung, que Merleau-Ponty pretende herdar de Husserl, aosseus olhos no censurvel, de forma alguma, por exprimi-lo como fil-sofo, mas antes por no exprimi-lo completamente (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 231). Assim, para Merleau-Ponty a distancia entre ahistria objetiva e a histria vertical, se traduz no abismo existenteentre uma filosofia (certamente, no clssica) e a filosofia.

    Mas se a doutrina da linguagem indireta condio necessria parase compreender o que Merleau-Ponty entende por uma obra clssica, elano , de forma alguma, a sua condio suficiente.Afinal, a obra clssicano apenas aquela que, antes de conter ideias, contm matrizes deideias. Muito mais do que isso, essencial a essa descrio do autor cls-sico a tese de que ns nunca terminaremos de desdobrar o sentido de suaobra. Se o grande livro to singular e inesgotvel quanto a coisa vista,esta postulao de uma interpretao infinita no se calca, de forma algu-ma, em qualquer analogia, sempre remota, entre a viso e a leitura. Ela se

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  • funda, ao contrrio, em uma certa filosofia da produtividade, em queesta no se reporta, inteira, a qualquer cogito imperialista, uma filosofia queMerleau-Ponty s esboa, com as devidas barbas, em seu ltimo perodo.

    III

    A recusa de um papel fundante ao cogito tcito que, no primeiro perododa filosofia de Merleau-Ponty, detinha o privilgio de titular exclusivodaquela produtividade em que se originavam as criaes humanas,sempre reportadas a uma intencionalidade da conscincia, levar a umareviso daquilo que era uma de suas mais evidentes consequncias: aoposio abrupta e integral entre natureza e cultura. Uma vez recusada afilosofia da conscincia, ser um mero corolrio reconhecer que oponto de vista da criao, do Gebilde humano, - e o ponto de vista donatural (do Lebenswelt como Natureza) so todos os dois abstratos einsuficientes (MERLEAU-PONTY, 1964, pp. 227/28). E sabe-se queno se tratar apenas de neutralizar uma oposio, mas sim de estabelecer,entre as duas regies, uma relao de fundao. Doravante, o impor-tante ser redescobrir uma Natureza-para-ns como solo de todanossa cultura, e onde se enraza em particular nossa atividade criadora,que, portanto, no incondicionada... (MERLEAU-PONTY, 1996, p.44). A reabilitao ontolgica do sensvel, que nos textos do perodointermedirio j marcava sua presena, mas apenas no plano das conse-quncias, encontrar doravante as suas premissas, e enfim se saber porque a expresso propriamente dita, tal como a linguagem a obtm,retoma e amplifica uma outra expresso, que se desvela na arqueologiado mundo percebido (MERLEAU-PONTY, 1968, pp.12/13). Mas soalgumas das condies a serem preenchidas para se legitimar estafundao do logos proferido no logos silencioso do mundo sensvel, quesero reveladoras de quem , afinal, Merleau-Ponty leitor dos clssicos, aomenos em seu desenlace final.

    Sabe-se que a primeira dessas condies ser afastar a compreensoclssica e cartesiana da natureza como produto. Se Descartes foi oprimeiro a formular uma ideia de natureza que extrai as consequncias daideia de Deus, com ele este mundo visvel se torna a nica manifestao

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  • possvel de uma produtividade infinita e, desde ento, no naturante quese refugia tudo o que podia ser interior natureza, todo sentido contrabandeado para Deus, a natureza perde todo e qualquer interior,tornando-se apenas a realizao exterior de uma racionalidade que estem Deus (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 27). Se o naturado se tornamero produto, ele pura atualidade, sem potencialidades escondidas, eleest destitudo de toda e qualquer produtividade.Contra a compreensocartesiana, trata-se agora de dar direito de cidadania a uma noo denatureza que se inspira em Schelling, uma natureza que no apenasproduto, no efeito morto, mas tambm produtividade(MERLEAU-PONTY, 1995, p. 61). Se a natureza pensada como meroproduto se deriva do infinito positivo, ento ser preciso reconhecer quea filosofia s respira quando ela rejeita o pensamento do infinitamenteinfinito, para ver o mundo em sua estranheza (MERLEAU-PONTY,2000, p. 370). Uma rejeio que, por si s, no contudo qualquer garan-tia, visto que a concepo cartesiana de natureza pode muito bem sobre-viver ao complexo ontolgicoque lhe deu origem. o que ocorre comSartre, censurado expressamente por Merleau-Ponty, visto que, no inte-rior de sua ontologia,o Ser sem exigncia, sem atividade, sem poten-cialidades (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 161). Uma censura que, naverdade, se estende facilmente prpria Fenomenologia da Percepo, j queali a natureza, tal como esta se apresentava na cena dirigida peloMerleau-Ponty de ento, tambm estava despojada de qualquer ativi-dade ou produtividade, sendo apenas um mero correlatomorto daintencionalidade e do esquema corporal.

    O benefcio que se espera deste namoro crepuscular com o roman-tismo? Agora se poder reconhecer que a natureza tem sentido, que ela autoproduo de um sentido, doravante ela tem um interior, sedetermina de dentro, ela no mais objeto, aquilo que est diantede ns, mas antes o nosso solo (MERLEAU-PONTY, 1995, pp.19/20) Neste novo cenrio, a natureza finalmente poder ser vistacomo um fundo ontolgico, que se prolonga na arte ou na filosofia, emtodo caso, na obra vlida ou bem sucedida. A natureza sercompreendida como uma produtividade originria que continua sob ascriaes artificiais do homem (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 169). Seo mundo do silncio, o mundo percebido, uma ordem em que h

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  • significaes que so anteriores linguagem, ento toda criao humana chamada e engendrada pelo Lebenswelt, ela o prolonga e o testemunha(MERLEAU-PONTY, 1964, p.228). O logos da linguagem se apoia nologos do mundo natural, esttico, e se h um logos do mundo sensvel e umesprito selvagem que anima a linguagem, ser preciso reconhecer quea comunicao no invisvel continua o que institudo pela comuni-cao no visvel, ela seu outro lado (MERLEAU-PONTY, 1995, p.290). Mas para que se possa efetivamente afirmar que o logos silenciosochama o logos proferido, ser preciso afirmar que o Ser infinito.No o infinito positivo, que objeto, mas o infinito do Lebenswelt, quesendo infinito de Offenheit, negativo, aquele que efetivamente nosultrapassa, e pode dar conta da profundidade do ser, de um fundoinesgotvel do ser (MERLEAU-PONTY, 1964, p.223). graas a essapostulao de um infinito que se encontrar a condio suficiente parapoder afirmar que o mundo perceptivo no fundo o Ser no sentido deHeidegger, que, apreendido pela filosofia em sua universalidade,aparece como contendo tudo aquilo que algum dia ser dito(MERLEAU-PONTY, 1964, pp. 223/224).

    Assim, se a obra clssica aquela que contm, mais que ideias,matrizes de ideias cujo sentido nunca terminaremos de desdobrar, se ela passvel de um comentrio infinito, porque, enquanto criao artifi-cial do homem, ela continua uma produtividade originria que inesgotvel. Se a natureza o que h de mais velho, ela tambm algo de sempre novo (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 169). Se a obraclssica pode ser comentada ao infinito, porque o Lebenswelt que elaprolonga e exprime j tinha a faculdade da eterna novidade. Era Nietzschequem observava que uma das maneiras de se preservar o cristianismo,quando este j perdeu a sua forma dogmtica, impor ao mundo a facul-dade da eterna novidade. Merleau-Ponty pode muito bem proclamar-seum ateu (MERLEAU-PONTY, 2000, p.369). Mas qual o alcance realdessa confisso? Afinal, o cristianismo pode muito bem sobreviver morte do Deus dos clssicos. Assim, se o mundo no mais Deus, onovssimo ateu desejar sempre supor que este mundo deve, no entan-to, ser apto divina fora criadora, infinita fora de transmutao... sempre ainda a velha maneira religiosa de pensar e desejar, uma espciede aspirao a acreditar que, em alguma coisa, o mundo igual ao velho,

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  • querido, infinito deus ilimitadamente criador que em alguma coisa ovelho deus vive ainda (NIETZSCHE, 1983, p. 395). Afinal, pode-semuito bem criticar o infinito positivo, e substitu-lo por um infinitonegativo. Mas o resultado que se espera desta operao visa, na verdade,garantir ao mundo o seu fundo inesgotvel de ser, a sua faculdade daeterna novidade.Assim, Merleau-Ponty pode galhardamente afirmar que,para ele, a filosofia consiste em dar um outro nome a isto que, pormuito tempo, foi cristalizado sob o nome de Deus (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 371). Mas resta saber para onde aponta esta novacerimnia de batismo, quando ela gira em torno destes nomes, quasesinnimos entre si, que so Ser bruto, mundo percebido, mundo-da- vida ou natureza-para-ns.

    Merleau-Ponty teria feito uma crtica, efetivamente radical, dafilosofia da conscincia? Os textos sugerem, enfaticamente, que no.Arecusa da conscincia individual no uma recusa da conscincia em geral,e aquele Ser que, doravante, estar no centro da suposta nova cena,como o englobante, no sendo qualquer conscincia individual ter,contudo, todos os traos de uma conscincia, s que, agora, universal oucsmica. Afinal, por que tanta insistncia em diferenciar a natureza dasimples coisa? Porque, ao contrrio da simples coisa, esta naturezatem um interior, ela autoproduo de um sentido, tem umaprodutividade ou atividade. Atributos que so tpicos de umaconscincia. E se Whitehead compreendia a natureza como uma esp-cie de atividade, que se exerce sem ser comparvel atividade de umaconscincia ou de um esprito, aqui, o pronome deve ser claramentesublinhado, e a excluso do modelo da conscincia individual noproibir, de forma alguma, que se fale em uma subjetividade danatureza (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 161). E quando Merleau-Ponty for procurar um conceito vlido de natureza, ser para apontar anecessidade de se encontrar algona juntura do Ser e do nada, vistoque a natureza sempre ser este subjetivo-objetivo (MERLEAU-PONTY, 1995, p. 102).

    Da mesma maneira, Merleau-Ponty pode muito bem censurar aanlise husserliana por estar bloqueada pelo quadro dos atos que afilosofia da conscincia lhe impe. Mas o que, ao fim e ao cabo, seprope no lugar disso? Simplesmente, se dir que preciso retomar e

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  • desenvolver a intencionalidade Fungierende ou latente, que a intenciona-lidade interior ao ser (MERLEAU-PONTY, 1964, pp.297/8). Mas seexiste uma intencionalidade interior ao ser, este ser ser, necessaria-mente, uma espcie de conscincia.Alm do mais, sabe-se que falar emintencionalidade, ipso facto, falar em teleologia. E ser justamenteesta teleologia que estar no centro da cena de Merleau-Ponty, no finalde seu ensaio sobre O filsofo e sua sombra.A teleologia ser apre-sentada, ali, como sendo o verdadeiro irrelativo, aquilo que junturae membrura do Ser, que se consuma atravs do homem (MERLEAU-PONTY, 1960, p.228). Se este Ser habitado por intencionalidade e,logo, por teleologia, ele pensado segundo o modelo de uma conscin-cia e, por isso, Merleau-Ponty se deixava seduzir, espontaneamente, poruma linguagem singelamente antropomrfica, ao descrever a passagem dosentido perceptivo ao sentido lingustico: ele dizia que a linguagemrealiza, rompendo o silncio, aquilo mesmo que o silncio queria, masno obtinha (MERLEAU-PONTY, 1964, p. 230).Assim, se esta teleolo-gia se consuma apenas atravs da criao humana, ento este homemser, por princpio, um personagem central e essencial Offenbarung donovo absoluto. Uma vez criticado e afastado o humanismo, comopedem os sons dos novos tempos, resta que o lugar do rei ser ocupa-do, doravante, por um evidente antropocentrismo que, por maisestilizado e etreo que seja, no deixa de ser, apenas, um bastante orto-doxo antropocentrismo cristo.

    E se assim, que ns compartilhemos, com Merleau-Ponty, o seuprazer do texto. Colaboremos, portanto, mesmo com nossa nfimaparte e fora, nesta tarefa infinita que a leitura e interpretao dosclssicos, sempre to inesgotveis quanto a coisa percebida. Mas, aomenos, faamos isso sabendo que, neste precioso momento, estaremossendo, todos, na cerimnia de reconhecimento de cada sentido indito,os novos crentes de um iderio que, sem sombra de dvida, genuina-mente cristo. Afinal, os textos de Merleau-Ponty indicam, suficiente-mente, que, no derradeiro ato de sua vida como filsofo, este antigocolaborador da revista Esprit permaneceu, integral e religiosamente, fiel sua arcaica origem.

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