29416095 EducaCAo Pelo Argumento
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EDUCAÇÃO PELO ARGUMENTO Gustavo Bernardo
colaboração de GISELE DE CARVALHO
Rio de Janeiro – 2000
Digitalização: Vítor Chaves
Correção: Marcilene Aparecida Alberton Ghisi Chaves
SUMÁRIO
Preliminar
Parte I
EDUCAÇÃO PELO ARGUMENTO
1 - A premissa maior
2 - A premissa menor
3 - A educação pelo argumento
4 - A preparação do argumento
5 - A formação da hipótese
6-A âncora do argumento
7 - O argumento impertinente
8 - O esforço dialético
9 - A rede de argumentos
PARTE II
COLA, SOMBRA DA ESCOLA
10 - À sombra de Platão
11 - À sombra da cela
12 - À sombra do fórum
13 - À sombra do Deus
14 - À sombra do mestre
15 - À guisa de conclusão
Estante
PRELIMINAR
Há algumas idéias que se repetem em todos os discursos sobre a escola.
Entre elas, duas se destacam: todos os professores, de todas as disciplinas, ensinam
Língua Materna, isto é ensinam a ler, a escrever e a raciocinar, todos os professores de
todas as disciplinas ensinam Matemática, isto é, ensinam estruturas lógicas e ensinam,
portanto a raciocinar.
Entretanto a maneira como isso se dá na prática não fica clara para os
professores e, conseqüentemente, também não fica clara para os alunos. Percebe-se
necessário unificar alguns conceitos e alguns procedimentos, para que sejam trabalhados
e realizados simultaneamente por todos os professores de todas as disciplinas. A primeira
dificuldade reside em determinar que conceitos e quais procedimentos. A segunda
dificuldade reside em estabelecer um consenso, entre os professores, quanto àqueles
procedimentos e conceitos.
Esta Educação pelo argumento faz uma escolha e traça um caminho, ao
articular o ensino das duas linguagens fundamentais - de Língua Materna e de
Matemática - através da prática da argumentação. A partir dessa escolha, acreditamos
ser possível articular o ensino de todas as disciplinas. Optamos por relacionar as
disciplinas pelo que nelas já é comum: a redação - mais especificamente, a
argumentação. Nossa opção é metodológica. Por essa via, fazemos uma proposta para a
escola.
Ao reforçar a integração estreita entre as duas disciplinas que ensinam
”linguagens” - Português (no nosso caso, brasileiro) e Matemática —recusamos a
prioridade que via de regra se atribui à segunda. A Matemática, a despeito de sua
contribuição singular, caracteriza-se como fonte secundária para o raciocínio lógico
(restando claro que ”secundária”, nesse contexto, não quer dizer ”de menor importância”,
mas apenas que surge em segundo lugar, determinada, inclusive, pela fonte primária), É
indubitável que o ensino da Matemática contribui para o desenvolvimento do raciocínio,
mas tanto quanto o aprendizado de qualquer conteúdo, da Economia à Literatura:
dependendo da forma da abordagem um curso de História, por exemplo, pode-se mostrar
especialmente propício para o exercício do raciocínio, enquanto, por outro lado, um curso
de Matemática em que o conhecimento é revelado de modo mágico, sem qualquer
vestígio de uma construção, oferece poucas contribuições nesse sentido”.1
A prioridade que se empresta ao ensino de Matemática assenta em um
pressuposto equivocado. Partindo-se da condição imprecisa, porque polissêmica, da
Língua Materna, é comum pretender-se que a Matemática represente para a Ciência o
papel de uma linguagem precisa, monossêmica, depurada de ambigüidades. Entretanto, a
prática revela uma contradição insuperável: por que uma disciplina ”depurada de
ambigüidades” e, portanto, em princípio, absolutamente ”clara”, costuma vestir a carapuça
de assunto árido, destinado à compreensão de poucos?
O ensino de Português, por outro lado, não se encontra isento de equívocos
equivalentes. Ensina-se Língua menos para desenvolver o raciocínio e mais para valorizar
uma descrição gramatical. Se em Matemática a fórmula acaba sendo ensinada pela
fórmula, em Português ensina-se gramática pela gramática, sobrepondo a terminologia e
a taxonomia ao uso eficiente e adequado da língua.
Ambas as disciplinas, Português e Matemática, são tratadas como
linguagens ”em que a hipertrofia da dimensão sintática obscurece indevidamente o papel
da semântica, que é deixada em segundo plano”.2 Por isso, o ensino de Língua Materna
também pode ser igualmente árido, o que acontece quando as regras gramaticais ocupam
o centro das atenções. O aluno acaba aprendendo apenas, que nunca vai conseguir
aprender aquilo. Ora, ambas as disciplinas têm valor instrumental e constituem condição
de possibilidade do conhecimento em qualquer assunto para o qual se possa dirigir a
atenção. Logo, elas deveriam ser trabalhadas priorizando o seu caráter instrumental em
estreita articulação com todas as outras disciplinas, abdicando, inclusive, de um programa
próprio de conteúdos que não fosse resultado de demanda das demais áreas do
conhecimento.
Nos nossos delírios, chegamos a imaginar, e, portanto a desejar, uma escola
em que os alunos não tivessem aula de Português, Matemática ou Filosofia, para que os
professores destas matérias pudessem se dedicar integralmente a trabalhá-las junto com
os seus pares já que “todos os professores, de todas as disciplinas, ensinam a ler, a
escrever e a raciocinar. Claro, essa proposta pressuporia uma outra escola”.
Uma escola em que o livro capital do professor Othom Moacir Garcia,
1 Nilson Machado Matemática e língua materna, p 76. 2 Idem, ibidem, p 18
Comunicação em prosa moderna, publicado pela primeira vez em 1967, não fosse apenas
sugerido para os alunos universitários, mas efetivamente adotado em todos os níveis de
ensino. O trabalho de Garcia se encontra na origem do nosso. É Othon quem diz que
”aprender a escrever é aprender a pensar”. Lembra que, ”quando o estudante tem algo a
dizer, porque pensou, e pensou com clareza, sua expressão é geralmente satisfatória”.3
Escreve realmente mal aquele que não tem o que dizer porque não aprendeu a pôr em
ordem o seu pensamento, e porque não tem o que dizer, não lhe bastam regras ou
vocabulário.
Entretanto, ainda que não se conheça o professor que discorde do
enunciado acima, são muito poucos aqueles que priorizam o aprendizado do raciocínio e
da lógica, como se pode depreender da leitura dos programas das melhores escolas. No
lugar dos termos que caracterizam ao menos a tradição greco-cristã-cartesiana, como
hipótese!”, ”indução”, ”dedução”, ”silogismo”, ”falácia”, ”sofisma”, ”dialética”;” vemos
apenas a paupérrima subdivisão dos modos de escrever em ”descrição-narração-
dissertação”, ao lado, é claro, de algumas ”orações subordinadas substantivas objetivas
indiretas reduzidas de gerúndio”.
Reconhecida essa circunstância lamentável, pela qual os professores na
sala de aula talvez não sejam exatamente os principais responsáveis (embora, sem
dúvida, precisemos assumir significativa parcela de responsabilidade), cabe definir por
que estamos atribuindo prioridade absoluta ao argumento.
Enfatizando a lógica e a redação, não queremos confundir o aprendizado do
raciocínio com as abstrações da lógica formal, nem tampouco confundir o aprendizado da
expressão do pensamento com a esterilidade do trio-maravilha (descrição-narração-
dissertação). A ênfase no argumento chama a atenção para a necessidade do diálogo
com o outro e, por via de conseqüência, para a necessidade do argumento que oriente,
de maneira civilizada (sem o que, para quê? - o porrete seria suficiente), todo diálogo,
todo debate, toda discussão.
A respeito, Perelman lembra, com propriedade:
O uso da argumentação implica que se tenha renunciado a recorrer
unicamente à força, que se dê apreço à adesão do interlocutor, obtida graças a uma
persuasão racional, que esse não seja tratado como um objeto, mas que se apele à sua
3 Othon M Garcia Comunicação em prosa moderna, p 291.
liberdade de juízo. O recurso à argumentação supõe o estabelecimento de uma
comunidade dos espíritos que, enquanto dura, exclui o uso da violência.4
Nesse sentido, o eixo do trabalho se revela fruto de uma opção
metodológica e epistemológica, cujo fundamento é ético. O leitor escolarizado, nesse
momento, pode aceitar o caráter ético da opção, mas estranhá-la como epistemológica,
uma vez que a ciência de que se trata na escola seria eminentemente factual, e não
retórica. Em outras palavras, na escola, em especial nas ciências ditas exatas, e
exatamente em função da sua exatidão, não haveria necessidade de argumentação, mas
tão-somente de Matemática e de laboratórios.
Podemos desconsiderar a circunstância de que pouquíssimas escolas
brasileiras possuem laboratórios de qualquer tipo. Podemos desconsiderar, ainda, o fato
de que, nas poucas escolas onde há laboratórios, neles não se façam ”experiências”, no
sentido pleno do termo, mas apenas demonstrações primárias. Ainda assim, precisamos
defender que o argumento e sua prática antecedem a qualquer cálculo ou fórmula.
Thomas Kuhn5 nos lembra que não existe ciência fora de comunidades
científicas, comunidades estas que por sua vez determinam regras e perspectivas. O
relacionamento dentro de cada comunidade, bem como o relacionamento de uma
comunidade com a outra, no tempo e no espaço, só se pode dar pela via do argumento.
Logo, o discurso da ciência ela mesma seria eminentemente argumentativo.
Toda nova descoberta ou formulação precisa ser publicada, divulgada e
testada em diferentes ambientes e por diferentes cientistas, para se permitir estatuto de
verdade (ainda que provisório). Os diferentes cientistas no começo desconfiam da nova
formulação e se esforçam por descobrir os seus pontos fracos, isto é, se esforçam por
refutá-la com diversos contra-argumentos. O simples fato de que as conquistas e
descobertas científicas sejam regularmente superadas mostra como o discurso científico
se apóia sobre convenções, por definição, arbitrárias. A arbitrariedade, todavia, é
necessária, porque condição de possibilidade de comunicação. Torna-se negativa
somente quando se acredita nela não mais como instrumento provisório, e sim como fim
em si. Cabe à escola acompanhar a ciência que pretende ensinar e eleger a
argumentação como eixo de todas as suas ações pedagógicas. Do momento em que se
compreende a atividade científica como jogo institucionalizado, percebem-se melhor as
4 Chaím Perelman. Tratado da argumentação, p. 61.
suas características fundantes, ou seja, tanto o seu aspecto persuasivo quanto o seu
desejo de permanência: resistindo ao novo que desestrutura, permite a afirmação apenas
daquelas descobertas cujos agentes argumentam melhor.6
A quem serve a recusa do argumento? Segundo Perelman, especialmente a
dois personagens perigosos: o cético e o fanático.7
O cético exige de uma argumentação que ela forneça provas coercivas,
provas que demonstrem por A + B que não há outra opção. Ora, o caráter próprio do
processo argumentativo é uma escolha entre possíveis: isso significa que sempre há
outra opção, ou seja, sempre é possível uma outra perspectiva. O fanático, por sua vez, é
aquele que, aderindo a uma tese contestada e cuja prova não pode ser fornecida, recusa
mesmo assim considerar a possibilidade de submetê-la a livre discussão.
No final do seu Tratado da argumentação: a nova retórica, Perelman (cujo
livro deveria se encontrar presente nas salas de aula e de professores) faz um belo elogio
do argumento, que nos interessa subscrever:
Combatemos as oposições filosóficas, taxativas e irredutíveis, que nos são
apresentadas pelos absolutismos de todo tipo: dualismo da razão e da imaginação, da
ciência e da opinião, da evidência irrefragável e da vontade enganadora, da objetividade
universalmente aceita e da subjetividade incomunicável, da realidade que se impõe a
todos e dos valores puramente individuais. Não cremos em revelações definitivas e
imutáveis, seja qual for, aliás, sua natureza ou origem; os dados imediatos e absolutos,
sejam eles chamados sensações, evidências racionais ou intuições místicas, serão
arredados de nosso arsenal filosófico. [...] Nossa posição será bem diferente. Em vez de
fundamentarmos nossa filosofia em verdades definitivas e indiscutíveis, partiremos do fato
de que homens e grupos de homens aderem a toda espécie de opiniões com uma
intensidade variável, que só é conhecida quando posta à prova. Apenas a existência de
uma argumentação [...] confere um sentido à liberdade humana, condição de exercício de
uma escolha racional.8
Na segunda parte do livro, vamos submeter a teste a nossa argumentação,
fazendo uma proposta global de avaliação para a escola. Sabemos que a avaliação é o
5 Era Maria Coracini. Um fazer persuasivo, p. 31. 6 Maria Coracini. Obra citada, p. 40. 7 Chaím Perelman. Obra citada, p. 69.
nó górdio das discussões pedagógicas, mas ainda assim vamos tentar cortá-lo com os
nossos argumentos. Para tanto, estaremos comparando a Educação e o Direito à luz de
questões éticas, refletindo sobre a moral de educadores e de juristas.
O título da segunda parte - ”cola, sombra da escola” remete a problema
aparentemente menor na escola, ou seja, ao hábito, por parte dos alunos, de furtar idéias
e respostas alheias, nas situações de avaliação. Defenderemos, porém, que o problema
não é menor - pelo seu hábito, tão difícil de combater, o futuro cidadão ”aprende” a
desonestidade intelectual, exatamente a matriz de todas as demais.
A cola é parte integrante da identidade da escola, uma sombra sem a qual o
corpo não faz sentido. Pode se esconder à luz do dia (e da razão), olhando apenas de
esguelha para saber se não está sendo olhada, mas se espalha como praga, ou como
moda, nos momentos menos iluminados (e mais interessados). A cola é uma construção
da escola - construção dos mestres e do discurso social e moral que os informa e lhes dá
forma.
Para desenvolver essa hipótese, recorremos à investigação de Michel
Foucault sobre o panopticon de Jeremy Bentham, nas conferências brasileiras de A
verdade e as formas jurídicas [1973] e em Surveiller et punir [1975]. Bentham, fundador
do utilitarismo moderno, em 1787 imaginava construir sua Inspection House, aplicável a
quase todas as instituições (prisons, houses ofindustry, work-houses, poor-houses,
manufactoríes, mad-houses, lazarettos, hospitais and, last but not least, schools).
Foucault, ao estudá-lo, estabelece a mesma relação direta da prisão com a escola.
De fato há duas espécies de utopia: as utopias proletárias socialistas que
têm a propriedade de nunca se realizarem, e as utopias capitalistas que têm a má
tendência de se realizarem freqüentemente. A utopia de que falo, a fábrica-prisão, foi
realmente realizada. E não somente foi realizada na indústria mas em uma série de
instituições que surgiam na mesma época. Instituições que, no fundo, obedeciam aos
mesmos modelos e aos mesmos princípios de funcionamento; instituições do tipo
pedagógico como escolas, orfanatos, centros de formação; instituições correcionais como
a prisão, a casa de recuperação, a casa de correção, instituições ao mesmo tempo
correcionais e terapêuticas como o hospital, o hospital psiquiátrico.9
8 Idem, ibidem, pp. 576-581. 9 Michel Foucault. Vigiar e punir, p. 110.
A fábrica-prisão se realizaria na fábrica, propriamente dita, e ao mesmo
tempo na prisão, na escola, no asilo e no hospital, a partir do modelo arquitetônico e
disciplinar do panopticon, que pretendia ver sem ser visto, isto é, que pretendia inviabilizar
o agente do poder, tornando transparentes seus objetos.
É panóptico - para usarmos o adjetivo de Bentham - o tablado das salas de
aula, que facilita a observação dos alunos; é panóptica a posição vertical do professor, em
confronto com a turma sentada; é panóptico o inspetor que toma conta de provas com
óculos escuros, para melhor ver sem que os virtuais infratores percebam o movimento
dos seus olhos, assim como é panóptico aquele vidrinho na porta das salas de aula,
assemelhando-as a aquários de controle; são panópticos os lugares marcados dos
alunos, facilitando o controle das individualidades e das personalidades divergentes, ou
”problemáticas”; são panópticas as semanas bimestrais de provas, bem como panóptico
será misturar turmas e séries para aumentar o controle e ”impedir” a cola. Estas situações
estão presentes, muitas vezes todas juntas, na escola em que estudamos e, depois,
trabalhamos.
Toda utopia sistemática contém um certo delírio de controle dos homens e
das coisas, da história e da natureza, a partir de um centro de poder, ou de um tirano
mais ou menos ”iluminado”. O problema do panoptismo, bem como de toda utopia erigida
como sistema, é o de quem controla o controlador ou observa o observador, uma vez que
também é senso comum que o poder, de qualquer matiz e tamanho, corrompe em alguma
medida. É, igualmente, o problema de uma das primeiras e mais bem construídas utopias,
a saber, a República de Platão. Falaremos dela um pouco antes de explorar a reflexão de
Foucault, porque sua concepção de poder e de amor - o conhecido, mas pouco
compreendido amor platônico - constitui a sombra de toda a história das panópticas
instituições ocidentais, inclusive, e principalmente, da escola. Essa reflexão, acreditamos,
nos permitirá defender uma proposta de avaliação simples, mas radical - adotada,
mudaria pela raiz toda a prática de sala de aula.
Essa segunda parte do nosso livro, Cola, sombra da escola, foi publicada
como um pequeno livro pela EdUERJ em 1997 e rapidamente se esgotou, gerando
algumas matérias de jornal - a questão que levanta pareceu oportuna - e trabalho muito
interessante realizado no Pará, como monografia de final do curso de Licenciatura Plena
em Pedagogia. Renato Canto Jr. e Lúcia Helena Sales, em Quem não cola não sai da
escola: um estudo sobre o uso da cola no processo de avaliação da aprendizagem no
curso de magistério no município de Óbidos, estudam o problema da ”cola” a partir
também do nosso livro, testando nossas hipóteses com fecunda pesquisa de campo em
uma escola municipal da região.
Entrevistando professores e alunos, constataram que a maioria apresentava
sugestões basicamente repressivas para solucionar o problema da ”cola”: alunos
sugeriam redobrar a vigilância pelo professor, professores sugeriam punição mais séria
aos infratores. Número bem pequeno tanto de professores quanto de alunos propunha a
solução do problema a partir da mudança do modelo de avaliação.1010 Recentemente,
participando da banca que elaborou a proposta de redação do vestibular da UENF -
Universidade Estadual do Norte Fluminense -, propusemos a discussão do assunto: o
candidato devia defender ou criticar o uso da ”cola”. Ora, não chegaram a dez, entre
quase dois mil candidatos, aqueles que questionaram o sistema de avaliação em si,
enquanto os demais preferiam ou criticar o uso da ”cola”, por imoral (ainda que, muito
provavelmente, também colassem com regularidade), ou defender o uso da ”cola”, por
sobrevivência.
A pesquisa de Renato e Lúcia, bem como as respostas dos candidatos
àquele vestibular, apontam para a dificuldade de se pensar sistemicamente, antes se
raciocinando por reação maniqueísta. Essa dificuldade, infelizmente, não é atributo
exclusivo de adolescentes alunos dos ensinos médio e fundamental, afetando tanto
universitários quanto, o que é mais grave, professores de todos os níveis. Constatar a
dificuldade, entretanto, não justifica o pessimismo ou a inércia: é preciso compreender
sistemicamente o problema para enfrentá-lo de maneira igualmente sistêmica; é
necessária, acreditamos, uma Educação pelo argumento.
Antes, porém, de definir as premissas do nosso argumento e dessa
educação, alguns agradecimentos se impõem.
Agradecemos a EVANDRO LINS E SILVA, pelo acesso a seus manuscritos;
a MARY FERRAZ e PATRÍCIA KONDER, diretoras da Escola Parque, por nos terem
”cobrado” este livro e financiado a sua pesquisa e redação, contratando à UERJ a
consultoria do autor; e à Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UERJ, pela
articulação do sistema de consultoria para os participantes do Programa de Dedicação
Exclusiva da Universidade - Prociência.
10 Renato Canto Jr. & Lúcia Helena Sales. Quem não cola não sai da escola, p. 80.
Dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo sum.
-RENÉ DESCARTES
Logic is just the beginning of wisdom, not the end.
- DR. SPOCK
PARTE I
EDUCAÇÃO PELO ARGUMENTO
I A PREMISSA MAIOR
A premissa maior do nosso argumento (sobre o argumento) é a que
estabelece o primado da dúvida. Um dos principais paradigmas do método científico se
encontra na concepção de ”dúvida metódica”, explicitada na obra capital do filósofo René
Descartes, Discurso sobre o método, que funda a filosofia moderna.
Em estilo elegante, duvidando metodicamente de tudo, o pensador chegou a
estabelecer apenas três certezas: primeiro, se eu duvido, então eu penso, logo, o
pensamento existe; segundo, se o pensamento existe, então existe um ”eu” que pensa,
portanto, penso, logo, existo - cogito ergo sum; terceiro, se o ”eu” existe, então Deus
existe.
A primeira certeza é um raro caso de consenso, no meio científico e
acadêmico: não há dúvida de que o pensamento exista, uma vez que o simples ato de
duvidar funciona como prova dessa existência. Entretanto, a passagem da primeira
certeza à segunda é contestada por muitos filósofos: de que o pensamento exista não se
seguiria, necessariamente, a existência de algum ente que pensasse o pensamento. Por
sua vez, a passagem da segunda certeza à terceira é um tanto ou quanto mais brusca -
mas isso pode ser tão-somente defeito do nosso brevíssimo resumo da lógica cartesiana
(cabe ao leitor duvidar de nós e conferir, por si próprio, no texto de Descartes).
Entretanto, não entraremos, por ora, nessa controvérsia; o que nos
interessa, nesse momento, é estabelecer, como premissa maior, deste livro e da
argumentação, o primado da dúvida:
Dubito ergo sum, vel quod item est, cogito ergo sum – “Duvido, logo existo,
ou, o que é o mesmo, penso, logo existo”.
A necessidade da dúvida não implica, todavia, que, se não há mais certezas,
então não há mais valores. Toda a obra de Descartes acentuava o caráter precário e, ao
mesmo tempo, indispensável, dos valores.
E assim, como as ações da vida freqüentemente não suportam nenhuma
delonga, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder discernir as
opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis, e considerá-las depois,
não mais como duvidosas, no que diz respeito à prática, mas como muito verdadeiras e
muito certas, porque a razão que a isso nos determinou o é.11
Atingia assim o difícil equilíbrio entre a incerteza e a razão, ou seja, entre as
necessidades da dúvida e da certeza. Tal equilíbrio funda a filosofia e a ciência modernas
- que, por um breve momento (o momento do positivismo e do determinismo), tentaram
renegar a dúvida cartesiana. Logo a seguir, entretanto (em História, um ou dois séculos é
”logo a seguir”), foi necessário afastar-se do determinismo linear; passa-se a perceber
que, ”no plano das partículas elementares, predomina a indeterminação; no plano
macroscópico, o emaranhado dos determinismos implica imprevisibilidade em longo
prazo; no plano moral, não temos escolha porque somos obrigados a escolher”.12
O primado da dúvida não é muito confortável, forçoso admitir, como o faz
uma das cobras do cartunista Luís Fernando Veríssimo. Em tira de maio de 1998, duas
11 Em Chaím Perelman. Ética e Direito, p. 84.
destas personagens esguias de Veríssimo conversam olhando para o céu estrelado. A
primeira diz: ”segundo a Física Quântica, as partículas se comportam de um jeito quando
são observadas e de outro quando não são. O Universo que a gente vê pode ficar
completamente diferente assim que a gente virar as costas.” A segunda cobrinha então
retruca: ”não se pode confiar mais nem em tudo!”
Não; não se pode confiar mais ”nem em tudo”; não se pode confiar na
ciência, paradigma das certezas (paradigma herdado do positivismo cientificista), porque
a ciência hoje sabe muito bem que o seu campo só é fecundo porque o geram suposições
e hipóteses.
A cobra epistemológica estava se referindo ao princípio da incerteza da
Mecânica Quântica, formulado pelo físico Heisenberg, em 1926. O físico reconhecia,
experimentalmente, que, quanto mais precisamente se tentasse medir a posição de uma
partícula, menos precisamente se poderia medir sua velocidade, e vice-versa. A
explicação do fenômeno é simples e perturbadora: o procedimento para se obter a
medição implicava projetar luz sobre a partícula, luz essa que alterava a velocidade da
partícula de forma não previsível.
Nas ciências ditas ”humanas”, em que as dúvidas e as incertezas são mais
flagrantes, podemos supor princípio equivalente. O antropólogo, ao tentar descrever uma
tribo indígena que não teve contato com a civilização ocidental, descreve, no máximo, o
momento em que a tribo toma contato com a civilização ocidental através dele, e como
ele, antropólogo, com todos os seus preconceitos e limites de pensamento e de discurso,
consegue ver uma tribo enquanto ela o vê - ou seja, a sua observação modifica,
radicalmente, o comportamento dos ”objetos” observados, ao mesmo tempo que modifica
a si mesmo. Em outras palavras, o observador depara com a perspectiva perturbadora de
que o próprio observador é parte integrante do fenômeno que observa.
O princípio da incerteza é uma versão quântica da exigência da dúvida
metódica. A qualidade primeira e maior do argumento se encontra, portanto, na assunção
integral e permanente da dúvida, principalmente da dúvida quanto ao próprio argumento.
Para argumentar, é necessário duvidar de tudo. Para argumentar bem, é
indispensável duvidar da validade do próprio argumento, ou seja, é necessário aprender a
dialogar respeitosa e criticamente com o próprio pensamento.
12 Albert Jacquard. Filosofia para não-filósofos, p. 65.
Isto não significa, todavia, que ”tudo é relativo” - frase que os preguiçosos
mentais invocam para encerrar a discussão e pontuar sua ignorância. Primeiro, porque
nem tudo é relativo, já que a teoria da relatividade do físico Albert Einstein procurou
estabelecer o que seria absoluto (por exemplo, por hipótese, a velocidade da luz).
Segundo, porque as coisas são relativas a outras. Logo, a noção de relatividade dos
fenômenos (em relação aos observadores) não pode encerrar uma discussão, mas sim
começá-la. Os argumentos se sustentam se e somente se explicitam as suas relações
internas.
O primado da dúvida não implica ceticismo circular, do tipo ”já que não tenho
certeza de nada, nada vale a pena”. A alma, assim, fica muito pequena. O sentido, aqui, é
diametralmente oposto: já que não tenho certeza de nada, devo investigar com rigor as
minhas dúvidas e defender uma a uma, pela via do argumento, todas as minhas
conclusões provisórias. Em conseqüência, o primado da dúvida não pode aceitar
refutações in limine, isto é, despojadas de argumento elas mesmas. A frase ”não aceito o
seu argumento”, se não vier acompanhada de contra-argumentos, contém violência
semelhante ao silêncio ou ao porrete. Em particular argumentos escritos merecem
comentários e refutações também por escrito, para se construir uma comunidade de
interesses políticos e científicos.
O primado da dúvida, portanto, é perigoso, como nos mostra Vilém Flusser:
A dúvida é polivalente. Significa o fim de uma certeza. Significa a procura de
certeza. Significa ainda, se levado ao extremo, ceticismo, isto é, certeza invertida. Em
doses moderadas estimula o pensamento. Em doses excessivas paralisa o intelecto.
Como experiência intelectual é um dos prazeres puros. Como experiência moral é tortura.
O ponto de partida da dúvida é a fé. A fé como aceitação ingênua dos dados é o estado
intelectual primordial e primitivo. A dúvida destrói essa ingenuidade de forma
irrevogável.13
O primado da dúvida, portanto, pode nos aproximar perigosamente do
fanático de Perelman, se não vier acompanhado de um sentimento que poderíamos
chamar de ”admiração”. É necessário um certo nível de ceticismo, desde que não circular,
em combinação estreita com uma disposição interna para se admirar com o inusitado. De
acordo com o astrônomo Carl Sagan, estas duas formas de pensar - o ceticismo e a
13 Vilém Flusser. Da religiosidade, p. 39.
admiração -, de tão difícil convivência, são absolutamente centrais para o método
científico.14
O inusitado, que merece admiração, tanto pode partir do que nunca vimos
como do que vemos sempre. O hábito também funciona como uma capa que encobre os
fenômenos, o que faculta a paradoxal sensação de determinadas pessoas estarem mais
presentes na nossa vida quando, e somente quando, ausentes (pela morte repentina, por
exemplo, que nos obriga a ver quem não víamos, justamente na hora em que não está
mais ali). Por isso, faz-se necessário cultivar a admiração, ou o ”maravilhamento”, junto
com a dúvida permanente e metódica, para que possamos duvidar inclusive das nossas
perspectivas usuais. Nesse sentido, a dúvida não é um fim em si mesma; trata-se de uma
ferramenta que depende de outras ferramentas e, principalmente, depende daquele que
manipule as ferramentas e o discurso. Descartes disse-o claramente:
Não imitei os céticos que duvidam apenas por duvidar, e fingem estar
sempre indecisos; ao contrário, toda a minha intenção foi chegar a uma certeza, afastar
os sedimentos e a areia para chegar à pedra ou ao barro que está embaixo.15
A dúvida metódica é científica e politicamente indispensável, permitindo-nos
estabelecer pontos de contato com o princípio jurídico in dúbio pró reo. A racionalidade,
apoiando-se na dúvida, quer é alguma certeza, está claro. Defende-se do fanatismo
quando duvida, por exemplo, de infligir no presente um mal indubitável, em nome de um
duvidoso bem no futuro, justamente porque a única certeza que tem é a do mal presente.
Se, como diz Bertrand Russell, ”a teologia dos primeiros tempos era
inteiramente correta, valeu a pena queimar-se muitas pessoas na fogueira a fim de que os
sobreviventes pudessem ir para o céu, mas se era duvidoso que os hereges fossem para
o inferno, o argumento em favor da perseguição não era válido”. Se estivéssemos
seguros ”de que sem os judeus o mundo seria um paraíso, não poderia haver nenhuma
objeção válida quanto a Auschwitz; mas se é muito mais provável que o mundo resultante
de tais métodos seria um inferno, podemos permitir livre manifestação da nossa natural
repulsa humanitária contra a crueldade”.16 Considerando que as conseqüências distantes
das ações são mais incertas do que as conseqüências imediatas, não parece justificável
que nos dediquemos a qualquer norma de ação apoiados na crença de que esta, embora
14 Carl Sagan. O mundo assombrado pelos demônios, p. 13. 15 Em Carl Sagan. Idem, p. 290. 16 Bertrand Russell. Ensaios impopulares, p. 29.
nociva no presente, poderá, algum dia, quem sabe, vir a ser benéfica.
Uma das frases mais sábias que se conhece pode ter sido a que Cromwell
dirigiu aos escoceses antes da batalha de Dunbar: ”rogo-vos pelas entranhas de Cristo
que julgueis possível que possais estar enganados”. O apelo não funcionou; os
escoceses foram derrotados por Cromwell no campo de batalha. Mas é uma pena que
Cromwell jamais haja dirigido a mesma observação a si próprio; apenas formulou uma
frase que, malgrado seu e o apelo dramático às entranhas de Jesus Cristo, podemos ler
como sábia.
A maior parte dos maiores males que o homem tem infligido ao homem
proveio do fato de as pessoas estarem absolutamente certas de algo que, na verdade, era
falso. Saber-se a verdade é mais difícil do que a maioria dos homens supõe, e agir com
implacável determinação na crença de que a verdade constitui monopólio de seu partido é
o mesmo que fazer um convite ao desastre.17
Saber-se a verdade é muito mais difícil do que se supõe. Da mesma
maneira, ”ter uma opinião” é muito mais difícil do que se supõe. Professores deparam
continuamente com alunos reclamando que o mestre não levou em conta a sua opinião,
ou a sua interpretação. O que responder nessa hora? Que é muito difícil ”ter uma
opinião”; na maior parte das vezes, enuncia-se uma coletânea contraditória e
descosturada de opiniões emprestadas do cotidiano e dos media. Opiniões são raras,
logo, precisam ser construídas com muito cuidado e com muito trabalho.
Toda argumentação é, enfim, indício de uma dúvida. O lingüista Sírio
Possenti, que faz uma análise muito interessante (e divertida) de chistes e piadas em
várias línguas, comenta que a relevância de qualquer estudo se dá quando ocorre a
emergência de um novo ponto de vista, de uma nova perspectiva, que permite propor
hipóteses realmente novas de interpretação para os fenômenos abordados.18 E a nova
perspectiva emerge da dúvida, isto é, de perguntas atentas aos fenômenos e aos
fundamentos da própria investigação.
Nesse momento, o aluno esperto e o professor cético podem nos perguntar:
o primado da dúvida autoriza o aluno a duvidar dos seus professores, e portanto de toda a
escola? Boa pergunta. E a nossa resposta é ambivalente (o que não quer dizer ambígua),
17 Idem, ibidem, p. 202. 18 Sírio Possenti, Os humores da língua, p. 14.
pressupondo duas molduras, quer dizer, dois contextos de referência. Para usar a
metáfora do fotógrafo, responderemos primeiro sob a perspectiva de uma lente zoom (que
aproxima as imagens), e depois sob a perspectiva de uma lente grande-angular (que
”alarga” as imagens).
Usando o efeito zoom, diríamos que sim; o aluno deve duvidar de cada um
de seus professores, bem como, principalmente, de cada um dos seus livros didáticos. Na
verdade, não aprenderá, e portanto não será capaz de argumentar com o mínimo de
qualidade, se não exercitar a dúvida sobre o que lê, sobre o que vê, sobre o que escuta e,
principalmente, sobre o que pensa.
Esse exercício necessário da dúvida, entretanto, não se deve confundir com
a arrogância. Há muitas maneiras civilizadas de se duvidar, e todas encontram um canal
adequado através da formalização escrita. Se o aluno duvida de determinada afirmação
do professor, lhe cabe, antes de gritar nervoso que o mestre falou besteira, procurar, em
outras fontes, as evidências que comprovem o erro (sob pena de ele mesmo pronunciar,
por precipitação, uma besteira maior). Se o aluno duvida, por exemplo, da avaliação que
recebeu do professor, melhor do que reclamar e ”pedir ponto” seria redigir suas
reivindicações e justificativas, com toda a elegância, inteligência e cuidado de que é
capaz. Aliás, sugerimos para o professor (ou para a escola como um todo) esse
procedimento como norma: só aceitar reclamações de avaliação por escrito, fartamente
justificadas e documentadas - além de um excelente exercício de redação, a tendência é
que o aluno escreva melhor do que na prova propriamente dita, considerando que se
encontra especialmente motivado (porque muito interessado no efeito das suas palavras).
A educação pelo argumento pressupõe argumentos com educação, parece
claro. Da mesma maneira que se ensinam à criança as palavrinhas mágicas - ”por favor”,
”obrigado”, ”desculpe” -, se deve ensinar a argumentar com educação e respeito ao outro.
Um dos indicadores de que isto infelizmente não acontece aparece na aula de literatura,
quando se pede aos alunos para comentar determinado livro, por exemplo, de Machado
de Assis. Colhem-se então ”pérolas” do tipo: ”esse autor usa palavras que não se usam
mais”, ”esse autor é muito repetitivo”, ”ele faz descrições excessivas e desnecessárias,
seu estilo é prolixo”. Naturalmente, um escritor que viveu no século XIX ”usa palavras que
não se usam mais” e suas descrições antecedem de muito a era do cinema e da
televisão, mas o problema maior desse tipo de comentário reside na falta de educação
argumentativa e cultural, na medida em que o aluno se permite lidar com um autor
consagrado como os professores lidam com a redação dele: não estabelece um diálogo,
procurando tão-somente erros. Em vez de exercitar o raciocínio crítico, congela uma
postura excludente, que se pode propriamente chamar de ”cri-cri”.
A partir do ”cri-cri”, podemos alargar a perspectiva e usar a lente grande-
angular, para enfocar o professor como instituição e a escola como entidade, quando a
nossa resposta àquela questão passaria a ser negativa: o aluno, enquanto é aluno, deve
saber preservar o lugar do professor, principalmente, e a instituição de que faz parte -
sem o que, por definição, ele se torna um aluno pior, conseqüentemente, uma pessoa
pior. Claro que deve procurar distinguir entre professores (todos somos) e mestres
(apenas alguns o são, eleitos por alguns alunos como tal), preservando-os como condição
presente (ainda que indigente) de possibilidade do saber. Pela mesma razão, ele deve
duvidar de si mesmo, da sua própria arrogância autocentrada, e aprender a lidar com
respeito com Machado de Assis e com todos os que produziram, no mundo, alguma obra.
Quando o aluno, mal inspirado pelo exercício da dúvida, reclama que as
aulas são um tédio e ele se encontra ali tão somente obrigado (pela família, pela escola,
pelo Estado), nos cabe retrucar, com Sartre: todos estamos condenados à liberdade. O
aluno entediado e revoltado se encontra na sala de aula porque não tem peito de estar
em outro lugar, enfrentando as conseqüências de suas opções.
Logo, só há uma alternativa digna: fazer bem o que se está fazendo. O que
nos conduz à premissa menor da nossa educação pelo argumento.
A PREMISSA MENOR
A premissa menor do argumento envolve aquela condição mínima de
possibilidade do saber, qual seja, a figura do Professor. No início da pesquisa,
formulamos um questionário, para os professores da Escola Parque, perguntando, entre
outras coisas, que conteúdos eles achavam que deveriam constar de um manual
interdisciplinar de redação. Alguns responderam que deveríamos elencar os principais
erros de português, quer para corrigirem os trabalhos dos alunos, quer para não errarem
nos seus trabalhos e no quadro-negro (ou verde).
Por que não atendemos a essa proposta? Porque estas listas existem nos
manuais de redação dos grandes jornais do país. Não nos parece produtivo refazer o que
já está bem feito. Os manuais de redação dos jornais devem freqüentar a estante nas
salas de aula e de professores, ao lado de dicionários, gramáticas e obras de referência
(como as de Othon Garcia e Cháím Perelman), inclusive de referência para a cidadania (o
que inclui a Constituição Federal, por exemplo).
Na verdade, não queremos que este nosso trabalho seja um livro didático,
pelo menos na forma em que isso existe hoje no Brasil, a despeito da possibilidade, nada
desprezível, de assim vendermos mais (muito mais), ”atingindo” um maior número de
pessoas (e engordando um pouquinho a nossa magra conta bancária). Entendemos que o
chamado livro didático é uma grande falácia, contribuindo para a alegria das editoras e
para o desperdício de dinheiro público (com as compras multimilionárias para distribuir
livros na escola pública), uma vez que o seu inegável sucesso se acompanha, o que não
é nenhuma coincidência, da desqualificação moral, intelectual e, claro, salarial, do
professor.
O livro didático vem progressivamente substituindo as bibliotecas, os
laboratórios e os próprios professores, entronizando no lugar maus instrutores. Também
não por acaso estes livros precisam trazer ”chave de resposta”, o que é simplesmente um
atestado de ignorância que se passa para o professor. Precisamos subscrever, ainda que
com tristeza, a afirmação de Bárbara Freitag:
Esse triunfo do livro didático nos últimos 20 anos vem se revelando como
uma vitória de Pirro para a educação no Brasil. Professores e alunos tornaram-se os seus
escravos, perdendo a autonomia e o senso crítico que o próprio processo de ensino-
aprendizagem deveria criar.19
Se resistimos à tentação do livro didático, ou à tentação de reduplicarmos
parcialmente as gramáticas e os manuais de redação já existentes, acabamos por resistir,
igualmente, a uma tentação própria, qual seja, a de redigir um Manual do argumento para
professores de todas as disciplinas. Essa era, na verdade, a proposta inicial (deveras
ambiciosa) apresentada à escola que solicitou a consultoria. Corríamos, novamente, o
risco da reduplicação de textos: já há excepcionais manuais de lógica e de retórica,
escritos por filósofos brasileiros, como Leônidas Hegenberg, ou traduzidos para o
português, como os de Irving Copi e Wesley Salmon, que devem estar presentes naquela
estante, nos gabinetes dos professores (estes gabinetes não existem?; ora, mas deveriam
existir...) e nas salas de aula. Há até mesmo um outro trabalho muito menos excepcional,
modesto porém honesto, que publicamos em 1985, sob o título de Redação inquieta.
Enquanto os líamos (e nos relíamos), nos convencíamos de que não faríamos melhor. Em
conseqüência, limitamos o escopo do trabalho a uma defesa da educação pelo
argumento, que acreditamos poder fundamentar.
A preocupação daqueles professores, entretanto, quanto à correção
lingüística, é não só pertinente como altamente louvável. A língua portuguesa, como todas
as línguas maternas, é um código de comunicação verbal elaborado e modificado ao
longo dos séculos, pelas civilizações como um todo e por cada escritor ou escrevinhador
em particular. Ele deve ser a priori obedecido à risca, para só depois, a posteriori, quando
já se conhece o padrão e o que foi estabelecido como certo e correto, reinventá-lo e
enriquecê-lo. Não cria ou recria a língua aquele que desconhece ou despreza a língua
que lhe foi legada.
Os acentos são para serem usados, todos e no lugar certo. ”Quiser” não é
com ”z”, pelo amor de Zeus. Não, o trema não caiu - ainda. O uso correto da crase
demonstra, em um único caractere, a compreensão que o escriba tem da estrutura da
língua. Crase antes de palavra masculina ou de verbo, por sua vez, demonstra, em um
único equívoco, a ignorância sintática - vale dizer, a dificuldade de estabelecer
articulações formais. E mais não lembramos, se não vamos acabar fazendo a lista que
dissemos que não iríamos fazer.
O que importa é ter sempre muito claro que faz parte do escrever bem fazê-
19 Em Nilson Machado. Obra citada, p. 172.
lo respeitando escrupulosamente o código. Isto deve ser lembrado aos alunos, o tempo
todo, de muitas maneiras e por todos os professores. Se todos ensinamos a ler, a
escrever e a raciocinar, parece óbvio que todos devemos ensinar a língua portuguesa,
preocupando-nos em mostrar o certo e corrigir o errado. Para tanto, um primeiro
pressuposto, básico, é: que todos os professores, de todas as disciplinas, dominem a sua
língua. Um segundo pressuposto, igualmente básico, é: que todos os professores tenham
tempo para avaliar com cuidado o trabalho dos alunos.
Entretanto, nem uma coisa nem a outra, infelizmente, é verdadeira. Admiti-lo
é necessário, para enfrentar o problema.
É conhecido o caso do professor de uma dessas disciplinas ”exatas” que, no
início da aula, coloca no canto do quadro vários acentos e sinais de pontuação,
”orientando” os seus alunos para os distribuírem como quiserem. Também é ”popular”
aquele professor, normalmente de ”humanas”, que adentra a sala dos professores
perguntando ”quem é o professor de português dessa turma”, para reclamar dos erros dos
alunos como se ele mesmo não ensinasse (ou ”desensinasse”) redação. Por delicadeza,
não podemos nos referir àqueles professores que escrevem ”tudo errado”, no quadro e
nos seus testes, terminando por formular questões equivocadas e ambíguas porque,
embora dominando o conteúdo das suas disciplinas, não dominam... o português.
Assim como as estruturas lógicas que organizam o pensamento ocidental, a
língua materna, no nosso caso a língua portuguesa, constitui a lei maior à qual todas as
demais se subordinam. O cientista no laboratório precisa usar uma roupa limpa e
adequada, bem como equipamentos adequados e limpos; o geógrafo no campo precisa
fazer as suas observações de acordo com os procedimentos previamente estabelecidos
por seus pares; o matemático na sua escrivaninha, o arquiteto na sua prancheta, devem
usar as notações numéricas corretamente; e todos eles, como todos nós, enfim, devemos
nos submeter, sim, à língua portuguesa, sob pena de expressarmos tão somente erro,
equívoco e desatenção.
A questão deve se ampliar, todavia, para os procedimentos de avaliação
como um todo. A atenção à língua portuguesa e à organização do raciocínio deve
alicerçar todos os instrumentos e todos os critérios de avaliação. Mas, mais do que isto, o
primado da dúvida, premissa maior do argumento, deve ser preservado na própria
estrutura da avaliação.
O padrão de avaliação que conhecemos, porém, não gosta muito da dúvida.
Na verdade, detesta a dúvida - tanto que a penaliza. O sistema da chamada ”múltipla”
escolha, usado inicialmente em concursos de grande porte, foi absorvido com alegria em
todos os níveis de ensino (devido à humaníssima lei do menor esforço, e mais ou menos
ao mesmo tempo em que se dava o sucesso do livro didático). Entretanto, esse sistema é
uma contradição nos próprios termos, se o aluno não tem escolha alguma, ou melhor, se
o aluno tem muito mais chance de errar do que de acertar: são três ou quatro opções
”erradas” para uma ”certa”.
Associada ao perverso, ainda que cômodo, sistema da ”múltipla” escolha, a
instituição subterrânea (bem, nem tão subterrânea assim) da ”cola” promove o avesso da
dúvida metódica, qual seja, a desconfiança sem método. Como ”quem não cola não sai
da escola”, o aluno aprende, em primeiro lugar, a ser ilegal e imoral, isto é, a furtar o
pensamento e o esforço alheios; aprende, em segundo lugar, a não confiar no seu próprio
pensamento e no seu próprio esforço.
Com o passar dos longos anos escolares, quanto mais coniventes e frouxos
os professores, quanto mais despropositadas e desconectadas entre si as tarefas e
avaliações escolares, quanto mais testes de ”múltipla” escolha se aplicam, penetra nos
ossos e na alma de cada aluno um comportamento que poderíamos resumir com a
expressão: de má-fé. Passa-se a pensar e a agir de má-fé, enganando por princípio,
diminuindo-se em conseqüência.
Mas estamos antecipando a segunda parte do livro, quando estaremos
propondo um sistema de avaliação que acaba de vez com a ”cola” e todas as suas
conseqüências imorais, preservando o primado da dúvida metódica. Resumindo
rapidamente, o que se vai propor é transformar a ”cola”, de transgressão consentida (e
até estimulada), em consulta necessária, obrigando a que todos os instrumentos de
avaliação, sem exceção, permitam (e até mesmo exijam) consulta geral, ampla e irrestrita
(aos livros, às anotações de aula, e inclusive à prova do colega do lado). Para isso, as
provas e testes precisam abandonar a pretensão tirânica de ”abarcar toda a matéria”,
tornando-se menores - e mais inteligentes. Devem conter questões amplas, abrangentes
e desafiadoras, cujas respostas somente possam ser discursivas, ou seja, cujas respostas
constituam sempre... um argumento.
O físico Heisenberg (aquele, do princípio da incerteza) enuncia mais uma
regra do juízo: ”não se deve julgar um movimento político pelas metas proclamadas
publicamente, mas apenas pelos meios que usa para alcançá-las”.20 Pensando nos
movimentos totalitários do século XX, que para alcançar A faziam o avesso de A, o
cientista entendia que os meios já são os fins, revelando no presente, e não em um futuro
que ainda não há, o caráter do grupo que recorre a tais e quais meios. Ora, a sua regra
serve à perfeição para a escola: se queremos um mundo com indivíduos intelectualmente
autônomos, capazes de duvidar, investigar, concluir, demonstrar e, principalmente,
dialogar, todas as nossas formas de avaliação (e, obviamente, todas as nossas aulas)
devem refletir, não como um desejo abstrato mas como condição estrutural, esse objetivo.
Em conseqüência, a avaliação que não só dá margem à ”cola”, mas na
verdade produz a ”cola”, precisa ser inteiramente abolida, facultando uma relação de
confiança, não só do professor nos alunos, mas dos alunos no seu próprio saber. Isso não
é um sonho de ”polyanna”, imaginando alunos bonzinhos que nem existem. Ao contrário,
provas com consulta necessária são muito mais difíceis, tanto para o aluno resolver
quanto para o professor elaborar. A exigência do argumento (articulada a questões
minimamente decentes) é que inviabiliza a ”cola”, gerando, como benefício secundário
(mas nada desprezível) a confiança referida.
À restrição, previsível, de que continuarão existindo os fatídicos testes de
”múltipla” escolha nos concursos de seleção, logo, os alunos precisam ser treinados para
enfrentar estes testes, se responderá que o sistema da consulta necessária admite
questões com alternativas excludentes, desde que o aluno sempre precise justificar
discursivamente, com argumentos, por que tal opção estaria certa e por que cada uma
das outras opções não seria adequada. Nesse caso, o avaliador deve priorizar menos a
opção ”certa”, para valorizar sobremaneira os argumentos do aluno. Trabalhando dessa
maneira, temos certeza de que não apenas se desenvolve melhor o pensamento do aluno
como ainda o treinamento para o tal do vestibular se revela muito mais eficiente.
À restrição, também previsível, de que o sistema não é conveniente para as
ciências ditas exatas, que se apóiam antes nos números e nas fórmulas do que nas
palavras e nas frases, recorremos novamente à estreita relação que existe, ou deveria
existir, entre o ensino da língua materna e o ensino da Matemática.
Entre a Matemática e a Língua Materna existe uma relação de impregnação
mútua. Ao se considerarem estes dois temas enquanto componentes curriculares, tal
20 Werner Heisenberg. A parte e o todo, p. 58.
impregnação se revela através de um paralelismo nas funções que desempenham, uma
complementaridade nas metas que perseguem, uma imbricação nas questões básicas
relativas ao ensino de ambas. É necessário reconhecer a essencialidade dessa
impregnação e tê-la como fundamento para a proposição de ações que visem à
superação das dificuldades com o ensino de Matemática.21
Nilson Machado lembra que é muito comum a existência de bons alunos de
Matemática que, todavia, não sabem Matemática: sabem fazer conta, sabem obedecer,
sabem atender ao que se pede, sabem o que o professor quer, mas simplesmente não
dão o salto dos procedimentos mentais mais ou menos mecânicos, que as máquinas
calculadoras também fazem (e muito mais rápido), para realmente compreender o que
estão fazendo. No seu livro Matemática e língua materna, Machado propõe que todas as
atividades propostas pela disciplina, incluindo as questões de prova, sejam também
discursivas, exigindo justificativa. E ”justificativa”, para ele, não é apenas colocar os
cálculos ao lado da resposta ”certa”. Justificar implica descrever, com todos os esses e os
erres da língua portuguesa, o caminho do raciocínio. Só assim, acredita, o aluno de fato
aprende, porque tem de formular o que aprendeu.
O mesmo vale, defendemos, para todas as disciplinas das assim chamadas
ciências exatas. A língua materna é anterior à linguagem de todas elas e as contém. Não
existe, tentaremos demonstrar um pouco mais adiante, um pensamento desconectado da
sua expressão, e mais especificamente, da sua expressão verbal. Quando nos
surpreendemos ao escrever algo que não sabíamos que pensávamos, não atinamos que
na verdade o gesto de escrever, de expressar o pensamento, é o próprio pensamento,
que existe apenas quando é formulado, isto é, quando é... pensado. Não existe um
cantinho escuro no meio do cérebro onde volta e meia vamos capturar um pensamento ou
uma idéia. O pensamento não é uma ”coisa”, mas sim um movimento. A verdade não está
parada, esperando ser encontrada; toda verdade é verdade andando, e nos cabe tão
somente andar com ela.
Ora, estas considerações e propostas sobre a avaliação implicam uma outra
maneira de trabalhar, o que, pelo menos num primeiro momento, redunda em mais
trabalho. É hora de falar sobre o trabalho do professor, e como esse trabalho se constitui
na premissa menor da presente Educação pelo argumento.
21 Nilson Machado. Obra citada, p. 10.
O comportamento de má-fé do aluno, em decorrência da institucionalização
da ”cola”, reflete a má-fé da sociedade em relação ao trabalho do professor. Como a tal
”sociedade” somos, enfim, todos nós, inclusive os seus líderes, mestres, tutores e
preceptores, podemos inferir que os professores que nós somos também desenvolvemos,
ao longo do tempo, algumas atitudes que poderiam ser qualificadas, igualmente, como de
má-fé.
Mandamos o aluno ler muito, e lemos muito pouco. Mandamos o aluno
escrever muito, e escrevemos muito pouco. Exigimos, como escola, que ele saiba o que
cada um de nós, como professor, não sabe. De modo mais ou menos consciente, damos
nossas aulas de acordo com o salário que nos pagam - o que significa que damos aulas
piores, ou faltamos muito mais vezes, na escola pública. Colocávamos, alguns anos atrás,
no vidro da janela do carro (usado, é verdade) aquele plástico infeliz: e ”hei de vencer,
mesmo sendo professor”. Adotamos, com freqüência, a postura lamentosa (e lamentável)
de Hardy Ha-Ha: ”oh dia, oh céus, oh azar, eu sabia que não ia dar certo...”
É verdade que muitos professores brasileiros ganham menos do que um
salário mínimo, e que isto é uma vergonha inominável. Mas não acreditamos que estes
professores estejam lendo estas considerações. Sem dúvida estão lendo estas palavras
(bem, se alguém estiver lendo) professores com o mínimo de condição financeira e
intelectual, condição essa que os capacita não só a fazer uma análise política lúcida da
situação do magistério, como a, com todas as dificuldades, ministrar uma aula decente,
quiçá empolgante.
Foi um outro professor de Matemática que nos passou uma dúvida
existencial profunda: sou um merda porque sou professor, ou sou professor porque sou
um merda. Essa dúvida, de fato legítima (apesar da expressão chula que, no contexto, é
absolutamente precisa), remete àqueles ditados populares que nos atormentam, do tipo:
quem sabe, faz, quem não sabe, ensina (e quem não sabe nem ensinar, ensina Educação
Física). Ou do tipo: quem ”não dá pra” engenheiro, ensina Matemática; quem ”não dá pra”
médico, ensina Biologia; quem ”não dá pra” advogado ou político, ensina História; quem
”não dá pra” latifundiário (ou sem-terra), ensina Geografia; quem ”não dá pra” jornalista ou
escritor, ensina Português; e quem ”não dá pra” mais nada, ufa, faz Pedagogia.
Em outra conversa, nos perguntaram por que nos esforçávamos por propor
”coisas diferentes”, num quadro de exploração, desprestígio e desânimo do magistério.
Podemos abranger os dois questionamentos - o da merda e o da luta contra a merda -,
com uma resposta teórica e outra prática.
Em termos filosóficos mais gerais, tentamos adotar o imperativo que reza:
”age de tal modo que a máxima da sua ação possa servir de regra universal”.
Obviamente, não é da nossa lavra: foi enunciado por Immanuel Kant no século XVIII.
Significa que se deve realizar cada ação, das maiores às menores, se e somente se ela
puder servir de modelo para toda e qualquer pessoa. Nesse sentido, cada um de nós, ao
fazer os seus gestos e dar os seus exemplos, torna-se um legislador. O corolário desse
imperativo é que não se pode desejar o que não possa representar regra universal. Não
podemos desejar a felicidade, ou lutar pela felicidade, se, por definição, a felicidade de um
implica a infelicidade de outrem. Só posso ter muito dinheiro, por exemplo, se muitos
tiverem muito pouco. Só posso ”ter” aquela pessoa me amando, por exemplo, se outro,
que também a quer, perdê-la. Logo, nos cabe, apenas, merecer a felicidade, isto é, ”fazer
por onde” - o mais foge totalmente a nosso controle. Logo, devemos abandonar a vã
pretensão de vir a controlar, por via da sorte, da corrupção ou da força, o Destino e o
Universo (ou o nosso salário).
O imperativo kantiano está lá, como um horizonte regulador, a orientar a
ação. Ele é sem dúvida deveras exigente - difícil de alcançar, como se diz, na prática. Por
isso, precisamos dar também uma resposta prática. A resposta prática é simples: só nos
cabe fazer o melhor possível o que estivermos fazendo. Não é isto que já dissemos ao
nosso aluno entediado: por que você está aqui, por que não está em outro lugar? Ele
pode até ter dado um risinho, com a boca torta, num exercício adolescente de cinismo,
como se a pergunta fosse absurda. Mas não é. Em geral, ele poderia não estar ali, pode
sair em qualquer momento, mas, é claro, não deseja enfrentar as conseqüências duras do
seu ato. Ele escolhe, sim, permanecer onde está, embora finja que não escolhe, quando
reclama pelos corredores e pelos cantos. Tanto o nosso aluno quanto nós estamos
condenados à liberdade, disse, com precisão, o velho existencialista francês. Sou um
merda porque escolho ser um merda, e não por ser aluno, ou professor, ou lá o que seja.
De vez em quando, é bom nos perguntarmos também se queremos estar
nesse lugar; se queremos continuar a ser professores nesse país. Qualquer resposta
pode ser boa e válida. Entretanto, se na prática continuamos na lida, nos cabe, tão
somente, fazer o que fazemos da melhor maneira possível. A escola que priorize o
argumento sobre a resposta certa, ou errada, tanto faz, pede um professor que dê o
exemplo e tenha prazer em argumentar, proporcionando situações didáticas, de aula e de
avaliação, que promovam o argumento do aluno.
Isto não precisa significar trabalhar como um enlouquecido, corrigindo
provas e redações nas madrugadas de sábado para domingo. Há ene maneiras de
otimizar o trabalho pesado da nossa profissão - e não vamos aqui listar todos os nossos
truques (honestos, diga-se de passagem). Aliás, essa seria uma excelente oficina, ou
workshop, que nunca vimos proposta: ”como otimizar a preparação das aulas e a
correção dos trabalhos dos alunos”. Fica a idéia, quem sabe, para um outro livro (nosso,
ou de outra alma, tão caridosa quanto esperta).
Quando aquele colega, que nos perguntava por que nos esforçávamos por
propor ”coisas diferentes”, num quadro de exploração, desprestígio e desânimo do
magistério, volta então à carga e questiona: vocês acham que esse discurso todo, que
esse Kant todo, convence o professorado?
Resposta sincera? Não sabemos. O efeito das nossas palavras, na sala de
aula como nos livros, não podemos controlar nem nos cabe. O que nos cabe é escrever o
nosso melhor texto, lançando os dados no tapete do discurso. O que nos cabe é insistir
que vislumbramos dois caminhos, não excludentes, para modificar profundamente a
condição do magistério, o que permitiria, porventura, a acolhida das nossas teses.
O primeiro caminho está sob o controle e sob a responsabilidade de cada
professor: interligar teoria e prática, crença e gesto, filosofia e ação concreta, discurso e
metodologia. Dar a nossa melhor aula e escrever o nosso melhor texto. Isso vai mudar a
escola brasileira, a realidade brasileira? Sim. Se nos modifica a nós mesmos ao
escrevermos, ao nos ministrarmos as nossas aulas, ao aplicarmos as nossas provas com
consulta obrigatória, ao nos preocuparmos prioritariamente com o argumento, deixando
em segundo plano a resposta ”certa”, isso alterará, ainda que por um milímetro (que
nunca será um reles milímetro), os eventuais ouvintes e leitores.
O segundo caminho é político, absolutamente necessário, e
responsabilidade de todos aqueles que têm função de direção na escola pública e na
escola particular, bem como de todos aqueles que ocupam cargos de poder em todas as
esferas de governo e cujas ações tenham algum efeito sobre a educação. Devem-se
alterar radicalmente as condições de trabalho dos professores, acompanhando essa
alteração de uma mudança radical no nível de exigência das instituições em relação a
seus professores. Cumprirmos com o nosso dever, como no parágrafo anterior, não
exime, de maneira alguma, os políticos e os donos das escolas da sua enorme
responsabilidade.
O processo de desvalorização moral (da qual todas as demais
desvalorizações decorrem) do professor acompanha o sistema econômico em que
vivemos. Não é privilégio nacional. Ainda em 1950, ou seja, antes de os autores desse
livro nascerem, o filósofo inglês Bertrand Russell, ao mesmo tempo em que recebia o
Prêmio Nobel de Literatura, dizia:
Convém dizer que a maioria dos professores se acha sobrecarregada de
trabalho, sendo obrigada a preparar os seus alunos apenas para os exames, em vez de
lhes ministrar um treino mental generoso. As pessoas que não estão acostumadas a
ensinar - e isto inclui praticamente todas as autoridades educacionais - não têm idéia do
dispêndio de inteligência que isso envolve. Não se espera que os clérigos façam sermões,
todos os dias, durante várias horas, mas um esforço análogo é exigido dos professores. O
resultado disso é que muitos deles ficam esgotados e nervosos, alheios às obras recentes
sobre as matérias que ensinam, e incapazes de inspirar a seus alunos a sensação de
prazer intelectual que se obtém através de uma nova compreensão e de um novo
conhecimento.22
Recorremos a Sir Russell, a um gentleman, portanto, para chamar a atenção
para a importância do professor, em contraste grosseiro com a realidade de nossa
profissão. Da sua argumentação infere-se que se deve garantir, para o professor, poder
trabalhar em um único local, em uma só escola ou universidade, com dedicação
exclusiva; deve-se garantir um turno de trabalho na sala de aula (o que inclui preparação
das aulas e correção dos trabalhos dos alunos) e o outro turno em gabinete minimamente
equipado, ou em biblioteca razoável, para estudo e pesquisa (ou, ainda, e por que não,
em casa, no escritório pessoal - onde, aliás, fizemos este livro); devem-se garantir
condições financeiras que atraiam os melhores talentos (e não apenas ”quem não deu
certo pra mais nada”) e, principalmente, devem-se gerar condições morais que revertam o
desprestígio da categoria em real prestígio social. Concomitantemente, deve-se exigir dos
professores a contrapartida: reflexão permanente e produção (científica, técnica, esportiva
ou artística) ininterrupta, que possa se submeter à mesma avaliação a que submetemos
os nossos alunos.
22 Bertrand Russell. Obra citada, p. 152.
Não parece fácil - mas é absolutamente necessário.
Dadas as premissas, maior e menor, do argumento, queremos esboçar um
projeto de educação pelo argumento para a escola secundária. A despeito da seriação
oficial do currículo e da freqüente alteração das denominações, tendemos a continuar
encarando como ensino médio, como escola secundária, o intervalo entre a quinta série
do ensino fundamental e a terceira série do ensino médio. É dentro dessa faixa que
fazemos a nossa proposta, estabelecendo para cada série um determinado aspecto da
teoria do argumento a ser trabalhado por todas as disciplinas.
Quinta série: a preparação do argumento
Sexta série: a formação da hipótese
Sétima série: a âncora do argumento
Oitava série: o argumento impertinente
Primeira série: o esforço dialético
Segunda série: a rede de argumentos
Se aceita a premissa da argumentação como eixo interdisciplinar, essa
seriação pode ser obviamente alterada, invertida, recombinada, por qualquer escola, por
qualquer grupo de professores. É perfeitamente possível, inclusive, trabalhar todos os
elementos em uma única série, considerando que todas as formas possíveis de
argumentar de fato acontecem, mesmo que sem consciência plena disso, nos debates de
todas as séries. Nossa proposta é uma dentre muitas viáveis. A ordem dos aspectos da
argumentação obedece a uma determinada lógica, explicitada no decorrer dos
respectivos capítulos, mas nos parece perfeitamente possível encontrar outra ordem, tão
ou mais consistente do que a nossa.
Discriminaremos, nos capítulos que se seguirão, cada parte da proposta,
mas sem a preocupação de esgotar o assunto. Como não estamos fazendo um tratado de
argumentação, será necessário remeter a textos e obras complementares, que devem ser
lidos pelos professores. Acreditamos, ainda, ser necessária uma preparação da equipe,
através de seminário, laboratório, curso, oficina ou melhor nome que se dê (menos
”reciclagem” ou ”treinamento”, por favor). Recomendamos evitar, entretanto, ”reuniões
pedagógicas”, em que se costuma perder tempo e oportunidade de trabalhar. Urge,
concretamente, se ler e se estudar, para então se levantarem as propostas de cada
disciplina e de cada professor.
Os princípios gerais da educação pelo argumento, se adotados, não nos
parecem interferir quer nos programas de cada escola, quer na criatividade de cada
professor. Eles emprestam um eixo metodológico a todas as aulas, mas, salvo melhor
juízo, não impedem que, dentro do eixo, cada professor possa escolher suas prioridades
e inventar suas alternativas.
Pode haver, naturalmente, um projeto melhor do que o nosso. Nossa
experiência, limitada, não conhece, entretanto, nem um projeto em ação, nem pior nem
melhor. Há experiências de fato interdisciplinares, e muito bem-sucedidas, no primeiro
segmento do ensino fundamental, de 1ª a 4ª série, com fundamentação piagetiana;
damos como exemplo dessas experiências, porque as conhecemos, algumas escolas do
Rio de Janeiro: Escola Parque, Escola Pólen, Centro Educacional Anísio Teixeira, Oga
Mitá e Colégio de Aplicação da UERJ (certamente existem tantas outras, que não
conhecemos). No entanto, a partir da 5ª série, exatamente quando se subdividem
drasticamente as disciplinas, não existe mais sombra de projeto pedagógico.
Não é que não haja bons trabalhos, nem bons resultados.
Todavia, eles dependem quase exclusivamente do brilho de determinados
professores ou do carisma de determinadas coordenações, o que, na conjuntura atual, já
parece muito. Mas, sem projeto pedagógico escrito, toda escola, além de ficar na
dependência flutuante do talento individual dos seus profissionais, abdica não só de
enfrentar a fragmentação do conhecimento como de produzir conhecimento - no seu
caso, conhecimento pedagógico.
Do mesmo jeito que o cientista faz experiências que devem ser divulgadas
(com demonstrações e argumentos), para serem testadas, refutadas e enriquecidas pelos
seus pares, nos parece que as escolas, e em particular aquelas que têm um nome
consagrado na praça (na maioria dos casos, infelizmente, escolas particulares), têm a
obrigação moral e acadêmica de produzirem, experimentarem e exportarem um projeto
pedagógico consistente e coerente. Esse projeto, ainda mais no caso brasileiro, deve ser,
além de consistente e coerente, barato, isto é, deve depender menos de recursos e mais
do estudo e da ação dos seus professores, justo para se permitir adotado por qualquer
escola pública. Os recursos existentes devem ser ampliados e direcionados
prioritariamente para a formação e a valorização do professor.
Cabe aos governos a valorização decisiva da escola pública, o que implica
valorizar em todos os níveis (começando pelo salarial) o seu professor (e não apenas o
prédio, como na era dos cieps e ciacs e outros quacs...). Cabe aos professores das
melhores escolas particulares, por sua vez, como compromisso moral e político,
aproveitarem a sua própria qualidade e a sua condição de trabalho um pouco melhor para
produzirem conhecimento pedagógico, vale dizer, para redigirem um projeto que altere
substancialmente, para melhor, a qualidade do ensino público no país.
Essa Educação pelo argumento é a nossa contribuição que precisa ser
encampada e desenvolvida pelos colegas e pelas escolas, para se realizar.
A PREPARAÇÃO DO ARGUMENTO
Por Gisele de Carvalho
Começa-se pela preparação do argumento, porque entendemos que, se ter
uma idéia própria é coisa rara, defendê-la em público, oralmente e por escrito, é mais
difícil ainda. Conhece-se a sensação de ”branco”, bem ironizada pelo pichador da tira do
Laerte23, em que o papel em branco na frente da pessoa parece invadir a sua cabeça, ao
invés de ela preenchê-lo com sinais e significados. Mas há maneiras de enfrentar esse
pequeno ”terror”.
O pichador, ”legítimo” representante de uma juventude de perspectivas
estreitas (estreitadas por um sistema político e econômico particularmente excludente, é
bom que se diga), tende a substituir as idéias por tinta, o pensamento por ação irrefletida,
as sentenças e as perguntas por ícones e rabiscos fazendo referência a nada (ou quase
nada). Seria, talvez, a versão light do terrorista do final do século, que já não tem mais
nem ideologia nem utopia a justificar os seus crimes - que já não precisa mais nem de
ideologia nem de utopia.
Pichador do banheiro da escola, pichador de monumentos públicos, hooligan
inglês ou paulista, terrorista de Estado ou mercenário sem causa, todos passam, de
algum modo, pelos bancos de uma escola que não soube defender o valor do argumento
no lugar da violência. Em outras palavras (dramáticas), o ”branco” frente ao papel em
branco se pode afigurar perigoso, se não soubermos como nos preparar para o
argumento.
Este capítulo trata do ato de começar. Nele discutimos as etapas que
precedem a geração de um texto, incluindo aqui as habilidades de estudo e pesquisa que
precisamos dominar antes de iniciar a redação. Começaremos por um exame das
relações entre ler, escrever e aprender. Tomemos como ponto de partida as formulações
ler para aprender e escrever para aprender.
Vejamos uma piada (politicamente incorreta). Ao deparar com a placa
DEVAGAR QUEBRA-MOLAS, o português acelerou o carro. Logo depois, a pé, ele volta
ao local onde a placa está fincada e a corrige: DEPRESSA TAMBÉM.
23 A tira se encontra no site do cartunista: www.laerte.com.br.
Nosso amigo português sabe ler? Sim. Ele foi capaz de dar um sentido
àquelas letras, de compreendê-las como sendo um aviso (”acelere, ó pá!”). Nosso amigo
português sabe ler? Não. O sentido atribuído às letras não levou em conta o contexto
onde elas estavam inseridas, não levou em conta outros tipos de sinalização em estradas
que se utilizam da mesma forma sintática (DEVAGAR: TRECHO EM DECLIVE), não leu
O texto através de outros textos.
Situação similar à do patrício, viveu Adriana, aos quatro anos. Vamos ao
diálogo, que aconteceu dentro do carro, a caminho da casa do primo-padrinho (Philipe),
em companhia de seus pais, do irmão mais velho e da prima. O assunto lá no banco de
trás era ”escola”.
Adriana - Philipe, onde é que você estuda?
Philipe – No CEL.
Adriana - No céu?!? (Aqui a mãe interfere e explica a confusão que a menina
denuncia, pela careta e pela entonação)
Adriana - (continuando a conversa) Onde é a sua escola?
Philipe - (rindo, antes de responder) Na Lagoa!
Adriana ainda compreendia parte do que lhe era dito de forma literal, apesar
de já podermos considerá-la uma usuária razoavelmente competente de sua língua; como
outras crianças de quatro anos, ela era capaz de ouvir um enunciado como, por exemplo,
atende o telefone para mim, Adriana, e diz que a mamãe já vai sair do banho. Semelhante
enunciado demandava entender o que lhe era dito e agir de acordo, assim demonstrando
que o compreendeu.
O leitor pule um ano. Agora, aos cinco anos, na metade do processo de
alfabetização, Adriana escreve frases: ”AMENINADEUABOLAPARAOMENINO”.
Ela sabe escrever? Sim e não. A gramática está correta, assim como a
ortografia. Mas sua autora ainda não domina uma convenção do discurso escrito
aparentemente muito simples: as palavras são delimitadas por espaços. A frase solta,
serpenteando na folha enorme ou espremida num cantinho, é indício da falta de um
propósito para o exercício da escrita. Será que a mesma frase pode vir a ter algum valor
(além de treinar a coordenação motora, a memória da grafia das palavras)? Talvez na
seguinte situação: Adriana, em sala, recebe um envelope com gravuras, desenhos ou
quadrinhos que formem uma seqüência. Ela precisa colocá-los em ordem e escrever a
pequena história resultante, para posteriormente compará-la com a de outros colegas.
Parece-nos que a frase agora ”merece” ser escrita, pois passa a ter um valor descritivo,
além de estar conectada a outras, tomando assim um sentido para si.
Podemos, então, dar o salto das primeiras sílabas para o ensino de redação.
A frase solitária, no papel da Adriana, precisa atender a duas condições básicas: (1) ter
um propósito comunicativo claro, e (2) partir de um desejo. Estas são as condições
necessárias à produção escrita, de uma frase só, de uma redação de trinta linhas, ou de
um ensaio sobre o argumento. Grabe & Kaplan têm algo a nos dizer a respeito disso:
O ensino de redação nas escolas, por definição, viola estas duas restrições.
Isto é, os professores prescrevem tarefas escritas; as tarefas não são internamente
motivadas. Além disso, algumas das tarefas que os professores têm de necessariamente
prescrever não são essencialmente comunicativas. Enquanto não podemos fechar os
olhos às artificialidades de várias metodologias de ensino de redação, reconhecemos que
necessidades educacionais podem ter mais peso que outras considerações. Ao mesmo
tempo, acreditamos que os professores podem fazer muito para aperfeiçoar a orientação
comunicativa das tarefas escritas, mesmo as mais mundanas.24
Em outras palavras, é necessário dar um sentido às tarefas escolhidas, para
que os alunos deixem de executá-las só porque o professor assim determinou. Mesmo
que os propósitos de uma tarefa sejam eminentemente pedagógicos e, nesse sentido, se
configurem também como meios para se chegar a um certo fim, isto precisa ficar claro
para quem, ao final das contas, tem o trabalho.
Podemos agora passar às nossas proposições iniciais: ler para aprender e
escrever para aprender. Na preposição para identificamos a finalidade, o propósito que
tanto enfatizamos e o salto que pretendemos. Estamos, portanto, falando da leitura e da
escrita como meios de aprendizagem, inclusive delas mesmas. O conteúdo (seja ele de
Matemática, História, Química, Física, até de Português) que se pretende desenvolver até
parece ter precedência sobre a leitura e a escrita, mas não pode abrir mão delas como
instrumentos de sustentação da aprendizagem. Quantas e quantas vezes ouvimos o
célebre (e correto) comentário do professor de Matemática: ”o problema desse menino é
24 William Grabe & Robert Kaplan. Theory andpractice ofwrítíng, p. 266 - a tradução desta passagem e das demais é de Gisele de Carvalho.
entender o problema; antes de não saber calcular, o que ele não sabe é ler”.
Conseqüentemente, a redação do tipo ”minhas férias”, um claro exemplo de
escrever sem propósito, pode ser esquecida. Assim como aquele texto que os alunos são
instados a fazer, no dia seguinte à visita a uma fábrica de tecidos, tirado da cartola do
professor de Química e valendo nota.
Dá um pouco mais de trabalho, antes da visita, dividir a turma em grupos e
distribuir tarefas de observação específicas para cada um deles (”anote os passos do
processo da transformação da fibra em fio”; ”que tipo de acabamento foi dado ao
tecido?”), a fim de cada um poder produzir um pequeno relatório a partir do que tiver sido
observado. Depois da visita, estas anotações serviriam de base para formar outros
grupos, contendo um integrante de cada um dos grupos originais, para essa nova equipe
fazer um relatório que dê conta de todo o processo de produção de um tecido,
acompanhado da descrição das reações químicas e físicas observadas pelos alunos e
trabalhadas pelo professor (antes ou depois da ida à fábrica; lhe cabe decidir o melhor
procedimento).
Dá mais trabalho, é verdade, mas essa tarefa transformou a visita: ela agora
é mais instrutiva, digamos assim, e o relatório final, que precisa ser construído por todos,
como se fosse um quebra-cabeça, adquire um sentido. Aqui o aluno escreve para
aprender... o que aprendeu! Esse aluno está dando forma a essa visita, através da
seleção e ordenação de informações, obtidas a partir de sua observação e combinadas
com conhecimento adquirido via aulas. Escrever para aprender significa descobrir
relações entre idéias, selecionar e ordenar idéias e dados, ou ainda dar forma a
experiências pelas quais passamos a fim de que possamos compreendê-las com mais
clareza.25
Abrindo um parêntese: não é exatamente isto o que as terapias procuram
promover através da linguagem oral, corporal ou plástica? Quando o psicanalista faz
perguntas a respeito de um relato de sonho, quando o terapeuta propõe que o paciente
permaneça durante algum tempo numa certa postura, quando o psicólogo pede que a
criança modele um monstro em argila e dê a ele um nome, o inconsciente, a dor e o medo
tomam forma através de uma linguagem. Essa linguagem constrói representações destas
experiências: o paciente se ouve dizendo o indizível, e fica aliviado; a dor provocada
25 John Harris. Introducing writing, p. 11.
invoca a dor primeira, que pode então ser trabalhada; o medo toma a forma de um
boneco que, tão frágil, pode quebrar-se. O que estava latente, escondido, tomou forma,
para que possamos compreendê-lo melhor. Nesse sentido, a linguagem escrita é também
uma forma de representação, uma maneira pela qual podemos dar forma a várias
experiências, inclusive as de aprendizagem, no contexto escolar. Fecha o parêntese (e o
parágrafo).
Mas o que exatamente se quer dizer quando pensamos em nosso aluno
como alguém que escreve para aprender Geografia, Literatura, Física ou Inglês? Em
linhas gerais, a entrada na quinta série compartimentaliza as Ciências, a Língua, os
Estudos Sociais, a Matemática. Elas ”viram” (mesmo que ainda disfarçadas, numa fase
inicial, por termos guarda-chuva) Biologia, Física e Química, Língua Portuguesa,
Literatura e Redação, História e Geografia, Álgebra, Geometria e Trigonometria. Espera-
se, junto com a ”virada”, que o aluno torne-se capaz de lidar com vários conjuntos de
informação, cada vez mais complexos e por muitas vezes também díspares; de dar forma
a conhecimento adquirido e utilizá-lo na aquisição de outros; de desenvolver sua
capacidade de análise, síntese, avaliação crítica; de expressar-se de maneira adequada,
oralmente e por escrito, através do domínio das convenções de diversos gêneros,
acompanhado de um certo refinamento sintático e lexical.
Estes objetivos, contudo, parecem ser comuns a todas as disciplinas - basta
uma verificação rápida nos programas. Se através da escrita podemos registrar (1) o
tratamento dado à informação (selecionando-a, organizando-a), (2) a forma dada ao
conhecimento e (3) o resultado de nossas análises, sínteses e avaliações críticas,
podemos pensar na escrita não só como meio de sustentação da aprendizagem, mas
como fim também. Se, em termos ”macro”, escrever significa registrar os caminhos da
reflexão, parece que nós professores, independentemente da matéria que lecionamos,
temos uma tarefa em comum - um fim a atingir: se todos nós, de uma forma ou outra,
ensinamos a pensar, logo todos nós ensinamos a escrever. Como estamos tentando
demonstrar.
Mas esse fim, essa finalidade, tem um começo. Seria extremamente simples
se para escrever fosse necessário apenas começar. No entanto, como começar? Vários
anos de contato com alunos universitários em cursos de Letras nos dizem que devemos
abandonar certas pressuposições. A primeira delas é a de que os alunos já dominam
habilidades de estudo e pesquisa básicas, isto é, técnicas e estratégias utilizadas por
aqueles que lêem, escrevem e ouvem (aulas, palestras) com a finalidade de estudar e
aprender de forma eficiente. Pressupomos que os alunos sabem tomar notas, fazer
resumos, utilizar índices em livros; pressupomos também que não ficam totalmente
perdidos dentro de uma biblioteca e que sabem o que fazer com as fichas catalográficas.
Acima de tudo, acreditamos com fé cega que, se eles não sabem (coitados!), irão
aprender - por osmose, ensaio e erro, quebrando, quase literalmente, a cabeça. com base
nestas pressuposições, ligeiramente equivocadas, dispensamo-nos de ensinar-lhes estas
”coisas”.
Determinadas habilidades, as básicas, podem ser desenvolvidas no ensino
(também) básico. Uma criança de oito anos, que já leia fluentemente, é capaz de
encontrar assuntos em um índice; não é necessário esperar até sua chegada à
universidade. Basta fazer disto uma brincadeira. Pequenos grupos recebem diversos
livros e uma lista de assuntos (com grau variável de dificuldade para serem localizados).
Ganha o jogo a equipe que descobrir primeiro e corretamente em que livros e em que
páginas os assuntos se localizam. Só que o jogo não termina aí. É preciso fazer com que
os alunos explicitem as estratégias utilizadas por eles (”por que, para achar o assunto tal,
vocês foram à enciclopédia e não ao dicionário?”) e para que serve o jogo. As respostas
dão forma a uma experiência de aprendizagem.
O jogo pressupõe que as crianças conheçam um dicionário, uma
enciclopédia, um livro didático, uma gramática, uma revista popular; que elas tenham
noções claras de onde os sumários e os índices em geral se localizam, no caso de ambos
estarem presentes na publicação, e qual a diferença entre eles (uma habilidade
indispensável para quem precisa pesquisar qualquer coisa, como por exemplo, uma
receita num livro de culinária). Tudo parece óbvio demais para quem aprendeu quebrando
a cabeça (o que, aliás, não deixa de ser um método de aprendizagem, ainda que meio
doloroso, retardando a aquisição de habilidades básicas). Mas o óbvio não o é, pelo
menos não tanto assim. Na universidade, ficamos no mínimo tristes ao testemunharmos a
seguinte cena: várias gramáticas abertas na página do sumário, um assunto a ser
pesquisado, e um jovem adulto reclamando que não consegue achar nada - porque não
sabe consultar um índice.
A situação é um pouco mais complicada. Conhecemos experiências desse
tipo, nas primeiras séries do ensino fundamental. Entretanto, quando os alunos são
jogados dentro do segundo segmento, tais experiências se abandonam, pela pressão do
”conteúdo programático” - ao menos essa é a desculpa usual. Ora, exatamente no
momento em que as relações se tornam mais complexas, abandona-se o aprendizado
das habilidades básicas de leitura, estudo, pesquisa e escrita, o que sem dúvida prejudica
mesmo os alunos que trabalharam tais habilidades de primeira a quarta série, além de
prejudicar os próprios professores, dificultando sobremaneira o seu trabalho.
Por que isto acontece? A fragmentação do conhecimento e das disciplinas, a
partir da quinta série, desresponsabiliza cada professor de ensinar a ler, escrever e
raciocinar, jogando todo esse peso nas costas dos professores de Língua Materna e
Matemática - que, por sua vez, usando a mesma desculpa do conteúdo programático, não
dão conta da responsabilidade concentrada. Todos saímos perdendo, quando saímos
pela tangente (diria o professor de Matemática...). Reconhecê-lo implica admitir a
urgência de uma proposta interdisciplinar, centrada na lógica e na redação, isto é, na
educação pelo argumento (não é isto que estamos propondo?).
A proposição ”ler para aprender” exige atenção. Ler de modo eficiente é
pedra fundamental na construção da escrita.
E se é pedra fundamental, ”a leitura precede a escrita; o futuro escritor deve
ser capaz de reconhecer e decifrar o sistema social de signos antes de colocá-lo no
papel”, relata Alberto Manguel.26 Parece que podemos esticar essa idéia a certas
situações extremas, como a de uma pessoa que não escreve nem seu próprio nome, mas
em geral não pega ônibus errado para ir ao trabalho, pois reconhece, pelo menos, os
números, ou as cores do coletivo.
Na verdade, aprender a ler, para então ler para aprender, é condição de
sobrevivência. E aprende-se a ler reconhecendo que, desde sempre e desde antes, se lê
o mundo.
O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto
japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das
forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os
gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as anotações do
coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o tecelão intrincado
de um tapete sendo tecido; o organista lendo várias linhas musicais simultâneas
orquestradas na página; os pais lendo no rosto do bebê sinais de alegria, medo ou
26 Alberto Manguel. Uma história da leitura, p. 20.
admiração; o adivinho lendo as marcas antigas na carapaça de uma tartaruga; o amante
lendo seriamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o psiquiatra ajudando os
pacientes a ler seus sonhos perturbadores; o pescador havaiano lendo as correntes do
oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor lendo o tempo no céu - todos eles
compartilham com os leitores de livros a arte de decifrar e traduzir signos.27
A importância da leitura, todavia, não pode nos conduzir ao extremo de
colocá-la como causa exclusiva da escrita, pressupondo que ”escreve bem quem lê
muito”. A questão não é quantitativa e a relação entre ler e escrever é muito mais
complexa.
Quem só lê manuais dificilmente pode extrair de sua leitura base para
produzir uma carta para o PROCON, reclamando que certa firma não cumpriu um prazo
de entrega. Ler freqüentemente não é garantia nem de ortografia correta, quiçá de
aspectos textuais mais sofisticados. Entretanto, não ler, ou ler sem um mínimo de
consciência do ato de ler, só complica. A preparação do argumento exige a leitura do
mundo e dos argumentos alheios - como o mostra Luís Fernando Veríssimo:
Gosto da palavra ”fornida”. É uma palavra que diz tudo o que quer dizer.
Quando você lê que uma mulher é ”bem fornida”, sabe exatamente como ela é. Não
gorda mas cheia, carnuda. E quente. Talvez seja a semelhança com a palavra ”forno”.
Talvez seja apenas o tipo de mente que eu tenho.28
Possenti comenta como, a seu modo, que a priori não pode ser considerado
nem pior nem melhor do que o de qualquer teórico ”sério”, o humorista toca nos dois
problemas cruciais da interpretação. De fato, na tarefa da interpretação, são relevantes o
texto e o leitor, isto é, as palavras (sua semelhança e relação com outras palavras,
jogando todo texto no intertexto, vale dizer, no labirinto do discurso) e o ”tipo de mente” do
leitor (o seu conhecimento da língua e de um certo número e tipo de fatores contextuais
que devem ser acionados para que um texto possa ser interpretado). Como a formulação
de Veríssimo é humorística, portanto se vale da polissemia da língua não como falha, mas
como condição inerente ao seu discurso, às diferentes possibilidades do ”tipo de mente”
do leitor - dedutiva, indutiva, detalhista, panorâmica, algébrica, geométrica, prática,
filosófica, equilibrada ou delirante - acrescenta-se a ambigüidade da dicotomia limpa-
suja...
27 Idem, ibidem, p. 19. 28 Em Sírio Possenti. Obra citada, p. 71.
Como nosso livro está centrado no ato de escrever, vamos nos restringir a
falar da leitura que alimenta a escrita, ao ler para escrever. com este fim, certas atividades
podem promover uma conscientização de vários aspectos do discurso escrito, a ser
ativados quando da produção de um texto ou a ser incorporados a ele.
A leitura na escola é, em geral, centrada em comandos de exercícios e de
questões de prova, pequenas poesias, crônicas, trechos do livro didático que está sendo
utilizado. Como a leitura de textos mais longos demanda tempo e silêncio, o estudo
baseado na leitura é, em geral, feito em casa - mas quem estuda precisa descobrir,
sozinho, como fazê-lo. O professor diz o que tem de ser lido e para quando, às vezes
para quê, mas nunca como. E precisa? Sim. É preciso orientar quem vai estudar a fazê-lo
com economia de meios, isto é, com eficiência. Ou mais uma vez o método ”aprenda
quebrando a cabeça” entra em ação.
Imaginemos a seguinte tarefa: ”você vai receber três artigos sobre X; decida
qual dos três você utilizaria a fim de redigir uma descrição detalhada de X e justifique sua
escolha”. Como, em geral, procedemos? Selecionamos, a partir de uma primeira leitura
rápida, tipo varredura, aquele ao qual daremos mais atenção, pois melhor se adapta à
tarefa proposta.
O que podemos compreender através desse exercício simples? Primeiro: a
leitura dos textos tem um objetivo claro, que nesse caso foi definido no corpo da tarefa
(estamos falando do contexto escolar onde o fazer alguma coisa com o texto é
fundamental). Em outras palavras, lemos com algum objetivo em mente. Segundo: em
função do objetivo da tarefa, determinamos que tipo de estratégia de leitura usar (a
primeira leitura, rápida, visa a uma compreensão geral do conteúdo dos textos para que
possamos selecionar aquele que mais diretamente nos interessa; a seguir, a leitura do
texto escolhido é cuidadosa, pois visa a uma compreensão detalhada). Terceiro: a
restrição imposta pela natureza da atividade de leitura se reverte também em uma
estratégia, conhecida pelo nome pomposo de ”seletividade”. Se não podemos ou não
precisamos ler tudo, temos de selecionar. Essa estratégia extremamente simples é base
para o desenvolvimento de outras habilidades que envolvem escolha, como, por exemplo,
citar ou resumir.
Podemos olhar para um texto como se estivéssemos em um avião. com
tempo bom, ao olharmos pela janela conseguimos identificar se estamos sobrevoando o
campo ou a cidade a partir da predominância do verde ou do cinza. É cinza, então
estamos sobre a cidade. Estamos em manobras de aterrissagem. Descemos um pouco e
já distinguimos os traçados das grandes avenidas. Mais um pouco, vemos os riscos das
ruas. Mais, e percebemos a movimentação dos carros. Chegamos.
Ou podemos olhar para um texto como Ide responde à pergunta ”por que o
espírito deve proceder do mais ao menos universal?”
[...] o conhecido do qual parte o espírito é um mais universal, e o
desconhecido ao qual ele chega é um mais particular. O progresso, aqui, compreende-se
melhor na dimensão vertical. A inteligência parte do alto da montanha; de lá ela tem uma
visão global do vale. Mas, se quiser conhecê-lo melhor, deverá descer e sua visão se fará
mais detalhada.29
Passemos então aos procedimentos de descida, a uma leitura mais
cuidadosa. Em geral, ela é auxiliada por um lápis, por um marcador fosforescente, porque
agora não queremos só uma impressão geral do texto, queremos mapeá-lo. Podemos
começar por tentar perceber, ainda lá do alto, qual é o propósito mais amplo de um texto,
sua função retórica. Persuadir o leitor a comprar algo, a adotar um certo ponto de vista, a
ver ou não certo filme? Definir e classificar? Descrever um processo? Narrar uma história,
um caso? Trata-se de um exercício bem simples, mas que dá uma direção à leitura e faz
com que o conhecimento implícito que temos de certo tipo de texto possa ser ativado. E
se não possuímos ainda tal conhecimento, abrimos uma pasta lá na nossa memória, onde
vamos passar a inserir textos com aquela função retórica, para que possamos acessá-los
quando necessário.
Lá na pasta ”persuasão”, por exemplo, podemos encontrar os seguintes
arquivos: editoriais de jornal, anúncios, resenhas de livros, filmes e peças, cartas de
opinião dos leitores. Embora o objetivo de todos estes textos seja o de persuadir o leitor,
há diferenças marcantes que justificam sua separação. O formato, o tamanho, a fonte na
qual eles se inserem e o local da fonte onde eles se encontram são características
percebidas rapidamente pelo olho que passeia pelo papel; há também diferenças
intrínsecas a cada tipo de texto, percebidas pelo olho atento, que identifica detalhes: uma
resenha de filme contém um resumo do enredo, além de opiniões a respeito do
desempenho dos protagonistas ou da qualidade da fotografia e da direção, que
contribuem para o veredicto final, positivo ou negativo; já os editoriais de jornal utilizam
29 Pascal Ide. A arte de pensar, p. 6.
como estratégia a menção ”de provas concretas, dados da situação, estatísticas,
experimentos, dados da realidade, conhecimento do mundo”,30 concatenados de forma a
criar credibilidade e uma impressão de verdade.
Que procedimentos estimulariam o leitor a perceber estes detalhes?
Perguntas, sempre perguntas. Perguntas são sempre necessárias. Perguntar ao leitor,
num primeiro momento, pode vir a criar a necessidade de ele mesmo se perguntar.
Voltemos aos nossos textos persuasivos. Começar pelas questões maiores, mais
abrangentes e mais generalizantes é um bom exercício. Que idéia é veiculada nesse
texto? Há só uma ou mais de uma? Quais? Como elas se relacionam?
O ato de dirigir perguntas a si mesmo sobre um texto faz com que o leitor
volte ao texto para buscar nele as respostas. Suponhamos que estamos diante de um
editorial. A fim de refinar o exercício, podemos então substituir a palavra idéia por
hipótese (se o texto examinado assim permitir). Algumas perguntas possíveis se colocam
aqui. Que hipótese o autor procura comprovar? Como o autor procura comprová-la (ele
oferece fatos, dados, opiniões, exemplos)? A que conclusão ele chega?
A pergunta mais geral, como o autor procura comprovar sua hipótese, faz
com que a busca de respostas leve o leitor a perceber aspectos importantes da
construção do texto.
O primeiro aspecto reside na diferença entre hipótese e comprovação. É um
exercício, portanto, iluminar de amarelo neon que frase(s) delimita(m) a hipótese
apresentada no texto e de verde (também neon) aquelas que servem de sustentação
(pode-se trocar de cores, se essa combinação ligeiramente patriótica parecer cafona,
brega, ou ridícula mesmo). A partir de uma atividade bem simples, podemos vir a
perceber que não basta apenas sair fazendo uma série de afirmações, é preciso sustentá-
las; se não as sustentamos, criamos um texto infantilizado, no pior sentido da palavra.
Quando a criança diz ”porque não” ao lhe perguntarem porque não quer tomar banho, ela
não está apresentando uma justificativa (apesar da presença da conjunção porque), e sim
reafirmando sua vontade, já que lhe faltam argumentos. Quando o adulto faz o mesmo,
dá-se o nome de tautologia (ou, teimosia...) - a hipótese não é demonstrada, mas
retomada e repetida com termos diferentes. O segundo aspecto diz respeito aos recursos
utilizados para comprovar uma hipótese. O que o autor do texto nos oferece? Ele cita
30 José Luiz Fiorin e Francisco Platão Saviolli. Lições de texto, p. 292.
especialistas na matéria discutida, lança mão de idéias universalmente aceitas, dá
exemplos, menciona dados, cifras e estatísticas? É essencial, por exemplo, que um leitor
aprenda a distinguir fatos de opiniões, já que ambos os recursos podem ser usados como
evidência, ou comprovação. Fatos são verificáveis, estão no campo da realidade objetiva.
As opiniões expressam julgamentos de valor, pontos de vista, e precisam ser
demonstradas para que tenham alguma força.
Vejamos como podemos trazer à tona os aspectos textuais vistos até aqui,
através de esquemas, tabelas ou diagramas, que podem ser apresentados aos alunos, na
forma de exercícios, para que posteriormente aprendam a elaborar as suas próprias
tabelas e esquemas.
FUNÇÃO DO TEXTO
HIPÓTESE
COMPROVAÇÃO
CONCLUSÃO
COMPROVAÇÃO
TIPO DE RECURSO
a.
a.
b.
b.
RECURSO
RELAÇÃO ESTABELECIDA
a.
a.
b.
b.
Cada texto sugere esquemas diferentes. Identificar os meios de sustentação
de uma hipótese é parte do processo de conscientização, através de uma leitura atenta e
anotada, dos meios utilizados na produção de um texto argumentativo. Mas ainda nos
resta ver como os recursos são utilizados. Por exemplo, o autor do texto pode usar uma
situação concreta para, a partir dela, chegar a uma conclusão abrangente, ou seja, ele
caminha do particular ao geral; ou pode lançar mão de um fato histórico e compará-lo com
a situação que quer demonstrar; assim, argumenta por analogia.
Fica mais fácil perceber a organização de um texto quando ela é
transparente. Há três tipos de autores: ”os que têm um plano e o anunciam”, ”os que têm
um plano mas não o anunciam” e ”os que não têm plano e que não têm sequer a
insolência de anunciá-lo, e às vezes nem a consciência para se darem conta disso”.31
Estamos aqui diante de mais um exercício de leitura atenta: a identificação da existência
(mais - ou menos explícita) de um plano ou da ausência dele. Se o escritor deixa claro
logo no início do texto como ele está organizado, fica mais fácil para quem lê
compreender qual a hipótese a ser comprovada e como isto será feito. Ainda segundo
Ide, orientar o leitor de forma clara e imediata ӎ o ideal do ponto de vista do rigor e da
economia de tempo”. No caso de o autor não revelar qual é seu plano, cabe ao leitor
desvendá-lo para melhor compreender as idéias veiculadas. O plano de um texto dá
pistas de sua linha argumentativa e do tipo de raciocínio empregado - silogístico,
dedutivo, indutivo?
Perceber como se argumenta é somente parte do que se pretende mais
adiante: avaliar a qualidade dos recursos utilizados. Aqui começamos a falar do exercício
da leitura crítica. Dar exemplos, utilizar dados estatísticos, citar outros ou referir-se ao
senso comum, são meios pelos quais se dá a persuasão, mas a simples presença destes
recursos no texto não garante uma argumentação consistente. Precisamos cuidar para
que os exemplos e os dados não sejam usados como trampolins para generalizações
pretensiosas ou equivocadas, que as citações estejam bem amarradas com o assunto
tratado (que não sejam apenas demonstrações de erudição, ou indicação de um estilo
meramente ”aspasiano”, sem idéia ou frase próprias), que o recurso ao senso comum não
se confunda com ”lugares-comuns carentes de base científica, de validade discutível”.32
Precisamos prestar atenção à conclusão resultante do raciocínio exposto no texto e cuidar
31 Pascal Ide. Obra citada, p. 176.
para que ela não seja decorrente de erros argumentativos (nos capítulos ”a formação da
hipótese” e ”o argumento impertinente”, estudaremos com mais detalhe estes pontos).
”É em função de um auditório que qualquer argumentação se resolve”,
dizem-nos Perelman & Olbrechts-Tyteca.33 Então, por que não investigar a quem ela se
dirige? Algumas das decisões que o autor de um texto precisa tomar durante a escritura
se relacionam diretamente com a noção de público-alvo. Por exemplo, o tom mais ou
menos formal depende de quem é o destinatário, assim como a escolha adequada de
uma estratégia de persuasão - adotar um posicionamento lógico ou apelar à emoção do
leitor? O quanto o escritor de um texto supõe que tem em comum com seu leitor, ou seja,
se eles partem dos mesmos pressupostos e têm o mesmo grau de conhecimento de um
assunto, delineia o que se precisa definir, explicar, justificar. Estar atento à noção de
público-alvo e às escolhas feitas a partir dela é fundamental para quem vai, mais adiante,
redigir seus próprios textos.
Através da leitura conseguimos descobrir qual a função retórica do texto lido,
que idéia central está sendo veiculada e como ela é defendida, que plano e linha de
raciocínio foram adotados pelo autor. No entanto, não tiramos estas informações da
cartola. Elas estão lá, no texto. Foi seguindo as pistas lexicais, sintáticas e discursivas, e
associando-as a nosso conhecimento esquemático e sistêmico, que chegamos às
respostas. Para Moita Lopes, ”o conhecimento sistêmico engloba o conhecimento do leitor
aos níveis sintático, lexical e semântico”, e ”o conhecimento esquemático [...] é
responsável pelas expectativas que os leitores têm sobre o que encontram no texto”.34 Se
o autor de um texto escolhe a palavra ”delírios” para se referir às idéias de outro, não é à
toa. Ao iniciar uma frase com ’”por outro lado”, o escritor estará indiciando uma contra-
argumentação. ’”Logo” pode ser marca de raciocínio silogístico, principalmente se estiver
atrelado a uma conclusão. Em outras palavras, o uso que fazemos das palavras, da
gramática, não o fazemos impunemente nem aleatoriamente, estejamos nós conscientes
disso ou não. E é justamente por isso que devemos prestar atenção às pistas inscritas no
texto.
Ler para escrever significa, então, garimpar o texto para nele percebermos
seu propósito, sua audiência, sua organização, o fluxo das idéias, a língua em uso,
reconhecendo que seu significado potencial é construído através desse garimpo e com o
32 José Luiz Fiorin e Francisco Platão Saviolli. Obra citada, p. 286. 33 Cháím Perelman. Obra citada, p. 6. 34 Luiz Paulo da Moita Lopes. Oficina de lingüística aplicada, p. 140.
auxílio das ferramentas do conhecimento prévio. A partir da conscientização de que um
texto é constituído destes vários aspectos, que se superpõem e inter-relacionam, a
passagem de leitor a escritor pode vir a ser realizada de forma mais tranqüila e segura.
Antes de passarmos ao processo de redação propriamente dito, gostaríamos
de examinar duas questões a respeito da leitura de textos e da produção escrita no
contexto escolar.
Em primeiro lugar, se há coincidência entre os tipos de textos lidos e aqueles
escritos, o que é em geral positivo, é importante enfatizar que o modelo lido não é uma
camisa-de-força, e sim um ponto de partida, O texto lido cuidadosamente fornece ao
futuro escritor uma base, para que ele não comece a escrever do zero.
Em segundo lugar, se não há coincidência, precisamos os professores ser
extremamente cautelosos, pois podemos estar partindo do pressuposto de que a
aquisição da escrita é ”espontânea”. É o caso de quem lê uma crônica, lá na aula de
literatura, e tem de escrever uma dissertação, fazendo uma apreciação crítica da crônica
que leu. Nesse sentido, expor os alunos a um tipo de texto que não servirá nem de
trampolim para aquele que eles terão de produzir é um risco a ser evitado. Além disso,
não é porque o professor dá um exemplo, ao vivo e a cores, de uma leitura crítica de uma
crônica durante a aula (oralmente e através de um discurso que poderíamos rotular de
pedagógico), que seu aluno automaticamente será capaz de fazer o mesmo, e, ainda por
cima, por escrito.
O discurso da sala de aula, por mais que procuremos dissertar
organizadamente a respeito de um tema, tem suas marcas específicas e, dentre elas, as
marcas da oralidade. As linguagens falada e escrita ora se misturam, ora se opõem, e
quando o fazem, são constituídas de forma distinta e autônoma. Parece-nos então que
contar com a transferência do discurso oral (do outro) para o escrito é correr um risco
desnecessário. Contudo, vale a pena correr o risco calculado de contar com a
transferência do que se observa através da leitura para a produção escrita, pois a
interface passa a ser o próprio discurso escrito.
Portanto, ao vermos a leitura da forma até aqui apresentada, já estamos
indicando uma possibilidade de como começar a escrever: pela leitura, que agora
chamaremos de pesquisa.
Como este livro, o nosso, foi escrito? Partimos de uma idéia, a
argumentação como articulação interdisciplinar, que gerou outras, a ela interligadas de
várias formas. Da idéia, fizemos um primeiro plano de trabalho - que capítulos (que
subdivisão interna da idéia) achamos necessários. A partir desse esboço, pusemo-nos a
pesquisar nas fontes mais diretamente relacionadas com nossa idéia: livros sobre
redação, sobre argumentação, sobre lógica, sobre retórica. Essa pesquisa, por sua vez,
resultou num fichamento por capítulo, e por assunto dentro de cada capítulo, mais ou
menos assim:
CAPÍTULO 4 A PREPARAÇÃO DO ARGUMENTO
HABILIDADES
LEITURA
ESCRITA
PESQUISA/ESTUDO
• identificar função do texto
• escrever para aprender
• utilizar mecanismos de busca
• distinguir hipótese de comprovação
• esboçar um plano
• consultar material de referência
• pesquisar
•anotar
• perceber o plano do texto
• construir o raciocínio
• fichar
• perceber a audiência
• perceber a língua em uso
• refazer o plano
• redigir
• editar
• resumir
• organizar informações coletadas
• ler criticamente
Cada item foi seguido de uma ou várias citações, além da indicação da
fonte, para que pudéssemos fazer referência a elas quando necessário. Após a pesquisa,
foi preciso refazer o plano inicial, pois as leituras nos indicaram idéias e visões do assunto
que não só ratificavam as nossas, como também as complementavam e até as
retificavam. Toda esta pesquisa foi acompanhada de conversas, pois muito do que cada
um de nós pesquisou individualmente também servia para o trabalho do outro. ”Colar”,
neste sentido, é fundamental. Com o plano refeito, pudemos começar a redação de uma
primeira versão do texto, que ainda seria lido e revisado por nós mesmos e por outros
leitores (que nos dariam ”cola” através de suas leituras do nosso texto). Depois de várias
reescrituras, o texto estaria, finalmente, pronto.
A fase da pesquisa é, então, deflagrada a partir de um tema, de uma
pergunta que nos fazemos (ou que nos fazem) a respeito dele, e da resposta que damos
a essa pergunta. A restrição do tema é necessária, pois se pesquisamos sem um
pequeno plano, mesmo que embrionário, corremos o risco de nunca sairmos da fase da
pesquisa. É um pouco como quando solicitamos ao robô de busca na Internet que localize
ocorrências de ”AIDS”, por exemplo. Primeiro, ele acha um número gigantesco de páginas
onde a palavra aparece - será que é preciso ler todas para que então se possa saber
sobre o que vamos escrever? Segundo, muitas das páginas têm links com assuntos afins,
que têm links com assuntos afins, que têm links...
No entanto, mesmo que os robôs de busca não sejam tão eficientes, saber
trabalhar com palavras-chave é uma habilidade fundamental. É a partir delas que os livros
são agrupados por assunto e por isso as encontramos nas fichas catalográficas. Um
resumo (abstract) bem redigido as inclui no título e no texto, para que o trabalho ao qual
se refere possa ser devidamente arquivado, nas bibliotecas reais e virtuais. As palavras-
chave são o mecanismo utilizado nos processadores de texto para criar e inserir índices e
referências cruzadas nos textos que produzimos. Em suma, elas são a nossa porta de
entrada nas obras e a das obras nos locais e canais de divulgação.
Chegamos ao texto via palavra-chave e essa é a hora de nos utilizarmos de
outra estratégia de pesquisa e estudo: anotar. Podemos simplesmente transcrever
passagens do texto que nos interessam, verbatim. Podemos também produzir algum tipo
de esquema que nos ofereça uma visão do que lemos - diagramas, tabelas, listas (de
tópicos abordados, por exemplo), mapas das diferentes partes do texto e suas relações:
idéia principal, generalizações, hipótese, comprovação da hipótese, exemplificação.
Podemos, ainda, criar notas. Para tal, é preciso desenvolver, pelo menos,
duas outras habilidades: as de resumir e parafrasear. Um resumo é o ”sumo” de um texto,
sem alteração de seu sentido original, e nas palavras de quem produz a condensação. É,
comparando, o primeiro encontro de uma laranja lima com um bebê: tiram-se as
sementes, extrai-se o suco, que é então coado, sobrando a essência da fruta.
Como outras habilidades já mencionadas aqui, é preciso fazer com que essa
seja aprendida. Grabe & Kaplan35 sugerem várias atividades para que os alunos
percebam que escolhas são feitas para se resumir uma passagem. Pode-se, por exemplo,
dar-lhes o miolo de um resumo para que eles apenas insiram a primeira e última frases.
Posteriormente, faz-se o contrário: dá-se a primeira e última frases e eles fazem o
preenchimento. Estas atividades não se fecham em si mesmas: é preciso chamar a
atenção para o que foi retido e o que foi desprezado do original, e como o resumo foi
redigido (ele deve estar devidamente concatenado e fazer sentido como se fosse um texto
autônomo; não basta retirar uma frase aqui e outra acolá do texto original).
Outra habilidade a ser desenvolvida, depois que os alunos já dominam a de
resumir, é a de juntar ao texto condensado um parágrafo de avaliação, onde se comenta
o conteúdo do resumo a fim de confirmá-lo ou questioná-lo. Esse exercício fundamenta
certas práticas argumentativas, com a vantagem de ”não exigir nenhum tipo de
organização complexa de argumentos e contra-argumentos porque a avaliação é uma
continuação do resumo”;36 além disso, esse exercício tem o valor de demonstrar que um
resumo, uma citação ou uma paráfrase são inseridos em um texto com um determinado
propósito e que, portanto, devem estar bem ancorados nele.
35 Grabe & Kaplan. Obra citada, p. 323. 36 Idem, ibidem, p. 324.
Assim como os resumos, as paráfrases (idéias de outros expressas em
nossas próprias palavras, e devidamente documentadas) precisam ser praticadas. Elas
são variantes das citações e devem se manter fiéis ao sentido original. Antes de fazer
com que alunos redijam paráfrases é necessário fazê-los perceber a diferença entre
aquelas que plagiam o original, aquelas que o alteram e aquelas bem redigidas.37
Citar ou parafrasear são formas de integrar nosso estudo e pesquisa ao
texto que produziremos. Dominar estas habilidades, que devem ser desenvolvidas de
forma gradual mas sistemática e constante, é fundamental para quem escreve textos
argumentativos e lança mão de testemunhos de autoridade, por exemplo, como
comprovação ou refutação de hipóteses.
Todo texto a ser redigido passa por uma fase de planejamento. Esse
planejamento é pessoal: há pessoas que se dão um tempo, organizam o texto
mentalmente e começam a redigi-lo; quem observa, acha que as idéias escorrem do
cérebro pela ponta da caneta. Outras fazem pequenas notas, telegráficas, e passam a
escrever a partir delas. Outras, ainda, elaboram um pequeno projeto, um pouco mais
detalhado, que determina o esquema da construção do texto. Aqui, preferimos indicar a
terceira orientação, pois nos interessa acompanhar todo o processo de produção escrita.
Então, como começar? Pelo tema. Compreender exatamente a natureza da
tarefa que nos é proposta é o primeiro passo. A pergunta inicial é: qual é a questão que
me colocam?
Imaginemos uma situação: o professor de Biologia pede que dois métodos
(A e B) de inseminação artificial sejam comparados. Precisamos saber, em primeiro lugar,
no que consistem os dois métodos, para a partir daí compará-los e saber o que eles têm
de semelhante e de diferente, pois o verbo ”comparar”, por si só, já define a tarefa e a
organização retórica de nosso texto. Sem saber absolutamente nada a respeito desse
assunto, nós esperamos que o desenvolvimento do texto tenha como configuração um
dos dois esquemas abaixo:
Semelhanças
1. material empregado
2. custo
37 Annette Rottenberg. Elements ofargument, p. 282.
Diferenças
1. processo
2. resultados obtidos
Ou:
Material empregado
A = B
Processo
A B
Custo
A = B
Resultados obtidos
A=B
Se a proposta é argumentativa, depois de responder à pergunta ”qual é a
questão que me colocam?”, um bom começo é se perguntar ”e o que acho disso?”; esse é
apenas um ponto de partida para a formulação da hipótese que será defendida. Nesse
momento, há o risco de rechear a defesa da hipótese de muitos ”eu acho que” e ”na
minha opinião”, empobrecendo-a. A dificuldade de se construir uma opinião própria não
deve ser escamoteada com a multiplicação aleatória de opiniões soltas, sem conexão
entre si e, principalmente, sem âncoras factuais que as sustentem. Entretanto, não cabe
simplesmente eliminar todos os achismos do plano e, depois, do texto (como
recomendam muitos professores equivocados), sob pena de cairmos no pecado
positivista, projetando um texto descarnado, que ou não tem perspectiva ou esconde a
sua perspectiva. As expressões ”eu acho que” e ”na minha opinião” são negativas apenas
quando em excesso. Usadas com parcimônia e bem defendidas, ajudam a esclarecer,
para quem escreve e para quem lê, um aspecto absolutamente fundamental de um
argumento: o seu ponto de vista, a sua perspectiva.
Em contrapartida, o alerta de Hegel também é necessário: ”a injustiça mais
corrente que se comete em relação ao pensamento especulativo consiste em torná-lo
unilateral, ou seja, em revelar apenas uma das proposições de que ele se compõe”.38 O
que nos remete a novas questões que devemos nos colocar. Que outra opinião há sobre
esse tema? Quem pensa assim? Em que essa opinião está alicerçada? Quais são os
pontos fracos do alicerce? Ou: como contra-argumentar?
É hora de retomarmos nossa tese inicial e nos perguntarmos: quem pensa
assim também? Quem pensa próximo disso? Que tipo de evidência sustenta a hipótese?
Os fatos, dados estatísticos, exemplos, a enumeração de causas e suas conseqüências,
os testemunhos abalizados, as comparações estabelecidas, são suficientes, relevantes e
convincentes? Há falhas na fundamentação proposta? Como responder a estas falhas de
forma consistente e assim justificar a escolha por determinado ponto de vista? Ou, de
novo: como contra-argumentar? Um bom texto argumentativo sempre considera pelo
menos dois lados da questão (até porque sempre há muitos lados em todas as questões),
assemelhando-se a um debate entre autor e leitor, no qual o primeiro é questionado pelo
último. O leitor, mesmo que imaginário e por isto mesmo tão poderoso, tem papel análogo
ao daquele diabinho dos desenhos animados...
Essa abordagem heurística resulta em um plano de pesquisa ou, se já
estamos satisfeitos com as respostas e conhecemos o suficiente do assunto, em um
plano de redação. Esse plano parte da hipótese que se pretende defender, que precisa
agora ser cuidadosamente formulada e desdobrada. Insistimos no advérbio
”cuidadosamente”, já que os passos do raciocínio não devem ser pulados. Não convém,
como nos videogames, pular de fase...
Um dos passos diz respeito à definição. Mas, por que definir? Porque ”a
definição é o melhor fundamento de uma boa demonstração: o quê? fecunda o por
quê?”.39 De fato, precisar a natureza ou a essência de algo parece ser o primeiro
movimento do raciocínio. Se a definição é ausente, perguntamo-nos: mas o que se quer
dizer com isso?, e assim já começamos a desconfiar do que vem adiante.
O desdobramento da hipótese a ser fundamentada é o raciocínio que se
apresenta na forma de premissas gerais e particulares, que precisa estar ancorado em
fatos e evidências. Constrói-se assim um raciocínio cuja articulação se dá na relação
entre as premissas geral e particular. Nesse plano também já está presente a conclusão,
38 Em Pascal Ide. Obra citada, p. 53. 39 Idem, ibidem, p. 183
a tese resultante da comprovação da hipótese inicial. Portanto, não basta apenas retomar
o que foi dito no início, para dizê-lo de outra forma, como se fizéssemos uma paráfrase de
nós mesmos; é necessário ”pôr em termos claros, insofismáveis, a essência da
proposição”,40 que se impõe como decorrência natural das provas apresentadas.
Temos então material organizado suficiente para a redação de um primeiro
rascunho. Nessa redação, o autor já estará preocupado com sua audiência - no contexto
escolar, com o diabinho-professor. Um dos equívocos mais comuns é pressupor que o
professor sabe tudo - ou quase - e daí excluir partes importantes do argumento, não
definindo, por exemplo, os termos da questão. com isso, deixam-se de explicitar as
relações que o autor estabelece entre as premissas, ou seja, exatamente aquilo que o
leitor desconhece (e quer conhecer). Portanto, é fundamental deixar transparentes todos
os passos do raciocínio para melhor sustentá-lo, sem pressupor conhecimento por parte
do leitor (mesmo que o leitor seja um professor que dá a impressão de saber tudo).
Durante a redação e nas várias leituras e reescrituras de nosso texto
voltamos a questões que lhe dão forma: seu propósito, sua organização, o fluxo de idéias,
a língua em uso. O escritor-leitor mais experiente revisa seu texto levando em conta todos
estes aspectos ao mesmo tempo. O menos experiente, mas não menos competente, deve
ir por partes, sempre se questionando. O texto cumpre seu propósito de convencer ou
persuadir o leitor de X? A organização é transparente, ou seja, o plano está
explicitamente traçado para o leitor? O raciocínio utilizado pode ser percorrido pelo leitor
com facilidade ou o texto deixa lacunas enormes a serem preenchidas? As escolhas
lexicais e sintáticas são adequadas? O estilo, mais ou menos formal, é condizente com a
natureza da tarefa, das convenções discursivas e da audiência?
Perguntas, sempre perguntas. Cabe lembrar que procuramos responder a
elas enquanto garimpávamos os textos, através da leitura, para que de alguma forma o
processo de escrita também se tornasse um pouco menos nebuloso. Acreditamos que o
ato de escrever se configura como trabalho, esforço, exercício, tudo isso com prazer e
adrenalina, e não simplesmente como um dom. Deixemos o dom para os anjos, e mãos à
massa.
40 Othon Garcia. Obra citada, p. 381.
A FORMAÇÃO DA HIPÓTESE
A leitura - do mundo e dos livros - deu o tom da preparação do argumento. O
passo seguinte poderia ser a organização dos dados e dos fatos coletados, para dessa
organização se extrair a conclusão. Entretanto, a organização dos dados e dos fatos
demanda uma lógica que lhe é prévia, isto é, demanda uma hipótese organizadora. Por
isso, optamos por definir a ”formação da hipótese” como o segundo momento do nosso
projeto interdisciplinar, o que talvez provoque algum estranhamento, já que, segundo
alguns manuais de Lógica, a hipótese introduz o argumento dedutivo e o silogismo. Ora,
apresentar o argumento dedutivo, mais abstrato, antes do argumento indutivo, mais
concreto, estaria em flagrante contradição com o desenvolvimento do pensamento, tal
como o descreveu Jean Piaget. Entretanto, defendemos sua apresentação antes dos
recursos indutivos com base na tese de que todo o pensamento humano, inclusive o da
criança pequena, articula-se primeiro dedutivamente, deixando a indução como um
segundo momento: o momento da prova.
A noção de que o argumento indutivo não só deveria comparecer primeiro,
para entrar em correspondência com o estágio do pensamento da criança, ou do
adolescente, como, justamente por essa razão, é mais fácil, nos parece equivocada.
Sabemos, porém, que esse equívoco, se o é, vem defendido com unhas, dentes e testes
pelo ensino dito tradicional, calcado na enumeração exaustiva (põe ”exaustiva” nisso) de
fatos singulares e fenômenos presumivelmente concretos.
Cientistas, como Roger Shank, discordam frontalmente da escola, afirmando
que ”os fatos não são a base do aprendizado”; dominar um conjunto maior ou menor de
fatos não quer dizer absolutamente nada sobre a educação de uma pessoa (a não ser.,
talvez, o quanto ela tenha sido mal educada): ”os fatos têm um papel importante no
sistema educacional porque são muito fáceis de testar. E são esses testes (em geral
provas altamente irrelevantes) que vêm moldando o seu aprendizado desde os seis anos
de idade”.41
Shank trabalha em ciência da computação. Ele sabe que, para ”educar” um
computador, é preciso programá-lo com a possibilidade de tirar algumas conclusões,
inferir crenças e aprender com os erros. Espanta-se, portanto, quando nota os
professores de seus filhos tratando-os como se eles fossem muito menos inteligentes do
41 Em John Brockman. Obra citada, p. 196.
que os computadores do seu laboratório, uma vez que se limitam a lhes ensinar ”coisas” e
”nomes”. Assim como os computadores, as pessoas precisariam aprender afazer coisas -
na verdade, só se aprende fazendo. Esse axioma é bastante antigo, mas persiste pouco
aplicado, uma vez que, quando o aluno de fato faz, o seu produto foge ao controle do
professor: o que de fato se faz, se constrói, não cabe mais no gabarito fechado de um
teste.
O modo como os fatos são encarados é muito mais importante do que os
fatos em si. Decorar a lista dos afluentes da margem direita do rio Amazonas
provavelmente não ajudará muito a alguém que se encontre perdido, mais tarde, na
floresta amazônica - ou frente aos dilemas ecológicos do nosso tempo. Certo, ninguém
mais cobra os afluentes da margem direita do Amazonas (Javari, Juruá, Purus, Tefé,
Madeira, Tapajós, Xingu e Tocantins!), mas decerto outras listas extensivas ocuparam o
seu lugar... Ser capaz de enunciar fatos é útil, apenas., para passar em provas,
impressionar amigos (facilmente impressionáveis) e se dar bem em programas de
auditório, mas serve para muito pouco além disso.
O princípio do aprendizado científico é o mesmo que orienta o caçador
”primitivo”: nós aprendemos melhor aquilo que queremos. O motor da inteligência é o
desejo, condição de possibilidade da imaginação. E a imaginação não é, como queria
Malebranche, ”a louca da casa”, mas sim a própria antecipação do conhecimento. Não há
conhecimento sem antecipação; não há conhecimento sem a imaginação que formule as
condições prévias para o conhecimento.42 A hipótese outra coisa não é do que a
antecipação, forçosamente imaginária, do conhecimento que não se tem, mas se deseja
alcançar.
Em sentido estrito, a dedução é a forma do raciocínio que parte do geral
para o particular, enquanto a indução é a forma do raciocínio que faz o caminho inverso,
do particular para o geral. Qual é o caminho que se toma primeiro, é questão fundamental
para a educação. Considerando que parece mais ”lógico” partir do conhecido para o
desconhecido, muitas pessoas dirão que o caminho indutivo precede o caminho dedutivo,
uma vez que se conheceria antes o que parece mais perto da pessoa: o particular, o
concreto, a parte - só depois se teria acesso ao geral, ao abstrato, ao todo. A escola
concorda com isso; tanto, que seus instrumentos pedagógicos são eminentemente
indutivos, admitindo que um acúmulo de observações indutivas (corporificadas num
42 Albert Jacquard. Obra citada, p. 75.
acúmulo de questões sobre aspectos particulares, concretos e parciais da matéria) leve,
algum dia, à compreensão do todo, ou seja, dos conceitos, dos fundamentos e da
estrutura. A escola parte do ideal positivista, pelo qual a verdade dos fatos pode ser
alcançada tão-somente pelos sentidos, vale dizer, pela observação e pela
experimentação, mas o deforma um pouquinho, na medida em que não ensina a
observar, mas sim o que já foi observado; não ensina a experimentar, mas sim o que já foi
experimentado (mesmo nos raros e precários laboratórios, não se fazem experiências
legítimas, mas exibições controladas de procedimentos que, algum dia, fizeram parte de
alguma experiência). A ciência contemporânea, ao contrário, admite-se (com Popper e
Kuhn, por exemplo) como eminentemente dedutiva.43
Se concordássemos com o ideal positivista, precisaríamos colocar o
argumento indutivo na frente do argumento dedutivo. Como não concordamos com ele,
optamos (seguindo, inclusive, a maioria absoluta dos livros de Lógica) pela precedência
do argumento dedutivo, o que implica afirmar que a imaginação é precondição para o
conhecimento dos fatos. E, em ciência, o lugar privilegiado de realização da imaginação é
a hipótese.
Não estamos sendo especialmente revolucionários, se lembrarmos o que
Aristóteles escrevia há 24 séculos: ”a marcha natural do intelecto é ir das coisas mais
conhecíveis e mais claras para nós às que são mais claras em si e mais conhecíveis. Ora,
o que para nós é primeiramente manifesto e claro são os conjuntos mais misturados; é só
depois que, dessa indistinção, os elementos e os princípios se destacam por meio da
análise”. 44
Em outras palavras: conhecemos antes as idéias (nossas), e depois as
coisas. Conhecemos antes os conjuntos, para só depois conhecermos os elementos
particulares dos conjuntos. Precisamos, antes de qualquer outro processo intelectual,
imaginar o mundo como mundo (como conjunto de coisas e fenômenos), para podermos
então observá-lo (espantados). O leitor sabe que está lendo este modesto livrinho no
quarto, mas certamente ignora o número de tábuas que compõem o assoalho de seu
quarto. E, se acaso o souber (ó erudição!), é provável que ainda não tenha tido tempo (ou
necessidade) de contar o número de nós que se acham na madeira. Da mesma maneira,
a criança pequena não diferencia um terra-nova de um golden retriever (tal como muitos
leitores adultos, enfurnados nos seus mínimos apartamentos), porque aprende, em
43 Maria José Coracini. Obra citada, p. 26.
primeiro lugar, a reconhecer um cão (au-au...), passando depois, se puder e quiser, à
distinção das raças.
Os ocidentais acharemos graça nos japoneses, por exemplo, pressupondo-
os todos iguais - mas o mesmo acontece entre eles, em relação aos brasileiros (todos
iguais, tudo samba e futebol...). A medida que se convive (que se investiga, que se
pensa), reconhecem-se as enormes diferenças individuais. Ou, como diria Pascal: ”à
medida que se tem mais espírito, descobre-se que há mais homens originais. As pessoas
do vulgo não vêem diferença entre os homens”.45
A metáfora da montanha e do vale, usada por nove entre dez mitos (e por
dez entre dez filósofos), é esclarecedora. A inteligência partiria do alto da montanha,
porque só de lá se pode ter uma visão global do vale (da realidade). Mas, se quiser
conhecê-lo melhor, deverá descer para a sua visão se detalhar. Quanto mais desce no
vale, ou nele penetra, entretanto, mais a inteligência descobre o quanto não conhece: a
extensão infinita, microscópica e macroscópica, dos seres, das coisas e dos
acontecimentos que povoam o vale.
Do alto da montanha, percebemos a necessidade de um modelo e de um
ideal, não apenas para nortear as nossas ações, mas também para orientar as nossas
observações. Esse modelo funciona como um horizonte regulador que, paradoxalmente,
nos move e nos orienta. O substantivo ”modelo” implica uma ação: a ação de modelagem.
Modela-se uma abstração, do latim abstrahere, justamente para extrair das realidades
sensíveis, materiais, sua essência inteligível e universal. Como não podemos conhecer
todos os homens e mulheres, designamos a todos por um nome genérico. Como não
podemos dar um nome a todas as folhas que caem das árvores, batizamos a todas pelo
nome ”folha” (embora a dita cuja, em si, também não exista).
Assim se fazem os conceitos - derivados, precisamente, de uma concepção.
O mesmo se pode dizer a respeito de todas as coisas que compõem a
realidade e, na verdade, da realidade mesma. Porque o que chamamos realidade ӎ uma
hipótese que formulamos a propósito do que nos rodeia”.46 Dito de outro modo, o nosso
acesso à realidade só pode ser mediato, e não imediato. Reconhecê-lo, entretanto, não
precisa implicar a desvalorização da percepção sensível, como o fez Platão na famosa
44 Em Pascal Ide. Obra citada, p. 5. 45 Idem, ibidem, p. 11.
alegoria da caverna. Heisenberg, com o seu primado da incerteza, permitiu-se reescrever
o mito da caverna, na qual nos iludimos com as sombras que pensamos que são reais, ao
orientar a ciência em uma direção diferente: ao invés de buscar o conhecimento das
”coisas”, devem-se buscar as condições pelas quais temos acesso às ”coisas”.
A ênfase deste livro e projeto no argumento - vale dizer, na lógica e na
retórica - se preocupa menos com as idéias ou as coisas ”em si” e mais com as condições
através das quais pensamos e expressamos o nosso pensamento, admitindo, inclusive,
que não se pensa sem expressar o que se pensa. A ênfase deste livro no argumento, de
resto óbvia em função do seu título mesmo, na verdade deseja que essa se torne a
ênfase da escola.
Mais importante do que saber (isto ou aquilo), colecionando neuroticamente
dados, datas e fatos que não estarão à mão na hora que se precise deles (a menos que
sejamos dotados de uma memória anacrônica e nos encontremos no palco de um
programa de televisão tipo ”o céu é o limite”), deve ser saber como expressar e defender
o que se sabe, ou seja, como delimitar, sempre provisoriamente, as condições pelas quais
temos acesso à realidade e às suas partes infinitas (e infinitamente parciais).
Supondo que todos concordemos com isto, a tal ponto que realmente
deixemos de dar e cobrar ”coisas”, para de fato exigirmos, dos nossos alunos,
argumentos cada vez melhor elaborados, retornamos ao alto da montanha para falar do
fundamento do argumento dedutivo, qual seja, a hipótese.
A hipótese (primeira tese, primeira idéia) é o fundamento desse argumento,
bem como de toda a ciência, da Biologia História. Para melhor exemplificar,
acompanhemos, com Irving Copi, a fortuna de duas hipóteses rivais muito famosas.47
Trata-se da polêmica sobre a forma da Terra.
Na antiga Grécia, os filósofos Anaxímenes e Empédocles sustentavam que a
Terra era plana, acompanhando, portanto, senso comum, que não admitia o planeta como
esférico (senão, todos estaríamos escorregando!). Mais tarde, Nicolau Copérnico afirmou
o contrário, com o seguinte argumento:
Que os mares assumem uma forma esférica é percebido pelos navegadores.
46 Albert Jacquard. Obra citada, p. 192. 47 Irving Copi. Introdução à lógica, pp. 406-416.
Pois quando a terra ainda não é discernível do convés de um barco, já é visível do alto
dos mastros. E se uma tocha for atada ao mastro, quando o navio se afasta da terra
parece aos observadores postados no litoral que a tocha vai descendo, pouco a pouco,
até desaparecer totalmente, como o ocaso de um corpo celeste.
Portanto, da hipótese de que a Terra é plana, infere-se que o barco
desaparecerá por inteiro, o convés ao mesmo tempo que o alto do mastro. Da hipótese de
que a Terra é esférica, infere-se que o mastro do barco continuará visível por algum
tempo ainda, depois de o convés ter desaparecido da vista.
Na verdade, os observadores, na Grécia ou no tempo de Copérnico, não
podiam subir em uma nave espacial para ver, com os seus olhos, a forma
indubitavelmente esférica (quer dizer, mais ou menos esférica) da Terra (na verdade,
mesmo hoje, poucos de nós podemos fazê-lo, mas acreditamos nos que foram, bem
como, é claro, nas imagens da televisão). A polêmica se prolongou por muito tempo,
porque nem os partidários de uma concepção nem os da outra podiam ver, e fazer ver,
aos demais, a Terra como plana ou esférica. A hipótese da Terra plana servia para
explicar o que os sentidos percebiam.
Entretanto, a hipótese de Copérnico, da Terra esférica, também se baseava
nos sentidos.
Havia uma falha no argumento de Copérnico que os seus adversários
poderiam ter usado. Sua experiência do navio se afastando dependia não apenas de
considerar a Terra como redonda, mas de considerar uma hipótese adicional da maior
importância: a de que a luz siga um trajeto retilíneo. Um defensor da Terra Plana poderia
muito bem refutar Copérnico dizendo, ao lado dele, no mesmo cais, vendo o mesmo
navio, que a Terra era plana sim; a luz é que se propagava em curva, atraída, por
exemplo, pela gravidade da Terra (embora, à época, ainda não se tivesse formulado a
teoria da gravidade). E agora? Em função dos elementos conhecidos à época de
Copérnico, uma suposição, uma hipótese, seria tão boa quanto a outra. O argumento de
Copérnico se complica se lembrarmos que mais tarde admite-se a possibilidade do trajeto
curvilíneo da luz (embora não exatamente nas condições que envolvem um observador
no cais olhando para navio ao longe).
O que se deve destacar, aqui, é a extrema importância de se explicitar com
toda a clareza todas as hipóteses e suposições que orientam o raciocínio e as
conclusões. Que a luz viaja em linha reta era pressuposto no argumento de Copérnico,
mas tratava-se de uma suposição oculta. Para o real desenvolvimento do progresso
científico, bem como para o permanente aperfeiçoamento dos nossos argumentos, é
fundamental explicitar todas as suposições que nos orientam, explicitando tudo o que
ainda permaneça implícito - esse é o trabalho maior do educador, que não deixa de ser,
aliás, fundamentalmente político.
Mas, muitas vezes, os livros didáticos (e os professores cansados)
apresentam a descrição dos fenômenos apenas a partir do final do argumento, sem
explicitar as suposições básicas. Da mesma forma, e em conseqüência, os alunos
apressados tendem a apresentar somente a parte final do seu raciocínio - a resposta, a
solução -, sem explicitar as hipóteses que os orientam, o que enfraquece, sobremaneira,
a sua argumentação. Às vezes, é isso o que os professores percebem, embora
confusamente, quando escrevem na margem da redação: ”desenvolva mais o seu
pensamento”. Nesse caso, a melhor recomendação não seria ”desenvolva mais”, que
sugere ao aluno que ele deve acrescentar elementos a partir do que escreveu, mas sim
”explicite as bases e as hipóteses que orientaram o seu pensamento”. Não é ”diga mais”,
mas sim: ”diga o princípio”.
O princípio de tudo é a hipótese. Mesmo as nossas observações são
orientadas por hipóteses prévias, sem as quais sequer conseguimos começar a abrir os
olhos. A frase de Einstein, nesse sentido, torna-se um axioma: ӎ a teoria que decide o
que podemos observar”.48
Não vemos, na verdade, apenas com os nossos olhos - porque os nossos
olhos só podem ver depois que os ”informamos” como e o que ver. A ciência conseqüente
é mais cética ainda do que São Tome: duvida dos próprios olhos, porque sabe que os
olhos são ”programados” para ver de tal ou qual maneira, o que significa que poderiam
ser programados para ver de outras maneiras.
É o hábito dessa dúvida que permite formular as hipóteses (enquanto tal).
Quando o que inicialmente se sugere como uma hipótese é confirmado por diferentes
cálculos e observações, costuma-se elevá-lo à categoria de uma ”teoria”. A partir de um
grande volume de provas, alcançando aceitação próxima da universal, a teoria, por sua
vez, se eleva ao status maior de ”lei”.
48 Em Werner Heisenberg. A parte e o todo, p. 78.
Essa hierarquização da terminologia científica, entretanto, nem sempre é
seguida à risca: a descoberta de Newton ainda é conhecida como ”Lei da Gravidade
Universal”, enquanto a contribuição de Einstein, que aperfeiçoou e, em parte, substituiu a
de Newton, é designada como ”Teoria da Relatividade Geral e Restrita”. Na verdade, os
termos ”hipótese”, ”teoria” e ”lei” não são muito felizes, porque obscurecem a questão
fundamental: todas as proposições gerais da ciência são consideradas hipóteses, e não
dogmas: ”na ciência, toda explicação é proposta a título de ensaio e provisoriamente.
Toda explicação proposta considera-se uma simples hipótese, mais ou menos provável,
com base nos fatos acessíveis ou provas relevantes”.49
Jacquard chega a propor deixar o termo ”lei” tão-somente para uso dos
juristas (mesmo assim, mantendo-os sob suspeição).50 O termo ”lei” sugere que os
objetos estão submetidos a uma decisão arbitrária da natureza; a fórmula matemática que
sustenta a lei tende a ser percebida como uma decisão cifrada tomada por um tribunal,
que poderia, quiçá, ter decidido de outra maneira. No entanto, as leis científicas são
apenas a conseqüência lógica, necessária, dos conceitos adotados para se descrever o
real. O perigo mais grave da referência constante a leis é descrever o mundo real como
uma acumulação desordenada de fenômenos, cada um deles acompanhado de um
programa de funcionamento - a ciência não seria mais do que a decifração desses
programas. Essa maneira de pensar, parece claro, é antes religiosa do que científica, na
medida em que supõe, implícita ou explicitamente, um programador onisciente.
Essa maneira de pensar tende a deixar os cientistas em palpos de aranha,
quando deparam com fenômenos que não se encaixam de modo algum nas explicações
(nas hipóteses) existentes. A descoberta do ornitorrinco, animal australiano, por exemplo,
provocou exclamações surpreendentemente estúpidas por parte de cientistas renomados.
Ao verem um animal que não se encaixava nas classificações estabelecidas, parecendo
antes misturá-las ironicamente, alguns disseram, frente a frente com o bichinho: este
animal não existe.
Se seguissem a lógica clássica até o fim, precisariam dizer: este animal não
existe; ora, mas eu o vejo; logo, eu não existo.
Não é o lugar nem o momento de fazermos uma história da ciência, mas
importa lembrarmos que o que conhecemos como ciência é uma construção histórica da
49 Irving Copi. Obra citada, p. 382. 50 Albert Jacquard. Obra citada, p. 173.
modernidade (ou, do que conhecemos como modernidade). Nesse processo, intensificou-
se o procedimento dedutivo, ou seja, a visão especulativa do alto da montanha, até
porque, progressivamente, começou-se a estudar tanto o infinitamente grande, como o
cosmos, quanto o infinitamente pequeno, como o átomo. Telescópios e microscópios
passam a ocupar o topo da colina, mas não são suficientes: para explicar certos
fenômenos, é preciso abstrair o que se consegue ver, para ”ver” além (e aquém).
O limite da abstração é o número.
No século XVII (época das maiores descobertas científicas, fundando o
conhecimento subseqüente), o filósofo e matemático alemão Leibniz propõe transformar
todo raciocínio em uma espécie de cálculo, por considerar que os métodos da Matemática
podem se estender até abranger a totalidade do conhecimento.
Se a gente argumenta na maneira usual, é difícil chegar a um acordo.
Vamos transformar os raciocínios em cálculos e obter as conclusões como se fossem
resultados aritméticos.51
Levar essa idéia às últimas conseqüências pode redundar em perigosa
forma de cientificismo, forjando a ilusão (positivista) de que, se tudo pode ser reduzido a
uma bela fórmula matemática, tudo pode ser conhecido. Entretanto, a proposta de Leibniz
obviamente tinha e tem muita importância, se ajudou a fundar a ciência e o mundo
modernos. Ainda que nem tudo possa ser reduzido a cálculos e números, números e
cálculos ampliam significativamente as possibilidades do nosso conhecimento (e, em
inevitável decorrência, a consciência de nossa ignorância).
O que importa é não acreditar nos números como se eles fossem a Verdade
maiúscula e única. A Matemática nada mais é do que uma linguagem de símbolos,
representando objetos ou conceitos um pouco à maneira como os ideogramas chineses
também o fazem. É extremamente curioso como a escola transformou a Matemática na
disciplina mais difícil do currículo, quando ela seria, por definição, o caminho da
simplificação, da economia e, portanto, do menor esforço e da facilidade. Jacquard lembra
que, ”para desmistificar a Matemática, é bom considerá-la como a invenção de indivíduos
preguiçosos, desejosos de resumir pela formalização a escrita de seus raciocínios. Mas
essa formalização não passa de uma atividade de escriba que, graças à sua experiência,
51 Em Carlos Lungarzo. O que é lógica, p. 22.
encontra o melhor artifício para simplificar o seu trabalho”.52
Considerada o modelo das ciências mal ditas ”exatas”, tem sido fonte de um
equívoco básico: deixa crer que a realidade pode ser adequada e completamente
representada, o que nunca é o caso. Quando os astrônomos ”medem” a distância do Sol
à Terra, o resultado não pode ser exato, pela razão muito simples de que semelhante
distância, modificada segundo a segundo, nem chega a ser definível. Existe, tão-somente,
média, ou aproximação.
”Na verdade, em cada ocorrência, o número não assume o lugar de
grandeza, numa relação de identidade, mas apenas a representa, numa relação de
equivalência.”53 Isto significa que o número não se encontra numa relação unívoca de
identidade, mas numa relação, necessariamente parcial, de representação. Nem todas as
propriedades da grandeza em questão resultam caracterizadas pelo número que lhe é
associado. Quando se numeram as salas de um corredor, não se pretende que exista
uma correspondência completa entre as propriedades da sala 8 e as do número 8. Pode
ser que a sala 8 situe-se entre as salas 7 e 9, mas não se espera que ela seja
necessariamente maior que a 7 (ou com o dobro do tamanho da sala 4). Nessa
representação, apenas se considera, no máximo, o aspecto ordinal do número.
Analogamente, se um aluno obtém notas 4 e 6 em duas avaliações independentes, é
rigorosamente exato dizer-se que a média aritmética de suas notas é 5, mas não é
necessariamente verdadeiro que ele conheça 50% da matéria trabalhada em sala. É tão
difícil medir exatamente esse percentual quanto medir exatamente a distância entre a
Terra e o Sol, simplesmente porque nenhuma das duas medições exatas é possível.
Ainda aqui, trata-se.de média, ou aproximação, não mais.
Para demonstrar numericamente o caráter representativo e inexato do
número, faça-se a seguinte experiência: divida-se uma fita de um metro de comprimento
em três partes idênticas. Não há maiores dificuldades técnicas para se fazer essa divisão,
com uma boa tesoura e um bom ”olhômetro”. Depois, se podem juntar as três partes para
se ter de volta a fita original. A seguir, divida-se matematicamente um metro por três
partes iguais: encontramos, como comprimento de cada uma das partes, 0,333... (ad
infinitum...}. Somando as três partes, encontramos o estranho número de 0,999... (ad
infinitum...), que é menor do que 1.
52 Albert Jacquard. Obra citada, p. 102. 53 Nilson Machado. Obra citada, p. 41.
Se a Matemática é uma ciência exata, por que ela não consegue exprimir
uma divisão materialmente possível? A pergunta é perturbadora, mas não deveria
perturbar os bons matemáticos. Eles sabem, primeiro, que a Matemática não é uma
ciência exata, e sim uma ciência rigorosa. Eles sabem, também, que nem mesmo o final
da experiência que dividiu materialmente a fita é possível, uma vez que a reconstituição
da fita à situação anterior depara com impasses milimétricos. A tesoura mais afiada do
mundo cortando a fita mais fina do mundo não consegue fazê-lo em uma linha
absolutamente reta. Olhando a fita mais de perto (muito de perto), observam-se
minúsculas reentrâncias e ziguezagues que farão com que, se juntarmos os três pedaços
sobre uma mesa absolutamente lisa (o que também não existe, a não ser como
abstração), teremos uma fita não de um metro, ou medindo 0,999... (ad infinitum...)
metros, mas, provavelmente, uma fita de pouco mais de um metro.
Para continuar a complicar, podemos tentar medir a extensão do litoral da
ilha de Paquetá. Imaginemos um grupo de geógrafos fazendo isso, e chegando a um
determinado número. Então lhes perguntaríamos como o fizeram, e eles mostrarão seus
instrumentos de medição - por exemplo, uma fita de dez metros. Qualquer que fosse o
número obtido, e ainda sem considerar que o litoral de uma ilha se modifica segundo a
segundo, com as ondas que vão e vêm, com a maré que sobe e desce, poderíamos dizer
que a medida está errada. Ao esticarem a fita de dez metros, deixam de considerar as
reentrâncias maiores e menores das pedras e da areia, a tal ponto que, naquele espaço
que eles determinaram como medindo ”dez metros”, poderíamos encontrar, digamos, dez
mil metros, computadas as menores reentrâncias visíveis a olho nu. Se usássemos
microscópios mais e mais poderosos, chegaríamos, no espaço dos dez metros daquela
fita dos geógrafos, a um número potencialmente infinito - logo, imagine-se o número que
se pode obter como medida de todo o litoral da ilha de Paquetá: teria uma extensão
equivalente a várias vezes a distância (estimada) entre a Terra e o Sol.
Em conseqüência, se uma questão de prova perguntasse, ”qual a extensão
do litoral da ilha de Paquetá”, sem outros dados adicionais, haveria apenas duas
respostas corretas: ”depende do metro”; ou, então:
Os bons matemáticos sabem, igualmente, que tudo isso é que torna a
disciplina fascinante, permitindo-nos não só nos aproximar da realidade (mais não nos é
dado) como brincar com paradoxos resultantes das tentativas. A formulação de Einstein
se afigura emblemática: ”na medida em que as leis matemáticas referem-se à realidade,
elas não são exatas, e na medida em que são exatas, elas não se referem à realidade”.54
Portanto, ”é essencial o reconhecimento da importância dos resultados aproximados, das
estimativas, das questões em aberto ou impossíveis de responder no seio de problemas
caracteristicamente matemáticos”.55
A base da Matemática é, como veremos um pouco mais adiante, o
fundamento da lógica do argumento, estabelecendo relações na forma ”se a, então (3” (a
implica 3). Nesse caso, toda proposição é apresentada como decorrência da admissão de
outra, ou de outras. A questão da verdade matemática reveste-se de caráter
exclusivamente hipotético: quando afirmamos ”se a, então P”, garantimos que não é
possível se ter P falsa se a for verdadeira, mas nada podemos afirmar sobre a veracidade
de a ou P isoladamente.
Dizer que um carro ”tem” velocidade de 60 km/h ao passar por determinado
ponto significa afirmar que, se o carro se mantivesse em movimento uniforme por mais
uma hora, sem nenhuma interferência do trânsito, então na próxima hora ele percorreria
60 quilômetros. O conceito de velocidade envolve sempre um ”se a, então P”; uma
afirmação condicional relativa a um hipotético movimento uniforme.
Há uma expressão latina que deveria acompanhar todo problema de
Matemática ou Física: ceteris paribus. Pode ser traduzida como ”tudo o mais sendo
invariável”. As explicações científicas, fundamentalmente hipotéticas, devem buscar o
máximo de simplicidade e economia de meios para serem realmente produtivas. Precisam
reduzir as variáveis ao mínimo, para que haja possibilidade de solução. Entretanto, a vida
e os seus fenômenos não são, definitivamente, simples: contêm, sempre, um número
potencialmente infinito de variáveis.
O antropólogo Pascal Boyer alerta: ”as idéias científicas não são, não podem
ser, nem deveriam ser fiéis à vida”.56 Produzir uma teoria, ou um argumento, não implica
levar em conta todos os possíveis aspectos do fenômeno que se procura descrever, pela
razão, essa sim muito simples, de que todo fenômeno é muito mais complexo do que
possa sonhar a nossa vã filosofia (ou ciência). Em prol da simplicidade, descrevem-se os
aspectos relevantes do fenômeno, estabelecendo, arbitrariamente, que todos os demais
aspectos ”permaneçam” invariáveis, imutáveis, vale dizer, neutralizados.
54 Idem, ibidem, p. 32. 55 Idem, ibidem, p. 136. 56 Em John Brockman. Obra citada, p. 186.
Para resolver o problema mais simples, é preciso ”congelar”, com a
sentença-limite ceteris paribus, todas as questões secundárias e laterais. Determinar a
velocidade de um carro, por exemplo, depende de a consciência não considerar (mas
apenas enquanto se resolve o problema!) o trânsito, a qualidade da estrada, a polícia
rodoviária, o sono do motorista...
Essa consciência ”desconsiderante”, vale dizer, seletiva, coloca a si mesma,
porém, problemas mais graves - muito mais graves. Como resolvê-los? O que considerar
variável, portanto relevante, e o que considerar invariável, logo, irrelevante?
Nos debates que nos afetam mais de perto, os cientistas, usando métodos
semelhantes, usando os mesmos e melhores recursos de argumentação, discordam entre
si. Porque, assim como os fenômenos não se deixam descrever completamente a
verdade é não-toda, nos diria um psicanalista famoso -, o argumento é necessário, é
indispensável, mas não suficiente.
Por exemplo: como a consciência pode saber o momento em que nasce a
consciência? Essa pergunta, que se fazem médicos, biólogos, antropólogos, lingüistas,
geneticistas e, last but not least, religiosos, é crucial para o debate sobre o aborto.
Vamos fazer um raciocínio, válido (no entanto, no seu limite, apavorante).
Pressupomos, e o leitor ou leitora deve concordar com isto, que um óvulo, apesar de
conter as condições para que o processo da vida se desenrole, não tem consciência -
tanto isso é verdade, que não se lamentam os óvulos que ”morrem” todos os meses. O
mesmo pode ser dito a respeito do espermatozóide - tanto isso é verdade, que não se
lamentam os espermatozóides que se ”perdem” e ”falecem”, desde as primeiras e
adolescentes poluções noturnas. Ora, o ovo fecundado, resultante do encontro dos dois,
também não terá consciência - ou alguém pode demonstrar o contrário? O mesmo, então,
deve acontecer com o embrião resultante das diferenciações celulares que ocorreram
naquele ovo - por que não com o feto que sucede ao embrião? - e por que não com o
neném que acaba de nascer? - e assim por diante, justificando-se todos os crimes...
Agora, façamos o raciocínio inverso, conduzindo-nos a outro absurdo.
Evidentemente, respeito a vida de um bebê.
Nesse caso, devo respeitar a vida de um feto - logo, devo respeitar a vida de
um embrião - logo, devo respeitar a vida de um ovo que acaba de ser fecundado - logo,
devo respeitar a sagrada vida de todos os óvulos e de todos os espermatozóides do
mundo - logo, para ser absolutamente coerente, devo respeitar a vida do menor micróbio
e da menor célula, e em conseqüência não devo tomar antibióticos (antivida!) nem
ministrá-los a meu filho, deixando-o, em nome do respeito absoluto à vida, morrer de
pneumonia...
Fica claro, esperamos, que não é nestes ou naqueles termos que se pode
colocar o problema do aborto. A ciência limita-se a construir uma descrição da realidade
que se pode ver, ceteris paribus. Da descrição, não se infere alguma regra moral
absoluta. Compete a cada um tomar a sua posição, fundar e sustentar o seu argumento a
respeito. A posição do filósofo Albert Jacquard, que nos emprestou os argumentos-limite
sobre o aborto, é fundada ”no respeito pela jovem mulher que, tendo refletido, decide que
o aborto é para ela a solução menos má. Coloco esse respeito acima do respeito - que,
no entanto, é muito grande - pelo futuro neném que ela traz em seu seio”.57
Como se pode depreender, essa questão, bem como todas as demais que
realmente importam, não está resolvida - o que reforça a necessidade de aperfeiçoarmos
o nosso estudo e o nosso argumento.
A dedução costuma se confundir com a própria lógica, devido à tradição do
pensamento ocidental, que deriva diretamente da lógica aristotélica. Aceitemos,
momentaneamente, essa interposição, procurando o princípio que funda a lógica e, em
conseqüência, a formulação de todas as hipóteses. Trata-se do princípio de não-
contradição, que não pode ser demonstrado. Dele partem os dois outros princípios que o
completam: do terceiro excluído e da identidade.
Pode-se enunciar assim o princípio de não-contradição: ”não podemos
afirmar e negar um enunciado ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto”. O princípio do
terceiro excluído se enuncia desse modo: ”dado um enunciado ou ele é verdadeiro ou é
falso. Não existe terceira hipótese”. O princípio da identidade é bem claro: ”dado um
enunciado, ele é sempre igual a ele mesmo”.
Como não se pode demonstrar o princípio de não-contradição, pode-se
ilustrá-lo por uma fábula bem interessante. A fábula é de Nahra e Weber, e se chama
”DISCUSSÃO NA FAMÍLIA LOGUS”.58
Era uma vez três irmãos, Aristóteles, Dialéticos e Sofísticos, filhos de Dona
57 Albert Jacquard. Obra citada, p. 16.
Sophia e de Seu Logus. A família vivia muito feliz, como geralmente viviam todas as
famílias de classe média do mundo (naquele tempo não existia ainda crise econômica),
sendo a paz familiar apenas abalada pelas constantes disputas entre Aristóteles,
Dialéticos e Sofísticos, que tinham sérias e profundas divergências intelectuais e
existenciais.
Dialéticos era um sonhador e vivia ”no mundo da lua”, como costumava dizer
Dona Sophia. Rebelde com causa, vivia questionando Seu Logus e desrespeitando as
regras familiares. Seu Logus costumava queixar-se, dizendo: ”Desrespeitando-me desse
jeito, esse menino não vai aprender nada e nunca vai ser alguém na vida”.
Sofísticos era o ”espertinho” da família. Pedante como só ele, achava que
sabia tudo e que era mais inteligente que todos. Tinha uma boa lábia, mas conhecimento
mesmo tinha pouco. Dona Sophia e Seu Logus, quando faziam aquelas reflexões
privadas que todo casal faz sobre sua prole, costumavam dizer: ”Esse menino, se facilitar,
é capaz de convencer os outros de que uma vaca tem cinco patas... Isto não é nada
bom”.
Aristóteles era o orgulho da família. Rapaz educado, inteligente e vivo,
impacientava-se com o comportamento de seus irmãos, que viviam a provocá-lo
intelectualmente. Suportava tudo sem nada dizer, até que um dia resolveu dar um fim a
essa situação e chamou seus irmãos para o que ele denominou de ”uma discussão em
família”.
- Dialéticos - disse Aristóteles - você sabe o que é o princípio de não
contradição?
- Claro! O princípio de não contradição diz que ”é impossível que o mesmo
atributo pertença e não pertença ao mesmo tempo e sob a mesma relação ao mesmo
sujeito”.
- Exatamente. Poderíamos também dizer mais informalmente que o princípio
de não contradição enuncia que ”nada pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o
mesmo aspecto”. Pois eu lhe pergunto, Dialéticos, se você acha que é possível
desrespeitar esse princípio.
- Pois eu lhe digo que é possível. E lhe digo, também, que o princípio de não
58 Cynara Nahra e Ivan Weber. Através da lógica, pp. 53-7.
contradição deve ser dialeticamente superado.
- Ah não, Dialéticos! Seu caso é pior do que eu pensava. Você está
querendo me dizer que as coisas podem, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, ser e
não ser?
- Sim. Veja bem, Aristóteles, as coisas estão sempre em movimento, o que
mostra que aquilo que é hoje pode não ser mais amanhã. Nós nunca nos banhamos duas
vezes no mesmo rio. As águas que nos banham hoje não serão mais as mesmas que nos
banharão amanhã, porque amanhã as águas de hoje já terão passado.
- É realmente profundo, Dialéticos, mas acho que você está compreendendo
mal o princípio de não contradição. O que o princípio diz é que as coisas não podem ser e
não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Isto significa que não podemos, em
um mesmo instante, estar e não estar nos banhando em um rio. Afirmar isto seria
contraditório. Nada impede, entretanto, que hoje estejamos nos banhando em um
determinado rio, com águas que amanhã não serão mais as mesmas. Em tempos
diferentes, podemos ter diferentes estados de coisas no mundo.
- Explique isto melhor, Aristóteles! Quer dizer que você, como eu, acha que
as contradições podem existir e que o mundo é movido a contradições?
- Pelo amor de Deus, Dialéticos, pare de querer forjar consensos e não
coloque palavras na minha boca! Contradições jamais, eu digo, jamais podem existir.
Jamais alguma coisa poderá ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Por
exemplo, mano, um mesmo indivíduo jamais poderá dizer: ”eu vi e não vi o Gato Frajola
sentado na cadeira às 19 horas”. Se alguém dissesse isto, estaria dizendo que viu e não
viu um determinado acontecimento em um mesmo instante, o que é evidentemente
impossível. Nada impede, entretanto, que alguém diga: ”eu vi o Gato Frajola sentado na
cadeira às 19 horas” e ”eu não vi o Gato Frajola sentado na cadeira às 19 horas e 2
minutos”. Obviamente o que aconteceu nesse caso é que, ao passar o tempo, o Gato
Frajola saiu da cadeira e foi para outro lugar, quem sabe, foi caçar ratos. Nada impede,
também, que João diga: ”eu vi o Gato Frajola sentado na cadeira às 19 horas”, e Pedro
diga: ”eu não vi o Gato Frajola sentado na cadeira às 19 horas”. Nesse caso, Pedro e
João estavam sob diferentes relações quanto ao objeto (no caso, o gato) em questão.
Pedro, provavelmente, estava próximo à cadeira e por isso viu o gato, e João,
provavelmente, estava na rua, longe da cadeira, e por isso não viu o gato.
Nesse exato instante, o irmão Sofísticos se intromete na discussão. Ele pede
a Aristóteles uma demonstração do princípio de não contradição e diz que sem essa
demonstração ele não pode dar-se por convencido da existência desse princípio.
- Ora, Sofísticos! É impossível demonstrar o princípio de não contradição.
Exatamente por ser um princípio, ele é a base de onde todas as outras demonstrações
procedem. Não podemos demonstrar aquilo que é o princípio de tudo. Se tentarmos tudo
demonstrar, regrediremos ao infinito e não demonstraremos nada.
- Pois se não podemos demonstrar o princípio de não contradição, não me
dou por convencido e simplesmente não o aceito.
- Não posso lhe dar uma demonstração, Sofísticos, mas lhe darei uma prova
que tem a mesma força de uma demonstração. Chamarei essa prova de ”refutação” ou
”demonstração indireta”. Peço-lhe, então, Sofísticos, que você simplesmente me diga
qualquer coisa.
- Digo-lhe que eu gosto de bananas.
- Quando diz isto, Sofísticos, você já está respeitando o princípio de não
contradição.
- Como assim?
- Você não pode me informar que gosta de bananas, desrespeitando o
princípio de não contradição. Se o desrespeitasse, você estaria dizendo: ”Eu gosto e não
gosto de bananas”, e não estaria, portanto, enunciando nada sobre seu gosto por
bananas. É sempre assim. Se você me diz coisas contraditórias como ”Eu gosto e não
gosto de Maria” ou ”O gato está e não está em cima da cadeira” ou ainda ”Mr. Hyde foi e
não foi um monstro”, eu nada posso saber sobre seus gostos, sobre o local onde o gato
está e sobre o que você pensa sobre Mr. Hyde. Quando desobedece ao princípio de não
contradição, você simplesmente não enuncia nada, não informa nada a respeito do
mundo.
- E daí? O fato é que eu posso dizer estas coisas, eu posso dizer: ”eu gosto
e não gosto de bananas”, eu posso desrespeitar o princípio de não contradição. Você
ainda não o demonstrou, Aristóteles.
- Veja bem, Sofísticos, você está pedindo que eu demonstre o princípio de
não contradição, certo? Mas se você, de fato, desrespeita esse princípio, então esse
diálogo simplesmente não estaria sendo travado, porque você estaria me pedindo para
dar e não dar uma demonstração do princípio de não contradição, não é mesmo?
- Como assim?
- Se você desrespeita o princípio de não contradição, não pode enunciar
nada, nem enunciar que você deseja uma demonstração desse princípio. Quando diz: ”eu
quero uma demonstração do princípio de não contradição”, você não está dizendo: ”eu
quero e não quero uma demonstração do princípio”. Você está me informando que quer
essa demonstração e, para informar isto, você precisa respeitar o princípio. Se para
enunciar qualquer coisa você não pode desrespeitá-lo, então o princípio tem validade
universal. Se desrespeitamos o princípio, nada no mundo pode ser informado, nada pode
ser comunicado, nada pode ser dito. Vejam, então, meus irmãos, a força desse princípio!
Ele não pode ser diretamente demonstrado, porque ele é a condição de toda e qualquer
demonstração. Podemos, entretanto, refutar, como eu fiz agora, todo aquele que diz ser
possível desrespeitar esse princípio, mostrando que desrespeitá-lo é condenar-se ao
silêncio eterno, a nunca usar a razão, é condenar-se a passar a vida sem nada afirmar e
sem nunca julgar.
Dona Sofia e seu Logus que a tudo assistiam deram um sorriso largo,
satisfeitos com aquele que seria seu mais ilustre filho.
A fábula sobre a discussão na família Logus merece, por sua vez, muita
discussão (que rende um debate interessante em turmas motivadas). Não estamos
inteiramente convencidos de que os dialéticos sejam exatamente sonhadores, menos
ainda de que vivam no ”mundo da lua”. Da mesma forma, guardamos sérias dúvidas
sobre o caráter dos sofistas, usualmente representados como pedantes de muita lábia e
pouco conhecimento. A despeito destas dúvidas, a pequena fábula mostra, com clareza, o
predomínio do pensamento aristotélico na história do Ocidente e, a partir dele, a
importância do princípio de não-contradição.
Ao se dizer ”Pégaso é indizível”, por exemplo, se incorre em uma
autocontradição, uma vez que se está dizendo algo mais: está se dizendo algo sobre
Pégaso.59 Aquele que diz ”eu não existo” igualmente incorre em uma autocontradição -
pois se não existisse de fato, como poderia falar para negar a sua existência? Uma série
59 Mário Guerreiro. O dizível e o indizível, p. 83.
enorme de equívocos e falácias ocorrem porque se desrespeita o princípio de não-
contradição, em especial nos argumentos que definem e delimitam as coisas de que se
falam.
Quando se escuta a expressão ”isso não existe!”, sempre se pode retrucar:
”se não existe, como você pode falar disso?”. O ateu dirá ”Deus não existe”, e o religioso
(ou o lógico) poderá rebater, argumentando que se Deus não existisse, sequer se poderia
fazer uma frase em que Deus ocupasse justamente o lugar de sujeito. O ateu mais calmo,
entretanto, nesse caso poderá replicar que Deus não existe ”concretamente”; sua
existência teria tão-somente o estatuto lingüístico-imaginário,! tanto quanto os unicórnios
e as quimeras. Se quisermos, essa discussão vai longe.
Momentaneamente, a suspendemos, para reforçar que o princípio de não-
contradição é inestimável em enunciados factuais (ou atos de fala constativos), mas
problemático em juízos de valor.60
Fulano pode afirmar que nenhuma coisa pode ser vermelha e não-vermelha.
Sicrano discorda: o mesmo tomate verde fica vermelho, ao longo da mesma extensão,
quando amadurece. Diante do argumento, Fulano acrescenta duas cláusulas restritivas:
”nenhuma coisa pode ser vermelha e não-vermelha ao longo da mesma extensão e ao
mesmo tempo”. Explicitados os limites, Sicrano não conseguirá encontrar um contra-
exemplo, de modo a violar a formulação mais forte formulada por Fulano. Logo,
enunciados factuais têm de comportar a possibilidade de contradição no sentido mais
forte, de tal modo que a e não-a não possam ser verdadeiros ao mesmo tempo e sob o
mesmo ponto de vista.
Mas é válido aplicar a mesma regra aos juízos de valor? Não. Juízos de
valor podem ser obviamente contrários, mas não podem ser contraditórios, pela razão
muito simples de que eles expressam sempre um determinado e irrepetível ponto de vista,
defendendo um determinado e irredutível (a outrem) interesse. Na melhor (ou pior) das
hipóteses, se tem um dilema: ou bem Fulano e Sicrano discutem, ao analisar uma
questão de natureza ética, jurídica ou política, diferentes pontos de vista, sendo que um
não pode ”ver” o que e como o outro vê, ou bem Sicrano e Fulano simplesmente nada
têm a discutir quando um considera ruim aquilo que o outro considera bom por exemplo, a
derrota do primeiro e a vitória do segundo.
60 Idem, ibidem, p. 50.
Isto parece relativamente fácil de demonstrar, quando tratamos de tomates e
de fulanos. A questão se complica, na ciência como no cotidiano, na hora em que não se
consegue distinguir, com clareza, enunciados factuais de juízos de valor. Então, o que se
faz necessário? Argumentos cuidadosamente elaborados. A elaboração dos argumentos,
por sua vez, implica escolha criteriosa dos termos que discriminem as suas partes.
Peirce considera um erro afirmar que uma boa linguagem é importante para
o bom pensar; na verdade, uma linguagem elaborada e adequada faz parte da essência
do pensamento: ”a vida do pensamento e da ciência é a vida inerente aos símbolos”.61 Os
símbolos especiais, para o lógico, são fundamentais para manipular enunciados e
argumentos. Por que se substituíram os números romanos pela notação árabe? Porque
estes são mais fáceis de compreender do que aqueles, e, principalmente, pela facilidade
de cálculo. Qualquer menino da escola fundamental pode multiplicar sem dificuldade 113
por 9 (ou ao menos deveria poder fazê-lo). Mas multiplicar CXIII por IX é uma tarefa bem
mais difícil, e a dificuldade aumenta se considerarmos números maiores.
Da mesma maneira, analogamente, a adoção de uma notação lógica
especial facilita sobremaneira a derivação de inferências e a avaliação de argumentos -
ou deveria facilitar. A estreita relação entre a Lógica Simbólica e a Matemática se
beneficia dos procedimentos de simplificação, ao mesmo tempo que se prejudica com os
equívocos do ensino de Matemática, que torna dificílimo (e traumatizante) o que foi criado
para facilitar o pensamento.
Ocorre com o ensino de Matemática o mesmo que acontece com o ensino
de uma língua estrangeira: tenta-se ensinar uma e outra disciplina como se aprende a
língua materna, isto é, desconsiderando o que o aluno já sabe. Quando o professor de
Inglês exige que o aluno, desde os primeiros contatos com o novo idioma, não pense ”em
português”, pense apenas ”em inglês”, está não só desejando o impossível, como
forçando o aluno a abdicar do seu principal instrumento de aprendizagem: a comparação
com o que já sabe. O ensino de Matemática é na verdade o ensino de uma linguagem: ou
se beneficia da comparação direta e permanente com a língua materna (como bem
postula o professor Nilson Machado), dizendo a todo instante o que exatamente a
Matemática simplifica, ou persiste no esforço insano de esmagar o aluno com signos
apresentados da maneira mais hermética e esotérica possível, sugerindo que apenas uns
poucos escolhidos pela divindade entendem aquela cabala misteriosa.
61 Em Irving Copi. Obra citada, p. 225.
Talvez não se trate, porém, de um esforço completamente insano; talvez se
trate de um deliberado procedimento autoritário, destinado a desensinar para manter e
reforçar o micropoder do professor: quanto menos o aluno sabe, ou, quanto mais o aluno
sabe que não sabe, mais o docente reforça a sua própria posição ”superior” (e indecente).
Muitas vezes, o professor de língua materna sente inveja desse poder do professor de
Matemática, e faz predominar nas suas aulas o ”ensino” das regras gramaticais.
Enfatizando as ”orações subordinadas substantivas objetivas indiretas reduzidas de
gerúndio”, consegue efeito muito semelhante ao das aulas do colega: tédio, na melhor
das hipóteses - medo e ignorância congelada, na pior.
O fundamento destas disciplinas deve ser a simplicidade. A simplicidade é
precondição da generalidade, qualidade necessária quer aos enunciados científicos quer
às avaliações políticas. Bertrand Russell chega a recomendar o seguinte exercício:
”quando, numa frase que exprima opinião política, houver palavras que despertem
emoções diferentes mas poderosas em leitores diferentes, procuremos substituí-las por
símbolos, a, P, ( ), e assim por diante”.62
Ele dá um exemplo do pós-guerra, supondo que a seja a Inglaterra (seu
país), P a Alemanha (recém-derrotada) e 0 a Rússia (o inimigo do Ocidente, na guerra
”fria” que se sucedeu à Segunda Grande Guerra). Diz que, enquanto nos lembrarmos do
que essas letras gregas significam, só conseguiremos formular hipóteses que dependam
estreitamente do fato de se ser inglês, alemão ou russo, o que deveria ser logicamente
irrelevante.
Na álgebra elementar, ao resolvermos problemas relativos a A e J, subindo
uma determinada montanha, não mostramos interesse emocional sobre as identidades ou
qualidades dos senhores (ou senhoras) a que os símbolos se referem, procurando
encontrar a solução do caso com correção impessoal. Mas, se pensamos que a somos
nós mesmos, P o nosso odiado rival e )) o professor que apresentou o maldito problema,
os nossos cálculos sofrem perigosa interferência emocional: fazemos todo o possível para
a ser o primeiro e (j) o último. Ora, quando deparamos com questões políticas, essa
espécie de interferência emocional mostra-se mais grave, e tornam-se necessários
cuidado e prática para refletirmos com a generalidade que usamos diante de um problema
algébrico.
62 Bertrand Russell. Obra citada, p. 45.
Esse é o valor, propriamente ético, da Matemática, da Lógica e,
extensivamente, do argumento dedutivo. Aquele que argumenta deve ostentar uma
postura semelhante à do médico, que tenta salvar vidas incondicionalmente; não lhe
interessa a personalidade, o caráter, os feitos ou malfeitos do seu paciente.63 É irrelevante
se a pessoa de que cuida é herói ou monstro. De forma equivalente, aquele que
argumenta deve buscar princípios suficientemente gerais que orientem o seu raciocínio,
desvinculando-o, o máximo possível (porque a neutralidade absoluta é humanamente
impossível), das suas emoções e idiossincrasias.
A generalidade, a notação abstrata, a economia de meios, fornecem as
condições de possibilidade do argumento dedutivo. A arte, na pintura, na literatura, na
música, na escultura, na dança, busca a mesma economia de meios para conquistar um
poder de representação maior. Assim como a, P e t , a Lógica usa uma série de símbolos
e operadores lógicos para simplificar e demarcar os seus argumentos. No entanto, não
fazem parte do escopo deste livro os diversos operadores lógicos bem como as tabelas-
verdade; podem ser encontrados em diversos manuais de Lógica (observar, ao final, na
nossa estante). Vamos nos preocupar, antes, com a aplicação dos princípios da lógica
formal à argumentação. Nesse sentido, um dos conceitos básicos para orientar toda
argumentação é o conceito de pressuposição.
É importante explicitar o máximo possível todas as premissas do argumento,
mas de fato não é possível explicitar todos os pressupostos de cada sentença. Por
definição, um pressuposto é pré-suposto, ou seja, é uma suposição que se põe como
condição prévia ao discurso, sem que necessariamente se precise enunciá-lo.
Entretanto, em uma discussão, cabe aos interlocutores justamente
discutirem as pressuposições um do outro, para melhor se convencerem um ao outro (ou
o outro ao um). É possível discordar de determinada afirmação explicitando a sua
pressuposição e inferindo o absurdo, não exatamente da afirmação, mas dos seus
pressupostos. Se em um interrogatório se pergunta, por exemplo, ”onde você gastou o
dinheiro que roubou?”, está pressuposta uma pergunta anterior - ”foi você que roubou o
dinheiro?” - e sua resposta afirmativa.
É preciso supor várias idéias para se começar a pensar e a argumentar. Não
à toa os manuais de Matemática principiam os seus problemas com ”suponhamos que...”.
63 Cynara Nahra. Obra citada, p. 85.
Em decorrência, os enunciados dedutivos são eminentemente condicionais: se isto, então
aquilo. Chamam-se, propriamente, enunciados condicionais, hipotéticos ou implicativos:
se a, então P. Representa-se também desse modo: a Z) P. Deve-se prestar atenção,
sobremaneira, à relação entre eles, indicada pelo símbolo de implicação (D): ela é mais
importante do que a verdade ou a falsidade dos termos isoladamente. ”Um enunciado
condicional afirma que seu antecedente implica seu conseqüente. Não afirma que seu
antecedente seja verdadeiro, mas unicamente que, se seu antecedente for verdadeiro,
então seu conseqüente também será verdadeiro. Tampouco afirma que o conseqüente é
verdadeiro, mas apenas que o conseqüente é verdadeiro se o antecedente o for”.64
com esses termos, vamos construindo a teoria da argumentação. Nela,
importa perceber que termos, ou conceitos, como pressuposição, enunciado, hipótese,
declaração, proposição, premissa, conclusão, são eminentemente termos relativos.65 A
consciência do signo implica, portanto, a consciência do caráter relacional, logo, dinâmico,
móvel, das idéias que o argumento expressa (seria mais preciso dizer: das idéias que o
argumento movimenta).
A verdade não se encontra em a, ou p; a verdade não pertence a Fulano, ou
Sicrano (tampouco a Beltrano); a verdade lógica reside no movimento e nas relações: em
z , Z), — , —, T, i, , r4, isto é, no x .
Há duas perspectivas pelas quais se pode avaliar a qualidade de um
argumento: pela sua verdade ou pela sua validade. No primeiro caso, questionamos a e
P: perguntamos sobre a verdade dos termos. No segundo caso, questionamos Z):
perguntamos sobre a validade da relação que se estabeleceu.
No cotidiano, nos discursos, nas redações, a ordem dos termos no
argumento varia enormemente; é muito comum, por exemplo, o conseqüente se
apresentar antes do antecedente. Observe-se a passagem, extraída do romance Dom
Quixote: ”estes livros não merecem ser queimados como todos os demais, porque não
fazem, nem farão, os danos que os de cavalaria têm feito; são obras de entretenimento,
sem prejuízo de terceiros”. Se quisermos colocar o argumento na forma lógica padrão,
explicitando inclusive algumas das suas pressuposições, poderíamos esquematizar
assim:
64 Irving Copi. Obra citada, p. 235. 65 Idem, ibidem, p. 23.
*Todo livro que prejudique as pessoas merece ser queimado.
* Estes livros são obras de entretenimento.
* Estes livros não causam prejuízo a terceiros.
* Estes livros não fazem os danos que os de cavalaria têm feito.
* Estes livros não merecem ser queimados.
Diz-se que um argumento se encontra na ”forma lógica padrão” quando as
premissas e a conclusão estão ordenadas: primeiro aquelas, depois esta. Entre as
premissas e a conclusão pode-se interpor um traço contínuo, que representa o indicador
de conclusão: ”então, logo”...66
Aprender a colocar os argumentos na forma lógica padrão é importante por
dois bons motivos: primeiro, para planejar o próprio argumento antes da sua redação final
(conferir o capítulo anterior), verificando previamente a força, ou a fraqueza, das suas
premissas; segundo, para combater melhor o argumento de outrem, investigando a
fraqueza, ou a força, das suas premissas.
Somente a partir da explicitação e esquematização do argumento, podemos
verificar os seus valores de verdade e as suas condições de validade. Importa atentar
para o fato de que verdade ou falsidade podem ser atributos das premissas e das
proposições iniciais, mas nunca dos argumentos. Do mesmo modo, propriedades de
validade ou invalidade podem pertencer a argumentos dedutivos, mas nunca a
proposições.67
Estas restrições são fundamentais. Costumamos refutar argumentos alheios
in totum, o que não só enfraquece a nossa refutação, porque há certamente partes
desses argumentos verdadeiras (todo mundo tem razão - alguma...), como nos faz perder
a oportunidade ímpar de aprendermos alguma coisa com perspectivas diferentes da
nossa (ainda que calçadas em premissas possivelmente falsas).
Estabelecer a verdade de quaisquer premissas é sem dúvida complicado.
Na verdade, convencionam-se algumas coisas como verdades, salvo melhor juízo, para
permitir-nos pensar, argumentar, conviver, fazer ciência, fazer amigos, fazer amor, e
66 Cynara Nahra. Obra citada, p. 103. 67 Irving Copi. Obra citada, p 38.
assim por diante. Estas convenções são absolutamente necessárias, é claro, mas volta e
meia um filósofo aparece para balançar as nossas verdades.
O que é então a verdade? Uma multiplicidade incessante de metáforas, de
metonímias, de antropomorfismos, em síntese, uma soma de relações humanas que
foram poética e retoricamente elevadas, transpostas, ornamentadas, e que, após um
longo uso, parecem a um povo firmes, regulares e constrangedoras: as verdades são
ilusões cuja origem está esquecida, metáforas que foram usadas e que perderam a sua
força sensível, moedas nas quais se apagou a impressão e que desde agora não são
mais consideradas como moedas de valor, mas como metal.68
Estabelecer a validade de um argumento, por outro lado, por estranho que
pareça à primeira vista, é bem mais simples. Isto acontece porque as regras de validade
são estabelecidas conscientemente por nós, enquanto os critérios que separam a verdade
da falsidade se encontram diluídos e espalhados na ”natureza” e na ”realidade”, de tal
modo que não temos acesso direto a eles.
Isto não significa que devemos abdicar completamente de discutir a verdade
das premissas de um argumento - até porque, mesmo se disséssemos tal coisa, todos
continuaríamos questionando a verdade disto e daquilo. Devemos, aí sim, guardando
sempre o primado da dúvida, desconfiar das verdades estabelecidas, inclusive e
principalmente por nós mesmos.
Mas, para que a desconfiança não se transforme num ceticismo estéril,
improdutivo, não há melhor atalho do que estudarmos as condições de validade dos
argumentos.
O que importa saber? Que há: (1) argumentos válidos e verdadeiros; (2)
argumentos com premissas e conclusão falsas que, no entanto, são válidos; (3)
argumentos com premissas e conclusão verdadeiras que, no entanto, não são válidos; (4)
argumentos inválidos com premissas falsas e conclusão verdadeira, ou o contrário: com
premissas verdadeiras e conclusão falsa.
”Considerando que todas as baleias são mamíferos e que todos os
mamíferos têm pulmões, deduz-se que todas as baleias têm pulmões” é um argumento do
tipo 1. ”Considerando que todas as aranhas têm seis pernas e que todos os seres de seis
68 Friedrich Nietzsche. Crepúsculo dos ídolos, p. 69.
pernas têm asas, deduz-se que todas as aranhas têm asas” é um argumento do tipo 2:
com premissas e conclusão falsas, no entanto, válido. ”Se nós possuíssemos todo o ouro
do Banco Central, seríamos muito ricos; porém, como não possuímos todo o ouro do
Banco Central, não somos ricos” já é um argumento do tipo 3, com premissas e conclusão
verdadeiras (podemos garantir), porém, inválido. Em contrapartida, o argumento ”se Bill
Gates possuísse todo o ouro do Forte Knox, seria muito rico, mas, como não possui todo
esse ouro, ele não é rico” é do tipo 4, com premissas verdadeiras e conclusão falsa.
Definimos um argumento como válido quando a sua conclusão segue
necessariamente das premissas. No argumento válido, portanto, é impossível que, sendo
verdadeiras as premissas, seja falsa a sua conclusão. Definimos um argumento como
inválido quando a sua conclusão não segue necessariamente das premissas. No
argumento inválido, portanto, é possível que, mesmo sendo verdadeiras as premissas,
seja falsa a sua conclusão.
Se considerarmos que um mês tenha 365 dias e que um ano tenha 31 dias,
então, necessariamente, um mês abrangerá um período de tempo maior do que um ano.
O argumento é válido, ainda que as duas premissas sejam falsas (ou melhor, ainda que
as duas premissas estabeleçam convenções opostas àquelas a que estamos habituados).
Digamos que um político emita o seguinte juízo, na sua campanha eleitoral:
se um partido é mais organizado, devemos votar nele; ora, o meu partido é mais
organizado; logo, vocês devem votar nos candidatos do meu partido, e um destes
candidatos sou eu mesmo. Para respaldar sua tese, ele mostra, no programa eleitoral da
televisão, diferentes professores de Lógica que, confrontados com o seu argumento,
disseram que o seu argumento era válido.
Então, argumentos válidos são argumentos cínicos? Não. Nesse caso,
acresce-se à validade do argumento uma dose desagradável de malandragem. Os
professores de Lógica tinham de afirmar que o argumento era válido, o que não significa,
necessariamente, qualquer tipo de apoio ao político em questão. Quando a lógica diz que
o argumento X é válido, diz apenas que, se as suas premissas são verdadeiras, a
conclusão forçosamente o será. Nada impede, entretanto, que se questione exatamente a
veracidade das premissas, como certamente aqueles mestres teriam feito: deve-se votar
no partido mais organizado, ou naquele que apresenta as melhores propostas e as
melhores condições de implantá-los, das quais a organização interna é apenas um dos
aspectos, talvez nem o principal? Ainda: supondo verdadeiro que se deva votar no partido
mais organizado, quais são as evidências que garantem que o partido do Fulaninho seja
de fato o mais organizado?
E ainda se podem questionar algumas pressuposições anteriores que estão
implícitas, como, por exemplo, a pressuposição de que se deva votar, ou que se deva
votar em Fulano ou Beltrano. Há quem faça campanha pelo voto nulo, como há quem
faça campanha contra o voto obrigatório - com bons argumentos.
Os argumentos transformam-se, como vimos, em teorias. O fundamento
destas e daqueles é a hipótese básica, ou o conjunto de hipóteses básicas. Irving Copi
define alguns critérios, habituais nos procedimentos científicos, para se julgar o valor e a
aceitabilidade das hipóteses. Podemos recorrer a eles para estudar os nossos
argumentos e dos demais. Seus critérios são: d relevância; © compatibilidade com
hipóteses prévias bem estabelecidas; (D poder preditor ou explicativo; © possibilidade de
submissão a teste; (D simplicidade.69
Parece óbvio (mas não custa enfatizar) que a hipótese deve ser relevante
para o fato que pretende explicar, isto é, o fato deve ser deduzível da hipótese proposta.
Também parece razoável que uma hipótese nova seja compatível com as demais
hipóteses existentes e bem estabelecidas, e que não sejam diretamente modificadas pela
nova hipótese. Da mesma forma, o leitor deve aceitar com facilidade que a hipótese em
questão explique os fenômenos de que trata, ou até mesmo permita-nos fazer previsões a
partir dos fenômenos explicados. Mas queremos chamar a sua atenção para os dois
últimos critérios.
Todo argumento deve poder ser refutado, e os meios para a refutação
devem estar contidos, explicitamente, no corpo do argumento. É o que empresta todo o
caráter dialógico (poderíamos dizer, também, democrático) ao argumento.
Recentemente, um cientista disse ter clonado uma ovelha (chamou-a Dolly),
mas não divulgou suficiente e extensivamente o seu experimento, impedindo quer que se
comprovasse, por outros cientistas em outros laboratórios, a possibilidade de clonagem
de seres vivos e complexos, quer que se refutasse o seu experimento. Sofreu, em
decorrência, uma série de censuras gravíssimas, feitas por seus pares e pela imprensa.
”Deus existe, porque eu creio Nele” pode ser uma bela afirmação de fé, mas
69 Irving Copi. Obra citada, p. 386.
não é um argumento; não se pode provar nem que Deus exista, nem que Deus não
exista, porque o enunciado não dá condições de refutabilidade ou de testabilidade ao
interlocutor.
O critério da simplicidade, por sua vez, pode gerar algum estranhamento ao
leitor preocupado com a complexidade do mundo, das pessoas e das coisas. Se nada é
simples, como uma teoria, um argumento, devem ser simples? Simplesmente porque o
pensamento e o discurso representam esforços, ainda que no limite impossíveis, de
simplificar o que se observa. O critério exclusivo da simplicidade não se sustenta, mas
sem ele não há ciência ou argumentação. Em todos os tempos, em todos os tribunais, em
todas as cátedras, a melhor explicação é aquela que, sendo relevante, sendo compatível
com hipóteses prévias, sendo capaz de formular conseqüências e previsões para diante e
sendo passível de submissão a teste, seja também a mais simples, ou seja: mais
genérica, capaz de convencer mais gente, portanto de produzir (no sentido construtivo do
termo) mais conhecimento.
Nesse momento, já podemos dar um nome à forma lógica padrão, que
representa o máximo de simplicidade a que pode ser reduzido um argumento dedutivo.
Desde Aristóteles, a forma nobre do raciocínio chama-se ”silogismo”. Se
tentássemos fazer a etimologia dessa palavra, mas sem consultar o dicionário apropriado,
seríamos tentados a enxergar sob ela a expressão ”se-é-lógico”, baseados na estrutura
condicional ”se — então”, que funda a lógica e o raciocínio. Entretanto, se consultarmos o
dicionário adequado, veremos que a palavra vem de um termo grego que significa ”juntar
os feixes de feno”. O silogismo, portanto, é uma estrutura argumentativa que junta a com
(3 através de Q, isto é, através de um termo médio.
Pela ênfase da lógica grega no argumento dedutivo, costuma-se subsumir o
silogismo à dedução, simplesmente. No entanto, há controvérsias. Pascal Ide, por
exemplo, considera que o raciocínio dedutivo parte do geral para o particular, enquanto o
silogismo partiria do geral para o geral mesmo: ”com efeito, o silogismo se pratica antes
de tudo sobre matéria universal, não sobre singulares que são contingentes”.70
Com ele concorda Ferrater Mora,71 ao defender, no verbete apropriado, que
o célebre silogismo ”todos os homens são mortais; ora, Sócrates é homem; logo, Sócrates
70 Pascal Ide. Obra citada, p. 105. 71 José Ferrater Mora. Dicionário de filosofia, p. 643.
é mortal” na verdade não o é, porque contém um termo singular.
Para ambos, o silogismo é a forma do raciocínio que permite o discurso
científico, relacionando duas premissas universais que jamais se havia pensado em
aproximar até então, fazendo dessa aproximação fonte de nova compreensão. Assim se
teriam realizado as grandes invenções, como a de Louis de Broglie, quando inventou a
mecânica ondulatória, aproximando ”onda” e ”corpúsculo” - atribuindo uma onda a todo
corpúsculo.
Em boa parte dos manuais de lógica, entretanto, o silogismo nos é
apresentado através do ”exemplo clássico de Aristóteles”, aquele que conclui pela
mortalidade de Sócrates. Só que isso é, primeiro, uma injustiça histórica (Aristóteles
jamais apresentou esse exemplo), e, segundo, um erro lógico, se o silogismo não se
pratica sobre singulares contingentes, mas sobre universais.
O falso silogismo da mortalidade de Sócrates seria na verdade uma
caricatura do silogismo, responsável por certo desprezo dos alunos pela lógica. Parece,
de fato, um tanto ou quanto inútil gastar três frases para emitir o óbvio ululante. O filósofo
tcheco-brasileiro Vilém Flusser, num texto rigorosamente lógico e logicamente engraçado,
publicado no jornal Folha de S. Paulo de 24 de março de 1972, caricaturou, por sua vez,
essa caricatura do silogismo, com a ajuda de um animal que não existe (mas que, apesar
disso, é bastante poderoso, como, aliás, grande parte das coisas que não existem).
Embora não sejam, a rigor, animais domésticos, são, no entanto,
extremamente úteis ao homem. A sua utilidade varia com o tempo. Na Antigüidade o seu
chifre servia, apropriadamente moído, como remédio contra todos os venenos. Na Idade
Média o unicórnio servia como atributo da virgindade, portanto tinha utilidade pública
incontestável. No romantismo e pós-romantismo foi amplamente utilizado como tema de
poesias (embora a palavra ”unicórnio” não tenha muitas rimas nas línguas latinas). E
atualmente é indispensável para livros de lógica e teoria do conhecimento.
Com efeito, tais livros não poderiam existir, se o unicórnio não existisse, e
nem, se existisse.
Para prová-lo, tomemos as seguintes sentenças:
1. A maçã é verde.
2. O sangue é verde.
3. Deus é verde.
4. A liberdade é verde.
5. O presente rei da França é verde.
6. O unicórnio é verde.
A primeira sentença pode ou não ser verdadeira. A segunda é falsa. Ambas
têm sentido. As demais sentenças não têm sentido. Pois isto é fácil dizer-se, e fácil
verificar-se, já que, ao dizermos tais sentenças, estamos segurando a risada. Por não
terem sentido tais sentenças, são ridículas e divertidas. Difícil é dizer por que tais
sentenças não têm sentido.
Seria fácil se pudéssemos dizer que tais sentenças não têm sentido, porque
os seus sujeitos, a saber, Deus, a liberdade, o presente rei da França e o unicórnio, não
existem. Mas não podemos dizê-lo.
Não se pode dizer que Deus não existe, porque seria primeiro necessário
definir o termo ”Deus”. Coisa impossível. Não se pode dizer que a liberdade não existe,
porque a sua presença ou ausência são nitidamente constatáveis. A sentença ”a
liberdade é verde” não tem sentido, embora a liberdade exista. Não se pode dizer que o
presente rei da França não existe, sem dizer-se, também, quando se está falando. Por
exemplo: no século XVII existia um rei da França que estava presente, e a sentença era
então provavelmente falsa, e tinha portanto sentido.
Mas, quanto ao unicórnio, todos estão de acordo que não existe. Portanto
podemos dizer claramente porque a sentença ”o unicórnio é verde” não tem sentido. O
único caso nítido entre os exemplos fornecidos.
Não fosse o unicórnio, e os livros de lógica e teoria de conhecimento não
teriam sentido. Não teriam sentido, porque não poderiam exemplificar o que quer dizer:
”não ter sentido”. Isto seria uma pena, especialmente para professores de lógica e teoria
do conhecimento.
Mas, felizmente, há unicórnio, e Sócrates é seu fiel companheiro. Assim:
Sócrates é mortal, e o unicórnio é verde. Viva a cultura.
O curto texto de Flusser resume de maneira clara e cômica (talvez clara
porque cômica) algumas das principais discussões filosóficas sobre verdade, falsidade e
lógica. Em outro espaço (na sala de aula, por exemplo), merece debate e diferentes
explorações.
No momento, queremos chamar a atenção para o silogismo como um
recurso nobre do raciocínio, na medida em que exibe um esquema de relação entre
premissas, a partir da hipótese inicial, capaz de fazer andar o argumento e o pensamento.
Os manuais de lógica discriminam os silogismos em diferentes formas válidas, com
diversas figuras secundárias. Nas aulas de Matemática e Filosofia, seria importante
trabalhar e exercitar essas diferentes formas. Condensaremos, no entanto, as variantes
do silogismo em um esquema-padrão. O nosso esquema-padrão de um silogismo válido,
então, seria o seguinte:
TODO O - p ORA, TODO a -»Q
LOGO a - P
A primeira sentença do argumento é a premissa maior, contendo, nesse
caso, o termo predicado (p) da conclusão. A segunda sentença do argumento é a
premissa menor, contendo, nesse caso, o termo sujeito (a) da conclusão. Nas duas
sentenças, há um termo médio (Q), que deve necessariamente alternar a sua posição
sintática nas duas primeiras sentenças e não aparecer na conclusão. A conclusão, a partir
do termo médio, vai estabelecer a ligação lógica entre a e 0.72
O silogismo, para ser válido, deve obedecer ao esquema-padrão,
independentemente da verdade ou falsidade das suas premissas. Nesse sentido, um
exemplo de silogismo válido seria:
Todos os SAIS DE SÓDIO são substâncias solúveis em água. Ora, todos os
sabões são SAIS DE SÓDIO.
Logo, todos os sabões são substâncias solúveis em água.
Como se vê, o termo médio, ”sais de sódio”, encontra-se no sujeito da
premissa maior e no predicado da premissa menor, permitindo a articulação lógica, entre
os outros dois termos, na conclusão (observe-se, entre parênteses, como os termos da
72 Irving Copi. Obra citada, p. 168.
Gramática se relacionam diretamente com a lógica clássica).
Já o silogismo seguinte não é válido, porque o termo médio não é de fato
médio, apresentando-se no predicado das duas premissas, e não apenas em uma.
Todos os comunistas são PROPONENTES DA MEDICINA SOCIALIZADA.
Alguns Ministros são PROPONENTES DA MEDICINA SOCIALIZADA.
Portanto, alguns Ministros são comunistas.
Nesse caso, o esquema não-válido é:
TODO (3 - Q ORA, TODO a - Q
LOGO a - P
Pode-se demonstrar a não-validade do argumento aplicando a mesma
estrutura lógica em um outro raciocínio, cujas premissas, de tão óbvias, dêem o flagrante
do equívoco.
Todos OS coelhos são CORREDORES MUITO VELOZES. Ora, alguns
cavalos são CORREDORES MUITO VELOZES.
Portanto, alguns cavalos são coelhos.
Obviamente, os termos do silogismo não se podem modificar no decorrer do
argumento: ”um silogismo categórico válido deve conter exatamente três termos, cada um
dos quais deve ser usado no mesmo sentido durante todo o raciocínio ou argumento”.73
Se essa regra não é obedecida, se dá a falácia quaternio terminorum (dos quatro termos).
Por volta de 1930, a política oficial do Japão expressava-se na forma de um
silogismo que disfarçava a falácia.
Todas as tentativas para pôr fim às hostilidades entre dois países devem ser
aprovadas por todas as nações.
Ora, o Japão tenta pôr fim às hostilidades entre ele e a China.
Logo, a ação do Japão na China deve ser aprovada por todas as nações.
73 Idem, ibidem, pp. 184-9.
A premissa maior pressupõe tentativas pacíficas, enquanto a premissa
menor disfarçava que as tentativas do país em questão eram pela via da guerra, ou seja,
da hostilidade mesma; ”pôr fim às hostilidades” não implicava um acordo, mas a derrota
da China. Em conseqüência, o termo médio não era de fato médio, pois se usava com
dois sentidos diferentes.
Para encerrar esta seção, cabe enfatizar que silogismos válidos não são
garantia da verdade final do argumento. Podem-se usar silogismos perfeitamente válidos
defendendo pontos de vista rigorosamente opostos. A verdade deve ser procurada
(mesmo que nunca a encontremos plenamente) nas premissas, que contêm, ou deveriam
conter, as evidências que ancoram o argumento.
A ÂNCORA DO ARGUMENTO
As evidências que sustentam o argumento constituem, normalmente, os
fatos elencados. Estes fatos são as âncoras do raciocínio. As âncoras são fundamentais,
pois sem elas o navio e o pensamento não podem aportar no cais e, finalmente, dizerem
ao que vieram. A principal preocupação que se deve ter com os fatos é equivalente à que
se deve ter com as âncoras: volta e meia é necessário ”levantar âncora!”, com ponto de
exclamação e tudo, para buscar novos fatos e lançar, portanto, novas âncoras.
O processo da ancoragem é também conhecido por método indutivo. Em
trajeto inverso à dedução, a indução parte do particular para o geral. Na verdade, um
argumento que seja apenas indutivo, ou seja, que apenas enumere fatos, não chega a ser
exatamente um argumento - é no máximo uma coletânea. Como quisemos demonstrar, os
argumentos iniciam seu movimento dedutivamente, pela construção da hipótese geral,
vale dizer, da premissa maior, e a seguir se sustentam pela premissa ou premissas
menores, que contêm, propriamente, os fatos, ou seja, o princípio indutivo.
Da mesma forma que o silogismo se avalia, primeiro, pela validade da sua
estrutura e, depois, pela verdade das suas premissas, o raciocínio indutivo se avalia pela
pertinência, relevância e suficiência dos fatos que elenca, das evidências que apresenta.
Os fatos são pertinentes se pertencem ao campo do argumento. Os fatos
são relevantes se, pertencendo ao campo do argumento, têm relação direta com a
hipótese básica. E os fatos são suficientes se, pertencendo ao campo do argumento e
tendo relação direta com a hipótese básica, aparecem em número suficiente para
corroborar a hipótese básica. Quando os fatos são suficientes, se dá o inductive leap, isto
é, o pulo indutivo, permitindo a passagem do reconhecimento das evidências para a
conclusão. Esse ”pulo” muitas vezes toma a forma de um insight, daquilo que chamamos
também como ”estalo”, ou ”eureka!”, sugerindo um momento de iluminação que, na
verdade, foi iluminado pela articulação entre a relevância, a pertinência e a suficiência dos
fatos.
O procedimento indutivo, que coleciona os fatos para sustentar a hipótese
definida a princípio, recorre à observação direta (com os próprios sentidos), à observação
indireta (ou seja, à observação e à pesquisa dos outros, através de jornais, livros e outros
meios de comunicação), e ao testemunho autorizado (ou seja, à observação e pesquisa
de pessoas que se reconhecem como autoridades e especialistas no campo do
argumento em questão).
Enquanto os argumentos propriamente dedutivos podem nos conduzir a
conclusões válidas (não necessariamente verdadeiras), os argumentos exclusivamente
indutivos somente podem nos conduzir a conclusões prováveis (e não obrigatoriamente
verdadeiras). Isto se dá porque é absolutamente impossível, a qualquer pessoa, cientista
ou não, conhecer tudo, conhecer todos os fatos. Por mais extensa que seja a nossa
pesquisa e a nossa leitura, conhecemos tão-somente uma parcela ínfima dos fenômenos,
o que nos permite apenas tecer hipóteses momentaneamente fecundas.
”Jura dizer toda a verdade, nada mais do que a verdade e somente a
verdade?” O lógico, no tribunal, só poderia responder, logicamente, ”não”. Não nos foi
dado conhecer toda a verdade. Reza o sábio (e um pouco cínico) ditado popular que
existem três verdades: ”a minha, a sua, e a verdade mesma” e a essa última, por
decorrência (lógica), não temos o menor acesso. ”A verdade é não-toda”, enunciou, com
rara precisão e simplicidade, o psicanalista Jacques Lacan. Por isso, de determinada
seqüência de fatos pertinentes, relevantes e suficientes, se podem inferir conclusões mais
ou menos prováveis, conforme o conhecimento e a capacidade de leitura e argumentação
dos interlocutores.
Uma maneira, indireta, já que por via direta não é possível, de demonstrar
que não podemos conhecer tudo de coisa alguma se encontra na sensação com a qual
depara todo e qualquer estudioso, ao estudar com afinco o seu assunto: descobre que,
quanto mais estuda, quanto mais aprende e sabe, mais aprende e sabe o quanto ainda
não sabe, isto é, mais descobre a extensão da sua ignorância. Não é outro o fundamento
do emblema da filosofia em todos os tempos, enunciado presumivelmente por Sócrates
ao fim da vida: ”só sei que nada sei”.
Entretanto, isto não desanima o verdadeiro pesquisador, uma vez que se lhe
dá a sensação divina do infinito e da imortalidade, pois sempre é possível uma nova
viagem na direção de um cais desconhecido. O que importa ter em mente é que os fatos
não existem independentes da interpretação que lhes sobrepomos, e que qualquer
interpretação sempre pode ser posta sub júdice.
Tome-se como exemplo uma experiência banal e recorrente de
condicionamento de animais. Colocam-se dois ratos em uma gaiola, que contém uma
alavanca. A cada vez que o rato aperta a alavanca, o pesquisador põe comida na gaiola.
Desse modo, acredita o pesquisador estar ensinando, ou condicionando, o rato a pedir a
sua comida. A repetição dos fatos - rato apertando alavanca, e em horários mais ou
menos previsíveis, sinalizando a fome do animal - sugere a seguinte interpretação,
behaviorista: os animais podem ser condicionados pelos seres humanos, o que permite
deduzir uma outra hipótese, correlata: os seres humanos poderiam também ser
perfeitamente condicionados por outros seres humanos.
Entretanto, antes de discutir a hipótese derivada, que coloca no mesmo
patamar o rato e nós outros, podemos levantar uma hipótese alternativa, que explicaria a
regularidade do movimento do ratinho em relação à alavanca da sua gaiola. É o que faz
cartum publicado no Time em setembro de 1971.74 Dois ratinhos conversam numa gaiola.
O que está com a mão na alavanca diz para o outro: ”companheiro, você não calcula
como eu condicionei esse tipo lá fora. É só dar um apertãozinho na alavanca e ele me dá
um pedaço de comida”. De maneira cômica, é claro, o desenho alude à possibilidade de o
rato ter condicionado o cientista. Não é possível? Por que não? Na verdade, não
podemos conhecer o ponto de vista do animal assim como não podemos conhecer o
ponto de vista de qualquer outro, ser humano ou não. Dependemos de mediações para
supor a perspectiva que nos é alheia.
Jan Baptist van Helmont, médico e químico flamengo, foi, no século XVII, um
cientista sério, com contribuições importantes: inventou a palavra ”gás” e descobriu os
sucos gástricos. Mas também se pode ler, em suas Obras de medicina e de física,
datadas de 1648: ”Faça um buraco num tijolo, ponha ali erva de manjericão bem triturada.
Aplique um segundo tijolo sobre o primeiro e exponha tudo ao sol. Alguns dias mais tarde,
tendo o manjericão agido como fermento, você verá nascer pequenos escorpiões”.75 Sua
receita para produzir ratos é pior ainda: ”basta comprimir uma camisa de mulher - uma
camisa um pouco suja, de preferência - num vaso guarnecido de frumento... Um fermento
vindo da camisa, transformado pelo odor dos grãos, transforma em rato o próprio trigo.
Isso é ainda mais admirável porque os ratos nascidos do trigo e da camisa não são
filhotes, não estão mais mamando, não são minúsculos nem abortados, mas são muito
bem formados e podem pular”.
Helmont descreve uma experiência, que supostamente, presumivelmente,
comprovaria a tese da geração espontânea. Supondo nós a boa-fé do químico,
poderíamos elencar uma série de hipóteses alternativas que explicassem o aparecimento
74 Em Rubem Alves. Filosofia da ciência, p. 131.
dos escorpiões no tijolo e dos ratos adultos na camisa (de mulher), mas não sem antes rir
um pouco da besteira.
Entretanto, não foi dessa maneira que os seus contemporâneos o leram. Ele
foi levado a sério. Talvez isso não tenha acontecido porque os ”daquela época” diziam e
aceitavam mais besteiras, mas sim porque todos estejamos demasiado próximos da
nossa própria época para termos noção clara das suas bobagens; os que virão não
perderão a oportunidade de rir de nós (quiçá até mesmo, e por que não, dessa ingênua
Educação pelo argumento).
Experiências meticulosas podem produzir erros crassos, simplesmente
porque toda experiência, como aliás qualquer fenômeno, pode ser lida e interpretada de
diferentes maneiras, algumas das quais se revelarão, mais tarde, absurdas. Três sábios
do século XVIII, o biólogo Buffon, o microscopista Joseph Needham e o zoólogo Louis
Daubenton, decidiram provar a perfeita igualdade dos sexos. Para isso, precisavam
demonstrar que as fêmeas também produziam espermatozóides.
Providenciaram uma cadela no cio e um macho ardente. Mal termina o coito,
a cadela é morta, aberta e seu útero dissecado. Como está inundado de vermes
espermáticos, considera-se a experiência um sucesso! Contempla-se, pela primeira vez,
os animálculos fêmeos; ”os três doutores sequer sonharam em pensar que se tratava do
esperma do macho, persuadidos de que não teria havido tempo para que ele subisse tão
rapidamente a dezena de centímetros que separa a vagina dos ovários”.76
A experiência dos três sábios, independente da crueldade com a cadela
(mas claro, tudo em nome da ciência), é uma dentre muitas histórias equivocadas. O livro
que a contém, Penso, logo me engano: breve história do besteirol científico, de
JeanPierre Lentin, é um daqueles que deveria não só se encontrar nas estantes de todas
as salas de aula e de professores, como ser lido e discutido, meticulosamente, no ensino
médio. Seria uma espécie de antídoto mais do que necessário ao cientificismo e seu
triunfalismo perigoso.
Um dos efeitos colaterais nefastos da escola e seus sistemas fechados de
avaliação é o desenvolvimento da leitura ”bíblica”, isto é, acrítica e reverente, de tudo o
que está nos livros. Ou se aceita sem pensar, ou se recusa por não entender; em ambos
75 Em Jean-Pierre Lentin. Penso, logo me engano, p. 136. 76 Idem, ibidem, p. 186.
os casos, a postura passa longe da inteligência.
Charge publicada na Newsweek (não identificamos o autor) em dezembro de
1997 ironiza toda a Genética contemporânea, colocando sob suspeição, através do
humor, as experiências do nosso final de século. Na charge, circunspectos pesquisadores
estão ”levantando” os genes responsáveis pela gordura, pela homossexualidade, pela
disposição para o trabalho, pelo alcoolismo, quando irrompe no laboratório o cientista que
diz alegremente ter descoberto o gene responsável por eles pensarem que tudo é
determinado pelos genes: ”Eureka!... I’ve discovered the gene that makes us think that
everything’s determined by genes!”. A piada não quer ser apenas engraçada; remete,
ainda, à inevitável antropomorfização que fazemos de tudo o que observamos ou
experimentamos. Chama a atenção para o que dizemos desde o princípio: para
observarmos o mundo e os seus fenômenos, colocamos antes os óculos da hipótese.
Sem uma hipótese prévia, nem poderíamos abrir os olhos: a realidade nos cegaria.
Isto não significa, todavia, uma recusa da ciência e dos fatos, mas todo o
contrário. Implica uma assunção do caráter hipotético do pensamento e da ciência, bem
como a necessidade de ancorar todos os nossos argumentos nos fatos e nas evidências -
desde que se reconheça que as evidências o são em termos relativos: relativos aos
nossos limites perceptivos.
Essa condição relativa é que faculta a uma determinada verdade poder ser
válida em tal contexto, mas inválida em outro. A teoria quântica, por exemplo, se aplica ao
infinitamente pequeno, mas não se aplica ao macrocosmo, assim como os princípios da
astronomia não se aplicam diretamente, sem mediação, ao mundo dos átomos. Há toda
uma geração de cientistas, de físicos, procurando a teoria ”final”, isto é, a teoria tão ampla
e tão simples que realmente abarque todos os fenômenos que existem para serem
descritos - entretanto, essa teoria ainda não foi escrita.
As ”pontes” entre uma teoria e outra, entre uma ciência e outra, costumam
se transpor através de analogias. As analogias são argumentos fortemente persuasivos,
porque concretizam, através de imagens e de articulações com o que os interlocutores já
conhecem, reflexões e conclusões sobre o que ainda não se conheça. Conquanto sejam
sempre usadas, mesmo em textos acadêmicos, o procedimento científico mais rigoroso
recomenda que se suspeite de todas as analogias, na medida em que elas se revelam,
via de regra, como logicamente fracas - exatamente porque misturam princípios e
estruturas de pensamento mais ou menos incompatíveis.
Pergunte-se o que acha de um tema como o ”amor” a um cardiologista, a um
psicanalista, a um biólogo, a um estatístico, a um roteirista de novelas televisivas, a um
sexólogo, a um religioso, a um sociólogo, a um historiador das mentalidades. A ciência de
cada um dos inquiridos condicionará, de maneira decisiva, as respostas. Como se trata de
um tema bastante perigoso - ”quando o amor tem mais perigo, é quando ele é sincero”,
diria o poeta Cacaso -, provavelmente todos, e não apenas o escritor, precisarão recorrer
a várias imagens, a várias analogias, para ”chegar perto” do assunto. Algumas respostas
poderão se mostrar mais bonitas, outras mais ”científicas”, mas, devido à abrangência do
tema, todas correm o grande risco de serem logicamente fracas, isto é, de estarem
apoiando as suas âncoras em terreno lodoso. É que o assunto, como de resto todos os
assuntos que são importantes para nós, não se esgota em uma perspectiva apenas - e
não nos é dado ”ver” em mais de uma perspectiva (foi o que o cubismo, na pintura, tentou
inventar).
O cartunista argentino Quino brinca com a extrema dificuldade de se
estabelecerem as pontes entre as ciências, dificuldade que se intensifica, na escola, para
se construir um programa de fato interdisciplinar, ao supor um diálogo, sem palavras,
entre um cardiologista e um psicanalista. Em um dos seus desenhos, o cardiologista,
apoiado nos seus instrumentos e nos gráficos esquemáticos da sua ciência, quer fazer
um eletrocardiograma para medir os movimentos do coração justamente de Sigmund
Freud, que se encontra deitado na maca, sem camisa, cheio de fios colados no peito. O
cardiologista, no entanto, faz cara feia quando vê que o ”coração” do doutor Freud obriga
o aparelho a lhe mostrar não sístoles nem diástoles, mas sim um desenho infantil: uma
casinha, uma árvore, uma nuvem, um bonequinho...77
O aparelho de eletrocardiograma também funciona por analogias, assim
como a teoria psicanalítica. Os fatos que constituem as âncoras de cada ciência não
residem nas analogias iniciais, mas nas repetições dos fenômenos que se possam
observar. Ainda que a teoria de um seja irredutível à do outro, ambos procuram elementos
que se repetem. Freud sempre disse que não se podem interpretar sonhos isolados, mas
apenas conjuntos numerosos de sonhos, para que se possam estudar os elementos que
se repetem.
Não podemos pensar sem analogias, mas não devemos acreditar ”piamente”
nelas. A crença ”pia”, no lugar da reflexão atenta, promove argumentos impertinentes.
77 Quino. Quinolerapia, p. 18.
O ARGUMENTO IMPERTINENTE
Quando cabe discutir o que estamos chamando de ”argumento
impertinente”, que os manuais de lógica costumam denominar sofismas ou falácias. Como
nos recusamos, para não reduplicar o que já está bem escrito (e, talvez, por medo de não
sermos competentes), a elaborar um manual completo do argumento, também não
listaremos, nesse capítulo, todos os tipos de sofisma existentes. Além de termos feito
deles um resumo em Redação inquieta (1985), podem ser encontrados naqueles manuais
que devem estar presentes nas estantes da escola. Destacamos, em particular, o manual
de Irving Copi (1978), o de Wesley Salmon (1973) e o curioso volume do filósofo Arthur
Schopenhauer (1997), que elenca 38 ”estratagemas erísticos” para bem enganar os
demais.
Recomendamos, ainda, a reprodução, para alunos e professores, de dois
textos capitais: ”A arte refinada de detectar mentiras”, de Carl Sagan,78 e ”um esboço do
rebotalho intelectual”, de Bertrand Russell.79
No entanto, para não deixarmos esse importante ponto em branco,
queremos destacar algumas questões sobre o sofisma que nos parecem centrais. Um dos
primeiros eixos da expressão sofismática seria, a nosso entender, a figura de linguagem
conhecida como ”eufemismo”. O eufemismo pode ser considerado a figura falaciosa mais
marcante de todas, porque explica e reforça as alternativas da imprecisão, da
generalidade e da abstração. Implica perda de reflexividade, e tem sua contrapartida no
”eruditismo”, a faceta perversa da erudição aquilo que Luís Fernando Veríssimo, numa
crônica exemplar (Jornal do Brasil, 12/09/1997), chamou de ”errodição”.
Ironizando discurso do presidente brasileiro e duble de sociólogo, Fernando
Henrique Cardoso, Veríssimo comenta, num trecho:
Valiosa também, num plano de conceitualização primitiva que nos remete à
consciência imanente de que falava Hegel, é a exposição de Anthony Giddens da Silva,
agricultor sem-terra que há dias disse, ao ser emboscado por seguranças de um
latifúndio, derrubar dois com a sua foice e ser metralhado: ”Ahrk”. No que estava apenas
ecoando, sucintamente, a filosofia de Albert Hirschman da Silva, recentemente
desempregado, autor de uma instigante teoria da dependência do que seus filhos ganham
78 Carl Sagan. Obra citada, pp. 200-217. 79 Bertrand Russell. Obra citada, pp. 92-142.
com esmolas para poder sobreviver embaixo do viaduto, ou viaduct, como diria Hobbes. E
não se pode esquecer a contribuição de Norberto Bobbio da Silva para o debate. Ou se
pode esquecer, porque o Beto morreu de sarampo há pouco, sem saber se a epidemia
que o levou era de esquerda, direita, centro-esquerda, centro-direita, meio-centro-
esquerda, meio-centro-direita ou meio-centro.
A ”errodição”, que se apóia no abuso do jargão especializado - ”sociologuês,
economês, politiquês” -, é um instrumento verbal de poder, afastando a turba ignara da
comunicação, discursando e escrevendo não para ser entendido ou convencer, mas para
impressionar e submeter.
Teixeira Coelho vê o eufemismo procedendo por metástase, degradando e
corrompendo o objeto a que se refere, ao corromper a célula semântica inicial. Na busca
de ”outras palavras”, que não firam a sensibilidade popular (na verdade, a condição
infantilizada do interlocutor), o eufemismo tenta substituir palavras ”feias” por ”neutras”.
Entretanto, como não existem palavras neutras, liquefaz-se a linguagem e, em
conseqüência, difunde-se a ignorância.
Essa liquefação da linguagem faz parte de um processo maior de erosão
dos laços éticos da sociedade. É bem de ética que se trata, não de moral. Não é o caso
de preservar-se nenhuma moral, trata-se de vitalizar a ética. Ao contrário do que dizem os
dicionários comuns, ética e moral não são sinônimos rigorosos, ou não mais podem assim
ser vistas. Essa mesma linguagem já se encarregou de desgastar o sentido de ”moral”. A
moral é hoje aquilo que emana de focos isolados da sociedade, geralmente formados
pelos que detêm alguma forma de poder. A ética é o que vem de baixo, de todos os lados,
que todos secretam para que a vida em comum se torne possível e desejável. A moral,
hoje, freqüentemente está contra a ética e atua para seu esboroamento. Revigorar essa
ética implicará, não raro, atacar aquela moral. E certamente implica refazer a linguagem.
A linguagem não está como está porque a ética se mostra nesse estado: a ética está
como está porque a linguagem, entre outras construções humanas, está assim. A
linguagem não é mero fenômeno periférico, manifestação superestrutural de uma
realidade mais central, mais importante, que determina o restante. Não há resto: a ética
não existe no ar, a ética não está em si mesma como não está na linguagem (e em outras
dimensões): a ética é a linguagem, como é a arte e a economia. Não haverá modificação
na ética se a linguagem não se modificar.80
Esse trecho de Teixeira Coelho faz um outro elogio da linguagem e, em
decorrência, do argumento, tão importante quanto o elogio de Perelman, que mostramos
no início do ensaio. A linguagem que usamos, os argumentos que construímos, têm
participação direta, quer estejamos conscientes disso ou não, na condição ética das
nossas relações sociais e da sociedade como um todo. Resistir ao eufemismo é uma das
maneiras de precisarmos e explicitarmos estas preocupações.
A variante contemporânea do eufemismo se mostra no argumento
”politicamente correto”, através do qual alguns setores da sociedade tentam impor aos
demais como se deve pensar e falar. O filme Oleanna, de David Mamet, confrontando um
professor universitário inseguro e uma aluna ignorante, dá um show de argumentos
eufemísticos e politicamente corretos, na verdade sofismas, de parte a parte - mas,
principalmente, por parte da aluna, que força uma acusação de assédio sexual, acabando
com a carreira e com a família do professor. Apoiada num grupo feminista, que lhe dizia o
que fazer e pensar, e com base em expressões confusas do docente, a aluna, não por
acaso má aluna, forja uma realidade perversa em cima de pura fumaça.
O filme se passa quase inteiro dentro do gabinete do professor, mostrando
diálogos entrecortados e intenções ambíguas. O espectador se debate entre uma
identificação inicial com a aluna, rejeitando o professor, pedante e paternalista, para, aos
poucos, ver-se forçado a ”trocar de lado”, absorvendo a perspectiva do mestre e a
monstruosidade da atitude da aluna, que na verdade se esconde sob a capa de um
coletivo rancoroso - mas, nem por isso, menos perigoso.
Esse filme nos oferece um excelente exemplo, artístico, da necessidade de
”dar mais uma olhada”, isto é, de nos forçarmos a procurar pensar em mais de uma
perspectiva, não só para melhor argumentar, como para melhor viver. E viver implica
desconfiar das verdades fáceis que, à força da repetição e outros fogos de artifício,
tentam se impor sem se acompanhar minimamente de evidências. Ao lado do eufemismo
como fonte de equívocos e falácias, encontramos, então, a aberração popular conhecida
como ”onde há fumaça há fogo”.81
É esse provérbio o principal responsável pela força dos boatos e das
80 Teixeira Coelho. Dicionário do brasileiro de bolso, p. 293. 81 Pascal Ide. Obra citada, p. 44.
calúnias. A lógica mental do público, preguiçosa, contenta-se com um índice vago e
superficial para concluir dele uma verdade geral e irrefutável. Não se trata apenas de
preguiça mental, mas também de perversidade emocional: por um processo de
transferência do mal que Freud já explicou, aceitamos com facilidade uma calúnia
apressada contra o outro, especialmente se esse outro for uma pessoa bem-sucedida,
porque assim nos vemos como os mocinhos da história. Sabendo muito bem disso, os
estrategistas políticos e os jornalistas inescrupulosos tiraram uma regra de ação eficiente:
caluniar sem parar, que sempre sobra alguma coisa (a calúnia vem na primeira página,
em letras garrafais, enquanto a retratação e o desmentido aparecem em reles corpo 8, na
seção de cartas, na página 6).
Até a própria verdade literal pode ser um veículo para a falsidade e a calúnia
quando colocada num contexto equívoco. Para ilustrar, Copi conta a piada do
marinheiro:82 no navio, brigavam o capitão e o imediato. O imediato bebia demais, e o
capitão era um fanático da abstinência. Numa das brigas, o capitão registrou o fato no
diário de bordo: ”o imediato hoje estava bêbado”. O imediato se assustou, porque o dono
do barco leria o diário e o demitiria. Como o capitão se negasse a retirar o registro, no
mesmo dia o imediato colocou no mesmo diário: ”o capitão hoje estava sóbrio”, querendo
dar a entender que só naquele dia o seu desafeto não estava bêbado. Não era mentira,
mas induzia a uma interpretação mentirosa.
No cartum de Edgar Vasques, o conhecido personagem Rango pergunta,
assustado com a chacina na favela: ”por que morreram?” A resposta do ”PM” encapuzado
não é mentirosa: porque estavam vivos, ora bolas.83 Só que não era exatamente isso que
tinha sido perguntado. Nesse sentido, o sofisma provoca trocadilhos, provoca mal-
entendidos, provoca piadas e tiras de humor, como essa - que, no entanto, ao mesmo
tempo chama a atenção para a tragédia contida no ”argumento” e no raciocínio vicioso,
circular, formador de todos os preconceitos e justificador, a posteriori, de chacinas e
genocídios.
O avesso da calúnia, com poder nefasto equivalente, deriva do culto da
personalidade, do endeusamento de certas figuras públicas. A publicidade abusa dessa
falácia, ao vincular astros do esporte a produtos farmacêuticos, por exemplo, como se o
jogador Fulano fosse também formado em Medicina, a ponto de se colocar como
autoridade com direito a prescrever medicamentos. Em nome do primado da fama,
82 Irving Copi. Obra citada, p. 95.
subproduto daquele culto, intensifica-se a síndrome de Andy Warhol, que a formulou de
maneira muito precisa: ”no futuro, todos terão direito a quinze minutos de fama”. Em
função da síndrome, centenas de pessoas se submetem a humilhações apenas para
aparecer por reles 15 segundos num programa imbecil de televisão. Em contrapartida,
figuras de fato públicas, que se destacaram no mundo dos espetáculos esportivos e
artísticos, são objeto de uma pressão desmedida para sustentar precariamente a sua
imagem a toda hora ameaçada - o caso ”Ronaldinho na final da Copa da França” ilustra
bem esse drama.
Por último, devemos comentar um terceiro germe formador das demais
falácias, qual seja, a compulsão cientificista e matematizante para tudo medir. Grande
parte de absurdos costuma se gerar quando se esquece que a Matemática estabelece
menos respostas absolutamente precisas, antes limites aproximativos. Não à toa os
problemas mais importantes de Matemática precisam determinar até que casa decimal se
admite a resposta, deixando implícito que a resposta não pode ser mais do que
aproximativa e parcial.
Já se disse que números, massageados com um pouco de estatística,
tornam-se fatos. É preciso dizer, também, que é impossível medir um conjunto; só se
pode medir o que se apresente como unidimensional. Todas as medições de QI
(quociente de inteligência) embarcam na falácia da medição de um conjunto complexo por
instrumentos lineares.
Os defensores do QI, muitos deles pedagogos ansiosos por saberem ”que
aluno devem formar”, defendem seu instrumento com base na constatação de que,
sempre que o QI é medido no conjunto de uma população, sua distribuição fica bastante
próxima da célebre curva de Gauss, discriminando com precisão terços superiores,
medianos e inferiores de inteligência. Poderíamos retrucar afirmando que a grande
maioria dos testes escolares produz o mesmo efeito, simplesmente porque desde o
princípio se precisam produzir poucos alunos ”bons”, que comprovem o sucesso da
metodologia, muitos alunos ”médios”, que comprovem a necessidade do professor e da
escola, e poucos alunos ”maus”, que funcionem como alerta para os demais quanto ao
poder da instituição, camuflado pelos seus instrumentos de avaliação.
Jacquard ainda observa que a constatação da curva de Gauss nos testes de
83 Edgar-Vasques. O gênio gabiru, p. 28.
QI é, ao contrário do que pensam seus defensores, ”uma forte indicação a favor da
hipótese de que ele não mede nada”.84 Baseia-se no teorema de Liapounof, que afirma:
se estabelecermos para cada indivíduo vários caracteres sem vínculo entre si (altura,
fortuna, andar do apartamento em que mora, data de nascimento, tamanho do sapato,
número de sapatos no armário, número de glóbulos vermelhos...) e calcularmos a média
dos resultados encontrados, quanto mais numerosas forem as características, menos
significativa será a média obtida, porque mais próxima da conhecida ”curva de sino” será
a sua distribuição. A distribuição ”gaussiana”, então, seria uma mera ilustração de uma
propriedade matemática, não conferindo a menor validade aos testes de QI.
O que se mede, principalmente, nesse tipo de teste? A rapidez.
Desenvolvendo-se sob o controle do cronômetro, o sujeito sob teste sabe que tem de
responder depressa. Admite-se que essa predominância é consonante com a velocidade
da nossa época, que produz muita coisa que deve ficar obsoleta em pouco tempo para se
poder produzir muito mais coisa, mas isto não tem nada a ver com a inteligência, antes
pelo contrário: reflete uma concepção produtiva ligeiramente burra (digamos).
A rapidez é menos essencial para a construção de nossa própria ferramenta
intelectual do que a capacidade de nos interrogarmos e colocarmos em questão nossa
compreensão. com toda a certeza, na nossa sociedade, é quase sempre útil ter reflexos
rápidos, mas trata-se de uma característica com pouco interesse em inúmeras culturas. O
camponês de outrora, vivendo ao ritmo das estações, não tinha, de modo algum, de tomar
decisões rápidas, mas amadurecê-las durante um tempo bastante longo. Tomava o seu
tempo e não era menos inteligente do que o citadino de hoje, obrigado a enfrentar,
permanentemente, um ritmo desenfreado, do qual não é o senhor.85
Observados esses aspectos sobre o sofisma, cabe pensar na origem do
próprio termo, que nos obriga a ver sob outra perspectiva até mesmo o erro lógico.
”Sofistas”, no século V, eram os filósofos preparados para mostrar de que
maneira se argumenta contra e/ou a favor de qualquer opinião. Pretendiam seguir um
argumento aonde quer que o dito cujo os levasse, independentemente de considerações
morais, cívicas ou religiosas. Entendiam que a busca da verdade, quando sincera, deve
ignorar dogmas, conselhos e regras sociais: quem busca a verdade não pode saber se
encontrará verdades consideradas ”boas” pela sociedade.
84 Albert Jacquard. Obra citada, p. 133. 85 Idem, ibidem, p. 136.
Outros filósofos, interessados menos na defesa da verdade e mais na
defesa de determinada verdade, como, por exemplo, Platão, combateram os sofistas,
ajudando a forjar o sentido pejorativo de ”sofisma”. A palavra ”sophisma”, com efeito, vem
do grego e pode ser lida como ”só-pensamento”, o que admite quer a perspectiva positiva
dos sofistas (o pensamento livre dos interesses humanos) quer a perspectiva negativa
que hoje atribuímos ao termo (o pensamento que se expressa desprezando a ancoragem
nos fatos e na realidade). Tem parentesco interessante com o adjetivo ”sofisticado”, que
tanto pode significar ”pedante” como ”refinado”, ”elaborado”.
Levando esse histórico em conta, precisamos compreender que um mesmo
raciocínio ou texto pode ser encarado como um sofisma, se estiver, por exemplo, no
discurso de um político ou na petição de um advogado, ou como estilo e verdade, se
estiver, por exemplo, presente na fala de um personagem de romance. Não há, portanto,
reflexão sobre o sofisma independente da observação cuidadosa do texto e do contexto.
Pensando no sofisma como um erro, temos de pensar não apenas que
errare humanum est, mas que ”errar”, no sentido de tentar, de experimentar, de viajar, de
errância, enfim, é também necessário, aliás inevitável. Para lidar com o erro como
trampolim para o acerto, vale dizer, para novo argumento, cabe um certo esforço dialético.
8 O ESFORÇO DIALÉTICO
Dialética é uma dama com três vestidos, um sobre o outro. Na Grécia antiga,
dialética era a arte do diálogo (do logos a dois). com o tempo, passou a ser a arte de, no
diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de definir e distinguir
claramente os conceitos envolvidos na discussão. Modernamente, com Hegel e depois
Marx, tornou-se a arte de, no diálogo, demonstrar uma tese distinguindo os conceitos
envolvidos na discussão, para compreender o movimento perpetuamente contraditório da
realidade.
Desde os gregos, opõe-se à metafísica. Enquanto a dialética procura
investigar os aspectos mais dinâmicos e instáveis da realidade, a metafísica estaria
tentando definir os aspectos mais estáveis da mesma realidade. No limite, esta afirma que
o movimento e a mudança são fenômenos superficiais, porque, conforme Parmênides, ”a
essência profunda do ser é imutável”, enquanto aquela diz que tudo é movimento e
portanto instabilidade - ”um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio”, de
acordo com Heráclito (um dos principais sofistas, também conhecidos como filósofos pré-
socráticos, como vimos, páginas atrás, na fábula da família Logus).
Os partidários da metafísica opõem-se à dialética, considerando-a um
exercício sofista. Schopenhauer, por exemplo, via na dialética um método sem grande
valor cognoscitivo, servindo no máximo para polemizar. Levava ao extremo a
recomendação de Aristóteles: não se deve dialetizar, discutir ou polemizar com quem não
conheça o assunto e as regras da argumentação válida: contra negantem principia non
est disputandum.
Os partidários da dialética costumam considerar a concepção metafísica
conservadora, na melhor das hipóteses, e reacionária, na maior parte dos casos. A
estabilidade desejada pelos metafísicos corresponde à estabilidade desejada pelas
classes dominantes, para manter a sociedade dividida em classes e perpetuar a sua
dominação.
Podemos, por um momento aristotélico (ou mineiro), procurar a virtude no
meio. Os metafísicos mais inteligentes sabem ser, quando necessário para a sua
argumentação, profundamente dialéticos, como o faz Schopenhauer ao combater Hegel
através da sua tese sobre a ironia. Em contrapartida, os dialéticos mais conseqüentes
conseguem ser, quando necessário para a sua argumentação, profundamente
metafísicos, como o faz Marx ao procurar definir as bases, que precisariam ser estáveis,
da nova sociedade que antevia.
Entretanto, apesar da nossa solução mineira (ou aristotélica), faremos antes
o elogio da dialética, porque a ciência positivista e a escola contemporânea já puxaram de
sobra a brasa para a sardinha da metafísica, enfatizando a tal ponto a estabilidade das
coisas que criaram a ficção, infelizmente poderosa, ainda que anticientífica, da resposta
”certa”.
A antiga história do mestre Protágoras e seu oportunista discípulo, Eulato,
ilustra, à perfeição, o desenvolvimento do nosso argumento.86 Protágoras foi um filósofo
sofista que viveu na Grécia, durante o século V antes de Cristo. Da sua obra, ficou a
frase: ”o homem é a medida de todas as coisas”. Ensinava a arte da advocacia (que, há
quem diga, outra coisa não é do que a arte de sofismar). Eulato era seu aluno, mas, como
não podia pagar os estudos, fez um acordo com o professor: só pagaria quando ganhasse
o primeiro caso. Quando concluiu o curso, porém, protelou o início da sua prática
profissional. Cansado de esperar pelo pagamento, Protágoras processou o ex-aluno em
juízo - que resolveu defender a si mesmo, confiante nas lições que recebera. No tribunal,
o mestre apresentou a sua versão do caso através de um dilema esmagador:
Se Eulato perde esse caso, então, pela sentença do tribunal, terá de me
pagar; se Eulato ganha esse caso, então, pelos termos do nosso contrato, terá igualmente
de me pagar. Ora, ele só pode perder ou ganhar esse caso, não há outra alternativa.
Logo, Eulato deve, de qualquer modo, me pagar.
O dilema é uma figura de retórica conhecida como syllogismus cornutus,
porque se trata de um silogismo com duas pontas. A situação não parecia boa para
Eulato, mas ele usou as mesmas armas, replicando com um contra-dilema:
Se ganho esse caso, então, por decisão do tribunal, que deve ser
respeitada, não terei de pagar ao professor; se, todavia, perco esse caso, pelos termos do
nosso contrato tampouco terei de pagar ao ilustre mestre, pois nesse caso não terei
ganho, ainda, o meu primeiro caso. Ora, devo ganhar ou perder esse caso, realmente não
há outra alternativa. Logo, não tenho, em caso algum, de pagar a Protágoras.
Imagine-se o leitor na posição do juiz: o que decidiria? À primeira vista, os
86 Irving Copi. Obra citada, p. 222.
críticos da dialética parecem ter razão. A arte do diálogo tem uma enorme tendência a ser
pouco ética, visto que as mesmas palavras e a mesma forma de argumentar podem servir
tanto para defender A quanto o contrário de A. Eulato fez um acordo e deliberadamente
não o cumpriu, protelando a sua iniciação profissional e deixando o seu professor sem o
pagamento que lhe era devido. Quando forçado a se defender, e portanto a defender o
seu primeiro caso, volta as armas da lógica contra o próprio mestre para continuar não
cumprindo a sua parte do acordo - o que é imoral.
Na verdade, o esforço dialético de Protágoras apenas teria começado. A
pequena história não nos conta a tréplica do professor, nem qual teria sido a sentença do
juiz. Portanto, é preciso trazer para esse tribunal de 2.500 anos atrás um personagem do
ano 2500 depois de Cristo, a saber, o eminente lógico vulcaniano, Doutor Spock.
O leitor tem memória do futuro, para se lembrar de Spock? Onde nenhum
homem jamais esteve? Pois então: em Star Trek VI, filme dirigido por Leonard Nimoy (que
também representava Spock), ele nos dizia: ”logic is just the beginning of wisdom, not the
end”.
A lógica é o começo da sabedoria, não o seu final. Protágoras se teria
empolgado com os seus recursos retóricos, permitindo a réplica homóloga do seu ex-
aluno. Spock, levantando a sobrancelha, desfaria ambos os dilemas com apoio no
conceito com que começamos este livro: o conceito às pressuposição.
O acordo entre mestre e discípulo forçosamente pressupunha não só o
compromisso de pagamento, como também o compromisso de o aluno iniciar a sua
prática profissional tão logo terminasse os seus estudos. Protelar essa prática era
demonstração flagrante de má-fé, que deveria ser punida não só com o pagamento dos
honorários do professor, como com uma multa significativa, para que se respeitasse mais
a lógica. O jovem advogado Eulato, atendo-se estritamente à letra do acordo,
desrespeitava frontalmente os seus pressupostos mínimos, isto é, desrespeitava o próprio
espírito do acordo.
Trazendo a pendência para o nosso momento e para a nossa preocupação
com o argumento, podemos afirmar que o texto não vive, não significa, sem o contexto
que o gera e mantém, contexto no qual se inserem o falante e os interlocutores, assim
como os ouvintes e os querelantes. Nem Eulato, nem Protágoras e nem Spock podem
esgotar todo o contexto a que se refere qualquer texto (de vez que a verdade é não-
toda...), mas também não podem denegá-lo. As relações entre texto e contexto são
propriamente dialéticas, o que, vale dizer, dinâmicas e permanentemente superáveis.
Caso contrário, permanecemos em paradoxos, por um lado interessantes
para demonstrar a arbitrariedade e os limites do signo, por outro tão estéreis quanto os
dilemas dos advogados sofistas. As diferentes variantes do paradoxo do mentiroso, por
exemplo, podem ser desmontadas com a atenção ao contexto e aos pressupostos da
interlocução.
Quando Epimênides, um cretense, diz que ”todos os cretenses são
mentirosos”, se ficarmos presos à sua declaração não podemos saber se ele diz a
verdade ou se mente. De maneira mais condensada ainda, se alguém nos diz, ”eu estou
mentindo”, não temos como saber se a frase é mentirosa ou verdadeira, porque parece
paradoxalmente mentirosa e verdadeira ao mesmo tempo, rompendo com o princípio da
não-contradição. Mas, na verdade, estas afirmações não são nem verdadeiras nem
mentirosas, porque dizem o mesmo que ”negócio é negócio”, ou, ”pai é pai”, quer dizer:
nada. Em outras palavras, são auto-referentes, demonstrando, sim, o limite do discurso
humano - limite com o qual, entretanto, não precisamos nos conformar, buscando
dialeticamente superá-lo.
Quem se veda, por razões religiosas ou filosóficas, de matar um ser vivo,
pode ser arrastado a uma incompatibilidade de proposições, se admite igualmente que é
preciso cuidar dos doentes que sofrem de uma infecção:87 irá ou não servir-se da
penicilina que pode destruir um grande número de micróbios, isto é, de seres vivos?
Impasses como esse não se resolvem apenas com a lógica ou com a retórica, mas
também com a lógica e com a retórica. São necessárias, ainda, escolhas morais, que só
são escolhas porque não há garantia de verdade, ou, em outras palavras, porque não
temos acesso direto e completo à verdade.
A dialética lida, exatamente, com a contradição, bem como com as
possibilidades teóricas e práticas de superar a contradição. Os livros dos filósofos
brasileiros Leandro Konder, O que é dialética (1985), e Gerd Borheim, Dialética: teoria e
práxis (1977), estudam exaustivamente toda a história do pensamento dialético e os seus
principais recursos, devendo, portanto, ocupar lugar de honra naquela estante das salas
de aula e de professores.
87 Chaim Perelman. Obra citada, p. 230.
No nosso livro, que é antes um projeto interdisciplinar com eixo no
argumento, devemos enfatizar que a dialética, tanto quanto a lógica e a retórica, se
referindo às regras e às possibilidades da argumentação, procura igualmente se
aproximar da verdade, reconhecendo relações dialéticas na própria realidade.
O dramaturgo David Mamet pode então afirmar, na sua teoria sobre os três
usos, ou três atos, do teatro: ”os alemães criaram e aceitaram a dominação nazista em
nome da autodeterminação; nós criamos e aceitamos ignorância e analfabetismo em
nome da informação.”88 As coisas convivem com os seus contrários, as sombras da
realidade volta e meia tomam o lugar das coisas. Os alemães, em determinado momento,
teriam criado e aceitado a dominação nazista em nome da autodeterminação, e a partir
daí passaram a negar, pela guerra, a autodeterminação de outros povos. Nós, hoje,
quando se publica cada vez mais e se lê cada vez menos, em nome da informação e sob
a égide da World Wide Web, estamos criando, aceitando e difundindo ignorância e
analfabetismo. Já comentamos, em outro lugar, como outros, antes de nós, comentaram:
à expansão desmedida do poder da espécie humana, que nos permite destruir-nos
completamente ene vezes, parece corresponder, dialeticamente, a redução flagrante do
poder do indivíduo.
Como fomos educados numa simplificação da lógica aristotélica, tendemos a
achar que pão é pão e queijo é queijo, assustando-nos com o queijo-quente, em que uma
coisa se mistura com a outra e faz uma terceira. Pois é preciso aprender a pensar e
aprender a ensinar, na hora em que o queijo-quente está... quente. É a hora em que a
realidade derrete e se espalha, movimentando-se sob as nossas palavras.
Superam-se os sofismas e as falácias através do esforço dialético. Pascal
lembra, com muita propriedade: ”o erro não é o contrário da verdade; é o esquecimento
da verdade contrária”.89 Erra, portanto, quem procura a verdade como se ela existisse, e
não fosse, já, a própria procura em si. Erra, portanto, quem procura imobilizar um acerto
qualquer, sem atentar para os aspectos inevitavelmente paradoxais e dialéticos não só da
realidade que observa, como da própria teoria que constrói.
Erra, em última análise, quem tem pavor do erro e não percebe o seu
valor.90 O ”erro” ensina a pensar, e não a reincidir. Mas a escola faz todo o contrário e
88 David Mamet. Time uses oftlie knife, p. 55 89 Em Jean-Pierre Lentin. Obra citada, p. 177. 90 Idem, ibidera, p. 244.
continua a penalizar o erro e fetichizar o acerto, ao invés de desenvolver o argumento e a
pesquisa da verdade - que depende de ”erros” para ser ciência e filosofia.
Em 1980, na França, fizeram uma experiência maquiavélica, cujos
resultados surpreenderam até mesmo os autores da experiência. Em 15 turmas dos
cursos fundamental e médio, nos testes de Matemática, propuseram-se problemas do
gênero: ”num barco se encontram 26 carneiros e 10 cabras; qual é a idade do capitão?”.
Ou então: ”numa classe há 12 meninas e 13 meninos; qual é a idade da professora?”.
Os pesquisadores esperavam que a maioria dos alunos percebesse
imediatamente o absurdo das perguntas - o que aconteceria, imaginamos, se as
perguntas tivessem sido feitas no recreio. Entretanto, os resultados são deprimentes: 90%
dos alunos do curso fundamental e 30% dos alunos do curso médio combinam tolamente
os dois números do problema para ”dar” uma ”solução”. Discutindo estes resultados
constrangedores, os pesquisadores decidem ir mais longe e propõem a outros
professores 15 problemas, dos quais 13 são do tipo acima, ou seja, problemas para os
quais não há resposta possível (logo, não são ”problemas”, na acepção completa do
termo). Novamente para sua surpresa, a maioria dos professores ”cai como um patinho”
(a classe dos professores, portanto, demonstrou um desempenho pior do que os alunos
do curso médio...).
O filósofo Daniel Dennett escreveu um pequeno artigo que deveria, como já
sugerimos com outros trabalhos, também ser reproduzido para professores e alunos. O
artigo se chama ”Como se devem cometer erros”.91
Dennett reconhece que há momentos em que não se deve cometer erro
algum, como sabem os pilotos de avião e os cirurgiões. Em outro cartum de Quino,
paciente na maca chega para uma operação mas se assusta quando lê a inscrição latina
que encima a sala de cirurgia: ”errare humanum est”.92 Ora, há certos erros que não se
podem cometer, pensa o paciente, com boa dose de razão. Mas tanto os pilotos quanto
os médicos precisam errar para aprender, devendo recorrer a simuladores de vôo e de
cirurgia (cadáveres, por exemplo). A escola deveria ser, por definição, o lugar para se
errar, e assim retirar a inscrição latina da porta da sala de cirurgia, lugar no qual ela se
torna perversa e irônica.
91 Em John e Katinka Matson. As coisas são assim, pp. 151-8. 92 Quino. Obra citada, p. 33.
Logo, na maioria dos momentos, em vez de se evitarem os erros, se deveria
cultivar o hábito de cometê-los: ”em vez de renegar seus enganos, você deveria se tornar
um connoisseur de seus próprios erros, analisando-os como se fossem obras de arte, o
que, de certo modo, eles são. Você deveria procurar oportunidades para cometer grandes
erros, só para então se recuperar deles”. À medida que a pessoa trabalha melhor com os
próprios erros e percebe, relativamente surpresa, que a terra não a engole quando ela
fala ”você tem razão, acho que eu cometi um erro”, torna-se muito menos provável que se
cometa um erro daqueles horrendos, na mesa de cirurgia ou na pista de aterrissagem.
Quando o aluno, na sua redação, regulariza um verbo irregular, o professor
não deveria considerar a ocorrência como um mero erro a ser punido e desqualificado,
mas como evidência de um raciocínio válido, em que ocorre a aplicação de uma regra
previamente observada. Ainda que não ”caiba” (olha só um verbo que não deveria ”caber”
numa frase decente) naquele exemplo, demonstra-se um raciocínio pertinente. O que o
professor deve fazer é explicitá-lo e, sim, valorizá-lo, sem deixar, está claro, de corrigir a
ocorrência.
Para o crítico literário, o princípio é básico. Importa menos analisar a obra
que leu do que ler a leitura que fez, isto é, do que analisar-se lendo aquela obra. O que se
enfatiza aqui? A necessidade primordial da segunda leitura, tanto dos livros quanto do
mundo e dos fenômenos. Transpondo essa necessidade para a prática da redação,
responsável pela construção dos argumentos, reforça-se a necessidade do rascunho e da
reescritura, vale dizer, do momento em que se aprende com os próprios erros.
Não à toa o físico Niels Bohr afirmava: ”o oposto de uma afirmação correta é
uma afirmação falsa, mas o oposto de uma verdade profunda pode muito bem ser outra
verdade profunda”.93 A sentença estava de acordo com o seu conceito de
”complementaridade”, que tentava enfrentar, sem eliminar, as contradições entre as
teorias da matéria.
Numa discussão entre dois cientistas, um afirma que nunca se pode resolver
mais de uma dificuldade de cada vez, enquanto outro retruca que nunca se pode
recuperar uma dificuldade isolada, devendo-se sempre ultrapassar várias delas ao
mesmo tempo. Ambos parecem se encontrar em campos irremediavelmente opostos, até
que comecem a argumentar, levando sempre em conta as objeções do outro. O primeiro
93 Em Werner Heisenberg. Obra citada, p. 122.
cientista – trata-se de Paul Dirac - pretende dizer apenas que qualquer um que procure
enfrentar vários problemas ao mesmo tempo peca por arrogância, já que a ciência
caminha devagar, passo a passo. O segundo - trata-se de Werner Heisenberg -, por sua
vez, quer apenas assinalar que a solução autêntica de um problema difícil ”não é mais
nem menos do que um vislumbre de um contexto mais amplo, um vislumbre que nos
ajuda a eliminar também outras dificuldades”. Desse modo, ambas as formulações
parecem conter um pedaço da verdade, indiciando não um desacordo irredutível, mas
perspectivas opostas e complementares, que melhor se aprofundaram quanto mais se
dialetizaram.
Os argumentos convencionais tendem a ter dificuldades com a dialética,
exatamente porque não reconhecem nem os próprios erros nem admitem a força da
verdade contrária. Nesse momento, abdicam da sua condição de ”argumentos” e passam
à categoria inflexível dos dogmas (ou das opiniões frouxas). Nos dias que correm, a forma
típica do raciocínio antidialético é o argumento que se autoconsidera ”politicamente
correto”, escolhendo a sua perspectiva como a única admissível. Nesse sentido, os
defensores do antitabagismo, baseados em razões absolutamente corretas - de fato, o
fumo faz mal à saúde, e também por isso os dois autores deste livro não fumam - passam
a discriminar e agredir as pessoas que fumam com a alegação, essa sim, contestável, de
que o ar que eles respiram está sendo poluído, como se os veículos que todos
continuamos dirigindo não fossem de longe os principais responsáveis pela poluição do ar
(mas é mais fácil criticar o cigarro do vizinho do que a indústria automobilística ou o seu
próprio sonho de consumo).
Tira de Laerte94 é emblemática dessa discussão:
Quem afirma que o símbolo ”está proibido” se encontra na sombra, pois é
ele mesmo sombra das suas palavras. O dono da camiseta com a suástica ostenta-a à luz
do dia, e faz perguntas incômodas. A essência do argumento ”politicamente correto”, que
não pensa sobre os seus fundamentos, é apenas sombra de discurso, sem perceber que,
em determinado momento, ”the Germans created and accepted Nazi domination in the
name of self-determination”. Assim como Hitler subverteu a filosofia individualista de
Nietzsche e, em nome do Übermensch, do seu Super-Homem solitário e heróico, produziu
o Untermensch, o Infra-homem dissolvido na Juventude Nazista, também tomara um dos
símbolos mais antigos da humanidade, a suástica, que manifestamente indica um
94 A tira se encontra no site do cartunista: www.laerte.com.br.
movimento de rotação em torno de um centro, representando portanto ação e perpétua
regeneração.95 A suástica estiliza o movimento do próprio pensamento, segundo muitos
filósofos e psicólogos, que se desenrola, propriamente, de modo não linear, mas
espiralado: em círculos que progridem sempre em círculos, sem retornar, todavia, ao
ponto de partida.
Resistir ao nazismo proibindo o símbolo do nazismo é decretar a vitória
final... do nazismo. Pensar dialeticamente o nazismo implica desconfiar da sua derrota na
guerra, percebendo como estratégias nazistas se tornaram vitoriosas posteriormente. Não
precisa ir muito longe, basta pensar no grande medo que os autodenominados ”Aliados”
tinham de que os alemães construíssem a bomba atômica, destruindo cidades inteiras,
com a sua população civil. O medo era tanto que ”nós” construímos primeiro e lançamos
logo duas, sobre duas cidades japonesas. Quem venceu? A democracia ocidental, ou o
medo? Ou a Bomba?
É uma discussão - dialética.
95 Jean Chevalier. Dicionário de símbolos, p. 852.
A REDE DE ARGUMENTOS
Se o movimento do pensamento se desenrola de modo não linear, mas
espiralado, em círculos que progridem sem retornar ao ponto de partida, então toda a
nossa reflexão sobre a natureza deve girar em círculos espiralados. É o que conclui o
filósofo Carl Friedrich, em debate com o físico Werner Heisenberg.96
Toda a nossa reflexão sobre a natureza tem que girar, necessariamente, em
círculos ou espirais, pois só podemos compreender a natureza quando pensamos sobre
ela, e só podemos pensar porque nosso cérebro foi formado de acordo com as leis da
natureza. Em princípio, portanto, poderíamos começar por qualquer lugar, mas nossa
mente é feita de tal modo que parece ser melhor começarmos pelo mais simples, isto é,
pelas alternativas: sim ou não, ser ou não ser, bem ou mal. Enquanto concebemos essas
alternativas da maneira como o fazemos na vida cotidiana, a coisa pára por aí. Mas, como
sabemos pela teoria quântica, uma alternativa não equivale a um simples sim ou não;
implica também outras respostas complementares, em que o grau de probabilidade do
sim ou do não é explicitado, bem como sua interferência mútua. Em conseqüência disso,
temos todo um continuam de respostas possíveis, ou, falando matematicamente, um
grupo contínuo de transformações lineares de duas variáveis complexas.
” Para conhecer a realidade, colocamos primeiro os óculos da hipótese - é o
que nos permite arrumar os silogismos. Para sustentar as premissas, lançamos âncoras
ao mar do texto, apoiando-nos em evidências provisórias, bem como em fatos
(consensualmente considerados como tal). Entretanto, os silogismos não aparecem
isolados e arrumadinhos, com as suas premissas e conclusão encadeadas: usualmente
parte das premissas está implícita (são os entimemas) e muitos silogismos se articulam
em seqüência mesclada (chamando-se, então, sorites). As relações de causa e
conseqüência entre os fenômenos, e entre os fenômenos e nós, são necessárias e úteis,
mas não bastam; há muitas outras formas de ligação entre as coisas do que supõe nossa
vã lógica ou filosofia. É preciso ainda explorar as contradições que movem o mundo e as
idéias, o que apenas um esforço dialético dá minimamente conta (embora abale, ao
mesmo tempo, aquelas âncoras que se encontravam no fundo do texto). Entretanto, a
dialética, por sua vez, ainda não é tudo.
Ainda não se trata do argumento final.
96 Weraer Heisenberg. Obra citada, p. 282.
Na verdade, não vamos, ao menos neste livro e projeto, encontrar o
argumento final, aquele que englobe todos os demais, como uma boneca russa que
contém uma boneca menor que por sua vez contém outra boneca menor ainda que por
sua vez... Como temos de nos aproximar do ponto final em algum lugar, a novidade
avassaladora da Internet e sua linguagem ”HTML”, sigla sucinta para ”Hyper Text Marked
Up Language”, nos oferece uma alternativa que combina com os impasses da ciência
nesse final de século.
Os modelos binários pergunta — resposta, problema — solução, causa —
conseqüência, geral —» particular, e particular —» geral foram e são produtivos até um
certo ponto. Eles se combinam com outros modelos, trinários, de conhecer e de
argumentar, a saber, premissa maior —» premissa menor — conclusão, todo a é Q —
todo Q é P — logo, todo P é a, e tese — antítese —» síntese. Eles todavia se
interrompem, ou mesmo falham, quando se perde de vista a sua dimensão de ”modelo”,
vale dizer, a sua dimensão de conhecimento por simulação.
Todo conhecimento simula a realidade desde a construção da hipótese, por
definição uma abordagem simulada de verdade. Todo conhecimento é mimético (assim
como a melhor estratégia de sobrevivência é a do camaleão). Na era da informática, o
pensamento assume mais claramente a sua condição mista de camuflagem e maquete,
para mapear, portanto simplificar, a realidade.
Diz Pierre Lévy que ”a simulação toma o lugar da teoria, a eficiência ganha
da verdade, o conhecimento através de modelos digitais soa como uma revanche de
Protágoras sobre o idealismo e o universalismo platônicos, uma vitória inesperada dos
sofistas sobre o organon de Aristóteles”.97 Os modelos digitais substituem, com vantagem,
os modelos analógicos, mas aumentam a distância entre o chamado senso comum e a
ciência. Substituir os sulcos de milimetricamente variada profundidade dos discos de vinil,
que simulavam as escalas musicais, pelas fórmulas numéricas dos CD-ROMs, confere
praticidade ao uso mas dificulta a compreensão, exatamente porque o nível de
modelagem, de simulação, se tornou absolutamente abstrato.
O mestre Protágoras ressurge - ”o homem é a medida de todas as coisas” -
porque o quadro epistemológico da Física Quântica, da Teoria da Relatividade, da Web e,
é claro, da política contemporânea, é relativista. Só há uma proibição: não se pode
97 Pierre Lévy. As tecnologias da inteligência, p. 125.
acreditar que os modelos sejam ”verdadeiros” - todo modelo é construído para
determinado uso de determinado sujeito em momento dado.
Os exercícios de simulação por computador permitem, no entender de Lévy,
que ”uma pessoa explore modelos mais complexos e em maior número do que se
estivesse reduzido aos recursos de sua imagística mental e de sua memória de curto
prazo, mesmo se reforçadas por esse auxiliar por demais estático que é o papel. A
simulação, portanto, não remete a qualquer pretensa irrealidade do saber ou da relação
com o mundo, mas antes a um aumento dos poderes da imaginação e da intuição”.98
A perspectiva otimista do filósofo nos parece correta, mas não anula outras
perspectivas, menos positivas. Há um grande número de professores, para falar apenas
de nós mesmos, que demonstra ou muita dificuldade ou muita resistência para lidar com
as novas tecnologias e, em conseqüência, com as linguagens associadas. Aqueles que
não sabem o que é um drive e deixam o disquete em cima da mesa, sem entender por
que o seu computador se recusa a gravar o seu trabalho no dito cujo, e aquelas que
também não entendem como o aparelho de fax devolve o dinheiro que estariam
mandando para as suas filhas na Europa, podem parecer apenas casos folclóricos, mas
apontam para uma dificuldade intrínseca com os modelos de conhecimento por
simulação, por símiles, propriamente.
O que seria, então, um argumento ”hipertextual”? Na verdade, conhecemos
o hipertexto há muito tempo. Aliás, desde o início dos textos e dos tempos. Quando um
versículo bíblico remete a outro versículo, assim como quando um verbete de
enciclopédia remete a outro verbete, ou mesmo a um outro livro, temos o hipertexto. É
”hiper” porque explicita, na sua própria estrutura, que textos nascem de textos e geram
textos, que livros se fazem de livros e fazem livros. Cada texto, cada argumento, simula,
parcial ou reduzidamente, o Texto Maior a que, obviamente, não temos acesso.
Na parte sobre a preparação do argumento, falamos sobre a importância da
leitura instrumentalizada, sobre o reconhecimento de índices, alertando para a
necessidade de se aprender a ler, simplesmente, o sumário dos livros. O sumário, texto
esquemático, esquematiza o texto a que se refere. Um ensaio acadêmico pode conter
notas, ou ao ”pé” (olha a analogia) da página ou ao final, e deve honestamente apresentar
a sua bibliografia, isto é, os livros nos quais momentaneamente se ancorou, para ser, ele
98 Idem, ibidem, p. 126.
mesmo, livro. Como pode fazer citações (em corpo menor, mais destacadas da margem,
por exemplo), imbricando outros textos no seu próprio texto.
A configuração do hipertexto, ao alertar para as múltiplas ligações do texto,
chama a atenção para o que circula à volta, ou seja, para aquilo que chamamos de
”contexto”. O que é importante acrescentar é que a relação entre o texto e o contexto não
é de mão única, com apenas esse produzindo aquele: onde um vai, o outro também vem.
Podemos certamente afirmar que o contexto serve para determinar o sentido
de uma palavra; é ainda mais judicioso considerar que cada palavra contribui para
produzir o contexto, ou seja, uma configuração semântica reticular que, quando nos
concentramos nela, se mostra composta de imagens, de modelos, de lembranças, de
sensações, de conceitos e de pedaços de discurso. Tomando os termos leitor e texto no
sentido mais amplo possível, diremos que o objetivo de todo texto é o de provocar em seu
leitor um certo estado de excitação da grande rede heterogênea de sua memória, ou
então orientar sua atenção para uma certa zona de seu mundo interior, ou ainda disparar
a projeção de um espetáculo multimídia na tela da sua imaginação. [...] O sentido de uma
palavra não é outro senão a guirlanda cintilante de conceitos e imagens que brilham por
um instante ao seu redor. A reminiscência dessa claridade semântica orientará a
extensão do grafo luminoso disparado pela palavra seguinte, e assim por diante, até que
uma forma particular, uma imagem global, brilhe por um instante na noite dos sentidos.
Ela transformará, talvez imperceptivelmente, o mapa do céu, e depois desaparecerá para
abrir espaço para outras constelações.”99
Pierre Lévy define hipertexto como ”conjunto de nós ligados por
conexões”.100 Os itens da informação não são ligados em linha, como em uma só corda
com diversos nós, mas fazem suas conexões em estrela, de modo reticular. Navegar em
um hipertexto implica portanto desenhar um percurso em uma rede que pode ser tão
complicada quanto possível, na medida em que cada nó pode, por sua vez, conter uma
rede inteira. Quem quer que comece a ”navegar” na Internet sente estimulante e dolorosa
sensação de vertigem, porque, permanecendo sentado na sua cadeira, se ”perde”
completamente, não sabendo como fazer o caminho de volta - Ariadne não lhe deu
nenhum fio para encarar o labirinto informático.
Arlindo Machado também entende que a melhor metáfora para o hipertexto,
99 Idem, ibidem, p. 24. 100 Idem, ibidem, p. 33.
ou para a hipermídia, é a do labirinto, pois reproduz bem a sua estrutura intrincada e
descentrada.101 Na verdade, ”a forma labiríntica da hipermídia repete a forma labiríntica
do chip, ícone por excelência da complexidade em nosso tempo”. O labirinto cretense,
construído por Dédalo, não era propriamente uma armadilha ou uma prisão, funcionando
como um desafio para medir a astúcia do visitante. Pode-se escapar do labirinto pulando
os seus muros, mas o que interessa é explorá-lo. O melhor percurso não é aquele que
permite chegar mais depressa ao fim, mas o que possibilita visitar o maior número
possível de lugares; ”resolver” o labirinto implica percorrê-lo, e não achar uma saída.
Diz Arlindo:
Todo texto, mesmo o texto linear e seqüencial, é sempre a atualização
(necessariamente provisória) de uma infinidade de escolhas, num repertório de
alternativas que, mesmo eliminadas na apresentação final, continuam a perturbar
dialogicamente a forma oferecida como definitiva. Ao longo do processo de escritura, o
texto sofre o fogo cerrado dos críticos imaginários que atormentam o autor, multiplica-se
numa profusão de possibilidades (que depois se rasuram ou se apagam), bifurca-se
diante das soluções diferenciadas.
Modernamente, com o surgimento de uma crítica que investiga a gênese do
texto, através do exame dos manuscritos ou rascunhos originais, é possível tornar visíveis
os descaminhos da obra, as soluções que foram abandonadas, as versões que não
chegaram à forma final, toda uma pluralidade, enfim, que precisou ser sacrificada para
que o texto pudesse tomar a forma de obra publicável. Essa crítica tem demonstrado que
a escritura, no seu momento genético, é sempre plural; ela se dá como feixe de
possibilidades e a grandeza do resultado final está menos em escolher a melhor
alternativa do que em dar forma orgânica à multiplicidade.102
O que o hipertexto simula, então? Talvez, a própria mente. É muito difícil,
mas, se conseguirmos colocar no papel um pensamento como o pensamos (e não como
o arrumamos para os outros lerem), encontraremos muito provavelmente uma barafunda
completa de idéias, inclusive com palavras sobre palavras e frases sobre frases e ainda
por cima múltiplas imagens ao fundo, revezando-se e sobrepondo-se como se vários
aparelhos projetassem muitos slides ao mesmo tempo.
101 Em Diana Domingucs. A arte no século XXI, p. 149 102 Idem, ibidem, p. 148
De acordo com Marvin Minsky, pesquisador de inteligência artificial do MIT,
”a mente não forma um todo coerente e harmonioso”.103 O crânio humano conteria
milhares de computadores diferentes, estruturados conforme arquiteturas distintas e
desenvolvidos de forma independente ao longo da evolução humana. Para ele, não
haveria sequer um código ou um princípio comum de organização a todo o sistema
cognitivo. O psiquismo, nesse sentido, deveria ser imaginado (porque, novamente, não
podemos saber como ele ”é”) como uma sociedade cosmopolita, com todos os seus
monumentos e todas as suas mazelas, e não como um sistema coerente, ou, menos
ainda, como uma substância.
Então, no final das contas, quem pensa?
Uma imensa rede loucamente complicada, que pensa de forma múltipla,
cada nó da qual é por sua vez um entrelace indiscernível de partes heterogêneas, e assim
por diante em uma descida fractal sem fim. Os atores dessa rede não param de traduzir,
de repetir, de cortar, de flexionar em todos os sentidos aquilo que recebem de outros.
Pequenas chamas evanescentes de subjetividade unitária correm na rede como fogos
fátuos no matagal das multiplicidades. Subjetividades transpessoais de grupos.
Subjetividades infrapessoais do gesto, do olhar, da carícia. É claro, a pessoa pensa, mas
é porque uma megarrede cosmopolita pensa dentro dela, cidades e neurônios, escola
pública e neurotransmissores, sistemas de signos e reflexos.104
Uma excelente representação do pensamento múltiplo e vário que não se
limita a uma linha com princípio, meio e fim podemos encontrar, curiosa e
paradoxalmente, em um dos famosos desenhos de uma-linha-só de Pablo Picasso. Ele
traça um centauro, misto de animal e humano, de desejo e controle, com apenas uma
linha - todavia, com tantos nós, tantos contornos, tantos retornos, tantas bifurcações, que
parece o próprio corpo da filosofia, que por sua vez, num gesto rápido, desenha no ar
uma letra.105
A compreensão da ”rede” e da multiplicidade originária traz implicações
definitivas para o ensino, para a política e para a vida cotidiana. Se a educação é prática
política por excelência, lhe cabe então atuar sobretudo como intensificadora do
pensamento, o que é todo o contrário da necessidade de controlar (e testar) o
103 Em Pierre Lévy. Obra citada, p. 164. 104 Idem, ibidem, p. 173. 105 Pablo Picasso. Picasso’s one-liners, p. 52.
pensamento alheio. Em conseqüência, os professores precisaríamos abdicar de toda
pretensão de controle.
Esperamos estar deixando claro, pela nossa abordagem do conhecimento
(logo, do argumento) por simulação, que, caso uma escola, um grupo de disciplinas e
professores, resolva seguir de algum modo o nosso projeto e finalize pela invenção do
hipertexto como eixo interdisciplinar, que se deve trazer à baila, nas reuniões dos mestres
e nas suas aulas, toda a discussão contemporânea sobre o conhecimento, da teoria do
caos e dos fractais aos diversos modelos, psicológicos e neurológicos, da mente e do
pensamento.
Como é que isso se traduziria no trabalho com a redação propriamente dita?
Nessa hora, o texto acadêmico, mais precisamente, o ”ensaio”, deve ser privilegiado, quer
como objeto de leitura quer como proposta de escritura. Devem-se compreender e
experimentar os links, as maneiras de citar e referir, os princípios éticos que regem as
relações com o pensamento alheio. Dessa maneira, o ensino médio já se configuraria o
que sempre deveria ter sido, a saber, um verdadeiro ciclo básico para a Universidade.
PARTE II
COLA, SOMBRA DA ESCOLA
À SOMBRA DE PLATÃO
A escola em que queremos uma educação verdadeiramente interdisciplinar
e com todas as suas práticas centradas no desenvolvimento da argumentação é, todavia,
a mesma escola em que a maioria dos seus professores colou e a maioria dos seus
alunos ainda cola, isto é, furta o esforço intelectual alheio, preparando não só furtos mais
graves no futuro, como profissionais despreparados e cidadãos moralmente inseguros. A
situação torna-se mais grave quando se percebe que tanto alunos quanto professores não
a consideram especialmente grave, apenas ”normal”.
A escola que existe talvez tenha dificuldade de enxergar as suas
contradições e os seus sintomas por conta das sombras que lhe atrapalham a visão.
Essas sombras se estendem sob os nossos pés de dentro da famosa caverna de Platão,
caverna essa que, alegoricamente mas não só, definiu parcela importante da sociedade
ocidental cristã que nos encerra.
Os homens nos encontraríamos acorrentados à entrada de uma gruta
escura, vendo, dos acontecimentos que acontecem às nossas costas, tão-somente suas
sombras na parede oposta. Poucos conseguiriam, à custa de esforço hercúleo, libertar-se
das correntes - isto é, libertar-se da percepção das coisas pelos sentidos - e virar a
cabeça para ver o real, e não a sombra do real. Esse virar-se é justo a guinada da
percepção sensível rumo ao pensamento puro, à visão das idéias em si. Como diz o
Sócrates platônico: ”na esfera do concebível a idéia do Bem só se mostra como
cognoscível no fim, e a muito custo”.106
A idéia da justiça, por exemplo: ”São as sombras da justiça o que vê quem
afasta o olhar da idéia para a realidade social, e são as sombras da justiça aquilo pelo
que se luta nos tribunais”.107 A guinada da percepção sensível na direção do pensamento
puro baseia-se numa recusa apaixonada (patologicamente falando, inclusive) do corpo,
em nome de uma busca, sisifítica, da alma e da essência - como diria Platão.
A alma assemelha-se, acima de tudo, ao divino, ao imortal, ao supra-
106 Em Hans Kelsen. A ilusão da justiça, p. 423. 107 Idem, ibidem, pp. 5-403.
sensível, ao único, ao indissolúvel e ao que permanece sempre idêntico a si mesmo; o
corpo, por sua vez, assemelha-se ao humano, ao mortal, ao multiforme, ao sensível,
àquilo que se dissolve e ao que jamais permanece idêntico a si próprio. [...] A alma é algo
inteiramente diverso do corpo; mesmo em vida, é tão-somente a alma que faz de nós o
que verdadeiramente somos; o corpo, ao contrário, acompanha cada um de nós apenas
como uma espécie de sombra.108
O corpo é o cárcere, propriamente a caverna da alma, conforme a doutrina
órfica. O corpo é o empecilho primeiro e maior, algo ”pesado e opressivo” a tornar a alma
”maculada e impura” com seus desejos, prazeres, dores e sofrimentos desejo e dor,
prazer e sofrimento, sob o mesmo valor desprezível, obrigando a alma a não ser idêntica
a si mesma, a modificar-se continuamente. Apenas o invisível, apenas o só concebível, e
que portanto não se modifica, poderia ser verdadeiro. Todo o trabalho dos filósofos
consistiria em libertar e separar a alma do corpo - o que implica, sem paradoxo, desejar a
morte. ”Ou é inteiramente impossível obter um saber, ou só é possível após nossa morte.
Isso porque, então - e não antes disso -, a alma estará sozinha consigo mesma, apartada
do corpo.”109 No aqui e no agora, portanto, não poderia haver nem justiça, nem
conhecimento verdadeiro.
Ao profundo pessimismo platônico em relação ao Aqui, corresponde
formidável otimismo em relação ao Além, reconhecendo-se, desse modo, uma das fontes
da sociedade ocidental cristã. Da recusa do corpo e do Aqui deriva o princípio: o que é
perfeitamente bom só pode se fazer pior pela mudança.110 De fato, seria ”impossível que
aquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo (a lei) se relacione de forma
suportável com o que jamais permanece idêntico a si próprio (as relações humanas)”.111
Como lidar, então, com tal relacionamento insuportável? Platão, bem como
os platonismos que o seguiram, não propunha formas de tolerância - de suportabilidade,
poderíamos dizer -, mas, coerentemente, defendia um sistema que começaria por
expulsar os poetas e a poesia, ícones da diferença, da invenção e, portanto, da mudança.
Esse sistema calcava-se no método pedagógico de Sócrates, a maiêutica, que
pressupunha verdade preexistente aos sujeitos, justamente imutável, dada desde sempre
- restava lembrá-la, por uma espécie de parto. A maiêutica não impedia, entretanto, que o
108 Ibidem, p. 511. 109 Idem, Íbidem, p. 113. 110 Idem, ibidem, p. 467. 111 Idem, ibidem, p. 499.
Sócrates platônico torcesse as verdades ”partejadas” até que elas chegassem ao status
de ”verdades” convenientes à ordem e ao princípio de não-mudança. O fim - no caso, o
Bem e a Justiça -justifica o meio - no caso, a mentira consciente. A verdade socrática é
uma verdade pedagógica, ou seja, deriva da necessidade de conduzir os demais (por
definição infantes incapazes de conduzir-se, ou de falar-se, a si mesmos). E a pedagogia,
que define a priori horizonte determinado para o qual quer levar suas ”crianças”, precisa
pôr a verdade sempre abaixo da Justiça e do Bem - isto é, subordinada à meta, aos fins.
O filósofo pergunta sobre quem seria o mais injusto: aquele que engana
intencionalmente seus amigos, ou aquele outro que, sem querer, diz uma inverdade? Ele
mesmo responde, de modo paradoxal, mas coerente: é mais injusto quem mente
involuntariamente - porque não sabe qual é a verdade, sendo incapaz de agir de forma
justa (a não ser por acaso). Pressupõe-se, naturalmente, que o mais justo, porque é
consciente, minta, ou engane, motivado apenas por bons propósitos, já que quem conduz
os outros só poderia desejar o Bem do Todo (que não será exatamente igual ao bem de
todos). Platão declara, em conseqüência, a mentira legítimo instrumento da educação.
Proíbe com o máximo rigor que se minta para o governo, ou para o professor, mas
reserva a ambos o direito de empregar a mentira como indispensável instrumento de
educação ou de governo. As castas devem ser construídas a partir de pseudo-mitos que,
no decorrer de poucas gerações, se tornem verdades, de tanto se repetirem. As pessoas
devem acreditar que ”nasceram para” governar, ou para combater, ou para serem
governadas, ou para servir.112 Nas reuniões pedagógicas, não combinamos certos
procedimentos que os alunos não devem conhecer? Não concordamos, mestres à direita
ou à esquerda, em contar aos alunos apenas meias-verdades (que são, é claro, meias-
mentiras), sobre assuntos de avaliação e disciplina, principalmente? Em muitos casos,
mesmo supondo que mentir (ou semi-dizer) nos constranja, não vemos alternativa, sob
pena de perdermos... o controle.
Olhemos, pouco que seja, o nosso próprio ”rabo”: ele se deita sobre a
sombra de Platão. Os alunos das nossas escolas precisam acreditar que ”dão” para
Matemática, ou para línguas, ou que não ”dão” para nada, enquadrando-se em castas
que justificam, tautologicamente, a classificação, disciplinar, em castas. A verdade
platônica se admitia, portanto, como verdade construída e construível, e não exatamente
revelada, ou desvelada, embora não se reconhecesse publicamente como tal. É como se
germes de Maquiavel - e de um Piaget sem ingenuidade - hibernassem nos discursos
socráticos.
Percebe-se, então, a partir da recusa do corpo e da diferença, afinidade
estreita da verdade pedagógica platônica com a sua concepção de amor. Construir a
verdade, de maneira a subordiná-la à justiça, ao invés de buscá-la, de maneira
desinteressada, deriva do interesse, político, de conduzir, como pedagogos, os moços.
Semelhante condução, ou educação, pretende-se amorosa, sim - mas nos termos
platônicos. Nesses termos, a recusa do corpo, em nome de uma alma invisível, não
contradiz o interesse amoroso. É por amor aos homens que se deseja modelá-los como
deveriam ser, o que obriga a, como condição prévia, recusá-los como são, aqui e agora.
Mesmo nos dias que correm, as reuniões pedagógicas de escolas e universidades
costumam se perguntar ”que aluno queremos formar”, ou ”que aluno queremos ter”,
evitando a questão anterior: que aluno de fato temos; que pessoas se encontram em
nossas salas, olhando para nós. Essa questão se evita porque se recusam os corpos que
existem, em nome de ”corpos” e discursos que deveriam existir, isto é, em nome de almas
invisíveis. Outra coisa não é o chamado amor platônico. Todos conhecemos a expressão,
independente de conhecermos Platão. Imaginamo-la ligada a adolescentes tímidos que
não têm coragem de se declararem à amada, ou então jovens histéricas adorando
cantores de rock que nunca poderão sequer tocar. Ora, nos dois casos, da timidez e da
histeria, não há amor, propriamente, porque não há relação, a não ser com o próprio
umbigo. Se não há relação, logo, não há heterossexualidade; de maneira direta ou
indireta, recusam-se o outro e a diferença. Por via de conseqüência, o que temos?
Homossexualidade (em sentido estrito, não necessariamente genital, amor por si mesmo,
ou pelo que se lhe assemelhe). A homossexualidade, ao menos como a formula Platão,
faz parte da sua tentativa, de resto impossível, ou absurda, de recusar o corpo e a vida
para ficar com a alma e a morte. Apenas no amor homossexual o filósofo supõe haver a
possibilidade de abstenção da satisfação do impulso sexual. Em decorrência, esse amor
pode ser sublimado no desejo, pedagógico, de conduzir os semelhantes mais novos, ou
seja, os moços. O amor platônico, portanto, é uma espécie de eufemismo para a
pederastia.113
O impulso pedagógico é muito freqüentemente, com relação ao objeto,
apenas uma vontade de poder amoldada ao sujeito. A pederastia e a educação de jovens
compõem o conteúdo de uma tal vida, que ideologicamente oculta a si mesmo sua
112 Idem, ibidem, pp. 199-201/235-238. 113 Idem, ibidem, p. 88.
situação ao declarar que o mundo dos adultos é demasiado corrupto para que possa ser
reformado.114
Deriva daí histórico preconceito: de que os gregos, como sugere a
expressão libido grega, preferiam o amor homossexual ao heterossexual, reservando este
apenas para a reprodução. Entretanto, Kelsen chama a atenção que isto não é uma
verdade grega, mas platônica; para confirmar, é só lembrar das comédias de Aristófanes,
que ridicularizavam os personagens homossexuais, e do mito de Édipo: Laio foi punido,
com a maldição do oráculo, exatamente porque seduzira o belo Crísipos.
A preocupação platônica com a justiça legitima a dominação que se articula,
em conjunto harmônico com as verdades que se constroem. Um mundo demasiado
corrupto não poderia ser compreendido e, então, reformado; é preciso construir um outro
mundo, um verdadeiro paraíso platônico - onde só houvesse almas, ou, ao menos, só
houvesse homens. Recusa-se o corpo porque se recusa o tempo presente, em nome de
um Além que apenas o filósofo saberia definir, e ainda assim para os muito poucos que
soubessem escutá-lo. A pedagogia nasce da denegação da História. Os pedagogos
forjam-se a partir do amor ao que não muda e, portanto, não existe.
As considerações de Kelsen tentam iluminar a sombra platônica que reside
nas costas da cultura (e da escola, de acordo com a nossa apropriação daquelas
considerações), o que nos leva ao capítulo seguinte. Mas, antes dele, cabem duas
advertências.
A primeira é do jurista Cesare Beccaria, nascido em 1738: ”É necessário
evitar associar à palavra justiça a idéia de algo real, como uma força física ou um ser vivo;
ela é uma simples maneira de conceber dos homens”.115 Beccaria já reagia ao
platonismo, recusando-se a pensar em termos de essência da justiça - admitia o
dinamismo do conceito. A segunda advertência é do filósofo Michel Foucault, em
conferência de 1973, proferida no Brasil: ”Atrás do conhecimento há uma vontade, sem
dúvida obscura, não de trazer o objeto para si, de se assemelhar a ele, mas ao contrário,
uma vontade obscura de se afastar dele e de destruí-lo, maldade radical do
conhecimento.”116
Em outras palavras, a libido cognoscendi confunde-se, irremediavelmente,
114 Idem, ibidem, p. 67. 115 Cesare Beccaria. Dos delitos e das penas, p. 46.
com a libido dominandi.
116 Michel Foucault. A verdade e as formas jurídicas, p. 21.
À SOMBRA DA CELA
Já em Platão, a escola era um sucedâneo para a política e, ao mesmo
tempo, o virtual embrião do Estado verdadeiro.117 Ainda que não houvesse a escola como
a conhecemos hoje, a pedagogia, a orientação dos jovens, se encontrava na base, ou na
sombra, da política.
A sala de aula contemporânea remete à cela contemporânea. Ainda que
uma liberdade parcial se apresente, ruidosa, ao toque estridente do ”sinal” que anuncia o
recreio ou o final do dia, a sensação de aprisionamento, para mestres e discípulos,
recomeça, mais ou menos difusa, no ”tempo” seguinte, na aula seguinte, no dia seguinte,
na semana seguinte, no período letivo seguinte. Sensação que se reforça quando a
inspetora e/ou coordenadora e/ou diretora observam mestre e discípulos, indiscretas, pelo
vidrinho da porta da sala, fazendo todos se sentirem como peixes vermelhos
”disciplinados” dentro de um aquário.
Disciplina-se pela arquitetura externa e interna da escola, disciplina-se pela
localização e postura do professor, disciplina-se pela distribuição compulsória dos alunos
na sala, disciplina-se pela divisão estanque do conhecimento em... disciplinas. Disciplina-
se, principalmente, através da moeda de troca da escola, qual seja, a nota: o
enquadramento dos indivíduos em terços superiores, medianos (medíocres) e inferiores
(irrecuperáveis). Sem prejuízo de sistemas paralelos de enquadramento e penalização
(advertência, castigo, suspensão, expulsão), a nota configura o principal mecanismo
penal da escola. Porque: ”na essência de todos os sistemas disciplinares, funciona um
pequeno mecanismo penal”.118118
É como se as instituições não-jurídicas quadriculassem espaço deixado
vazio pelas leis maiores, reprimindo o conjunto dos comportamentos que escapam aos
grandes sistemas de castigo. Na fábrica, no exército e na escola há toda uma
micropenalidade do tempo (atraso, falta), da atividade (desatenção, negligência,
interrupção), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice,
insolência) do corpo (postura, sujeira, vestuário), da sexualidade (imodéstia, indecência).
Configura-se uma justiça criminal miúda, apequenando vítimas e agentes. A prisão,
portanto, não se mostra, socialmente, como um espaço tão diferente assim, tão pior do
que aqueles em que vivemos e convivemos: ”a prisão: um quartel um pouco estrito, uma
117 Hans Kelsen. Obra citada, p. 178. 118 Michel Foucault. Vigiar e punir, p.159.
escola sem indulgência, uma oficina sombria, mas, levando ao fundo, nada de
qualitativamente diferente”. 119
Nesse ponto os leitores, habituados a assistir a filmes de penitenciárias
cruéis, podem rejeitar a semelhança e a isonomia. Nas prisões, homens ficam com
homens, humilham-se e violentam-se entre si, sem contar a ação de carcereiros
estúpidos. É verdade. Mas, na escola, meninos não tendem a ficar com meninos, não
exercem nenhum jogo de humilhação e dominação, que não apenas reproduz como ainda
intensifica o controle que já sofrem (sem contar a ação de bedéis grosseiros)?
A pergunta é retórica; imaginamos que os leitores, constrangidos, aceitem a
resposta infelizmente afirmativa, a despeito de importantes diferenças de grau entre os
procedimentos e os acontecimentos de uma escola e de uma prisão. Mas as diferenças
de grau antes confirmam que desmentem a isonomia, a qual ocorre também em relação
às críticas estruturais que as duas instituições - prisão e escola - recebem.
Entretanto, as observações que fazemos não são novas e não apontam, via
de regra, para soluções alternativas. É certo que a nota é um sistema precário de
estímulo à aprendizagem, muito mais próximo do chicote e do tablete de açúcar do
domador de cavalos, mas não se inventou nenhum melhor. Se o professor abole a nota
das suas aulas, em nome do saber sem penalidades, fica sem alunos e sem emprego.
Todo argumento que retome a ordem ”É PROIBIDO PROIBIR” - ou, ”é proibido avaliar,
porque toda avaliação é uma penalização” - contradiz seus próprios termos. A abolição
simples da nota tem, por trás, na sombra, uma teoria do ser humano, e do conhecimento,
deveras ingênua: a de que se pode querer aprender sem interesse como querer, sem
querer? Logo, cabe examinar, com um pouco de paciência, os interesses históricos que
construíram a escola (e a prisão) que conhecemos. A prisão, assim como a escola, vem
há séculos recebendo graves críticas sobre a sua ineficiência, pelo menos em relação a
seus objetivos explícitos - recuperar criminosos para a sociedade e para a cidadania
responsável -, e todas as críticas apontam, como solução do problema, o próprio
problema. Isto é, todas as críticas sugerem a reforma da prisão, mesmo sabendo que
nenhuma reforma, dentre as poucas que foram promovidas, deu o menor salto qualitativo.
A ponta do nó górdio da questão, nunca desatado ou rompido, pode
aparecer justamente através dessa comparação entre a cela e a sala. O poder penal
119 Idem,ibidem,p.208.
maior e os micropoderes institucionais são, simultaneamente, disciplinares e
epistemológicos. Enquanto o sistema escolar a todo momento pune e recompensa, como
tribunal permanente, o sistema penal stricto sensu a todo momento estuda o
comportamento e a ação dos homens e das leis, arbitrando para conhecer, conhecendo
para arbitrar - arbitrariamente, sempre. Todo saber é uma forma de poder, e vice-versa.
Entre as formas de saber-poder da sociedade ocidental, Foucault vislumbra duas grandes
linhas: a do inquérito e a do exame.
O inquérito é uma forma de pesquisa da verdade que aparece como
ordenação jurídica na Idade Média, mas já se enunciava na história de Édipo-Rei. Édipo é
provavelmente o primeiro de todos os detetives, que reconstrói a verdade, com ajuda de
testemunhas e deduções, até encontrar o último (em termos morais) de todos os
criminosos, aquele que matara o próprio pai e dormira com a própria mãe: ele mesmo,
enfim. Quer dizer, a primeira de todas as histórias de detetive já enunciava o paradoxo
perturbador da procura humana pelo conhecimento, pela causa, portanto pelo culpado: a
investigação termina por apontar, como um bumerangue metafísico, para o próprio
investigador.
É disso que Rimbaud falava, ao afirmar: je est un autre. É a isso mesmo que
Nietzsche se referia, quando alertava: o perigo de olhar para um abismo se encontra na
possibilidade de surpreender o abismo olhando para você...
O inquérito, prefigurado em Édipo, substitui o flagrante delito; testemunhas
reconstroem o delito que não pôde ser flagrado. ”Tem-se aí uma nova maneira de
prorrogar a atualidade, de transferi-la de uma época para a outra e de oferecê-la ao olhar,
ao saber, como se ela ainda estivesse presente”.120 Presentifica-se o crime; atualiza-se o
que foi, como se estivesse sendo. O inquérito, judiciário, a partir do século XII espalha-se
como forma de saber na Medicina, na Botânica, na Zoologia; daí nascem, mais tarde, a
Estatística, a Economia, a Geografia, a Astronomia. Estudam-se os fenômenos a
posteriori, para presentificá-los. Mas, no século XIX, seguindo o espírito arrogante do
cientificismo, configura-se uma nova forma de saber-poder que pretenderá estudar os
fenômenos a priori, isto é, controlá-los desde suas primeiras causas. Trata-se do exame.
O exame começa na prisão. A prisão surge como instituição de fato,
praticamente sem justificativa teórica, para só depois provocar conceitos e noções que a
120 Michel Foucault A verdade e as formas jurídicas, p. 72.
sustentassem, como a escandalosa noção de periculosidade: ”a noção de periculosidade
significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas
virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei
efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam.”121121 A justiça,
primeiro, e depois a escola, o hospital, o asilo, a polícia, atribuem-se menos a função de
punir as infrações dos indivíduos, mais a de corrigir suas virtualidades. Entra-se na idade
do que Foucault chama de ”ortopedia social”. Seu ideólogo chama-se Jeremy Bentham;
sua planta baixa é a do Panopticon.
O Panopticon era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um
pátio com uma torre no centro. O anel se dividia em pequenas celas que davam tanto
para o interior quanto para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas, havia,
segundo o objetivo da instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário
trabalhando, um prisioneiro se corrigindo, um louco atualizando sua loucura etc. Na torre
central havia um vigilante. Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o
exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela; não havia nela nenhum ponto
de sombra e, por conseguinte, tudo o que fazia o indivíduo estava exposto ao olhar de um
vigilante que observava através de venezianas, de postigos semicerrados de modo a
poder ver tudo sem que ninguém ao contrário pudesse vê-lo. [...] O Panopticon é a utopia
de uma sociedade e de um tipo de poder que é, no fundo, a sociedade que atualmente
conhecemos - utopia que efetivamente se realizou. Esse tipo de poder pode perfeitamente
receber o nome de panoptismo.122
Em suma, o princípio da masmorra é invertido. A visibilidade é uma
armadilha, porque o poder deve simultaneamente ser visível e inverificável. Visível,
porque a todo instante o detento (o aluno, o operário) vê o que pode vê-lo - a torre de
vigia, o vidro da sala de aula (do aquário). Inverificável, porque o detento (o aluno, o
operário) nunca sabe quando está sendo observado. Dissociando o par ver/ser visto, se
automatiza e se desindividualiza o poder.123 Para Bentham, o panóptico seria ”a new
mode of obtaining power of mind over mind”.124 O panóptico prenuncia as tentativas
futuras, tautológicas, de a mente obter poder sobre... a própria mente. É o uroboro
filosófico, o conhecido dragão de M. C. Escher (que, em gravura de 1952, tanto se torce
que forma também o sinal de infinito), o monstro que tenta devorar o próprio rabo e,
121 Idem, ibidem, p. 85. 122 Idem, ibidem, p. 87. 123 Michel Foucault. Vigiar e punir, p. 177. 124 Jeremy Bentham. The panopticon writings, p. 31.
portanto, a si mesmo, na petição de princípio em que caem, constantemente, os
reformadores do mundo ou da humanidade.
A essência do panóptico reside na centralidade da situação de inspeção, ou,
na construção, sem dúvida ficcional, de uma espécie de ”inspetor central”, onipotente,
onipresente e, principalmente, onividente: ”sua essência consiste, então, na centralidade
da situação do inspetor, combinada com a famosa e eficaz artimanha do ver sem ser
visto”.125 A base dessa arquitetura institucional, portanto, é o exame contínuo (a prova, o
teste), para controlar no nascedouro as causas dos desvios. O sujeito torna-se culpado
(ou burro, ou louco, ou doente) até prova (exame) em contrário. Em todos os dispositivos
de disciplina, o exame, então, tem de ser altamente ritualizado basta tentar observar, de
fora, exames psicotécnicos, exames orais, exames médicos, exames vestibulares; ”a
superposição das relações de poder e de saber assume no exame todo o seu brilho
visível”.126
A escola torna-se um aparelho de exame ininterrupto. Compara-se, o tempo
todo, cada um com todos, o que permite medir e sancionar. O exame faz a individualidade
entrar num campo documentário, arquivando cada um dentro de uma rede de anotações
escritas; sucedem-se boletins, relatórios, avaliações, em que não apenas mestres
controlam alunos, mas coordenadores controlam mestres, pais controlam coordenadores,
todos controlam todos. O controle, todavia, não parece garantir um melhor ensino, ou um
aluno melhor, e menos ainda um professor melhor. Reúnem-se então circunspectos
Conselhos de Classe para, depois de prolongadas e cansativas discussões não
remuneradas, propor-se... mais controle. A semelhança com as campanhas pela reforma
das prisões não é mera coincidência.
Recentemente, no Brasil, o Ministério da Educação nos oferece mais um
exemplo do frisson examinante, criando o chamado ”provão” de fim de curso, nas
universidades. A pretexto de examinar a qualidade das universidades, submetem-se os
alunos que se graduam a um exame nacional, para conferir se eles foram bem
”formados”. Gasta-se uma fortuna para saber o que já se sabe: os alunos que estudaram
em faculdades devidamente autorizadas pelo poder público são informados, pelo mesmo
poder público, que foram ”mal formados”. Pressupondo que haja verdade e sinceridade
nas intenções oficiais (logo, supondo ingenuidade nossa), sobraria o veredicto de
”estupidez” - por que atirar no pato (no graduando) para acertar no lago (na faculdade
125 Idem ibidem, p. 43.
ruim)? - se a medida não fosse isonômica, portanto coerente, com a (ir)racionalidade
dominante.
Antes, estudavam-se cuidadosamente os heróis, os reis, ou os grandes
bandidos; agora, estuda-se com cuidado indivíduo por indivíduo, mas o processo não é
mais o de heroificação, antes de objetivação e de sujeição. Os sujeitos tendem a se
individualizar antes por desvios - por desobediência, loucura, ou delinqüência - do que por
proezas. Substitui-se a individualidade do homem memorável pela do homem
calculável.127 Essa é a utopia panóptica - que, para meia-sorte nossa, não se pode
realizar plenamente. Detentos fogem, loucos riem de enfermeiros, alunos namoram e
”colam”, doentes desobedecem às prescrições médicas.
Freud já lembrava que o objetivo do Eu (do ego, como também se traduz) é
manter a qualquer preço o controle da situação para conservar o prestígio. Nisto as
doutrinas pedagógicas seriam eu-óicas, pois visam primordialmente ao domínio da
criança e de seu desenvolvimento, implicando o desconhecimento da impossibilidade
estrutural desse domínio. Não há outro domínio que o do Eu, mas trata-se de um domínio
ilusório (domínio de uroboro). Na relação pedagógica, como, aliás, em qualquer relação, o
inconsciente do educador possui peso muito maior que todas as suas intenções
conscientes. Freud, com conhecimento de causa, incluía a educação entre as profissões
impossíveis, ao lado da psicanálise e da arte de governar. As três repousam sobre os
poderes que um homem pode exercer sobre outro mediante a palavra, e as três
encontram os limites de sua ação, em última instância, no fato de que não se submete o
inconsciente - pois é ele que nos sujeita.128
Mas, para meio-azar nosso, e dos alunos, o esforço de controle e de
domínio implica conseqüências que põem do avesso princípios e ideais. O poder
panóptico pretenderia eliminar a cola, o que, indubitavelmente, não consegue. Isto pode
ser bom, porque significa que o indivíduo reage ao controle e à desindividualização. Mas
isto mesmo pode ser mau, se termina por tornar a cola uma das subinstituições mais
fortes da escola, ensinando, desde os primeiros exames, a desonestidade intelectual -
mãe de todas as corrupções. Proibir promove - e promovendo, ainda assim controla. Ou,
controla melhor assim. A prisão, criada para ressocializar criminosos, produz, na verdade,
como pós-graduação do crime, delinqüentes em profusão. A escola, criada para ensinar e
126 Michel Foucault. Vigiar e punir, p. 165. 127 Idem, ibidem, pp. 166-172. 128 Catherine Millot. Freud antipedagogo, pp. 149-151.
formar cidadãos, forma, também, contingentes de trabalhadores semi-honestos e
semicapazes - em outras palavras, desonestos consigo mesmos e com seus parcos
saberes.
São falhas ou condições do sistema? É o que se tentará responder a seguir.
À SOMBRA DO FÓRUM
Manchete do jornal O Globo, de julho de 1996, conta que a Justiça interditou
o Presídio de Guarulhos, em São Paulo, transferindo os presos para outro local. Um
exame técnico havia indicado que a fundação do prédio fora danificada e ameaçava
desabar, graças aos túneis construídos por presos em fuga. A polícia já havia encontrado
56 túneis sob o presídio.
Como é que se podem cavar 56 túneis sob as barbas dos diretores, dos
guardas e dos carcereiros, a ponto de ameaçar ruir toda a construção? A pergunta é, ao
mesmo tempo, ingênua e esperta. A pergunta é ingênua, porque supõe diretores, guardas
e carcereiros, todo o sistema, como unívoco, sem contradições, sem corrupções. A
pergunta é esperta, porque aponta para uma excelente, ainda que casual, metáfora: o
presídio que ameaça ruir, com suas fundações minadas por dezenas de túneis cavados
diuturnamente pelos presos, como se fossem toupeiras que às cegas procurassem a luz -
encontrando, no lugar, a delinqüência.
A prisão constrói as suas próprias cavernas de sombras, o que nos remete à
afirmativa categórica de um dos mais importantes juristas brasileiros: ”a prisão não
regenera nem ressocializa ninguém; perverte, corrompe, deforma, avilta, embrutece, é
uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas onde se diploma o
profissional do crime”.129 Esse jurista vê a prisão, na verdade, como uma incubadora, uma
reprodutora de criminosos: ”a prisão é má por si mesma, pela própria prisão, e o mal
ainda se agrava, nas nossas penitenciárias e nos xadrezes das delegacias de polícia,
pela promiscuidade, pela superlotação, pela ociosidade, daí decorrendo toda a sorte de
perversões e brutalizações sexuais, que atingem, de preferência, os mais jovens.”130
Evandro Lins e Silva completa seu argumento, falando da hipocrisia do
sistema penal:
Jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que quando entrou. E o
estigma da prisão? Quem dá trabalho ao indivíduo que cumpriu pena por crime
considerado grave? Os egressos do cárcere estão sujeitos a uma outra terrível
condenação: - o desemprego. Legalmente, dentro dos padrões convencionais, não podem
viver ou sobreviver. A sociedade que os enclausurou sob o pretexto hipócrita de reinseri-
129 Evandro Lins e Silva. De Beccaría a Filippo Gramática. 130 Evandro Lins e Silva Arca de guardados, p. 240.
los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os. Deixa, aí sim, de haver
alternativa, o ex-condenado só tem uma solução: - incorporar-se ao crime organizado.131
O advogado tem consciência do clamor popular por mais prisões, por penas
mais duras (leia-se, mais cruéis), e, em última instância, pela pena de morte, mas não se
furta a pensar a contradição embutida nesse clamor: ”os partidários da volta a métodos
bárbaros de repressão. Não entendem que estão transformando homens em feras e
aumentando a legião dos desajustados.”132 O que nos obriga a dar ouvidos a outro
eminente jurista brasileiro, Nelson Hungria, citado por Evandro: ”o crime não é apenas
uma abstrata noção jurídica, mas um fato do mundo sensível, e o criminoso não é um
impessoal modelo de fábrica, mas um trecho flagrante da humanidade.” Entender o
criminoso como um ”trecho flagrante da humanidade” implica admiti-lo, também, como
sintoma e como sombra, quer do legislador, quer do cidadão. Exterminá-lo, pura e
simplesmente, ou enclausurá-lo, não dá conta do problema social: novos sintomas e
novas sombras se produzem.
No Brasil, o censo penitenciário de 1996, realizado pelo Ministério da
Justiça, contabiliza números vergonhosos:
148.760 presos (15% a mais do que em 1994), com pelo menos um terço
em situação irregular, isto é, cumprindo pena não em presídios, mas amontoado em
delegacias ou cadeias. Só para colocar os condenados em celas minimamente decentes
seria preciso construir 145 presídios, ao custo de 1,7 bilhão de reais
- o que é inteiramente inviável (logo, mantêm-se 150 mil pessoas em
condições de barbárie e crueldade).
Alguns países já conseguiram avançar para privilegiar penas alternativas,
que não impliquem encarceramento: na Inglaterra, o índice de penas alternativas é de
50%; nos Estados Unidos, de 68%. No Brasil? Apenas 1% (para ser exato, um vírgula
dois por cento) dos condenados brasileiros cumpre penas alternativas.133 Não só fomos o
último país do Ocidente a abolir a escravidão, como permanecemos na retaguarda dos
retardatários. Como já admitia Beccaria, no século XVIII, e admite Lins e Silva, no século
XX, a prisão é sombra da hipocrisia de um poder, ou de um fórum, que constrói imensos
prédios para melhor ressocializar, de acordo com suas intenções explícitas, aqueles que
131 Evandro Lins e Silva. De Beccaría a Filippo Gramática. 132 Idem, ibidem.
se tenham desviado, sem aparentemente observar o óbvio: o efeito de fato alcançado é o
avesso do efeito assumido como desejado.
O procedimento do exame, que se espalhou do tribunal à escola, passando
pela burocracia e pelo hospital, intenta controlar as próprias intenções dos sujeitos, no afã
de prevenir e dirigir mesmo os atos que ainda não foram consumados. A ética pragmática
de Beccaria, no entanto, já admitia que ”a única e verdadeira medida dos delitos é o dano
provocado à nação, e por isso erraram aqueles que pensavam ser a real medida dos
delitos a intenção de quem os comete”.134 Entendia, com propriedade e bem antes de
Freud, que não temos nem podemos ter acesso direto às reais intenções das pessoas,
porque nem podemos ter acesso direto e completo às nossas próprias intenções mais
profundas - tantas vezes, sabemos o que queríamos só depois: ”a gravidade do pecado
depende da imperscrutável malícia do coração, a qual não pode ser conhecida, por seres
finitos, sem uma revelação. Como, pois, poderia essa malícia constituir-se em norma para
a punição dos delitos?”135
Logo, ”resulta evidente que o fim das penas não é atormentar e afligir um ser
sensível, nem desfazer um delito já cometido”. O fim último de todo sistema penal,
portanto, seria apenas o de ”impedir que o réu cause novos danos aos seus concidadãos
e dissuadir os outros de fazer o mesmo”.136 Ele admitia a prisão apenas como recurso
extremo, ou, como ecoa Evandro, ”ultima ratio, ou seja, a segregação só em último caso,
para os perigosos”.137 O que se viu, entretanto, foi a aplicação da prisão em todos os
casos, multiplicando os problemas de verba e de superlotação dos presídios. Desde seu
advento institucionalizado, crescem as críticas ao fracasso da prisão, sem que se abale
seu prestígio público. As campanhas contra a impunidade exigem que se prendam mais
pessoas, mesmo quando se publica que o número de crimes não diminui, que o número
das reincidências aumenta, não decresce.
Texto de 1831, assinado por Julius, já compreendia:
O sentimento de injustiça que um prisioneiro experimenta é uma das causas
que mais podem tornar indomável seu caráter. Quando se vê assim exposto a sofrimentos
que a lei não ordenou nem mesmo previu, ele entra num estado habitual de cólera contra
133 Dados da revista Veja de 23 de outubro de 1996. 134 Cesare Beccaria. Obra citada, p. 55. 135 Idem, ibidem, p. 57. 136 Idem, ibidem, p. 65. 137 Evandro Lins e Silva. De Beccaria a Filippo Gramática.
tudo que o cerca; só vê carrascos em todos os agentes da autoridade; não pensa mais ter
sido culpado; acusa a própria justiça.138
A despeito, a prisão se mantém. As críticas sugerem somente reformas,
dando a prisão (melhorada) como remédio da própria prisão, ”a realização do projeto
corretivo como o único método para superar a impossibilidade de torná-lo realidade”.139
Ora; o pretenso fracasso da prisão pode estar escondendo, cinicamente, o seu verdadeiro
sucesso. A hipótese de Foucault é de que a prisão e seus castigos não se destinam a
suprimir as infrações, mas antes a distingui-las e utilizá-las; não visam a tornar dóceis
potenciais transgressores, mas antes organizar a transgressão num sistema de sujeições.
A prisão não pretenderia nem eliminar nem reduzir a criminalidade, mas antes organizá-la
numa espécie de economia de poderes subterrâneos e eficientes.140
Não à toa colarinhos brancos entram na prisão apenas como diretores ou
visitadores. A mais ingênua das polyanas sabe, hoje em dia, que a lei se diz feita para
todo mundo em nome de todo mundo, mas na verdade, verdadeira, é feita para alguns e
se aplica a outros. A prisão não teria fracassado em reduzir os crimes, antes tido sucesso
em ”produzir a delinqüência, tipo especificado, forma política ou economicamente menos
perigosa - talvez até utilizável - de ilegalidade”.141 A existência visível, marcada, da
delinqüência, pesa sobre outras ilegalidades e revoltas populares que ameaçariam, estas
sim, os poderes vigentes. Produz-se um mal menor, isto é, o sofrimento de delinqüentes e
suas vítimas de ocasião, para controlar o mal maior, ou seja, o risco de perder qualquer
fatia de poder. Nesse sentido, o pretenso mal menor se torna um bem: a marginalidade
delinqüente se torna fundamental para circunscrever e fixar as fronteiras da sociedade.
O caso do Rio de Janeiro, cidade em que moramos, em 1997, ano em que
começamos esta pesquisa, é emblemático. A cidade se encontrava aparentemente sitiada
pelos traficantes de drogas, encastelados nos morros e nas favelas. Expedições policiais
e militares para desalojá-los representaram fracassos vergonhosos. É impossível
compreendermos a situação se não a pensarmos como resultante de um conjunto de
acordos, íntimos, entre as forças da ”ordem” e as forças, paradoxalmente muito melhor
armadas, da ”desordem”. Tais acordos não precisam estar escritos, nem serem claros;
basta que funcionem, à sombra, e como sombra mesma, do fórum, das leis, e do
138 Em Michel Foucault Vigiar e punir, p. 235. 139 Idem, ibidem, p. 237. 140 Idem, ibidem, p. 240. 141 Idem ibidem, p. 244.
parlamento democrático.
A prisão é a região mais sombria do aparelho de justiça, e não apenas
porque os seus túneis de fuga seriam um pouco mais escuros do que os corredores dos
tribunais. A prisão ”é o local onde o poder de punir, que não ousa mais se exercer com o
rosto descoberto, organiza silenciosamente um campo de objetividade em que o castigo
poderá funcionar em plena luz como terapêutica e a sentença se inscrever entre os
discursos do saber”.142
Um juiz de direito lembra o serviço que o crime presta à lei:
Logo, se não há crime sem lei anterior que o defina, por outro lado não há lei
sem crime posterior que a ratifique, sendo só meia verdade declarar que a lei serve ao
Direito: a irreverência também serve, ao impedir que o sistema jurídico se dilua no vácuo,
sem respostas. E como a norma jurídica, para sobreviver, reclama desobediências
eventuais, ela própria arruma então um jeito fundamental de ser contrariada: e no simples
brandir do castigo já ela excita à rebeldia pois de antemão não se anunciam penas
quando se crê na força do comando. Perfeita réplica do verbo divino, a lei assim freia
ostensiva através do preceito e estimula dissimulada justo mediante a propaganda da
sanção com a qual de público admite previamente que será violentada, emitindo dessa
maneira, como fizera Jeová, um convite tão subliminar quanto rendoso à insurreição.143
Os fatos, às vezes, mentem; contêm mentiras que, curiosamente, os
esclarecem. A lei, que reprime, estimula o que reprime, será possível? Parece: ”a lei
proíbe sim o uso de armas porém autoriza a respectiva fabricação e em tal quantidade
que, em vez de sequer dificultar, praticamente impinge o desacato. Limita a velocidade do
trânsito permitindo entretanto a produção de veículos quase capazes de voar.”144 Se
correr, o bicho (a lei) pega; se ficar, o bicho (a infração) come. Somos presos por ter cão,
e depois (ou ao mesmo tempo) presos por não ter cão. Trata-se de duplos vínculos:
ordens que se anulam mutuamente, ordens proferidas não para serem cumpridas, mas
para obrigar à culpa.
Em Bentham, isto já tinha um nome: the fiction of God.
142 Idem,ibidem,p.227. 143 João Uchôa Cavalcanti Netto. O Direito, um mito, p. 52. 144 Idem, ibidem, p. 98.
À SOMBRA DO DEUS
A utopia panóptica - em si mesma uma obra de ficção gerou outras tantas
obras de ficção. Muitos livros tematizaram o panóptico, em geral para repudiá-lo, ou
exorcizá-lo. Dentre eles, o romance mais conhecido é 1984, de George Orwell, em que a
figura onipresente e onividente (entretanto, inexistente) do inspetor-geral toma a forma do
Big Brother, enfim, de um grande Olho que pode ver todos os recantos. Orwell escreveu-o
em 1948, invertendo os dois últimos algarismos para situar sua utopia negativa. Depois
dele, outros autores exploraram o medo de um futuro monista e panóptico, como Aldous
Huxley (Admirável mundo novo), William Golding (O senhor das moscas) e Anthony
Burgess (Laranja mecânica). Mas, antes deles, um dissidente russo, Eugene Zamiatin, já
enfrentava a idéia panóptica, com sua obra-prima: Nós.
Nós foi escrito em 1921, mas não o aceitaram para publicação. Lido,
conforme era costume à época, numa reunião do Sindicato dos Escritores Russos, em
1923, provocou violentos ataques dos críticos e escritores do partido - exatamente porque
se tratava de uma sátira cáustica às sociedades esquemáticas e totalitárias. No ensaio
”Literatura, Revolução, Entropia e Outros Temas”, o escritor defende sua opção estético-
política com clareza: ”A literatura nociva é mais útil do que a literatura útil, porque é anti-
entrópica, é um meio de combater a calcificação...”.145 Eugene mostrava-se, assim, ”mais”
dialético do que os defensores ”oficiais” da dialética. Formulava seu argumento como um
paradoxo - a literatura nociva seria mais útil do que a literatura útil, isto é, do que a
literatura que vê a si mesma como ”útil” à Revolução - revolução que se calcifica no
instante exato em que se arrota maiúscula.
Um dos pontos altos do romance é o tributo irônico ao ”Horário, coração e
pulso do Estado Uno”. A crítica ao panoptismo aqui se apresenta com todas as letras (e
algarismos):
O Horário... Nesse momento, da parede da minha sala, seus algarismos
roxos em campo dourado olham-me nos olhos, meigos e sérios. Involuntariamente, meus
pensamentos se voltam para o que os antigos chamavam de ”ícone” e sinto um desejo
intenso de compor poemas ou preces (que são a mesma coisa). Ah, por que não sou
poeta, para render um merecido tributo ao Horário, coração e pulso do Estado Uno?
Quando crianças, na escola, todos lemos (talvez você tenha também lido) o maior
145 Eugene Zamiatin. Nós, p. 9.
monumento literário que herdamos dos antigos - ”O Guia das Estradas de Ferro”. Mas
compare-o com o nosso Horário, e verá que parece grafite na presença de um diamante;
ambos são constituídos do mesmo elemento - carbono - no entanto, como é eterno, como
é transparente o diamante, como brilha! Quem não perde o fôlego folheando ansioso ”O
Guia das Estradas de Ferro”? Mas o nosso Horário? Ora, ele transforma cada um de nós
numa imagem de aço, num herói de seis rodas de um fantástico poema épico. Todas as
manhãs, com a precisão de seis rodas, à mesma hora e no mesmo instante, nós milhões
de nós - levantam-se como se fossem um só. À mesma hora, num uníssono de milhões
de cabeças, começamos a trabalhar; e num uníssono de milhões de cabeças paramos. E
fundidos num único corpo de milhões de braços, no mesmo segundo, determinado pelo
Horário, levamos nossas colheres à boca. No mesmo segundo, saímos para passear,
vamos ao auditório, vamos ao ginásio para fazer ginástica Taylor, adormecemos...
Serei inteiramente franco: mesmo nós ainda não encontramos uma solução
absolutamente perfeita para o problema da felicidade. Duas vezes por dia, das dezesseis
às dezessete, e das vinte e uma às vinte e duas horas, esse poderoso mecanismo único
subdivide-se em células individuais; são as Horas Pessoais determinadas pelo Horário.
Nessas horas podemos observar persianas recatadamente baixadas nas salas de alguns;
outros caminhando compassadamente pela avenida como se subissem os degraus de
bronze da Marcha; ainda outros, como eu agora, sentados à escrivaninha. Mas tenho
confiança - e você pode chamar-me de idealista, de sonhador - tenho confiança de que
mais cedo ou mais tarde conseguiremos integrar também essas Horas Pessoais na
fórmula geral. Algum dia, esses 86.400 segundos também farão parte do Horário.146
A sátira contida nos romances de Eugene Zamiatin e George Orwell não se
coloca por acaso, no capítulo que se refere à ”sombra de Deus”. Jeremy Bentham propõe
sua Inspection House a partir de uma elaborada ontologia da ficção. Ele se preocupava
menos em distinguir as ficções da realidade, ou as diferentes ficções entre si, para
explorar os efeitos que a ficção exerce sobre a realidade - em outras palavras, para
produzir a ficção que melhor atuasse sobre a realidade.
A semelhança com o pensamento de Platão - que proibia com o máximo
rigor que se mentisse para o governo ou para o professor, mas reservava a ambos o
direito de empregar a mentira como legítimo instrumento de educação, ou de governo não
será mera coincidência. Também para Bentham, os poetas, como Zamiatin, seriam
146 Idem, ibidem, pp. 26-7.
perigosos, porque ”mentem” para pessoas que sabem que eles ”mentem”, ou seja, porque
jogam, às claras, um jogo de verdades e de perspectivas. Em contrapartida, filósofos do
quilate de Platão e Bentham pretendem se reservar o monopólio da ficção, com o objetivo
de melhorar a humanidade.
Miran Bozovic, na apresentação dos Escritos panópticos de Jeremy
Bentham, observa: ”Aos olhos de Bentham, a punição é em primeiríssimo lugar um
espetáculo: na medida em que a punição não é dirigida ao indivíduo a ser punido, mas a
todos os demais, é que a execução da punição é um espetáculo”.147 Para Bentham,
qualquer punição deve ser encarada antes de tudo como espetáculo; importa menos o
seu efeito sobre quem é castigado, do que as impressões que recebem todos aqueles
que vêem o castigo ou dele são informados. Na sua prisão panóptica, ocasionalmente
gritos horríveis se escutariam só que não de prisioneiros, mas de pessoas contratadas
exclusivamente para semelhante propósito: ”enquanto os outros pensariam que os
infratores estavam sendo punidos por suas ações, na verdade, ninguém estaria sofrendo
punição alguma. Um bem de segunda ordem poderia então ser produzido sem requerer
nenhum mal de primeira ordem.”148 A punição aparente, fictícia, produziria um bem para
todos - a ordem, a disciplina -, ao mesmo tempo que produziria nenhum mal, exatamente
porque o ”mal” produzido teria sido ”de mentirinha”.
Todo o panóptico, na verdade, é estruturado como uma ficção. É
precisamente a aparente onipresença do inspetor que sustenta a perfeita disciplina no
panóptico, controlando os movimentos de transgressão entre os internos. Entretanto,
como a onipresença não pode ser um atributo humano, resta forjá-la, simulá-la, quer por
rondas aleatórias, quer pela arquitetura do lugar, que permite a cada um dentro das celas
ser facilmente visto, ao mesmo tempo em que dificilmente vê quem o vê.
Em última análise, o inspetor perfeito, o inspetor onipresente, é aquele que
nunca aparece - mas pode aparecer a qualquer instante. O inspetor perfeito é, enfim, uma
voz, um olho, um ofício carimbado, uma sombra indistinta no fundo do corredor - ”da cela
ele é visível como uma silhueta, uma sombra, ou um ponto opaco, escuro”.149 Trata-se da
metonímia eficiente de um poder que só pode aparecer indiretamente, por partes de si
mesmo. O inspetor onipresente e onisciente acaba por se tomar um ícone do poder e,
extensivamente, a própria ficção de Deus - em termos freudianos, a própria Lei
147 Em Jeremy Bentham. Tlie panopticon writings, p. 4. 148 Idem, ibidem, p. 7. 149 Idem, ibidem, p. 13.
Glorificada: ”é conseqüentemente a ficção de Deus que sustenta o universo do
panóptico.”150
Nesse tipo de instituição, nós somos vistos, ou pensamos que somos vistos,
sem vermos aquele que vê; nós escutamos uma voz, sem vermos o dono da voz. O
panóptico deve ser governado por um olhar e por uma voz dessubjetivados,
desconectados de seu portador.151 O inspetor torna-se, então, uma espécie de fantasma.
O inspetor, em última instância, é uma entidade de ficção - ele não existe. Justamente por
isto, ele pode provocar um medo superior ao de um guarda real, por mais cruel e
truculento que fosse o guarda. Não temos medo de fantasmas a despeito do fato de que
eles não existem, mas precisamente graças ao fato de que eles não existem.
De que, exatamente, temos medo, quando dizemos que sentimos medo de
fantasmas? Ora: sentimos medo, precisamente, da invasão de algo radicalmente outro,
algo absolutamente desconhecido e estranho em nosso mundo.152 Miran Bozovic faz eco
a Lacan e mata a charada, mostrando como o panóptico é uma prisão construída menos
com tijolos, antes, com palavras. É uma prisão feita de linguagem, se entendemos a
linguagem humana como aquela que não basta, permanentemente equívoca,
simultaneamente pletórica e insuficiente.
We love God precisely because he does not exist. What we love in an object
is precisely that which it lacks. But then what is it in God, who obviously lacks nothing, that
we can love? In other words, if it is only giving what we do not have that counts as a sign
of love, then is it even possible for God, who lacks nothing, to give anything at all? Since
God simply has everything, he obviously has nothing that he could give. The only thing
that God, who is supposed to be a total plenitude of being, could lack, is, as Lacan puts it,
precisely the principal feature of being: existence. It is an illusion to think that we love God
because he is a total plenitude of being; the only reason we love him is that perhaps he
does not even exist at all. If we love God, we love him because he is a non-entity. The
inspector certainly knows that, qua God, he does not really exist; qua God, the inspector
only exists through an artifice, only as a fiction.153
150 Idem, ibidem, p. 11. 151 Idem, ibidem, p. 11. 152 Idem, ibidem, p. 21. 153 Amamos a Deus precisamente porque Ele não existe. O que nós amamos em um objeto é, exatamente, aquilo que lhe falta. Mas então o que, em Deus, a quem obviamente nada falta, nós podemos amar? Em outras palavras, se é somente dar o que não temos que conta como sinal de amor, então será que é possível para Deus, a quem nada falta, nada oferecer? Desde que Deus simplesmente tem tudo, Ele
Bozovic e Lacan, na verdade, seguem ainda os passos do Sócrates
platônico. No Banquete (ou, n’O Simpósio, como prefere a tradução portuguesa),
Aristófanes fala do amor como um castigo dos deuses, se antes nossos ancestrais eram
duplos, divididos em três gêneros: os machos, com dois sexos de homem, as fêmeas,
com dois sexos de mulher, e os andróginos, que tinham os dois gêneros de sexo. Quando
Zeus decidiu puni-los cortando-os em dois, desfez-se a unidade e a felicidade: cada ser
passou a ser obrigado a procurar a sua metade, expressão que se deve tomar ao pé da
letra. O mito de Aristófanes explica por que uma pessoa seria homossexual ou
heterossexual — depende da metade perdida. Sócrates, entretanto, discorda
completamente. Para ele, o amor não se destina à completude, mas sim à carência, à
incompletude, à miséria, destinando-nos ora à infelicidade, ora à religião. ”Amor feliz” é
uma contradição em termos; a falta de felicidade é o próprio amor. Amor é sempre busca,
não fusão; sempre pobreza devoradora, não perfeição plena. Amor, enfim, é desejo, e só
há desejo do que falta.
É preciso ser dois para fazer amor (pelo menos dois!), e é por isso que o
coito, longe de abolir a solidão, a confirma. Os amantes o sabem. As almas talvez
pudessem fundir-se, se existissem. Mas são corpos que se tocam, que se amam, que
gozam, que permanecem... [...] Daí o fracasso, sempre, e a tristeza, tão freqüentemente.
Eles queriam ser um só e ei-los mais dois do que nunca... [...] Isso não prova nada contra
o prazer, quando ele é puro, nada contra o amor, quando é verdadeiro. Mas prova algo
contra a fusão, que o prazer recusa exatamente quando acreditava alcançá-la. Post
coiturn omne animal triste... Porque se vê novamente entregue a si mesmo, à sua solidão,
à sua banalidade, a esse grande vazio nele do desejo desaparecido. 154
”Senhores, quereis ouvir um belo conto de amor e de morte?...” Assim
começa Tristão e Isolda, como poderia começar Romeu e Julieta, Manon Lescaut, Lucíola
ou As afinidades eletivas... Na lógica de Eros, Tanatos se impõe: os amantes nunca
desejam outra coisa que não a morte. Amam o amor, mais do que a vida; a falta, mais do
que a presença; a paixão, mais do que a felicidade ou o prazer. Nessa lógica, a
verdadeira vida é ausente; o ser se encontra alhures, o ser só pode ser o que falta. Deus,
obviamente não tem nada que pudesse dar. A única coisa que poderia faltar a Deus, de quem se supõe total plenitude de ser, é, como Lacan coloca, precisamente a principal característica de ser: existência. É uma ilusão pensar que nós amamos Deus porque Ele é uma plenitude absoluta de ser; a única razão pela qual nós O amamos é que, talvez, Ele não exista de forma alguma. Se nós amamos a Deus, O amamos porque Ele é uma não-entidade. O inspetor certamente sabe disso; como Deus, ele não existe realmente; como Deus, o inspetor existe apenas por meio de um artifício, apenas como uma ficção. Idem, ibidem, p. 23.
portanto, só pode ser O que falta absolutamente. É em cima dessa falta, principalmente
sobre a falta de Deus (da alma, enfim), que se constrói todo o panoptismo, toda a
repressão calcada na falta (ou ficção) de Deus.
O escritor Fernando Savater mostra à perfeição esse sistema, usando o
personagem de Swift, Gulliver, para descrever o método pedagógico do povo de Fobión.
Para los fobiones no hay más que un principio pedagógico, que utilizan
como único estímulo dei aprendizaje y fijador indeleble de lo aprendido: se trata, como es
natural, dei miedo. En esto quizá no difieren demasiado de lo usual entre otros pueblos
conocidos. Pero su método de ensenanza rechaza el fácil expediente de establecer un
juego único de prêmios y castigos, prefiriendo una dosifícación permanente del pânico y
un hábil manejo de la inconcreción de las amenazas. Nadie sabe muy bien quê es lo que
teme pero todo el que sabe, sabe que teme. Los maestros fobiones son a este respecto
insuperables: dominan todos los resortes de la inquietud y el arte sutil de la insinuación
pavorosa no tiene secretos para ellos. A los ninos, por ejemplo, no se lês castiga de un
modo explícito cuando su comportamiento no está dentro de las normas admitidas: por el
contrario, se lês comienza a compadecer con las más expresivas demostraciones de dolor
por lo que han perdido. En un principio, como el culpable no echa en falta nada, no se
inquieta por esta extemporânea solicitud de sus mayores. Poço a poço, sin embargo,
comienza a sentirse menguado por la convincente insistência de los que lê rodean en que
lo está; no tardará en echar de menos lo que nunca tuvo y ni siquiera conoce: finalmente,
pedirá de rodillas que lê sea devuelto. Sus tutores se harán de rogar: a fin de cuentas,
quizá Io que lê falta no sea tan importante ni valga Ia pena inquietarse demasiado por su
perdida... Estas consideraciones aparentemente tranquilizadores no hacen sino aumentar
la zozabra infantil, pues dejan entrever que lo sustraido es algo irrecuperable. Guando la
lección ha sido llevadaa lo suficientemente lejos como para estar seguros de que nunca
será olvidada, los educadores aceptan el arrependimento del neófito y hacen profesión
pública de que a partir de entonces van a tratarle como si no careciese de nada. Fijalos
que no lê restituyen la convicción de su integridad, sino simplemente algo así como un
sobreseimiento de la acusación de mengua. El ânimo del discípulo está en un punto tal
que ya no aspira a nada más y vive ese retorno al redil con histérico alivio. Pero la
sospecha de su incompletitud, junto ai temor de que esta vuelva a hacerse patente un dia,
siguen ejerciendo su educativo efecto en la intimidad azarada del párvulo. A la menor
recaida en su anterior indisciplina, una palabra ai desgaire lê recordará la grieta que
154 André Comte-Sponville. Pequeno tratado das grandes virtudes, p. 251.
puede abrirse en cualquier momento bajo sus pies. No suele hacer falta más para que
acate con renovado entusiasmo la pauta de conducta ortodoxa. Doy fé de la excelência
de este procedimiento: entre los fobiones, la posibilidad de incurrir en delito no es
virtuosamente detestada, movimiento anímico que suele incluir como contrapartida una
oculta tentación, sino francamente temida, pues ei pecado lês recuerda ei oculto
despedazamiento primordial de sus almas.155
O inspetor, enquanto ícone da divindade onisciente, é um personagem que
finge ser uma pessoa; é uma máscara que finge ser um rosto. Seu poder deriva do
simples fato de não ser, o que provoca, justamente, a fobia - o medo.
O médico, ao passar muito rápido pela cama do doente, fazer hum-hum e
recusar-se a explicar, com palavras leigas, o problema da pessoa, torna-se um ícone da
ciência onipotente, da medicina onipresente, contribuindo para a constituição de uma
sociedade hipocondríaca muito interessante - que interessa aos laboratórios
farmacêuticos e aos micropoderes que enquadram e controlam o nosso corpo.
O alienista - psiquiatra, psicólogo ou psicanalista -, quando diagnostica
esquizofrenia sem considerar a história e o contexto de cada paciente, constitui a si
mesmo como parâmetro de equilíbrio, como um ícone da alma - daquilo que, em última
instância, não há.
Este último personagem, ninguém o representou melhor do que o brasileiro
Machado de Assis, no conto O alienista. Simão Bacamarte, seu protagonista, consegue
construir, em pequena cidade do interior, um enorme asilo, uma enorme mad-house, a
que apelidou de A Casa Verde. Tanto procura, tanto examina, que logo interna a maior
parte da população. De princípio, não duvida de seus próprios critérios; ao contrário,
reformula a teoria para adequá-la à sua prática:
A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no
oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.156
Mais tarde, depois de internar a cidade inteira, inclusive os amigos, a
esposa, o padre, os políticos, o personagem machadiano efetiva o supremo paradoxo
irônico, compreendendo que a saúde mental residia ”no perfeito desequilíbrio das
faculdades”. Por conseguinte, a verdade última sobre a loucura apontava... para ele
155 Fernando Savater. Criaturas del aire, pp. 136-7.
mesmo. Isto é, louco seria somente aquele que fosse perfeitamente equilibrado, que não
ostentasse o menor defeito. Logo, Simão Bacamarte conclui, com muita gravidade, que só
havia um louco na pequena cidade de Itaguaí, e esse louco chamava-se Simão
Bacamarte. Então ele interna a si mesmo, e somente a si mesmo, na Casa Verde,
proclamando:
A questão é científica; trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo
sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a prática.157
Professores de literatura, quando adotamos o pequeno texto de Machado,
somos capazes de lê-lo ”nos lendo”? Somos capazes de ler Simão Bacamarte como
caricatura legítima do cientificismo e do pedagogismo, dos delírios de controle que tantas
vezes pensamos exercer, nas aulas, nos exames, nos corredores, nas noites mal
dormidas corrigindo, bacamartianamente, provas mal feitas, como se pudéssemos ser
justos? Como se as provas mal feitas não fossem o resultado direto, produto e sintoma
indiscutível, das perguntas que fizemos, das aulas que ”demos”?
Infelizmente, não. Não percebemos sequer a crítica certeira de Machado aos
arrogantes realistas de sua época - tanto, que o enquadramos, em praticamente todos os
manuais didáticos de literatura, como ”realista”. A ficção é transformada em evento
histórico, em ”estilo de época”, para que as ficções que fingem que não o são - as
mentiras do Estado e da Escola cumpram melhor sua função, construindo as mais
seguras prisões do mundo: as prisões de papel.
A ideologização da estética, que sufocou, entre outros, Eugene Zamiatin,
torna-se muito mais perigosa quando se transforma em algo que já assustava Benjamin:
na estetização da política. No processo de estetização da política, a humanidade faz-se
suficientemente estranha para si mesma, permitindo-se viver a própria destruição como
um gozo estético. Os escritores se escondem, ou são ”adotados” nas escolas para serem
objeto de exame, enquanto os organizadores das paradas militares, dos programas de
talk show, das semanas de cultura, dos eventos mais mirabolantes e menos estimulantes,
brilham na frente dos holofotes com as suas performances.
Nas paradas militares, as armas e os uniformes brilham, o garbo e a
disciplina impressionam, pode-se dizer que emocionam. Um ou outro soldado desmaia
156 Joaquim Maria Machado de Assis. Papéis avulsos, p. 27. 157 Idem, ibidem, p. 66.
sob o forte sol de setembro (no caso brasileiro), enquanto os audazes pilotos da
esquadrilha da fumaça evoluem no céu. Ninguém se lembra de que o Exército, a Marinha
e a Aeronáutica representam a Pátria não exatamente Amada, mas Armada, pronta a
mandar jovens matar outros jovens. Quando a Argentina decretou guerra à Inglaterra, por
conta das minúsculas Ilhas Falkland, as mães dos soldados, quer britânicos quer
portenhos, apressaram-se em tricotar casacos de lã para que os ”meninos”
comparecessem ao ”teatro de operações” não só agasalhados como esteticamente bem
arrumados. Para os que morreram, restaram pais orgulhosos de filhos que caíram - mas
agasalhados e bem vestidos - no ”cumprimento do dever”, pouco importa o nível de
estupidez do dever.
Quando as escolas promovem ”semanas da cultura”, às vezes professores e
alunos se empolgam, parecendo acreditar por um momento que podem ser criativos e
significativos para, na semana seguinte, retornar-se sem muito espanto à repetição estéril
da educação bancária, congelando a cultura no freezer positivista. Nesse contexto, onde
fica o mestre? À sombra de Deus? Representa, ele mesmo, o Deus que não há e nem
pode ser? Representa, ele mesmo, a sombra de um saber que não tem dúvidas sobre sua
missão, de um saber que não sabe que sabe tão pouco?
À SOMBRA DO MESTRE
Da ficção panóptica de Bentham, da ficção de Deus, chegamos à sala, como
sombra da cela, daí à cola, como sombra do crime, e daí ao aluno, sombra e imagem
virtual do delinqüente. As ”Luzes”, que descobriram as liberdades, bem como as
igualdades e as fraternidades, inventaram, no mesmo passo, as disciplinas.158 Os mestres
somos seus responsáveis (ou, seus primeiros objetos).
A disciplina fabrica, propriamente, indivíduos. Seu poder não é um poder
triunfante, que se ancore no próprio excesso, mas sim um poder modesto, desconfiado,
que se constrói por dentro. Seu progressivo sucesso deve-se a instrumentos simples: o
olhar hierárquico, a sanção normalizadora, e sua combinação no procedimento específico
do exame. ”A disciplina é uma anatomia política do detalhe”;159 detalhe que se constrói
um a um, sob o princípio básico da localização imediata, ou do quadriculamento: cada
indivíduo no seu lugar, e em cada lugar um indivíduo. Devem-se analisar, no sentido
estrito de decompor, as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar
divide-se em partes que por sua vez se dividem em subpartes.
Importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como
encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a
cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as
qualidades ou os méritos. Procedimento, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A
disciplina organiza um espaço analítico.160
Na escola, o conhecimento se fragmenta em ciências que se dizem ”exatas”
(como se toda ciência não tivesse por horizonte a exatidão, ou como se qualquer ciência
não fosse, por definição, inexata, isto é, aproximativa) e outras que se dizem ”humanas”
(como se conhecêssemos ciências marcianas, ou eqüinas). Cada um destes dois campos
se fragmenta em outros tantos, que por sua vez se fragmentam em outros tantos, ad
infinitum. Na escola, ordenam-se os alunos por séries, as quais se ordenam por classes,
ou turmas, as quais, por sua vez, se ordenam por fileiras e filas, de preferência com
lugares marcados. Depois, os mesmos alunos são reordenados pelas notas dos exames,
formando terços superiores (popularmente conhecidos como CDFs, ou, cus-de-ferro, em
alusão direta ao medo do disciplinador e de seus procedimentos), terços médios
158 Michel Foucault. Vigiar e punir, p. 195. 159 Idem, ibidem, pp. 128-153. 160 Idem, ibidem, p. 131.
(medianos, muito próximos do medíocre) e terços inferiores (compostos por alunos que
aprenderam que nunca vão aprender certas matérias, ou certas habilidades, como
escrever, ou contar e calcular).
Mas não basta dividir o conhecimento e as pessoas; é necessário dividir, no
nível do detalhe, o próprio tempo, levando ao limite da caricatura a convenção que nos
faculta ”perceber” o tempo como percebemos o espaço. Divide-se uma manhã em seis
tempos, ou horas, de aula, divide-se a semana em 30 ou 36 tempos, ou horas, de aula. O
requinte da divisão é tal, que o dia tende a começar em horas ”quebradas” - 7:20, 7 7:30
horas - e terminar do mesmo modo, às, digamos, 13 horas e 10 minutos. Esse esforço
minucioso de organização analítica contém em si mesmo, entretanto, curioso contra-
senso, como a denunciar a inexatidão da sua compulsão pelo exato, isto é, pelo controle
de tudo: do aluno, do conhecimento, do tempo. O contra-senso é que, não só no Brasil, as
chamadas horas-aula não são de uma hora, exata, mas de inexatos 50, ou 45 minutos.
Parecem com aquele refrigerante que vendia ”um litrão” de litro e meio... Um litro não é
exatamente um litro, a hora não é exatamente uma hora, como a dizer: nada é o que
parece ser.
As conseqüências perniciosas de tanta ”análise”, de tanta fragmentação, são
conhecidas, e exaustivamente discutidas em toda reunião pedagógica - sem que se
consiga propor mudança substancial. O máximo que se sugere são rearrumações do
horário, das classes, das turmas, dos alunos, de disciplinas, ou às vezes a criação de
uma nova disciplina com a incumbência de integrar as demais (é a hora de Filosofia entrar
no currículo e sair dele, ioiô epistemológico, ao sabor das mudanças que não mudam, e
nem podem mudar, o cardápio principal).
O mesmo acontecia e acontece, como vimos, com os reformadores da
prisão, quando apresentam, tautologicamente, a própria prisão como solução de si
mesma, enquanto problema, sem atinar para a petição de princípio em que se incorre.
Percebe-se a questão principal - a prisão como universidade do crime, ao invés de casa
de correção, e a escola como lugar de demolição do conhecimento, ao invés de espaço
de construção do saber. Não se suporta, entretanto, ideológica e pragmaticamente, a
hipótese de abolição, pura e simples, dessa prisão e dessa escola. Logo, desviam-se os
argumentos para as questões secundárias, sugerindo-se soluções meramente paliativas.
Na verdade, as ”soluções” devem se apresentar entre aspas irônicas, porque continuam a
ser parte do problema, isto é, efetuam o controle que criticam.
Por necessidade do argumento, embora se chova o seu tanto no molhado,
cabe lembrar algumas conseqüências, diretas e indiretas, do frenesi analítico da escola:
(1) a fragmentação do próprio conhecimento, criando sujeitos que, por exemplo, escrevem
de modo razoável tão-somente na aula de português; (2) a fragmentação do corpo
docente, formado por professores que se esbarram no recreio e desconhecem o que os
outros ensinam, por irrelevante para a sua especialidade como podemos exigir que os
alunos considerem relevante o que nós mesmos, por conveniência e por sobrevivência,
precisamos esquecer?; (3) a desvalorização, progressiva e contínua, em termos tanto
morais quanto materiais, da figura clássica do Mestre, se, hoje, ”quem sabe, faz,
enquanto que, quem não sabe, ensina” (e quem não sabe ensinar ”ensina educação
física”, reforçando, através da piada, o antigo desprestígio platônico pelo corpo). Destas
conseqüências gerais, poderíamos desdobrar outras, mas devemos fechar o foco no
tema, isto é, num aspecto específico dos procedimentos de exame, na escola. Trata-se do
controle da cola, ou seja, do controle dos resultados individuais dos exames.
Talvez o termo ”controle” devesse ter sido colocado também entre aspas,
uma vez que esse controle efetiva-se, à primeira vista, de maneira deficiente. Como os
leitores já passaram pela escola, ao menos na condição de alunos, sabem que a cola é
prática corrente, a despeito dos mecanismos variados de controle. Paralelo ao ditado
deprimente que nos põe ensinando em função da incompetência para fazer, determina-se
ainda: ”quem não cola, não sai da escola” (a reforçar o título e a rima da segunda parte
deste livro). É muito difícil encontrar aquele ou aquela que nunca tenha atirado a primeira
pedra, ou surrupiado a resposta alheia, inclusive entre alunos que, mais tarde, não
conseguem sair da escola (tornando-se professores). Os mais variados mecanismos de
controle, com sua ineficiência, terminam por legitimar e convidar à prática da cola. Um
número indecentemente pequeno de alunos, em relação ao número real de infratores, é
”pego” colando, o suficiente apenas para manter a impressão de repressão. Punem-se
somente aqueles que ”colam” muito mal, somente aqueles que não respeitam o enorme
esforço do examinador em não ver o que vê.
Logo, o controle deficiente da cola pode ser um procedimento bastante
eficiente de promovê-la, promovendo subterrânea desonestidade e, conseqüentemente,
dependência intelectual, o que seria do interesse de um sistema panóptico de
organização social. Da mesma maneira que a prisão fabrica delinqüentes, às avessas de
sua definição como casa de correção, a escola fabrica dependentes intelectuais, às
avessas de sua definição como espaço de luzes e independência intelectual. No entanto,
apesar da institucionalização da cola, o professor tende a se portar de maneira
pessoalmente indignada, quando ”consegue” pegar um aluno ”colando”. A indignação -
”como, você me enganou!” - oculta, a seus próprios olhos, o constrangimento de
reconhecer que faz parte de um logro. Que é peça de um jogo, jogo esse que tem, como
regra de ouro: que as regras não sejam claras.
Se pensarmos em termos do Direito clássico, a cola é um ”crime” com
atenuantes, uma vez que a escola não só se previne mal contra ele, como até o estimula,
meio sem querer querendo (como diria o Chaves, personagem de popular seriado
mexicano). Beccaria dizia que ”não se pode chamar precisamente justa (isto é,
necessária) a pena de um delito, enquanto a lei, nas dadas circunstâncias de uma nação,
não tenha aplicado os melhores meios possíveis para preveni-lo.”161
Ao invés de prevenção eficaz, a cola se estimula, quase se obriga, quando
se submete o aluno a múltiplas disciplinas fragmentadas, cada uma delas com exigências
cumulativas e conflitivas entre si, somando testes e exames toda semana, às vezes todos
os dias de uma única semana, dentro de um espaço usualmente apertado, em que o
colega ao lado senta-se a menos de um metro. Como requinte final, a cola se estimula,
definitivamente, quando os testes são de ”múltipla escolha”. A tal da múltipla escolha
pode ser resolvida, no menor esforço, pelo chamado rabo do olho. Sua própria
denominação revela contradição flagrante, sintomática de contradições mais amplas: o
aluno, ao tentar resolver uma questão de múltipla escolha, precisa encontrar a única
resposta certa, ou seja, ele não tem escolha nenhuma; ao contrário, enfrenta muito maior
possibilidade de errar (cinco contra um) do que de acertar. A contradição se torna patética
se lembramos a ”opção” [E] de várias provas: ”n.r.a. - nenhuma das respostas anteriores”.
Quando essa ”opção” é a ”certa”, então não há opção correta seria um paradoxo, se não
promovesse, perversamente, a ignorância. Logo, antes de ser um paradoxo, é um
absurdo.
A múltipla escolha é irmã gêmea da cola, ambas menos problemas
ocasionais da escola que construções suas, pelas quais se aprende, subliminarmente, a
desonestidade. O aluno se anima em enganar o professor, sem perceber, assim como o
próprio professor usualmente não percebe, que desse modo torto entra no sistema e
corresponde ao que dele se espera. Os sistemas de avaliação ao mesmo tempo
reprimem e estimulam a cola, não só porque proíbem-na com estardalhaço (emitindo
161 Cesare Beccaria Obra citada, p 118
assim irrecusável convite), mas também quando enchem o aluno daquelas exigências
conflitantes e excessivas, escolhendo instrumentos de avaliação e cobrança para os quais
o caminho de superação mais fácil (logo, mais inteligente, em certo sentido bem lógico) é
a cola.
Fora da escola, no mundo do trabalho, não se produz mais nada sozinho; o
trabalho é coletivo, a consulta a todos os meios disponíveis é indispensável. Aquele que
não contribua com sua parte para o trabalho coletivo, que só queira colar do alheio, é
ejetado rapidamente do trabalho, ou da pesquisa. Logo, no mundo do trabalho, não cabe
repressão a priori à cola. Não faria sentido que isso permanecesse na escola, se não
fosse parte disfarçada das estratégias de controle e disciplinamento - de corpos e de
mentes - de que vimos tratando.
Se, de fato, esse é o logro, e se dele estamos agora conscientes, cabe
desfazê-lo na prática. Mas, considerando, como se descreveu, o profundo enraizamento
dos sistemas panópticos, é possível superar o logro, instaurando, no lugar, outro jogo?
Parece chegado o momento de resolver. Será possível apresentar alguma solução para o
problema? Temos respostas, ou somente perguntas e constatações impertinentes?
Em fenômenos complexos, não encontramos uma única causa para um
único efeito; em problemas complexos, as soluções não se encontram do lado de fora da
questão, à espera de serem magicamente encontradas. Explicitar o problema, como
tentamos fazer nestas poucas folhas, já faz parte da solução que, aos poucos, se
constrói. Ao contrário de Platão, não acreditamos que saber implique, necessária e
mecanicamente, poder. De que todo esforço de saber seja uma forma de exercer um
poder não se deduz que conhecer algo nos dê poder instantâneo sobre o que pensamos
conhecer.
Sabemos, por exemplo, que já há soluções tecnológicas para a redução
drástica da poluição nas grandes cidades, como substituir o motor de combustão por
motores elétricos e eletrônicos, em todos os veículos. Se isso já é possível, por que não
se faz? Porque exige mudanças de longa duração, tanto nas grandes indústrias quanto
nos hábitos dos seres urbanos. Mexe radicalmente com as bases do capital e do trabalho,
com as empresas multinacionais e com o emprego das pessoas. Do mesmo modo que
uma pessoa sozinha não inventou o capitalismo e o automóvel, outra pessoa sozinha, ou
determinada geração, não consegue desinventá-los.
Quando Foucault estuda os procedimentos do inquérito e do exame,
descreve longas linhas de tempo, sabendo que conhecê-las - pressupondo-se que pôde
conhecê-las - não permite interrompê-las, ou reorientá-las. Quando, como professores,
tentamos estudar as contradições do ofício, não nos imaginamos trocando de profissão.
Apenas, para relativizar nossas decisões e nosso comportamento cotidiano, queremos
(devemos) olhar um pouco o nosso próprio rabo, melhor dizendo, a nossa própria sombra,
atendendo ao adágio latino que prega, ao médico, que cure, antes de qualquer paciente,
a si mesmo: medice, cura te ipsum...
Diariamente devemos nos perguntar, por exemplo, se os nossos alunos
aprendem alguma coisa graças ao nosso trabalho, ou se aprendem apesar do nosso
trabalho. Escutamos, com atenção e apreensão, quando alguém nos diz, a sério, como o
cartunista Ziraldo, que ”é melhor ler do que estudar” isto é, mais valeria o estudo
orientado pelo desejo do que aquele organizado pelas disciplinas. Na verdade, no ensino
médio e universitário, uma boa bibliografia, uma boa orientação para o estudo e o esforço
pessoais, é o que de melhor o aluno pode receber de cada professor. Para além disso, só
mesmo o próprio exemplo do professor, passando curiosidade e hábitos de leitura crítica.
Se o mestre não lê muito, não há método que faça seus alunos lerem; se ele não
investiga, não escreve, não há método que leve seus alunos a pesquisarem e
escreverem.
Em outras palavras, que desfazem o dito popular: se o mestre não faz, não
ensina; não é mestre.
Logo, sobra, no fim e ao cabo, sempre o mesmo antigo e digno método
pedagógico: o exemplo. Quais alunos, e quando, seguirão os nossos melhores exemplos,
é algo que foge inteiramente ao nosso controle - portanto, não deveríamos tentar exercê-
lo. Assim como Kant dizia que não deveríamos tentar ser felizes, por implicar hybris e
arrogância em relação ao destino e ao acaso, mas sim lutar tão-somente por merecermos
a felicidade, os professores talvez devêssemos nos esforçar não por tentar controlar e
moldar, histericamente, nossos alunos à imagem e semelhança de nossas melhores
palavras, mas sim lutar tão-somente por merecermos seu reconhecimento, por
merecermos bons alunos - eles, pelo seu lado, que fizessem a sua parte.
Incomoda-nos, e é saudável que isso aconteça, quando vemos aquele
cineasta, que reputamos genial, dizer que aprender ou é um ato de amor ou não é nada:
Você não pensa que está escutando jazz para estudá-lo. Você apenas
escuta porque gosta de jazz. Gosta, gosta muito... e, gradativamente, aprende. Você
aprende tudo o que vale a pena por osmose. O mesmo se dá com a autoria de peças
teatrais, direção de cinema ou interpretação. Você tem de gostar de ler, ver filmes ou
peças e de ouvir música. Isto, de uma maneira ou de outra, vai entrando, através dos
anos, no seu sangue, nos poros do seu corpo ou coisa semelhante. É errado esse
negócio de estudar como uma obrigação, uma disciplina.162
Não que o cineasta em questão seja indisciplinado. Para ter dirigido,
produzido e atuado em mais de vinte filmes, precisou desenvolver uma disciplina de
trabalho e de criação férrea mas o fez de dentro para fora, a partir das suas escolhas e
não da escola. Em Crimes and misdemeanours (traduzido no Brasil como Crimes e
pecados), filme de Woody Allen, de 1989, um dos personagens aconselha sua sobrinha a
não ouvir o que os professores falam mas a ver com o que eles se parecem. Segundo o
diretor, exatamente porque ”eles falam, falam, falam, falam e quando você olha para eles
- pelo menos os que eu tive na escola secundária - vê que são pessoas de aparência má,
preocupadas, tristes e amargas”.
E ele se referia a professores norte-americanos. Romance recente de um
escritor francês, também professor, nos mostra espelho - panóptico - parecido, nos
contemplando com os mesmos adjetivos: ”tristes e amargos”.
Os tempos haviam mudado e no Georges-de-Scudéry ninguém se
preocupava com a cultura ou o saber. O barulho substituíra essa dupla, os alunos eram-
lhe hostis, os pais desconfiavam dessas coisas e o que Louise Lefébure mais queria era
que tudo estivesse em ordem: alunos e professores nas salas de aula, bedéis nos
corredores e funcionários da administração nos escritórios. Assim, o amor pelos estudos
dera lugar, no caso de muitos colegas, à espera pela aposentadoria. Sonhavam com o dia
em que ela os libertaria da impertinência dos alunos, da tirania de seus superiores e da
maldade do mundo. Eram motivados graças a uns bons pitos para entrarem na linha e a
umas apreciações pedagógicas. Muitos foram ficando tristes e amargos. Segundo os
casos, eram tímidos e trancados - como que esbofeteados pela vida - ou exageradamente
extrovertidos, falando em alto e bom som para mostrar que não eram nada trouxas mas
que ainda assim a estima e as apreciações de seus superiores equivaliam a tudo o que a
162 Woody Allen, em Stíg Bjôrkman. Woody Allen por Woody Allen, p. 23.
vida lhes havia recusado.163
No Brasil, somos estas pessoas ranzinzas, tristes e amargas, reclamando do
controle que legitimam? Pior?
Talvez, em parte, e em certos momentos - quando perdemos momentos
preciosos da vida lendo, não bons livros, mas pilhas de provas de alunos, provas essas
recheadas de besteiras estimuladas pelas perguntas bestas que lhes fizemos. Ou quando
estamos tomando conta de provas, nossas próprias ou de colegas, andando entre as filas
não como mestres, mas como guardas ou bedéis (ou idiotas, se pensarmos nos alunos
que colam rapidinho às nossas costas).
Há, sem dúvida, outros momentos, digamos, melhores, quando sentimos
que uma aula foi especialmente boa e interessante, ou quando percebemos que certos
alunos nos elegeram como Mestres, isto é, como referenciais provisórios para as suas
vidas. Por eles, tudo vale a pena? Não sabemos. Não sabemos se a alma já não foi
ficando pequena. Mas, se não nos cabe, se não nos é possível abolir a escola, ou ao
menos abolir a forma do exame, não seria possível ampliar a presença do princípio
medice, cura te ipsum?
Começa a se esboçar algo semelhante a uma solução - a uma proposta
pragmática para resolver de uma vez por todas o problema da cola e assim re-qualificar
toda a avaliação escolar.
Cada aluno nosso vai ser, sempre, aquilo que ele quiser ser, aquilo que ele
fizer do que aprendeu, dentro e fora da escola. Poderíamos encostar o afã de controlá-
los, de controlar seus saberes e seus pequenos grandes crimes, economizando energia
para promover trabalhos e leituras, para ofertar-nos aulas melhores, cuidando de nós
mesmos, curando a nós mesmos. Poderíamos sugerir formas de interdisciplinaridade,
bem como redução de disciplinas no currículo - com o concomitante oferecimento de
cursos optativos. Poderíamos pensar na progressiva evolução das nossas maneiras de
ensinar para um sistema de aulas magnas e tutoria, articulado com bibliotecas,
multimeios, laboratórios, excursões, Internet... Há muitas coisas que poderíamos, ou
deveríamos mudar - mas vamos nos ater ao título do livro, portanto à questão da cola.
Vamos nos limitar a uma única proposta - que, cremos, parte do centro do problema. A
solução apresentada é, antes de mais nada, uma solução semântica (o que não quer
163 Jean-Pierre Gattégno. A noite do professor, pp. 31-2.
dizer, irrelevante). A solução apresentada é simples, tanto que podemos sintetizá-la em
dois momentos e em duas linhas.
Primeiro, rebatizar a cola, que passa a trazer o nome de consulta. Em
seguida, descriminalizá-la, tornando-a necessária.
Em todas as avaliações, todas as provas, todos os exames, a consulta,
antiga cola, deve ser permitida, ou melhor, reconhecida como necessária. Em todos os
exames, de todas as matérias, toda resposta do aluno deve ser justificada, não só com os
cálculos, mas, principalmente, com uma explicação discursiva, redigida, extensiva, dos
passos do seu raciocínio.
A múltipla escolha persistirá, enquanto continue a existir nos concursos
públicos - mas toda questão de múltipla escolha passa a cobrar a justificativa
correspondente do aluno a respeito de todas as ”opções”: a certa, e as erradas. Nas
séries que precedem os concursos públicos, cabe, naturalmente, treinamento específico,
treinamento esse que não precisa adormecer o senso crítico de alunos e de professores.
O aluno poderia também consultar o trabalho do colega? Sem dúvida.
Preservando-se um certo ambiente, um certo clima de silêncio, a consulta ao colega
simula a situação de trabalho coletivo usual nas empresas, nas redações dos jornais, nos
escritórios e consultórios. Trocar idéias, e mesmo respostas, com o vizinho, não o exime
de construir a sua justificativa - que é o que importa. Se soube defender sua resposta,
tanto faz se com muita ou pouca ajuda alheia, ele aprendeu - algum mestre deseja,
conscientemente, outra coisa?
O construtivismo, desde Piaget, nos diz há bom tempo que importa o porquê
se respondeu de tal ou qual modo, menos do que o conteúdo da resposta em si (como
nos lembra Patrícia Lins e Silva, em palestra de 3 de fevereiro de 1997). Por que você
respondeu isto? é a pergunta-chave do professor, a replicar sempre que receber uma
resposta do aluno, muito antes de determinar, certo, ou, errado.
Aplicando a dúvida metódica, cartesiana, às suas práticas, o professor pode
relegar a quinto plano a necessidade de, em cada exame, ”cobrar” todo o programa, toda
a matéria. Não é necessário um número grande de questões, a menos que se queira
continuar a fingir que se pode ensinar tudo (e mais um pouco); a menos que se queira
insistir na ilusão de controle do saber alheio. Deveriam bastar duas ou três perguntas
abrangentes, que demandassem dos alunos, justamente, consulta, para construção
elaborada de uma resposta interessante - perguntas que refletissem os interesses do
aluno, cujas respostas interessassem ao professor como leitura, e não como castigo, ou
karma.
Essa solução, que cremos semântica mas não inócua, desde que cortasse
horizontal e verticalmente toda uma escola - em todas as disciplinas e em todas as séries
-, quebraria o eixo da, na famosa expressão de Paulo Freire, ”educação bancária”, na
qual o conhecimento é reificado como ”moeda podre”: o professor dá a matéria na aula,
cobra na prova com juros e correção monetária, o aluno devolve sempre faltando algum
valor importante e, depois, esquece, ou seja, amplia seu débito. Transformar a cola
(in)conveniente em consulta necessária assume o conhecimento como um constructo
infinitum, relativizando toda avaliação, portanto todo exame, dentro do contexto dos
processos de construção do saber.
Não é pouca coisa.
Exames e provas com consulta tendem a ser até mais difíceis, qualquer
aluno sabe - mas sente que tem sua inteligência respeitada. A aceitação da novidade, por
parte dos alunos, não seria problema. Forçoso admitir, entretanto, que, entre os
professores, haveria alguma (ou muita) resistência. A resistência é saudável. Todos
estamos cansados de soluções de gabinete, de soluções de papel. A resistência é
saudável porque chama a atenção para outras questões. A mudança proposta é simples
transformar a instituição consentida da cola na instituição da consulta necessária e
cotidiana -, mas não seria pequena, afetando as práticas de sala de aula, de elaboração
de testes e provas, de correção e avaliação destes testes e provas.
Na verdade, qualquer mudança mais ou menos profunda é muito difícil em
uma escola cujos professores sejam horistas, isto é, com seu tempo tão fragmentado
quanto as disciplinas que ministram. Modificar a relação dos professores com o saber,
com os alunos e com os exames exige, como contrapartida, que a instituição, pública ou
privada, modifique na raiz sua relação com os seus profissionais. Modificar a relação
global com o conhecimento depende de alterar, concomitantemente, a relação global com
o trabalho. Essa mudança mais ampla, entretanto e infelizmente, foge ao escopo deste
trabalho - donos e diretores de escolas particulares, secretários de educação e diretores
de escolas públicas, é que não podem fugir dela.
Pedindo desculpas, aos leitores, pela imodéstia, acreditamos haver
construído, sem ser especialmente originais, uma solução interessante, envolvendo e
aproximando as disciplinas da escola na promoção de determinado nível de
transdisciplinaridade, através de um alicerce ético. Acreditamos que os professores
precisamos aprender a desconfiar de toda intenção de controle. Precisamos depor
algumas armas (restando-nos sempre nosso saber e nossa mestria), até para
conquistarmos mais ”moral”, perante os alunos e a sociedade - abdicar de parte das
funções policiais de que nos investiram modificaria, de maneira microscópica mas
substantiva, o nosso lugar social.
Tentamos demonstrar que o controle tende a ser, primeiro, ineficiente, e
depois, perverso - gerando o avesso do que suas ”boas” intenções pregam. Gostaríamos
de acrescentar que, além de ineficiente e perverso, o esforço de controle, por parte dos
controladores, é altamente estressante, envelhecendo-nos prematuramente. O controle,
portanto, é ineficiente, perverso, e burro.
O controle só não é estúpido para o sistema como um todo, que se perpetua
e se reproduz graças à legião de micropoderes que representamos. Mas o ”sistema”, por
definição, não tem rosto, não tem corpo - não merece tanta fidelidade assim, de nossa
parte. Propõe-se, aqui, uma outra fidelidade: ao enigma, à incerteza; ao que todos
podemos ser e não temos, felizmente, como saber.
Todavia, algumas ressalvas se impõem. A solução desta segunda parte tem,
na sua força, o seu inconveniente: só pode ser testada se toda a administração de uma
escola, direção e coordenação, bem como todo o corpo docente, fizerem a mesma
aposta. Talvez a solução se ressinta da mesma falha visceral que afeta os sistemas
utópicos: na melhor das hipóteses, uma boa descrição crítica da conjuntura presente, que
não leva, necessariamente, a alguma alternativa decente para o futuro. É muito mais fácil
dizer o que não se quer, o que estaria errado, do que afirmar o que se quer, o que seria o
certo.
De dentro da crítica mesma pode emergir outro defeito da saída
apresentada. Não lembramos Freud, que considerava três as profissões impossíveis, a
saber, psicanalisar, governar e educar? Uma vez que educar se baseia, como
psicanalisar e governar, no poder que um homem pretende exercer sobre outro, poder
esse anulado pelo inconsciente, pelo que, em suma, não se pode saber, propostas
pedagógicas surgiriam natimortas.
Não nos apoiamos em Foucault, que justamente estuda a microfísica do
poder para demonstrar que toda intenção pode portar seu avesso, toda instituição sua
sombra negativa, todo ser seu abismo e seu limite escuro? Transformar a cola em
consulta não poderia ser apenas mais um joguinho de palavras, sonhando com uma
reconstrução da moral na escola enquanto produz, sem o perceber, outras formas de
controle, quem sabe mais eficientes e perigosas?
Não vimos que a lógica de Eros passa pela lógica de Tanatos, na medida
em que se deseja o que nunca é nem atual nem presente, em que se deseja não essa
mulher, que é real, mas sua posse (que não é possível), em que se deseja não a obra,
que fazemos, mas a glória (que esperamos), em que se ama, enfim, não o aluno à nossa
frente, mas somente aquele que não existe (porque o queremos ”formar”)?
Propor uma alternativa pedagógica libertadora que elida o controle não seria
contraditório em seus próprios termos, se a pedagogia é, por definição, a arte de conduzir
os moços para uma meta que a priori não poderia ter sido estabelecida por eles?
É possível. Tudo isso é possível.
Mas não temos como saber. Nossa solução certamente carrega boa
probabilidade de ser canhestra (se humana). Mas o quanto, e como, se pode saber só-
depois. Algo, sempre, deve ser feito. Na verdade, algo, sempre, será feito (ou refeito). O
passado contém infinitamente mais elementos, para ser observado e criticado, do que o
futuro, ou do que uma idéia para o futuro, simplesmente porque o futuro ainda não há.
Pensar eticamente o passado implica tanto homenageá-lo quanto superá-lo. Propor idéias
para o futuro, propor-se em disponibilidade de ação e risco para o futuro, implica admitir-
se e oferecer-se, igualmente, à sua crítica. As invenções humanas começam pálidas,
meras frases, e depois se tornam, ao mesmo tempo, brilhantes (na melhor das hipóteses)
e sombrias (porque portam sempre as suas próprias sombras). Geram-se, desde então,
novas frases (no começo, pálidas).
Se as escolas vão implantar as nossas idéias é de somenos, porque foge, e
ainda bem que foge, ao nosso controle. Importa, antes, continuar refutando o platonismo:
refutar o platonismo é preciso. A menor de nossas ações, o menor de nossos prazeres, a
menor de nossas alegrias cumpre esse objetivo.
Há ação, há prazer, há alegria cada vez que desejamos o que fazemos, o
que temos, o que somos ou o que existe, em suma, cada vez que desejamos aquilo que
não nos falta: há ação, prazer ou alegria cada vez que Platão está errado, e isso diz muito
sobre o platonismo!164
Se para Platão o desejo é falta, para Spinoza todo desejo seria potência de
agir ou força de existir (agendi potentia sive existendi vis). Na declaração do amor
platônico, eu te amo pelo que você não é (e é isto que você não é nem tem que deve me
dar), e te deixo pelo que você é (pela falta mesma que moveu a paixão) - o marido mau
mata o príncipe encantado; a esposa que vira madrasta sufoca a bela adormecida. Na
declaração do amor spinozista, ao contrário, eu te peço nada: fico feliz com a idéia de que
você existe. O Deus de Bentham - a ficção de Deus, o inspetor-geral de Bentham -
constrói sua onividência e onipresença a partir, justamente, da ausência. Sendo Ele
mesmo todo o Bem, só pôde criar outra coisa que não Ele, isto é, só pôde fazer menos
bem que Si mesmo. Deus, já sendo todo o Bem possível e não podendo, por conseguinte,
aumentá-lo, só pôde criar o Mal - daí, esse nosso mundo.
Mas há um outro Deus, ou uma outra ficção de Deus, que cria de modo
diferente, ainda que a falta primeira também faça parte da sua raiz. É o Deus de Simone
Weil.
A criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de
retirada, de renúncia. Deus e todas as criaturas é menos que Deus sozinho. Deus aceitou
essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser. Esvaziou-se já nesse ato de sua
divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do
mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente
menos que Ele. Pelo ato criador negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos
negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor, para nos dar a possibilidade de
nos negar por Ele. Essa resposta, esse eco que depende de nós recusar é a única
justificativa possível à loucura do amor do ato criador. As religiões que conceberam essa
renúncia, essa distância voluntária, esse apagamento voluntário de Deus, sua ausência
aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a verdadeira religião,
a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a
divindade como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas.
Mesmo que monoteístas, são idólatras.165
Há um amor, que contém Eros mas o supera, que se atesta sobretudo por
164 André Comte-Sponville. Obra citada, p 264. 165 Idem, ibidem, p. 294.
uma força que não se exerce, pelo recuo, pela doçura, pela delicadeza de existir menos.
Há um amor potente justo ao recusar toda forma de onipotência, limitando a si mesmo e
preferindo se negar a se afirmar, preferindo se retirar a se estender, preferindo até mesmo
perder a possuir - ou a controlar. Esse amor refuta o amor platônico, na medida em que
pode, na fórmula de Pavese, ”mostrar sua fraqueza sem que o outro se sirva dela para
afirmar sua força”.
Esse amor é muito raro. Por isso mesmo, devemos colocá-lo em nosso
horizonte regulador. Por isso mesmo, talvez, possa inspirar não the fiction of God, mas
uma ficção de mestres e de discípulos que se encontrem aqui, e agora.
15 À GUISA DE CONCLUSÃO
A primeira parte deste livro propôs uma prática escolar que articulasse todas
as disciplinas a partir do ensino de redação e de lógica do discurso, enfocando o
desenvolvimento da argumentação.
A segunda parte deu um passo adiante, argumentando a favor de um
sistema de avaliação para a escola, inteiramente centrado em textos argumentativos e
que transformasse a cola consentida em consulta necessária.
Acreditamos que as partes são coerentes uma em relação à outra. Em
ambos os casos, fazemos uma proposta radicalmente interdisciplinar, que pretende
justamente envolver todas as disciplinas, optando não pela superficialidade de um ”tema
comum”, mas pela construção de um programa de investigação comum - programa este
eminentemente ético.
Mas esta é a nossa crença. O leitor, por favor, nos conte a sua.
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