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2 a edição | Nead - UPE 2010

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  • 2a edição | Nead - UPE 2010

  • Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)Núcleo de Educação à Distância - Universidade de Pernambuco - Recife

    Silva, Luciana Marinho Fernandes da

    Letras: literatura brasileira I / Luciana Marinho Fernandes da Silva.- Recife: UPE/NEAD, 2010.

    48 p. il.

    ISBN

    1. Literatura brasileira. 2. Literatura - História. 3. Literatura brasileira – Estudo e ensino. I. Universidade de Pernambuco - UPE. II. Título.

    S586l

    CDU 869.0(81)(091)

  • Impresso no Brasil - Tiragem 150 exemplaresAv. Agamenon Magalhães, s/n - Santo AmaroRecife - Pernambuco - CEP: 50103-010Fone: (81) 3183.3691 - Fax: (81) 3183.3664

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    Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa

    Pró-Reitor de Extensão e Cultura

    Prof. Carlos Fernando de Araújo Calado

    Prof. Reginaldo Inojosa Carneiro Campello

    Prof. José Thomaz Medeiros Correia

    Prof. Béda Barkokébas Jr.

    Profa. Izabel Cristina de Avelar Silva

    Profa. Viviane Colares S. de Andrade Amorim

    Prof. Álvaro Antônio Cabral Vieira de Melo

    UNIVERsIDADE DE PERNAmbUCo - UPE

    NEAD - NÚCLEo DE EDUCAÇÃo A DIsTÂNCIA

    Coordenador Geral

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    Coordenação de Revisão Gramatical

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    Equipe de design

    Coordenação de suporte

    EDIÇÃo 2010

    Prof. Renato Medeiros de Moraes

    Prof. Walmir Soares da Silva Júnior

    Profa. Waldete Arantes

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    Profa. Maria Vitória Ribas de Oliveira LimaProfa. Patrícia Lídia do Couto Soares Lopes

    Profa. Angela Maria Borges CavalcantiProfa. Eveline Mendes Costa Lopes.

    José Alexandro Viana Fonseca

    Prof. Marcos Leite Anita SousaGabriela CastroRodrigo Sotero

    Afonso BioneProf. Jáuvaro Carneiro Leão

  • 5

    Literatura BrasiLeira iProfa. Luciana marinho Fernandes da silva

    Carga Horária | 60 horas

    ementa

    Estudo da Literatura Brasileira. Da era colonial ao romantismo (poema e prosa). Análise de obras fundamentais, tendo em vista os aspectos formal e histórico-social. Prática de produção literária.

    OBjetivO GeraL

    Identificar as características históricas, sociais e estéticas dos textos de informa-ção e das manifestações da literatura e da pintura do período colonial ao Roman-tismo.

    apresentaçãO da discipLina

    Caros leitores, vamos dar início aos estudos de nossa Literatura Brasileira. Va-mos fazer um percurso que começa no tempo primordial de nossa formação cultural e segue até o Romantismo. Para entendermos as obras literárias e, mais especificamente, as produzidas nos séculos da colonização do Brasil, é necessário compreendermos relações entre literatura e sociedade. Nesse sentido, o contexto socio-histórico é relevante não só para termos uma visão do que acontecia no meio social, na época em que as obras foram escritas mas também para verificar-mos como aspectos externos à obra se tornam elementos internos desta.

    Compreendemos, assim, que a literatura, como qualquer outro discurso, traz as marcas de seu contexto de produção. Por isso, é fundamental termos conhe-cimento da interação entre aspectos culturais, históricos e estéticos, a fim de realizarmos uma visão crítica dos textos. Para enriquecer nossa leitura e mostrar o diálogo entre as artes, selecionamos pinturas representativas de cada período estudado. Com isso, leitores, vocês poderão perceber como características de um mesmo movimento aparecem em sistemas de signos diferentes, nesse caso, o linguístico e o pictórico.

    A fim de aprofundarmos o conteúdo, serão feitas indicações de textos comple-mentares em fontes diversas — como livros, filmes, sites —, propostas atividades de estudo bem como realizadas videoconferências para estabelecermos uma co-municação interativa, uma conversa de “mão-dupla”. É importante vocês lerem com atenção os objetivos gerais da disciplina e os específicos de cada etapa de nosso conteúdo para que vocês possam avaliar se, à medida que os estudos avan-çam, estão alcançando as metas propostas.

    Então... Mãos à obra e bons estudos!

  • 7Capítulo 1 77Capítulo 1

    OBjetivOs específicOs

    • Estabelecerrelaçõesentrealiteraturadeinformaçãoeosaspectoshistóricose culturais da época.

    • Identificarascaracterísticastemáticaseformaisdoteatrodosjesuítas.

    intrOduçãO

    O primeiro capítulo de nossos estudos sobre a Literatura Brasileira se reporta aos primórdios de nossa formação cultural, aos textos fundadores de nossa cultura. Nessas obras, foram registradas as primeiras impressões que os conquistadores e os colonizadores tiveram da terra e dos nativos que aqui encontraram. Destaca-mos para análise dois textos fundamentais dessa tradição: a Carta de Pero Vaz de Caminha e o Auto de São Lourenço, do jesuíta José de Anchieta.

    1. cOntextO HistóricO-cuLturaL

    O período colonial compreende os séculos XVI, XVII e XVIII da história do Bra-sil, os quais correspondem, no campo das letras, ao Quinhentismo, ao Barroco, ao Arcadismo e ao Pré-Romantismo. Que aspecto principal marca as representa-ções do homem e da terra nesses períodos? Como bem aponta Bosi (1994, p.12), o nativismo marca a perspectiva ideológica do período colonial, tal qual o nacio-nalismo marca a perspectiva ideológica após a independência do país, portanto, a partir do Romantismo.

    Os primeiros textos que compõem a nossa tradição nas letras são denominados de literatura de informação. Mas... toda literatura nos informa algo, não? Vamos imaginar que os autores desses primeiros escritos não tinham intencionalidade artística. Não havia aqui a classe dos escritores de literatura nem um público para consumi-la. A vida na colônia foi insípida notadamente nos primeiros séculos. Os religiosos formavam a única vertente que se caracterizava por uma atividade intelectual. Somavam-se a eles, a classe dos proprietários rurais e a escravaria. Os ruralistas chegaram com interesse no apossamento da terra e no enriquecimento.

    Então, como se configurava a situação comunicativa? Quem escrevia o quê, para quem e por quê?

    A literatura de informação apresenta as primeiras impressões das paisagens na-tural e humana, registradas pelo olhar do estrangeiro ao se deparar com a terra paradisíaca e seus habitantes. São textos escritos com a finalidade de atender

    Os primórdiOsProfa. Luciana marinho Fernandes da silva

    Carga Horária | 15 horas

  • 8 Capítulo 1

    objetivos políticos, religiosos, econômicos. As crô-nicas dos viajantes, os textos informativos dos mis-sionários e as peças teatrais dos jesuítas fazem par-te desse legado. A Carta de Pero Vaz de Caminha inaugura essa tradição. Posteriormente, destacam-se o Diário de Navegação, de Pero Lopes e Sousa, datado de 1530; o Diálogo sobre a Conversão dos Gentios, de Padre Manuel da Nóbrega, datado de 1557; o Tratado da Terra do Brasil, de Pero Ma-galhães Gandavo, datado de 1576; os Tratados da Terra e da Gente do Brasil, de Fernão Cardim, sem data precisa; o Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa, datado de 1587; os Diálogos das Grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão, datado de 1618 e a História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, datado de 1627.

    Portanto, esses textos foram construídos a partir da perspectiva do colonizador. Constituem a funda-ção de nossa história literária na medida em que, quando o circuito da comunicação artística passou a existir, os escritores reconheceram nesses textos bases para a reflexão e a elaboração de uma litera-tura representativa de nossa identidade nacional, por serem as primeiras referências sobre a terra e os nativos. Salientamos, nesse sentido, o interes-se dos modernistas de 22 em visitar as obras dos cronistas quinhentistas, buscando a nossa origem.

    Como surge, nesse contexto, o nativismo, uma vez que a relação de exploração da metrópole

    para a colônia se sobrepunha ao sentimento de cuidar da terra e do povo que aqui foi

    encontrado?

    No século XVI, Portugal se encontrava impregna-do pela mentalidade do pensamento humanista. Munidos desse ideário, os portugueses chegam ao Brasil para cumprir objetivos econômicos, políti-cos e religiosos da expansão e exploração mercanti-listas bem como da cristianização. Vamos lembrar que, nesse período, o poder estava centralizado na aliança do Estado com a Igreja. A Igreja, por sua vez, vivia uma posição dualista, a saber: apoiar o processo expansionista de busca de riquezas em novas terras, associado à expansão do império reli-gioso e, ao mesmo tempo, assistir à escravização e à matança indígenas colocarem, em xeque, os ideais humanistas e cristãos.

    Nas relações internas da Igreja, o dualismo será marcado pela posição contrária à política de co-

    lonização assumida pela Companhia de Jesus. Ao priorizar a catequização, motivada pela ideia de que as almas indígenas precisavam ser salvas, a Companhia de Jesus defende os índios do proces-so violento, que representou a colonização para a cultura desses povos. O nativismo surge, nesse pri-meiro momento, atrelado a essa posição dos jesuí-tas. A resistência dos jesuítas ao ideário do coloni-zador caracterizará a postura dessa ordem religiosa até 1759, quando o Marquês do Pombal intervém, expulsando a Companhia de Jesus do território português. Em 1760, ela é expulsa do Brasil.

    A importância da tradição religiosa para a forma-ção cultural do Brasil colonial é fundamental e dominante, haja vista que a Igreja ficou responsá-vel pela administração do ensino, adquirindo este um direcionamento religioso até o século XVIII. Quando chegaram ao Brasil, em 1549, no atual estado da Bahia, os jesuítas iniciaram os trabalhos de catequização, erguendo instituições de ensino. Ao deixarem o país, já tinham fundado colégios por vários pontos do litoral, da região Sul à região Nordeste. Destacaram-se nomes como Manuel da Nóbrega, José de Anchieta, Vicente Pires, Leonar-do Nunes.

    Na ausência de ensino superior leigo, os brasileiros viajavam para Portugal a fim de adquirirem instru-ção. Logo, voltavam para o Brasil com a menta-lidade formada pelos valores e crenças da cultura europeia, especificamente da portuguesa. Isso cola-borou para a instauração de duas tendências con-flitantes, presentes nos primeiros séculos de nossas letras, uma que teve como ponto de referência a Europa, e a outra que procurava edificar uma tra-dição local, como aponta Coutinho (1980, p. 35):

    Dada a contingência de nação colonizada por europeus, os portugueses, e em virtude da ausência de uma tradição autóctone que pudesse servir-nos como passado útil, a evo-lução de nossa literatura foi uma luta entre uma tradição importada e a busca de uma nova tradição de cunho local ou nativo. Esse conflito das relações entre a Europa e a América, esse esforço de criação de uma tradição local em substituição à antiga tradição européia, marcam a dinâmi-ca da literatura desde os momentos ou expressões iniciais

    na Colônia.

    Com o intuito de catequizar os índios, os jesuítas cooperaram para a construção de uma tradição lo-cal ao introduzirem, em seus textos, vocabulário, costumes, crenças indígenas. É importante não es-quecer que as imagens dos índios presentes nessas

  • 9Capítulo 1

    obras provêm das interpretações que os religiosos construíram a partir do que presenciaram, tendo em vista seus valores de homens brancos, católicos, europeus.

    Podemos considerar que, ao descreverem e valo-rarem os índios e seus costumes, os jesuítas nos deixaram um acervo precioso o qual nos leva a co-nhecer mais a mentalidade dos missionários que entraram em contato com os nativos do que pro-priamente a mentalidade destes. Assim, vale-nos o ditado: “Quando João fala de Pedro, conhecemos mais João do que Pedro”. Destacam-se, nesse em-preendimento missionário, as figuras de Pe. Ma-nuel da Nóbrega e de Pe. Anchieta, com obras fun-damentais como Diálogo sobre a Conversão do Gentio, datado de 1557, de Nóbrega; e os autos, como o Auto das Onze Mil Virgens, datado de 1583, de Anchieta.

    Uma outra nuance do sentimento nativista é ob-servada na prosa dos cronistas e viajantes portu-gueses, na qual a natureza aparece de forma exu-berante, e a terra, próspera. Traz as marcas do olhar deslumbrado diante do exótico. No caso dos jesuítas, o nativismo direcionou-se para a missão catequizadora e a defesa do nativo, como vimos an-teriormente; no caso dos cronistas e dos viajantes, direcionou-se para o interesse do colonizador em usufruir as riquezas naturais da terra conquistada e em registrar o que ameaçava o projeto expansionis-ta, como as invasões estrangeiras. Assim, os escri-tos e relatos tiveram orientações diferentes.

    Nos dois próximos tópicos deste capítulo, analisa-remos a Carta de Pero Vaz de Caminha, datada de 1º de maio de 1500, e o Auto de São Lourenço, de José de Anchieta, de 1583. Observaremos como os índios são representados de maneira diferente em cada um desses textos, uma vez que o contexto de produção e a intencionalidade de seus autores atendem a fins distintos.

    2. O primeirO reGistrO dO OLHar estranGeirO: a carta de caminHa A Carta de Caminha inaugura o acervo de textos de informação que registra relatos e descrições da terra e dos aborígines nos primeiros séculos de co-lonização. São testemunhos históricos dos conta-

    tos iniciais entre europeus e americanos bem como das relações travadas quando o processo de assen-tamento na nova terra já havia sido instaurado. Destacam-se, na Carta, a visão de mundo do es-trangeiro, os valores, as crenças, expectativas deste ao se confrontar com uma cultura bastante dife-rente da cultura europeia no século XVI. Podemos verificar, na citação de Bosi (1994, p. 14), alguns aspectos que caracterizam a escrita de Caminha e situam a Carta no contexto dos gêneros textuais da época:

    O que para a nossa história significou uma autêntica cer-tidão de nascimento, a Carta de Caminha a D. Manuel, dando notícia da terra achada, insere-se em um gênero copiosamente representado durante o século XV, em Por-tugal e Espanha: a literatura de viagens. Espírito observa-dor, ingenuidade (no sentido de um realismo sem pregas) e uma transparente ideologia mercantilista, batizada pelo zelo missionário de uma cristandade ainda medieval, eis os caracteres que saltam à primeira leitura da Carta e dão sua medida como documento histórico.

    A literatura de viagem é o gênero que mais se destacou em Portugal, no século XVI, estando de acordo com o contexto sócio-histórico do ex-pansionismo mercantilista e religioso das grandes viagens marítimas. São exemplos dessa literatura os “livros de navegação”, os diários de bordo, as correspondências.

    O texto de Caminha pertence ao gênero epistolar, contudo dialoga com outro gênero, o diário. Traz as marcas da estrutura de carta, como a saudação ao Rei D. Manuel, seu ilustre interlocutor, no iní-cio, e o fechamento com a despedida e a assinatu-ra do emissor, no fim. Todavia, ao direcionar-se à narração dos acontecimentos da viagem de Pedro Álvares Cabral, com minúcia de datas e numa se-quência cronológica, o texto adquire características de diário.

    A Carta de Caminha, longe de ser um documento cujo objetivo é o de descrever os fatos da viagem com distanciamento emocional e imparcialidade, revela os sentimentos e as impressões do emissor diante de uma paisagem natural exuberante e de uma paisagem humana que se mostra exótica aos seus olhos. Em relação aos elementos textuais que marcam a interação de Caminha com o seu inter-locutor, podemos verificar o jogo retórico e persua-sivo de quem busca dar validade ao próprio discur-so bem como o tom de quem presta servilmente um trabalho:

  • 10 Capítulo 1

    Posto que o Capitão-mor desta Vossa frota e assim igual-mente os outros capitães escrevam a Vossa Alteza dando notícias do achamento desta Vossa terra nova, que agora nesta navegação se achou, não deixarei de também eu dar minha conta disso a Vossa Alteza, fazendo como melhor me for possível, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos. Queira porém Vossa Alteza tomar minha ignorância por boa vontade, e creia que certamente nada porei aqui, para embelezar nem para enfeiar, mais do

    que vi e me pareceu.

    Podemos perceber, nas palavras de Caminha, a fal-sa modéstia para quem mantinha o posto de escri-vão da armada de Cabral e um certo tom de quem quer se mostrar servil ao Rei, especialmente nesses fragmentos:

    “Posto que o Capitão-mor desta Vossa frota e assim igual-mente os outros capitães escrevam a Vossa Alteza dando notícias do achamento desta Vossa terra nova [...] não dei-xarei de também eu dar minha conta disso a Vossa Alteza”, “[...] fazendo como melhor me for possível, ainda que —

    para o bem contar e falar — o saiba pior que todos”

    e ainda

    “Queira, porém, Vossa Alteza tomar minha ignorância por boa vontade”. A fim de dar confiança às suas palavras, Caminha afirma a veracidade delas: “creia que certamente nada porei aqui, para embelezar nem para enfeiar, mais do

    que vi e me pareceu”.

    Também identificamos, nesse primeiro parágrafo da Carta, um sinal do objetivo imperialista da ex-pansão marítima portuguesa. Quando Caminha, ao se dirigir ao Rei D. Manuel, utiliza o pronome possessivo “vossa” na expressão “Vossa terra nova” aponta a relação de posse que caracterizará a re-lação metrópole e colônia. Imperialismo que, ao longo da colonização, transformará o olhar admi-rado e curioso desse primeiro observador da ter-ra paradisíaca em ações violentas que terão como consequência a fuga de índios para o interior do país numa tentativa de evitar o extermínio do qual a maioria foi vítima.

    Os índios descritos por Caminha são seres amisto-sos, de fácil contato — dificultado apenas pelo não entendimento linguístico — e inocentes: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes co-brisse as suas vergonhas. Traziam nas mãos arcos e setas. Vinham todos rijamente em direção ao ba-tel. Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles assim fizeram”. Esta é uma das pas-

    sagens da carta, na qual o olhar do colonizador se apresenta impregnado de seus valores culturais ao se referir aos modos e costumes dos nativos, nesse caso, ao se referir à genitália como “vergonhas”. Mais adiante, afirma:

    “Andam nus, sem coberta alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão

    inocentes como quando mostram o rosto”.

    Caminha descreve os índios como obedientes ao comando de Nicolau Coelho, dado importante a ser comunicado ao Rei, uma vez que havia o inte-resse de achar riquezas em terra firme, e o compor-tamento amistoso dos nativos facilitaria o empre-endimento. A atenção voltada à reação dos índios é verificada em outras passagens: “Um deles trazia um arco e seis ou sete flechas; e na praia andavam muitos com seus arcos e flechas, porém deles não fizeram uso em nenhum momento”.

    O encontro do português com os índios america-nos representou um choque cultural para ambas as partes, embora tenha sido a cultura dominada a que sofreu o processo violento de perda de identi-dade e de dizimação de povos. Na Carta, há mar-cas da tentativa, feita por Caminha, de apreender a cultura indígena por meio da comparação entre elementos de sua própria cultura e da cultura que lhe é estranha. Compara, assim, os trajes de um nativo à imagem de São Sebastião: “Esse que o agasalhara era já de idade e andava por galanteria cheio de penas pegadas pelo corpo, de tal maneira que parecia um São Sebastião cheio de flechas”.

    A busca por especiarias e trocas comerciais me-nos custosas levou a armada de Vasco da Gama a empreender a primeira viagem de Portugal às Índias, no final do século XV. Motivou igualmen-te a viagem comandada por Cabral, cujo destino culminou no Brasil. O interesse mercantilista de usufruir os bens da terra é registrado ao longo das descrições de Caminha. O desejo de desfrutar de um proveito ilimitado, contido na célebre expres-são do escrivão de que aqui se plantando tudo dá, é verificado também no interesse de encontrar ouro. Assim Caminha descreve a comunicação en-tre um índio interessado nas contas que lhe foram mostradas pelo Capitão:

    Depois tirou-as e com elas envolveu os braços e acenava para a terra e logo para as contas e para o colar do Capitão, como querendo dizer que dariam ouro por aquilo. Nós as-

  • 11Capítulo 1

    sim o traduzíamos porque era o nosso maior desejo... Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isso nós não desejávamos compreender, porque tal coisa não aceitaríamos fazer.

    O interesse mercantilista e as estratégias de apro-ximação podem ser reconhecidos nos fragmentos a seguir:

    “Ninguém não lhe deve falar rijo, porque então logo se esquivam; para bem os amansar é preciso que tudo se passe

    como eles querem”.

    E, no final da Carta, sobre o proveito da terra:

    Nela até agora não pudemos saber se haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem o vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperador como Entre-Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá.... As águas são muitas e infin-das. E em tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-

    la, tudo dará nela, por causa dos frutos que tem...

    Não podemos esquecer que, aliado ao projeto de expansão econômica, havia o de expansão religio-sa. As descrições de Caminha quanto ao compor-tamento receptivo dos índios nos momentos em que os tripulantes da armada apresentavam-lhes elementos da cultura católica se repetem ao longo da Carta. Também fica evidente o sentimento de superioridade do português ao descrever suas im-pressões quanto aos nativos.

    Não há esforço dos brancos para, despojando-se de seus valores, tentar compreender a cultura dos pardos. Antes, encontramos uma dificuldade de pensar o diferente, que culmina no sentimento de superioridade do português ao avaliar o modo de vida dos nativos. O que é compreensível, tendo em vista o período histórico do Renascimento com o seu ideal humanista de crença na evolução do ho-mem através da ciência e da razão. Aos olhos do homem renascentista, a cultura indígena represen-tava atraso. A essa postura de se colocar superior perante a cultura de outros grupos ou povos, os an-tropólogos dão o nome de etnocentrismo. Obser-vemos, pois, o comentário de Caminha em relação a dois índios que receberam presentes do Capitão da frota:

    Os outros dois que o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já foi dito, nunca mais aqui apareceram, fatos que induzem a pensar que se trate de gente bestial e de pouco saber, por isso mesmo tão esquiva. Mas apesar de

    tudo isso, andam bem curados e muito limpos. E naquilo sempre mais me convenço que são como aves ou animais montesinhos....

    Caminha, antes de se despedir do Rei D. Manuel, finaliza suas opiniões sobre a terra e seu povo, enaltecendo a expansão da cristandade como o fim último das conquistas do império português: “Porém, o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que será salvar essa gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza deve lançar”.

    Contudo, os anos que separam a Carta de Cami-nha do início da colonização, que se deu por volta de 1530, são anos que vão anteceder à mudança do olhar extasiado diante da natureza paradisíaca e da inocência dos índios para o olhar desumano, orientado para a cobiça e o interesse pelo lucro. Como aponta Castro (2007, p. 125-126), a comu-nicação gentil que fora conquistada entre autócto-ne e conquistador, apresentada na Carta de Cami-nha, será substituída pela brutalidade imperialista:

    O paraíso modifica-se lentamente. Modifica-se a vida. O claro imediato sentido da existência se vê superado pela convicção colonizadora e imperialista. Até mesmo o co-lonizador — antes ingenuamente feliz — perde a visão do paraíso. As palavras do escrivão do Porto Seguro são esque-cidas, e o espírito de alegria não voa mais sobre homens e coisas... Será um longo tempo de penumbra, a noite bra-sileira, quando brancos, pretos, amarelos e vermelhos se confundem na comoção de um plasma ainda inominado: que hoje é a expulsão do indígena para longes terras ou morte deles; amanhã, a entrada do navio negreiro com a doçura do africano que chega para ser consumido na vio-lência do trabalho sem dignidade....

    3. teatrO reLiGiOsO dOs jesuítas: ancHieta

    Entre a Carta de Caminha e as prosas dos jesuítas transcorreram cerca de 50 anos. Se, no primeiro, o espírito do conquistador era ingênuo e prático, no segundo, havia o objetivo de cumprir os interesses da Companhia de Jesus, ou seja, a catequese do gentio e o ensino. Na tentativa de cumprir o seu programa humanístico, os jesuítas discordavam frequentemente dos portugueses colonizadores. Em seus escritos, encontraremos descrição da pai-sagem natural e das relações estabelecidas entre os índios, os colonos e os religiosos, na sociedade que começava a se formar.

  • 12 Capítulo 1

    Anchieta destaca-se entre os jesuítas pelo modelo de linguagem de seus escritos, nos quais se salienta a dimensão mística de sua obra aliada à pedagó-gica e doutrinária. Seus escritos se realizaram em diversos gêneros, tais como o teatro, a poesia épica e a religiosa. Assim, eram para serem representa-dos e declamados. A linguagem de suas obras se caracterizava pela simplicidade em função de seu público: os índios no processo de catequização e os colonos. Considerando seus interlocutores e o contexto religioso, fez uso de vários idiomas, como o português, o tupi-guarani, o espanhol e o latim.

    Contudo, é importante atentarmos para o ponto de vista de Moreau (2003, p. 19), segundo o qual, tanto o colonizador quanto os jesuítas propunham intervenções no modo de vida indígena, que se ca-racterizavam pela violência. Assim, os textos

    ....evidenciam que a carência do Bem católico quando o padre e sua verdade universal inventam uma alma para o corpo classificado, no ato, como “gentil”, “inconstante”, “selvagem” e “bárbaro”, é suplementada no século XVI por duas espécies de intervenção. Ambas são violentas pelo mero fato de serem intervenções, embora se pudesse pensar que têm violências de espécies e intensidades diver-sas. Genericamente, a intervenção dos que afirmam que o índio é um “cão”, um “porco”, um “bárbaro” e um “escre-vo por natureza”, propondo o extermínio e a escravidão; e a intervenção dos que defendem que é “humano”, mas “selvagem”, e que deve ser salvo para Deus por meio da verdadeira fé que o integra como subordinado, escravo ou plebeu, ao corpo místico do reino português.

    O Auto de São Lourenço, escrito por Anchieta e encenado em 1583, é uma peça composta por 5 atos, cujo objetivo é o de induzir ao amor e temor a Deus. Centralizado no martírio de São Lourenço ao morrer queimado, o Auto representa a luta do Bem contra o Mal. Após a morte de São Lourenço, três demônios tentam destruir a aldeia indígena. Anchieta traça semelhanças entre os demônios da igreja Católica e os demônios do universo indíge-na, a saber, Guaixará, Aimberê e Saravaia. Esses de-mônios são nomes de índios Tamoios. Os Tamoios defenderam os franceses contra os portugueses.

    Os demônios, com o intuito de destruir a aldeia, valorizam os costumes indígenas, como o de beber cauim e o de fumar, a fim de criar desavenças e discórdias na tribo. Assim, Anchieta aproxima os costumes indígenas de forças maléficas. São Lou-renço, aliado a São Sebastião, salva a aldeia de tal invasão demoníaca. Por fim, anjos aconselham os

    indígenas a terem confiança em São Lourenço e nos preceitos católicos.

    Com um enredo maniqueísta, Anchieta procura dominar o gentil ideologicamente, desvalorizando seus costumes em prol dos costumes portugueses. Dessa forma, é pela boca do demônio Guaixará que os valores indígenas são degradados:

    Guaixará sou chamadoMeu costume é o bem viver.Que não seja constrangido O prazer, nem abolido.Quero as tabas acenderCom meu fogo preferido.Boa medida é beber Cauim até vomitar.Isso é jeito de gozarA vida, e se recomendaA quem queira aproveitar.

    Mais adiante:

    Valente é quem se embriagaE todo cauim entornaE a luta então se consagra.Que bom costume é bailar!Adornar-se, andar pintado,Tingir penas, empenado Fumar e curandeirar,Andar de negro pintado.

    Assim, no discurso maniqueísta criado por Anchie-ta, é pela “boca do mal” que os costumes indígenas são valorizados. O outro demônio, Aimbirê, tam-bém profere a degradação dos modos e valores dos nativos, como o do adorno, da dança, da bebida:

    Fui a Tabas vigiar,Nas serras de Norte a SulNosso povo visitar.Ao me ver regozijaram,Bebemos dias inteiros.Adornaram-se festeiros.Me abraçaram, me hospedaram,Das leis de Deus estrangeiros.Enfim, confraternizamos.Ao ver seu comportamento,Tranqüilizei-me. Ó portento!Vícios de todos os ramosTem seus corações por dentro.

    Na peça, forma-se um jogo de valores no qual a perdição está com os demônios, e a salvação, com os jesuítas, missionários de Deus. Logo, para se aproximar da salvação, os indígenas têm que abrir

  • 13Capítulo 1

    mão de suas crenças, caso contrário são devasta-dos. Assim continua Aimbirê:

    Usarei de igual destrezaPara arrastar outras presasNesta guerra pouco santa.O povo TupinambáQue em Paraguaçu morava,E que de Deus se afastava,Deles hoje um só não há,Todos a nós se entregaram....Todos os Tamoios foram Jazer queimando no inferno.Mas há alguns que ao Padre EternoFiéis, nesta aldeia moram,Livres do nosso caderno.Estes maus TermiminósNosso trabalho destrói.

    Em outro fragmento, o demônio Guaixará deixa clara a ideia de que quem não tem devoção a Deus cai nas malhas do Diabo, ao fazer referência aos índios:

    Por certo aqueles cristãosNão rebeldes não seriam.Mas esses que aqui estãoDesprezam a devoçãoE a Deus não reverenciam.Vais ver como em nossos laçosCaem logo esses malvados!De nossos dons confiados,As almas cederam passoPara andar do nosso lado.

    É recorrente na peça a degradação do cauim, bebi-da presente nos rituais indígenas. É na fala do de-mônio Saravaia que o cauim será exaltado, quando aquele se dirige a Guaixará. Este diz que deixará Saravaia transportar os índios aprisionados. Dessa forma, o elemento indígena é associado ao diabo:

    Irei onde me carregues.E agradeço que me entreguesEncargo tão desejado.Como Saravaia sou,Aos índios que me alieiEnfim aprisionarei.E neste barco eu vouDe cauim me embriagarei.

    Mais adiante, o cauim será apontado por Saravaia como uma bebida que debilita os índios, deixan-do-os vulneráveis às artimanhas do diabo:

    Forte estavaE os rapazes beberrõesQue pervertem esta aldeia,Caíam de cara cheia.Velhos, velhas, mocetõesQue o cauim desnorteia.

    Ou ainda na fala do demônio Aimbirê:

    Bebam cauim a seu jeito,Como completos sandeusAo cauim rendem seu preito.Esse cauim é que tolheSua graça espiritual.Perdidos no bacanalSeus espíritos se encolhem No nosso laço fatal.

    A seguir, nas falas do demônio Aimbirê e de São Lourenço, respectivamente, podemos verificar a re-presentação do índio como alma perdida e o papel da igreja de receber os arrependidos e salvá-los:

    E nem sequer raciocinamQue é o inferno que cultuam.

    São Lourenço:

    Mas existe a confissão,Bem remédio para a cura.Na comunhão se depuraDa mais funda perdiçãoA alma que o bem procura.Se depois de arrependidosOs índios vão confessarDizendo: Quero trilharo caminho dos remidos”.— O padre os vai abençoar.

    O quinto e último ato representa a dança dos doze meninos que ocorre na procissão de São Louren-ço. Nesse momento, São Lourenço é louvado em detrimento dos “vícios”, dos “rituais mágicos” que, ao longo da peça, foram colocados no plano das crenças indígenas. Assim, no fragmento abaixo, ve-rificamos o Bem, sintetizado na figura dos santos, vencer o mal, sintetizado na figura dos demônios com seus costumes indígenas:

    Nós confiamos em ti,Lourenço santificado,Que nos guardes preservadosDos inimigos aquiDos vícios já desligadosNos pajés não crendo mais,Em suas danças rituais,

  • 14 Capítulo 1

    Nem em seus mágicos cuidados.

    A partir de quais aspectos podemos estabelecer re-lações de convergência entre os dois textos lidos por nós como representantes das duas tradições, a da literatura de informação, com a Carta de Cami-nha, e a prosa jesuítica com o Auto de São Louren-ço? Em ambos, existe a negação da existência de religião na sociedade indígena. Assim, enquanto textos representantes da expansão da cristanda-de, os índios são representados como perdidos e necessitados de conversão. A inocência do índio de Caminha é substituído pelo nativo pressiona-do pelas forças do mal e que precisa dos missio-nários e santos católicos para ser salvos. Escritos em momentos distintos e com intenções comuni-cativas também distintas, esses textos revelarão as teias discursivas nas quais foram concebidos. Em Caminha, a amistosidade e a boa recepção dos ín-dios ao simbolismo católico compõem as interpre-tações criadas pela necessidade do observador de assim conceber. Em Anchieta, um conhecimento mais aprofundado da cultura dos povos nativos já fora empreendido. Diferentemente da perspectiva de Caminha, na visão dos missionários, há forças a serem combatidas — as da magia, do vício — com a força da revelação cristã. Em ambos, o povo nativo não foi conhecido numa perspectiva que conside-rasse os seus valores, a sua cultura. Foram criadas imagens e metáforas dos índios, enquanto as suas tribos estavam sendo dizimadas e, assim, para sem-pre sua cultura seria irrecuperável.

    atividades | 1. Selecione um autoindianista de José de Anchieta e teça um comentário crítico sobre a representação do índio na obra. Utilize pas-sagens desta para reforçar seu ponto de vista.

    referÊncias

    BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

    _____. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das letras, 2008.

    CASTRO, Sílvio. A carta de Pero Vaz de Cami-nha. Porto Alegre: L&PM, 2007.

    COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

    MOREAU, Filipe Eduardo. Os índios nas cartas de Nóbrega e Anchieta. São Paulo: Annablu-me, 2003.

    GLOssÁriO

    Nativismo - tendência a se valorizar o que é nativo, natu-ral da terra, em detrimento do que é estrangeiro, ou vem de fora da região valorizada.

    autóctoNe - que tem sua origem na terra onde se encon-tra, não provém de importação ou imigração. Nativo.

    resumO

    Tanto a literatura de informação quanto a literatura dos jesuítas surgem com fi-nalidades diferentes e, a princípio, não artísticas. As crônicas de viajantes, os textos informativos dos missionários e as peças teatrais dos jesuítas compõem o acervo da literatura produzida nos primeiros momentos da colonização do Brasil, objetivando, por um lado, cate-quizar os índios; por outro lado, infor-mar acontecimentos e descrever aspec-tos locais para a corte portuguesa.

    SAIBA MAIS!

    Livros: História do Amor no Brasil, de

    Mary del Priori.

  • 15Capítulo 2Capítulo 2

    O BarrOcO

    OBjetivOs específicOs

    •Estabelecerrelaçõesentrealiteraturabarrocaeosaspectoshistóricosecul-turais de sua época.

    • IdentificarcaracterísticasdoBarroconaliteraturaenapintura.

    intrOduçãO

    Vamos iniciar os estudos sobre o Barroco, momento em que se busca fundir duas visões de mundo, presentes em dois momentos históricos distintos, a saber, a Idade Média com a concepção teocêntrica da realidade e o Renascimento com a concepção antropocêntrica. Destacamos, para análise, obras dos dois autores mais importantes desse período na literatura brasileira: poemas lírico-amorosos, irônicos e satíricos de Gregório de Matos e Sermões de Padre Antônio Vieira.

    1. cOntextO HistóricO-cuLturaL

    Durante o século XVII, no Brasil, o processo de colonização continuava a operar sob a regência da exploração das terras brasileiras, da escravidão e das atividades dos jesuítas. Não havendo, portanto, grandes mudanças no cenário histórico. Vale ressaltar que ainda se delineava a formação de uma sociedade no Brasil e, consequentemente, a estruturação de um cenário literário e artístico, digno de ser chamado de nacional. Compreensível, já que essa estruturação é um processo que necessita de desenvolvimento contínuo e de tempo para atingir níveis capa-zes de representar a cultura de um povo.

    Contudo, esse desenvolvimento tomava rumos com a inserção do Brasil, no sé-culo XVI, na rota do mercantilismo — prática econômica que visava à expansão de trocas de comércio, alargando as áreas geográficas por meio das viagens ma-rítimas. Nessa perspectiva, algumas alterações foram ocorrendo na colônia, de forma que “a economia fechada, reduzida a áreas diminutas, ilhada em torno de mercados próximos, iria sendo aceleradamente liquidada na medida em que o mercantilismo alastrava os seus efeitos”. (SODRÉ, 1995, p. 32).

    E quanto ao Barroco? Para melhor compreendermos esse período histórico-cultu-ral no Brasil, será preciso, primeiramente, voltarmos ao século XVI em Portugal. Nessa época, Portugal vivia sob o Movimento da Contra-Reforma, que se base-ava, especificamente, numa resposta da Igreja Católica à Reforma Protestante iniciada por Martinho Lutero.

    Profa. Luciana marinho Fernandes da silvaCarga Horária | 15 horas

  • 16 Capítulo 2

    A Reforma Protestante sugeria mudanças em vá-rios pontos da Doutrina da Igreja Católica e tinha como princípios os chamados “Cinco Solas”: Sola fide (somente a fé), Sola scriptura (somente a escri-tura), Solus Christus (somente Cristo), Sola gratia (somente a graça) e Soli Deo gloria (graça somente a Deus). Dentre os aspectos requisitados pela Re-forma, estavam: a interpretação livre da Bíblia, e não aquela elaborada apenas à maneira dos padres; os cultos religiosos em língua nacional, contrapon-do-se às missas celebradas apenas em latim, e a efi-cácia das indulgências.

    Diante do “perigo” que representava a Reforma Protestante, devido à ameaça do esfacelamento e da decadência da própria Igreja Católica, esta iniciou então a Contra-Reforma. Seu marco foi o Concílio de Trento (1545-1563), no qual os seus representantes, convocados pelo Papa Paulo III, re-elaboraram os preceitos da Igreja, dando início a uma verdadeira ação contra o avanço do Protes-tantismo.

    Para reforçar os dogmas do Catolicismo, foram tomadas várias medidas, entre elas: a criação do Index Librorum Prohibitorum (espécie de lista de livros proibidos pela Igreja Católica), a retoma-da e a reorganização do Tribunal do Santo Ofício (Inquisição), a manutenção do celibato, a superio-ridade do Papa sobre os demais representantes da Igreja e a proibição de venda de indulgências (ato questionado pela Reforma Protestante).

    Chegamos a um aspecto importante que irá interes-sar particularmente a nossa compreensão do Bar-roco no Brasil: a presença da Companhia de Jesus, fundada em 1534, no contexto da Contra-Reforma Católica. Como sabemos, os Jesuítas tinham como objetivo primordial divulgar, por meio da cateque-se e do ensino, a ideologia e o conjunto de crenças da Igreja Católica. A vinda dessa ordem religiosa para o Brasil está, portanto, diretamente ligada à Contra-Reforma Católica na metrópole e terá um papel fundamental na constituição do Barroco na colônia. Assim Castello (1999, pág. 82) nos situa a relevância da Companhia de Jesus no contexto do Barroco no Brasil:

    É de relativa fortuna, com acentuada importância nos três séculos de nossa formação colonial, dado o papel que a Igreja representou neste período, destacadamente a Com-panhia de Jesus, a contar de Anchieta. Sendo então a oratória religiosa o púlpito católico um dos veículos mais

    combativos e de grande poder de irradiação e influência da parenética jesuítica, da qual o Pe. Antônio Vieira seria, no século XVII, não só o seu principal expositor em língua portuguesa, como igualmente o seu maior modelo.

    No Período Colonial, portanto, os jesuítas tiveram um papel fundamental na formação intelectual do Brasil. Os jesuítas foram, de fato, o primeiro grupo de intelectuais a trazer conhecimento de além-mar e dar início, em terras brasileiras, ao contato com o pensamento e a produção cultural de Portugal. Embora pregassem o conhecimento por meio da catequese, o primeiro passo já estava dado: o des-pertar do interesse pelas letras. Vejamos o que nos diz Sodré (1995, p. 55):

    Pela sua formação e pela finalidade de seu mister, os pa-dres eram dotados de indiscutíveis condições intelectuais, que empregavam, na medida do possível, na tarefa da cate-quese. Empregaram-nas em particular no ensino, que lhes pertenceu por largo período como monopólio, e em que tiveram, mesmo quando ao lado de outros elementos, um

    papel de singular destaque.

    E, em seguida:

    Nos Colégios, o Ratio Estudiorum fazia homens letrados e casuístas. Não concorriam as ciências com as letras. (...) Sendo a maior parte dos seus professores homens letrados, os educandos julgavam-se em ilustrada academia com eles. As Humanidades, culminando em Teologia, revestidas do Latim, tendendo à religião, por fim transcendente, habitu-avam as ‘classes’ (e ‘clássicos’ foram os autores lidos) à con-templação da beleza literária, à meditação da velha poesia,

    ao sentimento da moral antiga.

    Enquanto o Brasil vivia seus dias de colonização, especificamente no século XVI, em Portugal vivia-se o período do Renascimento. Paralelamente, no contexto cultural, a literatura portuguesa passava por momentos áureos de intensa produção artís-tica de poesia épica, lírico-amorosa e a literatura de viagens, proveniente dos descobrimentos marí-timos. Dentre as características do Renascimento, estão:

    a) O Antropocentrismo: o homem como centro, racional, capaz de explicar fenômenos à sua volta.

    b) O Racionalismo: a razão é a base do conheci-mento.

    c) O Humanismo: a valorização das ações huma-

  • 17Capítulo 2

    nas e dos valores morais. Para o humanista, os seres humanos são responsáveis pela criação desses valores, entrando assim em contradição com o pensamento religioso, que afirma que Deus é o criador desses valores.

    d) O Hedonismo: valorização dos prazeres senso-riais.

    e) O Individualismo: o homem capaz de esco-lher, de tomar decisões e de ser responsável pela condução de sua vida.

    f) Inspiração na Antiguidade Clássica: visitação à cultura greco-latina. Daí o termo Classicis-mo.

    O período do Renascimento durou, em Portugal, até fins do século XVI. Com a chegada do século seguinte, foram se delineando novas concepções a respeito do Homem e do seu meio. Com o decor-rer dos acontecimentos históricos, principalmente no âmbito religioso, nasce uma crise espiritual no seio do ser humano. O homem já não é mais se-nhor absoluto. Ele agora vive em conflito, em con-tradição. Está criado o universo do Barroco.

    2. a estética BarrOca: pintura e Literatura

    A necessidade do homem de traduzir em palavras, imagens, sons e formas, trabalhando significante e significado numa harmonia singular, seja em gru-po ou em completa solidão, faz surgir o objeto da arte. Os aspectos de um determinado período lite-rário e artístico, analisados no conjunto das obras produzidas no decorrer de um peculiar momento histórico, manifestam “(...) o itinerário de ascensão e descensão do homem na sua ânsia de dar lingua-gem e expressão estética à sua consciência de si e do mundo” (ÁVILA, 1994, p. 24-25).

    O período do Barroco, como veremos, teve uma grande importância na história da literatura e da arte. A estética barroca — definindo estética como o exercício da sensorialidade, que, segundo Bau-mgarten (in ANDRADE, 1997, p. 57), engloba a “comparticipação das faculdades intelectuais e das faculdades sensíveis” — revela o espírito do homem mergulhado na contradição e no dualismo. Resul-tado de um período em que se chocavam ideais

    cristãos medievais, deflagrados pela Contra-Refor-ma, e o que fora herdado do espírito renascentista, o homem barroco se viu entre o céu e a terra, entre o claro e o escuro, entre a matéria e o espírito.

    O homem renascentista se via senhor de todos os mares, iluminado pela certeza da razão, pleno na sua capacidade de agir e escolher. Esses valores fo-ram postos em xeque ao tombar a convicção de que tudo não estava tão nitidamente definido.

    Vejamos este quadro comparativo:

    Podemos analisar algumas características desses dois períodos, comparando duas pinturas repre-sentativas de cada época. A primeira, “O Nasci-mento de Vênus” (1483), de Botticelli, é uma obra renascentista, com tema clássico da mitologia ro-mana: a deusa Vênus emergindo do mar como mu-lher adulta. Alguns acreditam que não tenha sido intencional, mas esta obra causa um efeito de pa-ganismo, ou seja, a ausência de pecado ou de mal absoluto e a divindade em união e equilíbrio com a Natureza. A segunda, “Invocação de São Mateus” (1600), de Caravaggio, nitidamente com tema re-ligioso cristão, retrata a passagem do Evangelho de Mateus (Mateus 9:9), que diz: “Partindo Jesus dali, viu sentado na coletoria um homem chamado Mateus: e disse-lhe: Segue-me. E ele, levantando-se, o seguiu.”. Notemos, leitores, que a tela barroca contrasta o tom das cores entre o claro e o escuro, o que não ocorre na pintura renascentista.

    RENASCIMENTO BARROCO

    O Homem é o centro do Universo (Antropocentrismo)

    Homem X Deus: choque entre as vi-sões antropocêntrica e teocêntrica.

    Equilíbrio Matéria X Espírito

    Racionalismo Fé X Razão

    Paganismo Cristianismo

    Influência da cultura clássica

    Morbidez

    Procura pela clareza Interesse por ra-ciocínio complexo, complicado, obscu-ro, empregado em parábolas e narrati-vas bíblicas

    Idealização amoro-sa; neoplatonismo; Sensualismo.

    Sensualismo e sentimento de culpa cristão

  • 18 Capítulo 2

    No Brasil, um artista plástico que ganhou destaque em nosso Barroco tardio, pois aqui este período al-cançou o seu apogeu no século XVIII, foi o mineiro Manuel da Costa Ataíde (1762-1830). Nascido em Mariana, cidade próxima a Ouro Preto, Mestre Ataíde ornamentou igrejas com pinturas religiosas de altís-simo valor para a história do barroco brasileiro. O seu trabalho mais representativo está na Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, Minas Gerais. O forro desta igreja foi pintado com riqueza de detalhes. Observando a imagem, podemos notar o efeito causado pelas colunas que sustentam a imagem central da Virgem Maria. Temos a “sensação” de que o teto é mais amplo e de que os elementos pintados integram a extensão da igreja. Nesta mesma igreja, são encontrados também os trabalhos de outro artista barroco importante, a saber, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1730-1814). Nascido em Vila Rica, atual Ouro Preto, Aleijadinho, com suas esculturas e trabalhos arquitetônicos, enriqueceu ainda mais a Igreja de São Francisco de Assis, uma vez que foi ele quem planejou e esculpiu toda a igreja, apenas a pintura do forro pertence ao Mestre Ataíde.

    Por meio do elemento visual, formas, cores, ima-gens, o trabalho artístico bem elaborado nas igrejas católicas exercia a função de atrair mais fiéis. Se-guindo as palavras de Ávila (1994, p. 28): (...) a pre-ocupação visualizadora do barroco (...) era persua-sória, encantatória, buscava prender pelos olhos, transmitir quase sempre uma mensagem religiosa e dela convencer o espectador (...).

    Vamos agora, caros leitores, explanar sobre as ca-racterísticas do Barroco na literatura. No âmbito da estética da linguagem literária, os autores do Barroco usaram amplamente o recurso das figuras

    de linguagem, como, por exemplo, a metáfora, a antítese, o paradoxo, a hipérbole e a sinestesia. Tais figuras traduziam o conflito existencial do homem barroco, que cultuava o dualismo e o contraste. O gosto pelo rebuscamento e detalhismo das palavras era um artifício usado para expressar a ideia de que o sentido de tudo estava ainda para ser descoberto. Daí também a literatura barroca, especialmente a poesia, trazer consigo um elemento de surpresa e de novidade.

    Dois estilos literários conhecidamente intrínsecos ao Barroco foram:

    Figura 1: O Nascimento de Vênus, de Botticelli.

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    Figura 2: Invocação de São Mateus, de Caravaggio

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    Figura 3: Igreja de São Francisco de Assis, Mestre Ataíde e Aleijadinho.

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    Figura 4: Igreja de São Francisco de Assis, Mestre Ataíde e Aleijadinho.

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  • 19Capítulo 2

    1. O Cultismo: caracterizado pelo jogo de pala-vras, auxiliado pelo exagero no uso de figu-ras de linguagem. Conhecido também como Gongorismo, devido à influência do poeta es-panhol Luís de Gôngora.

    2. O Conceptismo: estilo marcado pelo jogo no plano das ideias; apreensão do objeto pela bus-ca de seu sentido, de sua essência. Explorava a lógica e a inteligência no jogo do significado das coisas. Uso do silogismo e do sofisma, ele-mentos da lógica. Enquanto que no silogismo, temos a exposição de duas premissas para se chegar a uma conclusão dada como verdadei-ra, no sofisma, utiliza-se de argumentos para se chegar a uma conclusão falsa, inaceitável. Este estilo é conhecido também como Queve-dismo, termo vindo do nome de outro poeta espanhol, Antônio de Quevedo.

    Vejamos um poema de Luís de Gôngora:

    rOsa vã

    Ontem nasceste, e morres amanhã.A teu ser tão fugaz quem lhe deu vida?Para viver tão pouco estás luzida,e para não ser nada, tão louçã?

    Se te enganou a formosura vã,bem depressa a verás desiludida,porque em tua beleza está escondidaa ocasião de morte temporã.

    Quando te corte uma robusta mão,que é lei da agricultura permitidagrosseiro alento acabará tua sorte.

    Não saias, rosa, aguarda-te um vilão.Adia teu nascer para esta vida,que teu ser antecipas para a morte.

    As antíteses do nascimento e da morte, do ontem e do amanhã, o questionamento de quem terá dado a vida à rosa - origem divina ou natural? -, a visão efêmera da vida, inversões sintáticas que dão dina-mismo à apreensão e à compreensão do significa-do dos versos, vida e morte presentes, lado a lado, no mesmo ser, são algumas características barrocas que encontramos neste poema de Gôngora e que dialogam com os questionamentos materializados nas cores sóbrias e no jogo de luz e sombra que marcam a pintura nesse movimento.

    Deixamos, então, uma mensagem aos leitores in-teressados em mergulhar a fundo, neste univer-so: será de um valor incomensurável percorrer os caminhos da “(...) perplexidade existencial do homem barroco, pressionado pelas forças de his-toricidade, pelos elementos de uma religiosidade angustiante e buscando desesperadamente anular, de algum modo, a sua consciência dilemática dian-te do inexorável ‘espetáculo que passa”. (ÁVILA, 1994, p. 30)

    3. pOesia LíricO-amOrOsa e satírica: GreGóriO de matOs

    Gregório de Matos Guerra é o grande representan-te da poesia barroca no Brasil. Filho da elite co-lonial baiana, estudou Direito em Coimbra, onde recebeu influência literária de Gôngora e Quevedo bem como do pensamento humanista do século XVII. Sua produção artística expressa a tensão proveniente da tentativa de conciliar a fé medie-val com a razão renascentista. Sendo o poeta que melhor representa o barroco brasileiro, sua obra é caracterizada pelo culto do contraste, tensão in-terior, rebuscado jogo de palavras, riqueza no uso de figuras como hipérboles, antíteses, hipérbatos, numa visão em que a relação do homem com o mundo ocorre por meio do conflito e, frequente-mente, do sofrimento.

    Contudo, como ressalta Castello (1999, p. 79), é no confronto das tendências de sua obra lírica e satírica que encontraremos a maior expressividade da poética barroca, colocando-o assim em desta-que no cenário literário:

    Oporia, assim, a expressão lírica, amorosa e religiosa do mais alto nível e inspiração à agressão e ao deboche da sá-tira social e individual. Sua glória se fez de satírico, mas pelo confronto contrastivo desta expressão poética com a lírica amorosa e religiosa que ele deve ser projetado como

    o maior poeta barroco da língua portuguesa.

    Na prosa, a literatura dos jesuítas mais uma vez se destaca, tendo como principal representante o Padre Antônio Vieira. Na poesia, Gregório de Ma-tos quase se salienta sozinho, caso não houvesse a presença de Manuel Botelho de Oliveira. Este, na obra Música do Parnaso, compilou sua obra poética. Também não podemos esquecer a obra que cronologicamente inicia o Barroco no Brasil, a épica Prosopopéia, de Bento Teixeira. Contudo,

  • 20 Capítulo 2

    a tentativa de escrever uma epopeia à semelhança de Os Lusíadas, mas sem o sentimento de contar os feitos de nosso povo, do herói brasileiro, levou Bosi (1994:36) a afirmar:

    A imitação de Os Lusíadas é assídua, desde a estrutura até o uso de chavões da mitologia e dos torneios sintáticos. O que há de não-português (mas não diria de brasileiro) no poemeto, como a “Descrição do Recife de Pernambuco”, “Olinda celebrada” e o canto dos feitos de Albuquerque Coelho, entra a título de louvação da terra enquanto co-lônia, parecendo precoce a atribuição de um sentimento

    nativista...”.

    Assim, podemos afirmar que a literatura colonial, representada pelos cronistas, por Gregório e por Vieira, é a fonte principal para compreendermos os valores e a organização social dessa época.

    Para além da classificação geral de dividir a obra de Gregório em poesia lírica, satírica e religiosa, Wisnik (2009) detalha os nuances dessa produção, dividindo os três grupos dessa forma:

    1. Poesia de circunstância (satírica e encomiásti-ca);

    2. Poesia amorosa (lírica e erótico-irônica); e

    3. Poesia religiosa. Coube à poesia satírica ser a produção de maior destaque do poeta baiano.

    A poética d’O Boca do Inferno, assim chamado por causa de suas palavras debochadas e denuncia-tivas, é marcada pela moral contrarreformista, na qual o espaço terreno é o espaço da perdição. Por meio da sátira política, ele irá expressar uma visão de mundo condenado pela corrupção do homem:

    Que falta nesta cidade? Verdade.Que mais por sua desonra? Honra.Falta mais que se lhe ponha? Vergonha.

    Ou ainda:

    Neste mundo é mais rico o que mais rapa:Quem mais limpo se faz tem mais carepa;Com sua língua, ao nobre o vil decepa:O velhaco maior sempre tem capa.

    A Bahia, retomada em várias poesias de Gregório, iguala-se, por vezes, ao mundo, sendo assim uma figura metonímica deste. A organização racional clássica da realidade e do pensamento é substitu-

    ída por uma concepção conturbada do mundo, que se constitui também, na poesia, por meio dos hipérbatos, ou seja, das inversões da ordem sintáti-ca. Como podemos observar no primeiro verso do segundo fragmento acima, a ordem direta “O que mais rapa é mais rico neste mundo” é invertida para “Neste mundo é mais rico o que mais rapa”. A inversão de valores encontra, assim, representa-ção formal nas inversões dos termos do verso.

    Então, o Barroco caracteriza-se por um rompimen-to com o Clássico? Não... Vamos entender em quais aspectos eles se aproximam e se distanciam. Conserva-se no Barroco a imitação da natureza e dos antigos que marca a estética neoclássica dos renascentistas. Existe a retomada da alvura do cromatismo clássico por meio do uso de palavras, como neve e branco. Contudo, o bucolismo lumi-noso greco-latino adquire no Barroco cores sotur-nas e, por vezes, contrastivas no jogo de luz e som-bra, mostrando a imersão do homem na atmosfera conflituosa da época. A ênfase dada ao movimento é alcançada por meio da representação dinâmica da natureza e dos sentimentos, contrapondo-se à representação estática dos clássicos. O dinamismo na seleção dos verbos e do vocabulário é marca da estética barroca, principalmente no modo de pro-vocar as dimensões sensoriais do receptor da obra de arte, literária ou pictórica.

    Observemos abaixo o poema lírico-amoroso de Gregório de Matos, construído na forma clássica do soneto:

    Ardor em coração firme nascido;Pranto por belos olhos derramado;Incêndio em mares de água disfarçado;Rio de neve em fogo convertido:

    Tu, que em um peito abrasas escondido;Tu, que em um rosto corres desatado;Quando fogo, em cristais aprisionado;Quando cristal em chamas derretido.

    Se és fogo como passas brandamente?Se és neve, como queimas por porfia?Mas ai! Que andou Amor em ti prudente!

    Pois para temperar a tirania,Como quis, que aqui fosse a neve ardente,Permitiu parecesse a chama fria.

    O tema do soneto é o sofrimento amoroso. A pri-meira quadra apresenta a ideia a ser desenvolvida

  • 21Capítulo 2

    ao longo do poema. Sem nomear o sentimento, o eu lírico apresenta imagens contraditórias que tencionam o sofrimento amoroso: “Incêndio em mares de água disfarçado” e “Rio de neve em fogo convertido”. As imagens paradoxais conferem in-tensidade ao sentimento e revela o embate entre razão e emoção, uma vez que a forma clássica e fixa do soneto não contém a explosão do sofrimento amoroso. Este é exacerbado por meio do transbor-damento de sentidos gerado pela junção de contrá-rios. O jogo do “ser” e do “parecer” é verificado na imagem da água, elemento da superfície, disfarçan-do o incêndio, representação do interior do poeta, do ardor que vive seu coração.

    A segunda quadra se inicia com a evocação do in-terlocutor por meio do pronome pessoal “Tu” que, somado ao tempo presente dos verbos — “abrasas” e “corres” —, contribui para intensificar o senti-mento conturbado do eu lírico, presentificando-o. O efeito sonoro dos dois últimos versos é alcança-do através do paralelismo sintático, ou seja, da uti-lização da mesma estrutura sintática. Novamente o confronto entre o “ser” e o “parecer” é revelado no verso “Tu, que em meu peito abrasas escondido”, mostrando o conflito vivido entre o que o eu-lírico sente e o impedimento, sem motivo aparente, de revelá-lo.

    O primeiro terceto é constituído da ideia central do soneto, quando a emoção cede à razão. Neste momento, o eu lírico questiona a contradição dos sentimentos, revelando a atuação da razão: “Se és fogo como passas brandamente?” e “Se és neve, como queimas por porfia?”, ou seja, se és fogo, como és brando? Se és neve, como queimas? As-sim, encontramos a tendência barroca para o fu-sionismo, nesse caso, a fusão da neve com o fogo, do frio com o quente. A mitologia clássica também se faz presente por meio da referência a Eros, ao “Amor”. Este tem sua força garantida por meio da personificação, ou seja, da atribuição de vida e aspectos humanos a ele: “...andou o Amor em ti prudente”.

    O segundo terceto, ou seja, a última estrofe do po-ema revela-nos que, no jogo barroco entre emoção e razão, a primeira predomina. O eu-lírico se vê subjugado pelo conflito e sofrimento amoroso. Novamente o embate ser/parecer é o “tempero da tirania”, caracterizado pelo choque dos contrários neve/ardente e chama/fria e pelo trocadilho, uma vez que o par lógico seria neve/fria e chama/ar-

    dente. Assim, temos a exaltação da paixão, repre-sentada pela imagem do fogo, e o seu refreamento, representado pela imagem da neve, bem ao estilo barroco.

    Já na vertente erótico-irônica de sua poesia, Gregó-rio de Matos mobiliza um campo semântico diver-so do evocado na poesia lírico-amorosa. Naquela, a linguagem utilizada se contrapõe à do discurso oficial, havendo um rebaixamento de categorias socialmente superiores, como as das instituições governamental e religiosa.

    Observemos o poema abaixo dirigido “A uma Frei-ra que lhe Mandou um Mimo de Doces”:

    Senhora minha: se de tais clausurasTantos doces mandais a uma formiga,Que esperais vós agora que vos diga,Se não forem muchíssimas doçuras?

    Eu esperei de amor outras venturas:Mas ei-lo vai, tudo o que é dar obriga,Ou já seja um favor, ou uma figa,Da vossa mão são tudo ambrosias puras.

    O vosso doce a todos diz: “Comei-me”,De cheiroso, perfeito e asseado,E eu, por gosto lhe dar, comi e fartei-me.

    Em este se acabado irá recado,E se vos parecer glutão, sofrei-meEnquanto vos não peço outro bocado.

    Na primeira estrofe, o eu-poético procura salva-guardar a sua imagem, defendendo a posição dele: o que a freira esperava ao oferecer doce a uma for-miga, senão que a formiga comesse o doce? Dessa forma, defende a atitude dele como consequência da provocação da freira. Também salvaguarda a sua imagem ao dirigir-se a uma entidade religiosa com o pronome de tratamento “Senhora”. Contudo, o distanciamento é desconstruído por meio do riso provocado pelo tom irônico do poema, especial-mente por meio da antítese figurativa utilizada pelo eu-poético: “formiga”, bicho pequeno, e “Se-nhora” freira, entidade sagrada.

    Como poderia não receber ambrosias puras — ali-mento da imortalidade, alimento dos deuses e bál-samo para curar chagas — oferecidas por uma freira? Ao utilizar a expressão hiperbólica “Da vossa mão são tudo ambrosias puras”, no segundo quarteto, o eu-poético também se exime do pecado, uma vez

  • 22 Capítulo 2

    que tudo por ele aceito foi da ordem dos deuses.

    No primeiro terceto, a ideia central do poema é reforçada quando o eu-poético mais uma vez salva-guarda sua imagem: se o “doce” da freira a todos diz “comei-me”, por que uma “formiga” não pode-ria aceitar tal convite? O eu-poético comeu o doce até fartar-se, segundo ele, para dar gosto à freira e não a si mesmo! Mais uma vez salvaguarda a ima-gem dele. No segundo terceto, existe a conclusão do soneto, na qual é anunciada a situação em que o eu-poético, após fartar-se com o doce, encontra-se: se porventura parecer guloso para a freira, repri-me-se, enquanto não pede outro pedaço de doce.

    Num outro soneto, destinado à mesma freira e se-gundo a mesma situação, o eu-poético assim con-clui o poema:

    Não sofro esses reveses da ventura,Mas antes prosseguindo o começadoA chave lhe hei de pôr na fechadura.

    Percebemos que o olhar irônico de Gregório apre-senta correspondências com a noção de discurso carnavalizado e com a estética do realismo grotesco, apresentadas por Bakhtin (2008). Primeiramente, há o rebaixamento da figura da freira, quando esta é representada como a que seduz e se entrega aos prazeres da carne, logo o sagrado e o profano são nivelados. Dessa forma, desaparece a ordem hierár-quica e, juntamente com ela, as leis e as proibições.

    Há também o rebaixamento do próprio sentimen-to amoroso, uma vez que a conjunção amorosa fica reduzida à imagem material “A chave lhe hei de pôr na fechadura”. Essa imagem dialoga com a concepção de amor representada em outro poema de Gregório de Matos, intitulado “Definição do Amor”. O autor assim conclui o poema:

    O Amor é finalmenteUm embaraço de pernas,Uma união de barrigas,Um breve tremor de artérias.

    Uma confusão de bocas,Uma batalha de veias,Um reboliço de ancas,Quem diz outra coisa, é besta.

    Gregório de Matos define o amor enquanto mani-festação sensorial, da ordem terrena e não celestial. Por conseguinte, rompe com a visão clássica do

    amor, que compreende este enquanto meio para a elevação espiritual do homem e superação dos ape-los carnais, como tão bem defendeu Platão. Em outros poemas erótico-irônicos, Gregório de Ma-tos se afasta do discurso oficial por meio de uma seleção vocabular vulgar. Novamente realizando o rebaixamento do sagrado, ele se refere à conjunção carnal dessa forma:

    Busco uma Freira que me desentupaA via que o desuso às vezes tapa.

    Vale ressaltar que o discurso amoroso em Gregório de Matos é um discurso socialmente constituído. No livro História do amor no Brasil, Priore (2005) mostra que a ética sexual era rigorosa na época colonial, havendo uma dissociação entre amor e sexo, alma e corpo, influenciada principalmente pelo discurso religioso. Essa dissociação é bem ve-rificada na poesia amorosa do Boca do Inferno.

    4. prOsa reLiGiOsa: pe. antôniO vieira

    O Barroco, enquanto manifestação, que tem sua base ideológica na Contra-Reforma Católica, en-contra sua maior expressão da prosa na oratória religiosa. Nesse contexto, Padre Antônio Vieira é destaque quase absoluto, se não fosse a presença literária de outros jesuítas, cuja prosa não se ele-vou à expressão de Vieira. Nascido em Portugal, na cidade de Lisboa, Vieira veio para o Brasil com poucos anos de vida, retornando a Portugal algu-mas vezes. Proferiu seus sermões tanto na colônia quanto na metrópole. Autor de uma obra vasta, escreveu sermões, relatórios, opúsculos de exegese profética, cartas.

    Padre Vieira teve uma atuação polêmica dentro da Igreja. Exímio orador de formação humanística, torna-se defensor do judeu convertido ou cristão-novo e do índio. Por causa do primeiro, é perse-guido pela Inquisição em Portugal, por causa do segundo, é perseguido pelos colonos no Brasil. Uma vez que o papa concedia grandes poderes aos reis católicos a fim de minar a expansão do pensa-mento reformista, contrapor-se ao projeto político e colonialista do rei de Portugal era, numa certa medida, contrapor-se à Igreja.

    Para contextualizarmos melhor a atuação desse no-

  • 23Capítulo 2

    tável jesuíta, vamos ler, com atenção, a citação de Domingues (2001, p. 44-45):

    Na época colonial, a Igreja do Brasil foi marcada por duas posições conflitantes: a posição sacerdotal, em que cum-pria a sua missão profética, e a posição política, em que se tornava justificadora da dominação. Na primeira posição — a profética —a Igreja era “a reveladora de Deus na face do outro” e assumia o papel de protetora dos oprimidos con-tra os poderosos; na segunda — a política —, ao contrário, a Igreja, não podendo, ela mesma vencer os poderosos, unia-se a eles, num mesmo programa de dominação.

    Nessa perspectiva, Vieira se dividia em várias ten-dências discursivas: a doutrinária, por meio da pregação do evangelho; a soteriológica, por meio da salvação das almas e a universalista, por meio da propagação da religião cristã. Essas tendências vão se cruzar nos inúmeros sermões de Vieira. O sermão é o gênero em que a expressividade retóri-ca e lógico-argumentativa de Vieira se avultam de maneira notável, revelando a genialidade do autor. Os sermões do padre jesuíta estão estruturados em três partes, a saber: o prólogo (tema, sequência evangélica, intróito, plano do sermão, invocação, dedicatória); o argumento (corpo do sermão) e a peroração (resumo, exortação).

    O religioso e o político se cruzam, de forma exem-plar, em Vieira. No Sermão da Primeira Domin-ga da Quaresma (1653), o discurso soteriológico funciona a favor do índio, uma vez que Vieira aponta a libertação dos nativos como condição da salvação da alma dos colonos. No Sermão de Santo Antônio (1654), Vieira direciona suas críticas, em tom satírico, aos vícios dos colonos e às atitudes destes que dificultam a missão evangelizadora do padre em relação aos indígenas. No Sermão da Se-xagéssima (1655), um dos mais citados pela exem-plaridade, Vieira discorre sobre a arte de pregar, argumentando que a corrupção na terra se deve aos pregadores que pregam a verdade sagrada ou nos ouvintes que não querem receber a verdade. Está implícita no Sermão a crítica aos dominica-nos, ordem concorrente dos jesuítas.

    É com o Sermão do Mandato (1645) que Viei-ra organiza um dos discursos mais belos sobre o amor. Partindo da tese central de que “O principal intento do Evangelho foi o de mostrar a ciência de Cristo, e o principal intento de Cristo, mostrar a ignorância dos homens” (VIEIRA, 2003, p.45), Vieira afirma que só Cristo amou porque amou finamente, com ciência, razão, e defende que o ho-

    mem não ama porque comete quatro ignorâncias, a saber: desconhecer a si mesmo, desconhecer o objeto amado, desconhecer o amor e desconhecer a finalidade do amor:

    Quatro ignorâncias podem concorrer em um amante, que diminuem muito a perfeição e o merecimento de seu amor: Ou porque não conhece a si; ou porque não conhe-ce a quem amava; ou porque não conhecesse o amor; ou

    porque não conhecesse o fim onde há de parar, amando.

    (VIEIRA, 2003, p.51)

    Já Cristo amou finamente e com ciência, porque

    Conhecia-se a si, porque “sabia que não era menos que Deus, Filho do Eterno Padre”: Sciens quia a Deo exivit. Co-nhecia a quem amava, porque sabia quão ingratos eram os homens, e quão cruéis haviam de ser para com ele: Sciebat enim quisnam esset, que traderet eum. Conhecia o amor, e bem à custa de seu coração, pela larga experiência do que tinha amado: Cum dilexisset suos. Conhecia, finalmente, o fim em que havia de parar, amando, que era a morte, e tal morte: Sciens quia venit hora ejus. E que conhecendo-se Cristo a si, conhecendo a quem amava, conhecendo o amor e conhecendo o fim cruel em que havia de parar,

    amando; amasse contudo?! Grande excesso de amor!

    (VIEIRA, 2003, p.52)

    Observemos, pois, que a concepção de amor em Padre Vieira se difere da concepção de Gregório de Matos apresentada anteriormente. Assim, o jesuíta concebe o amor:

    Tudo conquista o amor quando conquista uma alma; po-rém o primeiro rendido é o entendimento.... Nunca o fogo abrasou a vontade, que o fumo não cegasse o entendimen-to. Nunca houve enfermidade no coração, que não hou-vesse fraqueza de juízo.... E como o primeiro efeito ou a última disposição do amor, é cegar o entendimento, daqui vem que isso que vulgarmente se chama amor, tem mais partes com a ignorância; e quantas partes têm de ignorân-cia, tantas lhe faltam de amor.

    (VIEIRA, 2003, p.48)

    Enquanto em Gregório de Matos o amor é uma manifestação sensorial, dos apelos da carne, e, segundo ele, quem diz o contrário é “besta”; em Vieira, o homem se torna bestial, ignorante quan-do perde a ciência, o entendimento, e se entrega ao amor que o cega, ao amor que é expressão dos sentidos e não da razão.

    Em Padre Vieira, o dualismo barroco está construí-

  • 24 Capítulo 2

    do por meio da dicotomia entre o mundo material, dos sentidos, e o mundo imaterial, da razão, do en-tendimento; entre o homem, ignorante, e Cristo, que detém a ciência, porque ama verdadeiramente. Em Gregório de Matos, o dualismo Barroco tam-bém se expressa entre o desejo de gozar o mundo, por meio do prazer sensorial, e o sentimento de culpa por fazê-lo, levando o pecador a pedir perdão por meio dos poemas religiosos.

    resumO

    O Barroco foi um movimento de cunho eminentemente religioso, que abordou o homem em conflito existencial, divi-dido entre os valores de uma visão de mundo teocêntrica e uma visão antro-pocêntrica. O rebuscamento linguístico e o uso exacerbado de figuras, como a hipérbole e a antítese, são caracterís-ticas desse estilo. Movimento artístico, que se contrapõe ao equilíbrio e à har-monia clássica, baseia-se no culto dos contrários, no sombrio, nas reflexões acerca da morte, no jogo de luz e som-bra para melhor sensibilizar o receptor de sua arte.

    SAIBA MAIS!

    Livros: • OBocadoInferno,d

    eAnaMiranda

    Filmes: • AsBruxasdeSalem,

    deNicholasHytner.

    • ArainhaMargot,dePatriceChéreau;

    • Caravaggio,deDerekJarman;

    • Moçacombrincodepérola,dePeterWe-

    bber;

    atividades | Selecione um soneto reli-gioso de Gregório de Matos e estabeleça rela-ção com o Sermão do Mandato, de Padre An-tônio Vieira, quanto à concepção de homem que esses textos veiculam.Escolha uma pintura do período Barroco e analise suas características.

    referÊncias

    ANDRADE, Janilto. Com a marca da vida. Reci-fe, Edição do autor, 1997.

    ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do bar-roco I. 3. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1994.

    BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Ida-de Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Unb, 2008.

    BEUTTENMÜLLER, Alberto. Viagem pela arte brasileira. São Paulo: Aquariana, 2002.

    BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.

    CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasilei-ra: origens e unidade. Vol 1. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999.

    COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. Vol. I. 2. ed. Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana, 1968.

    PRIORE, Mary del. História do Amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2005.

    SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

    TIRAPELI, Percival. Arte colonial: barroco e ro-cocó. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006.

    VIEIRA, Antonio. Sermão do Bom Ladrão e outros Sermões escolhidos. São Paulo: Landy, 2003.

  • 25Capítulo 2

    WISNIK, José Miguel. Poemas Escolhidos: Gre-gório de Matos. São Paulo: Cultrix, 2009.

    GLOssÁriO

    aNtítese: Figura pela qual se destaca a oposição entre duas palavras ou ideia.

    Hipérbato: Inversão da ordem natural das palavras ou das orações.

    Hipérbole: Figura que exagera intensamente a verdade das coisas.

  • 27Capítulo 3Capítulo 3

    O arcadismO

    OBjetivOs específicOs

    • Estabelecerrelaçõesentrealiteraturaárcadeeosaspectoshistóricosecultu-rais de sua época;

    • IdentificarcaracterísticasdoNeoclassicismonaliteraturaenapintura.

    intrOduçãO

    Será abordado, neste capítulo, o último movimento literário da era colonial no Brasil: o Arcadismo. Considerações importantes acerca da história, da cultura, das influências europeias ampliarão nosso conhecimento, a fim de melhor in-terpretarmos as manifestações artísticas brasileiras do século XVIII, período em que ainda se formava uma sociedade urbana no Brasil, e a necessidade de uma expressão artística própria era preocupação dos escritores.

    1. cOntextO HistóricO-cuLturaL

    Continuando nossos estudos sobre a literatura brasileira, chegamos agora ao terceiro e último movimento do período colonial: o Arcadismo. Quando um movimento surge e alcança seu auge, abrem-se inevitavelmente as portas para novas concepções e manifestações, criando-se novos estilos artísticos. Dizemos inevitavelmente, porque o ciclo das mudanças históricas cede arcabouços neces-sários ao homem para manifestar, por meio de expressões artísticas ou não, os novos valores que despontam. E por que, amigos leitores, existe a necessidade da renovação? É o que iremos ver ao confrontarmos o período anterior, o Barroco, com as novas tendências do então século XVIII.

    Como vimos anteriormente, a época do Barroco foi também marcada pelo do-mínio das concepções religiosas que resultaram num conflito existencial, expres-sado nos contrastes e na linguagem rebuscada e figurada. Com uma Europa mer-gulhada no obscurantismo da Era Barroca, surgem defensores de novas ideias, tanto no plano filosófico quanto no plano social. Um fato marcante no século em questão foi a ascensão da burguesia, iniciada desde o século XVI com o Mer-cantilismo. Apesar de o Mercantilismo ser um empreendimento econômico dos poderes monárquicos, ao mesmo tempo, ele favorecia o enriquecimento da bur-guesia, pois, com o Mercantilismo, vieram, por exemplo, melhorias nas estrutu-ras dos portos (as expansões marítimas), o desenvolvimento comercial, e assim pôde a burguesia concentrar mais riqueza de capital. Essa classe social, que se dedicava especialmente ao comércio de mercadorias, ao ocupar um espaço maior na sociedade e despontar como a nova classe consumidora, passou a ter papel

    Profa. Luciana marinho Fernandes da silvaCarga Horária | 15 horas

  • 28 Capítulo 3

    importante nas decisões históricas que se seguiam: a Revolução Inglesa (1688), a Revolução America-na (1776) e a Revolução Francesa (1789). Esta úl-tima tem maior destaque nos nossos estudos, por ser representativa da queda do absolutismo com a participação efetiva da burguesia.

    No século XVIII, a França, país absolutista na épo-ca, vivenciava um momento extremamente grave: a revolta dos trabalhadores, camponeses e os chama-dos burgueses contra as injustiças sociais, econô-micas e ideológicas. Tendo o rei poder absoluto em todas as decisões políticas e econômicas, o povo não podia opinar nas decisões, submetendo-se ao fato de ter que pagar altos impostos e de viver em condições precárias, enquanto o clero e a nobreza viviam no luxo e na riqueza. Apesar de a burguesia viver em melhores condições econômicas, ela rei-vindicava maiores poderes políticos e maior liber-dade para comercializar. O marco principal da Re-volução Francesa foi a “Queda da Bastilha”, prisão construída em 1370 e para onde eram mandados aqueles que eram contra o regime. Com a inten-ção de tomar o poder, o povo, comandado pela burguesia, invadiu a Bastilha em 14 de julho de 1789, libertando os presos políticos. Entretanto, em 26 de agosto do mesmo ano, estava aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Elaborada sob os ideais iluministas, nesta consta-vam, dentre outros, o direito à liberdade, à igualda-de perante a lei, à inviolabilidade da propriedade privada e ao direito de liberdade de expressão. A Revolução Francesa é vista como o marco do fim da Idade Moderna e o início da Idade Contem-porânea, pois, a partir dela, estava consolidado o início da era capitalista.

    Se a Revolução Francesa obteve destaque no aspec-to político e social, foram os pensadores iluminis-tas que ganharam êxito no campo filosófico. Entre as principais características do Iluminismo, está a concepção da razão como meio para retirar o ho-mem do obscurantismo. Notadamente conhecido como o “Século das Luzes”, o século XVIII será dominado pelo pensamento racional, que ilumina-rá os caminhos para o conhecimento e a verdade. Os avanços científicos nas leis da física de Isaac Newton, por exemplo, influenciaram categorica-mente o pensamento iluminista, pois, segundo as teorias de Newton, o mundo material era regido por leis naturais, passíveis de serem explicadas, in-dependentemente das concepções de cunho reli-gioso. O intelecto era, portanto, capaz de explicar

    os fenômenos do universo. Esta maneira de “ver” e compreender atingiu também o campo das rela-ções sociais, da política e da economia. Críticas à visão teocêntrica e à intolerância religiosa recoloca-vam o homem no centro, reativando assim ideais já levantados no Renascimento. Os principais pen-sadores iluministas foram: Jean Jacques Rousseau, Voltaire, Montesquieu e John Locke. O pensamen-to iluminista permeava várias áreas, da ciência à filosofia, da política às artes.

    Em Portugal, o Marquês de Pombal torna-se pri-meiro-ministro e representante do reinado de Dom José I (1750-1777). Reformas foram implan-tadas pelo Marquês de Pombal e, dentre elas, ga-nham destaques para nossos estudos a expulsão dos jesuítas e a reforma no ensino. Em 1746, ain-da no reinado de D. João V, Luís Antônio Verney publica o “Verdadeiro Método de Estudar”. Obra inspirada no racionalismo francês, apenas com as reformas empreendidas pelo Marquês de Pombal, ganhará destaque na luta contra o monopólio dos jesuítas sobre o ensino. A eclosão da “perseguição” pombalina aos jesuítas será em 1759, com a expul-são destes de Portugal e de seus domínios. Como afirma Coutinho (1968, pág. 160):

    Com a expulsão dos jesuítas (1759), as reformas de Pombal no Brasil, a ruptura do monopólio comercial, houve um largo surto de curiosidade pelo país, por parte de cientistas estrangeiros e nacionais. A voga da ciência, típica do sécu-

    lo, contaminou a vida na Colônia.

    No Brasil, segundo Sodré (1995, p. 99), o fato ver-dadeiramente significativo que iria trazer uma mo-dificação na estrutura da sociedade colonial foi “o aparecimento da atividade mineradora”. A trans-formação não seria oriunda de uma economia lo-cal, rica na concentração de riquezas e de lucros, mas de uma modificação nas próprias relações de trabalho. Vejamos, leitores, o que nos diz o autor a respeito do processo do mercado interno:

    Se a zona mineradora nos apresenta crises de fome que denunciam a unilateralidade da exploração que nela tem lugar, o adensamento humano que polariza obriga a uma circulação comercial interna de relativa importância.

    (SODRÉ, 1995, p. 101)

    Novas possibilidades de produção e de consumo ganham força. Na nova divisão de trabalho, o es-cravo já não é o único trabalhador. E mais adiante prossegue Sodré (1995, p. 102):

  • 29Capítulo 3

    A circulação interna de mercadorias (...) começa a propor-cionar espaço ao trabalho livre ao mesmo tempo que cria as primeiras condições para o estabelecimento de uma vida urbana que até então tinha sido impossível. O comércio

    urbano não só se desenvolve como começa a ter um papel.

    Mas não menos importantes foram as crises que surgiam em nosso cenário desencadeadas pela ex-tração do ouro como, por exemplo, o movimento da Inconfidência Mineira (1789), em Minas Ge-rais, que teve papel importante na história do Bra-sil. Com a grande extração, o minério começara a diminuir, mas a taxação dos impostos continuava exorbitante, e aqueles que não conseguiam pagar a dívida eram cobrados de maneira violenta pelas autoridades portuguesas.

    Como era comum no século XVIII a elite colonial enviar seus filhos à Europa para fins de formação educacional, muitos deles voltaram à colônia em-bebidos pelo pensamento iluminista de liberdade e igualdade. Um grupo de poetas, profissionais li-berais, mineradores e fazendeiros se reuniu com o propósito de se rebelar contra os abusos da do-minação portuguesa. O final desse movimento, como é sabido de todos, resultou em fracasso com a traição de Joaquim Silvério dos Reis, fazendeiro e proprietário de minas, levando à condenação à forca de Joaquim Francisco da Silva Xavier, o Ti-radentes, e ao exílio, outros integrantes, como foi o caso do poeta árcade Tomás Antônio Gonzaga. Participaram, também, os escritores árcades Alva-renga Peixoto e Cláudio Manuel da Costa. Ape-sar das limitações, com esse movimento, nascia o sonho da independência, ainda geograficamente restrito, mas que soaria pelo país como um grito de liberdade.

    2. a estética dO arcadismO: pintura e Literatura

    Não é incomum encontrarmos a assertiva de que o Arcadismo foi a expressão da burguesia. Como vimos, o século XVIII foi notadamente marcado pelas ideias iluministas e pela ascensão da classe burguesa. No contexto das expressões artísticas, a insatisfação da burguesia foi traduzida por aspec-tos que viriam de encontro ao estilo anterior, o Barroco. O modo luxuoso de vida dos nobres e do clero fora contestado por temas da vida simples e humilde, como aponta Coutinho (1968, p. 160):

    Assim a revolução mental processa-se contra a escolástica decadente e convencional em nome da cultura científica. Domina a época um tom polêmico, irreligioso, anticlerical, racionalista, procurando incorporar a ciência natural e a técnica, dando relevo ao método científico, à claridade ra-cionalista. Combate as contorcidas expressões barrocas em

    favor da linguagem direta e simples.

    Os artistas árcades reavivaram tendências do Clas-sicismo que figuravam em harmonia com o século vigente, como o Antropocentrismo e o Racionalis-mo, contrapondo às tendências barrocas e religio-sas. Vejamos este quadro comparativo nos aspectos do conteúdo e da forma:

    Na pintura neoclássica, os temas religiosos são abandonados em função do favorecimento de temas do cotidiano, mitológicos e históricos, de preferência aos que remontem à Antiguidade. A preocupação com a verossimilhança das represen-tações, ou seja, a arte como “retrato” ou cópia da natureza, era regra geral para que se pudesse chegar à beleza das coisas pela estética e pelo intelecto,

    BARROCO ARCADISMO

    Influenciado pela Contra-Reforma

    Ideias apoiadas no Iluminismo

    Antropocentrismo X Teocentrismo

    Antropocentrismo

    Interesse por raciocínios complexos

    Procura pela clareza das ideias

    Oposição entre mun-do material e mundo espiritual: razão e fé

    Racionalismo Procura pelo equilíbrio

    Cristianismo Paganism Elementos da cultura greco-latina

    Restabelecimento da fé religiosa medieval

    Retorno aos clássicos renascentistas

    Morbidez Busca da beleza na vida bucólicaPastoralismo

    Vocabulário culto Vocabulário simples

    Propensão para as inversões e constru-ções complexas

    Ordem direta e simplicidade da linguagem

    Preferência pela linguagem figurada

    Quase não há uso de figuras de linguagem

  • 30 Capítulo 3

    capazes de extrair toda a imperfeição. A beleza não reside na natureza, mas, na observação do modelo da arte clássica. A obra Reflexões sobre a beleza e o bom gosto na pintura, de Anton Raphael Men-gs, publicada em 1762, foi um verdadeiro manu-al na educação para a pintura neoclássica. Mengs defendia as seguintes regras: “cuidar da verossimi-lhança das representações; dar a cada corpo sua fórmula particular, de maneira clara e simples, sem detalhes acessórios; buscar a verdade em tudo, inclusive e em particular, nos gestos, nos elementos singulares, nas cores, nas luzes e som-bras, que não apresentem fortes contrastes; com a verdade, pode-se obter a graça, a que se subordina a beleza” (In Mirabent, 1991, p. 47).

    cisa do espaço. Percebe