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3º Seminário de Relações Internacionais da ABRI Setembro de 2016 - Florianópolis-SC Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa ANEXAÇÃO DA CRIMEIA Uma análise do Soft Power e da Guerra de Quarta Geração Julio Cesar Noschang Junior UNIFA Prof. Dr. Humberto Lourenção UNIFA

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3º Seminário de Relações Internacionais da ABRI

Setembro de 2016 - Florianópolis-SC

Segurança Internacional, Estudos Estratégicos e Política de Defesa

ANEXAÇÃO DA CRIMEIA

Uma análise do Soft Power e da Guerra de Quarta Geração

Julio Cesar Noschang Junior – UNIFA

Prof. Dr. Humberto Lourenção – UNIFA

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ANEXAÇÃO DA CRIMEIA: uma análise do soft power e a guerra de quarta

geração

A anexação da Crimeia pela Federação Russa pode ser caracterizada como uma

guerra de quarta geração, onde foram utilizadas táticas de guerra irregular, com presença de

atores não-estatais e amplo uso de operações psicológicas para desestabilizar o poder

político da Ucrânia na região. Com base no estudo desse conflito, este trabalho buscou

identificar de que forma os elementos do Soft Power podem influenciar os efeitos causados

pelas operações psicológicas no contexto de uma guerra de quarta geração. Utilizando uma

pesquisa bibliográfica observou-se que o Soft Power é um fator importante para a estabilidade

do governo num cenário de guerra de quarta geração.

Palavras-chave: Soft-Power, Guerra de Quarta Geração, Crimeia

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1. INTRODUÇÃO

O conflito na Ucrânia, que se prolonga desde 2014, apresenta características

peculiares que o torna difícil de classificar nos termos atuais. Iniciado na crise política que

destituiu o então presidente ucraniano pró-russo Yanukovich, o conflito culminou com a

anexação da região da Crimeia pela Rússia, e continua com violentos combates entre as

forças armadas ucranianas, forças separatistas e “unidades militares russas sob a cobertura

de uma insurgência separatista” (KONRAD, 2016, p.104; SOLDADO..., 2016). A presença de

atores estatais e não-estatais, com a presença, ainda que indireta, de outro Estado, em um

conflito não declarado, permite que esse conflito seja classificado, segundo Lind (2004), como

uma guerra de 4ª Geração (4GW).

Essas mesmas características tornam difícil a resolução do conflito pelas vias

diplomáticas. As tentativas de mediação por parte da ONU e de países do bloco ocidental não

tiveram o efeito esperado diante da estratégia russa de emprego da chamada guerra de

informação. A abordagem russa faz extenso uso de operações psicológicas, manipulando as

informações com o objetivo de influenciar a população, em especial, a mídia e a comunidade

internacional, de forma a justificar suas posições e supostos interesses (SNEGOVAYA, 2015).

A instabilidade política da Ucrânia e a postura agressiva do governo russo, com o emprego

das táticas de guerra de informação, possibilitaram que a Crimeia se declarasse independente

para, em seguida, ser anexada à Federação da Rússia à revelia da Ucrânia e das Nações

Unidas (EUA, 2015, p.31).

O presente trabalho busca compreender de que forma os elementos de soft power

podem influenciar os efeitos causados pelas operações psicológicas num contexto de guerra

de 4ª Geração. Para que se possa cumprir o objetivo da pesquisa, serão pesquisados os

seguintes objetivos específicos:1) explicar, pelo estudo dos antecedentes do conflito, qual a

participação da Rússia no conflito; 2) relacionar os conceitos de Guerra de 4ª Geração às

táticas empregadas pela Rússia contra a Ucrânia; 3) compreender a relação entre os efeitos

das ações russas e o soft power da Ucrânia.

Por se tratar de um conflito recente, até este momento sem definição, foi utilizada

pesquisa exploratória bibliográfica baseada em livros, artigos de jornais e outros periódicos,

tomando-se a preocupação de buscar fontes sem envolvimento direto com os atores

envolvidos para que não prejudicasse a imparcialidade dos dados. Para fins de análise do soft

power, as notícias jornalísticas mostraram ser uma importante ferramenta para avaliar a

repercussão das ações russas e ucranianas durante o conflito.

Inicialmente serão apresentados os antecedentes do conflito de forma a esclarecer os

motivos do início do conflito e explicar o interesse da Rússia em obter o controle da região.

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Em seguida serão citadas as peculiaridades deste conflito que o caracterizam como uma

4GW, descrevendo as principais táticas russas da guerra de informação e explicando a forma

como o soft power pode influenciar os resultados das operações psicológicas.

2. ANTECEDENTES

A região da Crimeia passou a fazer parte do território Ucraniano a partir de 1954,

quando o premier da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), Nikita Khrushchov,

transferiu essa região, apesar de sua população ser de maioria russa, para a então República

Socialista Soviética da Ucrânia, como parte das comemorações de 300 anos do Tratado de

Pereyaslav, que selou a integração da Ucrânia ao antigo Império Russo. Essa transferência

ocorreu em um período onde tanto o governo russo quanto o ucraniano imaginavam que a

união entre os dois países seria perpétua (EUA, 2015).

Apesar do longo período em que permaneceu sob domínio de Moscou, inicialmente

pelo Império e depois pela URSS, o sentimento de nacionalismo ucraniano e anti-russo, que

sempre esteve presente, foi fortalecido com eventos ocorridos no século XX. Na década de

1930, o esforço soviético de impor a coletivização da agricultura causou a morte de milhões

de ucranianos devido à fome, num episódio que ficou conhecido como Holodomor. O

tratamento recebido pelo governo soviético nas primeiras décadas da URSS foi um dos

motivos que levaram os ucranianos a lutar ao lado dos nazistas contra o Exército Vermelho,

durante a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de se libertar do julgo soviético. Pouco

antes do desmantelamento da União Soviética, o acidente de Chernobyl aumentou o

sentimento anti-Rússia do povo ucraniano, que culminou com a opção pela independência da

URSS (EUA, 2015).

Com o colapso da União Soviética (URSS) em 1991, a Ucrânia obteve sua

independência, e o então presidente russo Boris Yeltsin aceitou que a Crimeia permanecesse

sob domínio ucraniano, mesmo o território sendo ocupado majoritariamente por população de

origem russa. Em 1994 a Ucrânia celebrou com a Rússia, os Estados Unidos da América

(EUA) e o Reino Unido o Memorando de Budapeste sobre Garantias de Segurança,

posteriormente aderido por China e França. Neste acordo, a Ucrânia abriria mão de seu

arsenal nuclear, herdado da antiga URSS, em troca de garantias de segurança contra

ameaças à sua integridade territorial e independência política (EUA, 2015).

Apesar da independência, interesses comerciais levaram o governo ucraniano a

manter relações cordiais com a Rússia, ao mesmo tempo em que expandia sua integração

econômica com os países da Europa Ocidental. Para Moscou, a aproximação da Ucrânia com

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a Europa era vista como uma ameaça à sua esfera de influência. Além disso, o governo russo

temia perder os direitos sobre a base naval de Sevastopol, localizado na Crimeia, sede da

Frota Russa do Mar Negro, arrendada para o governo russo (EUA, 2015) (CRIMEA

PROFILE..., 2016).

Após a vitória de Viktor Yushchenko, em cima do candidato pró-Rússia, na eleição de

2004, houve uma aproximação maior da Ucrânia com a União Europeia e a OTAN. Em 2010,

o presidente pró-Rússia, Viktor Yanukovich, foi eleito, permitindo que o governo russo

recuperasse sua influência sobre o país. No entanto, as medidas do novo presidente

receberam diversas críticas por parte da população ucraniana de origem não-russa (EUA,

2015).

Favorecendo as relações com a Rússia, o presidente ucraniano decidiu não assinar o

acordo de livre-comércio com a União Europeia, que vinha sendo desenvolvido há vários

anos. Essa decisão gerou o início de uma série de manifestações no final de 20131, que

culminaram com a destituição de Yanukovich, que fugiu para a Rússia (UKRAINE..., 2016). O

processo que destituiu o presidente ucraniano acirrou os ânimos nas regiões do leste da

Ucrânia, onde a população é majoritariamente de origem russa. Algumas medidas tomadas

pelo parlamento ucraniano após a mudança do presidente foram bastante impopulares nessas

regiões, aumentando o descontentamento com o governo de Kiev, levando a manifestações

pró-Rússia (UKRAINE...,2016)

Em 27 de fevereiro de 2014, o parlamento da Crimeia e diversos pontos estratégicos

na região foram tomados por soldados vestindo uniforme verde sem insígnias ou marca de

identificação. Essas tropas identificavam-se como sendo forças populares de autodefesa, e

ficaram conhecidos como “the little green men” ou pequenos homens verdes (KONRAD,

2016). Durante essa ocupação, foi realizada uma sessão de emergência, onde foi votado a

substituição do governo da Crimeia por um pró-Rússia. No dia 01 de março de 2014, o

Parlamento da Rússia autoriza o presidente Russo Vladimir Putin a empregar as forças

militares para conter ameaças ucranianas (SMALE; ERLANGER, 2014)

O novo primeiro-ministro da Crimeia aprovou a separação da Ucrânia, e realizou um

referendo para mostrar o apoio público à decisão. O referendo foi boicotado por muitos

crimeios leais ao governo de Kiev, e considerado ilegal pelos EUA e pela União Europeia (UE)

segundo o canal de notícias British Broadcasting Corporation (BBC). Houve uma votação na

ONU, criticando o referendo, porém as medidas foram vetadas pela Rússia. O resultado do

1 As manifestações pró-Europa eram realizadas na praça Maidan, e por esse motivo as manifestações ficaram conhecidas como Euromaidan (UKRAINE..., 2016).

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referendo foi de 96% a favor da separação da Ucrânia e consequente anexação por parte da

Rússia (CRIMEA REFERENDUM..., 2014).

Nos dias que se seguiram, as tropas ucranianas foram retiradas da Crimeia e tropas

russas assumiram as antigas bases ucranianas. Após a anexação da Crimeia, outras regiões

do leste da Ucrânia, com grande proporção de população russa, também presenciaram atos

de insurgência de forças separatistas (LESTE..., 2014). Os EUA e a UE impuseram sanções

às autoridades russas e ucranianas pró-Rússia, e mais tarde sanções econômicas. Essas

sanções não foram suficientes para frear o ímpeto russo de fomentar e participar direta e

indiretamente do conflito no leste da Ucrânia, com características de uma guerra de 4ª

Geração.

3. ESTRATÉGIA RUSSA E A GUERRA DE 4ª GERAÇÃO

Segundo Lind (2004), a Quarta Geração da guerra moderna (Fourth Generation

Warfare – 4GW) teria além da característica da descentralização e iniciativa, a perda do

monopólio da guerra pelo Estado, pela presença de atores não-estatais. Para Hoffman (2007,

p. 18): “O núcleo do conceito (de uma 4GW) é que o enfraquecimento do Estado como

organização e mecanismo de governo resulta no surgimento de atores não-estatais dispostos

e capazes de desafiar a legitimidade do Estado”. Na guerra de 4ª Geração, os atores se

utilizariam tanto meios convencionais como não-convencionais, incluindo terrorismo, para

minar a vontade do estado, tentando torná-lo sem legitimidade e estimulando a divisão da

sociedade (HOFFMAN, 2007). Esse tipo de guerra também é definido por alguns autores

como Guerra Híbrida.

O conceito russo de guerra híbrida é altamente focado na guerra de informação

(SNEGOVAYA, 2015; HUNTER, 2015). O uso extensivo de propaganda e operações

psicológicas, utilizando até mesmo a imprensa russa, com o objetivo de deslegitimar o

governo empossado após a destituição do presidente ucraniano, é uma forma de

desestabilizar o governo adversário, neste caso o ucraniano. O modelo russo de guerra de

informação, utilizando tropas sem identificação, com firme postura de negação do

envolvimento do país no conflito, forçou a Ucrânia a enfrentar o inimigo tal como se tratasse

de atores não-estatais para evitar o enfrentamento regular contra as forças armadas russas

(SIMPSON, 2014). O General do exército americano Frederick “Ben” Hodges (apud

BARTKOWISKI, 2015) observou que: “os russos não querem fazer ataque evidente, eles

querem uma situação em que as 28 nações membras da OTAN não possam dizer que há um

ataque.”. Dessa forma, caso a OTAN reagisse militarmente aos ataques dos separatistas, a

organização seria vista como a agressora contra as minorias (BARTKOWISKI, 2015).

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Segundo Arquila (1999), a política se tornou uma competição de credibilidade. O

mundo da política tradicional de poder era tipicamente aquela sobre qual força armada ou

economia vencerá. A política na era da informação acaba sendo sobre qual história vencerá

(ARQUILA; RONDFELDT, 1999).

Para Snegovaya (2015), a abordagem russa com relação à repercussão da

intervenção na Crimeia segue o conceito dos 4D: negar (dismiss), distorcer (distort), distrair

(distract) e desestimular (dismay). Inicialmente as autoridades negam os fatos, como negaram

a presença de tropas russas na região, dizendo que eram forças de autodefesa da Crimeia,

(KONRAD, 2016), mesmo quando estas utilizavam veículos com identificação russa

(SIMPSON, 2014).

Na segunda tática da guerra de informação russa, quando não é possível negar o fato,

o mesmo é distorcido, de forma a explorar somente a parte da notícia que atende aos objetivos

russos. Outra ferramenta utilizada pelos russos é a distração, utilizando-se de um fato alheio

para causar intriga, tirando o foco de atenção do real objetivo russo. Por fim, a Rússia utiliza

a abordagem de desestimular o apoio de outros países na resolução da crise ameaçando o

emprego do hard power, seja econômico, por meio de sanções e boicotes, seja militar, como

ocorre atualmente na Ucrânia (SNEGOVAYA, 2015).

4. SOFT POWER E A GUERRA DE 4ª GERAÇÃO

Dentre os aspectos de uma 4GW, o fator psicossocial é o principal elemento das

ações, já que busca a desestabilização do poder vigente. Dessa forma as medidas para

combate devem ter em mente o impacto psicossocial que terá na população, sob pena de

aumentar o apoio à causa inimiga, aumentado seu poder.

Segundo Nye (1990; 2004; 2011), poder é a habilidade de afetar os outros de forma

que eles façam o que se quer. Para Nye, o poder pode ser classificado de duas formas: o

hard power (poder duro) e o soft power (poder brando). O hard power seria referente ao

emprego do poder militar e econômico como forma coercitiva para atingir os objetivos. Já o

soft power seria a habilidade de influenciar indiretamente o comportamento ou interesse de

outros corpos políticos por meios culturais ou ideológicos. O soft power contrasta com a visão

realista de poder, pois não é mensurável por dados econômicos ou militares.

A teoria desenvolvida por Nye sobre o poder consegue explicar porque a Guerra de 4ª

Geração não pode ser vencida somente pelas armas, por mais desigual que seja o poderio

bélico, como ocorreu com os americanos no Vietnã e com os soviéticos no Afeganistão. A

evolução de sua teoria gerou o termo smart power (poder inteligente), que seria a utilização

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combinada do hard e soft power, para obter uma estratégia de sucesso. O emprego de

medidas com impacto psicossocial pode aumentar ou reduzir a capacidade de soft power de

uma entidade, à semelhança do que ocorreu na Guerra do Vietnã, quando imagens da morte

de civis durante a operação do Tet fez com que a população americana deixasse de apoiar o

esforço de guerra, causando a derrota política do governo dos Estados Unidos (NYE, 2004).

Outra questão levantada por Nye (2004) é que, para um país, a propaganda pode não

surtir o efeito desejado, e pode inclusive ser contraproducente, se não for acompanhado de

credibilidade. A falta de credibilidade nos discursos ocorreu dos dois lados. Pelo lado russo,

a infiltração de tropas russas com a alegação de serem tropas de autodefesa da Crimeia, por

outro lado as ameaças americanas de enviar armamentos letais de defesa para a Ucrânia

caso o acordo de cessar-fogo de fevereiro de 2015 não seja cumprido (ACORDO..., 2015). A

falta de credibilidade dificulta as relações diplomáticas, pois incita a troca de acusações,

criando um ambiente desfavorável às negociações.

No caso do conflito da Ucrânia, o soft power ucraniano serviria para angariar

reconhecimento e apoio internacional para a sua causa em detrimento das forças

separatistas. Conforme Arquila (1999), no conflito ganhará o lado cuja história ganhar. Em

outras palavras, ter o reconhecimento da causa possibilita justificar ações perante a

comunidade internacional. No entanto, até o momento, a busca por resoluções externas para

o conflito não obteve o resultado esperado. O Conselho de Segurança da ONU não aprovou

medidas em apoio ao governo de Kiev, pois mesmo a Assembleia Geral da ONU tendo

declarado que o referendo realizado pelo governo da Crimeia não era válido (BACKING...,

2014), a resolução do Conselho de Segurança da ONU foi vetada pela Rússia. (UN

SECURITY..., 2014).

Considerando as sucessivas derrotas da Ucrânia nas questões referentes às forças

pró-Rússia, pode-se concluir que o soft power não influenciou decisivamente a favor do

governo de Kiev. O primeiro fator para explicar esse resultado é que o soft power de um país

é baseado em diversos aspectos, um deles é a transparência do processo de sucessão

presidencial e a credibilidade do governo perante a população do seu país (McCLORY, 2016).

Segundo Visacro (2009), a legitimidade do Estado, ou falta dela, é um dos fatores centrais

para surgimento de um ambiente favorável ao conflito irregular. No caso da Ucrânia, a

polêmica em torno do processo que destituiu o presidente Yanukovich, assim como do

processo de substituição do governo da Crimeia (WHY..., 2014), são exemplos de como a

falta de transparência no processo político pode ser utilizado pelo adversário como justificativa

para ações bélicas e intervenções internacionais (FEUERBERG, 2014). Essa impressão de

falta de transparência teve forte influência da guerra de informação russa. Segundo Ben Judah

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(apud POMERANTSEV; WEISS, 2014): “O Maidan nunca conseguiu repelir a impressão

[pintada pela mídia russa] de que era um movimento de extrema direita.” O excesso de

informações falsas emitidas pela mídia russa e a forma indireta de participação no conflito,

além de dividir a população ucraniana, deixaram os líderes das nações da OTAN hesitantes

em suas respostas, permitindo que os russos avançassem sem interferências ou ultimatos

por parte das potências ocidentais (POMERANTSEV; WEISS, 2014).

Outro fator é o suporte da opinião pública russa para as ações expansionistas de Putin.

O controle sobre parte da mídia russa permite ao Kremlin bombardear a sua população com

informações manipuladas, distorcendo o motivo pelo qual a Rússia está participando do

conflito, se passando pelo defensor das minorias russas na Ucrânia. Ao mesmo tempo, invoca

o sentimento nacionalista russo com o termo Novorossya, referindo-se à região leste da

Ucrânia, relembrando a grandiosidade do antigo Império Russo e da URSS (POMERANTSEV;

WEISS, 2014, p. 30). Dessa maneira, o governo russo consegue manipular ou ignorar, até

certo ponto, a opinião pública russa de forma a não diminuir a oposição aos seus atos.

Segundo Gallarotti (2011), o ímpeto para o emprego do hard power é menor nas

democracias, e esse é um dos motivos pelo qual os líderes das nações da Organização do

Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foram hesitantes em agir quando da intervenção russa. A

intervenção militar da OTAN poderia causar uma escalada da violência, levando a um

confronto direto com as forças russas. O poderio bélico de uma potência nuclear como a

Rússia representou um fator dissuasório importante neste caso. Além disso, o fato da OTAN

ser voltada à estratégia de deterrência, dificulta sua ação em um conflito de 4ª Geração de

baixa intensidade (POMERANTSEV; WEISS, 2014).

5. CONCLUSÃO

A atuação da Rússia, no início de 2014, utilizando operações psicológicas e

propaganda, como ações de guerra de informação , e a infiltração de tropas na Crimeia, sob

cobertura de forças de autodefesa, foram decisivas para a separação da Crimeia da Ucrânia

e sua consequente anexação à Federação Russa.

As características das ações russas e dos confrontos ocorridos entre as forças do

governo ucraniano e os separatistas pró-Rússia, com táticas de guerra regular, irregular e de

informação, permitem classificar o conflito ocorrido na Ucrânia como uma guerra de 4ª

Geração. Essas ações sob a cobertura da guerra de informação possibilitaram que a

anexação fosse concluída sem a interferência por parte das nações da OTAN e com pouca

resistência por parte da Ucrânia.

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Neste trabalho concluiu-se que o soft power depende de alguns fatores, internos e

externos, para ser decisivo na resolução de um conflito. Devido às características da Rússia,

com controle estatal de parte da mídia, postura expansionista do presidente Putin e

manipulação da opinião pública pelo governo, o soft power ucraniano teve pouca influência

em conter o ímpeto russo de empregar o seu hard power. Por outro lado, foi importante em

angariar apoio internacional para a causa ucraniana, ajudando na estabilidade do novo

governo da Ucrânia para a luta por sua integridade territorial e soberania.

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