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    JOO LUS CARDOSO

    PR-HISTRIA DE PORTUGAL

    303

    ISBN: 978-972-674-664-5

    http://www.univ-ab.pt/
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    Joo Lus Cardoso

    PR-HISTRIA DEPORTUGAL

    Universidade Aberta

    2007

    Est associado a este manual,

    um ficheiro com as figuras

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    Copyright UNIVERSIDADE ABERTA 2007

    Palcio Ceia Rua da Escola Politcnica, 147

    1269-001 Lisboa

    www.univ-ab.pt

    e-mail: [email protected]

    TEXTOS DE BASE; N. 303

    ISBN: 978-972-674-664-5

    Capa: Escavao da anta do Malho (Alcoutim, 2002). Foto de J. L. Cardoso

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    JOO LUS CARDOSO

    Professor Catedrtico da rea de Estudos Histricos da Universidade Aberta, onde obteve a Agregao no ramo de Histria,Especialidade de Histria Antiga, disciplina de Pr-Histria, no ano de 2000. Na Universidade Aberta, Coordenador do Cursode 1. Ciclo em Histria e do Curso de 2. Ciclo em Estudos do Patrimnio. Presidente do Conselho Cientfico (desde 2006), eCoordenador-Geral da Avaliao da Universidade (desde 2000). Foi Coordenador da rea da Histria, na Universidade Aberta

    (2002), at entrada em vigor dos Estatutos da Universidade. Membro do Conselho Nacional de Educao, em representao da Academia Portuguesa da Histria, integrando a

    3. Comisso Especializada Permanente Ensino Superior e Investigao Cientfica. Membro da Comisso Cientfica de diversasrevistas cientficas de arqueologia, nacionais e internacionais, de carcter arqueolgico, bem como de numerosas reuniesrealizadas em Portugal e no estrangeiro.

    director da revista "Estudos Arqueolgicos de Oeiras", editada pela Cmara Municipal de Oeiras, com quinze nmerospublicados anualmente desde 1991, rgo cientfico do Centro de Estudos Arqueo-lgicos do Concelho de Oeiras, de que Coordenador desde a sua criao, em 1988. Vogal e Relator da Sub-Comisso Externa de Arqueologia (da Comisso Externa deHistria), no quadro da Avaliao do Ensino Superior em Portugal (2000/2001), promovida pela Fundao das UniversidadesPortuguesas (FUP), atravs do Conselho Nacional para a Avaliao do Ensino Superior (CNAVES).

    Membro da Comisso Interuniversitria de Arqueologia (Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas), em

    representao da Universidade Aberta, desde 1999.Colaborador da Enciclopdia Luso-Brasileira de Cultura, da Editorial Verbo (1997-2003), para a rea da Arqueologia e

    Pr-Histria.Membro do jri do Prmio Gulbenkian de Arqueologia (2001).Vogal da Comisso de Avaliao dos Projectos candidatos ao Plano Nacional de Trabalhos Arqueolgicos (PNTA) do Instituto

    Portugus de Arqueologia (2002).Membro do Conselho Cientfico do Museu Geolgico (seco de Arqueologia), do Instituto Nacional de Engenharia,

    Tecnologia e Inovao desde 2004.Avaliador da Fundao para a Cincia e a Tecnologia no mbito dos Projectos de Bolsas para Mestrado, Doutoramento e

    Ps-Doutoramento, submetidos a financiamento na rea da Arqueologia (2005).Realizou as primeiras prospeces arqueolgicas em 1970, no povoado pr-histrico de Leceia (concelho de Oeiras), ento

    ainda totalmente por explorar. Ali viria a desenvolver um ambicioso programa de escavaes anuais, entre 1983 e 2002, queconferiram importncia internacional quele notvel povoado pr-histrico. Alargou, progressivamente, o campo dos seusinteresses no domnio da Arqueologia, incluindo o seu currculo a direco de escavaes de estaes do Paleoltico Mdio,Paleoltico Superior, Neoltico, Calcoltico, Idade do Bronze, Idade do Ferro e pocas ulteriores, tanto na regio de Lisboa, comona Beira Interior e no Alto Algarve Oriental, abarcando grutas, povoados pr-histricos fortificados e mais de uma dezena demonumentos megalticos, de ndole funerria ou ritual e de necrpoles de diversas pocas. Interessou-se, igualmente, pelaArqueologia africana, tendo realizado escavaes na ilha de S. Vicente (Repblica de Cabo Verde) em 1998 e em 2005. Ao longodos ltimos trinta e dois anos, ascenderam a mais de cem as campanhas de escavaes arqueolgicas que dirigiu em diversasregies do centro e do sul do actual territrio portugus.

    Dando prioridade abordagem pluridisciplinar da Arqueologia, dedicou-se a reas cientficas afins, ento quasedesconhecidas em Portugal, orientando as primeiras dissertaes de mestrado e de doutoramento que em Portugal se realizaramno mbito da Arqueozoologia.

    autor de cerca de 400 trabalhos, publicados nas principais revistas de Arqueologia de Portugal, bem como em Espanha,Frana, Itlia, Inglaterra e Alemanha, captulos de livros e actas de reunies cientficas da especialidade, incluindo dezena e meiade livros de sua autoria.

    Foi distinguido com o prmio Professor Carlos Teixeira, da Academia das Cincias de Lisboa (1993) e, na AcademiaPortuguesa da Histria, com os Prmios Possidnio Laranjo Coelho (1998), Aboim Sande Lemos (2000 e 2002), Pedro da CunhaSerra (2005) e Joaquim Verssimo Serro (2007).

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    EVOLUO

    Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo,

    Tronco ou ramo na incgnita floresta...

    Onda, espumei, quebrando-me na aresta

    Do granito, antiqussimo inimigo...

    Rugi, fera talvez, buscando abrigo

    Na caverna que ensombra urze e giesta;

    Ou, monstro primitivo, ergui a testa

    No limoso paul, glauco pascigo...

    Hoje sou homem e na sombra enormeVejo, a meus ps, a escada multiforme,

    Que desce, em espirais, na imensidade...

    Interrogo o infinito e s vezes choro...

    Mas, estendendo as mos no vcuo, adoro

    E aspiro unicamente liberdade.

    Antero de Quental

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    142 Manifestaes artsticas e funerrias do Paleoltico Superior142 Arte rupestre145 Arte mvel146 Rituais funerrios

    149 6. O Mesoltico151 Perodos Pr-Boreal e Boreal151 Litoral da Estremadura156 O Macio Calcrio159 O Perodo Atlntico159 O Macio Calcrio160 Litoral da Estremadura162 Concheiros do vale do Tejo177 Concheiros do vale do Sado181 O Mesoltico Final dos vales do Tejo e do Sado: estudo comparado185 A componente macroltica das indstrias fini- e ps-glacirias: o

    Languedocense, o Ancorense e o Mirense

    188 O Mesoltico do litoral do Baixo Alentejo e costa vicentina194 O Mesoltico do vale do Guadiana195 O Mesoltico do litoral minhoto197 O Mesoltico em outras regies do pas

    199 III PARTE201 Objectivos de aprendizagem e actividades sugeridas

    205 7. O Neoltico Antigo207 Estremadura e sul do Pas218 Centro interior e norte do Pas

    225 8. A Consolidao do Sistema Agro - Pastoril no Decurso do V e do IVmilnios a.C.

    237 9. Manifestaes Funerrias Neolticas no Megalticas

    251 10. O Megalitismo no Territrio Portugus253 Megalitismo funerrio253 Alto e Baixo Alentejo265 Alto Ribatejo e Beira Interior268 Beira Alta273 Douro Litoral, Minho e Trs-os-Montes281 Litoral centro: a regio de Lisboa e a da Figueira da Foz284 Algarve286 Megalitismo no funerrio

    286 Menires293 Cromeleques

    297 11. Arte Megaltica

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    309 IV PARTE311 Objectivos de aprendizagem e actividades sugeridas

    317 12. A Emergncia das Primeiras Sociedades Complexas Peninsulares

    319 Difusionismo versus indigenismo: o caso dos povoados fortificados daEstremadura

    326 Faseamento do Calcoltico da Estremadura336 Metalurgia do cobre e comrcio transregional345 Calcoltico do Sudoeste347 Alto Alentejo351 Baixo Alentejo357 Algarve360 Calcoltico do centro e do norte

    377 13. Manifestaes Funerrias do Calcoltico379 Aspectos arquitectnicos385 Smbolos e rituais

    393 14. O Fenmeno Campaniforme398 Estremadura398 Povoados405 Necrpoles

    409 Alentejo409 Povoados414 Necrpoles416 Centro e norte422 Aspectos sociais, econmicos e culturais

    429 15. A Transio do Calcoltico para a Idade do Bronze

    435 16. A Arte Ps-Paleoltica de Ar Livre e de Abrigos Rupestres e as Estelas--menires e Esttuas-menires do Calcoltico e da Idade do Bronze

    437 Complexo do vale do Tejo440 A Arte dos abrigos sob-rocha442 Arte esquemtica do noroeste peninsular446 Arte rupestre de ar livre em outras regies447 Estelas-menires e esttuas-menires do Calcoltico e da Idade do Bronze

    451 17. O Bronze Pleno453 Alentejo e Algarve: o Bronze do Sudoeste462 Estremadura467 O centro interior e o norte

    473 18. O Bronze Final476 Centro interior e norte476 Povoamento, actividades econmicas e organizao social

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    492 Necrpoles e rituais497 Estremadura e Ribatejo497 Povoamento, actividades econmicas e organizao social507 Necrpoles e rituais

    511 Alentejo e Algarve511 Povoamento, actividades econmicas e organizao social514 Necrpoles e rituais518 Eplogo. O territrio portugus no quadro das solidariedades atlanto-

    -mediterrneas do Bronze Final

    521 Bibliografia Geral

    527 Bibliografia Especializada Seleccionada

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    Apresentao e Objectivos Gerais

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    O manual de Pr-Histria de Portugalda Universidade Aberta tem comoobjectivo principal conferir ao estudante uma viso geral e coerente, numaperspectiva eminentemente cultural, da evoluo da ocupao humana doterritrio portugus desde os tempos mais recuados do Paleoltico at ao

    Bronze Final. A circunscrio do mbito da disciplina ao espao geogrficoportugus, torna mais fcil a integrao das doutrinas expostas na realidadeimediata e mais sugestiva e aliciante a aprendizagem: com efeito, cr-se sermais motivador para o estudante compreender, por exemplo, o processo deneolitizao do territrio que bem conhece, do que os mecanismosexplicativos do mesmo fenmeno na Indochina, como poderia ser o caso sese tratasse, simplesmente, de uma disciplina de Pr-Histria.

    As constantes aluses Pr-Histria universal seriam, outrossim, dispersivas

    e pouco relevantes para a caracterizao da realidade em apreo. Por exemplo,na Mesopotmia, o fim da Pr-Histria deu-se h cerca de 5000 anos; noNorte da Europa, h cerca de 1000 anos e em outras regies do globocontinuaria ainda, no fosse a presena europeia: nenhuma destas realidadestem objectivamente quaisquer relaes entre si, sendo problemtica aorganizao de exposio com sequncia lgica.

    Mesmo com temtica menos vasta, como o caso, no vivel nesta disciplinao tratamento circunstanciado de certas matrias, sobretudo as que revestem

    aspectos prticos, como as tcnicas de escavao ou de prospeco, oscuidados de recolha no campo de materiais arqueolgicos e os mtodos deregisto grfico e fotogrfico de estruturas, materiais e estratigrafias. Estesassuntos poderiam ser tratados numa disciplina do tipo Introduo Arqueologia, enquanto numa outra disciplina, que poderia designar-se dePr-Histria Peninsular, se integraria a realidade do nosso territrio numcontexto geogrfico-cultural alargado. Tambm excluda, pelos motivosapontados, fica a Hominizao, a qual, em certas Faculdades, constitui aparte essencial, quase exclusiva, de uma disciplina susceptvel de serdesignada por Gnese e Evoluo da Humanidade, resultante dasemestralizao das antigas disciplinas de Pr-Histria, de carcter anual,como a da Universidade Aberta.

    Na Universidade Aberta, o estudo da Pr-Histria tem natural seguimentono da Proto-Histria, o qual tambm se reporta apenas ao territrio portugus;uma e outra, em especial a segunda, encontram na disciplina de CivilizaesPr-Clssicas, um bom complemento de aprendizagem, tratando, em parte,de realidades e acontecimentos histricos que foram coevos daqueles quedecorreram nesta verdadeira finisterra e dos quais nos chegaram, no decurso

    da Pr e da Proto-Histria, longnquos ecos. Em boa harmonia, aProto-Histria dever iniciar-se onde termina o ensino da Pr-Histria. Ocritrio adoptado at ao presente na Universidade Aberta foi o de fazer do

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    bibliogrficas utilizadas; da que haja a certeza de uma tambm rpidadesactualizao, ao menos em alguns deles.

    Outros poderiam ter sido, entretanto, os critrios de tratamento de algumas

    matrias, os quais dependem, naturalmente, dos prprios autores: seja comofor, importa, em obra de sntese e de estudo, apresentar imagens aliciantes evisualmente sugestivas, criteriosamente seleccionadas, partindo,naturalmente, do princpio que impossvel ilustrar todos os aspectos referidosno texto.

    A bibliografia constante no final deste volume encontra-se apresentada emdois grandes grupos: a geral e a especializada, de relevncia circunscrita matria tratada em cada um dos captulos. A primeira, correspondente a lista

    reduzida ao mnimo, destina-se a complementar a aprendizagem dos maisinteressados, dado o carcter auto-suficiente que se pretendeu conferir aprendizagem com base no manual. A bibliografia especializada foi tambmobjecto de apertada seleco, indicando-se apenas os trabalhos consideradosmais relevantes sobre a temtica tratada, que correspondem a pequena partedas menes contidas no texto, para no sobrecarregar desmesuradamente alistagem bibliogrfica. Mas os leitores podero, em bases de dadosdisponveis, localizar as pretendidas obras, se a to longe chegar o seuinteresse.

    De qualquer modo, tanto o primeiro como o segundo grupo de refernciasbibliogrficas, no podero ser entendidos como de consulta obrigatria peloestudante, longe disso: destinam-se sobretudo a facultar aos mais interessadosa informao necessria ao desenvolvimento dos seus conhecimentos,eventualmente aps a realizao da prpria disciplina, servindo, deste modo,como informaes que podero consultar em qualquer altura, explorandoapenas uma ou outra rea cientfica, das que integram o Programa, mais doseu agrado ou interesse.

    Importante para o sucesso do ensino de qualquer disciplina a motivaodos estudantes, que passa, por um lado, pela escolha do curso correspondera uma opo vocacional e no meramente circunstancial e, por outro, peloempenho que, tanto o aluno como o professor, dispensam s tarefas deaprendizagem/ensino. Esta realidade tanto vlida para o ensino presencialcomo para o Ensino a Distncia. No caso particular da Pr-Histria,exceptuando os estudantes das variantes de Arqueologia das licenciaturasem Histria, ou das novas licenciaturas em Arqueologia, organizadas nasFaculdades de Letras de Lisboa e do Porto, naturalmente com motivao

    acrescida, os estudantes de Histria possuem, frequentemente, uma ideiadeturpada e pouco abonatria daquilo que vo aprender: seres primitivos,lutando entre eles, contra o frio e as feras, fazem ainda parte de um imaginriocolectivo que difcil redimir. Ao contrrio, a Pr-Histria poder constituir

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    um poderoso elemento para a formao de todos, conferindo conhecimentosbsicos da realidade arqueolgica e patrimonial do Pas, incentivando aintervenes cvicas relevantes, para alm de proporcionar maioria dosalunos uma dimenso at ento insuspeitada da nossa realidade histrica.

    A modificao daquelas ideias-feitas passa, no tocante ao Ensino a Distncia,pela observao de diversos pressupostos genericamente apresentados nopargrafo anterior e que so, naturalmente, vlidos para o caso concreto destadisciplina. No se pretende formar arquelogos, nem isso o objectivo dosalunos inscritos: incentive-se o aluno a desenvolver o gosto pela Pr-Histria,privilegiando a realizao de fichas das actividades sugeridas; motive-se aprtica de leituras complementares, acompanhadas eventualmente porindagaes feitas no terreno, que podem revestir formas muito variadas, desde

    inquritos s populaes tendo em vista a identificao de vestgiosarqueolgicos, at pesquisa de documentao publicada na Imprensa Local, qual dificilmente se tem acesso fora da rea respectiva: e ter-se-oplenamente atingido os objectivos do ensino/aprendizagem de uma disciplinacuja prtica, por limitada que seja, e sem revestir carcter obrigatrio, tornamais motivadora a prpria aprendizagem da matria terica. Tais aces,favorecidas nos casos em que os estudantes se encontram familiarizados como prprio meio onde vivem (por dele fazerem parte intrnseca) ou nos casosem que prestam servio na provncia, contactando com muitos jovens que

    podem carrear elementos arqueolgicos de efectivo interesse, contribuempara reforar a ligao afectiva regio ou s suas gentes quase sempremeramente circunstanciais ao mesmo tempo que propiciam trabalhos depotencial valia cientfica, desde que devidamente enquadrados pela prpriaUniversidade.

    Outra vertente de real interesse na ligao Universidade a da participaoem trabalhos arqueolgicos de campo (prospeces e escavaes arqueol-gicas) nas quais os alunos se mostram altamente motivados, empenhados eteis, sentindo-se, depois, muito mais vontade e nas matrias a estudar, ouna discusso das j estudadas. A participao em visitas de estudo a museuse a estaes arqueolgicas constituem outros tantos modos de consolidaodos conhecimentos tericos adquiridos, se bem que as dificuldades da suaconcretizao sejam evidentes para os alunos do interior mais isolados.

    Enfim, a realizao de seminrios ou encontros informais sobre Histria Localou Regional, nos quais a Arqueologia e a Pr-Histria detm importantepapel, organizados aos fins-de-semana, constituem verdadeiras aces deformao, de validade indiscutvel e baixos custos, podendo at dar algum

    lucro (destinado impresso das actas, por exemplo), caso se estipule umpreo de inscrio acessvel. O Encontro de Arqueologia e Histria Regionalda Pennsula de Setbal, organizado pela Universidade Aberta em colaborao

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    com a Cmara Municipal do Seixal em Maio de 1999, cujas Actas seencontram publicadas pela Universidade Aberta, constituiu bom exemplode adeso dos alunos de Histria da Universidade Aberta a uma iniciativaconcreta neste domnio, onde a Pr-Histria da referida regio foi devidamente

    valorizada. Os cerca de cento e cinquenta participantes, na sua maioria alunosda Universidade Aberta, comprovaram a valia da realizao de tais eventos,a que se seguiu o Colquio Internacional Os Pnicos no Extremo Ocidente,igualmente organizado pela Universidade Aberta, em Outubro de 2000 e, jem Junho de 2004, o Colquio Evoluo geohistrica do litoral portugus efenmenos correlativos. Geologia, Histria, Arqueologia e Climatologia,cujas Actas foram igualmente publicadas, e onde a participao de alunos daUniversidade Aberta foi tambm muito positiva. H que procurar redobraresforos para aumentar a integrao e interaco dos alunos com a

    Universidade e os seus professores. Est-se consciente de que se trata de umensino massificado, com largas centenas de estudantes inscritos anualmentenesta disciplina; mas, por isso mesmo, iniciativas como as referidas,promovidas em articulao com os rgos do poder local das diferentesregies do Pas j que a Universidade Aberta tem expresso nacional tero significado acrescido, podendo conduzir a interessantes resultados.

    Bem pode dizer-se do Ensino a Distncia, tanto quanto do presencial, que,s o estudo cuidadoso, continuado e empenhado conduz a bons resultados,

    independentemente da idade, estatuto social ou local de residncia de cadaum dos alunos da Universidade Aberta: o seu esforo tambm um acto decidadania, condizente com a sociedade democrtica em que vivemos.

    O estudo da Pr-histria dever situar-se preferencialmente no incio daLicenciatura, conferindo aos alunos os conhecimentos essenciais que lhespermitam compreender os fenmenos sociais que enformaram a marcha dassucessivas comunidades humanas que ocuparam o territrio portugus:primeiro, organizadas em bandos de caadores e recolectores; depois, apsaquela que foi a maior das revolues havidas na histria humana aagricultura agrupadas em tribos, onde os laos do sangue continuavam aser determinantes (sociedades tribais), mas que, merc de rpida evoluo,culminaram com a consolidao das sociedades complexas e com aestratificao social atingida no final da Pr-histria. Estava-se, ento, noalvor de uma nova era, a das sociedades com escrita, a qual, no territrioportugus, surge talvez no sculo VIII ou na primeira metade do seguinte,em monumentos funerrios, expressivos da necessidade de perpetuao daselites ento existentes. Concretizava-se uma diferena essencial face aosperodos anteriores: na administrao dos territrios dos proto-estadosemergentes, o poder j no residia na comunidade mas naqueles que adirigiam, detendo a escrita papel essencial em tal mbito.

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    Trata-se de um continuum, raramente se verificando rupturas com a realidadepr-existente, sem negar o papel de contributos exgenos, nalguns casosdeterminantes. Deste modo, importante que o estudante, no termo destadisciplina, tenha apreendido as principais linhas de fora que ditaram e

    caracterizaram a estrutura das sucessivas comunidades que ocuparam oterritrio portugus. Mais importante do que saber datas precisas, alisinviveis em Pr-Histria e Proto-Histria, importa que os contedos destemanual, relativos a uma rea frequentemente menosprezada, em parte frutodo vu de desconhecimento que tradicionalmente ainda paira sobre realidadeshumanas to longnquas, sirvam para melhorar a cultura geral dos estudantese, deste modo, contribuam para a compreenso da sua prpria realidade:com efeito, o ensino universitrio pressupe aquisio de conhecimentos;mas a integrao destes no quotidiano de quem aprende, faz parte, no j da

    sua preparao para o exame, mas do processo da sua prpria formao comocidado consciente. Sem a Pr-Histria, a adequada compreenso da Histria,atravs das disciplinas subsequentes do Curso, tornar-se- mais difcil.

    A viso formativa e sinttica, que se cr adequada a disciplina geral comoesta, no poder ignorar que a Pr-Histria ou a Proto-Histria se fazem apartir de evidncias materiais recolhidas no terreno: a reconstituio darealidade humana passa obrigatoriamente pelo conhecimento dospaleoambientes e dos recursos potencialmente disponveis em dada regio,

    que determinaram os prprios modelos de explorao ou de povoamentoadoptados em cada poca. Sendo certo que o prprio sucesso das comunidadeshumanas dependeu, pelo menos at ao incio do Neoltico, dos recursosnaturais susceptveis de se obterem pela caa/recoleco, torna-se evidente aimportncia do conhecimento das caractersticas passadas dos respectivosterritrios (gua, solos, climas, floras, faunas, em suma, da paisagem comoum todo, em permanente evoluo) para a interpretao econmica e social,nas suas diversas componentes. Verifica-se, assim, uma das principaiscaractersticas da Pr-Histria: tratando essencial-mente do conhecimento

    do Homem, a comear pela recolha ou o registo dos dados, obtidos emescavao, baseia-se, numa primeira etapa do conhecimento, em reascientficas diversas, com destaque para as Cincias da Terra. Tal realidadeobriga a um dilogo permanente do arquelogo com uma multiplicidade defontes de informao, em ordem reconstituio paleossocial e paleocultural,que dever ser o ponto de chegada, a sntese, elaborada luz de modelos dasCincias Humanas e Sociais, especialmente da Histria. No entanto, oestudante desta disciplina no dever ignorar que, em Pr-Histria, s osfactos de observao so realidades perenes: as interpretaes que deles se

    possa fazer variar, forosamente, consoante o aperfeioamento das doutrinasou o surgimento de novas formas e tcnicas de abordagem da realidadematerial recuperada. at possvel que a mesma soma de elementos susciteinterpretaes diversas, por parte de pr-historiadores contemporneos,

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    fazendo uso de modelos diferentes: nisso reside uma das riquezas dareconstituio arqueolgica, que no dever ser encarada como fraqueza,desde que devidamente fundamentada.

    Importa, no entanto, ter ciente que uma das condies para a qualidades dosmodelos, a prpria a qualidade dos dados utilizados: assim se afirma opr-historiador, primeiro como produtor primrio de dados cientficos, depoiscomo seu manipulador, prtica onde dever integrar os elementos resultantesde trabalho pluridisciplinar cujo pleno significado na perspectiva dareconstituio humana lhe cumpre valorizar. Trata-se, enfim, de conhecer ohomem pr-histrico a partir dos testemunhos materiais das suas actividades,tanto as quotidianas como as de carcter religioso ou funerrio, toheterogneas quanto diversos foram os gestos e comportamentos que

    estiveram na sua origem. Conhecimento irremediavelmente incompleto efragmentrio: disso h que ter plena conscincia.

    Tendo presente o que ficou dito, espera-se que o estudante, de posse doselementos facultados pela leitura deste manual, complementadoseventualmente pela bibliografia sugerida, desenvolva as suas capacidadescrticas de anlise e de sntese da informao disponvel, incentivadas pelosobjectivos de aprendizagem indicados para cada captulo, bem como pelasactividades sugeridas, as quais podem entender-se como extenso dos

    conhecimentos entretanto adquiridos, visando a sua consolidao. O que essencial, repita-se, que os alunos comprendam a natureza dos processos,eminentemente sociais, que determinaram a evoluo das sociedadespr-histricas que ocuparam o territrio hoje portugus, estudadas a partirdos restos materiais conservados no solo.

    O Programa apresentado deve constituir um elemento de orientao fivelpara a aquisio de conhecimentos por parte dos alunos, afinal o seu objectivomais imediato.

    Na organizao deste vasto Programa, tendo em considerao que se trata dedisciplina semestral que inclui a Proto-Histria, houve critrios quedeterminaram a eleio de certas matrias e o tratamento mais superficial deoutras. Assim, por exemplo, no tocante aos mtodos de datao, embora sejadesejvel que o estudante saiba quais so os de aplicao mais usual emArqueologia e quais as limitaes de cada um deles, no seria possvel tratartodos com a profundidade requerida pela complexidade de alguns deles,remetidos para outras leituras. Da mesma forma, no sero tratados osmecanismos biolgicos da hominizao, embora se refiram os principais

    protagonistas de tal evoluo, em estreita correlao com a crecentecomplexidade dos produtos do seu gnio criativo. As razes so bvias:trata-se de matria de evidente complexidade, sobre a qual os prpriosespecialistas no renem muitas vezes consenso, a que acresce a rpida

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    evoluo dos conhecimentos produzidos. Da mesma forma, evitou-se otratamento terico das diversas correntes de pensamento e prticaarqueolgica (Arqueologia comportamental, experimental, processual,espacial, estruturalista, marxista, terica, etc.), embora a bibliografia geral

    refira diversos trabalhos recentemente produzidos em Portugal, susceptveisde serem lidos com proveito por estudantes mais interessados. Com efeito,no se cr vantajosa a discusso destas matrias numa disciplina geral dePr-Histria e Proto-Histria de Portugal, na qual seriam, forosamente,tratadas antes de os estudantes poderem, sequer, ter uma ideia do objecto dadiscusso, produzindo-se provavelmente, na maioria deles, escusadodesalento. Teve-se presente, em contrapartida, a necessidade de apresentaras matrias como o resultado de um longo processo de maturao, que, emPortugal, se iniciou em meados do sculo XIX, entrosando-se directamente

    na histria das ideias e das mentalidades: por isso se considerou necessrio odesenvolvimento, em pargrafo prprio, da histria das investigaespr-histricas em Portugal, das origens aos nossos dias (e no apenas at aoprincpio do sculo XX, como tem sido usual). importante que o estudantecompreenda a trajectria e vicissitudes das investigaes neste domnio, asquais explicam, em grande parte, a natureza dos conhecimentos actuais e asassimetrias, ainda verificadas, entre as diversas regies do Pas, no tocanteao conhecimento do seu passado pr-histrico.

    Nota importante: Os elementos sobre cronologia absoluta obtidos pelomtodo do radiocarbono, indicam-se em "anos BP" (BP = "Before Present")e em "anos a. C.", correspondendo, neste ltimo caso, a anos de calendrio,calculados depois da calibrao dos resultados, em "anos BP", recorrendo aqualquer uma das curvas de calibrao desenvolvidas desde a dcada de 1980.As datas, depois de calibradas, so expressas atravs de um intervalo deconfiana, o qual, na presente obra, se refere sempre a uma probabilidadeprxima de 95% (2 sigma); tal significa que a data real se deve encontrar,com a referida probabilidade, dentro daquele intervalo de confiana.

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    I. PARTE

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    Objectivos de aprendizagem e actividades sugeridas

    A I Parte constitui uma introduo matria tratada. nesse mbito que seintegra a histria breve das investigaes pr-histricas em Portugal. Importaque o estudante compreenda, numa perspectiva histrica, a emergncia daPr-Histria como disciplina cientfica, tanto escala europeia como emPortugal; que ela a resultante da aplicao de vrios saberes; e que para opr-historiador importa a recuperao de todos os testemunhos materiaissusceptveis de informarem sobre o passado humano de determinadacomunidade, ou conjunto de comunidades. Trata-se do conceito de "culturamaterial", baseado no registo artefactual, de incidncia geogrfica ecronolgica, incluindo o seu aproveitamento para a interpretao paleossocial,indissocivel de um determinado quadro geo-ambiental.

    De entre as actividadesque o estudante poder desenvolver, destaca-se aseguinte:

    - traar a biografia de um arquelogo portugus, inserindo-a no contextocientfico da poca, ou, em alternativa, narrar a histria da investigaoarqueolgica de uma determinada rea geogrfica precocementeinvestigada.

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    1. Antecedentes Histricos

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    lugar comum dizer-se que a Pr-Histria corresponde ao perodo da histriahumana antes da inveno da escrita. Isto significa que os seus documentosde estudo so aqueles que o grande arquivo da terra pe disposio dequem se disponha a explor-lo. Trata-se do arquelogo, que se ocupa,

    mediante a aplicao de mtodos adequados, da recuperao cientfica detais vestgios, correspondentes presena de comunidades humanas pretritas,entretanto conservados na terra.

    Assim sendo, facilmente se compreende que as balizas cronolgicas referentesao mais longo perodo da histria da Humanidade sejam dspares, consoantea rea geogrfica em causa: ainda hoje existiriam numerosas sociedades(bosqumanos, papuas, aborgenes australianos, esquims, etc.) com umaeconomia de caa/recoleco pura (correspondente na Europa ao Paleoltico

    e ao Mesoltico), no fossem os contactos entretanto havidos com os Europeuse a aculturao rpida e quase sempre desarmoniosa da resultante.

    Com a descoberta do Novo Mundo, a velha Europa teve os primeiros contactoscom populaes com costumes bem mais primitivos que os seus, o mesmose verificando com a frica negra. Dispondo de termos de comparaodirectos, observados e descritos pelos viajantes, comeou a despontar naselites europeia renascentistas a ideia da existncia de uma Humanidadeprimitiva, anterior poca Clssica, alis patente nos enigmticosmonumentos do Egipto faranico, j antigos no tempo dos Gregos. Emboraos sculos XVI e XVII correspondam ainda a uma poca de totaldesconhecimento da Pr-Histria, a redescoberta das civilizaes clssicaslevou leitura de autores como Lucrcio, que j indicava uma idade em quedepois da utilizao da pedra, se tinha descoberto o uso do bronze e, finalmenteo do ferro, para a confeco de armas e utenslios. tambm no sentido deatribuir uma alta antiguidade, por vezes sacralizada, aos instrumentos lticos,que autores romanos referem o uso de instrumentos de slex: Tito Lvio refereque, antes de combater, os Horcios procediam a um ritual onde o animal aimolar era retalhado por slices; e Herdoto menciona facas de slex, utilizadasnos embalsamamentos egpcios; a prpria Bblia menciona o uso de facas deslex utilizadas na prtica da circunciso. Neste mesmo sentido, comearamproduzir-se obras sobre as ento consideradas mais recuadas provas dahumanidade primitiva. o caso da Metallotheca Vaticana, da autoria deMercati (1541-1593), director do Jardim Botnico do Vaticano, escrita em1535 mas apenas impressa em 1717, na qual se apresenta pela primeira vezuma terminologia aplicada s indstrias lticas pr-histricas, baseada nasinformaes fornecidas pelas populaes primitivas actuais, que ainda asutilizavam no seu quotidiano; assim, o termo Ceraunea cuneatareferia-se

    aos machados de pedra e o de Ceraunea vulgatiss pontas de flecha. nessalinha de trabalho, que tambm se insere a obra do padre jesuta Lafitau (1724),um estudo comparativo entre os costumes dos ndios norte-americanos e os

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    1934). Ao que se saiba, a gravura setecentista corresponde primeirarepresentao da arte pr-histrica europeia; s isso, alm da sua belezaartstica, justificaria que fosse internacionalmente conhecida, como merece;o injustificado esquecimento explica-se, como em outros casos, pela perifrica

    posio de Portugal no mbito da circulao de ideias, desde o sculo XVIIat aos nossos dias, inviabilizando adequada divulgao de certas criaescientficas excepcionais, como o caso da obra em causa.

    Portugal dispunha, ento, de uma Academia Real dedicada aos estudoshistricos, a Academia Real da Histria Portuguesa, fundada em 8 deDezembro de 1720 por D. Joo V, uma das mais antigas da Europa no seugnero, com o objectivo de realizar "a Historia Ecclesiastica destes Reynos,e depois tudo o que pertencer a Historia delles, e de suas Conquistas". A

    Academia funcionou com grande pujana e actividade, vindo porm a suaactividade a decair, cessando as manifestaes publicas ao longo da segundametade so sculo XVIII, sem, no entanto, jamais se declarar oficialmenteextinta.

    Logo no ano seguinte ao da criao, a 17 de Agosto de 1721, publicado um"Alvara de Ley" que previa a obrigao de, tanto as entidades privadas comopblicas, com destaque para as Cmaras Municipais, promoverem a defesa esalvaguarda de bens patrimoniais mveis e imveis, desde que com interesse

    para a Histria ptria, incluindo os da antiguidade. Assim se determinava:... que daqui em diante nenhuma pessoa, de qualquer estado, qualidade, econdio que seja, desfaa, ou destra em todo, nem em parte, qualqueredificio, que mostre ser daquelles tempos, ainda que em parte estejaarruinado; e da mesma sorte as estatuas, marmores, e cippos, em queestiverem esculpidas algumas figuras, ou tiverem letreiros Phences,Gregos, Romanos, Goticos e Arabicos; ou laminas, ou chapas de qualquermetal, que contiverem os ditos letreiros, ou caracteres; como outro-simedalhas, ou modas, que mostrarem ser daquelles tempos, nem dos

    inferiores at o reynado do Senhor Rey D. Sebastia.Tais disposies, como evidente, no abrangiam os testemunhospr-histricos, ainda ento completamente desconhecidos como tal: a maiorantiguidade atribuda presena fencia. No documento "Reflexoens sobreo estudo Academico", datado de Lisboa de 18 de Dezembro de 1720,estabelecia-se que as matrias seriam divididas pelos acadmicos por ordemcronolgica, "escrevendo o primeiro as memorias da antiga Lusitania at aConquista dos Romanos ...". Com o objectivo de se recolherem informaesde todo o reino sobre as matrias do mbito acadmico, organizou-se um

    extenso questionrio, cujas respostas deveriam ser enviadas ao Secretrio daAcademia.

    Fig. 1

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    Os resultados que entretanto se obtiveram, no respeitante Pr-Histria, foramem parte objecto de uma memria, publicada em 1733, de Martinho deMendona de Pina e de Proena, sobre as antas, que atribuiu a altares. Noano seguinte, o Padre Afonso da Madre de Deus Guerreiro apresentou

    Academia um inventrio de 315 monumentos desse tipo, o qual infelizmentese perdeu.

    Logo no incio do sculo XIX despontou, com bases cientficas, a Geologia,cincia nova vocacionada para o estudo da Terra e para o conhecimento dascaractersticas e antiguidade dos seres vivos que a habitaram, com base nosvestgios conservados nos terrenos. Contudo, os prprios dados geolgicosobservados em diversos pases, tanto do Velho como do Novo Mundo,serviram, inicialmente, de argumento para rebater a a ideia de uma alta

    antiguidade da espcie humana. Os mais slidos considerandos nesse sentidoforam aduzidos por Cuvier, clebre paleontlogo francs, que demonstrouque os restos supostamente humanos (conforme julgava Scheuchzer) de umindivduo atingido pelo Dilvio Universal, encontrado no sculo XVIII noscalcrios mesosicos dos Alpes suos oHomo diluvii testis pertenciamna verdade a uma salamandra. Cuvier, que se notabilizou pelas reconstituiesanatmicas de espcies extintas h muitos milhes de anos, com base nassuas semelhanas anatmicas com animais vivos, lanando as bases daAnatomia Comparada, postulou que a evoluo da crosta terrestre fora pautada

    por curtos perodos de convulses generalizadas (a teoria catastrofista), muitoanteriores presena do Homem, visto que, de entre os milhares de restosobservados oriundos de camadas geolgicas anteriores s da poca actual,jamais reconheceu um que se pudesse atribuir espcie humana. Na sextaedio da sua obra mais conhecida, "Discours sur les rvolutions de la surfacedu Globe", editada ainda em vida do Autor, este taxativo a tal respeito(Cuvier, 1830, pp. 135, 136):

    Il est certain quon na pas encore trouv dos humains parmi les fossiles(...).Je dis que lon na jamais trouv dos humains parmi les fossiles, bienentendu parmi les fossiles proprement dits, ou, en dautres termes, dansles couches rgulires de la surface du globe; car dans les tourbires, dansles alluvions, comme dans les cimetires, on pourrait aussi bien dterrerdes os humains que des os de chevaux ou dautres espces vulgaires (...);mais dans les lits qui reclent les anciennes races, parmi ls palaeothriums,et mme parmi les lphants et les rhinocros, on na jamais dcouvert lemoindre ossement humain.

    Nestes termos, facilmente se compreende a polmica que estalou em Frana,onde a autoridade de Cuvier era indiscutvel, quando se pretendeu, pelaprimeira vez, comprovar a antiguidade da espcie humana, pela associaode produtos da sua actividade os artefactos talhados em slex com restos

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    de espcies extintas, nos depsitos aluviais do vale do Somme, perto deAbbeville, onde, por essa mesma poca, comearam a ser recolhidos emgrande quantidade. Com efeito, tais peas, ocorriam associadas a restos deespcies extintas precisamente elefantes e rinocerontes, entre outras,

    realidade que, poucos anos antes, fora negada por Cuvier primeiro porCasimir Picard, logo depois por Boucher de Perthes, que se pode considerarverdadeiramente o primeiro pr-historiador; este justo ttulo baseia-se na suamonumental obra, "Antiquits celtiques et antdiluviennes", publicada emParis, em trs volumes, entre 1847 e 1864.

    Face a estes resultados, a Academia das Cincias de Paris decidiu nomearuma comisso, a qual, no obstante as diligncias de Boucher de Perthes,nunca se deslocou ao terreno. O empenho deste no esmoreceu. Em 1859,

    uma delegao de gelogos ingleses visitou os locais em causa e, deimpugnadores, passam a defensores das descobertas; entre eles destaca-seCharles Lyell, que, depois de ter publicado os "Principles of Geology(1. Edio, 1833), que o celebrizou, deu estampa outra obra directamenteligada discusso da antiguidade do Homem, "The geological evidences ofthe antiquity of Man" (Londres, 1863). Ainda em 1859, Albert Gaudryapresentou Academia das Cincias de Paris uma comunicao em queadmitiu a coexistncia do Homem com espcies extintas, cujos restosapareciam associados; uma evidncia, para ns hoje incontroversa, arrastar-

    se-ia de modo inconclusivo por dcadas, nos meados do sculo XIX, tendosuscitado a mais viva das polmicas e ocupado os mais brilhantes especialistasde ento. Em Portugal, ainda no ltimo quartel do sculo XIX se publicava,com o patrocnio do clero conimbricense, obra que negava a simples existnciado Homem Pr-Histrico, bem como a das trs Idades, da Pedra, do Bronzee do Ferro, entretanto j claramente demonstradas (Azevedo, 1889).

    Como declarou Carlos Ribeiro (1873, p. 3), a propsito desta questo,

    Ainda em 1860 a Academia Real das Sciencias de Paris se assustou por tal

    frma com a nota que lhe apresentra o respeitavel paleontologista E. Lartetsobre a antiguidade geologica da especie humana, que se absteve de apublicar, e apenas consentiu que nos seus compte-rendus se fizesse menodo ttulo.

    Em 1863, um fragmento de mandbula humana que mais tarde se verificouser moderna foi encontrada em Moulin-Quignon, Abbeville. Quatrefagesconsiderou-a da mesma poca dos depsitos onde jazia. Ento, a situaoinverte-se: enquanto a comunidade cientfica francesa comeava a aceitar aautenticidade das descobertas de Boucher de Perthes, os sbios inglesesrecuaram. Falconer, antes defensor, escreveu uma carta ao jornal "The Times",declarando, em seu nome e no de outros que o tinham acompanhado em1859, que se tinha enganado. Este volte-face no era estranho polmica

    Fig. 2

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    que se instalara em Inglaterra naquele mesmo ano de 1859, aquando dapublicao da 1. Edio da clebre obra de Charles Darwin "On the Originof Species". A opinio pblica, em parte instigada pela Igreja Anglicana,constrangia a comunidade cientfica. E, no entanto, a realidade arqueolgica

    no se afigurava incompatvel com a tradio bblica, no concernente aoDilvio Universal. Como bem assinalou M. Farinha dos Santos (Santos, 1980,p. 254),

    O Dilvio existiu, reflectindo, na memria colectiva, um grandeacontecimento natural que ocorreu h milnios, a ltima glaciao e suasesmagadoras consequncias (...).

    Modernas investigaes, conduzidas nas dcadas de 1980 e de 1990,mostraram que, entre 13 000 e 11 000 anos antes do presente, o nvel marinho

    na costa portuguesa, subiu cerca de 60 m, alagando bruscamente vastosterritrios, ento ocupados por bandos de caadores-recolectores doPaleoltico Superior. fcil imaginar os profundos impactes que o fenmenoinduziu na vivncia das populaes, obrigadas a alterar drasticamente, e emcurto espao de tempo, o seu quotidiano e bases de subsistncia. O mesmoter ocorrido mais tarde, logo no incio do perodo ps-glacirio, queinaugurou nova poca geolgica, o Holocnico: cerca de 10 000 anos atrs,o contnuo aquecimento climtico provocou nova subida do nvel do mar, decerca de 40 m em apenas 2000 anos, o qual, h cerca de 8000 anos, atingia a

    batimtrica -20 m (Dias, 1987; Dias et al., 1997), induzindo novasperturbaes na vida das populaes ribeirinhas, as quais se tero conservadona memria colectiva de algumas comunidades mais atingidas do orientemediterrneo, dando origem ao mito diluviano.

    No se esquea, por outro lado, que as preocupaes de concatenar osprogressos cientficos com os dogmas da Igreja preocupou desde o incio dosculo XIX vrios sbios, e no apenas os telogos. De entre os Portuguesesdaquela poca que se interessaram pela discusso de to sensvel assunto,

    merece referncia especial o Marechal-Duque de Saldanha, que, na sua obra"Concordancia das Sciencias Naturaes e principalmente da geologia com oGenesis, publicada sucessivamente em Viena de Austria (1845) e em Roma(1863), declarou (Saldanha, 1845, p. 48):

    Mas a possibilidade de serem as regioens que o homem habitavasubmergidas no uma idea nova de Cuvier, no uma supposio gratuita;porque, se a sciencia prova evidentemente que muitas das regioens que oshomens hoje habitam j foram mares, que os mares occupam agora terrenosque j foram habitados pelos homens um facto provado pelas palavras de

    Moises, que clara e positivamente assim affirma no v. 3 c. 14 do Genesis:"Todos estes Reis se ajuntram no Valle das Arvores, aonde agora o MarSalgado".

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    Nesta obra, o autor admitiu, portanto, a existncia de uma Humanidadeantediluviana, alis suportada pelo texto sagrado.

    Compreende-se, pois, a importncia do achado da mandbula de

    Moulin-Quignon, que, imediatamente, deu origem constituio de umacomisso paritria anglo-francesa para avaliar a sua pretensa antiguidade.Em Maio, os seus membros reuniram-se no Musum National dHistoireNaturelle de Paris; sem que se tivesse chegado a acordo, resolveram deslocar-se ao local da descoberta. As dvidas ento desvaneceram-se, como constado acrdo final, redigido por Milne-Edwards (Cardoso, 1993). Eis comoum erro cientfico pode, em certas circunstncias, ser benfico para oprogresso dos conhecimentos, j que a creditao do achado incentivou outrasinvestigaes.

    Data tambm dessa poca a afirmao da Arqueologia nos Pases Nrdicos,onde os testemunhos de vrias pocas se conservaram excelentemente nasturfeiras, exibindo caractersticas prprias, sem influncias das culturasclssicas, uma vez que ali jamais chegaram Gregos ou Romanos. Foi, noentanto, no Norte Escandinavo, que o texto de Lucrcio, sobre a existnciadas trs idades sucessivas na marcha da Humanidade: da Pedra; do Bronze;e do Ferro foi, pela primeira vez, cabalmente confirmado por Thomsen (1848)e estas depois subdivididas por Worsaae, tornando evidentes a qualidade e o

    avano da arqueologia nrdica.Por todo o lado, os nacionalismos encontravam-se ento em plena afirmao.No espanta que as descobertas arqueolgicas tambm fossem utilizadaspara os justificar, legitimando prioridades ou diferenas, sem esquecer queos primrdios da Humanidade a todos dizia respeito, sendo, assim, umcontributo que todas as naes cultas deviam prestar para viverem emcomunho com as restantes (Ribeiro, 1873, p. 91).

    Era este o esprito que animava, tambm em Portugal, os pioneiros da Segunda

    Comisso Geolgica, desde o momento da sua criao, em 1857. Noignoravam os progressos produzidos na Arqueologia alm-fronteiras: disso prova a abundante correspondncia de mbito arqueolgico trocada comos seus pares (Cardoso & Melo, 2001) e, ainda, a abundncia de citaes quepontua as suas obras, resultado de leituras que denotam a actualizao dosseus conhecimentos.

    Deste modo, os trabalhos de Carlos Ribeiro (1813-1882), Pereira da Costa(1809-1889) e Nery Delgado (1835-1908) vieram provar que, tambm emPortugal, semelhana de outros pases europeus onde os estudos pr-histricos tinham comeado h mais tempo e se encontravam maisdesenvolvidos, era possvel alcanar o conhecimento de um passado humanomuito para alm dos documentos escritos, ou da tradio oral, apoiado nos

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    testemunhos materiais que nos chegaram, os quais eram ento pela primeiravez retirados dos vastos arquivos das grutas e dos terrenos onde jaziam, einterpretados com base, respectivamente, nos mtodos estratigrfico etipolgico, afinal os mesmos que, hoje ainda, presidem s modernas

    escavaes arqueolgicas. Cabe, porm, a Nery Delgado, a autoria, em 1865,da primeira escavao arqueolgica em uma gruta ocupada pelo homempr-histrico, onde os testemunhos paleontolgicos de espcies extintasaparentemente coexistiam com os arqueolgicos. O rigor cientfico seguidopor Nery Delgado, tanto na escavao da gruta da Casa da Moura (bidos)como na vizinha gruta da Furninha (Peniche), em 1880, deram origem amonografias, decorrentes de tcnicas de escavao, que, ainda hoje, se podemconsiderar modelares. Tal concluso com efeito apoiada pela forma comoas peas se encontram individualmente etiquetadas, com meno das

    respectivas camadas e profundidades de colheita, sendo ainda visveis outrasindicaes, no caso da gruta da Casa da Moura, que mostram ter sido oespao escavado previamente dividido por quadrcula, em relao qual foramreferenciadas as peas encontradas. O ttulo da monografia arqueolgicapublicada apenas dois anos volvidos (Delgado, 1867), desde logo evidenciaa principal preocupao do autor, alis em sintonia com uma das questescientficas mais candentes, a que j se fez referncia: a demonstrao cientficada antiguidade da espcie humana. O prprio ttulo: "Da existencia do Homemno nosso solo em tempos mui remotos provada pelo estudo das cavernas

    primeiro opusculo. Noticia acerca das grutas da Cesareda" bem expressivode tal preocupao, em total sintonia com o esprito dos seus colegas que,por toda a Europa, procuravam coligir provas daquela antiguidade. Nestaobra, notrio o cuidado dispensado prpria explorao, decapando osdepsitos camada por camada, prtica a que no era estranha a sua formaogeolgica, como acontecia com a maioria dos pr-historiadores europeus dasua poca:

    Levantando o entulho, uma camada aps outra, fcil nos foi recolher todos

    estes objectos, sabendo-se sempre a altura a que tinham sido achados numou noutro ponto da gruta. (DELGADO, 1867, p. 46).

    Caso esta publicao tivesse atingido um pblico mais alargado, talvez oclebre morfotipo humano moderno, designado por "Cro-Magnon", fosseconhecido por designao portuguesa (Zilho, 1993), dada a hiptese deuma calote craniana humana poder provir do depsito inferior e, deste modo,ser do Paleoltico Superior (Nery Delgado d-o como oriundo da parte maisprofunda do entulho remexido mas j de poca neoltica). Apesar de tudo, etendo presentes as reservas quanto sua verdadeira antiguidade, j na poca

    fora dado o merecido realce a esta pea. o caso de W. Boyd Dawkins que,na sua bem conhecia obra, "Cave Hunting, researches on the evidence ofcaves respecting the early inhabitants of Europe", publicada em Inglaterra

    Fig. 4

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    em 1874, apresenta uma desenvolvida referncia no s a esta descoberta,mas aos trabalhos efectuados na gruta e principais resultados publicados.

    A importncia internacional granjeada ao tempo pelas investigaes

    arqueolgicas desenvolvidas pela Segunda Comisso Geolgica de Portugalencontra-se bem evidenciada pela j aludida correspondncia trocada entreos seus dirigentes, a qual se estendia, frequentemente, troca de espcimesarqueolgicos entre as diversas instituies. essa prtica, ento comum,que justifica o envio a John Evans, eminente arquelogo ingls, de umacoleco de objectos pr-histricos portugueses (Cardoso & Melo, 2000,carta n. 8), entre os quais alguns da Casa da Moura. Essas peas ainda hojese encontram expostas, no Ashmolean Museum, Cambridge.

    Anteriormente, no ano de 1863, efectuaram-se as primeiras escavaesarqueolgicas nos concheiros mesolticos ribeiras de Magos e de Muge(concelho de Salvaterra de Magos), afluentes da margem esquerda do rioTejo, por iniciativa de Carlos Ribeiro, seu descobridor, cujos resultados forampublicados por F. Pereira da Costa (Costa, 1865). De igual forma, o ttulogeral da publicao, "Da existencia do Homem em epochas remotas no valledo Tejo primeiro opusculo. Noticia sobre os esqueletos humanos descobertosno Cabeo da Arruda", evidencia a preocupao da demonstrao daantiguidade do povoamento do territrio hoje portugus. Pereira da Costa

    denota pleno domnio do objecto do seu estudo, mostrando-se completamenteinformado dos progressos efectuados alm fronteiras neste tipo de depsitos,confirmando a alta valia cientfica do seu trabalho, que um diferendo comCarlos Ribeiro, seguido da extino da Segunda Comisso Geolgica, cujadireco com aquele partilhava (em 1868), viria a pr termo, apesar de sfalecer vinte anos depois (1889). A monografia dedicada ao concheiromesoltico do Cabeo da Arruda, corresponde, pois, primeira obra de carctercientfico relativa a uma estao pr-histrica portuguesa (1865).

    Volvidos trs anos (1868), F. Pereira da Costa apresentou sob o ttulo genrico

    "Noes sobre o estado prehistorico da Terra e do Homem" igualmenteesclarecedor quanto s preocupaes ltimas a atingir a obra "Descripode alguns dolmins ou antas de Portugal". Assim se inauguravam os estudossobre o Neoltico em Portugal, com continuidade nas monografiasapresentadas por Carlos Ribeiro Academia Real das Sciencias de Lisboaem 1878 sobre o povoado pr-histrico de Leceia (Oeiras) e, em 1880, sobreos monumentos megalticos da regio de Belas (Monte Abro e Pedra dosMouros, a gruta artificial de Folha das Barradas e a tholosdo Monge (ambosno concelho de Sintra).

    Plenamente comprovada na Europa a antiguidade quaternria (ouantediluviana) da espcie humana na dcada de 1860, importava ir aindamais longe na busca das origens. nessa preocupao, comum a

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    investigadores diversos da Europa Ocidental, que se devem inscrever asinvestigaes de Carlos Ribeiro sobre o "Homem tercirio portugus". Comefeito, Carlos Ribeiro contava-se entre os poucos pr-historiadores de entoque tinham contribudo, com achados efectivos, para a discusso do Homem

    Tercirio, instalada na Europa da segunda metade do sculo XIX. Remontama 1866 as primeiras publicaes de peas lticas supostamente talhadas os"Elitos" num primeiro opsculo sobre a geologia das bacias sedimentaresdo Tejo e do Sado; tendo em vista os conhecimentos de ento, os respectivosdepsitos foram dados por quaternrios. Em 1871, Carlos Ribeiroreconsiderou a incluso no Quaternrio destes depsitos, apesar das peassupostamente talhadas neles encontradas, dos quais os mais relevantes sedesenvolviam na regio de Ota, na margem direita da bacia do Tejo. A anliseestratigrfica, com base em critrios estritamente geolgicos, conduziu-o a

    inclu-los no Tercirio, sendo, consequentemente, terciria, a poca dospretensos artefactos (Ribeiro, 1871). Tal foi a relevncia cientfica dada aosmesmos, que, no ano seguinte (1872), uma seleco dos melhores foiapresentada por Carlos Ribeiro na Sexta Sesso do Congresso Internacionalde Antropologia e de Arqueologia Pr-Histricas, reunida em Bruxelas. Osresultados foram, no entanto, recebidos globalmente com cepticismo,levantando-se dvidas, ou sobre a autenticidade das peas apresentadas,cumulativamente, sobre a idade dos prprios terrenos que, para algunscongressistas, poderiam ser mais recentes do que julgava Carlos Ribeiro. O

    esclarecimento desta questo motivou outra interveno, tambm publicadanas respectivas Actas (Ribeiro, 1873, a, b). No desanimou, porm, o nossogelogo. Por ocasio da Exposio Internacional de Paris, de 1878, CarlosRibeiro levou consigo 98 exemplares que ento ali foram expostos. Desteconjunto, Gabriel de Mortillet, separou vinte e dois, nos quais admitiuvestgios irrefutveis de trabalho humano, chegando mesmo a reproduzirseis deles em 1879 e, depois, em 1885, no seu manual, de larga difusointernacional, "Le Prhistorique" (Mortillet, 1885, p. 99, nota 1). Tambmem 1885, E. Cartailhac publicou oito de tais exemplares e, mais tarde, trs

    (Cartailhac, 1886, Fig. 6-11). Comeava, pois, a dar frutos, a persistncia deCarlos Ribeiro: era o prprio que, a tal respeito, declarava, em 1871, oseguinte:

    A indifferena, e mais ainda a opposio que, no animo da maior parte daspessoas dedicadas ao estudo des sciencias e de litteratura, encontraram asdescobertas relativas ao homem primitivo ou ante-diluviano, tiveramdiversas causas entre as quais podemos mencionar: a duvida que semanifesta sempre em receber factos e descobertas novas, quando se noharmonizam ou esto em desaccordo com as idas geralmente recebidas;os preconceitos e o fanatismo cego que muitos homens teem pelas theorias,preferindo antes morrer abraados a ellas do que prestar homenagem evidencia dos factos e verdade; e por fim a pouca vontade do maiornumero em trocar os gozos e confortos domesticos pelos incommodos

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    inevitaveis das viagens e exploraes, quando teem um fim puramentescientifico (Ribeiro, 1871, p. 33).

    A predisposio da comunidade cientfica para a discusso mais

    pormenorizada desta questo tinha sido, no entanto, conseguida. Estavam,assim, reunidas as condies para se efectivar em Lisboa, em 1880, a NonaSesso do Congresso Internacional de Arqueologia e de AntropologiaPr-Histricas. sesso de abertura, compareceram as altas individualidadesda vida do Pas, a comear pelo rei D. Lus, protector do Congresso e pelorei D. Fernando, seu Presidente de Honra. O tema principal era a observaodetalhada dos materiais recolhidos e a visita ao local dos achados. Dos 393congressistas inscritos, estiveram presentes 156, sendo estrangeiros 47 %dos que compareceram, representando 12 dos 18 pases a que pertenciam na

    globalidade (Gonalves, 1980).Mesmo em obras de divulgao, ecoou a importncia da reunio: OliveiraMartins incluiu logo na 2. Edio dos "Elementos de Anthropologia"numerosos extractos das comunicaes apresentadas, e o impacto no seio dapopulao foi efectivo: basta recordar os numerosos apontamentos de RaphaelBordallo Pinheiro, constituindo verdadeira reportagem caricaturada dosprincipais intervenientes, nas pginas de "O Antnio Maria", de 23 e de 30de Setembro, portanto sobre o prprio acontecimento. Carlos Ribeiro tratadocom admirao: "...o nome deste forte e honrado trabalhador ficar gloriosa-

    mente ligado para todo o sempre a um dos mais importantes factos da scienciaeuropeia neste seculo", enquanto o Arq. Possidonio da Silva, o fundador ePresidente da Real Associao dos Archeologos Portuguezes, sediada nasrunas do antigo Convento do Carmo, displiscentemente apresentado como"o organizador de um basar de prendas velhas no museu archeologico ...".Assim, jocosamente, se traava a diferena entre os arquelogos comformao cientfica que se dedicavam aos estudos da Pr-Histria, no mbitodo Positivismo da poca, e os antiqurios, herdeiros dos seus homlogos dosculo XVI, dados s mais eruditas especulaes estticas, em torno da beleza

    artstica de alguns dos testemunhos do passado que chegaram at ns, noquadro do movimento Romntico.

    A 21 de Setembro de 1880, Carlos Ribeiro apresentou a comunicao"LHomme tertiaire en Portugal" (Ribeiro, 1884), a nica a que o ReiD. Lus assistiu. No final, foi constituda uma comisso, a qual reuniu, apsa excurso regio de Ota, realizada no dia seguinte. Nela, j no participouCarlos Ribeiro, devido doena de que viria a falecer dois anos depois. Foiento recolhida uma lasca de slex, considerada inquestionavelmente talhada,

    retirada do interior do depsito conglomertico, para alm de muitas outras,que jaziam superfcie.

    Fig. 7

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    Reunida a Comisso, o resultado saldou-se a desfavor da intencionalidadedo talhar das peas consideradas como recolhidas in situ e portanto dalegitimidade do "Homem tercirio portugus", por seis votos contra cinco.Virchow, o eminente professor de Antropologia da Universidade de Berlim e

    declarado opositor da autenticidade das descobertas, na qualidade depresidente da Comisso, encerrou o memorvel debate pormenorizadamentetranscrito por P. Choffat (Choffat, 1884) nos seguintes termos (p. 118):

    Personne ne demandant la parole, la sance va tre leve. Ce nest par unemthode scientifique que de trancher les questions a la majorit des votants.Il faut donc remettre la dcision un autre Congrs.

    Declarado defensor do Homem tercirio portugus, Gabriel de Mortillet,autor da obra de larga divulgao "Le Prhistorique", levou tal convico aoextremo de baptizar o autor destes supostos artefactos (os elitos), com onome cientfico de Anthropopithecus ribeiroi (Mortillet, 1885, p. 105),convico ainda mantida em 1905 pelo prprio, na edio mais recente dareferida obra.

    O nome arrevezado desta latinizao forada no passou despercebido aohumor cido de Camilo Castello-Branco, num livrinho intitulado "O GeneralCarlos Ribeiro recordaes da mocidade" (Castello-Branco, 1884).

    A questo do Homem tercirio portugus, no que a Portugal diz respeito, sfoi cabalmente resolvida em 1942, por H. Breuil e G. Zbyszewski, tomandocomo ponto essencial de referncia uma observao de Nery Delgado que,ulteriormente procedeu a escavaes na Ota, com o objectivo de recolherpeas in situ, nos depsitos tercirios assinalados por Carlos Ribeiro, massem que lhe tivesse sido possvel recolher uma nica em tais circunstncias(Delgado, 1900/1901). Trata-se de um exemplar de slex, recolhido superfcie e indubitavelmente talhado, apresentando uma forte concreoferruginosa aderente, inexistente nos exemplares oriundos do interior dos

    depsitos tercirios. Assim sendo, Breuil e Zbyszewski admitiram aexistncia, na Ota, de dois conjuntos: um, constitudo por elitos desprovidosde trabalho humano, em regra com arestas boleadas, recolhidos in situ; outro,que integrava peas semelhantes e ainda exemplares com arestas vivas,inquestionavelmente trabalhados, de diversas pocas, por vezes comconcrees ferruginosas aderentes. Esta caracterstica indicava que provinhamde coberturas detrticas mais modernas, de poca quaternria, constitudaspor arenitos ferruginosos, entretanto quase totalmente desmantelados pelaeroso (Breuil & Zbyszewski, 1942). Foi num retalho destes depsitos, por

    certo, que um dos congressistas de 1880 recolheu a lasca de slex que tantasensao tinha causado. Compreendem-se, assim, as dificuldades sentidaspor Carlos Ribeiro, com os rudimentares conhecimentos geolgicos da poca,em diferenciar os dois depsitos sedimentares sobrepostos, tanto mais que o

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    mais moderno apenas se encontraria pontualmente conservado. Assim, oilustre pioneiro da pr-histria portuguesa recolheu, entre muitos elitosnaturais, outras peas efectivamente trabalhadas, s que oriundas de camadassedimentares mais modernas, j quaternrias. Assim se esclareceu

    definitivamente uma questo que apaixonou investigadores e se manteve poresclarecer por mais de sessenta anos. O progresso cientfico no se faz apenascom sucessos: h erros, como o do Homem tercirio, que resultaram, comoatrs se disse, mais do que muitas descobertas retumbantes, em benefcio daprpria cincia. A questo em causa, alm de ter chamado a atenointernacional para a investigao que ento se desenvolvia em Portugal narea da Pr-Histria, teve, internamante, a vantagem de despertar a opiniopblica, criando condies para que outros, trabalhando em diversas regiesdo Pas, pudessem desenvolver as suas prprias investigaes.

    Uma das mais importantes consequncias, no plano cientfico, da clebrereunio de Lisboa, foi a criao da Cadeira de Antropologia, PaleontologiaHumana e Arqueologia Pr-Histrica, em 1885, na Universidade de Coimbra:era, na verdade, a sntese programtica da prpria actuao da SegundaCommisso Geologica 1857. Foi seu primeiro "lente proprietrio" BernardinoMachado, a quem se deve, enquanto Ministro, a fundao, em 1893, doMuseu Ethnologico Portuguez, o actual Museu Nacional de Arqueologia,sob a direco de Jos Leite de Vasconcellos.

    Com efeito, a dcada de 1880 foi frtil na afirmao da arqueologiapr-histrica em Portugal, devido ao prestgio resultante da referida reuniocientfica para os arquelogos portugueses.

    assim que, em parte, se explica a notvel actividade de Antnio dos SantosRocha (1853-1910), o qual, na rea de Pr-Histria, procedeu identificaoe escavao de diversos monumentos megalticos e estaes de carcterhabitacional da regio da Figueira da Foz, publicados em belas monografiasentre 1888 e 1900. O seu labor no domnio estrito da Pr-Histria pois que

    se estendeu tambm a outras pocas, com importncia igual ou superior desenvolveu-se, tambm, no Algarve: aqui, notabilizou-se pela exploraode diversas necrpoles pr-histricas, umas calcolticas, como o caso doconjunto de tholoide Monte Velho, Portimo, ou j da Idade do Bronze, deque exemplo a necrpole de cistas do Vidigal, Monchique, ambas publicadaspostumamante, em 1911. Instituidor de uma sociedade cientfica que adoptouo seu nome a "Sociedade Archeologica Santos Rocha", com sede na Figueirada Foz a esta se deve a edio de um Boletim, onde se publicaram numerosasreferncias a achados ou monumentos pr-histricos ou, at, trabalhos

    monogrficos de maior vulto, como os relativos a algumas das sepulturascolectivas do tipo tholosde Alcalar, Portimo (Rocha, 1901) e da Quinta doAnjo, Palmela (Cruz, 1906), com base nas exploraes efectuadas por

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    iniciativa de Carlos Ribeiro, pelo colector da Comisso Geolgica AntnioMendes.

    No Algarve, entretanto, tinha-se destacado aquele que pode considerar-se

    como o primeiro arquelogo profissional portugus, j que, por vrios anos,foi pago pelo Governo para proceder ao levantamento arqueolgico daquelaProvncia, projecto que, infelizmente, no teve o necessrio e merecidoseguimento: trata-se de S. P. M. Estcio da Veiga (1828-1891). Em sua vida,vieram a lume quatro volumes das "Antiguidades Monumentaes do Algarve",entre 1886 e 1891, relativos apenas aos tempos pr-histricos, mas que bemevidenciam a actualizao dos conhecimentos cientficos do autor e o seutalento. No Minho, regista-se F. Martins Sarmento, embora a sua actividadeno mbito da Pr-Histria tenha sido pouco relevante.

    A importncia e relevncia que foram concedidas alm fronteiras,especialmente depois do Congresso de 1880, s descobertas pr-histricasefectuadas em Portugal, justificou a incumbncia que o Governo Francsatribuiu a um dos congressistas que mais se distinguiu nos debates, E.Cartailhac, para redigir uma sntese sobre a pr-histria peninsular, a qualveio a ser publicada em Paris, sob o ttulo "Les ges prhistoriques delEspagne et du Portugal" (Cartailhac, 1886).

    Por essa poca, despontava para a Arqueologia, em Lisboa, Jos Leite de

    Vasconcellos (1858-1941), que, desde 1886, desempenhava as funes deConservador da Biblioteca Nacional. Fundador e primeiro Director do "MuseuEthnologico Portuguez", em 1893, este foi instalado no ano seguinte emdependncia da Comisso Geolgica, como complemento da galeria deAntropologia e de Arqueologia Pr-Histrica, transferindo-se depois para asinstalaes que ainda hoje ocupa, no Mosteiro dos Jernimos, em Belm(Lisboa). A funo desta instituio era a de promover, por todo o Pas, arecolha (e ulterior exposio) dos elementos susceptveis de retratar o PovoPortugus, desde as suas origens. Projecto de carcter eminentemente

    nacionalista de acordo, alis, com a poca que se vivia a pujante actividadeno domnio da Pr-Histria ali desenvolvida pelo seu criador e principaiscolaboradores de que justo destacar, entre outros, Verglio Correia e FlixAlves Pereira encontra-se expressivamente documentada no rgo doMuseu, "O Archeologo Portuguez", fundado em 1895. Criando uma redeespalhada por todo o territrio nacional de correspondentes, de que exemplo,entre outros, A. I. Marques da Costa, que desenvolveu importantes estudosde ndole pr-histrica na regio de Setbal, (como a reescavao das notveisgrutas artificiais da Quinta do Anjo ou a explorao dos povoados pr-

    histricos vizinhos da Rotura (tambm j referenciado por Carlos Ribeiro) ede Chibanes (Palmela), Leite de Vasconcellos viabilizou a publicao denumerosos contributos relativos a estaes ou achados pr-histricos, um

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    pouco de todo o lado, constituindo ainda hoje aquela revista um repositrioinformativo de consulta indispensvel. Boa parte da investigao assimdesenvolvida, encontra-se compilada no volume I das "Religies daLusitania", da autoria de Leite de Vasconcellos, publicado em 1897, no por

    acaso no mbito das comemoraes da chegada de Vasco da Gama ndia.Trata-se de notvel contributo para o conhecimento da religiosidade dohomem pr-histrico, a partir dos respectivos testemunhos, conservados emterritrio portugus.

    O objectivo de valorizar a identidade nacional, atravs do estudo das tradiespopulares e das razes mesmo as mais profundas do povo portugus,remontando Pr-Histria, tinha, pela mesma altura, idntica expresso noPorto, atravs do grupo da "Portugalia", revista editada por Ricardo Severo e

    Rocha Peixoto, a qual, entre 1899 e 1908 inseriu diversos artigos dedicados pr-histria, como o importante estudo sobre as grutas de Alcobaa, de M.Vieira Natividade.

    Porm, na segunda dcada do sculo XX as actividades esmoreceram, aindaque tivesse despontado no Porto, pela via da Antropologia Fsica, um novoalento no mbito dos estudos pr-histricos: com efeito, em 1918, fundou-sea Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, na esteira imediata dolegado dos homens da "Portugalia", animada sobretudo por A. A. Mendes

    Corra (1888-1960). Nas dcadas seguintes, este Professor da Faculdade deCincias, a par de diversos colaboradores, como J. R. dos Santos Jnior eR. de Serpa Pinto, desenvolveram importantes trabalhos de investigaopr-histrica, centrados na regio a norte do Douro (Minho, Douro Litoral erea transmontana), bem como nos concheiros de Muge, que voltaram, nadcada de 1930, a ser de novo explorados (designadamente, o concheiro doCabeo da Amoreira). Esta iniciativa encontrava-se estreitamente ligada demonstrao cabal, atravs da recolha de mais e melhores materiais humanos,da famosa teoria de Mendes Corra, consubstanciada na existncia de umtipo de caractersticas australides, supostamente originrio do continenteafricano, o Homo afer taganus. Com efeito, esta hiptese era apoiada napoca por eminentes arquelogos, como H. Obermaier e P. Bosch-Gimpera,que admitiam ter sido o estreito de Gibraltar transposto no decurso deMesoltico por populaes do norte de frica.

    A intensa actividade de Mendes Corra, durante as dcadas de 1920 a 1940,teve o seu contraponto em Manuel Heleno (1894-1970) sucessor de Leite deVasconcellos frente do Museu Etnolgico desde 1929 e na ctedra deArqueologia da Faculdade de Letras de Lisboa desde 1933. As investigaes

    que efectuou nas dcadas de 1930, 1940 e 1950, valeram-lhe uma acumulaode elementos informativos que, infelizmente, jamais chegou a publicar comodevia. De entre as suas descobertas maiores, so de referir as seguintes: na

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    dcada de 1930, no Alto Alentejo, especialmente nos concelhos deMontemor-o-Novo de Estremoz e de Coruche, veio a escavar cerca detrezentos monumentos megalticos, cujos resultados cientficos apoiaram ateoria, arrojada para a poca, dominada por doutrinas difusionistas, de uma

    origem e evoluo locais do fenmeno megaltico, demonstrada tanto a nveldos esplios como das correspondentes arquitecturas funerrias; depois, naregio de Rio Maior, explorou e escavou vasto conjunto de estaes que lheproporcionaram uma sequncia contnua, pela primeira vez obtida, de todo oPaleoltico Superior, incluindo o Epipaleoltico. Tais indstrias revelavamntida filiao nas suas homlogas europeias, o que lhe pemitiu afastarcabalmente a hiptese das pretensas influncias norte-africanas, pelo querespeitava quelas pocas; enfim, na dcada de 1950, encetou extensasescavaes nos importantes concheiros do vale do Sado, descobertos na

    dcada de 1930 por Lereno Antunes Barradas. Uma curta sntese, publicadaem 1956, d ideia da vastido das suas exploraes de campo e do valorincalculvel dos elementos assim coligidos (Heleno, 1956). Natural opositorde Mendes Corra, at pela diferena de temperamentos, de formaocientfica e de origem um, no Porto; o outro, em Lisboa tambm ManuelHeleno procurou desenvolver as suas actividades com colaboradores quecongregou no Instituto Portugus de Arqueologia, Histria e Etnografia, que,desde 1935, mas sem periodicidade, editou a revista "Ethnos" (o ltimovolume publicou-se em 1979).

    Na verdade, as associaes cientficas que, em Portugal, se constituiram desdea segunda metade do sculo XIX, pouca pujana demonstraram, no mbitodas investigaes pr-histricas, situao que persistiu no decurso dasprimeiras dcadas do sculo seguinte. Apenas a Associao dos ArquelogosPortugueses, merc da actividade de escassos pr-historiadores, com destaquepara Joaquim Fontes, Eugnio Jalhay e Afonso do Pao, se afirmava em taldomnio: entre muitos outros trabalhos de merecimento, destaca-se aescavao do notvel povoado de Vila Nova de So Pedro (Azambuja),

    descoberto por Hiplito da Costa Cabao, cujo incio se verificou em 1937 ese prolongou ininterruptamente pelos vinte anos e cinco seguintes.

    Ao mesmo tempo, raros investigadores desenvolviam trabalho prprio, quasesempre desacompanhados e com falta de meios. Tambm neste campo aactuao de Mendes Corra foi relevante: merc da criao do Centro deEstudos de Etnologia Peninsular, unidade de investigao do Instituto deAlta Cultura anexo Faculdade de Cincias do Porto, conseguiu reunir ascondies necessrias para o apoio, tanto institucional, como material, demuitos arquelogos, que deles necessitavam: foi o caso, entre outros, deJ. Camarate Frana e de E. da Cunha Serro (que desenvolveu em colaboraocom E. P. Vicente, meritrios trabalhos de campo nos povoados da Parede

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    de Cincias de Paris), sendo o primeiro portugus a doutorar-se com umtema de Pr-Histria: "La Culture du Vase Campaniforme au Portugal".

    Datam ainda da dcada de 1950 e de incios da seguinte as escavaes que

    efectuou em colaborao com Georg Leisner e Vera Leisner (antas deMontargil) e, mais tarde, apenas com esta ltima (monumento da Praia dasMas, Sintra). Aquele casal de arquelogos alemes, de h muito emPortugal, merc das sua notvel obra "Die Megalithgrber der IberischenHalbinsel", parte dela apenas publicada por V. Leisner ou j a ttulo pstumo(Leisner & Leisner, 1943, 1956, 1959; Leisner, 1965, 1998) tinha-senotabilizado pelo estudo exaustivo de monumentos megalticos e respectivosesplios do Sul e Oeste da Pennsula Ibrica.

    Mais tarde, merc de novas colaboraes, que passou a animar e a orientar,com G. Zbyszewski, nos Servios Geolgicos de Portugal (aquela que foipor outros designada "Escola dos Servios Geolgicos"), O. da Veiga Ferreirateve ensejo, j na dcada de 1970, de escavar diversas estaes neolticas ecalcolticas, de grande relevo para a Pr-Histria portuguesa. Nesses trabalhos,no se poupava a esforos, nem limitava o nmero daqueles que com elecolaboravam. assim que se compreendem os estudos no domnio daPr-Histria, que desenvolveu com Fernando de Almeida, Catedrtico daFaculdade de Letras da Universidade de Lisboa, que se viria a dedicar,

    sobretudo, Arqueologia Clssica (data de 1962 o seu doutoramento, comuma dissertao sobre a arte visigtica em Portugal), e com Manuel Farinhados Santos (1923-2001), Assistente de Pr-Histria no mesmoestabelecimento de ensino entre 1959 a 1968.

    A actuao de Farinha dos Santos como docente universitrio pautou-sesempre pela sua preocupao em conferir aos alunos um ensinoeminentemente prtico, pois s assim sabia ser possvel formar profissionaiscompetentes e empenhados. Privilegiou, deste modo, as aulas no MuseuNacional de Arqueologia (ento anexo Faculdade de Letras de Lisboa),

    dando oportunidade aos alunos de manusearem materiais arqueolgicos,ao mesmo tempo que os incentivava a acompanh-lo, a si ou a outrosarquelogos, em trabalhos de campo.

    Com efeito, a disciplina de Pr-Histria, tornada obrigatria para os alunosda licenciatura em Histria, inaugurada naquela Faculdade no ano lectivo de1960/1961, foi entregue, desde o incio, quele arquelogo, mantendo-se ade Arqueologia, de h muito existente, sob a regncia de Manuel Heleno. Talcriao afigurou-se, ento, um passo indispensvel, e irreversvel, para

    definitivamente institucionalizar a Pr-Histria no mbito dos estudossuperiores em Portugal, retirando-a de uma certa marginalidade, que oamadorismo, com que era at ento geralmente praticada, favorecia.

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    Defensor e praticante da multidisciplinaridade na investigao emPr-Histria, Farinha dos Santos foi professor de muitos dos que, tendo sidoseus alunos na dcada de 1960 na Faculdade de Letras, actualmente detmimportantes responsabilidades no domnio da investigao arqueolgica (e,

    em particular, da Pr-Histria), em Portugal.

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    Objectivos de aprendizagem e actividades sugeridas

    A II Parte refere-se s comunidades de caadores-recolectores que ocuparamo nosso territrio desde as origens ainda de cronologia incerta e polmica at ao final do Mesoltico. Trata-se de evoluo muito diversificada,protagonizada por mltiplas comunidades, biolgica e culturalmente muitodiferentes entre si. Importa que o estudante saiba entender essas diferenas,as quais, alis, sero objecto de estudo. De facto, a ocupao humana doterritrio portugus, respeitou estratgias diferentes, desde os incios doPaleoltico at ao fim do Mesoltico, em estreita articulao com ascaractersticas econmicas das respectivas comunidades e na directadependncia das capacidades tecnolgicas de explorao/captao dosrecursos potencialmente disponveis (realidade que remete, uma vez mais,para o conhecimento das condicionantes naturais vigentes em cada poca).

    Dentro de um quadro cronolgico que dever estar sempre presente, poderoapresentar-se diversos objectivos principais de aprendizagem.

    Para o Paleoltico Inferior Arcaico, importa conhecer as diversas teorias sobrea chegada das primeiras comunidades humanas ao territrio portugus noquadro europeu actualmente conhecido, respectiva cronologia absoluta ecritrios em que se fundamenta a identificao das indstrias, incluindo a

    discusso dos argumentos pr e contra a sua autenticidade. Cumpre terpresentes as caractersticas geolgicas dos locais mais importantes e arespectiva distribuio geogrfica.

    No respeitante ao Paleoltico Inferior Pleno, o estudante dever conhecer atipologia, terminologia e tcnicas de fabrico dos artefactos mais tpicos(incluindo as caractersticas fisicas dos seus autores), distribuio geogrfica,nomes das estaes arqueolgicas mais importantes (designao, localizao,aspectos estratigrficos, cronolgicos e tipolgicos); o estudante dever sercapaz de as relacionar entre si, bem como ter a percepo dos padres

    possveis a que obedeceu a ocupao geral do territrio portugus, tendopresentes os conhecimentos actuais.

    O conhecimento do Paleoltico Mdio apresenta-se pouco homogneo, emparte pela falta de investigao de vastas zonas do interior do territrio. Oestudante dever conhecer as principais caractersticas do complexomustierense, designadamente as inovaes tecnolgicas introduzidas no talheda pedra (talhe levallois); saber reconhecer os principais tipos de artefactosmustierenses e as caractersticas antropolgicas dos seus autores (homem de

    Neandertal); conhecer as balizas cronolgicas destas indstrias, e os aspectosque revestiu (em especial no territrio portugus) a transio do PaleolticoInferior para o Paleoltico Mdio. agora possvel identificar estratgias deocupao e de explorao dos territrios e dos recursos, realidade que o aluno

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    deve ser capaz de descrever, acompanhada dos aspectos de organizao socialdos grupos correlativos. Estes considerandos articulam-se, naturalmente, coma realidade material conhecida. Por isso, importa que saiba localizar asprincipais estaes, conhecendo as suas principais caractersticas, bem como

    as dos conjuntos artefactuais respectivos.

    Um dos aspectos especficos de maior interesse prende-se com a muitodiscutida extino dos ltimos neandertais e das eventuais relaes queestabeleceram com os homens do Paleoltico Superior (j de caractersticasmodernas), assunto que entronca directamente na investigao portuguesada actualidade (os derradeiros bandos de neandertais ter-se-iam refugiadonas zonas setentrionais peninsulares, incluido o territrio portugus), questoque de relevante interesse no mbito europeu.

    Para o Paleoltico Superior, cuja emergncia e progresso no territriopeninsular o estudante dever conhecer, so ainda mais evidentes asassimetrias no registo arqueolgico existente, que resultaro mais de falta deinformao, do que da efectiva ausncia de povoamento. A nica regiorazoavelmente conhecida a Estremadura, merc da concentrao dasinvestigaes ali realizadas. Os resultados obtidos at ao presente permitemao estudante cumprir os seguintes objectivos de aprendizagem: sucessotecno-industrial e principais aspectos dos complexos reconhecidos,

    designadamente ao nvel dos artefactos tpicos que integram cada um deles(Aurignacense, Gravettense, Solutrense (e Proto-Solutrense) e Magdalenense;principais estaes portuguesas e suas caractersticas (incluindo ocorrnciasde estaes do Paleoltico Superior fora da Estremadura, especialmente asrecentemente reconhecidas na regio do Ca, mas tambm no Alentejo e noAlgarve); o quotidiano, a organizao social, as bases de subsistncia e asestratgias de ocupao/explorao de territrios, por vezes de caractersticasmuito diferenciadas entre si; e, ainda, o fenmeno artstico e funerrioemergente, sero igualmente outros tantos objectivos do estudo e

    aprendizagem.As adaptaes humanas processadas no tardi- e no ps-glacirio devero serfamiliares ao estudante, em especial da zona litoral do Minho; da Estremadura;e da costa alentejana e algarvia ocidental, bem como das zonas vestibularesdos grandes rios (em especial o Tejo e o Sado). Dever conhecer aproblemtica das relaes possveis entre indstrias de base macroltica(Ancorense, Languedocense) e as indstrias microlticas, das quais as maisantigas so de tradio fini-paleoltica. Dever ter presente o padro e asazonalidade do povoamento; as bases de subsistncia; a evoluo verificada

    na implantao geogrfica e geomorfolgica dos principais stios; e arespectiva cronologia absoluta, que baliza a referida evoluo.

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    Com efeito, possvel traar a evoluo da ocupao humana nas trs reascosteiras referidas desde o Paleoltico Superior Final at o Mesoltico Tardio,perodo no decurso do qual se assiste forte implantao humana no fundodos esturios (Tejo e Sado): neste sentido, importa que o estudante conhea

    as principais estaes e suas caractersticas, associando esta informao natureza da prpria utensilagem: tipos de artefactos principais e respectivadistribuio no espao e no tempo.

    As actividades sugeridas sobre a parte da matria relativa s comunidades decaadores-recolectores paleolticas e mesolticas devero reflectir a granderiqueza e diversidade da informao disponvel. Assim, a ttulo meramenteexemplificativo, indicam-se as seguintes (deixando ao estudante a liberdadede desenvolver outras, pelas quais sinta especial interesse):

    - a questo das indstrias arcaicas pr-acheulenses no territrioportugus: sntese dos conhecimentos (compilao de artigoscientficos) e aspectos considerados mais relevantes para a anlise daquesto (procurando assim despertar a sua reflexo crtica sobre osdados disponveis);

    - sntese regional, com base na bibliografia disponvel sobre a ocupaopaleoltica de uma dada regio, com a qual o estudante se sinta maismotivado ou vontade (particularmente propcias so a regio de

    Lisboa e, em geral a Estremadura, os vales do Tejo e do alto Guadianaportugus e boa parte do litoral estremenho);

    - a questo dos ltimos neandertais e a importncia dos elementoscarreados para a sua discusso resultantes das escavaes em estaesestremenhas: entre outras, a Gruta Nova da Columbeira (Bombarral);a gruta das Salemas (Loures); e a gruta da Figueira Brava (Setbal)ou, em alternativa, elaborar quadros-sntese comparativos sobre cadauma destas estaes, acompanhados de concluses gerais;

    - compilar informao relativa ocupao fini-paleoltica e mesolticado litoral minhoto; do litoral da Estremadura; ou da costa sudoeste,tratados separadamente, constituindo deste modo pequenos ensaiostemticos de arqueologia regional;

    - historiar a marcha das descobertas, escavaes e publicaes nosconcheiros do vale do Tejo e procurar, em cada um dos perodosconsiderados da investigao, identificar o que de mais importantefoi feito em termos cientficos (quando, como, onde e por quem),

    para o conhecimento arqueolgico de cada um deles;- concheiros mesolticos dos vales do Tejo e do Sado: principais

    semelhanas e diferenas;

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    - indstrias de base macroltica fini- e ps-paleolticas do territrioportugus: breve sntese e discusso, no esquecendo a sua relaocom as indstrias microlticas contemporneas.

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    2. As Primeiras Indstrias: O Acheulense Inferior Arcaico

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    A parte setentrional do litoral da Estremadura, at regio de Pombal, j naBeira Litoral, conheceu, no final do Pliocnico e incio do Quaternrio,evoluo paleogeogrfica representada pela seguinte sucesso litostratigrfica(Cardoso, 1984):

    - na base, correspondente ao incio do movimento transgressivomarinho, observam-se conglomerados, logo seguidos de depsitosarenosos, lumachlicos, assentes em formaes mesosicas (Caldasda Rainha), ou j tercirias (Pombal). O contedo desta lumachelaindica o incio do Pliocnico Superior;

    - na parte mdia da sucesso, a sedimentao, agora de caractersticasflvio-marinhas, prossegue, correspondendo ao enchimento de uma

    vasta plancie litoral de caractersticas deltaico-estuarinas. Os depsitosencontram-se desprovidos de fsseis, predominando areias finas emicceas, depositadas em ambiente de baixa energia, de plancie litorale atingem algumas dezenas de metros de espessura mxima. A partesuperior deste complexo corresponde deposio de materiais emfase j regressiva. Assim se explica a presena de turfas e lignitos,testemunhos de densa cobertura florestal em ambiente pantanoso elacustre, com drenagem deficiente, embora atingida, ciclicamente, pordescargas torrenciais violentas, correspondentes a sedimentos muito

    grosseiros e mal calibrados. Este episdio foi considerado ou do finaldo Pliocnico ou j do incio do Quaternrio (Zbyszewski, 1959);

    - o terceiro e ltimo termo da sucesso encontra-se representado porareias grosseiras com passagens conglomerticas, cujos elementosmais caractersticos correspondem a pequenos seixos de quartzito,achatados e bem rolados, com a forma e tamanho de amndoas.Representam nova fase transgressiva, sobre os depsitos anteriores,que culminou altit