3.1. Introdução · Deus coloca Adão no “Jardim do Éden” (Gn 2, 8), lugar de relação e...

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3. A estrutura literário-teológica da anáfora como fonte da teologia eucarística 3.1. Introdução Os Santos Padres começam suas mistagogias freqüentemente com a cria- ção, remontando ao feito do Primeiro Adão, à culpa das origens que o Novo Adão veio expiar. É esse o caminho de Giraudo (2003): o ser humano, criado na relação com Deus, rompe-a (pecado). Segue-se, então, o drama da reconsti- tuição da relação, o que se dá por meio de um substituto na pena e na culpa (sacrifício de aliança). O povo faz memória da aliança através da todá, oração de ação de graças e súplica, de onde derivam, segundo Giraudo, as anáforas cristãs. Vê-se, assim, a necessidade de descobrir a estrutura da todá que ilumi- nará a estrutura da anáfora. 3.2. O lugar bíblico da relação e da ruptura como moldura para uma teologia eucarística Tentando recuperar o método dos Santos Padres na escola da lex orandi, Giraudo se baseia no testemunho de Egéria (século IV), a peregrina ocidental que relata sobre a liturgia de Jerusalém nessa época. Segundo ela, o mistagogo começa a iniciação dos catecúmenos pela origem de sua relação com Deus, tal como narra o livro do Gênesis, e assim os leva à compreensão dos sacramentos pascais (in Giraudo, 2003, p. 28) 45 . Através de Gn 2-3, o mistagogo introduzia os neófitos na história da a- ventura teo-antropológica, preparando uma moldura bíblica para a teologia sacramental. Nessa aventura, Deus estabelece uma relação utópica primordial, abre espaço ao outro, diferente de si, e inicia uma história de cuidado, proteção e liberdade, que da parte do ser humano, também se torna uma história de rup- tura. O percurso da humanidade tem início num jardim plantado por Deus (Gn 2), uma terra fértil preparada para que o ser humano habite em companhia do seu Senhor. Em hebraico, o termo para jardim é gan, substantivo da raiz ganán, que significa “proteger, esconder, defender”. Nesse sentido, gan significa “es- paço protegido”, espaço da relação. A tradução de gan, no grego, é “paraíso” 45 Egéria. ltinerarium 46, l-5 (Sources Chrétiennes 296, 308-309).

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3. A estrutura literário-teológica da anáfora como fonte da teologia eucarística

3.1. Introdução

Os Santos Padres começam suas mistagogias freqüentemente com a cria-

ção, remontando ao feito do Primeiro Adão, à culpa das origens que o Novo

Adão veio expiar. É esse o caminho de Giraudo (2003): o ser humano, criado

na relação com Deus, rompe-a (pecado). Segue-se, então, o drama da reconsti-

tuição da relação, o que se dá por meio de um substituto na pena e na culpa

(sacrifício de aliança). O povo faz memória da aliança através da todá, oração

de ação de graças e súplica, de onde derivam, segundo Giraudo, as anáforas

cristãs. Vê-se, assim, a necessidade de descobrir a estrutura da todá que ilumi-

nará a estrutura da anáfora.

3.2. O lugar bíblico da relação e da ruptura como moldura para uma teologia eucarística

Tentando recuperar o método dos Santos Padres na escola da lex orandi,

Giraudo se baseia no testemunho de Egéria (século IV), a peregrina ocidental

que relata sobre a liturgia de Jerusalém nessa época. Segundo ela, o mistagogo

começa a iniciação dos catecúmenos pela origem de sua relação com Deus, tal

como narra o livro do Gênesis, e assim os leva à compreensão dos sacramentos

pascais (in Giraudo, 2003, p. 28)45.

Através de Gn 2-3, o mistagogo introduzia os neófitos na história da a-

ventura teo-antropológica, preparando uma moldura bíblica para a teologia

sacramental. Nessa aventura, Deus estabelece uma relação utópica primordial,

abre espaço ao outro, diferente de si, e inicia uma história de cuidado, proteção

e liberdade, que da parte do ser humano, também se torna uma história de rup-

tura.

O percurso da humanidade tem início num jardim plantado por Deus (Gn

2), uma terra fértil preparada para que o ser humano habite em companhia do

seu Senhor. Em hebraico, o termo para jardim é gan, substantivo da raiz ganán,

que significa “proteger, esconder, defender”. Nesse sentido, gan significa “es-

paço protegido”, espaço da relação. A tradução de gan, no grego, é “paraíso”

45 Egéria. ltinerarium 46, l-5 (Sources Chrétiennes 296, 308-309).

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[paradeisos], que significa “porção delimitada de terra”. Portanto, tanto em

hebraico como em grego, o jardim é o lugar onde uma cerca de proteção de-

marca a relação (Giraudo, 2003, p. 30) é o lugar da criação.

Deus coloca Adão no “Jardim do Éden” (Gn 2, 8), lugar de relação e res-

peito, onde ele é cercado de carinho e proteção. É o paraíso, o espaço relacio-

nal por excelência entre Adão e Deus. No Jardim, Adão é o ser criado pelo

oleiro, é o servo e o filho, criado para servir o Criador e guardar a criação (Gn

2, 15). Deus, por sua vez, é apresentado na imagem das duas árvores plantadas

no meio do Jardim: “Iahweh Deus fez crescer do solo toda espécie de árvores

formosas de ver e boas de comer, e a árvore da vida no meio do jardim, e a

árvore do conhecimento do bem e do mal” (2, 9).

Como árvore da vida, Deus é a “origem fontal da vida”; e como árvore

do conhecimento do bem e do mal, Deus é o único que dispõe e normatiza a

vida. Por essas duas características de Deus, podemos reconhecê-lo na analogia

da paternidade, pois são os genitores fonte da vida e fonte da norma, que nos

ensinam o que é bom ou mau. Em uma palavra: pela imagem das árvores, es-

tamos diante do lugar da origem da vida e da obediência - escuta (2, 9; 3,8).

No jardim, Deus colocou o homem para cultivar e guardar (2, 15) e, nes-

se espaço original do cuidado e da proteção (Dt 6, 10-15; 8, 7), se estabeleceu

uma relação vertical de confiança e escuta, expressa no mandamento: “O Se-

nhor Deus ordenou a Adão, dizendo: De todas as árvores do jardim poderás

comer; mas da Árvore da ciência do bem e do mal, não comerás, porque no dia

em que dela comeres, deverás morrer” (Gn 2,16-17).

Abre-se um espaço de diálogo vertical entre Deus e o homem. Contudo, é

bom lembrar que essa relação com Deus não pode ser pensada numa concepção

de paridade, pois Adão é filho-vassalo e Deus é Senhor-Pai (Giraudo, 2003,p.

37).

Na relação, ainda está vazio o espaço horizontal de diálogo. Nesse espa-

ço, o homem é um ser relacionado com o cosmo, mas a espera de uma alterida-

de, à sua altura. Então “Iahweh Deus decide: ‘Não é bom que o homem esteja

só’” (Gn 2, 18). A mulher aparece nesse momento, como inspiração de Deus,

lugar de comunidade e de diálogo para dissipar a solidão e nostalgia de Adão.

A liberdade e a fidelidade na relação entre a humanidade e Deus se ex-

pressam muito bem nas últimas palavras de Gn 2, 25: “estavam nus, o homem

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e a mulher, e não se envergonhavam”. A relação no Jardim do Éden era de

transparência, fidelidade e confiança. Não havia medo nem vergonha, pois “o

amor envolve quem confia em Iahweh” (Sl 32,10).

A história da humanidade, contudo, não está escrita apenas em folhas cla-

ras e límpidas. E o jardim da relação se tornou o jardim da não-relação, um

jardim vazio (Gn 3).

A serpente aparece, no relato, como a possibilidade da ruptura na relação

e como a possibilidade da liberdade que Deus dá à humanidade de fazer suas

opções. Assim, “naquele momento, a serpente se pôs a delatar seu criador e

disse à mulher: 'por certo não morrereis!’ Mas todo artesão detesta seu concor-

rente”46. O homem e a mulher são apresentados como rivais de Deus e desejam

ser como deuses (3, 5); rompem o diálogo e a confiança. A desconfiança gera a

ruptura da aliança que é a morte, e esta tem como resultado o medo (3, 10). O

relato tem seu desfecho com a saída de Adão e Eva do paraíso, do lugar de

relação, para vagar na a-relação, fora do jardim: “A proteção destruída, o espa-

ço relacional devastado, as sendas amargas do exílio farão bem ligeiro compre-

ender ao filho-vassalo quão dura seja a existência fora do jardim” (Giraudo,

2003, p. 63).

Essa dramática e traumática aventura teo-antropológica é o mito da rela-

ção original. O Éden primordial de Adão (Gn 2-3) no relato do Gênesis é expe-

rimentado no Éden histórico de Israel (Ex 3, 2-15).

[...] a história do jardim se caracteriza quase como uma releitura da aliança, pro-jetada às origens. O lugar preexistente ao jardim, onde Deus plasma o pai dos viventes, Adão (Gn 2, 7), se identifica por isso com o 'para lá do rio', onde Deus irá tomar para si o pai dos fiéis, Abraão, para fazê-lo passar o Rio e caminhar por toda a terra de Canaã em sinal de posse prefigurativa (Js 24, 3), ou seja: pa-ra introduzi-la no espaço da relação. Paralelamente aos lugares precedentes, o Egito será o lugar pré-relacional por excelência, de onde Deus irá arrancar uma vide para transportá-la (Sl 80, 9), de onde irá tomar Israel para fazê-lo sair rumo ao jardim 'onde mana leite e mel' (Dt 26,9) (in Giraudo, 2003, p. 36).

3.2.1. A dinâmica do retorno e da conversão à vocação inicial de filhos

Israel se descobre fora do jardim, herdeiro de Adão e Abraão. Deus la-

menta que seu amado recém-nascido tenha se consumido pelo orgulho e diz:

46 Assim o Targum do Pseudo-Jônatan a Gn 3,4 (Le Deaut R, Targum du Pentateuque I, em SC 245, Paris 1978, 91). In Giraudo 2003 (p. 45, nota 13).

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“O teu coração se exaltou com tua beleza. Perverteste a tua sabedoria por causa

do teu esplendor” (Ez 28, 17). Por isso, com um lamento nostálgico primordial,

descreve sua atitude: “E agora te farei saber o que vou fazer da minha vinha!

Arrancarei a sua cerca para que sirva de pasto, derrubarei o seu muro para que

seja pisada” (Is 5, 5). Israel se descobre nessa situação existencial de exilado e

pede ao Deus de seus pais que venha socorrer a sua aflição. O eco dessa expe-

riência original se faz ouvir pelo salmista:

Pastor de Israel, dá ouvidos... Ó Deus, faze-nos voltar. Faze tua face brilhar, e seremos salvos! [...] Por que lhe derrubaste as cercas, para que os viandantes a vindimem, e os javalis da floresta a devastem, e as feras do campo a devorem. [...] Deus dos Exércitos, volta atrás! Olha do céu e vê, visita esta vinha: protege o que tua direita plantou. [...] Esteja tua mão sobre o homem da tua direita, o fi-lho de Adão que tu confirmaste (Sl 80, 2.4.13-16.18).

Por Moisés, Deus se revela como o Senhor de Israel, seu filho amado:

“Eu sou o Deus de teu pai, Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó” (Ex

3,6). Assim, ao ter visto o sofrimento de Israel nas terras para além do rio (Gn

2, 10), fora do jardim, no lugar a-relacional, declara:

Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito, ouvi seu grito por causa de seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta (Ex 3, 7-8).

Seja no Jardim primordial com Adão, seja no Jardim histórico com Israel,

a terra tem “o papel de reveladora teológica de comunhão, já que a terra é lugar

de proteção e relação” (Giraudo, 2003, p. 37). Fora do jardim, a comunidade

litúrgica ouve a promessa, suplica a Deus e experimenta o perdão que se con-

cretiza no retorno ao seio da relação paterna.

Toda a literatura deuteronomista e profética é marcada por esse tema: re-

torno e perdão. Sem dúvida, é necessário voltar, converter e retornar. Mas, para

onde? Para o espaço original de relação e de amizade. A questão é saber se será

suficiente apenas pedir perdão para retornar ao jardim.

A dinâmica bíblica, que está inserida na tradição do Oriente Médio Anti-

go, diz que não será suficiente apenas pedir perdão para retornar à relação (in

Giraudo, p. 37). A reconciliação assume as exigências derivadas da lógica da

relação encontrada no direito da aliança e presente em todo o Oriente Médio

Antigo. Os textos de Gn 15; Jr 34; Ex 24 e Hb 9, 22 dão os critérios para isso.

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Para retornar à relação original, os parceiros devem colocar em movi-

mento o processo de aliança que se caracteriza no “cortar uma aliança” [karat

berit]. Essa expressão situa-nos num rito de pacto que consistia em tomar um

animal e cortá-lo em duas partes, dispondo-as uma de frente para a outra. Os

contraentes passavam no meio das partes do animal abatido e pronunciavam as

cláusulas da aliança, que determinava a morte do parceiro que não cumprisse o

compromisso da aliança. Nesse sentido, Gn 15, 9-21, apresenta a aliança que

Deus fez com Abraão:

Ele lhe disse: ‘Procura-me uma novilha de três anos, uma cabra de três anos, um cordeiro de três anos, uma rola e uma pombinha’. Ele lhe trouxe todos esses a-nimais, partiu-os pelo meio e colocou cada metade em face da outra [...]. Quan-do o sol se pôs e estenderam-se as trevas, eis que uma fogueira fumegante e uma tocha de fogo passaram entre os animais divididos. Naquele dia Iahweh es-tabeleceu uma aliança com Abrão nestes termos: ‘À tua posteridade darei a ter-ra’ (Gn 15, 9-10. 17-18).

Naquele momento, Deus estabelece uma aliança com o povo e se com-

promete com ele. “Os animais abatidos e divididos estão lá a testemunhar que a

recusa da aliança será condição de morte para o culpado” 47. Na mesma linha

dessa descrição de aliança, o profeta Jeremias (Jr 34, 15-19) apresenta o animal

morto como a própria maldição que virá sobre o parceiro que não cumprir os

compromissos da aliança. Contudo, para além da maldição estabelecida pela

imagem dos “cadáveres”, a aliança está orientada para a bênção. O termo “ca-

dáveres” aparece como designação dos animais sacrificados.

E aos homens que violaram a minha aliança, que não observaram os ter-

mos da aliança por eles concluída na minha presença, eu os tornarei como o

bezerro que cortaram em duas metades para passarem entre as suas partes (Jr

34, 18).

Seguindo a dinâmica ritual do sinal de morte-vida na aliança descrita nos

textos acima, Ex 24 narra o rito que sela a aliança do Sinai. A diferença está no

acento positivo dessa descrição. Nesse sentido, mesmo que a mediação ritual

dos animais abatidos apareça e, nesse sinal, a maldição, o que se apresenta for-

te é o sangue, sinal de vida, como o “vínculo relacional”.

Depois enviou alguns jovens dos israelitas, e ofereceram holocaustos, e imola-ram a Iahweh novilhos como sacrifícios de comunhão. Moisés tomou a metade

47 A narrativa acima é desenvolvida em Giraudo (2003, p. 64 –65).

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do sangue e colocou-a em bacias, e aspergiu a outra metade do sangue sobre o altar. Tomou o livro da Aliança e o leu para o povo [...]. Moisés tomou do san-gue e o aspergiu sobre o povo, e disse: 'Este é o sangue da aliança que Iahweh cortou convosco, através de todas essas cláusulas' (Ex 24, 5-8).

Aspergindo o sangue sobre o altar (Lv 1, 5.11) e sobre o povo (Ex 24, 8),

Moisés sela uma aliança de vida entre Israel e seu Deus, seguido do banquete

(Ex 24, 11). A aliança é cortada no sangue dos animais abatidos, sinal de morte

para a comunidade infiel. No relato da páscoa dos judeus (Ex 12) encontra-se,

a mesma dinâmica ritual:

Falai a toda a comunidade de Israel: Aos dez deste mês, cada um tomará para si um cordeiro por família [...], e toda a assembléia da comunidade de Israel o i-molará ao crepúsculo. Tomarão do seu sangue e pô-lo-ão sobre os dois marcos e a travessa da porta, nas casas em que o comerão (Ex 12, 3.7).

O sangue, sinal de vida, é testemunha da bênção e libertação que decorre

da aliança que Deus faz com seu povo, uma vida festejada em torno da mesa,

lugar litúrgico-celebrativo. Por isso, “sem derramamento de sangue não há re-

missão” (Hb 9, 22), não há aliança e não há retorno ao jardim primordial, espa-

ço de relação, fidelidade e confiança.

Esse axioma da carta aos Hebreus, em referência a Ex 24, sintetiza bem a

dinâmica em que se deve entrar, para assumir o caminho de retorno. O retorno

ao espaço relacional e à presença de Deus exige do parceiro humano um teste-

munho de vida e entrega. O ritual do holocausto lido nas páginas das Escrituras

nos mostra como Deus se encarna na cultura humana para apresentar uma pe-

dagogia que lhe seja perceptível. A tradição do Antigo Testamento (AT) e a

sua exegese rabínica também nos oferecem testemunho dessa exigência ritual

para o movimento de conversão.

Nossos rabinos ensinaram: ‘E [ele] imporá a mão sobre a cabeça do holocausto e [ele] será agradável’ [Lv 1,4]. E que: a imposição [da mão] é expiatória? Mas não é acaso [verdade] que não há expiação a não ser no sangue, como está dito: ‘Pois é o sangue que expia no lugar da vida’ (Lv 17, 11) 48·.

3.2.2. A dinâmica reconciliadora na economia sacramental do AT

O acontecimento núcleo de toda a economia salvífica no AT é a saída do

Egito. Um grito ressoa até os ouvidos de Deus e, segundo a dinâmica da alian-

48 Talmude da Babilônia, Tratado Menahot 96b, 16. In Giraudo (2003, p. 74).

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ça, Deus é obrigado a intervir, pela “necessidade da conveniência” 49, em so-

corro do vassalo-filho que recorre ao Pai numa situação de emergência e peri-

go.

Desci para libertar, escutei os que não me escutaram por força da minha

natureza relacional, por força da minha fidelidade à aliança (Ex 3, 7-8). Assim,

Deus inicia uma pedagogia de retorno para aquela geração herdeira do jardim

primordial. Após ter realizado inúmeros sinais pelo seu profeta Moisés, Deus

decide fazer o povo sair da escravidão. Dois momentos marcam essa liberta-

ção: a última ceia do povo de Israel no Egito e a passagem do Mar. A ceia que

precede a passagem do Mar Vermelho não é apenas um momento de refeição

apressada antes da viagem, não está apenas em sucessão cronológica, com refe-

rência à passagem do Mar, mas tem uma eficácia própria, um significado teo-

lógico na dinâmica da salvação dos herdeiros de Adão.

O texto de Ex 12, 1-14.28, apresenta a intervenção de Deus nos prepara-

tivos da ceia. No v. 2, marca-se para Israel um começo absoluto da história:

“Este mês será para vós o princípio dos meses, será para vós o primeiro mês do

ano”. Uma nova história será escrita para aquela geração e para todas as que

virão. Israel se torna comunidade (12, 3) que realiza a liturgia da aliança no

sangue do cordeiro. A assembléia da comunidade de Israel (v. 6) imolará o

cordeiro, tomará o sangue para pôr sobre os dois marcos e a travessa da porta,

nas casas em que o comerem: “O sangue, porém, será para vós um sinal nas

casas em que estiverdes: quando eu vir o sangue, passarei adiante e não haverá

entre vós o flagelo destruidor” (Ex 12,13). A aliança realizada no sangue refe-

re-se ao sinal de pertença e de proteção. Agora Israel pertence a Deus e não ao

Faraó. Como sinal de pertença, a celebração da aliança se dá na dinâmica ritual

do sacrifício do cordeiro, próprio do mundo bíblico e realiza-antecipa o evento

da libertação.

Nesse sentido, a ceia pascal é um sinal dado em prefiguração simbólica

do evento da libertação. Em torno da mesa se vive uma dinâmica atualizante

que presentifica, na vigília, a passagem do Mar. Escutando o convite de Deus

para a ceia, Israel, pelo sinal profético, já experimenta a salvação e sai verda-

49 Para Giraudo (2003, p. 60-61), a expressão “necessidade da conveniência” significa justa-mente a necessidade de con-vir, ou seja, “vir ao encontro”. Deus, como Pai tem a necessidade absoluta de ir ao encontro do filho no momento da queda.

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deiramente do Egito para iniciar seu caminho de retorno ao jardim da relação.

A última ceia do Egito é a prefiguração única que remete a comunidade ao seu

futuro imediato, a passagem do Mar. Giraudo considera esses dois aconteci-

mentos como a única e indivisível intervenção salvífica de Deus. Mesmo sendo

em tempos cronológicos diferentes, teologicamente pertencem ao mesmo tem-

po kairológico da ação de Deus em vista da libertação de Israel. Podemos, pois,

dizer que a última ceia pascal no Egito é a prefiguração profética do evento

fundador da salvação, a passagem pelo Mar. Esses eventos são únicos na vida

do povo eleito, pequena parcela da humanidade que assume a grande missão de

diaconia - serviço - da Palavra de Deus para toda a humanidade.

Esse povo que nasce às margens do Mar dos Juncos (Ex 15, 5) se desco-

bre passível, mais uma vez, do pecado e da infidelidade à aliança. Assim, logo

depois de experimentarem a salvação do Senhor, se mostram amargos (Ex 15,

23-24) e recordam com saudades o tempo no Egito (Ex 6, 3; Nm 11, 5; 14, 2-3),

desejando retornar ao Faraó (Nm 14, 4). Surge, então, a pergunta nascida da fé

daquelas gerações do deserto: “como sair, ainda uma vez, da casa da escravi-

dão?”.

De que modo alcançar novamente a eficácia salvífica da passagem do Mar: co-mo sair, ainda uma vez, da 'casa da escravidão' e subtrair-se às mãos do Faraó que voltou a reinar sobre nós? Poderemos acaso retornar ao Egito, para voltar a passar o Mar outra vez? Não, isso não nos é dado, já que o evento fundador é único, por sua natureza irrepetível'. É então que vem em socorro a fé, com seus recursos inexauríveis e sempre novos (Giraudo, 2003, p. 81).

Para as futuras gerações alcançarem a salvação e retornarem à aliança re-

alizada no sinal do sangue do carneiro (Ex 12, 13) devem iterar50 o mesmo rito

da ceia em memorial [zikkarón]. A narração de Ex 12,13-14 constitui a institui-

ção do sacramento por excelência da economia vétero-testamentária, através da

ordem de iteração da ceia celebrada como memorial do evento fundador da

libertação. “Este dia será para vós um memorial, e o celebrareis como uma

festa para Iahweh; nas vossas gerações a festejareis; é um decreto perpétuo”

(Ex 12, 13-14).

O memorial ritual supera o tempo-espaço e conduz cada geração a passar

pelo Mar, fazendo a comunidade celebrativa participar da morte e ressurreição

50 O termo iteração, do latim iterum, significa: de novo; repetição.

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que constitui a passagem do Mar. A assembléia ritual é assim reapresentada ao

evento fundador, pela celebração da páscoa a cada ano. Por isso, de “geração a

geração, cada um é obrigado a ver-se a si próprio como tendo ele mesmo saído

do Egito [...]” 51. Pela celebração ritual, o povo alcança a salvação, sendo rea-

presentado ao evento fundador pelo sinal sacramental. Essa é a celebração ritu-

al, nomeada de páscoa das gerações pelo judaísmo rabínico. É a Páscoa ritual

que tem sua raiz na única e irrepetível Páscoa do Egito.

3.2.3. A dinâmica reconciliadora na economia sacramental do NT

A passagem do Mar da antiga aliança significa que o povo imerge ou

morre para a escravidão, e emerge ressuscitado para Iahweh. Na nova aliança,

o evento fundador é a morte e ressurreição de Jesus Cristo que, na sua entrega

ao projeto do Pai, morre e imerge no seio da terra, para ressuscitar e apresentar

definitivamente nossa humanidade à presença de Deus e à terra prometida, o

jardim de nossa nova história.

A última ceia realizada na véspera da Paixão de Jesus (1 Cor 11,23-25;

Mc 14, 22-25; Mt 26, 26-29; Lc 22, 15-20) corresponde à última ceia do povo

judeu no Egito. Essa ceia de Jesus com seus discípulos é o ponto de partida

sacramental que permite às gerações futuras acesso ao evento fundador do NT:

a morte e a ressurreição do Senhor. Nesse sentido, fala Paulo com propriedade:

“O cálice que abençoamos não é acaso comunhão com o sangue de Cristo? O

pão que partimos não é acaso comunhão com o corpo de Cristo?” (l Cor 10,

16). Na última ceia do cenáculo, Jesus comunga com sua entrega e antecipa

profeticamente o Calvário e a tumba vazia.

Pronunciando as palavras da instituição, embora ainda esteja fisicamente no ce-náculo, contudo figurativamente, na eficácia do sinal profético e, por isso, real-mente, já desceu às águas de morte do Calvário e já subiu das águas de vida do sepulcro vazio. Participando daquele primeiro pão partido e bebendo do primei-ro cálice, a comunidade dos pais no cenáculo já foi sepultada na morte do Cristo à condição de servidão e, ao mesmo tempo, já ressuscitou em sua ressurreição à condição de serviço. Por sua prefiguração única, irrepetível, a última ceia está orientada com todo seu peso teológico ao futuro imediato que pré-anuncia salvi-ficamente e leva a termo profeticamente (Giraudo, 2003, p. 87)

Paralelamente a Ex 12, 14, “Este dia será para vós um memorial”, na di-

nâmica da antiga aliança, a última ceia no cenáculo se torna um mandato me- 51 Palavra de Rabbán Gamaliel, in Giraudo (2003, p. 112-113).

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morial: “Fazei isto em memória52 de mim.” (Lc 22,19). O memorial [zikka-

rón/anamnese] da aliança no sangue do cordeiro se tornou aliança no sangue do

verdadeiro Cordeiro pascal, Jesus. A eucaristia dominical e cotidiana é, pois, a

re-apresentação da Igreja das gerações ao Calvário e ao sepulcro vazio. Por ela,

a Igreja das gerações volta com os “pés teológicos” ao evento fundador.

Para estabelecer esse paralelismo entre a dinâmica da ceia pascal judaica

e a dinâmica eucarística, Giraudo parte da admissão de que a última ceia no

cenáculo é uma ceia pascal. É conhecida a divergência cronológica entre os

sinóticos e João. Enquanto os sinóticos colocam a ceia de Jesus no contexto da

ceia pascal judaica, o quarto evangelho segue outro esquema: João constrói um

paralelismo entre a morte de Jesus e a imolação dos cordeiros pascais. De a-

cordo com muitos exegetas, Giraudo admite que os sinóticos trazem uma cro-

nologia histórica, enquanto o quarto evangelho segue uma cronologia teológi-

ca.

Portanto, no contexto vital litúrgico da páscoa judaica, Jesus reinterpreta

a aliança e pronuncia palavras interpretativas sobre o pão e o vinho para o esta-

belecimento da nova e eterna aliança.

Esse sinal profético realizado por Jesus no cenáculo é um acontecimento

único e irrepetível. Graças à ordem de iteração (“Fazei isto em memória de

mim”), Jesus institui o novo memorial para que as gerações futuras tenham

acesso ao evento fundador cristão. Assim, a última ceia de Jesus é única, e não

o primeiro rito de uma série, ou seja, a primeira missa. O cenáculo é um acon-

tecimento muito maior que fundamenta a série ritual que a ele se segue e chega

até nós (Giraudo, 2003, p. 179-186).

A celebração ritual, ponte para se chegar à salvação em Jesus Cristo, é o

cenáculo das gerações que nos reapresenta ao evento fundador da redenção. A

dinâmica sacramental libertadora da segunda aliança está em continuidade e

ruptura com a da primeira aliança.

A noção de repraesentatio aparece no Concílio de Trento53. Ela diz res-

peito à dinâmica de duas presenças: a presença daquele sacrifício cruento que

52 Segundo comentário de Taborda, em 1/2/2008, talvez se devesse usar na tradução a palavra “memorial”. Há uma tese no Pontifício Instituto /Bíblico que indica como tradução mais corre-ta: “Fazei isto como meu memorial”. F. Chenderlin: “Do This as My Memorial” The Semantic and Conceptual Background and Value of Anamnesis in 1 Corinthians 11, 24-25. Rome: PIB, 1982 (Analecta Bíblica 99). 53 Denzinger-Hünermann, 1740.

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se realizou de uma vez por todas sobre a cruz, e a presença existencial da Igre-

ja, dileta esposa de Cristo. O texto conciliar de Trento54 não diz qual das duas

presenças deva ser dinamicamente referida à outra. É presumível que os Padres

tridentinos tenham entendido que a reapresentação do evento fundador é feita a

nós. Contudo, para evitar que a noção de reapresentação seja confundida com a

idéia de 'representação teatral', Giraudo (2003, p.465-474; 508-518) lê o texto

entendendo que nós somos reapresentados ao evento fundador. Isso quer dizer

que, à luz da fé, com os “pés teológicos”, se chega sacramentalmente ao Calvá-

rio, graças à mediação do sinal sacramental instituído no cenáculo. Destarte, a

eucaristia é a nossa reapresentação sacramental (mistérica ou memorial) ao

sacrifício do Calvário, mediante a retomada ritual dos gestos e palavras sobre o

pão e o vinho.

3.3. A forma literária da oração de aliança

O estudo de Giraudo é uma pesquisa retrospectiva sobre a história da

forma literária da oração eucarística, lugar cultual e teológico da reapresenta-

ção ao mistério da salvação. Para tanto, Giraudo faz um caminho através da

formação da liturgia judaica, atento aos formulários oracionais da confissão

dos pecados [Yadáh-todá], das bênçãos [berakot] como estágio posterior da

liturgia judaica estandardizada, até chegar à estrutura literário-teológica das

anáforas cristãs. A dinâmica da estrutura literário-teológica dos formulários

anafóricos oferecerá condições para explicitar a teologia da eucaristia neles

contida.

Inicialmente, Giraudo (1984) considera Ne 9, texto do AT conhecido

como o modelo da liturgia sinagogal 55. O relato de Ne 9 faz parte de um grupo

de formulários oracionais que podem ser denominados oração de confissão dos

pecados ou lamentação do povo (Ne 1, 5-11; Esd 9, 6-15; Dn 3, 26-45; Bar 1,

15-3, 8). Nesses textos, temos a todá ou a oração litúrgica do povo que, diante

da ruptura56 da aliança e do processo [rîb] contra o seu pecado, reage com uma

confissão e uma súplica à misericórdia infinita de Deus.

O termo todá é uma designação técnica da forma literária que nos oferece

54 Denzinger-Hünermann, 1741 55 Giraudo (1984, p. 13), remete, a propósito, a Liebreich (1961, p. 227-237). 56 Giraudo (1979, p. 13), remete a. HARVEY (1962, p. 194-195).

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a estrutura da oração de aliança. Sua origem está na expressão “fazer uma con-

fissão” [natán todá], que encontramos nos textos de Js 7, 19 e Esd 10, 11 e na

ampla ocorrência do par semântico confessar-confissão [yadáh/todá] no con-

texto da teologia da aliança. A função primordial de uma todá é fazer a comu-

nidade reentrar na dinâmica da aliança pelo reconhecimento da santidade de

Deus e a confissão de seu pecado em vista do pedido de perdão. A relevância

desses termos [yadáh/todá] torna-se ainda maior quando se descobre que o

confessar-confissão [yadáh/todá] da liturgia judaica de aliança se prolongará

no termo eucaristia [eucharistein-eucharistia], forma típica da liturgia cristã

(Giraudo, 2003, p.189) para designar a oração do memorial do Senhor.

Para encontrar a estrutura do formulário-tipo de todá, Giraudo toma cin-

co relatos bíblicos que apresentam a evolução dessa forma literária. Ele analisa:

a injunção da aliança (Js 24b-15); a adesão à aliança (Dt 26, 5b-10); o processo

[rîb] contra Israel (Dt 32, 4-25); o processo [rîb] contra Deus (Sl 44); e a todá

de Neemias (Ne 9,6-37) (Giraudo, 2003, p. 190).

O início da história das formas literárias da oração de aliança, a todá, en-

contra-se no texto de Js 24, 2-15. Não é um relato estritamente jurídico, mas

um discurso cultual destinado a atualizar para cada geração a memória do pac-

to. Um pacto que tem sua analogia nos tratados extra-bíblicos do Antigo Orien-

te Médio (Mccarthy et al, 1972). A novidade desse tipo de aliança no AT está

no seu caráter teológico, no qual Israel é tomado por Iahweh como propriedade

particular e exclusiva (Js 24, 2).

Em Deuteronômio 26, 5b-l0, em continuidade temático-estrutural com

Josué, encontra-se o credo histórico do assentimento ao pacto. De um lado,

Deus que assume seu filho e do outro o vassalo que assume seu Senhor. Há um

equilíbrio na aliança. Contudo, o equilíbrio idílico é rompido, pois a aliança é

interrompida pelo pecado de Israel e a relação é perdida (Giraudo, 1989, p. 44-

46).

A situação que se forma com a ruptura, numa relação concebida como

fa*to jurídico, leva a um procedimento próprio da prática forense. Instalam-se

as funções típicas, juiz-testemunha e acusador-acusado, e abre-se o processo

contra o parceiro infiel. Estamos diante de uma forma literária, no contexto do

direito sagrado, chamada de rîb (processo).

Na ruptura do equilíbrio, há duas possibilidades: a querela do soberano,

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quando é rompida a aliança pelo vassalo e, pela boca do profeta, abre-se um

processo contra Israel (Dt 32, 4-25); e a querela do vassalo, quando Deus rom-

pe a aliança, abrindo-se um processo [rîb] contra Deus (Sl 44). A querela con-

tra o povo é um processo propriamente dito, enquanto, no caso da querela con-

tra Deus, é um processo por analogia, e aparece num momento de emergência.

Esse último é muito importante, pois marca a passagem da forma literária do

processo [rîb] para a da confissão dos pecados [todá].

No processo contra Deus, Israel se percebe inocente (Jr 15, 15; Jo 30, 18;

Sl 74, 1; Sl 80, 6). Um caso extremo é o Sl 89, em que Deus é acusado de rom-

per a aliança (v. 20.35.40). Assim, para mostrar o lamento do povo, o salmista

utiliza a estrutura do processo, e faz uma súplica de emergência para ser salvo

(S1 22; Mt 27,46).

Esse processo contra Deus é o elo intermediário para se chegar à constru-

ção da súplica ou à confissão dos pecados. No Sl 44, pode-se reconhecer esse

elo intermediário. Ele é, ao mesmo tempo, processo e súplica, pois traz aspecto

contestatório com recurso à justiça, e uma súplica ardente ao Senhor. A dife-

rença entre o processo contra Deus e a confissão dos pecados está na temática.

Na querela contra Deus, Israel se apresenta como justo (Sl 44, 18) e, na confis-

são dos pecados, Israel se reconhece culpado (Ne 9, 33).

Como oração de aliança, raiz de nossas liturgias, a confissão dos pecados

ou todá aparece como ato conclusivo de um ciclo da relação, em que o parcei-

ro-infiel dá razão ao parceiro-fiel para que entre em vigor o mecanismo da

bênção (Jó 40, 4; 42, 6). Portanto, quando a assembléia confessa seu pecado,

confessa a própria infidelidade e encarna a fé, proclamando, com sua vida, a

superioridade absoluta de Deus. Ao Senhor compete sempre restabelecer uma

nova fase da aliança (Giraudo, 1989, p.81). A todá é, sem dúvida, uma nova

fase da relação, uma projeção retrospectiva da dinâmica da aliança, que se abre

sempre ao perdão (l Rs 8, 33-34).

Em todos esses formulários, permanece uma estrutura literária bipartida,

articulando um parágrafo histórico (prótase no indicativo) e um parágrafo in-

juntivo (apódose no imperativo). Na todá de Neemias, esse discurso da aliança

se desenvolve na articulação da história do passado da relação, onde se faz

memória dos feitos misericordiosos de Deus e do pecado do povo (Ne 9, 6-

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31b), com o pedido de perdão do crente (Ne 9, 31c-36) 57. Esses dois compo-

nentes estruturais podem ser designados de secção anamnético-celebrativa e

secção epiclética58.

No parágrafo histórico ou anamnético-celebrativo, a comunidade orante

faz memória das maravilhas de Deus. Israel se acusa de “não se ter recordado”

(Ne 9, 17; Sl 78, 42 e 106, 7) do que Deus fez e faz pela comunidade. Situa-se

na linha teológica da memória e da recordação, que responde à exigência do

cântico de Moisés: “Recorda os dias que se foram, repassa gerações e gera-

ções” (Dt 32, 7). Um memorial que constantemente vem unido ao desejo de

confessar a grandeza de Deus [zikkaron/yadáh/todá]: “Recorda o teu nome de

geração em geração, e os povos te confessarão para sempre e eternamente” (Sl

45, 18).

Sem dúvida, fazer memória é a expressão mais profunda do coração reli-

gioso segundo o AT. Israel é constantemente obrigado a recordar a própria

infidelidade (Dt 9,7) e a glória de Iahweh (Dt 7, 18-19; Is 46, 9). Contudo, o

povo esquece e, então, entra o profeta com o papel de ser a memória dos peca-

dos da assembléia (Ez 29, 16) e da fidelidade de Deus (Is 66, 6-7). O trabalho

do profeta situa os dois parceiros da aliança na mesma linha teológica da me-

mória. Assim, o povo poderá confessar, recordar e narrar na assembléia cultual

a grandeza do Senhor, obrigando-o, pela “necessidade de conveniência”, a ir ao

encontro do parceiro pecador que suplica. É fundamental perceber que esse

acento na fidelidade de Deus-Senhor em contraposição à pequenez do fiel-

vassalo e sua infidelidade não tem a intenção de esmagar aquele que ora. Na

dinâmica da todá, essa confissão revela tudo o que o Senhor-Pai pode ser para

seu vassalo-filho (Giraudo, 2003, p.109).

A noção bíblica de memória e de recordação se apresenta como uma for-

ça dinâmica que cria possibilidade de o fiel fazer seu pedido. Nesse sentido, do

memorial se passa ao parágrafo injuntivo ou secção epiclética. À semelhança

das outras formas de aliança, também na todá, a articulação entre os parágrafos

ou secções é feita pela partícula lógico-temporal “e agora” [we 'attá/kai nun]

(Giraudo, 2003, p. 189). No texto de Ne 9, esse elemento literário é encontrado

57 A divisão do texto de Neemias segundo a estrutura literário-teológica de Giraudo (2003, p. 194-197). 58 O termo epi-klesis significa ‘grito a’, é a secção do pedido.

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no v. 31.

A partir da anamnese da fidelidade de Deus e da infidelidade da comuni-

dade, o orante está em condições de pedir ao Senhor que intervenha, fazendo

Deus manifestar mais uma vez sua fidelidade à aliança.

Do interior dessa dinâmica oracional simples bipartida, tem origem uma

dinâmica mais complexa, chamada de dinâmica oracional embolística. É o que

se encontra em Ne 1, 5-11. No v. 5, a secção anamnética, breve e direta, con-

fessa a fidelidade de Deus. Com isso, fundamenta o pedido da secção epiclética

que se abre com um apelo para que Deus escute o seu povo. Com a finalidade

de apoiar teologicamente o pedido, o orante insere no formulário um texto bí-

blico da promessa (vv. 8-9). Mesmo sendo um “corpo estranho”, com sua di-

nâmica própria, é acolhido e enxertado no formulário para fundamentar o pedi-

do na qualidade de “lugar teológico escriturístico”, à maneira de um

embolismo. Etimologicamente, a palavra embolismo vem do termo grego “to

embolon” que significa “enxerto” (Giraudo, 2003, p. 206). Nesse sentido, a

oração se desenvolve num discurso a Deus com palavras nossas e palavras de

Deus.

A dinâmica embolística ou quase-embolística, no caso de referência indi-

reta à Palavra de Deus (Dn 3, 26-45), aparece para prover o pedido de um ele-

mento novo, de um oráculo de salvação encontrado nos arquivos da Palavra de

Deus. Esse oráculo de salvação é enxertado no formulário, a fim de que, ou-

vindo da boca da comunidade a própria palavra de perdão, Deus se compadeça

do seu povo.

A súplica da comunidade expressa nessa estrutura literário-teológica re-

flete bem a oração nas assembléias litúrgicas, sendo testemunhada tanto no AT

(Gn 32, 10-13) como no NT (At 4, 24-30). A liturgia judaica, seja doméstica ou

sinagogal, é mestra dessa forma de oração inspirada nas Sagradas Escrituras.

Para tanto, citem-se como exemplo a oração de Bênção depois da refeição na

liturgia da páscoa, as duas bênçãos que precedem o Shemá, os formulários da

Tefillá festiva, a súplica dos Treze atributos e a oração de súplica sacerdotal

recitada na festa do Kippur (Giraudo, 2003, p.212-224). Desse lugar cultural e

cultual, germina a oração cristã seja nos textos anafóricos (orações eucarísti-

cas), seja em outras orações solenes não-anafóricas (ex.: preces de ordenação,

bênção da água batismal, etc).

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3.3.1. A estrutura literário-teológica da anáfora cristã

Antes de apresentar a estrutura literário-teológica da anáfora cristã há

uma pergunta prévia a fazer: como os primeiros cristãos celebravam a eucaris-

tia? Giraudo indica duas hipóteses que rejeitará: a de Hanssens (in Giraudo

2003) e a de Ligier (1977), caracterizando-as como “gênese estática das anáfo-

ras”.

Para Jean Michel Hanssens (in Giraudo 2003, p. 234-236), as primeiras

comunidades celebravam a eucaristia repetindo as palavras do relato institucio-

nal e os gestos do Senhor. Posteriormente formaram-se as anáforas primitivas

constituídas de ação de graças e invocações, em torno ao relato institucional

[...] na hipótese de Hanssens, a forma primitiva da anáfora teria consistido sim-plesmente nas palavras diretas da dupla consagração e da ordem de iteração, enquadrada, por sua vez, pelo relato. Então, pouco a pouco, por expansão inter-na desse antiqüíssimo núcleo anafórico autonomamente iterado, teriam tido ori-gem elementos oracionais, que se teriam disposto respectivamente como parte subseqüente e como parte antecedente. Contudo, o relato institucional teria con-tinuado a manter sua autonomia formal em relação às partes da oração (In Gi-raudo, 2003, p. 235).

Nos passos de Hanssens, Ligier (1977) assume o relato institucional pri-

mitivo como tradição autônoma a partir do qual se forma a estrutura da eucaris-

tia. Apesar de estar no caminho de Hanssens, Ligier (in Giraudo, 2003) supera

sua hipótese na medida em que toma formulários litúrgicos judaicos como mo-

delo utilizado para a construção das anáforas cristãs. No seu estudo a “Bênção

depois da refeição” aparece como um formulário privilegiado, pois a eucaristia

está no contexto da refeição pascal. Sem dúvida, um avanço indiscutível. O

que, entretanto, afasta Giraudo de Ligier é considerar o relato institucional an-

terior e autônomo à estrutura anafórica. Isso fragmenta o formulário oracional e

prejudica o conjunto literário-teológico do memorial-súplica da comunidade.

Diante dessa perspectiva estática, que não considera a estrutura literário-

teológico dos textos, Giraudo apresenta sua hipótese de trabalho. Propõe uma

gênese dinâmica da anáfora cristã em que a todá cristã se configura progressi-

vamente, introduzindo o relato institucional como embolismo (Giraudo, 1984,

p. 530-535) dentro do formulário anafórico preexistente.

Neste sentido, é provável que as palavras institucionais tenham sido in-

troduzidas, progressivamente, num quadro literário-teológico conhecido, e a

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anáfora com o relato institucional seja o ponto de chegada da oração da Igreja.

Conseqüentemente, houve um “certo lapso de tempo” até que a comunidade

litúrgica cristã se desse conta de que poderia usar o relato institucional como

lugar teológico escriturístico.

A favor de sua posição, Giraudo aduz o testemunho de uma antiga des-

crição da celebração eucarística por Justino (1995).

Então se traz ao presidente dos irmãos pão e um cálice com água e vinho. To-mando-os ele eleva louvor e glorificação ao Pai universal, em nome do Filho e do Espírito Santo, e faz ação de graças por um bom tempo por ter-nos conside-rados dignos destas coisas que dele provêm. Quando termina as súplicas e a a-ção de graças, todo o povo presente aprova com a aclamação, dizendo Amém 59·.

Em outro trecho da mesma obra: “Então, como já dissemos, se traz o pão

e vinho e água, e o presidente eleva tanto súplicas como ação de graças con-

forme a sua capacidade, e o povo aprova com a aclamação, dizendo: Amém” 60.

Certamente, em ambas as descrições, Justino fala de uma anáfora: “súpli-

ca e ação de graças”. A inversão da ordem anafórica fica por conta do estilo de

Justino que gosta de pôr o último por primeiro.

Apesar de não se encontrarem indícios a favor ou contra a presença do

relato institucional nesta anáfora sugerida por Justino, pode-se supor sua au-

sência, pelo fato de Justino apelar para as palavras institucionais de Jesus atra-

vés das Escrituras e não da anáfora que descreve.

A fase que se segue à descrição de Justino, encontra-se no testemunho da

anáfora de Addai e Mari e de uma anáfora fragmentária contida em manuscrito

do século VI (Giraudo, 2003, p. 249;340-342).

A anáfora de Addai e Mari é o formulário eucarístico mais antigo até ho-

je usado, sem que contenha explicitamente o relato institucional. Esse texto foi

reconhecido pela Igreja Católica Romana como legítimo, no documento “Dire-

trizes para a admissão à Eucaristia entre a Igreja Caldéia e a Igreja Assíria do

Oriente” (Pontifício Conselho para a Unidade dos Cristãos, 2001). Nesse senti-

do, explica-nos o documento:

[...] as palavras da Instituição eucarística encontram-se, efetivamente, presentes na Anáfora de Addai e Mari, não de forma narrativa e coerente, e ad litteram,

59 JUSTINO, Primeira Apologia 65, 3, (1995 - PATRÍSTICA). 60 Ibid, 67,5.

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mas acima de tudo de maneira eucológica e disseminada, ou seja, integrada nas sucessivas orações de ação de graças, de louvor e de intercessão 61.

Essa declaração vinda da Santa Sé significa um giro teológico inesperado

para superar a teologia do segundo milênio, desfazendo qualquer mal-

entendido dogmático a propósito da hipótese da anterioridade do formulário

eucarístico em relação ao relato institucional.

Segundo Giraudo, na todá encontra-se a estrutura literário-teológica do

formulário originário da anáfora cristã. A posição das palavras institucionais,

na evolução das preces eucarísticas, define os tipos de dinâmica oracional.

Nesse sentido, olhando para as anáforas cristãs, pode-se falar de dois tipos de

dinâmicas embolísticas que estruturam literária e teologicamente a oração da

assembléia litúrgica: quando o embolismo está na secção anamnético-

celebrativa, Giraudo fala de anáfora de dinâmica anamnética; já quando o em-

bolismo está na secção epiclética, a anáfora é de dinâmica epiclética. Assim, de

acordo com a posição do enxerto a dinâmica oracional da oração eucarística é

do tipo anamnético ou do tipo epiclético (Giraudo, 2003, p. 251) .

Portanto, as orações eucarísticas estão articuladas em dois parágrafos: a

secção anamnético-celebrativa, sinalizada por Giraudo (2003, p. 255 e339)

com um asterisco (*) e a secção epiclética, sinalizada com dois asteriscos (**).

A estrutura bipartida das anáforas, articulada por uma partícula lógico-temporal

(e agora), contém nove elementos que se articulam internamente. No caso de

um desses elementos estar entre colchetes [] significa sua ausência na respecti-

va anáfora. Vejamos:

Anáforas de Estrutura dinâmica anamnética: sírio-ocidental/antioquena:

*<1> Prefácio (ou Vere dignum): parte anamnético-celebrativa que precede o hino angélico.

<2> Sanctus.

<3> Pós-Sanctus (ou Vere sanctus): parte anamnético-celebrativa que se segue ao hino angé-

lico e conduz ao relato institucional.

<4> Relato institucional: lugar teológico escriturístico do corpo sacramental, que termina com a

ordem de iteração

<5> Anamnese: retomada formal da ordem de iteração mediante a declaração anamnética

(lembrando a sua morte e ressurreição) e a declaração ofertorial (oferecemos-te o pão e o

cálice).

** <6> Epiclese para a transformação das oblatas no corpo sacramental.

61 Roma 20 de julho de 2001.

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<7> Epiclese para a transformação dos comungantes no corpo eclesial.

<8> Intercessão: ampliação da epiclese sobre os comungantes.

<9> Doxologia epiclética: retorno ao tema de louvor inicial.

Anáforas de dinâmica epiclética distinguem três troncos estruturais:

Estrutura Siro-Oriental (Addai

e Sarar)

Estrutura Alexandrina (Marcos

etc.)

(Cânon Romano e as novas

OEs.)

*<1> Prefácio. *<1> Prefácio. *<1> Prefácio.

<2> Sanctus. <2> Intercessões. <2> Sanctus.

<3> Pós-Sanctus. <3> Sanctus. <3>[Pós-Sanctus].

** <4> Intercessões. ** <4> Pós-Sanctus epiclético. ** <4> Epiclese sobre as

oblatas.

<5> Relato. <5> Relato. <5> Relato.

<6> Anamnese. <6> Anamnese. <6> Anamnese.

<7> Epiclese sobre as obla-

tas.

<7> Epiclese sobre as oblatas. <7>Epiclese sobre os co-

mungantes.

<8>Epiclese sobre os co-

mungantes.

<8>Epiclese sobre os comun-

gantes.

<8> Intercessões.

<9> Doxologia epiclética. <9> Doxologia epic1ética. <9> Doxologia epiclética.

Essas estruturas literário-teológicas oferecem uma moldura para a com-

preensão das anáforas a serem estudadas no terceiro capítulo deste estudo. An-

tes, porém, será apresentada brevemente a discussão em torno da hipótese de

Giraudo.

3.3.2. As discussões em torno da hipótese de Cesare Giraudo

Para Giraudo, como vimos acima, a origem da oração eucarística encon-

tra-se no formulário de aliança do Antigo Testamento. Essa estrutura oracional

eucarística, usada por Jesus e seus discípulos na ceia pascal, no contexto da

refeição judaica, prolonga-se na oração litúrgica cristã até chegar às anáforas

patrísticas.

Essa hipótese de Giraudo, apesar de plausível, gera muitas discussões.

Nesse sentido, quais as dificuldades apontadas pelos críticos?

Dentre os críticos, devem, sem dúvida, ser considerados como mais rele-

vantes Enrico Mazza e Jacques Briend. Apesar do “julgamento tão severo” nas

palavras de Giraudo (1991, p.155), são opiniões legítimas, que opõem argu-

mentos importantes.

Enrico Mazza (1992) reconhece o mérito do trabalho de Giraudo. Em es-

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pecial, por ter definido a natureza do relato institucional dentro da liturgia ju-

deu-cristã. Contudo, questiona a hipótese de que a estrutura da oração eucarís-

tica tenha sua origem na oração de aliança chamada todá e a dificuldade de sua

relação com a birkat hámmazon, texto importante na busca pela origem da aná-

fora. Mazza prefere partir da Didaché, fazendo referência à liturgia judaica

para encontrar a origem da oração eucarística.

Considera Mazza (1992) que Giraudo, ao tomar o formulário da todá

como estrutura tipo, para se entender a oração judaico-cristã, assume a estrutu-

ra bipartida deste formulário como critério de análise dos formulários das cele-

brações das várias tradições litúrgicas. Mazza não se ocupa da pré-história vé-

tero-testamentária da eucaristia e, portanto, não entra na questão da todá. Seu

trabalho aborda as paleoanáforas e os textos eucarísticos das grandes famílias

litúrgicas cristãs. Entretanto, a hipótese de Giraudo confronta-se com a hipóte-

se de Mazza, dado que, inevitavelmente, a estrutura bipartida da todá se projeta

sobre as paleoanáforas e sobre as anáforas dos primeiros séculos.

Nesse sentido, para Mazza (1992), a hipótese de Giraudo é uma dedução

que vai longe demais e esbarra num problema de método histórico e estrutural,

em especial, ao considerar a birkat hámmazon como um texto bipartido e não

tripartido. Conclui Mazza (1992):

Eu aceitaria de bom grado a conclusão de Cesare Giraudo sobre a estrutura bi-partida da anáfora se ele mostrasse os vários elos de conjugação e os vários pontos de passagem entre as anáforas cristãs e a Todá. Esta é uma exigência que vem do método histórico e que não depende dos conteúdos das duas hipóteses de solução; ou seja, do valor da subdivisão bipartida ou tripartida. Creio ser a-penas uma questão de metodologia correta (Mazza,1992, p.698).

Na mesma linha, Jacques Briend (1991) propõe-se a fazer algumas observações críticas a respeito da hipótese de Giraudo, que toma a estrutura da aliança como ponto de partida para o desenvolvimento de sua tese. Diante desse caminho, Briend observa que Giraudo sistematiza as formas literárias sem realizar uma análise dos textos escolhidos e toma os formulários de aliança de uma forma es-tática para defender sua tese. Explica-nos o crítico: “Cesare Giraudo não perce-be que passa de uma concepção de aliança reconhecida como uma estrutura cen-tral dinâmica para o uso do formulário de aliança de forma mais estática” (Briend, 1991, p. 155-159).

Briend (1991) questiona ainda o termo todá para qualificar Ne 9, 6-37.

Recorda que esse texto é paradigmático na confissão dos pecados e considera-

do ato final de um processo de aliança:

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A idéia fundamental [Giraudo] é a seguinte: os formulários judaicos são insufi-cientes para explicar o gênero literário da anáfora cristã. Portanto, é necessário recorrer a uma eucologia bíblica anterior e o melhor exemplo encontramos em Ne 9, oração penitencial pronunciada pelo povo como parceiro da aliança divina (Briend, 1991, p. 156).

Portanto, se é uma oração, e mais precisamente uma confissão dos peca-

dos (Ne 9, 2), com um aspecto doxológico fortemente acentuado, é certamente

difícil qualificá-la de todá. Isso porque esse termo designa, de início, um sacri-

fício. Para Briend, Giraudo, preocupado em defender sua tese, esqueceu este

aspecto importante na definição do termo todá (Briend, 1991, p.157).

Em síntese, Mazza e Briend apresentam quatro críticas: (a) a análise que

Giraudo faz dos textos bíblicos, (b) a transformação da aliança em formulários

estáticos, (c) a oposição ao termo todá para designar a estrutura da eucologia

judeu-cristã e (d) a incompatibilidade temática e estrutural entre a todá e a bir-

kat hámmazon.

(a) Para justificar sua abordagem, Giraudo invoca a autoridade de Paul

Beauchamp, com sua posição da “aliança como estrutura central”. Afirma Be-

auchamp, lançando um olhar sobre a obra de Giraudo: “A estrutura litúrgica da

eucaristia encontra sua base na aliança vétero-testamentária” (Beauchamp,

1984, p. 93).

Para entender o alcance do estudo morfo-crítico da aliança em relação à

celebração litúrgica, o crítico deve situar-se em toda a pesquisa bem embasada

que nosso autor faz. Dizer, pois, como Briend (1991, p.156), que Giraudo “sis-

tematiza as formas literárias sem realizar uma análise dos textos escolhidos e

toma os formulários da aliança de uma forma estática para defender sua tese” é

demasiadamente “severo”. A tese de Giraudo apresenta longos estudos exegé-

ticos de unidades literárias e seu contexto. É, sem dúvida, um caminho bíblico

pertinente em busca das origens da oração judeu-cristã. Um itinerário que, para

os cristãos, desemboca na anáfora.

(b) Giraudo não prejudica a dinamicidade da aliança, ao tomar os formu-

lários litúrgicos que expressam o pacto entre Deus e seu povo. Afinal, no Ori-

ente Médio Antigo, os formulários de aliança gravados em tábuas de argila não

se tornavam estáticos por serem nelas inscritos, pois, em intervalos regulares,

eles eram lidos no templo e atualizados no plano sacral da aliança. Isso quer

dizer que os textos não eram gravados em primeiro lugar nas tábuas de argila,

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mas na “mente teológica” do povo orante62.

Nesse sentido, tomar um conjunto de textos bíblicos que expressam a ali-

ança é, na verdade, apresentar sua vivacidade e seu dinamismo, que acontece

na oração litúrgica da comunidade. Nesse espaço, o tempo relacional entre o

povo e seu Deus é sempre renovado pelo diálogo na aliança.

(c) O termo todá aparece como designação técnica da forma literária da

aliança na sua dimensão doxológica, confessional e sacrifical. Seu emprego

para designar a reconciliação na estrutura da aliança é análogo ao emprego do

termo técnico rib, para designar o discurso de defesa profético contra Israel

após a ruptura da aliança (Giraudo,1991, p. 155-160).

Os críticos de Giraudo questionam esse emprego de todá. No caso de

Mazza, temos a questão do método histórico e da estrutura bipartida para que

possa aceitar a hipótese de Giraudo. Nosso crítico propõe que Giraudo apresen-

te os vários elos e os vários pontos de passagem entre as anáforas cristãs e a

todá. Isso certamente é feito, basta que se lance um olhar às diversas incursões

de Giraudo no mundo bíblico e extrabíblico, no intuito de apresentar o desen-

volvimento histórico da sua tese. Contudo, não se pode esperar uma cadeia

ininterrupta e clara de textos que mostrem a evolução das anáforas, ao longo da

história. Como recorda Giraudo, somos como arqueólogos nas câmaras antigas

que, após encontrar alguns resquícios de fragmentos, voltamos para casa e jus-

tapomo-los com infinita paciência na esperança de encontrar um modelo único

para explicar os sucessivos exemplares que possuímos. Infelizmente, isso ainda

não aconteceu e o que temos são hipóteses e caminhos razoáveis na pesquisa,

dentre as quais a posição de Giraudo.

(d) Ao aceitar a todá como origem da oração judaica e, em conseqüência,

da estrutura oracional que nos leva à prece memorial cristã, resta-nos ainda

uma questão de Mazza: a incompatibilidade temática e estrutural entre a todá e

a “Bênção depois da refeição” [birkát hammazón]. Do ponto de vista temático,

Mazza (1993) explica que a todá é uma confissão dos pecados, incompatível

com uma beraká. Considerando essa posição, Giraudo (2003, p. 121) explica: a

expressão birkát hammazón (literalmente: bênção do alimento) é uma braqui-

logia, na qual o alimento não constitui, de modo algum, o objeto da bênção. Na

62 Desse dinamismo e dessa vitalidade dos formulários litúrgicos, temos como exemplo Bar 1, 15-3, 8. In Giraudo (1991, p. 155-160).

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concepção judaica, o termo próprio da atitude de abençoar nunca é a criatura

considerada em si mesma, mas·é sempre Deus, para quem o homem se volta

num movimento de bênção, confissão e ação de graças.

Portanto, considerada como chegou a nós, ou seja, suposto o fenômeno

da estandartização rabínica, a “Bênção depois da refeição” compõe-se de três

parágrafos oracionais, cada um deles chamados de “bênção” [berak]. Nesse

sentido, tem razão Mazza (1993) de falar em divisão tripartida. Contudo, à luz

dos critérios literários provenientes da observação de toda a eucologia do Anti-

go Testamento, a “Bênção depois da refeição” se nos apresenta em sua estrutu-

ra bipartida fundamental, herdada de uma longa tradição na qual está arraigada

a oração judaica: a todá. E que, por sua vez, ilumina a oração memorial das

comunidades cristãs.

As críticas de Mazza e de Briend, apesar de serem dignas de considera-

ção, não criam uma dificuldade radical para a tese de Giraudo, mas impulsio-

nam a reflexão para melhor compreensão e apreensão positivas, como encon-

tramos em vários estudiosos.

Para além de Mazza e Briend , acima citados, encontramos vários estudi-

osos que se posicionam positivamente diante do trabalho de Giraudo, a saber:

Volpe (1995, p. 434-435), Cattaneo (1993, p.774-775), Leijssen (1983, p.152),

Lécuyer (1981,p.158-161), Triacca (1983, p. 458-459) e Beauchamp (1984,

p.92-98). Nesse sentido, Achille Triacca, ao comentar nosso autor, diz: “Girau-

do é um exemplo concreto que deve ser imitado por todos” (Triacca, 1983,

p.459).

Rodriguez-Izquierdo (1993, p.374-375) considera que a contribuição de

Giraudo oferece princípios muito úteis para o estudo da composição das ora-

ções eucarísticas.

3.4. Conclusão

Como assevera Leijssen (1983, p. 152), a obra de Giraudo enriquece e

amplia o estudo das orações eucarísticas, sobretudo no plano da conexão estru-

tural com a oração judaica, que não considera apenas a birkat hammazón, mas

a todá como oração de louvor e confissão ao Deus que renova constantemente

a aliança. Portanto, se considerávamos uma certa dependência da liturgia cristã

em relação à liturgia judaica como um dado adquirido, a partir dos estudos rea-

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lizados durante o século XX (Lécuyer,1981, p. 150), agora com Giraudo po-

demos falar de uma dependência em termos de estrutura literária. Isso quer

dizer que, para entender a oração judaico-cristã e suas eucologias, precisamos

examinar a estrutura fundamental comum que se encontra nos formulários de

aliança do AT [todá], nas séries de bênçãos judaicas [berakôt] e nas anáforas

cristãs.

A discussão em torno dessa tese assumida por Giraudo, sem dúvida, re-

vela que ainda estamos diante de uma questão aberta. Contudo, seguindo Di

Napoli (1994, p. 302), pode-se dizer que o fascínio, a fluência e a riqueza da

tese do nosso autor exigem de qualquer estudioso um mínimo de atenção. Por-

tanto, estamos diante de uma hipótese de trabalho que consideramos razoável e

pode nos conduzir no julgamento sobre as anáforas cristãs de composição re-

cente. Em síntese, seguindo Giraudo, se a Igreja e seus pastores desejam fazer

um caminho autêntico em direção ao aprofundamento do “intellectus eucharis-

tiae”, não lhes restará outro caminho senão retornar ao método mistagógico do

primeiro milênio, sem nunca perder de vista, obviamente, os ensinamentos e

reflexões do magistério do segundo milênio (Giraudo, 1989, p. 637).

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