Memorial do Inferno. A saga da família Almeida no Jardim do Éden

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MEMORIAL DO INFERNO A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden

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Livro autobiográfico, que conta a história de uma família composta de pai e mãe analfabetos e oito filhos. A fome e a miséria batem à porta todos os dias. Junto, traz a tentação e o risco...

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MEMORIAL DO INFERNOA Saga da Família Almeida no Jardim do Éden

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Todos os direitos desta edição reservados ao autor.

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MEMORIAL DO INFERNO

São Paulo, 2007

VALDECK ALMEIDA DE JESUS

A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden

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© 2007 de Valdeck Almeida de JesusTítulo Original em Português:Memorial do Inferno - A Saga da Família Almeida no Jardim do Éden

Coordenação editorial: Ednei ProcópioComercial: Simone MateusRevisão: ???????Editoração eletrônica e capa: Gilberto Gonzales SerranoImpressão: Imagem Digital

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Almeida de Jesus, Valdeck.Memorial do Inferno - A Saga da Família Almeida no Jardim

do Éden / Valdeck Almeida de Jesus – São Paulo: Giz Editorial, 2007.

ISBN: 85-9982X-XX-X 978-85-9982X-XX-X

1. ???? I. Título.

06-XXXX CDD-XXX.XX

Índice para Catálogo Sistemático1. Crônicas: Literatura brasileira 869.93

É PROIBIDA A REPRODUÇÃO

Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida,copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ougravações, assim como traduzida, sem a permissão, por escrito do

autor. Os infratores serão punidos pela Lei nº 9.610/98

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

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Aos meus pais, João Alexandre de Jesus e Paula Almeidade Jesus, falecidos, que foram o alicerce e os principais pilaresde minha vida.

Aos meus irmãos, Valquíria, Valmir, Valdecy, Valdir, Vitório,Vivaldo e Ivonete, minhas únicas e raríssimas jóias.

Aos meus sobrinhos, Murilo, Rodrigo, Ramon, RobertoJunior, Vítor e Tiago.

Às minhas sobrinhas, Delma, Jéssica, Amanda e PaulaFernanda.

Ao meu filho, Valdeck Almeida de Jesus Junior, quesempre me dá motivos para evoluir.

Aos amigos que passaram por minha vida deixando grandese indeléveis marcas.

A todos os que, de forma anônima ou não, ajudaramminha família a sobreviver neste país chamado Brasil.

APOIO

Ivan Ramos

Lázaro Ramos

Vanise Vergasta

AGRADECIMENTOS

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CAPA (ilustração)

Jorge Cravo(artista plástico baiano)

PREFÁCIO

Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho

(escritor, poeta e jornalista)

Valdeck, muita sorte em seu caminho.

BBBeijos.

Jean Wyllys, 18 de abril de 2005

(Dedicatória no livro Aflitos, de Jean Wyllys, publicadopela Fundação Casa de Jorge Amado, COPENE,

Salvador, 2001).

Eli, Eli, lamá sabactâni: Deus meu, Deus meu, por que medesamparaste?

Mateus, Capítulo 27, Versículo 46

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SUMÁRIO

[Espaço reservado para primeira página do Sumário]

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[Espaço reservado para segunda página do Sumário]

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[Espaço reservado para terceira página do Sumário]

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APRESENTAÇÃO

Para que melhor se compreenda a referência que aqui se faz ao“Jardim do Éden”, é necessária uma prévia explicação. Minha famíliainiciou-se praticamente a partir das figuras de minha mãe e meu pai.Não tive avôs nem avós, primos, tios etc. Assim, tracei um paraleloimaginário entre minha história e a história mitológica contada naBíblia.

Este é um livro autobiográfico, onde assumo o papel do narra-dor, para contar a história de minha vida e a de minha família, quecompreende: mãe, pai e sete irmãos. Uma saga protagonizada por umafamília de baixa renda, residente em cidade de médio porte no interi-or da Bahia, que expõe, ao longo de vários tópicos, toda a ordem dedificuldades que essas pessoas enfrentaram: crises financeiras, faltade habitação, de alimentação, de escola básica, de tratamentos médi-co-odontológicos e tanto mais. Ao contrário do que costuma ocorrercom esse tipo de gente, esta família não mediu esforços para superaras muitas barreiras que lhe foram impostas, vencendo os mais diver-sos obstáculos. Sem perder a fé no futuro, sempre incerto e duvidoso,a Família Almeida conseguiu, com sua luta, atingir os objetivos alme-jados e marcar seu lugar ao sol.

Estas páginas, que contam o duro dia-a-dia desta família, têmpor fim incentivar outros sofridos brasileiros a acreditar em seu país ea lutar por seus ideais.

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A memória individual assume uma dimensão grandiosa ao apre-sentar aspectos marcantes da memória social. Essa é uma das caracte-rísticas do livro autobiográfico de Valdeck Almeida de Jesus. Com umtítulo atrativo e carregado de senso de humor (uma das marcas dapersonalidade de Valdeck, mesmo nos momentos mais difíceis de suavida), Memorial do Inferno - A Saga da Família Almeida no Jardimdo Éden revela a trajetória de uma vida sertaneja que comprova a fra-se que se tornou célebre no livro Os Sertões, de Euclides da Cunha: “osertanejo é antes de tudo um forte”.

Para enfrentar os desafios que Valdeck e sua família sofreramem Jequié, sertão baiano, é preciso muita força de vontade e determi-nação. E estes são atributos inerentes à sua vida.

Conheci Valdeck nas lutas estudantis que realizamos no Insti-tuto de Educação Régis Pacheco (IERP), o maior colégio de ensinomédio de Jequié. Na época em que fui eleito presidente do GrêmioEstudantil Dinaelza Coqueiro, do IERP, Valdeck fazia parte da direto-ria, na qualidade de diretor de Imprensa, onde foi co-autor do jornalJornada Estudantil. Nossa gestão ficou marcada na história, uma vezque, além dos movimentos que fizemos em prol da melhoria do ensi-no e do acesso à cultura e ao esporte, foi esta a primeira diretoria degrêmio estudantil livre após o regime militar e a redemocratização do

PREFÁCIODomingos Ailton Ribeiro de Carvalho**

(**) Domingos Ailton Ribeiro de Carvalho é poeta, escritor e mes-tre em Memória Social e Documento. Fundador e Membro da Academiade Letras de Jequié.

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país. Já no período de estudante do IERP e ativista do movimentoestudantil, Valdeck despontava como um poeta criativo e como umartista em busca de seu espaço.

Antes mesmo do advento da Internet, ele já entrava em sintoniacom o mundo globalizado, como membro ativo do campo literário,fato que lhe possibilitou participar de antologias como: Poetas Brasi-leiros de Hoje, lançada pela Shogun Editora, Rio de Janeiro, 1984;Transcendental, Art’Labor Eventos e Produções Artísticas Ltda., Sal-vador, 1998; Heartache Poems, iUniverse, New York, 2004; Antolo-gia de Poetas Brasileiros Contemporâneos - 14º volume e Antologiade Poetas Brasileiros Contemporâneos - 15º volume, Câmara Brasi-leira de Jovens Escritores, Rio de Janeiro, 2005; Ensaios Poéticos,Academia Virtual Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2005. Publicouainda outros trabalhos literários em jornais de grande circulação nacapital e no interior do estado da Bahia, além de ter sido colaboradordo jornal A Prosa, de Brasília/DF. Publicou, em 2005, o livro de poe-sias Feitiço Contra o Feiticeiro, dezenove anos após ter divulgado noJornal de Jequié notícia sobre o breve lançamento do referido livro.Mais recentemente, lançou Jamais Esquecerei do Brother JeanWyllys, pela Casa do Novo Autor, São Paulo, 2005, e fundou o fã-clu-be do jornalista e escritor Jean Wyllys.

Neste livro, Memorial do Inferno - A Saga da Família Almeidano Jardim do Éden, Valdeck Almeida de Jesus narra, com detalhes, ahistória de sua família, abrangendo sua mãe, seu pai e seus sete ir-mãos, onde conta passagens de momentos difíceis, como aquela ondediz que “a comida variava de pão seco com café preto a pirão de fari-nha com água fria. Muitas vezes dormíamos com fome, acreditandono que minha mãe dizia: ‘amanhã Jesus vai trazer comida’. Eu meirritava e xingava muito, pois todos os dias eu ouvia a mesma históriae Jesus nunca chegava com a comida prometida”. Mas não é só. Oautor se reporta também a momentos de sucesso, como o fato de tersido aprovado em concurso do Tribunal Regional do Trabalho, emdecorrência da sua boa capacidade intelectual, e de ter sido, desde cri-ança, um aluno exemplar.

Valdeck Almeida de Jesus é exemplo para todos que sonham eprocuram concretizar seus sonhos. Ele tem um pensamento fascinan-te: devemos ter sempre uma atitude positiva diante da vida e deixar

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esta imagem transparecer aos outros. Por este e mais tantos ensina-mentos, e pela edificante trajetória de vida do autor, vale a pena a lei-tura deste extraordinário livro.

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MEU PAI, MINHA MÃE

Eu devia ter meus cinco anos de idade, mais ou menos. Ao en-tardecer, surgia ele ao longe, com um machado nas costas, roupas sur-radas e rasgadas pela ação do mato. As primeiras lembranças que te-nho dele são de quando eu e Quira ficávamos na porta da casa (casaalugada de Nazinha), esperando por sua chegada no final da tarde. Eele nunca esquecia de passar na venda de Seu Júlio para nos comprarbombons.

Semi-analfabeto, trabalhava em fazendas, cortando madeira.Não sei muito de sua vida, pois, além de trabalhar muito e estar sem-pre fora de casa, na época em que convivi com ele eu era muito crian-ça; além disso, em minha adolescência, meu pai vivia doente e nãotinha um espírito conversador como o de minha mãe. Antes de se ca-sar com ela, teve um outro casamento, que lhe deu seis filhos, até ficarviúvo.

João Alexandre de Jesus era um pai do tipo rígido, que batia decinto quando necessário. Mas também sabia ser amigo, dar bons con-selhos e fazer carinhos, ao seu modo. Lembro-me, uma vez, já moran-do na casa de Amanda, de uma ocasião em que ele queria me bater,por uma travessura, da qual não me recordo bem. A porta da rua eramuito alta, para descer havia uma espécie de escada. O terreiro era decascalho. No afã de fugir das cintadas certeiras, joguei-me porta abai-xo, caindo e esfolando toda a barriga no cascalho. Meu tórax e abdo-me sangravam, eu chorava de dor. Então ele disse: “Vem!”. Eu relutei,com medo de apanhar. E ele continuou já com a voz mais mansa: “Nãovou te bater mais”. Eu fui e ele não bateu... Esta cena se inscreveu parasempre em minha memória.

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Era um homem de pouca saúde. Sobretudo, pelas más condi-ções de seu tipo de trabalho. Lembro-me de que minha mãe contavasobre uma tora de madeira (uma árvore) que havia caído em cima demeu pai, em uma das roças onde trabalhou. Ele também sofria de umasinusite crônica, que o deixava atordoado. Vivia a queixar-se de doresde cabeça. Com a velhice, tudo foi se acumulando, e ele acabou mor-rendo, vitimado por uma série de problemas de saúde.

Ao final da vida, havia momentos em que perdia a memória.Ficou violento e, por segurança, minha mãe passou a mantê-lo tran-cado no quarto, para evitar que se ferisse ou que saísse pela rua semrumo. Nessa época, início dos anos 80, criou o hábito de pedir comidaàs pessoas que iam visitá-lo. Dizia sentir fome, porque os filhos comi-am tudo e nada deixavam para ele. As pessoas acreditavam no que eledizia e lhe levavam comida, mas não sem antes advertir-nos para nãomais agirmos daquela maneira com o nosso próprio pai. Para resolvero assunto, minha mãe, um dia, pediu aos que traziam comida a meupai para ficarem escondidos e observá-la enquanto lhe dava a comida;ele comia tudo. Depois, chamava a visita para vê-lo novamente. Comoele não reconhecia ninguém, nem os próprios filhos, repetia a mesmahistória de que teríamos comido tudo, sem deixar nada para ele.

Meu pai foi aposentado por invalidez. Recebia um salário míni-mo por mês. Quando morreu, esta pequena renda se extinguiu e mi-nha mãe se viu com oito filhos menores, sem condições financeiras desustentá-los.

O velho João - como costumávamos chamá-lo - sofreu muitodurante a vida e, quando esteve doente, de cama, quase à beira damorte, seu sofrimento foi muito maior. O sofrimento dele era tambémo nosso sofrimento. No dia de sua morte, Albérico, um parente distan-te, tirou fotografias de meu pai na cama, na hora em que agonizava.Eram seus últimos momentos de vida. Assisti a tudo e ajudei, inclusi-ve, a colocar uma vela em sua mão. Para ser franco, devo dizer que nãome comovi com sua partida, não senti sua falta, não fiquei triste. Aocontrário, senti mais alívio por vê-lo partindo do que a dor de perderum ente querido. Vim chorar sua falta somente dez anos depois. Eraum domingo de Dia dos Pais, e neste dia senti profundamente a suaausência. Fiz até um poema em sua homenagem.

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Paula, minha mãe, costumava falar demais. Sempre contavamuitas histórias de sua vida, mas, na maioria das vezes, nós, os filhos,não levávamos muito a sério o que ouvíamos. Na maior parte do tem-po, simplesmente fingíamos ouvir suas histórias, e, em outras ocasi-ões, corríamos, deixando-a a falar sozinha.

Ela contava que a mãe tinha morrido de parto e que fora criadapelo pai até os doze anos de idade; que sua avó paterna era uma índia“pega a dente de cachorro”. Segundo ela contava, seu pai era um am-bulante, louro e de olhos azuis. Essa história foi confirmada, após suamorte, por uns primos, descobertos por minha irmã Valquíria lá pertodo Frisuba – cerca de 15 quilômetros de Jequié -, local onde minhamãe passou boa parte da infância e juventude.

Cabe dizer aqui que nossa idéia de família remonta praticamen-te à figura de minha mãe e de meu pai, já que não tínhamos conheci-mento da existência de outros parentes.

O fato de meu avô materno ter sido loiro e de olhos azuis explicao fato de quase todos nós termos nascido com cabelos loiros, que maistarde teriam sua cor modificada para preto ou castanho claro, pelosefeitos do tempo. Explica também os olhos claros com que alguns denós fomos contemplados. Antenor, um de nossos recém-descobertosprimos, afirma que esse avô materno era descendente de italianos.Diz que ele vivia pelas bandas de Santo Antônio de Jesus e que era,realmente, um ambulante. Trabalhava com confecção artesanal decestas e produtos feitos com palha.

Minha mãe sempre teve problemas sérios de saúde. Contava que,quando criança, sofria de uma espécie de doença, que nunca entendibem do que se tratava, se um problema de coração ou de ordem espi-ritual. Dizia que, durante uma época, ficava presa num quarto, amar-rada em algo semelhante a uma camisa-de-força, por não ter controledos movimentos do corpo. Ficava a se debater todo o tempo, a pontode os parentes precisarem amarrá-la à essa camisa-de-força improvi-sada, feita com couro de boi, para que não se machucasse. Essa situa-ção deve ter durado muito tempo e marcado bastante sua vida, poisfreqüentemente voltava a tocar no assunto.

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Quando já tínhamos mais consciência da vida, presenciamosmuitas de suas crises: sistema nervoso, asma, coração. Costumava fi-car, por boa parte do tempo, sem os movimentos dos membros inferi-ores, praticamente paralisada. Arrastava-se pelo chão, sem qualquersensibilidade nas pernas. Não sentia a parte inferior de seu corpo nemmesmo ao fazer suas necessidades. Era um sofrimento só, tanto paraela quanto para as crianças. Precisava de cadeira de rodas. Consegui-mos uma, depois que tive a idéia de enviar uma carta ao programaapresentado por Geraldo Teixeira, na Rádio Baiana de Jequié. Nestaoportunidade, foi-nos doada uma cadeira de rodas usada, que serviu àminha mãe até ela apresentar melhoras e poder substituí-la por umpar de muletas. Após muitos anos, finalmente, voltou a andar.

Essa foi uma das fases mais marcantes para a vida de minhamãe, e também para a nossa. Ficávamos mortos de vergonha por ter-mos de empurrar aquela cadeira rua acima e rua abaixo, para que elaconseguisse as esmolas que ajudariam a gente a comer, beber, se ves-tir, estudar, sobreviver. A cadeira era imensa, minha mãe pesada, enós franzinos e fracos para agüentarmos todo aquele peso; além daquestão, é claro, da timidez e vergonha de sermos vistos empurrandoa cadeira de rodas. Mas não tínhamos escolha. Ou empurrávamos acadeira para pedir esmolas ou morríamos de fome. De minha parte,sentia uma vergonha enorme ao ser visto conduzindo aquela cadeirade rodas pelas ruas, sob o sol quente.

Durante todo o tempo passado ao lado de minha mãe, o quemais me recordo, além das constantes mudanças de endereço, já quenão morávamos em casa própria, eram as idas e vindas ao HospitalGeral Prado Valadares, onde ela permanecia internada por grandesintervalos de tempo. Durante essas fases, cada um dos filhos ficava nacasa de um vizinho, até que ela retornasse e mostrasse condições dereassumir a casa e as crianças. Esses vizinhos chegavam a lhe proporque doasse os filhos, alegando que as crianças poderiam ter vida maisdigna e confortável, mas ela jamais admitiria tal hipótese. Dizia: “Ondecome um, comem dois”. Passava apertos, privações, necessidades, masjamais seria capaz de doar qualquer um de seus filhos. Era uma expe-riência sem igual, já que na casa do anfitrião tínhamos tudo o que nãotínhamos em nossa casa: comida, cama, banho, televisão. Mas o dese-jo maior era de que minha mãe pudesse voltar do hospital e todos re-

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tornássemos ao aconchego do lar e do colo materno. Era uma grandefesta quando recebíamos a notícia de que nossa mãe tinha tido altamédica e que estava voltando para casa.

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CENAS DE UMA INFÂNCIA

Primeira residência – Casa de Nazinha

A casa ficava num local que hoje se chama “Banca”, no bairroJequiezinho, em Jequié. Na época em que moramos ali, não havia águaencanada, linha de ônibus nem calçamento nas ruas. Cabe aqui res-saltar que, passados mais de quarenta anos, esta e outras ruas do bair-ro permanecem ainda sem calçamento e sem linha regular de trans-porte coletivo. Apenas uma linha de ônibus circula nos arredores.

Os esgotos ainda correm a céu aberto e as casas mantêm o as-pecto da pobreza e da miséria que ainda ronda o antigo bairro. Vivi aliboa parte de minha infância. Passei fome e brinquei por entre os lixos,catando ossos para vender. Freqüentemente pedia comida na casa deum e de outro. Este fato rendeu a mim e à minha irmã Valquíria (Qui-ra) alguns apelidos do tipo “Gordurinha” (Quira) e “Paquira” (eu), pois,quando íamos à casa de Seu “Santin” pedir comida, eu costumava dizer:“Minha mãe falou pro senhor mandar um pedacinho de carne PAQUI-RA”, enquanto Quira vivia pedindo “uma gordurinha”. Seu “Santin” ma-tava porco e era tido como rico, pois em sua casa não faltavam comida,energia elétrica e sanitário (com uma fossa no quintal).

Lembro-me de uma vez que eu estava catando ossos nos fundosdo quintal dele, quando, ao pular sobre um esgoto, caí, atolando asduas pernas dentro das bostas e cortando o pé direito nos cacos devidros alojados no fundo do lamaçal. Foi um horror. Um drama. Corripara casa aos prantos e minha mãe cuidou de mim. Eu gritava e cho-rava de dor, desesperado de ver toda aquela inundação sanguínea ajorrar do meu pé.

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A casa era de taipa. Dois quartos, uma salinha e uma cozinhaminúscula. Foi construída sobre uma encosta, sendo que a parte dafrente da casa, que dava para a rua principal, tinha uma escada enor-me para descer até o nível da rua. E a porta dos fundos era no mesmonível do solo, porém dava para uma ladeira, que ia dali da porta dacozinha até a rua que passava atrás. Era casa de aluguel. Acredito queValquíria tenha nascido ali, já que devemos ter morado naquela casapor volta do ano de 1967. Recordo-me bem do momento em que mi-nha mãe entrou em trabalho de parto e foi para o hospital. Ao voltarcom o nenê, sua cama foi arrumada com lençóis floridos. Ficava alideitada o tempo todo com seu bebê, respeitando o resguardo do parto.

Os vizinhos eram os próprios donos da casa: Maria, mãe de Na-zinha, que, por sua vez, era mãe de Lúcia e de Domingos. Havia tam-bém uma família que morava perto: Maria de Ademário, sua filha Lú-cia e mais outros filhos, dos quais não me recordo bem. Atrás da casahavia um beco, onde se guardavam ossos. Durante a noite, os cachor-ros apareciam para roê-los. Faziam uma algazarra que me amedron-tava. Por inúmeras vezes, acordava chorando e gritando de medo. Acha-va que os cães estavam embaixo de minha cama de lona. Mas logoaparecia minha mãe para me tranqüilizar, dizendo que os cachorrosestavam do lado de fora. E, como eu não me convencia, ela me levavapara dormir em sua cama.

Nossos móveis se resumiam a uma pequena cama de madeira eum armário de cozinha, do tipo cristaleira, porém sem os vidros nasportas. O fogão era de barro e o combustível era lenha. Não havia águanem luz. Saneamento básico, nem pensar. Nenhuma casa, em todo obairro, possuía esgotamento sanitário.

Eu morava a cerca de 500 ou 600 metros da venda de Seu Júlio,que para mim pareciam quilômetros. Aos olhos de uma criança tudo éimenso, gigantesco... E, para aumentar a sensação de distância, deminha casa até a venda não havia casas nem de um lado nem do outroda rua. O que havia era uma cerca, formando uma estrada, uma passa-gem chamada de “corredor”, por onde passava muito gado. Muitasvezes eu via passar centenas de milhares de animais, guiados porvaqueiros, que advertiam aos moradores do perigo de se aproxi-mar da manada. Era um espetáculo que durava horas e horas, comose fosse um mar interminável de bois e de vacas. Nos dias de hoje,

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esse espetáculo já não existe. As criações se restringem a lugaresmais afastados da cidade e também já não há tantos animais comohavia antigamente.

Quando eu ia à venda de Seu Júlio comprar alguma coisa, tinhasempre que enfrentar um menino que me batia, enquanto o tio deleficava esperando eu acabar de apanhar. Uma vez, apanhei bastantedesse garoto. Quando minha mãe soube que isso acontecia, procurouos parentes dele e se queixou. Desse dia em diante não apanhei mais.

Uma lembrança que até hoje habita a minha mente é a do boatosobre o “fim do mundo” ou “dia da escuridão”. Diziam que o mundoficaria sob as trevas. Minha mãe, muito precavida, tinha várias velasbentas, que seriam as únicas a permanecerem acesas quando o “escu-ro” viesse, segundo ela. Tinha também água benta e pão bento, queseriam os únicos alimentos permitidos durante os dias de escuridão.Penso que tais boatos eram criados pela igreja católica para amedron-tar as pessoas. Quanto à previsão de fim do mundo, minha mãe acre-ditava piamente que o mundo se acabaria no ano 2000. A passagemdesse ano foi quase uma decepção para ela, mas também uma alegria,por saber que viveria um pouco mais aqui na Terra. No entanto, a pre-visão que fez de sua própria morte, que viria a ocorrer neste mesmoano de 2000, realmente aconteceu, no triste mês de junho.

Marcaram-me também as folhas de juá, que usávamos comocreme dental. A fruta do juazeiro é pequena como uma azeitona, po-rém redonda e muito doce. As folhas, no entanto, são amargas e, se-gundo a crença popular, possuem propriedades medicinais, prevenindocáries e outras doenças bucais. Crença ou não, fato é que, hoje, muitoscremes dentais exibem em suas embalagens, com orgulho, a folha dejuá na composição do produto. Uma outra fruta que comíamos muitoera a “quixaba”, parecida com o juá, porém de cor preta, diferente daoutra, que, quando madura, fica amarelinha.

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Moramos também numa casa na antiga “Rua da Palha”, atualRua Vovó Camila, no Jequiezinho. Era uma pobreza franciscana portodo o bairro. Casas de palha e de “adobões”, muita miséria e falta de

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tudo. Recordo-me que nessa época eu e Quira freqüentávamos umaescola na casa de Seu Canuto. A casa era imensa aos nossos olhos.Anos mais tarde, voltamos ali e constatamos que a casa não era tãogrande assim. Era apenas a impressão dos olhos de uma criança, queamplia tudo. Havia um extenso matagal onde brincávamos. As casasficavam somente de um lado da rua. Do outro, era mato fechado, ondeos moradores jogavam o lixo e onde as crianças brincavam de escon-de-esconde. A lenha para os fogões era retirada também dali. Em diasde ventania, o lixo era espalhado pra todo lado, inclusive pra cima dascasas. Lembro de uma expressão que aprendi, nessa época, de tantoque os mais velhos repetiam. Quando o vento começava a soprar for-te, costumava-se dizer: “Aqui tem Maria Virgem!”. Era uma alusão àmãe de Jesus, para que o vento diminuísse sua intensidade e evitasseatingir a casa daqueles que pronunciavam a “santa frase”.

Atrás da casa havia também muito mato. Havia sítios, onde osproprietários criavam cabras e onde minha mãe buscava água paraabastecer a casa. Um desses sítios pertencia a um “primo” de minhamãe. Mas, como não dispúnhamos de muitas informações a respeitodos familiares dela, sempre achávamos que as pessoas que ela nosapresentava como parentes eram apenas pessoas com as quais tinhaalguma afinidade. Esta rua era um prolongamento do “corredor” poronde passava o gado para as fazendas, tocado pelos vaqueiros.

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Moramos ainda na casa alugada de Amanda, na Rua ProfessoraVirgínia Ribeiro. Era uma casa de meia água, modelo de construçãono qual o telhado se projeta em apenas uma direção, da parede maisalta para a mais baixa. Quando chovia, caía água de chuva por cima daparede, e minha mãe ficava morrendo de medo que a parede caísse, jáque era feita de “adobões”. A casa não tinha água encanada, luz elétri-ca nem nada.

Nessa época, a Rua Professora Virgínia Ribeiro também tinhacasas somente de um lado. No outro, havia um matagal cheio de plan-ta espinhosa, mandacaru, urtiga, cansanção e arbustos da espécie. Eradali que as pessoas, inclusive a nossa família, tiravam, para o consu-mo diário, a lenha, que era o combustível dos fogões daquele tempo. O

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fogão à lenha, marca registrada de todas as casas da época, enorme,feito de adobes, ficava bem no meio da cozinha.

Nossa família costumava ter sempre muitos problemas de saú-de. Uma vez, fiquei com o corpo todo ferido. Não sei que doença eraaquela, mas lembro que minha mãe me banhava com sumo de folhasde “vassourinha”. Eu sentia muita dor quando o sumo entrava em con-tato com as feridas. Minha irmã Nete também apresentou problemasde ferimentos pelo corpo. Mas, no caso dela, as erupções se concen-travam mais no couro cabeludo que, de tão ferido e purulento, acu-mulava até bicho de mosca em sua cabeça. Era uma nojeira só.

Minha madrinha, Dona Nenê, era uma senhora negra que mo-rava perto de nossa casa. Eu a tratava por Comadre Nenê, exatamentecomo minha mãe a chamava. Nunca consegui pedir-lhe a bênção nemchamá-la de “madrinha”.

Desta época, lembro nitidamente de um episódio em que eu,com meus seis ou sete anos de idade, viajava no ônibus com minhamãe, e um passageiro, sentado no banco de trás, começou a brincarcomigo. Como eu não respondia nem participava da brincadeira, ohomem protestou dizendo que eu era muito enfezado e que tinha acara fechada. Hoje, ao lembrar desta cena, percebo o quanto mudei.Atualmente, sou um sujeito brincalhão, que tenta sempre se manteralegre e tirar uma boa lição de tudo o que a vida possa oferecer, seja debom ou de ruim.

Insere-se também nessa época um outro episódio do qual ja-mais esquecerei. Sempre via as pessoas pularem dos ônibus antes queeles parassem no ponto. Achava aquilo tão bonito que me senti tenta-do a fazer o mesmo. Um dia, antes de o ônibus parar no ponto onde eudeveria descer, me joguei. Logicamente, acabei caindo de mau jeito eme machucando. Fiquei todo ralado e sujo de terra. Entrevado no chão,todo empoeirado, me apavorei entre arranhões, sangue e lágrimas.Minha mãe ficou desesperada. O motorista e os passageiros descerampara ver o que havia acontecido. Foi uma confusão só. Felizmente,tudo não passou de um susto e de raladuras pelo corpo inteiro. Umdesconhecido que passava na hora se ofereceu para me levar de bici-cleta até em casa. Mais uma lição aprendida.

Nessa época, meus irmãos Zezé e Édson, da primeira família demeu pai, visitavam meu pai regularmente. E, numa dessas visitas, acha-

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ram por bem levá-lo com eles para São Paulo, onde poderiam cuidarmelhor de sua saúde. Ficou então decidido que minha mãe, eu, Val-quíria, Valmir (Mi) e Valdecy (China) – filhos da segunda família demeu pai – ficaríamos em Jequié, na casa de Amanda, cujo aluguel pas-saria a ser pago por Édson e Zezé. Ficou acertado que as despesas coma nossa alimentação também correriam por conta deles, que enviari-am o dinheiro diretamente para Amanda, dona da casa onde moráva-mos, e para Preta, dona da venda onde a comida seria comprada.

Todos os meses as despesas eram cobertas, conforme o acorda-do. Mas, com o passar do tempo, o dinheiro parou de chegar, tantopara o aluguel quanto para a comida, e Preta parou de nos vender fia-do. Quanto à casa, Amanda permitiu que continuássemos morando,agora de graça, com pena de mandar embora uma mãe com quatrofilhos pequenos. Por falta de comida, minha mãe não teve outra saídaa não ser sair para pedir esmolas pelas casas do centro da cidade. Massempre dizia que estava trabalhando. Não queria que a vizinhançasoubesse que ela era uma pedinte (no interior, pedinte é chamado de“esmoler”).

Onde atualmente está erguido o edifício Mansão Avenida, naAvenida Rio Branco, Centro da Cidade, existia um casarão enorme.Era um dos pontos onde minha mãe costumava pedir esmolas, arras-tando eu e Quira pela cidade inteira. Não lembro o nome da proprietá-ria da casa, mas lembro claramente que existia em seu quintal um car-rinho tipo jipe, com quatro rodas, e que se locomovia por pedais inter-nos. Era um carro todo velho e enferrujado, mas com o qual nos diver-tíamos muito toda vez que íamos lá. Brigávamos para disputar quemiria brincar com o carro. Minha mãe, diante da cena, intervinha paraevitar a confusão, dizendo que meu pai traria um Velotrol novo de SãoPaulo, assim que voltasse de seu tratamento de saúde. Passou-se umavida inteira e o Velotrol não chegou. Mas ficou a lembrança desta pro-messa em nossas mentes, que jamais será apagada.

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Não havia transporte coletivo circulando naquela região. Erauma rua de pobres, e pobres não tinham dinheiro para pagar ônibus.

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A linha que passava mais perto, a um quilômetro de distância, cortavaa Avenida Franz Gedeon. O trajeto até ali tinha de ser feito a pé ou, emcaso de emergência, tentava-se arranjar uma carona, coisa muito difí-cil, uma vez que toda a vizinhança era pobre e mal tinha dinheiro paraa comida. Também não existia calçamento. Anos depois, a energia elé-trica foi ligada na rua, mas em nossa casa nunca pudemos usufruirdeste benefício, pois não tínhamos condições de arcar com a contamensal. Lembro dos inúmeros buracos que a companhia de energiaelétrica abriu na rua para colocar os postes, dentro dos quais a crian-çada costumava se divertir.

Minha mãe passou a pegar água na casa de Amanda, tão logoela foi instalada lá. Usava-a para consumo e para lavar roupas e pra-tos. Nessa época, éramos apenas eu, Quira, Mi e China, os quatro fi-lhos mais velhos. Com o passar do tempo, as coisas foram melhoran-do. Minha mãe já contava com uma boa quantidade de pessoas conhe-cidas nos arredores, e muitas dessas pessoas ajudavam regularmentea nossa família. À medida que o tempo passava, minha mãe ia apren-dendo a cultivar cada vez mais suas amizades. E, como ficamos mui-tos anos morando nesta casa, o círculo foi aumentando.

Certa vez, morando ali, fui com minha mãe ao centro da cidadepara pedir esmolas. Ao passarmos pela Praça Ruy Barbosa, vi algunsclipes de papel espalhados pelo chão. Achei bonito e parei para catar.Quando terminei de pegar todos, olhei em volta à procura de minhamãe e não a vi por perto. Perdi-me dela, fiquei apavorado. Comecei achorar e a gritar por ela. Aos prantos, lembro de dar voltas e maisvoltas no quarteirão onde ficava o antigo Mercado Municipal.

No final, um senhor chamado Seu Nenzinho me pegou pelo bra-ço e me levou para a Rádio Baiana de Jequié. Lá me colocou no ar, noprograma de Geraldo Teixeira, e depois me levou para a sua casa, ondepermaneci até que minha mãe fosse me buscar. Ela já conhecia SeuNenzinho e a esposa, Dona Lia; meu pai já havia trabalhado em umade suas fazendas. Fiquei em sua casa apenas um dia. No dia seguinte,minha mãe já estava lá para me pegar.

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Primeira escola

Foi na Escola de Lina que eu e Quira começamos a estudar. Eucom seis anos de idade e ela com cinco. Era uma escola particular, quefuncionava dentro da casa da professora, na Rua da Banca. Até hoje aescola existe, no mesmo lugar. Saíamos pela manhã e voltávamos ànoite, o turno era em tempo integral. Foi lá que aprendi o ABC. Quan-do não sabíamos o dever ou esquecíamos o nome de alguma letra, aprofessora nos batia com palmatórias. Mamãe nos dava dinheiro paraa merenda, cinco centavos. Na hora do recreio saíamos para comprara merenda e brincar dentro de um matagal que rodeava a escola.

Íamos e voltávamos sozinhos, não havia perigo algum. Nessaépoca, minha mãe sempre me mandava à Venda de Preta (que erabranca) para comprar algo. Permanece ainda nítida a lembrança domiolo dos pães, que comia pelo caminho. Outro episódio bizarro foiquando fui comprar um ovo e acabei por esmagá-lo entre os dedos, detanto cuidado para não deixá-lo cair. Voltei para casa com os frag-mentos da casca do ovo na mão, e, quando minha mãe perguntou porele, abri a mão, que guardava apenas as fraturas de sua casca. Não, elanão me bateu nem me castigou por causa disso. Compreendera o meudilema.

A segunda escola foi a de Neuza, onde aprendi a ler e a recordar(ler novamente) o livro Alice. Aprendíamos a ler e a fazer contas com atabuada. Como eu terminava de ler o livro inteiro antes do final doano, tinha que “recordar”. Chorava muito quando não conseguia leruma determinada palavra e era colocado de castigo, em frente à pro-fessora, até conseguir lê-la corretamente.

Formação Religiosa

Nascemos num país católico e, fatalmente, seguimos a religiãoda maioria. A vida de minha mãe era nas igrejas. Não faltava às missasdominicais e, nos demais dias da semana, sempre que possível, arru-mava um jeito de assistir às missas regulares. Lembro-me, com certaternura, de uma amiga dela, chamada Anália, mãe de Roxa, Pedro eDozinho, também muito fervorosa, que, de vez em quando, nos traziahóstias para colocarmos na sopa. Não eram propriamente as hóstias

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que eram servidas na missa, mas sim a folha de goma com os furos deonde haviam sido retiradas as hóstias.

Eu e Quira freqüentávamos o catecismo, que era coordenadopor Isaías, um dos cristãos da Igreja do Convento. Para nós, era umafesta. Ele vinha nos buscar em casa, de carro, levando também váriasoutras crianças. Era o melhor dia da semana, pois significava a chanceque tínhamos de conhecer e interagir com outras pessoas, sem falarna diversão que tudo aquilo nos proporcionava.

Minha mãe adorava a igreja católica e nunca perdia uma procis-são. Uma vez, quando acompanhávamos uma dessas procissões, ummenino me deu uma vara para segurar. Quando segurei firme, ele pu-xou a vara, que escorregou por entre meus dedos, deixando minhamão toda suja de bosta. Tive de agüentar a mão lambuzada e o maiorfedor até o final da procissão, quando pude ir para casa me lavar. Odieiaquele menino.

Minha mãe tinha feito uma promessa para São Roque, pedindoao santo que a curasse do problema das pernas: um problema de saú-de que a deixava paralítica. Após cumprir a promessa, começou a sen-tir alguma melhora, o que contribuiu para aumentar ainda mais suafé, motivando-a a fazer uma festa para o santo. Para realizar essa fes-ta, ela se vestia com uma roupa azul, comprida até os pés, pegava aestátua de São Roque, improvisava uma espécie de altar ambulante esaía em direção a todas as casas da cidade, pedindo esmolas para aju-dar no evento. No dia da festa, vinham as mulheres rezadeiras e mui-tos outros fiéis comer o arroz-doce que era servido. A casa, repleta develas acesas, era toda arrumada para aquela cerimônia. A reza duravahoras e mais horas. Era muito divertido ver aquilo tudo. Uma autênti-ca demonstração de fé e de confiança em São Roque, mais um dosrepresentantes de Deus na Terra.

Foi também nessa oportunidade que tivemos contato com oCentro Espírita Bezerra de Menezes, atraídos por cestas básicas, re-médios gratuitos, cobertores e roupas. Houve vezes em que até di-nheiro minha mãe recebera daquela instituição. Tornamo-nos conhe-cidos do pessoal do “Centro”, que vinha até nossa casa para trazer do-ações. A fome nos atraiu para onde a comida era ofertada gratuita-mente. Com o tempo, minha mãe passou a assistir às palestras de dou-trinação. Levava sempre a mim e a Quira com ela. Acabamos nos acos-

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tumando a ouvir a palavra de Deus e acabamos ficando por lá, semdeixar, contudo, de freqüentar a igreja católica, que também era umafonte de alimentos para os pobres.

Em algumas reuniões do Centro Espírita não era permitida apresença de crianças. Nessas ocasiões, minha mãe nos deixava na casade Dona Laurita, que ficava nas imediações do Centro. Enquanto es-perávamos pelo seu retorno, divertíamo-nos imitando o que víamosno Centro Espírita, inclusive os movimentos dos médiuns dando seuspasses. As filhas de Dona Laurita morriam de rir do espetáculo quelhes proporcionávamos.

LUCI VALVERDE MAGALHÃES

Minha mãe sempre teve saúde muito frágil e, após a viagem demeu pai, ficou bastante abalada. E não era para menos. Viu-se sozi-nha, com quatro filhos para cuidar e sem nenhuma fonte de rendapara garantir sustento e habitação. Pouco tempo depois da partida domarido, ela resolveu ir também para São Paulo, mas não conseguiucontar com o apoio de meus irmãos Édson e Zezé. Então resolveu pe-dir ajuda à Prefeitura Municipal, então comandada por Caribé. O pre-feito forneceu-lhe as passagens. Quanto à grana para a comida, minhamãe conseguiu vendendo a mobília que possuíamos. Começou a pla-nejar a ida da família para Sampa: entregou a casa, embalou as roupase fez pacotes de comida. Porém, um dia antes da partida, ela teve umsonho, no qual via que o ônibus em que viajaríamos sofria um aciden-te. Eu aparecia no sonho como único sobrevivente, chorando em meioaos corpos dos passageiros e destroços do veículo. Prontamente elacancelou a viagem. Amanda, por sorte, permitiu que continuássemosa morar na casa. No dia seguinte ao dia da suposta viagem, a RádioBaiana noticiou um acidente ocorrido com um ônibus da empresa pelaqual viajaríamos, e que apenas um bebê de seis meses de idade haviasobrevivido.

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Meu irmão Valmir tinha freqüentes problemas de falta de ar,quando a asma lhe atacava. Ele ficava ruim, quase morto. Eu não com-preendia a gravidade da situação, mas percebia o quanto minha mãeficava preocupada quando Valmir era vitimado por seus ataques defalta de ar. Ela tentava de tudo, sem dinheiro para médico, sem di-nheiro para remédio... Dava-lhe cigarros de flor de zabumba para fu-mar, o que amenizava a situação.

Uma vez, Luci Valverde, freqüentadora do Centro Espírita, aover meu irmão, pela primeira vez, teve uma crise de choro e disse queValmir deveria ter sido alguém importante na vida dela em algumavida pregressa. Fez de tudo para que minha mãe entregasse meu ir-mão para ela cuidar. Com a permissão de minha mãe, Mi foi morarcom Luci. Ela sempre trazia Mi para minha mãe ver. Quando ele che-gava em nossa casa, trazido por Luci, vinha sempre muito bem vestidoe gordo - contrastando conosco -, resultado da vida boa que levava porlá, comendo iogurte e outras coisas que nós, nem em sonho, ousáva-mos imaginar. Passado o devido tempo, minha mãe resolveu pedir oMi de volta. E Luci o trouxe definitivamente para casa, já curado daasma, em virtude dos tratamentos médicos caríssimos a que fora sub-metido, sob os cuidados dela.

Já não tínhamos o que fazer para sobreviver, quando Luci Val-verde ofereceu a fazenda dela para que fôssemos lá morar e trabalhar.A viagem foi acertada, após minha mãe aceitar a oferta. Partimos paraa fazenda, sem saber nem para que lado ficava. Só sabíamos que sechamava Fazenda Turmalina. E Luci, conhecíamos apenas das reuni-ões doutrinárias do Centro e da ajuda que ela nos dava. Minha mãe jásabia que ela morava em frente ao Posto Shell, no Edifício Jordan,onde funcionava, até bem recentemente, uma concessionária de auto-móveis e uma emissora de rádio. Muitas vezes, acompanhei minhamãe quando de suas idas à casa de Luci. Íamos para pedir esmolas esempre recebíamos alguma coisa, comida ou roupas usadas.

Sem muitas alternativas, fomos todos morar na Fazenda Tur-malina, onde minha mãe trabalhava na cozinha de Luci, quando desuas eventuais estadias na fazenda, que ocorriam geralmente a cadadois meses. Ela permanecia por lá durante uma semana ou mais. Daviagem, as recordações são vagas. Lembro apenas que a sede da fa-zenda ficava a uns quarenta quilômetros de Jequié.

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A princípio, ficamos morando numa casinha dentro da sede dafazenda. Era uma casa dividida ao meio, formando dois cômodos me-nores, mas sem quartos ou espaço destinado a uma cozinha. Tinhauma porta na frente e outra nos fundos. No meio, havia uma janelaque dava para um terraço onde, outrora, colocava-se o café para secar.Não havia água encanada ou energia elétrica, mas era confortável. Acasinha parecia estar fechada há muito tempo, pelo seu estado de máconservação e pela quantidade de mofo em seu interior.

Na fazenda havia energia elétrica gerada por motor a diesel, queera ligado somente durante as visitas de Luci. Não fazia muita dife-rença para nós, já que estávamos acostumados a viver a vida sem luz esem água. O motor fazia um barulho infernal, quando ligado, mesmoestando a uma boa distância da sede. Lembro-me que ousei emendaruma ligação de energia elétrica na casinha, certa vez, e tudo funcionoumuito bem.

Na frente da casa havia um pequeno pátio, onde ficava uma ge-ladeira velha, que não prestava para mais nada além de depósito debananas. Colocávamos bananas dentro da geladeira, deixávamos aporta fechada, e as bananas amadureciam com rapidez por causa docalor que as abafava. Certa feita apareceu por lá alguém que precisoudormir em nossa casa. A visita dormiria na cama de China. Por causado frio, ela não parava de repetir a China: “Chega pra cá, neguinha!”.E a resenha pegou. Passamos a perturbar China com essa história pormuito tempo: “Chega pra cá, neguinha!”.

Brincávamos de vaqueiros fictícios, mas usando nomes de pes-soas que exerciam o ofício na própria fazenda. Eu era Calango, Quiraera João Grilo, China era Edmundo e Mi era Calixto. Víamos essesvaqueiros como uma espécie de heróis e, por isso, gostávamos de imi-tá-los em nossas brincadeiras.

Minha mãe trabalhava na cozinha e na limpeza geral da casa deLuci, quando de suas idas à fazenda. Tinha outra mulher, chamadaJovelina, se não me falha a memória, que também fazia o serviço dacasa. Eu cuidava das plantas, molhando-as todos os dias, e tomavaconta do jardim em frente ao casarão. Uma vez fui ajudar na cozinha etomei uma bronca enorme de Luci, quando me viu tirando a casca doalho com a unha. Ensinou-me, pacientemente, que aquilo era falta dehigiene e me mostrou como fazer o trabalho usando uma faca.

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Na casa de Luci, que era enorme, tinha geladeira a gás. Eu acha-va interessante aquele fogo aceso para gelar comida... A casa tinhavaranda em toda sua volta, muitos quartos, escritório, biblioteca, quar-to de empregada, despensa, sala de estar e de jantar e um jardim enor-me. Havia uma TV na sala, que nunca funcionava por falta de energiaelétrica. E, quando a energia era ligada, a TV também não pegava,porque a região era muito isolada.

Tinha também um gabinete onde ela guardava centenas de mi-lhares de revistas em quadrinhos, de vários personagens. Eu costu-mava pegá-las emprestadas, entrando escondido na casa pela janelalateral esquerda, sempre que Luci estava em Jequié. Pegava dezenasde revistas, lia-as todas, voltava, colocava-as onde havia encontradoe... pegava mais. Era uma curtição ler aquelas histórias. A janela tinhaum problema que a impedia de ser completamente fechada, deixan-do-a em falso. E eu, sabendo disso, me aproveitava da situação. Emuma dessas minhas entradas na casa, aproveitei para pegar algunschocolates, que ficavam sobre uma estante da sala de jantar.

Havia muitos caqueiros de plantas ao redor da casa e um curralno lado esquerdo. Havia o pé de pitanga, que ficava entre o curral e acasa, do qual eu e Quira tirávamos os frutos para comer. E tambémum galinheiro, muitos coqueiros e um pé de goiaba junto ao muro,onde eu e Quira ficávamos comendo aquelas frutas até enjoar. Haviapatos, perus e gansos. Os gansos, irritados, costumavam nos atacarquando atingidos pelas pedras que jogávamos neles. Atrás da casa,havia um enorme galpão que abrigava toras de madeira e uma máqui-na torrefadeira com ensacadora de café em grão, que já há muito nãofuncionava. Tínhamos o hábito de brincar no galpão, sobre as toras,ou atrás da máquina abandonada.

Seu Maneca, o gerente, inicialmente, morava em uma estufaantiga, que ainda funcionava quando chegamos à fazenda. Depois elese mudou com a família para uma casa na sede, junto à estufa antiga.Lembro-me que na casa dele as pessoas sempre ouviam música e aque mais me marcou foi “Estúpido Cupido”, que tocava quase todos osdias. Minha irmã Quira logo aprendeu a letra e não parava de cantar ede dançar dentro de nossa casa. Depois de seu Maneca, houve um ou-tro gerente, que tinha muitas filhas, mas não consigo me lembrar donome de ninguém.

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Tempos depois foi construída uma nova estufa, que substituiriaa primeira que ficou abandonada. Seu Suta, um senhor já de idade,tomava conta da estufa e da secagem do cacau. Muitas vezes eu ficavaa observar o movimento dos homens, na nova estufa, ensacando o ca-cau e colocando os sacos sobre um caminhão, que os transportaria atéJequié.

A fileira de pés de laranja, de mais ou menos um quilômetro,que ficava diante da casa da sede, era palco de muitas alegrias, umafesta para nós. Lá costumávamos chupar laranjas sem descer do pé. E,quando um pé não tinha laranja madura, subíamos em outro e emoutro.

Foi uma parte da vida maravilhosa e enriquecedora. Nunca ha-via tido um contato tão intenso com a natureza, com uma cultura dife-rente daquela da cidade. Nessa fase, experimentei fatos e situaçõesinesquecíveis, que jamais teria chance de viver em Jequié. Quandomorava na casa de Amanda, pensava que os grãos de feijão nasciamgrudados ao caule da planta. Somente na fazenda pude descobrir queeles nasciam dentro de bagens, além de muitas outras coisas.

Cobras eram comuns por todos os lados, e eu já matei muitasdelas, inclusive quando tentavam engolir algum sapo ou rã. Quandomorávamos na chamada Casa do Motor, matava dezenas delas, pois acasa ficava um pouco afastada da sede da fazenda, próxima aos mata-gais, onde as cobras, sorrateiras, preferem se esconder.

Todas as manhãs, bem cedinho, buscávamos leite no curral.Geralmente, eu e Quira éramos os escalados para a função. Aproveitá-vamos para beber boa parte do leite. Ficávamos imaginando uma va-silha equipada com uma mangueirinha, para que não precisássemostirar da cabeça o balde de leite, permitindo assim que o bebêssemosenquanto caminhávamos.

Uma vez, nossa casa ficou com problemas, molhando quandochovia, e tivemos de nos mudar para o quarto da empregada, na casade Luci. Era um quartinho que ficava nos fundos da casa, contíguo àcozinha e à despensa. Havia muitos morcegos ali. Chiavam a noite in-teira, o que muito nos apavorava, principalmente porque minha mãedizia que eles gostavam de chupar o sangue das pessoas enquanto elasdormiam. Enquanto moramos ali, era comum ouvirmos ruídos de ob-jetos caindo na despensa, como se fossem panelas e utensílios de alu-

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mínio jogados ao chão. Minha mãe, sempre muito corajosa, levantavapara ir lá ver o que era. Mas a constatação era sempre a mesma: nadatinha caído no chão. Uma vez ela foi com Quira e viu um homem sairda cozinha em direção ao quintal. Seguiu o intruso e tentou, em vão,ver seu rosto. Evitando ser visto, ele se virava para a direção oposta àde minha mãe. E ela lhe dizia: “Então, é você que fica derrubando tudolá dentro, não é?”. Quando percebeu que se tratava apenas de um vul-to, minha mãe saiu de costas com Quira e voltou correndo para o quar-to. Contou o acontecido a Luci, que riu de minha mãe, dizendo queaquele homem era o pai dela, que gostava de rondar a casa, mesmoapós muitos anos de morto.

Morando ali, aprendi a fazer vinagre de mel de cacau. Pegava omel de cacau na estufa e armazenava em tonéis na casa de Luci, atéque fermentasse e ficasse no ponto para o preparo do vinagre.

Eu e Quira trabalhamos nas roças de cacau de Luci. No meio docacaual, fazíamos a coleta, separando-a em pequenos montes. Essetipo de trabalho é conhecido regionalmente como “bandeirar cacau”.A rotina era simples.

Acordávamos cedo, tomávamos café – geralmente abóbora co-zida com leite. Minha mãe preparava feijão com farinha e colocava acomida dentro de latas de leite Ninho, que levávamos para o trabalho.A caminhada até o local era dura. Tínhamos que passar pelo meio domato todos os dias. Matávamos nossa sede em qualquer riacho quepassasse por perto. Ruim mesmo era nos dias de chuva, pois, além dofrio que fazia, o terreno se tornava escorregadio.

Outro grande problema eram as muriçocas e as cobras. Sobre ospés de cacau, ficavam as cobras-cipó que, por serem de cor verde, nosconfundiam, o que aumentava o perigo. Na hora do almoço, sentáva-mo-nos com os demais empregados. Cada um abria sua lata e comia.Da sede da fazenda, ao meio-dia e à uma hora da tarde, o som de umbúzio tocava anunciando o intervalo para o almoço e o horário de re-começar o trabalho, respectivamente. Meu primeiro salário foi de CR$3,00 (três cruzeiros), mas ia todo para Dona Paula, minha mãe, que orecebia em meu lugar. Apenas uma única vez eu recebi os três cruzei-ros, que gastei comprando um abridor de latas e uma sardinha enlata-da, num mercadinho de Itagi, por ocasião das nossas costumeiras via-gens aos sábados para “fazer feira”.

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Escola na Fazenda

Nossa escola ficava um pouco distante da sede da fazenda e éra-mos obrigados a fazer longas caminhadas por dentro dos mangueiros,enfrentando cobras, gado e tudo mais. Quando tinha alguma vaca pa-rida no mangueiro, evitávamos a todo custo passar por perto. Às vezesaté íamos por um caminho mais longo, com medo de ser atacados.Mas, por mais que evitássemos, havia sempre o perigo, e não forampoucas as vezes em que corremos de vaca ou de boi valente. Para meproteger, levava um pedaço de pau, com o qual batia entre os chifresda vaca ou boi que nos atacasse. Ouvi de minha mãe que o gado odiavaser golpeado entre os chifres e que fugia após receber a paulada. Eassim passei fazer. Para minha sorte, sempre deu certo.

No caminho da escola havia um pequeno riacho, onde gastáva-mos boa parte de nosso tempo brincando e nos divertindo, pinotean-do dentro da água, que não cobria nem metade da canela. Freqüente-mente, chegávamos molhados na escola e também em casa. As traves-suras no riachinho eram nossa melhor diversão, tanto no caminho deida quanto no caminho de volta da escola. No horário da merenda,cantávamos a seguinte canção: “Merenda gostosa, leite, fruta e pão;dá bom apetite, boa digestão”. Foi nessa escola da fazenda que apren-di a ver as horas no relógio da casa da professora.

Casa do motor

Assim chamávamos a casa que ficava próxima à cisterna e à ca-sinha do motor a diesel que fornecia energia elétrica para a sede dafazenda. Moramos um bom período nessa casa. Havia também umalagoa perto, cheia de sapos que faziam barulho todas as noites. A “casado motor” ficava após uma ladeira íngreme e escorregadia, atrás dasede, onde havia uma pedra enorme, na qual costumávamos brincar.Tinha um quintal cercado de arame. Ali meu pai plantou melancia,cana, quiabo, repolho, couve, abóbora, coentro, cebolinha e outrashortaliças.

Meu pai plantou também uma pequena roça num terreno pró-ximo à casa. Era um terreno ladeirado, que nos deu muito quiabo paracolher. Nessa rocinha, minha mãe, certa vez, tomou uma queda e, se-

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gundo ela própria, ficou enganchada num piquete, que lhe feriu seria-mente os órgãos genitais, fazendo-a perder um filho. Essas coisas nãonos eram faladas abertamente, por nossa condição de criança. Masme recordo muito bem do longo tempo que ela passou se medicando.

Nossa refeição geralmente era pirão escaldado de farinha comfolha de quiabo, acompanhado de molho de pimenta, por falta de ou-tra coisa para comer. Outra presença comum em nossa mesa do caféda manhã era a abóbora cozida e amassada com leite.

Junto da casa havia também um enorme coqueiro e, sempre quechovia, minha mãe ficava apavorada com medo que ele desabasse so-bre nossas cabeças. Só China ficava rezando para que chovesse, poisteria a chance de vestir uma calça comprida, que na época era umapeça de vestuário estritamente masculina. China queria a novidade devestir algo diferente de suas saias ou vestidos. Como sabia que, na horado desespero, minha mãe não ligava para esses detalhes, ela via nachuva a oportunidade ideal para experimentar uma roupa “proibida”,o que era seu sonho.

A água para beber, cozinhar e tomar banho nós tínhamos debuscar na cisterna de água doce, que ficava junto à casinha do motor.Aproveitávamos para nos molhar. Havia muitos caranguejos de águadoce pelos arredores da fonte de água e, sempre que podíamos, pegá-vamos alguns para fazer um escaldado. Nessa cisterna, Quira quasemorreu afogada um dia. Distraiu-se e caiu no poço. Mas, para nossasorte, minha mãe ouviu os gritos e correu. Puxou-a pelos cabelos e asalvou da morte certa.

Lembro ainda do requeijão e do doce de leite que fazíamos nes-sa casa. Ali havia muita fartura de leite. Como não conseguíamos con-sumi-lo todo, já que diariamente íamos ao curral retirá-lo, passamos ainvestir em seus derivados.

Nessa casa, criávamos uma gata enorme, que gostava de sairpara caçar. Num belo dia, a gata apareceu com um coelho. Tomamos-lhe o coelho, que minha mãe tratou, temperou e assou para nós. Ficouuma delícia.

Havia uma moça chamada Maísa que nos contou uma históriameio fantasiosa. Disse-nos que tinha um gato muito pirracento, queadorava lhe falar obscenidades. Nós acreditamos, claro!

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De vez em quando, os homens da SUCAM apareciam por lá, parapicar a ponta de nossos dedos, fazer exames e colocar veneno contramorcegos e ratos na casa. Morríamos de medo deles.

Casa do Mangueiro

Morávamos na casa do mangueiro, quando meu pai retornou deSão Paulo para Jequié, e de lá foi direto para a Fazenda Turmalina,levado por meus irmãos, Édson e Zezé. Assim que chegaram à nossacasa, eu e Quira corremos para perto do carro que os havia trazido àprocura do Velotrol que meu pai nos traria, conforme a promessa denossa mãe. Ao descobrirmos que não havia Velotrol algum e que tudonão passara de uma estratégia momentânea, ficamos profundamentefrustrados. Foi decepcionante descobrir que nossa mãe mentira e, pior,descobrir que jamais teríamos um Velotrol.

A criação de galinhas e o plantio de roças ficavam nos terrenospróximos à “casa do motor”, tanto antes quanto depois de nos mudar-mos para a “casa do mangueiro”. Não sei precisar bem quanto tempomoramos em uma e em outra casa, mas sei que as plantações foramfeitas, e que sempre colhíamos frutas e cereais dessas roças que meupai plantou. Não me recordo da data exata de chegada de meu pai àfazenda, mas lembro muito bem da imagem de Édson chegando lácom ele. Minha mãe se abriu em felicidade e nós também. Mas meupai não parecia ter melhorado. Não notamos muita evolução desde odia em que ele viajara para se tratar em São Paulo. Pouca diferença fezpara a sua saúde aquela viagem. Porém, como sempre fora muito tra-balhador, não conseguiu ficar parado em casa. Inventou de criar gali-nhas e fez várias roças e plantações no quintal. Com o leite abundanteque buscávamos de graça no curral da fazenda, fazíamos requeijão.Meu pai chegou a plantar ainda duas outras rocinhas, estas um poucomais distantes da casa, onde cultivava milho, feijão, melancia etc.Muitas vezes, íamos comer melancia dentro da própria roça.

Aprendi a nadar nessa época. Tinha um riacho bem raso quepassava perto de casa, onde tomávamos banho e lavávamos os pratos.Mais uma vez, dando ouvidos às histórias de minha mãe, acrediteiquando ela disse que, para aprender a nadar, teve de engolir um pe-queno peixinho antes de se jogar na água e sair nadando. Acreditei e

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fiz o mesmo. E desta vez funcionou. Engoli o peixinho vivo, me jogueino riacho e saí nadando! É incrível o poder dos “sugestionamentos”,sobretudo para as crianças, crédulas pela própria natureza.

Esta “casa do mangueiro” ficava um pouco afastada da sede dafazenda, mas de lá dava para ver o casarão e a estradinha que davadireto nela, por onde todos os carros tinham que passar, inclusive ocarro da dona da fazenda. Por isso, todo mundo ficava sabendo quan-do Luci chegava, antes mesmo que alguém viesse avisar. Era a casamais afastada de tudo e de todos. Ao lado dessa casa, toda rodeada poruma cerca de arame para proteção contra o gado, tinha um grande péde manga, onde as galinhas costumavam subir, ao cair da tarde, paradormir. Não dava para plantar nada ao redor, ou por causa do gado,que às vezes entrava no “quintal”, ou por causa da criação de galinhas,que ciscavam e comiam tudo o que houvesse. Uma vez, ouvimos umbarulho vindo desse pé de manga, onde as galinhas dormiam. Minhamãe saiu para ver o que estava acontecendo. O suspense se desfez quan-do ela descobriu que era Roque, um morador da fazenda, tentandoroubar nossas galinhas. Minha mãe deu-lhe uma bela bronca, botan-do-o pra correr de lá.

Perdemos-nos na roça

Uma vez, minha mãe chamou Quira e eu para pegarmos bana-nas na roça, que ficava pertinho da “casa do motor”, onde moráva-mos. Foi um dia do cão aquele. Acabamos nos perdendo e passamos odia inteiro andando por dentro do cacaual. Minha mãe chorava e odesespero em nós crescia cada vez mais. Ouvíamos uma voz fina, comoa voz de Norino (dito homossexual, que morava na fazenda) a bradarrepetidamente: “O caminho é cá!”. Quanto mais seguíamos a voz, maisficávamos perdidos na floresta. Conseguimos chegar até perto de Ita-gibá, a cidade mais próxima da fazenda, e lá fomos informados poralguns trabalhadores de que estávamos muito longe da Fazenda Tur-malina. Indicaram-nos, então, a direção a seguir para que pudésse-mos retornar. Continuamos mato adentro perdidos até que minha mãeteve a idéia de pôr fumo numa árvore como oferenda para Caapora.Segundo a lenda, essa entidade protetora das matas, gosta de fumar.Por isso, faz com que as pessoas se percam na mata até que resolvamlhe oferecer fumo. Lenda ou não, o fato é que, depois da oferenda co-

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locada num galho de árvore, encontramos facilmente o caminho devolta.

Represa

A água que saía da fonte da cisterna percorria um caminho porentre os matos e formava um riachinho. Esse riachinho tinha muitopeixe, e eu sempre ia com um balaio ou com um jereré pegar caran-guejos, tilápias, piabas ou traíra por ali. Uma vez peguei uma cobra nobalaio e corri apavorado.

Luci, a dona da fazenda, mandou construir uma represa, próxi-mo à sede, formando um lago pequeno com a água desse riacho, e lásoltaram tilápias para criar. Usávamos esta represa para tomar ba-nho, lavar roupas e nos divertir.

Eu não sabia nadar, mas resolvi acreditar numa história queminha mãe contava. Dizia ela que, se passássemos óleo de oliva nocorpo inteiro, ao entrarmos na água, o óleo formaria uma bolha de arao nosso redor, impedindo que nos afogássemos. E foi assim que qua-se morri afogado nessa represa. Lancei-me ao fundo, com o corpo todolambuzado de óleo. Essa história deve ter sido fruto de algum folclore.E eu, achando que na vida real funcionaria tal qual nas lendas, resolvilevá-la a sério e por pouco não morri. Fui salvo por minha mãe ou poroutra pessoa que não me vem agora à memória.

O Piau

Havia um outro riacho perto de nossa casa, em cujas águas trans-parentes eu tinha visto um lindo peixe, um piau. Comprei um anzol efui pegar o peixe. Foi uma experiência marcante em minha vida, talqual a conquista de um grande prêmio. Afinal, pude me sentir capazde fazer algo sozinho, algo digno de aplausos. Fiquei imensamentefeliz quando consegui pegar o peixe e levá-lo para casa como um tro-féu. Eu pescava por necessidade de matar a fome e também por diver-são. A pescaria funcionava também como uma terapia, pois o tempolivre era preenchido com uma atividade lúdica, que requer muita pa-ciência, coisa que eu não tinha. Ficava observando aquele peixe lindo,nadando de um lado para outro do riacho, cuidando do ninho, e ima-

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ginava-o sendo fisgado por mim. Então comecei a planejar como seriao dia da pescaria, detalhe por detalhe. Ao final, tudo aconteceu con-forme havia imaginado. Para mim, foi como uma cena de filme de ação.O peixe mordeu a isca, se debateu, correu de um lado para outro, deusolavancos, puxou a vara com violência, me deu um trabalho danado.Até que consegui tirá-lo da água. Ele media uns vinte centímetros decomprimento e era bem pesado. Foi uma das minhas melhores con-quistas.

Acidente de carro

Certa vez, viajei com Luci para Jequié, no carro dela, que erauma Pick Up Ford. Na rodovia BR-330, ela acabou abalroando umoutro veículo, que fazia ziguezague na pista. Bati com a cabeça na por-ta do carro e ainda precisei ouvir de Luci que não devíamos ficar den-tro de um veículo em movimento como se estivéssemos sentados nosofá de casa. Devemos estar sempre de prontidão para a eventualida-de de um tombo, uma batida ou coisa similar, para um choque maior.Aprendi a lição. Ainda bem que hoje os cintos de segurança são de usoobrigatório.

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Ainda crianças, eu e meus irmãos percebíamos que nosso painão estava lá muito certo da cabeça. Tirando proveito da situação, fi-cávamos o tempo todo fazendo brincadeiras com ele. Uma das brinca-deiras preferidas era a seguinte: um de nós se vestia com as roupas deminha mãe, ou dele mesmo, e batia na porta da casa pedindo açúcarou outra coisa qualquer. Ele atendia e, em sua inocência, ia chamarum dos filhos para dar o açúcar. Então, aquele que havia batido naporta dava uma volta na casa, trocava de roupa e voltava para dentro,enquanto o outro se vestia e vinha pedir outra coisa. A brincadeiradurava o tempo que quiséssemos, e ele nunca descobria que se tratavade uma traquinagem dos próprios filhos. Após cansarmo-nos da brin-cadeira, íamos para os pés de cidra, uma espécie de limão grande emuito azedo, que dava em fartura por ali. Tirávamos as frutas da árvo-re e comíamos com açúcar.

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Certa vez, meu pai passou mal e minha mãe pediu que eu fosseaté a sede da fazenda para pedir ajuda. Saí correndo pelo mangueiro,desesperado, desviando-me das vacas recém-paridas. Passei por umriachinho, no qual sujei as pernas todas de lama, pois eu afundava atéo joelho naquele lodaçal. Infelizmente, todo o sacrifício foi em vão,não consegui ajuda. Mas, quando voltei, por sorte, meu pai já estavamelhor.

Perto de nossa casa havia uma pequena vila, com umas quatroou cinco casas, no meio do mangueiro. Lá morava um rapaz chamadoNorino, funcionário muito querido da dona da fazenda. Apesar demorarmos perto, nunca estivemos naquela vila. A mãe não deixava, eeu nunca soube o motivo pelo qual ela proibia nossa ida ao local.

Uma outra lembrança dessa época foi quando China pediu queminha mãe lhe comprasse um chiclete, quando fosse às compras. Elaprometeu que compraria. Numa de suas idas a Itagi, tentou comprar ochiclete de China, mas não encontrou. Comprou-lhe então balas co-muns. O desapontamento de China foi profundo ao ver seu sonho demascar chicletes frustrado; sonho este que teve sua realização adiadapor muitos anos, até que ela mesma pudesse trabalhar e comprar opróprio chiclete. Vim saber dessa história mais de vinte anos depois,pela boca da própria China.

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O armazém onde fazíamos compras ficava a alguns quilômetrosda sede da fazenda, num local chamado “Preguiça”, nome também dorio que cortava as imediações. Eu e Quira, quando íamos comprar algopara minha mãe, levando embornais, morríamos de medo dos ciga-nos que ficavam acampados no caminho e que sempre nos cercavampara pedir algo. Ficávamos apavorados, temendo que tomassem nos-sas compras e que nos batessem. A fim de nos livrar do assédio, passa-mos a levar sempre alguma coisa para dar a eles.

Uma vez fui ao armazém a cavalo, montado em Dominó, o ani-mal mais lerdo e preguiçoso da fazenda. A bem da verdade é precisodizer que eu não guiei o cavalo. Foi Dominó que me levou e me trouxe,já que eu morria de medo de puxar a rédea e ser derrubado por ele.

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Quando o cavalo queria parar para comer seu capim, parava. E quan-do queria continuar a caminhada, continuava, a seu bel talante.

Toda semana viajávamos para Itagi, a pé ou a cavalo, para fazercompras. Os homens geralmente iam montados nos animais, enquan-to as mulheres iam atrás, caminhando. Quira lembra que ficava comraiva porque nunca a deixavam montar num cavalo. Para chegarmosa Itagi, no meio do caminho, tínhamos de atravessar o rio Preguiça.Lembro que, uma vez, quase caí da garupa do cavalo, quando ele su-biu o barranco do outro lado do rio. Apavorei-me.

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Concluí a quarta série primária na escola da fazenda e precisavacontinuar meus estudos. Como lá não havia professores para o pri-meiro grau, tive de retornar para Jequié. Arrumei minhas coisas e vi-ajei. Não lembro se sozinho, com minha mãe ou com Luci. Minha mãeconseguiu que eu ficasse morando provisoriamente na casa de DonaLia, esposa de Seu Nenzinho, no bairro Cilion. O nome do bairro sur-giu a partir do nome de um posto de gasolina que existia na praçaJuracy Magalhães, que acabou falindo, fechando e reabrindo com ou-tro nome. Mas como o bairro já havia sido batizado, assim ficou: Cili-on. Dona Lia tinha um filho chamado Junior, que não se deu muitobem comigo de início, talvez por ter que dividir a casa e as atenções damãe com um outro menino. Mas depois foi se acostumando e nos tor-namos grandes amigos.

Ele próprio tinha vários amigos, que se tornaram também meus.E eu quase tive minha primeira experiência sexual com uma vizinhadeles, que sempre aparecia por lá e brincava conosco. Uma vez, resol-veram me incentivar a ficar a sós com ela em meu quarto. Tentamoster uma relação, mas não houve penetração. Ela desistiu antes do fime saiu correndo. Era uma morena escura, que tinha um problema físi-co na perna direita, fazendo-a mancar quando caminhava.

A primeira namorada também conheci durante o período emque vivi na casa de Dona Lia. Era uma vizinha que morava na casa emfrente. Chamava-se Jaqueline. Era linda e eu gostava demais dela. Denossas janelas, trocávamos olhares furtivos, iniciando uma ligação deafeto. Passamos a nos encontrar numa casa em frente. Ali, no pátiodaquela casa, nos beijamos pela primeira vez. Foi daqueles namoros

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meio mágicos, sem maldades, sem sexo. Foram momentos muito feli-zes ao lado de Jaqueline, e eu jamais me esquecerei dela. Até poesiaslhe fiz. A primeira namorada a gente nunca esquece.

Matriculei-me no Instituto de Educação Régis Pacheco - IERP.Dona Lia sempre me dava dinheiro para a merenda. Tinha uma vidaboa na casa dela. Sempre fui tratado como um membro da família.Naquela época, havia um ritual muito bonito nas escolas: hastear aBandeira Nacional e cantar o Hino Nacional Brasileiro todos os dias,com os alunos em formação militar. Tudo para mim era muito bom.Participei de um coral que se apresentou na rádio local, onde canta-mos o Hino à Bandeira, entre outros hinos. Era a primeira vez queconhecia um estúdio de rádio por dentro, fiquei em êxtase. Acabeiaprendendo coisas muito valiosas com cada pessoa que conheci e emcada experiência que vivi.

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Quando morava na fazenda, ganhei um cachorrinho que batizeide Bolinha. Ele era preto, pé duro. Aonde eu ia, o cachorrinho me acom-panhava. Gostava demais dele. Ao voltar para Jequié, para prosseguirmeus estudos, deixei-o com minha mãe, que, logo depois, tambémretornaria a Jequié, deixando Bolinha na fazenda. Longe deles, pade-cia de saudades da família e do cachorro.

Quando minha mãe resolveu voltar para Jequié com a famíliainteira, eu já estava estudando. Fiquei feliz com o retorno da família,mas foi péssima a notícia de que meu cachorro Bolinha não viera jun-to. Morri de tristeza. Minha mãe alegou que seria muito difícil trazê-locom ela na viagem e, por isso, achou melhor dá-lo a alguém. Fiqueirevoltado e chorei muito. Gostava muito de meu cachorro. Tão desa-pontado fiquei que não dei a mínima para as histórias que minha mãecontava sobre a viagem e sobre as coisas que lhe acontecera, como ofato de Teobaldo, filho de Luci, ter dito que iria jogar a família, commóveis e tudo, ponte abaixo, além de outros problemas que enfrenta-ra. Só pensava no meu cachorro. A paixão e a saudade de Bolinha fo-ram tantas que prometi para mim mesmo nunca mais ter outro ani-mal de estimação. A promessa vem sendo cumprida até aqui, e hoje

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desconfio que minha aversão a animais tem origem nessa dolorosaexperiência.

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Minha mãe ia regularmente me visitar na casa de Dona Lia. Atéque um dia resolveu me levar de volta com ela definitivamente. Fui evoltei várias vezes da nova casa, achava-a muito feia e o lugar horrível.Ficava na Rua da Palha. Era uma casa pequena, de adobões, sem águanem luz. Mas, no final das contas, era para onde eu teria que ir mes-mo, sem chance de escolha.

Uma das coisas com a qual não consegui me acostumar, ao vol-tar para a casa de minha mãe, foi a comida. Além de ser de péssimaqualidade, não a tínhamos todos os dias. Foi muito duro sair daquelacasa, onde eu tomava café, almoçava e jantava, de forma decente e emhorários regulares, e me adaptar a uma outra realidade, em que tinhade comer qualquer coisa e em horários disparatados. Isso, quando nãotinha de ficar sem comer mesmo.

Igualmente difícil foi ter de me acostumar com a distância dacasa até o IERP, colégio onde estudava. Tinha de fazer o trajeto a pé,sob o sol escaldante e, agora, sem ter sequer o dinheiro para meren-dar. Foi um terror essa fase de adaptação, muito difícil para mim. Prin-cipalmente, nos dois dias da semana em que tinha aulas de ginástica.Era obrigado a sair pela manhã, para assistir à aula normal, e voltar,no período da tarde, para a aula de ginástica. Um verdadeiro tormen-to. O sol demasiado quente e a estrada sem calçamento, toda cheia depoeira, tornavam a caminhada insuportável. Mas, gostando ou não,tive de me acostumar com a nova vida, que passaria a ser minha roti-na dali em diante.

Minha luta agora era outra, além da comida que faltava na mesa.Tinha que comprar livros, mas não possuía dinheiro. Estudava semlivros ou recebia um ou outro exemplar, cedido por colegas de sala,que faziam uma vaquinha para comprar. Mas todos os outros estu-dantes tinham também uma vida difícil, poucos recursos financeiros,e nem sempre podiam ajudar, já que também precisavam de ajuda.

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Uma professora me deu, certa vez, um Kichute usado, que useipor cinco anos, durante todo o primeiro grau e início do segundo. Oscadernos eram daqueles doados pelo governo estadual, com o HinoNacional na capa; os lápis eram também doados pelo governo, algunsdeles vinham até com a tabuada impressa, mas esses não eram bem-vindos nas aulas de matemática, pela razão óbvia. Uma ocasião, perdium lápis na sala – ou foi roubado por alguém – e fiz o maior escânda-lo. Chorava pelos corredores, chamando a atenção do colégio inteirocom meus indignados protestos pela perda do lápis e dizendo que alisó tinha ladrão. Foi um show à parte.

Minha adaptação ao currículo escolar foi muito difícil, para nãodizer impossível, já que eu tinha vindo de escolas onde se aprendiaapenas o ABC, as quatro operações, além de leituras e releituras delivros de histórias, sem nenhuma técnica para aprender a gramática.Na hora de separar sílabas, eu sempre escrevia duas letras e colocavaum tracinho. Quando a palavra era cavalo, por exemplo, eu acertavafácil. Mas quando era caule, eu escrevia “ca-ul-e”. Ou seja, segundominha lógica, a separação de sílabas era feita a cada duas letras segui-da por um tracinho. Um desastre total.

Por conta da minha falta de estrutura e por motivos de doença,acabei perdendo o ano. Perder um ano tem sempre conseqüênciasnegativas, um ano de minha vida ficaria atrasado. Mas, por outro lado,serviu-me de lição, motivando-me a me esforçar bem mais no ano se-guinte. Desse dia em diante, não perdi mais ano algum e consegui con-cluir o primeiro e o segundo graus com notas muito boas. Surpreen-dentemente, acabei me transformando em um aluno CDF durante to-dos os anos escolares.

O lado positivo de tudo isso foi o fortalecimento do meu sensode autocrítica, que fez com que procurasse estudar mais, para não pas-sar novamente pela vergonha de perder o ano. Outra coisa boa foi ocontato com a poesia, através de uma coleção de três minilivros quecomprei de um daqueles vendedores que passam de sala em sala ofe-recendo suas mercadorias. Encantei-me com aquela forma de escre-ver, com as rimas e as estrofes. Passei a escrever poemas também.Posteriormente, tive contato com a literatura de cordel, o que me in-fluenciou bastante a escrever tudo que me vinha à mente. Não sei pre-cisar no tempo, mas me lembro de uma época em que eu pegava tudo

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quanto era papel, ou algo que encontrasse jogado pelas ruas, para ler.Para mim, era uma espécie de mágica poder decifrar tudo aquilo, mes-mo que não soubesse o significado de todas as palavras que lia. O sim-ples ato de ler expandia minha mente.

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Depois de um tempo morando na Rua da Palha, mudamo-nospara a casa de número 1265, na Avenida Franz Gedeon, uma das prin-cipais artérias da cidade. Foi a partir dessa época que ocorreu o nasci-mento dos meus outros irmãos, Valdir, Vitório, Vivaldo e Ivonete. Acasa era de meu irmão Édson, e lá já haviam morado muitos familia-res dele, mas naquela ocasião se encontrava fechada. Como de praxe,a nova moradia também não dispunha de luz, água, saneamento bási-co, móveis e outros recursos essenciais. Nosso fogão, para variar, era àlenha. O sanitário era no chão do quintal, ou seja, exalava uma feden-tina horrível. Muita gente fazendo suas necessidades por todos os la-dos e o sol quente a tornar o mau cheiro ainda mais insuportável.

A vida de minha família sempre foi de muita pobreza, não tí-nhamos condições nem de comer condignamente. Televisão então eraum luxo que nem sequer imaginávamos poder comprar. Assim, todosos dias eu e meus irmãos íamos para a casa dos vizinhos, onde ficáva-mos dependurados em suas janelas assistindo à TV. Tínhamos queassistir ao que estivesse passando, ao gosto do dono da casa. E, pormuitas vezes, nem conseguíamos assistir aos programas ou aos filmesaté o final, porque a televisão era desligada sob o pretexto de que “oaparelho estava esquentando e precisava descansar”. Uma das vizi-nhas que mais desligava a televisão em nossa cara era a Dominga. Mas,como sua casa era também o lugar onde a TV ficava ligada nos horári-os em que estávamos livres de escola ou de outras obrigações, apare-cíamos lá quase todos os dias.

Na casa de Dona Dete e seu Chico a gente morria de rir. Todavez que apareciam os atores Tony Ramos e Elisabeth Savalla na teli-nha, eles faziam o mesmo comentário: “André Cajarana e Carina es-tão muito diferentes...”, reportando-se aos personagens vividos nanovela “Pai Herói” pelo casal de atores. Dona Dete e Seu Chico não

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conseguiam separar a realidade da ficção. Faziam a maior confusãoentre a vida dos atores e os personagens por eles vividos nas novelas.

Saíamos pela cidade inteira à procura de brinquedos pelos li-xos. Batizávamos cada lixo com um nome, para facilitar o roteiro epara organizar nossas caminhadas. Um desses lixos foi batizado como“lixo da BODA”. O nome veio de uma brincadeira, pois, quando desco-brimos esse lixo pela primeira vez, havia muitas cabras e bodes porperto. Procurávamos livros, revistas, brinquedos, qualquer novidade.Encontrávamos muita coisa, mas sempre desfalcada de uma peça oude uma folha. Em carros sem uma das rodas, sempre dávamos umjeito, fabricando outra rodinha com sandália havaiana - naquela épo-ca esse tipo de sandália era exclusividade de pessoas paupérrimas. Masquando faltava a última folha de uma revista de história em quadri-nhos, por exemplo, a solução era mais difícil. Então, guardávamos arevista e tentávamos encontrar outra igual, que tivesse o final da his-tória. É bem verdade que raras foram as vezes que conseguimos com-pletar uma história em quadrinhos.

Nessas caminhadas, uma vez, adentramos um quintal abando-nado. A galera subiu nos coqueiros que lá havia e começou a tirar co-cos da árvore. Após nos empanturrarmos de água de coco, levamos oscocos que sobraram para casa. Minha mãe nos fez voltar e jogá-los noquintal novamente, advertindo-nos de que, se tal fato voltasse a ocor-rer, tomaríamos uma surra daquelas. Esta foi uma lição que jamaisesquecerei, mais uma das inúmeras que ela nos ensinou.

Ainda sobre brinquedos e brincadeiras, não posso deixar de lem-brar do “Mané Gostoso”, pendurado entre dois palitos e amarrado comuma borracha que minha mãe comprava para nós.

Trabalho

Um dos meus primeiros empregos foi no escritório da ASPEB,uma caderneta de poupança que depois foi comprada pelo antigo BancoEconômico. O escritório ficava na praça Ruy Barbosa, no centro dacidade de Jequié. Eu era uma espécie de office-boy. Aproveitei paraaprender a datilografar nas máquinas de escrever do escritório, nashoras vagas, além de ficar escrevendo ou passando a limpo minhas

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poesias. Quanto às datas de admissão e de saída deste emprego, nãolembro muito bem.

Certa vez, resolvi trabalhar como vendedor do Baú da Felicida-de, do grupo Silvio Santos. Saía com um vendedor mais experiente,que me mostrava como deveria fazer para vender os carnês. Aprenditudo, pois eu prestava muita atenção ao que ele fazia. Finalmente, ar-risquei-me a sair sozinho com uma pasta cheia de carnês.

Minha primeira vítima foi uma empregada doméstica que tra-balhava numa residência no centro da cidade. Recebi dela a primeiraparcela do pagamento, que correspondia à minha comissão. Quandocheguei ao escritório, à tarde, após andar o dia inteiro e ter vendidoapenas aquele carnê, a patroa da minha única cliente já me esperavapara receber de volta o dinheiro que sua empregada tinha pago pelocarnê. Alegou que eu tinha enganado a pobre mulher, que ela era umapessoa pouco esclarecida e se deixara ludibriar por mim. Acabei per-dendo minha comissão e desisti de vez de ser vendedor ambulante.Aquela não era, definitivamente, minha praia.

Em uma outra ocasião, candidatei-me para trabalhar com SeuNenzin. Ele me escalou para trabalhar com jornais. Pensei em algocomo uma banca de jornal ou coisa parecida. Fui com ele ao centro dacidade e, quando cheguei ao local do trabalho, descobri que era paravender jornais pelas ruas, como ambulante. Recusei imediatamente otrabalho, pois além da baixa remuneração, eu já havia tido uma expe-riência nefasta como vendedor ambulante, que não gostaria de repetirpara ganhar a vida. Entendi que deveria preferir sempre o salário fixo,mesmo que fosse o menor salário que se pudesse pagar, a trabalharme aventurando a ganhar um salário maior, através de comissões.

Enchente – Comida estragada

Houve uma enchente em Jequié, por volta de 1982 ou 1983, quearrasou metade da cidade. O Rio de Contas estava muito cheio e re-presava a água do Rio Jequiezinho. Do Centro para o bairro Jequiezi-nho só se passava pela Ponte de Newton, a ponte que servia, em tem-pos remotos, para passagem do trem de ferro. Todas as outras ponteshaviam sido cobertas pela água, exceto esta. A parte baixa do Centro eos bairros Campo do América, Banca, São Judas Tadeu, Mandacaru e

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outros foram totalmente engolidos pela água. Os Edifícios AlmerindaLomanto e Hildete Brito Lomanto ficaram inundados até o primeiroandar. Todos temiam que a Barragem de Pedras, localizada a trintaquilômetros da cidade, se quebrasse com a pressão da quantidade enor-me de água e inundasse toda a cidade de Jequié. Mas felizmente nãoaconteceu, graças a Deus. Do contrário, seria uma tragédia sem prece-dentes, já que a barragem represa mais de setenta quilômetros de água.

Depois que as águas baixaram, muitos estabelecimentos comer-ciais do Centro começaram a contabilizar os prejuízos. O Supermerca-do Cardoso, na praça da Bandeira, foi um dos estabelecimentos queperdeu quase todo o seu estoque. Muita coisa fora jogada no lixo, noesgoto. Boatos se espalharam rapidamente de que muito presunto,queijo, mortadela, salame e uma infinidade de comestíveis estavamsendo despejados pelos esgotos dentro do rio Jequiezinho. Saímos empasseata: eu, Dida, Tó, Mi, mais um monte de garotos das ruas próxi-mas, direto para o esgoto. Lá tivemos de enfrentar uma disputa acir-rada com outros meninos para ver quem conseguia pegar a maior quan-tidade de mercadoria estragada. Levamos essas mercadorias para con-sumi-las em casa.

Se tivéssemos de morrer por termos comido alimentos estraga-dos, certamente não estaria eu aqui contando este episódio inusitado,pois, durante a maior parte de minha vida, eu e minha família ingeri-mos rejeitos e refugos de comida. Nesse mesmo rio, quando as águasbaixavam, costumávamos pegar camarões, que ficavam se batendo àprocura de uma água mais profunda, já que o rio estava em fase deextinção e os lugares mais profundos não mediam meio metro. Mui-tos esgotos da cidade eram jogados dentro desse rio, inclusive os doHospital Regional Prado Valadares. Mas nós não nos importávamoscom nada, só queríamos um pouco de comida para saciar a fome. E orio se comportou como um pai, sempre a nos prover daquilo que pro-curávamos.

Nosso dia-a-dia não variava muito. Num dia, era Gal e no diaseguinte era Nete quem saía para pedir esmolas pelas casas da rua edos arredores. Os menores iam substituindo os mais velhos, que fica-vam envergonhados da tarefa de ficar de porta em porta pedindo co-mida e ouvindo piadas do tipo: “Você já é bem grandinho, por que nãovai trabalhar?”. Tínhamos um roteiro a seguir, e cada dia íamos a uma

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casa diferente, para não chatear a mesma pessoa todos os dias. Tinhaa casa de Dominga, a casa de Dora, a casa de Dona Maria da Campa-nha, casa de Bói... Dona Maria da Campanha era uma católica prati-cante que coletava doações do tipo comidas, roupas e dinheiro, paraentregar à minha mãe. Arrumávamos apelidos para todos os que nosajudavam, já que eram muitos e ficava quase impossível memorizarseus nomes. Para complicar ainda mais, havia gente com o mesmonome, como era o caso de Dona Maria, por nós batizada de “Maria daCampanha”, para diferenciá-la das outras “Marias” em nossa lista.

Dora é nossa cunhada, casada com Néco (Manoel), que, por suavez, é filho de meu pai com sua primeira esposa. Ele pertence à pri-meira família de meu pai, em que todos os seis irmãos têm idade supe-rior a quarenta e cinco anos de idade. Quando meu pai se casou comminha mãe, a mãe desses outros irmãos já havia falecido há muitotempo. Dora também nos ajudava sempre que podia, já que tinha umafamília para dar conta e somente o marido trabalhava fora.

Bói era uma senhora que morava na nossa rua. China foi morare trabalhar em sua casa, em troca de comida e roupas. Lá havia duasirmãs gêmeas, Alice e Agda, já bem velhinhas, que sempre davam caféda manhã aos meninos que passavam pela porta. E, como não poderiadeixar de ser, meus irmãos, especialmente Tó, Dida, Gal e Nete, sem-pre passavam por lá, onde tinham a oportunidade de beber suco degroselha com pão ou com bolachão. China conta que, quando foi tra-balhar na casa de Bói, criou o hábito de deixar o pão do próprio cafépara dar aos irmãos. Colocava-o na calha da chuva e ficava esperandoque os manos aparecessem para pegar. Fazia isso escondida de Bói,que era muito rígida e não aceitaria que ela deixasse de comer em be-nefício dos irmãos.

China conta ainda que, quando não tinha o pão para colocar nacalha, ficava muito triste de ver os irmãos brigando para ver quemchegava primeiro e a expressão de decepção em seus rostos ao perce-berem que nada havia sido deixado para eles. Tinham de enfiar o bra-ço inteiro no cano da calha para poder alcançar o pão ou biscoitos queChina colocava.

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Dentre os vários episódios de comida estragada, fome, miséria esofrimento, me lembro de alguns que marcaram muito.

Domingas era uma vizinha que morava perto de nossa casa, naAvenida Franz Gedeon, e nos ajudava com comida e roupas usadas.Muitas vezes, ela guardava comida a semana inteira na geladeira, atéque aparecesse alguém da nossa família para receber o presente. Even-tualmente, quando íamos pedir esmolas em sua casa, recebíamos muitacomida, dentro de uma panela enorme. Certa ocasião, uma dessaspanelas estava azeda, pois tinha sopa, repolho, feijão e todo tipo desobras misturadas. Minha mãe não deixou que comêssemos com medoque a comida nos fizesse mal, e deu para Dona Odília, que, por suavez, deu para suas galinhas. Todas as galinhas morreram, a comidaestava realmente estragada. Dona Odília ficou de mal com minha mãepor causa deste episódio, achando que ela fizera aquilo de propósito.

Outro caso inusitado foi esse: minha mãe assou um tendão, queera uma mistura de pele, cartilagem e gordura. O fogo era feito nomeio da casa, com pedaços de madeira e plásticos que encontrávamospela rua e no lixo, situação que perdurou por mais de vinte anos emnossa vida. A comida ficava com um cheiro horrível de plástico. Mas opior ainda estava por acontecer. Depois de “assado” (na verdade, sa-pecado na fumaça), ela dividiu a iguaria em pedaços iguais para osfilhos, servindo-a com pirão de água fria e farinha. O meu pedaço foi omaior de todos e tinha bastante gordura. Desconfiado como sempre,abri para olhar e vi um monte de bichos de moscas, vivos, procurandoum local mais frio para se proteger, pois, como o fogo não tinha assa-do totalmente aquele pedaço de imundície, não matou completamen-te os bichos de mosca. Fiquei com nojo, joguei fora e comi somente opirão.

A necessidade de sobrevivência nos deixava à mercê de situa-ções vexatórias e inusitadas. Uma vez minha mãe ganhou uma gali-nha viva. Matou-a e preparou um almoço. Mas vi, quando ela abriu agalinha, um tumor ou coisa parecida na moela. Tinha muito pus e fe-dia demais. Minha mãe preparou assim mesmo e deu para que todoscomessem. Saí para trabalhar e, quando voltei, encontrei à minha es-pera esse prato “especial”. Ela jurou que não era da galinha que eutinha visto, mas não acreditei e joguei tudo no lixo. Não comi e fuidormir com fome, o que não era um fato raro na vida da gente. Nossa

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comida variava de pão seco com café preto a pirão de farinha com águafria. Muitas vezes dormíamos com fome, crédulos no que minha mãedizia: “amanhã Jesus vai trazer comida”. Eu me irritava com ela e xin-gava muito, pois todos os dias ouvia a mesma história e Jesus nuncachegava com a comida prometida.

A refeição mais desejada por nós era um prato de qualquer coi-sa com carne, já que essa iguaria quase nunca fazia parte de nossadieta. Pelas condições de extrema pobreza, era quase impossível ter-mos carne à mesa. Quando comíamos um pedaço de carne, era umafesta em casa. O acompanhamento podia até ser pirão de farinha comágua fria, mas se tivesse carne o prato de tornava especial. Mas nãoera carne normal a que comíamos, era carne sentida. Era assim quechamávamos a carne em processo de putrefação. Recebíamos muitasgorduras, pelancas, peles e outros refugos de carne quando saíamospela feira livre pedindo algo para comer. Muitos dos barraqueiros nosenxotavam dizendo impropérios, mas muitos outros nos acolhiam compalavras doces e nos ofertavam pedaços de carne. Geralmente era car-ne que quase ninguém compraria ou que estava já azulada e com bi-chos de mosca. Minha mãe aproveitava essas carnes da seguinte for-ma: aferventava tudo numa panela e depois colocava para secar aosol. Assim, já “lavada”, a carne ficava com um aspecto mais agradávelao olhar e ao paladar. Mesmo assim ficava com um cheirinho enjoadode carne estragada. Minha mãe dizia que era carne “sentida”. Comía-mos essa carne frita ou cozida no feijão.

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SONHOS

Na avenida Franz Gedeon, onde morávamos, havia uma oficinade conserto e de aluguel de bicicletas. Toda a garotada da rua alugavabicicletas ali e aprendia a pedalar. Todos os meus irmãos também ti-veram esta oportunidade e a aproveitaram. Exceto eu, pela minha exa-cerbada timidez. Só aprendi a montar numa bicicleta aos vinte anosde idade, quando pude comprar uma Monark nova, que precisei em-purrar da loja até o loteamento Itaygara, onde morávamos na época.Ao chegar em casa, chamei Valmir para segurar o bagageiro da bikeenquanto eu pedalava. Alguns instantes depois, meu irmão passoucorrendo ao meu lado e eu perguntei quem estava segurando a bikepara mim. Ele respondeu que ninguém empurrava e que eu estavapedalando sozinho. Desde então, passei a pedalar bicicletas sem nun-ca sofrer uma queda. Antes, em meus sonhos, imaginava estar peda-lando e voando ao mesmo tempo, ou seja, pedalando até que a bicicle-ta decolasse e eu continuasse a pedalar durante o vôo.

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Não sei bem por que razão eu sempre sonhei em trabalhar comserviços burocráticos. Desde criança, imaginava-me numa espécie deescritório, lidando com papeladas e telefones. Realizei este sonhomuitos anos mais tarde, quando ingressei no Tribunal Regional doTrabalho, no ano de 1990.

Um outro sonho que eu sempre alimentei foi o de morar emSalvador. Mas eu tinha muito medo de sair de Jequié, do conforto dafamília e do lugar onde sempre vivi, para enfrentar um mundo com-

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pletamente hostil. Alimentei o sonho durante anos. Lia regularmenteos jornais da capital e ficava a me imaginar caminhando pelas ruas dacidade. Até comprei um mapa de Salvador, onde percorria todos oscantos da capital com os dedos. Já adolescente e trabalhando com car-teira assinada, sempre encontrava uma forma de economizar parapoder fazer minhas viagens de final de semana a Salvador. Saía deJequié à meia-noite de uma sexta-feira, chegava a Salvador pela ma-nhã, pegava um ônibus circular e visitava os principais pontos da ci-dade. Tomava banho de sol nas praias da Barra e Pituba, e, no final datarde, voltava para a estação rodoviária, onde passava a noite descan-sando e dormindo nos bancos. Pela manhã, reiniciava minha peregri-nação pela cidade. Retornava à tarde para a rodoviária e pegava o ôni-bus para Jequié, aonde chegava à meia-noite de domingo. Ficava imen-samente feliz com essas viagens. Tirava inúmeras fotos, via coisas elugares que, aos meus olhos, eram apaixonantes.

Com sacrifício, realizei meus dois sonhos maiores: o de ter umtrabalho fixo e burocrático e o de morar em Salvador, que não trocopor nenhuma outra cidade brasileira ou do exterior.

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FIGURAS INTERESSANTES

A casa de Judite, uma vizinha que muito nos ajudava, ficava dolado oposto à casa onde morávamos, e era lá que minha mãe diaria-mente ia para lavar os pratos e, em alguns dias da semana, para lavarnossa roupa, já que não tínhamos condições de arcar com os custos daágua encanada em casa. Mesmo sofrendo de paralisia nas pernas,minha mãe atravessava a rua, arrastando-se pelo asfalto, correndorisco de ser atropelada e morrer. As pernas e os pés ficavam sagrando,arranhados e feridos pelo contato com o piso grosso da rua.

Freqüentemente íamos com ela à casa de Judite, esposa de SeuTidinho e mãe de Maxwel, Creuza e Joel. Certa vez, presenciamos umadiscussão bizarra entre minha mãe e Joel, porque este ficava profun-damente irritado de ver minha mãe mascando fumo e cuspindo o tem-po todo. Chegava a ter nojo de beber nos copos que minha mãe utili-zava em sua casa. Foi uma confusão danada. Minha mãe ficou muitochateada, mas não tinha como evitar de ir à casa de Judite que, alémde ser parenta de meu pai, facilitava-lhe o acesso gratuito à água parauso doméstico.

Na mesma rua, próximo à casa de Judite, morava Dona Zefa,uma senhora pernambucana enorme e casada com um homem fran-zino, que vivia levando broncas dela. Há quem diga até que o pobreapanhava da mulher, o que não era de duvidar, levando-se em conta adesproporção de seu tamanho em relação ao dela. Dona Zefa tinhamuitos filhos, que brincavam comigo e com meus irmãos. Tambémusávamos a casa dela para assistir à televisão - da janela, lógico, poisquase ninguém abria a casa para nós, à exceção de Seu Chico e DonaDete (pais de Florisvaldo) e de Dominga. A brincadeira entre a crian-

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çada às vezes terminava em briga, mas minha mãe nunca ficou inimi-ga de vizinhos por causa de brigas de crianças.

Maria, que ganhara o apelido de “Boca de Macaco”, é uma outrafigura inesquecível. Morava numa casa que ficava juntinho à nossa.Era mãe de Beto e de Lurdinha. O quintal de sua casa era cercado comvaras, que sempre se soltavam ou caíam, deixando nosso quintal mai-or. Assim, invadíamos o quintal dela e ganhávamos mais espaço parabrincar. Uma vez, Lurdinha começou a trabalhar na fábrica de roupasSaci Pererê e contratou meu irmão Valmir para levar seu almoço to-dos os dias ao meio-dia. Nessas idas e vindas, ele achou um relógioCitizen, que vendeu a mim. Algum tempo depois, o relógio começou aatrasar. Mandei trocar a pilha, mudar peças internas, mas o atrasopersistia. Revoltado, destruí o maldito com uma marretada e resolvi oproblema.

Carrapeta era uma senhora meio louca que passava pela rua.Parecia-se mesmo com uma carrapeta: gorda no meio e as pernas fi-nas. Quando alguém a chamava por este apelido, ela enlouquecia edespejava os mais terríveis palavrões.

Tinha também Tonho Doido, um cara tipo cigano, de olhos cla-ros, que circulava pelas redondezas e sempre aparecia lá em casa. Mi-nha mãe deixava-o entrar e lhe dava comida. Mas Tonho Doido sem-pre arrumava confusão, pois não tinha juízo e se encrencava com tudo.

Lembro também de uma mulher de cor negra, bem idosa, quepassava quase toda semana por nossa casa, que mais parecia um pon-to de encontro de loucos e desequilibrados. Ela trazia bananas e bis-coitos, recebidos como esmola, e dava pra gente. Quando não dava, agente roubava de sua sacola.

Anália é outra que não pode ser excluída desse elenco. Era mãede Roxa, uma comadre minha. Explico-me: é hábito, no interior, queaqueles que pulam juntos a fogueira das festas juninas se tornem com-padres e comadres. Eu pulei fogueira com Roxa e nos tornamos com-padres. Conhecemo-nos quando minha mãe morava na mesma Ruada Palha e eu era quase uma criança.

Germina era uma mulher morena, bastante gorda, que tinha ospés rachados, e sempre parava lá em casa para prosear com minhamãe. Suava feito um cuscuz e exalava um cheiro muito forte. Carrega-

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va sempre consigo uma toalha de rosto, com a qual não parava de en-xugar o suor que lhe escorria pelo rosto e pelo pescoço.

Havia também Baratão, outro louco que passava pela rua. Nos-sa diversão era perturbá-lo e jogar pedras no pobre homem.

Nessa época, eu era ainda muito jovem. Lembro-me que cons-truí um parquinho de diversões de brinquedo, que funcionava comum pequeno motor a pilha. Como só tinha um motor, ora colocava-ona roda-gigante de brinquedo, ora na “sombrinha”. A garotada da ruase juntava perto de minha casa para contemplar admirada os brinque-dos que eu construía.

Zeca Alves era um senhor moreno escuro e gordo que moravaem nossa rua. Meu irmão Vivaldo (Gal), sempre muito gaiato, todavez que passava em frente à casa de Zeca Alves gritava: “Zeca Alves,ladrão!” Não sei de onde ele tirou essa idéia de xingar o homem, queum dia se irritou e quis agredi-lo. Ele devia ter então uns cinco anos deidade. Nessa época, meu pai já devia ter morrido. Não me recordo muitobem, mas minha mãe, apesar de estar aleijada, defendia-nos a unhas edentes, tal qual uma loba enlouquecida. Quando Gal chegou em casachorando, ela saiu se arrastando pela rua afora até a porta da casa deZeca Alves e começou a gritar, xingando-o de ladrão e de tudo quantoera nome. Chamou atenção. Zeca Alves saiu para discutir com ela, e ofilho dele queria bater em minha mãe, uma senhora descontrolada ealeijada. Nossos vizinhos não permitiram tamanha falta de respeito.Zeca Alves então se vingou com muitos palavrões e praguejando quetodos os filhos dela haveriam de ser ladrões, maconheiros, drogados ecoisas do tipo, pois, além de não terem pai, viviam sob o jugo de umamãe louca. Minha mãe voltou para casa chorando. Toda a criançadatambém chorava junto com ela. Graças a Deus e à educação que mi-nha mãe deu a cada um dos filhos, essa predição não se concretizou.Somos todos honestos e pessoas de bem.

Dona Nêga é uma senhora que morava, e ainda mora, na aveni-da Franz Gedeon, perto da casa onde morávamos. Vive até hoje numacasa de três cômodos, pequena e construída em estilo antigo. Aindatem fogão à lenha e se veste com modelos de roupa de vinte anos atrás.Era como se fosse uma irmã de minha mãe.

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Em dias de chuva forte, íamos de mala e cuia para a casa dela,quando a nossa ficava alagada. Dona Nêga sempre foi uma pessoamuito simples e prestativa. Apesar de dispor de poucos recursos, todavez que chegávamos em sua casa, dividia o que podia conosco: comi-da, carinho e conselho de mãe, entre outras coisas.

Quando o marido dela morreu, ficamos todos muito tristes. Foicomo se um membro de nossa família também tivesse partido. DonaNêga tinha quatro filhos: José, Jean Cláudio, Pinto e Jabá. À exceçãode José, que era bem maior do que nós, todos os outros eram umaespécie de extensão de nossa própria família. Saíamos para catar lixo,brincávamos juntos, freqüentávamos a casa uns dos outros. Experi-mentamos juntos muitos momentos marcantes da vida, como se fôs-semos mesmo uma só família.

José, o filho mais velho de Dona Nêga, viajou para São Paulo atrabalho e se demorou muito por lá. Quando veio de férias visitar amãe, saiu com amigos para tomar banho de cachoeira e acabou mor-rendo afogado após mergulhar e bater com a cabeça em uma pedra.Foi uma tristeza para a rua inteira, sem falar em sua mãe, que perdeuum filho de forma tão trágica e precoce.

Não posso deixar de mencionar aqui o Nêgo Tinho e seu irmão,que também freqüentavam a casa de Dona Nêga e faziam parte denosso círculo de amizade. Eram considerados os “capetas” da rua porviverem aprontando.

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Sempre fui muito curioso e dinâmico, apesar de sempre me acharum moleirão, um covarde ou coisa que o valha. Sempre gostei de es-crever, principalmente cartas. Enviava correspondências para o mun-do inteiro, mesmo sem saber falar outra língua que não fosse a portu-guesa. Acabava recebendo folhetos evangélicos da China, Rússia eoutros países, após enviar cartas solicitando esse tipo de material, queeu distribuía pela cidade inteira. Tinha centenas de cartas guardadas,de amigos, de empresas, de todo lugar do planeta. Também gostavade catar todos os “cartões de resposta comercial”, preenchê-los e en-viá-los. Particularmente, adorava esses “cartões”, por dispensarem o

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uso de selos e envelopes. Fazia minha festa com eles. O carteiro dacidade já me conhecia. Mesmo quando eu mudava de um bairro paraoutro, acabava recebendo as correspondências, pois o carteiro desco-bria meu novo paradeiro. Tinha coleções de revistas Veja, Isto É e ou-tras que chegavam das editoras, por causa dos cartões-resposta queeu preenchia e enviava. Às vezes, recebia três ou quatro revistas sema-nais de uma só vez. Quando uma assinatura era cancelada por falta depagamento, enviava outros pedidos e, assim, recebia as revistas inin-terruptamente.

Com esse meu hobby, acabei aprendendo alguns macetes como,por exemplo, que existia e ainda existe a chamada “Carta Social”, quequalquer um pode postar pagando apenas um centavo. Isso mesmo.Carta com peso igual ou inferior a vinte gramas, cujo envelope sejapreenchido a mão, sendo os remetentes e os destinatários “pessoasfísicas”, custa apenas R$ 0,01. Há um limite de cinco cartas por vez,em cada agência, para evitar que se explore demasiadamente o servi-ço. Mas eu sempre burlava essa regra, colocando as cartas em agênci-as diferentes ou voltando à mesma agência em horários diversos e medirigindo a outros guichês. Nesse vai-e-vem de cartas, ocorreu-me, umdia, enviar uma carta ao Presidente da República - na época, João Fi-gueiredo -, pedindo aposentadoria para minha mãe. Não é que ele res-pondeu a carta, informando que tinha encaminhado o pedido ao Mi-nistério da Previdência Social? E, após alguns meses, o Ministério en-viou uma solicitação a minha mãe, pedindo-lhe que comparecesse aum posto do antigo INPS (atual INSS). Depois de infindáveis trâmitese perícias médicas, minha mãe foi, enfim, “encostada” por invalidez,devido ao seu problema de paralisia nas pernas. A renda era de meiosalário mínimo, que, após muitos anos, passou a um salário mínimocompleto. E eu nunca entendi como é que se divide o “mínimo” emdois...

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O primeiro bem de valor que possuí foi um rádio de pilha, com-prado com o fruto de meu trabalho, do Senhor Francisco, pai de Flo-risvaldo e marido de Dona Dete. Essas pessoas desempenharam papelimportante em nossas vidas. Francisco, ou Chico, como era conheci-

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do, tinha uma barraca no Mercado Municipal de Jequié, onde vendiafarinha e sempre nos dava um pouco e Dona Dete era aquela que nospermitia assistir televisão em sua casa.

O rádio era portátil, à pilha, e já usado. Pegava somente as esta-ções em ondas médias e curtas. E, mesmo que pegasse FM, isso eracoisa que não existia em Jequié na época. Carregava esse rádio paratodos os lugares por onde andava.

Ao deitar e antes de pegar no sono, passava boa parte da noiteouvindo a Rádio Capital e a Rádio Record, de São Paulo. Esta últimatinha um programa de humor apresentado por Zé Betio, onde conhecia maioria dos humoristas que atualmente fazem sucesso na TV. Eutrabalhava, à época, com Esmeraldo, fazendo cintos e sacolas e tam-bém atendendo no balcão de seu armarinho ou em sua barraca demiudezas na feira livre da cidade. O rádio me acompanhava em todosesses lugares.

Na oportunidade em que eu comecei a trabalhar na pequenafábrica de cintos, fiz um acordo com Esmeraldo, no qual eu receberiaum salário menor em troca de café da manhã, almoço e jantar, todosos dias.

Uma vez, roubei a calculadora de pilha de uma vizinha de Es-meraldo, que vendia leite e morava ao lado da casa dele. Devia ter lámeus doze anos de idade àquela época. Esperei todo mundo sair dasala, não resisti e entrei na casa. Rapidamente, peguei a calculadoraque me tentava sobre a televisão. Ninguém nunca descobriu o autordo roubo. Mas, muito arrependido, confesso-o aqui, agora.

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No mês de junho, são freqüentes as festas em homenagem aSanto Antônio, o padroeiro da cidade de Jequié. E todos os anos, nes-sa época, um parque de diversões é armado em frente à igreja matriz.Minha mãe me levava com ela para assistir à missa, em um dos trezedias da trezena de Santo Antônio, e também para ver as outras crian-ças brincando no parque. Ela não tinha condições de comprar ingres-sos para os brinquedos. Nem sequer para me comprar uma maçã doamor. Eu me sentia muito frustrado com tudo aquilo, até que, um belo

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dia, resolvi roubar os ingressos do parque. Precisava apenas saberaonde eram guardados os ingressos usados. E descobri que, ao lado decada brinquedo – roda-gigante, carros de bate-e-volta, etc. ˆ, haviauma espécie de garrafa, onde eram depositados os ingressos já utiliza-dos. Em uma dessas garrafas percebi que havia um buraco na parte debaixo. E dali retirei centenas de ingressos, sem que o rapaz que toma-va conta do brinquedo percebesse. Enchi vários saquinhos plásticosde maçãs do amor com os ingressos roubados e depois corri para casafeliz da vida. Não contei nada à minha mãe, pois seria surra certa, casoela soubesse do acontecido. No dia seguinte, levei todos os irmãos paramontarem nos brinquedos do parque, de graça. De alguns brinquedosnem saíamos, como era o caso dos carrinhos de bate-e-volta. A cadavez que o tempo terminava, dávamos outro ingresso para o rapaz quecontrolava o brinquedo. Brincamos tanto que acabamos enjoando da-quilo tudo e distribuímos os ingressos para a meninada da rua ondemorávamos. A garotada fez uma festa no parque, literalmente.

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Cursei o primeiro grau no Ginásio Celi de Freitas, onde era oaluno que mais se destacava. Estudava muito e, por isso, sempre tira-va as melhores notas. Todos me conheciam: alunos, censores, profes-sores, coordenadores e diretores. Sempre participava das atividadesextraclasse: dançava nas quadrilhas juninas, tocava e ensaiava a ban-da do colégio, tomava parte nas mais diversas campanhas.

José Lientinho, um dos professores do colégio, era encarregadode promover as festas e ensaiar a banda. Tinha contato freqüente comele, pois tomava conta dos instrumentos e tinha a chave do local ondeeles ficavam guardados, além de também ter a chave de uma sala ondeele armazenava papel ofício, papel carbono, álcool e todo material quearrecadava no comércio local para uso da escola. Professor Lientinhotinha esse aposento como sendo de sua propriedade, e ninguém podiapegar dali uma folha de papel sem o seu consentimento. Certa vez, elefoi escalado para tomar conta de uma prova na sala onde eu estudava.Simplesmente, resolveu sair da sala, permitindo assim que todos “pes-cassem”. Em sinal de protesto, assinei a prova em branco e me retirei.A turma quase me matou. No dia seguinte, a professora da matéria me

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chamou e me deu nota dez pela atitude, anulou a prova dos demais emarcou outra prova com todos, exceto eu. O professor ficou desmora-lizado no colégio e, por este motivo, trancou-me no auditório da esco-la; queria me espancar. Gritei por socorro e vieram professores e alu-nos acudir. Felizmente, foi apenas uma “pressão”. Não deu tempo paraque ele me batesse.

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Luciene era a mais engraçada, a mais relapsa e a mais admiradacolega de turma. Era gordinha, casada, falava um monte de palavrõese não gostava de estudar. Quando saíamos da escola, às 22 horas, elareunia uma galera para fazer baderna pelas ruas. Roubávamos as plan-tas que as pessoas colocavam nos pátios de suas casas e levávamospara a casa de Luciene. Quando não conseguíamos carregar os caquei-ros, por causa do peso, quebrávamos e destruíamos tudo. Até que avizinhança deu queixa na polícia, que passou a fazer ronda pelas ruaspróximas. Desse dia em diante, evitamos continuar com aquele tipode baderna.

Luciene era a aluna que menos estudava. Passava o tempo intei-ro conversando e fazendo bagunça na sala de aula. Mas sempre passa-va de ano, graças aos colegas, que, por gostarem muito dela, davam-lhe “cola” no dia da prova. Na prova final da oitava série, pediu-meque preenchesse a prova e deixasse sem assinatura, para que ela pu-desse assinar e não perder o ano. Eu já tinha notas suficientes parapassar. Sempre fechava minhas notas na terceira unidade. Mas eladependia da nota da quarta unidade para conseguir concluir a oitavasérie. Fiz o que ela pediu, e ambos passamos de ano.

Fui fazer o segundo grau em outra escola, já que lá só tinha oprimeiro. Um belo dia estava eu trabalhando numa barraca de doces,na esquina da avenida Rio Branco com a rua Barbosa de Souza, quan-do passou minha professora de Português, Eulália. Ela parou e come-çou a conversar comigo. Quando tocou no assunto da prova, aquelaque eu tinha preenchido para Luciene, fiquei paralisado. Baixei a ca-beça e não falei mais uma palavra. Com atraso, ela me deu a broncaque deveria ter dado na época, falou que tinha me visto entregar a

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prova para Luciene, e que só não tinha anulado as duas provas emconsideração a mim, que era um ótimo aluno e não merecia ter umZERO na caderneta. Ressaltou ainda que, também por consideração amim, acabara cometendo uma injustiça: passar Luciene para a pri-meira série do segundo grau. Culpou-me pelo fato de minha colegapassar de ano sem saber nada, enfatizando que eu levaria para o restoda vida esta culpa. Advertiu-me para que eu não cometesse mais ati-tudes daquela natureza e encorajou-me a continuar sendo o alunoexemplar que sempre tinha sido. Ouvi todo o sermão calado, sem co-ragem de olhar em seus olhos. Morri de vergonha de tudo aquilo. Estaé mais uma lição que me acompanha e, na medida do possível, tentopassá-la adiante.

Estudei em duas fases no IERP - Instituto de Educação RégisPacheco. A primeira foi quando voltei da Fazenda Turmalina, depoisde lá ter vivido por cinco anos. Fui direto para a quinta série do pri-meiro grau. Tendo estudado anteriormente numa escola onde apenasaprendi o básico – ler, escrever, ver as horas no relógio e outras ame-nidades –, fui reprovado em muitas matérias, principalmente em Por-tuguês, ao entrar para o novo colégio. Não conseguia sequer separaras sílabas das palavras. Desisti então de continuar estudando ali e vol-tei para a escola normal da cidade. Isso ocorreu por volta de 1982.

A segunda vez foi quando lá me matriculei para cursar o segun-do grau. Aí, sim, fui mais bem-sucedido, pois tinha me proposto a serum aluno “caxias” no primeiro grau e, conseqüentemente, tornara-me o destaque de minha turma. “Vendia” trabalhos de Geografia, His-tória, Matemática e de outras matérias para toda a turma. Quando oprofessor passava uma pesquisa, eu fazia os trabalhos da sala inteira,para vendê-los depois. Era uma boa fonte de renda extra para mim.

Durante meu curso de segundo grau, eu trabalhava na empresade ônibus Tiradentes, de Dalmar (veja detalhes no capítulo “Trabalhona empresa Tiradentes”). A perseguição era muito forte dentro do tra-balho e ninguém conseguia estudar e trabalhar, pois os horários dasescalas de trabalho eram feitos de forma que impedia que o funcioná-rio tivesse tempo de freqüentar a escola. Mas, felizmente, conseguiconciliar as duas atividades, mesmo porque eu era muito incisivo einsistente naquilo que eu queria. Sempre enfrentei João e outros “fis-cais” da empresa de forma contundente.

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Eu era o único cobrador que agia dessa maneira e não era demi-tido. Muitas vezes, chegava de viagem, trabalhando, e ia direto para ocolégio, onde fazia provas que nem sabia que estavam marcadas. Aduras penas, concluí o segundo grau, com muitas falhas, devido aobaixo nível de ensino daquela instituição (a melhor da cidade), ondese fingia estar ensinando e os alunos fingiam estar aprendendo. Mui-tas provas de Economia eram “trabalhos” a serem feitos em casa eentregues na Secretaria, pois o professor raramente aparecia na salade aula. Outras matérias tiveram a mesma sorte. Tanto que me “for-mei” em Técnico em Contabilidade e nada sei da área. Os estágios,então, eram catastróficos. Além da imensa dificuldade de se conseguirlocais para estagiar, quando aparecia algum eram empresas que nãotinham a menor estrutura para funcionar, e muito menos para trans-mitir informações contábeis. Na época, muita gente nem fazia estágio,apesar de conseguir notas de estágio supervisionado. É o Estado cum-prindo a sua parte em formar cidadãos desinformados e desprepara-dos para exercer suas atividades com cidadania.

Ainda durante o curso de segundo grau, conheci Renato, de quemfiquei muito amigo. Sendo eu considerado um dos CDF da classe, aca-bava indo sempre à casa dos amigos, nos finais de semana, para lhesdar aulas. A casa de Renato era quase uma velha conhecida, pois todosos domingos eu estava lá, bem cedinho, às vezes até mesmo antes de ocafé ser servido. Lembro que sempre assistia ao Globo Rural, um dosprogramas matinais da Rede Globo, na casa dele.

Lá, aproveitava para tomar café, almoçar e jantar, além dasmerendas servidas durante o dia, principalmente a mim, que era visi-ta. A família de Renato também era muito pobre, mas sua mãe eraaposentada e tinha salário fixo, o que lhe permitia ter sempre comidaem casa. Além disso, como a casa era própria, não precisavam gastarcom aluguel, e sempre sobrava algum dinheiro para outros gastos.

Consegui, uma vez, um emprego para Renato como vigilante naempresa de um outro amigo meu, também colega de sala, para quemeu também dava aulas em alguns finais de semana. Este outro amigomorava no bairro Agarradinho e tinha fama de ser ladrão. Mas nossaamizade continuou mesmo após eu ter tomado conhecimento de queele roubava e fazia jus à fama.

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Foi nessa época que conheci outra colega de escola chamadaIvonete. Era dona de uma barraca de verduras na feira livre da cidade.Como minhas “aulas” particulares nos finais de semana se tornaramfamosas, acabei sendo convidado para dar aulas a ela também. E as-sim descobri que Ivonete era comerciante e ela descobriu que eu erauma pessoa necessitada. Acabou se oferecendo para me ajudar e euaceitei. Daí em diante, toda semana minha mãe, ou algum de meusirmãos, passava na barraca dela e recebia um monte de verduras efrutas.

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MILITÂNCIAS, TRABALHOS E MUDANÇAS...

Militância Política

Eu militava no Partido Comunista do Brasil e participava dasreuniões de cúpula, onde discutíamos estratégias de ocupação dos es-paços na cidade: associações de bairros, sedes de partidos, grêmiosestudantis e todos os espaços que pudessem gerar dividendos políti-cos. Uma das fontes de informações de que me valia para manter-meatualizado era o jornal Tribuna Operária, que adotava uma posição elinha de pensamento compatíveis com minhas idéias na busca de ummundo mais justo e de uma sociedade mais humana. Durante muitosanos, revoltei-me com as reportagens sobre a Ditadura Militar que lianos jornais.

No colégio, juntei-me a uma equipe de rapazes e moças que jáatuavam politicamente de uma forma mais madura e profissional.Éramos tão atuantes que acabamos fundando uma chapa para con-correr à direção do grêmio estudantil. Nossa chapa de estudantes foieleita para a direção do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro, que fun-damos no IERP e mantivemos por muito tempo. Eu era o Diretor deImprensa desse grêmio e responsável, entre outras coisas, pela publi-cação do jornalzinho informativo, onde denunciávamos os mandos edesmandos do Diretor Carlos Melhem.

Cheguei até a viajar para Salvador para pegar o jornal do grê-mio, que era impresso em uma gráfica da Ladeira de Santana. Nessaépoca, viajei também para Arembepe, para participar da ConvençãoNacional da União da Juventude Socialista, um braço político do PCdo B. Foi uma festa inesquecível. Participamos de comemorações edebates, tomamos banho nas lagoas de Arembepe e dançamos ao som

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de trios elétricos. O que mais me marcou nessa viagem foi o colégioonde dormíamos e suas inúmeras telhas quebradas que, com a chuva,acordavam muita gente durante a madrugada. Outra cena que nãoesqueço foi a de uma tartaruga gigante, que vi nadando no mar, perti-nho da praia. Naquele dia, tinha acordado cedo e resolvi sair para umacaminhada na beira da praia. Estava distraído olhando o mar, quandonotei uma “pedra” enorme se movendo na superfície da água. Fiqueiintrigado com aquilo e não desgrudei os olhos dali até descobrir que oestranho fenômeno era uma tartaruga de mais de dois metros de com-primento. Fiquei surpreso e admirado diante daquela obra formidá-vel da natureza. Permaneci um bom tempo contemplando aquele cas-co colossal a se movimentar na água. Até que a tartaruga resolveu darum mergulho e desaparecer no meio das ondas do mar.

Campanha Política de Waldir Pires

Trabalhei com alguns amigos na campanha política de WaldirPires para o governo do estado da Bahia. Viajamos para a convençãodo PMDB, partido que fazia parte da coligação para a eleição de Wal-dir Pires. Em Salvador, fomos para a Câmara Municipal, onde aconte-cia a festa, almoçamos num restaurante localizado embaixo do prédioda Prefeitura e ficamos hospedados num minúsculo apartamento noEngenho Velho de Brotas, de propriedade de Lídice da Mata. Como oapartamento era muito pequeno, Lídice foi dormir na casa de sua mãee lá deixou parte da galera, na qual eu me incluía. Muito simpática, elanos autorizou a ficarmos à vontade em sua casa, inclusive para assal-tar a geladeira, nos fartar de iogurtes e ovos, os quais consumimoscom vontade.

Fazíamos panfletagem, boca de urna, colagem de cartazes pelacidade, debates, reuniões e seminários, em troca de uma promessa deemprego, caso o Waldir ganhasse a eleição. Para nossa decepção, logoapós a conquista do governo do estado, nosso partido trocou os cargospor “apoio político” na eleição seguinte. Fiquei revoltado com aquilo,de ver que as decisões eram tomadas em gabinetes, restando à baseaceitá-las pacificamente. Encontrava-me desempregado há um bomtempo e aquela promessa de trabalho era com o que eu contava. Saí dopartido, abandonei toda a militância e nunca mais me engajei em po-lítica partidária.

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Trabalho com Abdias e sua mulher

Trabalhei com Abdias e sua mulher desde o tempo em que eramcasados e moravam na Ladeira da Coelba. Nessa época, ele só tinhaRubens de filho. Eram vendedores ambulantes de panelas, tecidos eutensílios domésticos de plástico. Viajei muito em sua pick-up C10para Itagi, Apuarema, Ipiaú e cidades dos arredores de Jequié, nosfinais de semana. Lá armava uma barraca ou simplesmente estendiauma lona preta no chão, arrumava a mercadoria, e esperava que osfregueses aparecessem. O mais engraçado era que, muitas vezes, alémde ter de “brigar” por um espaço no chão das feiras livres, ainda tinhade pagar uma taxa à prefeitura local pela utilização do “solo”, que nãopassava de um chão livre ou coberto de paralelepípedos. Lembro-meque, certa ocasião, fui deixado em uma cidadezinha, onde tive de pro-curar pelas mercadorias de Abdias, que estavam guardadas na casa deum dos moradores da cidade, para depois levá-las até a feira e, nofinal, guardá-las novamente nessa casa. Dali pegava um ônibus e vol-tava para Jequié com o dinheiro apurado na vendagem do dia. Poste-riormente, Abdias se mudou para o Agarradinho, casou-se com outramulher e teve mais filhos. E, por coincidência, acabei indo morar emfrente à sua casa, quando me casei com Márcia.

Na época em que Abdias e a mulher se encontravam sem condi-ções de manter a estrutura de vendedores ambulantes, montaram vá-rias barraquinhas, de um metro de comprimento por meio metro delargura, para a venda de doces, pipocas, chicletes e cigarros. Trabalheinuma dessas barracas, que ficava guardada numa residência na Ave-nida Rio Branco. Era a residência de duas senhoras idosas. Nos fun-dos da propriedade, havia um quartinho onde eu guardava o “caixote”com os doces. As senhoras sempre me davam café ou alguma comida,quando eu chegava pela manhã para pegar o carrinho de mão e a bar-raca. Todos os dias eu carregava a barraquinha e a armava na esquinada casa de Walter Sampaio – então prefeito da cidade –, onde, temposdepois, foi construído o Superlar Supermercados – uma rede de mer-cadinhos de Vitória da Conquista, com várias lojas em Jequié. Sempreera roubado pelos estudantes que por ali passavam, fosse quando com-pravam fiado ou quando, simplesmente, pegavam as mercadorias ecorriam. Nessa ocasião, minha mãe estava com sérios problemas naspernas e precisava usar muletas para caminhar. Ainda assim, todos os

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dias, ia levar minha comida, que não variava muito: pirão de farinhacom água, uma piaba frita ou um pão com manteiga (no interior, mar-garina é chamada de manteiga). Como eu não gostava da comida, queela levava com sacrifício, e não queria magoá-la, usava da seguinteestratégia: jogava fora minha água de beber, armazenada numa latade Neston, e pedia que ela fosse buscar mais água. Nesse meio tempo,dava um jeito de jogar a comida no lixo, sem que ela visse. Enquantoela atravessava, com dificuldades, a avenida Rio Branco, eu olhava paraa comida e dela me desfazia imediatamente, caso meu estômago a re-cusasse. Porém, quando minha mãe voltava com a água, dizia-lhe quehavia comido tudo. Ela ficava satisfeita, enfatizando que meus irmãos,em casa, não tinham almoçado para que sobrasse comida para mim.Eu ficava com o coração partido, mas nunca tive coragem de dizer àminha mãe que, na maioria das vezes, eu também ficava com fome.

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Trabalhei como balconista no bar de Bio, na praça da Bandeira.Despachava cachaça, bebidas diversas, cereais, tira-gostos, sucos, bo-los etc. Trabalhava de segunda a sábado e ganhava muito pouco. Agrande vantagem era que eu comia durante todo o dia, coisa que nãopoderia fazer em casa, onde quase nunca havia o que comer. Não lem-bro quanto tempo trabalhei nesse bar, mas é uma passagem que me-rece registro.

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Quando ficava sem trabalho, ia limpar quintais de conhecidoscom uma enxada. Às vezes, saía a caminhar por ruas onde não conhe-cia ninguém, perguntando, de casa em casa, se tinha algo que eu pu-desse fazer. Desta forma, nunca ficava sem uns trocados para com-prar minhas coisas. Sempre encontrava algo para fazer. Lembro bemdo quintal de Dona Alzira, mãe de Edilene. O quintal dela era enorme,e sempre tinha muito mato e lixo a serem removidos. Eu levava comi-go uma “galiota” (carrinho de mão, daqueles que os pedreiros usam)para retirar o lixo, as pedras e o mato que eu capinava.

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Trabalhei como caseiro na casa de um senhor conhecido comoDr. Gerson. Ele tinha uma casa enorme e vários cachorros da raça po-licial. Apesar de não ser chegado a animais, eu cuidava dos cães e davacomida a eles. Certa feita, entrei no carro do patrão e encontrei umenorme revólver, calibre 38, no porta-luvas. Foi a primeira vez que viuma arma de verdade. Manuseei o revólver um pouco e, em seguida,guardei-o, com medo de ser visto por alguém.

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Trabalhei também quebrando pedras. Era um trabalho duro, li-teralmente duro. Ficava numa pedreira, perto de Jequié. Ali eu ga-nhava por produção. Cada lata de pedra equivalia a cerca de R$ 1,00,a preços de hoje. Isso poderia significar um bom dinheiro se eu conse-guisse quebrar muitas pedras. Mas a realidade é que eu passava doisou três dias tentando encher uma lata. Foi uma das fases mais difíceisde minha vida.

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Trabalhei também com Aldo, vendedor de utensílios domésti-cos e de leite. Viajava com ele para as cidades circunvizinhas para ven-der tecidos, utensílios plásticos e panelas. Trabalhava nas feiras livresdas cidades próximas a Jequié. Não lembro de muita coisa sobre essetrabalho, foi apenas mais um deles.

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Joel é um primo distante, por parte de meu pai. Ele trabalhavanuma panificadora, na Avenida Franz Gedeon, próximo ao centro dacidade. Conseguiu-me uma vaga para trabalhar como vendedor e en-tregador de pães. Eu saía de casa, então, todos os dias bem cedo, porvolta das cinco horas da madrugada, e voltava somente no final da

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tarde. Ainda lembro do cheiro dos pães fresquinhos, a exalar do enor-me cesto que eu carregava, para entrega nas lojas próximas e no cen-tro da cidade. Meu pescoço doía muito por causa do peso do balaio.Não fiquei muito tempo empregado ali, e nem sequer recordo do mo-tivo de minha saída.

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Construí um carrinho de mão, de madeira, e com ele trabalheimuito tempo carregando as compras do povo na feira. As pessoas queiam às compras levavam cestos enormes, balaios descomunais, queenchiam de verdura, feijão, carne e tudo mais. Só que a volta para casanem sempre era uma operação fácil para esses compradores, pois ti-nham de levar suas compras em ônibus coletivos ou em táxis. Nosônibus, nem todos os motoristas permitiam; e nos táxis, a corrida fi-cava mais cara. A saída para aquela gente então era pagar uns troca-dos para um rapazinho carregar as compras. Esta prática é bem co-mum nos locais onde tem feira livre.

Geralmente, os dias de maior movimento eram sexta e sábado,quando o centro da cidade era invadido por pessoas vindas de povoa-dos e fazendas próximas para fazer suas compras em Jequié ou paravender os produtos das roças. Houve um dia em que eu quase des-maiei quando subia a avenida Rio Branco em direção ao viaduto Dani-el Andrade, com um cesto enorme no carro de mão. O peso era tãogrande que eu me entortava todo para equilibrar o carrinho de mão.E, para piorar a situação, nesse dia eu não tinha tomado café, estavamuito fraco. Acabei passando mal e quase não pude continuar meutrabalho na feira. A dona do cesto, sensibilizada com o meu estado,me trouxe um copo d’água e depois me deu café com pão. Pediu queeu ficasse ali parado um pouco, descansando, e depois fosse para casa.Segui seus conselhos e descansei, mas, ao invés de voltar para casa, fuidireto para a feira livre, procurar mais cestos para carregar.

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Um dos trabalhos mais chatos que tive foi o de ajudante de pe-dreiro. Nunca havia trabalhado antes nessa profissão – e, depois des-sa experiência, não procurei outras iguais. Seu Elias era um senhornegro e gordo, lento e lerdo como uma tartaruga. Uma vez, chamou-me para ganhar um dinheiro trabalhando como seu ajudante no servi-ço de pedreiro. Só que ele não fazia nada. Ficava sentado na escada demadeira, recebendo blocos de cimento, massa de cimento e tudo mais,sem fazer o menor esforço. Só sabia mandar: “Traga o cimento! Tragaa corda! Traga a colher de pedreiro!”. Esta passagem foi tão rápidaque mal consigo lembrar quanto tempo durou o trabalho, nem quantoeu recebia por ele.

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Zezé é o apelido de José, um de meus irmãos, filho do primeirocasamento de meu pai. Ele é casado com Irene, com quem teve Vag-ner e Lane. A primeira família de meu pai sempre viveu afastada dagente, acredito que por causa da nossa condição social, que não nospermitia freqüentar os lugares que eles freqüentavam.

Sendo comerciante, sempre teve um bar ou uma mercearia, ondetrabalhava duro para sustentar a família. Quando trabalhei com eleno bar, como balconista, caminhava quase a cidade inteira, de madru-gada, para chegar ao estabelecimento cedinho, antes das seis horas damanhã, todos os dias. Batia na porta de sua casa e ele abria uma porti-nhola por onde enfiava a mão e me entregava as chaves da venda. Daíeu abria o mercadinho, fazia toda a limpeza do chão, das louças, frigi-deiras e panelas de café, que estavam sujas desde o dia anterior. Cozi-nhava ovos, preparava lanches, fervia feijão ou alguma outra comidaque estivesse no fogão, limpava e enchia a geladeira e o freezer de be-bidas. Deixava toda a venda preparada para o novo dia.

Zezé acordava por volta das sete horas e ia para lá. Nem sempreficava comigo. Mas uma de suas advertências era que eu evitasse ven-der fiado para a clientela, sob a alegação de que fiado somente na pre-sença dele. E assim eu procedia, evitando que a maior parte do esto-que fosse vendida fiado. Para cada cliente que chegava pedindo parafiar a compra, eu repetia sempre que “somente com meu irmão”, poisnão tinha autorização para tal.

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Gostava daquele trabalho e tentava fazê-lo da melhor maneirapossível. Afinal, eu precisava do salário que ele me pagava (menos queum salário mínimo, diga-se de passagem). Na venda, ele tinha umponto de jogo do bicho, onde aprendi a fazer o jogo. Muitas vezes,Irene, minha cunhada, ficava no bar comigo. Mas o mais comum eraencontrar Vagner por ali, geralmente sentado ao lado do caixa e pas-sando troco. Nunca desconfiei dele. Mas, um dia, houve uma discus-são entre mim e Irene, porque Vagner tinha colocado um saco de amen-doim doce pendurado num prego sobre a pia. Com o peso, o saco ras-gou, fazendo com que o amendoim caísse na pia, ficando todo molha-do e se estragando. Vagner, para livrar-se da bronca e de pagar o pre-juízo, acusou-me de ter colocado o amendoim sobre a pia. Ficou a pa-lavra dele contra a minha, e sua mãe, obviamente, acreditou no filho.Protestei e discuti com ela. Quando meu irmão chegou, certamenteinfluenciado por algo que Irene lhe dissera, resolveu me mandar em-bora, sob o argumento de que, se eu não me dava bem com a mulherdele, não poderia continuar trabalhando na venda. Nada pude fazer,era ele o dono do bar.

Devido ao jogo do bicho que eu fazia para Zezé lá no bar, acabeiconhecendo todos os fregueses e também aqueles que faziam sua “fe-zinha” constantemente. Desempregado e sem ter o que fazer, fui até abanca do jogo do bicho e peguei um talão para mim. Comecei a fazerjogos por minha própria conta. Meu roteiro incluía principalmente asproximidades da venda de meu irmão, onde eu já tinha uma boa fre-guesia.

Um dia, estava eu do lado de fora da venda e vi uma freguesaconhecida entrar. Ela não me viu e, dando por minha falta, perguntouà Irene, que estava no balcão, onde eu me encontrava. Irene pronta-mente anunciou que “Zé mandou embora, pois ele estava roubando obar”. Quase não me contive de raiva ao ouvir aquelas palavras, masfiquei do lado de fora da venda, escutando toda a conversa. Até hojetenho este espinho entalado na garganta. E, um dia, ainda hei de cha-mar Irene para conversar sobre o assunto. Ouvi bem quando ela disseà freguesa que sempre mandava Vagner tomar conta do caixa da ven-da, para que eu não roubasse ainda mais. E foi aí que me caiu a ficha:ela mandava o filho, não com a intenção de me ajudar, mas para mevigiar. O que deixa meu coração aliviado é que eu nunca peguei nadade meu irmão.

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Ouviria de Zezé, tempos mais tarde, quando eu passava por suavenda, sobre as estripulias do filho. Contou-me que Vagner tinha setornado evangélico, e que, quando ia para os “retiros espirituais”, sem-pre arrombava a venda, levando comida e tudo o que encontrasse, parapassar semanas no meio do mato com os “irmãos” de igreja. Por ironiado destino, ele que era o vigia passou ao papel de ladrão. Zezé relatou,ainda, que muitas vezes foi xingado pelo filho na presença de pessoasda vizinhança, o que lhe deixava morto de vergonha. É o destino dan-do a lição necessária àqueles que precisam aprender algo na vida.

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Saímos da Casa da Avenida Franz Gedeon. Essa casa pertenciaao meu irmão Édson, que sempre morou em São Paulo. A razão determos saído dessa casa foi que os cunhados de Édson (Joel, Maxwel eCreuza) convenceram-no a nos tirar de lá e a pagar o aluguel de umaoutra casa para nós. Alegavam que, se continuássemos morando ali, acasa poderia passar a ser nossa. E ele, temendo que isso acontecesse,fez o que lhe foi sugerido. Édson resolveu então passar a pagar o alu-guel de uma outra casa para nós. E, como o valor do aluguel que ele sepropunha a pagar era muito baixo, só podíamos escolher casas bempequenas e em bairros distantes. Fomos morar inicialmente no bairrodo Pau Ferro. Primeiro, procuramos casa na rua da Bosta, o pior lugardo bairro, onde encontramos uma que fazia jus ao nome da rua. Fica-va em cima de um despenhadeiro, em rua de chão batido, onde nãohavia serviço de ônibus nem de água encanada. Depois, conseguimosuma casa, no mesmo bairro, pelo mesmo preço, porém mais perto doCentro. Fomos então morar nessa casa, cujo aluguel deveria equivalerhoje a algo em torno de dez reais por mês.

Alguns meses depois nos mudamos para uma casinha com umasala de um metro e meio por dois de largura, um quartinho do mesmotamanho e um pequeno corredor, localizada na rua Rafael Pinto, bair-ro do Jequiezinho. Não tinha quintal, ou melhor, tinha um quintalque, por não ser cercado nem murado, acumulava muito mato e lixo.Na frente da casa, a rua era de cascalho. Fica difícil hoje compreendercomo todos os meus oito irmãos, juntamente com minha mãe, conse-guiam se acomodar numa casinha tão pequena.

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Ali conhecemos muita gente. Continuávamos dependendo da boavontade das pessoas para sobreviver. Conhecemos Eva e sua família: amãe, Dona Maria, e a irmã, Nalva. Era gente da roça, que se mudoupara a cidade após vender um sítio que possuía. A família foi em buscade uma vida mais fácil, menos sofrida. Acabou sem o sítio, sem a casa,sem nada, pois, quando o dinheiro secou, ficou sem ter como sobrevi-ver naquela realidade urbana, onde cada um luta por si. Dona Mariateve de vender a própria casa para cuidar de Eva, vítima de doençaincurável: um câncer em estágio avançado. Antes de procurar os mé-dicos, ela correu para as igrejas evangélicas, depois para os terreirosde candomblé e, quando enfim resolveu apelar para a medicina, o casojá estava adiantado demais. Não me sai da lembrança o dia em que fuivisitá-la em sua casa e espantei-me com o buraco enorme em suasnádegas, por onde se viam os ossos do quadril. Foi uma das cenas maischocantes que vi.

Quando morávamos nessa casa, fui à loja e comprei um fogão agás. No entanto, a alegria durou pouco. Nunca usamos o fogão, poisnão tínhamos condições de comprar o botijão de gás e, muito menos,o gás para abastecê-lo mensalmente. Esse fogão eu acabei vendendopara pagar pela publicação de uma poesia na antologia Poetas Brasi-leiros de Hoje – 1984. Não usamos o fogão para cozinhar, mas eleserviu para essa alegria minha e de minha família, que vibrou quandoviu o livro publicado. Antes de eu comprar esse fogão, já tínhamosganho um fogão menor, de duas bocas, doado por uma pessoa chama-da Lourdes. A alegria foi muito grande, mas não tivemos condições decomprar o botijão de gás e por isso o fogão nunca foi utilizado. Acaba-mos nos desfazendo dele para comprar comida.

Nessa rua – como nas outras – era Quira quem mais fazia ami-zades. Conheceu Nenquena e Norminha. A primeira usava drogas e asegunda fumava cigarros igual a uma caapora. Tinham fama de mu-lheres fáceis, diziam que elas saíam com todos os homens da cidade.Minha mãe vivia a reclamar com Quira por causa de suas amizades,mas, sempre muito teimosa, minha irmã continuava a sair com essase outras amigas. Felizmente ela não seguiu o destino das amigas e hojeé uma pessoa de bem, casada, com três filhos, evangélica, responsávele muito amada por todos da família.

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Primeira viagem a Salvador

Fui trabalhar em Salvador, em 1984, na casa de Luci Valverde,que morava na Alameda das Framboesas, Quadra 7, Lote 12, Caminhodas Árvores. A casa ficava perto do Iguatemi e todos os dias eu passa-va perto do shopping para comprar pães. Da varanda, dava para verao longe os ônibus passando, e eu ficava horas e horas observando omovimento dos carros. Na verdade, ela me levou para a capital dizen-do que precisava de mim para tomar conta de um cachorro. Mas, quan-do cheguei, não tinha cachorro algum. Eu teria de limpar a piscina, oquintal, ser zelador e jardineiro. Como relatado anteriormente, Luciera a dona da Fazenda Turmalina, onde morei dos sete aos doze anosde idade. Em sua casa na cidade moravam, além dela, os filhos Augus-to, Conceição e Pitutinha. Teobaldo, o mais velho, morava no México,na época.

Por falar em Teobaldo, certa vez o carteiro trouxe uma carta delepara Luci, e eu, por achar o selo muito bonito, arranquei-o do envelo-pe para juntá-lo à minha coleção. Por medo de mostrar o envelopelascado, cometi a imprudência de ler a carta e jogá-la no lixo, em se-guida. Depois, arrependido, recuperei a carta e coloquei-a, aberta, naestante da sala. Luci pegou a carta e me pressionou a confessar o deli-to. Neguei até a morte, e ela me deu um sermão que jamais esqueci;disse que era muita ousadia e falta de responsabilidade abrir corres-pondência alheia, que aquilo era crime. Aprendi a lição e nunca maisousei abrir qualquer correspondência, fosse de quem fosse. Só nãorevelei que tinha sido eu o autor do ocorrido, nem os motivos que melevaram a abrir a carta. Mas ela sempre teve a certeza de que fui euque abri aquela correspondência.

Uma vez houve um problema na instalação elétrica da casa e foichamada uma pessoa para fazer o conserto. Luci pediu-me que ficassena garagem, junto com o eletricista, tomando conta das coisas, paranão correr o risco de ser roubada por ele. Infelizmente, não pude evi-tar que um roubo acontecesse, e não por culpa do eletricista. A coisase passou da seguinte maneira: fiquei sozinho na garagem, quando oeletricista subiu para verificar uma fiação no primeiro andar da casa.Minutos depois de o eletricista ter subido, passou um rapaz em frenteà garagem, chegou até a porta e perguntou se não estavam precisandode alguém para trabalhar na casa. Respondi que não. Ele então entrou

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e levou uma bicicleta Caloi 10 novinha, que estava ali, depois de meameaçar com a chave de fenda que pegou dentro da própria garagem.Perguntou-me se tinha mais alguém em casa e eu, com medo, respon-di que tinha muita gente na casa, quando na verdade tinha somente orapaz que trabalhava consertando os fios e Luci. Ele levou a bicicleta eeu fiquei em pânico. Corri para fechar a porta da garagem e para avi-sar Luci. Saímos pelos arredores à procura do ladrão, mas infelizmen-te não conseguimos localizá-lo.

A casa era enorme e tinha uma piscina muito bonita no quintal.Eu ficava louco para tomar um banho ali, mas, como empregado, nãotinha direito a essa regalia. Esperei o pessoal viajar, oportunidade emque fiquei sozinho na casa. Aí aproveitei para dar o tão desejado mer-gulho, um único mergulho, naquela piscina de águas convidativas. Foio suficiente para matar meu desejo e curiosidade. Foi o primeiro mer-gulho de minha vida em uma piscina. Quando Luci chegou, deu-me amaior bronca, pois tinha observado o rastro que eu deixara no fundoda piscina. Com o mergulho, meu corpo havia limpado uma faixa desujeira do fundo e eu não percebera...

Meu quarto ficava nos fundos da casa, perto da cozinha. Tinhaum guarda-roupa enorme, onde caberiam todas as roupas de minhavida. Mas eu ocupava apenas uma gavetinha do fundo, já que não pos-suía muita roupa. Tinha também uma televisão. Eu podia assistir TVno meu quarto ou na cozinha; jamais na sala, com os patrões. Naspoucas vezes em que me sentava na sala para assistir TV, era postopara fora dali, sob o argumento de que “empregados não podiam semisturar com patrões”. Mas eu não tinha essa noção ou cultura, nemsabia que a expressão “colocar-me em meu lugar” significava ficar nosfundos da casa. Lembro de uma vez que fiquei brincando com o con-trole remoto da TV enquanto Pitutinha assistia aos programas na sala.De molecagem, eu mudava de canal a toda hora, para vê-la reclaman-do. Ela era uma criança ainda, e eu, também da mesma faixa etária,achava-me no direito de brincar com a patroinha da casa.

Odiava macarrão porque me lembrava lombrigas. Uma vez, nojantar, vi que meu prato continha macarrão em sua maior parte. Comio restante da comida e joguei o macarrão no lixo. Luci estava na janelado primeiro andar e me viu fazendo aquilo. Desceu e me deu uma bron-ca memorável. Falou que tinha muita gente passando fome no mundo

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e que eu estava desperdiçando comida. Disse ainda que, se eu não gos-tasse da comida, que falasse para a empregada me dar outra coisa.

Repeti a cena em outra ocasião, quando a empregada esqueceude deixar comida para mim. Então, Conceição, filha de Luci, preparouuma sopa de cogumelo. Tentei comer, mas odiei o sabor. Fingi quecomi, esperei ficar sozinho, e joguei tudo no lixo. Desta vez não fuivisto, senão seria bronca certa.

A empregada da casa folgava nos finais de semana. Certa vez,peguei o prato sujo e coloquei na pia. E lá veio Luci novamente me darbronca. Agora alegando que até ela mesma lavava seu prato, e quemuitas vezes já tinha lavado até o vaso sanitário de seu quarto; quemetia a mão dentro dele com esponja e sabão, e que aquilo não a tor-nava melhor ou pior do que era. Após o sermão, exigiu que eu lavasseo prato. Aprendi a lição. Com Luci aprendi muitos valores importan-tes da vida.

Chegou o natal e Luci começou a preparar a festa de final deano. Aquela seria a primeira ceia natalina de minha vida. A mesa esta-va repleta de comidas: leitão assado, peru, frutas, nozes e vinhos. Masnão agüentei esperar até meia-noite e corri para a cama. Poderia terexperimentado naquele Natal uma sensação diferente de todas as quejá tinha vivido. Mas, infelizmente, o sono me venceu e eu perdi a opor-tunidade de desfrutar da festa. Pouco tempo depois, voltaria a morarna pobreza, em Jequié, com minha mãe.

Luci era espírita e tinha o costume de oferecer comida e presen-te aos espíritos. Lembro-me que, na época em que morei na fazenda,eu já havia encontrado abóbora com mel, e outras oferendas, dentrode uma tigela de barro, que ela colocava dentro do mato. Em Salvador,levou-me uma vez para o rio Vermelho, onde jogou flores e perfumesno mar, para Yemanjá. Foi a primeira vez que vi o mar. Fiquei maravi-lhado, extasiado... E, deste encantamento, fiz uma poesia em home-nagem ao mar:

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O Mar

O mar é muito lindo!

Tão lindo quanto extenso.

Tudo que vejo e é lindo

Está no mar.

Nele tem peixes grandes e peixes pequenos.

Pelas águas do mar, ou dos mares,

Navegam as maiores embarcações...

Também singram o mar,

A trabalho, diversão ou em simples viagem,

As embarcações menores: canoas, barcos, balsas, jangadas...

A textura da areia é finíssima e alva

Em quase todas as praias brasileiras.

Os habitantes do mar, os peixes já mencionados,

São muito úteis aos brasileiros,

Que têm no mar uma de suas principais fontes de alimentação.

O mar também aparece como a ligação

De outros países com esta Nação.

(1984)

Retorno a Jequié

Quando voltei a Jequié, minha mãe já estava morando no PauFerro, na casa de Mariinha. Era uma casinha bem pequena, estreita ebaixa. Tinha um quintal imundo e cheio de tralhas. A família inteiramorava naquela casinha minúscula. Sonhava, nessa época, em entrarpara a Aeronáutica. Pedi a Luci Valverde que me ajudasse a pagar ocurso preparatório e ela generosamente concordou. Com o dinheiro,comprei as apostilas.

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Um belo dia, Luci apareceu em minha casa para saber se eu es-tava estudando e me preparando para o concurso. Expliquei-lhe queachava tudo muito difícil e que estava prestes a desistir. Luci me deu amaior bronca que recebi em toda a minha vida. Falou que tinha tidouma vida muito difícil, e que, na juventude, teve que comer bananaverde assada para sobreviver; falou ainda que já havia passado muitafome; que seu pai enriquecera, sim, mas que antes de conquistar seusbens materiais passara por muito sofrimento e conhecera a fome deperto; que tudo o que ela adquiriu foi resultado de muito suor e traba-lho; que sua situação financeira confortável devia-se às economias quefazia e ao cuidado na aplicação de cada centavo; que não desperdiçavanada, a fim de poder ter sempre com o que se manter. Ela me disseque eu deveria aproveitar as oportunidades que a vida me desse, en-frentar os desafios, ter mais coragem e autoconfiança e nunca desistirdos meus sonhos e projetos, mesmo que eles pudessem parecer im-possíveis de conquistar.

Enfim, deu-me uma lição de moral e uma lição de vida para nun-ca mais esquecer. Todo aquele discurso ficou gravado em minha men-te e me lembro de cada palavra como se fosse hoje.

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Em uma casa em frente à que morávamos, havia uma famíliacom três irmãos: Balbino, Ádia (conhecida como “sem queixo”) e Ma-ria, que moravam com o pai. Apaixonei-me por Maria, que tinha umfilho chamado Anderson, de um ano de idade, cujo pai morava no Riode Janeiro. Enquanto namorei Maria, costumávamos freqüentar umaboate chamada “Cantinho de Lua”, que ficava perto do Aeroporto Vi-cente Grilo, onde desfrutamos de bons momentos. O romance durouquase um ano, mas ela nunca quis algo mais sério comigo. Namoráva-mos e transávamos muito, mas, quando eu falava em morarmos jun-to, ela caía fora do papo.

Quando terminamos, entrei em depressão. Cheguei a fumar umacarteira inteirinha de cigarros em poucas horas. O detalhe é que eunão era fumante e não gostava de cigarro. Caminhei do bairro Manda-caru até o bairro do km 4 fumando, e quase me joguei embaixo de uma

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caçamba que passou na BR-116, indo em direção a Vitória da Conquis-ta.

Tirei muitas fotos com Anderson, filho de Maria. Eu gostavademais do garoto e queria adotá-lo como meu filho. As fotos serviramde lembrança para guardar, como uma recordação do namoro com amãe dele e de uma provável família feliz que seríamos.

Nesse mesmo período, trabalhei como fotógrafo particular. Com-prei uma câmera fotográfica não profissional e comecei a “tirar fotos”de todo mundo. Dessa época tenho guardada em casa uma infinidadede fotos e negativos. Muita gente não me pagava, é bem verdade, mas,de um modo ou de outro, acabava recuperando o dinheiro investido,pois a quantidade de fotos que eu fazia era grande.

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O Pau Ferro era um dos bairros mais violentos da cidade. Láhavia tiroteio, gente cortando gente com facão, pobreza, falta de sane-amento básico (os esgotos corriam a céu aberto), ruas sem calçamen-to, serviço de transporte público precário, enfim, era um bairro típicoda periferia. Eu não falava com praticamente ninguém, exceto o estri-tamente necessário, com medo de criar laços de amizade com pessoasque pudessem me trazer problemas no futuro.

Trabalhava no bar de Joel, um primo distante, e meu contatocom o público se restringia ao formalmente necessário. Quando saíapara trabalhar, sempre advertia meus irmãos para que não abrissem aporta para quem quer que fosse, lembrando-lhes que, caso alguémperguntasse algo sobre mim, deveriam dizer que eu era do Exército,patente “herdada” de meu pai, que também tinha sido militar. Umamentira de conveniência para que as pessoas nos “respeitassem” eevitassem confusão conosco.

Um belo dia, alguém bateu à porta e meu irmão Gal (Vivaldo)atendeu. Desconsiderando minhas instruções, falou para a pessoa quetudo não passava de uma mentira e que eu não era do Exército coisanenhuma. Gal era uma criança e não tinha noção da gravidade do queestava fazendo, mas levou uma surra por isso, surra que ele jamais

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esqueceu. Eu, sinceramente, não me lembrava deste episódio, mas,recentemente, em conversa com Gal e com meus outros irmãos, fui“lembrado” do ocorrido.

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O bar era composto de um pequeno balcão e prateleiras, e tam-bém de um salão onde havia uma mesa de sinuca. Joel tinha montadoum aparelho de som em casa, de grande potência, que posteriormenteinstalou no bar. Eu sempre colocava músicas para tocar e, freqüente-mente, ouvia Frank Sinatra no volume máximo do aparelho, irritandobastante os vizinhos. Mas ninguém nunca chegou para reclamar dobarulho, apenas do meu mau gosto por música, já que eles preferiamcantores mais populares. Joel, o dono do bar, possuía vários discos devinil, que eu não parava de ouvir: reggae, Tina Turner e outros sons...A música deixava tudo muito mais alegre.

Perto do bar, do outro lado da rua, moravam Lusa e Pinóia, duasprostitutas que tinham um pai cego. Certa vez, chamei Lusa e marca-mos um “programa”. Ela aceitou e foi à noite até o bar para me encon-trar. Bebemos bastante e transamos várias vezes em cima da mesa desinuca, sobre o balcão, em todos os lugares possíveis. Eu tinha dezoitoanos de idade e era a minha primeira experiência sexual, que viria ame render também a primeira e única doença venérea: gonorréia. Pas-sados alguns dias, comecei a sentir um ardor insuportável ao urinar.Depois começou a sair uma secreção do pênis. Fiquei apavorado emostrei para minha mãe, que me levou ao posto de saúde, onde omédico me receitou o remédio apropriado. Tomei as injeções que eleprescreveu e fiquei curado.

Lusa sempre pegava arroz ou feijão no bar, dentre outras coi-sas, sem pagar, por conta de nossa transa. Mais de dois anos depois,vim a saber que tinha ficado grávida de mim e abortado o filho, sob oargumento de que eu não teria condições de criar a criança e ela nãoqueria assumir o bebê sozinha. Fiquei muito revoltado com este infe-liz incidente, mas nunca a procurei para falar sobre o assunto. Teriasido o meu primeiro filho, que poderia estar hoje com vinte anos deidade.

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No bar existiam duas mesas de sinuca. Como eu tinha a chaveda gaveta, ficava o dia inteiro jogando de graça. Abria a gaveta porbaixo e pegava as bolas, sem que o contador girasse e marcasse o nú-mero de partidas jogadas. Várias e várias vezes eu repetia a mesmaoperação, para preencher o tempo vazio, já que quase ninguém com-prava no bar. O povo era muito pobre, dinheiro não sobrava nem se-quer para comprar comida.

Valdinéia era uma das putas do Pau Ferro, filha de Dona Zene eirmã de Yara (a puta mais poderosa da área). Ela freqüentava o baronde eu trabalhava e, pelo contato constante, acabamos nos envol-vendo sexual e sentimentalmente. Várias vezes ela dormia no bar co-migo, e transávamos cerca de quatro a cinco vezes por dia. Acabamostendo um caso e fomos morar juntos, na casa de minha mãe. Nessaépoca, eu andava psicologicamente muito abalado por causa da situa-ção financeira da família. A depressão andava comigo e, diante da fal-ta de expectativas, passei a atentar contra a própria vida, como no diaem que tomei um copo inteiro de aguardente Pitu, chegando em casatranstornado, e quando enchi um frasco de veneno e me dirigi ao pos-to médico do bairro vizinho. Lá, entrei no sanitário e tentei ingerir oveneno, mas me faltou coragem para concluir o ato. Deixei o venenoali mesmo e voltei para casa. Num terceiro episódio, entretanto, aca-bei tomando veneno Baygon com cachaça e fui parar no hospital, ondepermaneci internado por vários dias. A depressão e o medo de viverme sufocavam, fazendo-me planejar fugas mirabolantes do hospital.Deus estava presente em minha vida, através de amigos e familiares, ecom o tempo o amor de todos eles foi me deixando mais confiante.Recuperei-me do susto de morrer, recuperei minha auto-estima e fuivencendo aos poucos minhas paranóias.

Néia passou a morar comigo, tornando meus dias menos amar-gos. Lembro que ela gostava muito de tomar café. Fazia um panelãode café e guardava; toda hora esquentava e tomava um gole. Era hor-rível o gosto de café requentado, mas ela gostava. Néia tinha um pro-blema no útero que a impedia de engravidar. E tinha também um bafode onça: a boca fedia como um esgoto, mas eu fingia não perceber enem reclamava. Seus dentes eram demasiadamente grandes, o quefez com que acabasse se tornando alvo de crítica de meus irmãos, quepassaram a chamá-la de “barrão alvoraçado”. Todos gozavam da cara

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dela, dentro de casa, inclusive eu. Pirraçávamos demais com a pobre.Não sei como ela agüentava tudo aquilo.

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Ainda no bairro Pau Ferro fomos morar numa casa localizadano final da rua João Rosa. Era um casebre, na verdade. Não tinha sa-nitário, somente uma “casinha” ridícula no quintal, que não era mura-do. Um pedaço de plástico funcionava como porta, e uma tábua comum furo no meio como vaso sanitário. A fossa embaixo da tábua fediaterrivelmente e em suas bordas se acumulavam muitos bichos de mos-ca. Era um lugar insuportável de se morar por causa do incômodo maucheiro. Ao lado desse “sanitário”, havia um tanque de água, no chão. Otanque nunca ficava cheio, era rachado. Enchíamos o tanque pelamanhã, quando caía água, e a rachadura levava toda a água antes domeio-dia.

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Minha ex-sogra, Dona Zene, mãe de Néia, conhecia muita gen-te, pois trabalhava nas feiras livres da cidade e também no MatadouroMunicipal, vendendo comida e mingau. Também já havia trabalhado,por muitos anos, em frente ao Frigorífico Sudoeste Bahiano S/A (Fri-suba), vendendo bolo, café, mingau e outras iguarias. Assim, acaboufazendo amizade com muita gente que trabalhava ali, inclusive com omédico veterinário Valdelício Fontenelle, chefe do Serviço de Inspe-ção Federal que funcionava dentro do Frisuba, a quem me apresen-tou, pedindo-lhe que me arranjasse um emprego. O médico precisavade mais um auxiliar e acabou me indicando ao Frisuba, para ser con-tratado. Foi o meu primeiro emprego de carteira assinada. Era umemprego muito bom. Minha função, como um dos auxiliares do médi-co, era examinar as carnes e miúdos dos bovinos abatidos no frigorífi-co. Nossa equipe tinha destaque e era tratada com certas regalias queos demais funcionários não tinham: vestuário separado e lavado porconta do Frisuba, almoço em sala separada com cardápio diferencia-

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do, fardamento diferente (com uma cruz verde no ombro esquerdo,que significava “auxiliar de médico” ou coisa parecida), acesso aos te-lefones, sala com máquina de escrever, frigobar, telefone e mesas deescritório. Toda essa regalia gerava uma certa inveja por parte dosdemais funcionários da casa.

Éramos uma espécie de autoridade ali. Tínhamos autorizaçãopara jogar no incinerador todas as carnes ou miúdos bovinos conta-minados por fezes, ou que apresentassem doenças. Os caminhões decarne vistoriada só podiam partir após serem lacrados com o selo deinspeção do SIF (Serviço de Inspeção Federal) e com o laudo atestan-do que aquele produto era apropriado para o consumo humano. Tí-nhamos também direito a um meio de transporte diferente do da “peão-zada”. Mas, como o frigorífico não comprava um veículo apropriadopara o nosso uso, os cinco funcionários da Inspeção Federal invadiama cabine do caminhão que levava os peões. O motorista reclamava quea polícia rodoviária podia multar, mas protestávamos e não saíamosda cabine.

O frigorífico ficava a uns dez quilômetros do centro da cidade.Todos os dias pegávamos um ônibus ou o caminhão da empresa àssete horas da manhã. Lembro-me que, certa vez, perdi tanto o cami-nhão quanto o ônibus, e acabei indo a pé para o trabalho. No caminho,o médico veterinário passou dirigindo o Fusca preto, de propriedadedo governo federal, e me deu carona. Chegando atrasado ao trabalho,o porteiro não permitiu que eu batesse o ponto. Daí, o próprio médicofoi à portaria, pegou e bateu meu cartão de ponto, por sua conta erisco.

Este foi o primeiro emprego de carteira assinada e o melhor quehavia tido até então. O salário era muito bom; com ele pude comprarminha primeira televisão, fogão a gás e pagar em dia o aluguel da casaonde morávamos. E, apesar das dificuldades financeiras que enfren-tava, ainda conseguia fazer uma economia de guerra, e juntar algumagrana para o caso de um futuro incerto. Resultado dessa economia eplanejamento: acabei comprando um terreno no Loteamento Itayga-ra, no bairro Mandacaru.

Ali no Frisuba, tive uma colega de setor chamada Welma. Con-versava muito com ela sobre minha vida e a situação que enfrentava.

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Quando lhe disse que não tinha televisão porque não poderia alugaruma casa equipada com instalações elétricas, ela me sugeriu compraruma TV que pudesse ser alimentada por bateria de carro. Por coinci-dência, o irmão de Welma tinha uma TV em preto e branco, que funci-onava tanto com energia elétrica quanto com bateria de carro. Nãotitubeei. Comprei a TV. Foi uma verdadeira festa em casa, pois dali emdiante não necessitaríamos mais ficar nas casas dos vizinhos para as-sistir aos programas, às novelas e aos desenhos animados. O proble-ma era que varávamos as noites assistindo televisão, e a bateria seesgotava em poucos dias. Além disso, havia o contratempo de ter quelevar a bateria, na cabeça, até alguma oficina mecânica que nos fizessea recarga gratuitamente. E, depois de recarregada, ainda tinha a se-gunda jornada: voltar para casa com o peso na cabeça, para vararmosnovas noites assistindo à televisão. Nessas noitadas, comíamos todosos biscoitos e bebíamos todo o café que existissem na casa...

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Fomos morar num casebre localizado à rua Teixeira de Freitas,a rua mais pobre e feia do bairro. As casas que ficavam do lado direitotinham seus quintais virados para o corte que dava na antiga passa-gem da linha de trem. Nesse corte passavam os esgotos de todas ascasas, que eram jogados ali. Aquilo exalava um cheiro insuportável eera foco de muitas doenças, além de servir de berço para nascimento ecrescimento de muriçocas. Incomodado com tanta precariedade, re-solvi fazer uma carta e mandar para a rádio local, que a divulgou numdos programas de maior audiência. O resultado não foi dos melhores:toda a rua se revoltou contra mim, a ponto de quererem até me bater.Achavam que tal iniciativa havia sido intromissão de minha parte eque eu não tinha o direito de enviar carta a rádio alguma, já que era omais recente morador do bairro. Os moradores comentavam em vozalta, para que eu ouvisse, que “os incomodados tinham que se mudare não ficar reclamando ou divulgando a situação precária do bairro”.

Numa daquelas chuvas torrenciais que costumam cair na cida-de, a parede da cozinha caiu dentro do corte. Minha mãe, temendoque a casa inteira viesse abaixo, resolveu sair à procura de outro local

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para morarmos. Havia uma casa numa transversal, que pertencia aum rapaz apelidado de Petisco. Como a casa estava fechada, minhamãe decidiu invadi-la. Fomos todos para a nova casa, muito mais bo-nita do que a outra. Tinha duas janelas que davam para a rua e o chãoera cimentado em cor vermelha. Ao ser avisado da invasão, o dono dacasa chegou trazendo a polícia para nos expulsar. Ficamos na casa deleaté que a chuva passasse. Depois, voltamos para a casa antiga, porordem da polícia.

Moramos também numa casa de adobões, localizada na traves-sa Teixeira de Freitas. A casa não tinha água encanada, nem piso decimento. O chão era de barro batido, tinha dois quartos, uma sala euma cozinha. O sanitário era uma casinha de adobes, com uma fossafedorenta. O quintal era cercado de varas, e todos que passavam pelarua de trás podiam nos ver através da cerca.

Essa casa era de Dona Maria, mãe de Edilene e de Jonas. Acabeime apaixonando por Edilene, uma menina negra, magra e alta. Mas apaixão não passou de simples admiração, pois ela não me deu a menorbola e terminei por esquecê-la, apesar de Edilene ter me inspiradoalgumas poesias.

A essa altura, eu já assumia praticamente todas as despesas dacasa. O salário que recebia já me possibilitava sobreviver com minhamãe e meus sete irmãos, e ainda dava para pagar o aluguel, a água e aenergia elétrica. Passei a fazer um planejamento de compras para omês inteiro.

Comprávamos uma caixa enorme de ovos, com mais ou menosumas 150 unidades, além de cevada, feijão, arroz e açúcar em grandequantidade. Depois dividíamos as mercadorias em pequenos pacotespara consumo diário. Não poderíamos comer mais de cinco ovos pordia, para que a comida durasse até o final do mês. Trancava tudo den-tro de um pequeno armário e carregava a chave. Diariamente, eu o abria,pegava a “ração” do dia e entregava-a à minha mãe. Quira arrombava oarmário pela parte de trás e pegava mais comida do que o estipulado paraa “ração diária”, e eu tinha conhecimento disso. Mas fingia não saber denada. O problema era que, em certos meses, a comida acabava antes doprevisto e eu tinha que conseguir dinheiro para comprar mais. A cevadaera usada misturada ao pó de café, para que este durasse mais tempo.Tinha um gosto muito ruim, mas, apesar de eu também não gostar, fingia

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achá-la gostosa, para não ensejar reclamações por parte de meus irmãos.Com o tempo, todos foram se conscientizando que era melhor comer poucomas comer todos os dias do que comer muito em um único dia e ficar comfome nos dias seguintes.

Nessa época, eu trabalhava no Frisuba e sempre trazia sobrasde comida. A refeição era quase sempre à base de carne na empresa, e,como eu não conseguia comer tudo, levava o restante para casa. Alémdisso, meus colegas de trabalho também separavam parte da refeiçãodeles e me davam. Tinha também as doações que o gerente de setorfazia: vez ou outra, ele separava úbere bovino ou fígado e distribuíaentre os funcionários. Era o dia em que eu e minha família comíamosmelhor, pois significava fartura em casa.

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Tem uma rua no bairro do Pau Ferro, cujo nome oficial é aveni-da Senhor do Bonfim. Há também nessa rua uma igreja católica demesmo nome, dedicada ao santo. Acontece que, a partir da igreja, emdireção ao atual presídio, a rua não era calçada, era cheia de lama e deesgoto. Este trecho era conhecido como “Rua da Bosta”, por causa domau cheiro e dos esgotos que corriam a céu aberto. E, mesmo depoisde a rua passar a ter saneamento básico e calçamento de paralelepípe-do, continuou a ser chamada pelo nome de “Rua da Bosta”. Ali com-prei um casebre de dois metros de largura por dois metros e meio decomprimento, colado ao muro do Parque de Exposições Luiz Braga. Acasa era ridícula: baixinha, apertada, sal minando pelas paredes,chão arrombado e um quintal minúsculo. Era muito quente, porcausa do sol que ficava no poente. Para minha felicidade, não che-guei a morar nessa casa. Comprei-a somente a título de investimen-to, depois revendi.

Estante com livros velhos

Eu colecionava livros, revistas, jornais e todo tipo de publica-ções que encontrava nos lixos ou que alguém me doava. Mandei fazerum carimbo com os dizeres “Biblioteca Particular Valdeck Almeida de

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Jesus” para marcar todos os livros que possuía. Eram tantos que abar-rotavam a imensa estante que tínhamos na sala. Muita gente me pedialivros emprestados, tanto para leitura como para trabalhos escolares.Com o tempo, fui doando os livros para a Biblioteca Municipal e paraquem me pedisse. Quando nos mudamos do bairro Pau Ferro para obairro Mandacaru, não havia espaço suficiente para guardar todos oslivros na nova casa. Mandei, então, meus irmãos levarem uma boaquantidade de revistas e livros à Biblioteca Municipal para doação.

Até o ano de 2003, eu acreditava piamente que esses livros ha-viam sido realmente entregues. Mas, por ocasião de uma viagem quefiz a São Paulo, em 2004, em conversa com meus irmãos, onde fala-mos sobre mal-entendidos e pedimos desculpas uns aos outros peloque pudéssemos ter feito de errado, fiquei sabendo de tudo. Confessa-ram que rasgaram e jogaram todos os livros e revistas de cima da pon-te do Mandacaru. Foi um choque para mim, mas não havia muito oque fazer. O tempo já havia passado e meus irmãos já eram adultos.Não fazia sentido brigar por um deslize ocorrido tantos anos atrás. Jánão tinha importância.

Casa própria – o sonho realizado

Ainda morava na casa da travessa Teixeira de Freitas e traba-lhava no Frisuba. “Néia, dente de barrão” continuava a visitar minhacasa, embora não estivéssemos mais juntos como antes. Certo dia, vi oanúncio de um loteamento e fui visitá-lo pessoalmente. Era um bairronovo que começava a se formar à margem direita do rio de Contas: oloteamento Itaygara, no bairro Mandacaru. O vendedor, Bêu, conven-ceu-me de que se tratava de um ótimo investimento, que o bairro, empouco tempo, seria habitado por muita gente, que teria praças, linhasde ônibus, telefone, água encanada e luz elétrica. Não fiquei muitoanimado, por causa do preço e também porque eu tinha medo de ficardesempregado e perder todo o dinheiro investido no pagamento dolote.

O vendedor, muito esperto, pensando apenas na comissão dele,que equivalia ao valor da primeira prestação, acabou virando o jogo eme vendendo o lote 12 da quadra 07. Comprei e voltei feliz da vidapara casa. Ele tinha feito um plano de pagamento, de forma que as

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prestações fossem reajustadas a cada seis meses, de acordo com o au-mento do salário mínimo, para não comprometer minha renda.

Mas o acaso me favoreceu ainda mais. Assim que José Sarneyassumiu a Presidência da República, foi criada a “tablita”, tabela quedeflacionava os preços das compras realizadas antes de sua vigência.E assim acabei pagando várias parcelas do terreno de uma vez só, jáque, a cada mês, o preço diminuía. Foi minha salvação. Esta medidagarantiu-me adquirir a primeira propriedade, o terreno onde eu e meusirmãos construiríamos nossa primeira casa.

Tentei conseguir ferramentas emprestadas para construir a casa:picareta, enxada, formão e colher de pedreiro, mas ninguém empres-tou. Tive que comprar todo o material necessário para as obras de cons-trução. Todos os dias, eu ia trabalhar no Frisuba e meus irmãos saíamdo Pau Ferro para o Mandacaru para limpar o terreno, carregar águado rio de Contas e bater adobes de barro. Isto significava uma marato-na de mais de dez quilômetros, percorridos a pé, sob um sol escaldan-te de 40 graus ou mais. Era de dar pena, eles mal conseguiam carregara picareta por causa do peso. Eu não podia ajudar todos os dias, poissó chegava do trabalho no final da tarde e, além disso, estudava à noi-te. Mas, nos finais de semana, eu ia sempre ao terreno ajudar na cons-trução da casa. Fizemos tudo sozinhos, desde as fundações até a colo-cação das telhas. Todos os dias eu ou um de meus irmãos cavava aterra, cessava, buscava água no rio, fazia o barro, pisava o barro, batiaos adobes e os deixava secando ao sol. No dia seguinte, retornávamospara continuar o trabalho e para recolher e arrumar os adobes pron-tos. Para nossa surpresa, verificávamos que muitos dos adobes erampisados e destruídos por vândalos. Xingávamos muito, esbravejáva-mos, mas não podíamos fazer nada além de aproveitar o barro dosadobes destruídos para fazer novos adobes.

O processo de construção da casa foi bastante demorado, poisera eu quem comandava tudo e meu tempo era limitado somente aosfinais de semana. Mas, de adobe em adobe, as paredes iam subindo,subindo... Até que, num belo dia, concluí a obra, após colocar porta (aúnica), janela (também única), madeiras e telhas no topo. Imediata-mente, mudamos-nos para a “nossa” casinha.

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Juizado de Menores

Resolvi colocar todos os meus irmãos sob minha guarda e res-ponsabilidade, perante a justiça comum, a fim de cadastrá-los comomeus dependentes no INSS e para que eles pudessem ter acesso a con-sultas médicas e internamentos. Aproveitei esta deixa para obrigá-losa serem mais responsáveis na vida e também nos empregos ou traba-lhos que encontrassem. Todos eles sempre trabalharam, seja venden-do picolés, seja em olarias carregando adobinhos, seja limpando quin-tais ou, ainda, cortando e preparando papéis para cigarro de palhanuma gráfica. Mas, por outro lado, sempre encontravam uma descul-pa para sair do trabalho. Ora diziam que o patrão falou alto, ora dizi-am que não agüentavam a jornada, pretextos não faltavam.

Certo dia, chamei-os todos e dei uma ordem: teriam de sair paraprocurar trabalho e só poderiam voltar para almoçar caso encontras-sem algum. Ao meio-dia, chegou o primeiro, Dida, o mais gaiato detodos, e pediu que minha mãe botasse seu almoço, e ela mandou quefalasse comigo antes. Mas Dida insistiu para que colocasse sua comi-da, já que havia encontrado trabalho, juntamente com os demais. Mi-nha mãe me chamou e eu conversei com Dida, que confirmou já estartrabalhando. Dizia ter muita fome, por causa do esforço, uma vez queo trabalho era numa oficina mecânica, como aprendiz de chapista(“martelinho”, como se diz em São Paulo). Comentou também que,como aprendizes, só iriam receber salário depois de um determinadotempo. Falei então com minha mãe para servir o almoço de todos osmeus irmãos.

Evidentemente, eu não os deixaria com fome, caso não houves-sem encontrado trabalho. Mas precisava tomar aquela atitude parafazê-los “acordar” para a vida. Além da ameaça de ficarem sem almo-ço, havia ainda uma outra. Falei que entregaria todos ao Juizado deMenores (em Jequié existe uma Escola Profissional de Menores, onderesidem crianças e adolescentes rebeldes e infratores), caso não tra-balhassem e fugissem da responsabilidade. Graças a Deus, hoje todosganham a vida como chapistas, exceto o Mi, que não se adaptou a essetipo de trabalho e já trabalha há dez anos como porteiro de um grandecondomínio em São Paulo.

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Foram longos anos de trabalho até podermos entrar na casa esorrirmos felizes por termos, enfim, onde morar. Uma casa própria,construída com as próprias mãos. Foi uma experiência muito boa, umagrande sensação de liberdade. Desde a infância, só havia morado emcasas de aluguel e, finalmente, naquele momento, já com meus 22 ou23 anos de idade, pude desfrutar da alegria de morar numa casa semprecisar me submeter às imposições de ninguém. A casinha media trêsmetros de largura por seis de comprimento. Era bem baixinha e tinhasomente dois cômodos. Posteriormente, dividimos a sala com umameia parede e fizemos uma pequena cozinha. Assim, passamos a mo-rar em nossa casinha, após entregarmos a casa de aluguel. Foi a pri-meira moradia a ser erguida e habitada no local. Nas águas do rio deContas tomávamos nossos banhos. Morávamos minha mãe, eu, Qui-ra, Mi, China, Dida, Tó, Gal e Nete. Depois que nasceu Murilo, meuprimeiro sobrinho, filho de Quira com Chico, a casa, que já era peque-na, ficou menor ainda. O calor era imenso e não havia ainda água en-canada no bairro. Essas águas também serviam para lavar as roupas,as louças, e para beber e cozinhar, depois de devidamente fervidas efiltradas.

Com o passar do tempo, fui construindo outra casa maior, nomesmo terreno. Esta outra casa foi planejada com mais cuidado e ti-nha dois quartos, duas salas, uma cozinha e um banheiro. Os adobi-nhos cozidos foram comprados com muito sacrifício. Sempre que pos-sível, comprava uma carroça de adobinhos de barro queimado, emcerâmica cozida. Acabei de construir a segunda casa e, quando ela es-tava já em ponto de telhado, negociei-a com Chico, meu cunhado. Eleme vendeu a casa onde morava com Quira e seus três filhos: Murilo,Rodrigo e Delma (ver capítulo “Casa da Rua João Santana”).

Casamento com Márcia

Quase em frente à nossa casa, morava uma moça chamada Már-cia, que era casada com Zé Docílio, com quem tinha uma filha chama-da Bete. Márcia era muito bonita. Fazia um tipo cigana, era alta e dosigno de Leão. Márcia flertava comigo, vivia me chamando para con-versar e sair com ela. Saímos por várias vezes e então começamos anamorar. Depois, passei a dormir em sua casa, quando o marido via-

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java. Uma vez, dei uma surra em minha irmã Nete porque pedi a elaque levasse um recado a Márcia, dizendo que iríamos para a Barra-gem de Pedras tomar banho. Nete simplesmente andou até o meio darua e deu o recado aos gritos. Fiquei muito envergonhado, pois nossonamoro ainda não era de conhecimento público e era de todo o meuinteresse que continuasse secreto por mais algum tempo. Chamei Netee dei-lhe uma surra que ela jamais esqueceu.

Acabei me casando com Márcia. Fizemos uma festinha na casade meus sogros, Judite e Acetildes, após a cerimônia de casamento,realizada no Cartório de Paz de Yolanda Bastos. Várias fotos foramtiradas, mas como eu não tinha dinheiro para a revelação, nunca saí-ram do rolo de filme.

Fui morar com ela numa casinha do bairro Agarradinho. O bairrotinha esse nome porque as casas eram coladas umas às outras. Márciaficava a noite inteira assistindo televisão. Ela ficava acordada a noiteinteira para me chamar bem cedo, para poder pegar o ônibus que melevaria ao trabalho. Comprava quilos de milho para fazer pipoca. Co-mia pipoca a noite inteira diante da TV.

Na empresa Tiradentes, onde Zé Docílio, ex-marido de Márcia,trabalhava e onde eu passei a trabalhar como cobrador de ônibus, quan-do os motoristas souberam da notícia que eu estava casado com amulher de Zé Docílio, a resenha comeu. Todos os dias eu tinha queaturar uma gozação do pessoal. Tinha um motorista, chamado Bastos,com o qual eu viajava muito fazendo a linha Jaguaquara-Maracás, quecostumava dizer que eu tinha “olho de Sapo Boi” e que nunca deixariaque eu botasse os olhos em sua mulher, temendo que eu a atraíssepara mim e ficasse com ela pra sempre. Em tom de escárnio, meuscolegas de atividade perguntavam-me se, caso eu fosse escalado paratrabalhar com Zé Docílio, viajaria com ele ou perderia o dia de traba-lho. E eu dizia serenamente que trabalharia com ele sim. Felizmentenunca fui escalado para trabalhar junto com ele, e escapei de um cons-trangimento muito grande.

O casamento se arrastou nas dificuldades que eu enfrentava.Mesmo casado, ajudava a minha família. Três anos depois, termineimeu casamento com Márcia. Não sobrou uma lembrança sequer dafesta de casamento, até o rolo do filme que não foi revelado ela abriu equeimou.

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Muitos fatores contribuíram para o fim de nosso relacionamen-to, mas creio que o mais importante deles tem origem no seguinte fato:estava eu desempregado e viajei com ela para Salvador, a fim de pro-curar trabalho. Demos sorte. No mesmo dia em que chegamos à capi-tal, compramos o jornal e respondemos a um anúncio que procuravaum casal para tomar conta de uma mansão no rio Vermelho. Fomosdireto para a Cardeal da Silva, onde ficava a mansão. Era uma casaimensa, com um quintal cheio de plantas frutíferas. Morava ali ape-nas um casal de idosos, cujos filhos estavam em Minas Gerais tentan-do lançar uma banda musical. O senhor era hipertenso e a senhoradiabética. A alimentação dos dois era toda controlada pela dona dacasa, que fazia questão de preparar a comida. O trabalho de Márciaseria manter a casa limpa. E eu teria que cuidar da piscina e do quin-tal. Toda a produção de frutas seria para o nosso consumo. Ficaría-mos instalados numa casa nos fundos do quintal, toda mobiliada. Euganharia um salário mínimo e Márcia outro. As referências que dei deter trabalhado no hotel de César Borges, em Jequié, foram suficientespara conseguirmos o trabalho. Acertamos tudo e ficamos de voltar nodia seguinte para trabalhar. Ao sairmos, já no portão da mansão, Már-cia começou a resmungar que o salário não daria para sobreviver. Eufiquei espantado com aquilo. Teríamos casa para morar, mobília com-pleta e ainda dois salários para as nossas despesas. E ainda podería-mos continuar morando juntos, vivendo nossa vida de casados. Már-cia dizia que seu salário seria para comprar brincos, chocolates e coi-sas de enfeitar, enquanto o meu seria destinado às despesas da casa.Revoltei-me e discuti feio com ela. Furioso, disse que iria à rodoviáriacomprar minha passagem de volta para Jequié e não mais voltaria aprocurá-la. Ela não acreditou. Mas foi exatamente o que fiz: fui diretoao guichê da empresa de ônibus, comprei minha passagem e fui em-bora e nunca mais voltei pra ela.

Casa da Rua João Santana

Era uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, alémde uma pequena área de serviço, localizada no Jequiezinho. Pagueicom o terreno do loteamento Itaygara e com a casinha de adobe cruque havia construído inicialmente, mais os adobinhos da casa maior,

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construída depois, ficando o restante para pagamento em prestaçõesmensais. A única exigência imposta por Chico foi derrubar a casa gran-de e separar os adodinhos para ele, o que aceitei prontamente. Empoucos dias a casa estava derrubada e os adobinhos empilhados.

A nova casa tinha tudo: móveis, lençóis, panelas, pratos, colhe-res, tudo. Tinha até linha telefônica instalada. Passamos a morar alilogo e adoramos a nova residência, que nos dava muito conforto.

Quase um ano depois, comprei um casarão na mesma rua e to-dos se mudaram para a nova casa, exceto eu, que preferi ficar moran-do sozinho por um tempo. Mas meus irmãos, que tinham a chave daminha casa, sempre apareciam por lá para tomar banho e deixavamtudo sujo. Preferiam tomar banho lá porque o chuveiro era elétrico,luxo que não havia na casa em que moravam. Acabei logo com a festadeles, por causa da sujeira que faziam em meu banheiro.

Eles trabalhavam como chapistas em oficinas mecânicas e che-gavam sempre muito sujos de graxa, óleo e poeira de oficina, deixan-do todo o banheiro encardido. Só que, a despeito do meu protesto,continuaram a usar o banheiro. Arrombavam a janela e entravam nacasa, sem minha permissão, nos horários em que eu me encontravaausente. Isso acabou resultando em algumas brigas. Dida e Tó discu-tiram feio comigo, e ficamos um ou dois meses sem nos falar, por con-ta disso. Depois fizemos as pazes, como é próprio dos bons irmãos.

Trabalho na empresa Tiradentes

Minha experiência como cobrador da Auto Viação Tiradentesfoi marcante e merece um capítulo especial. Eu fui contratado paratrabalhar como cobrador urbano. Acontece que, no contrato de traba-lho firmado com a empresa, não havia cláusula específica que rezasseque o funcionário admitido como cobrador “urbano” estivesse deso-brigado de trabalhar como cobrador “intermunicipal”. E isso foi o quemais atrapalhou minha vida escolar, pois os horários de trabalho nemsempre eram compatíveis com os horários da escola. Eu estudava ànoite, das 19 às 22 horas, de segunda a sexta-feira. E, para complicarainda mais, o chefe do tráfego, que fazia a escala de trabalho, semprese “esquecia” que eu estudava à noite e me escalava freqüentemente

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para trabalhar no horário das 14 às 23 horas. Mas eu conseguia dri-blar o tempo e as adversidades. Pegava os assuntos das aulas com meuscolegas e estudava durante o trabalho, sentado na cadeira de cobra-dor. Estudava escondido, pois, se um cobrador fosse pego pelo fiscalfazendo esse tipo de coisa, era demitido. Quando era escalado paratrabalhar nas linhas intermunicipais, o problema ficava ainda maior,pois tinha de dormir nas cidades de destino da viagem, sem falar naquestão da hospedagem e alimentação, que não eram pagas pela em-presa.

Eu tinha comprado uma bicicleta para facilitar meu descolamen-to para o trabalho e para a escola. Saía pedalando para a garagem nosdias em que a escala de trabalho me permitia ir à aula após o serviço.Por várias e várias vezes, quando chovia, chegava à escola todo sujo. Agaragem da empresa ficava no bairro Mandacaru, onde a maioria dasruas ainda era de chão batido ou de cascalho. Quando chovia, tudovirava um lamaçal enorme, e o pneu da bicicleta respingava um boca-do de lama em mim.

Toda vez que eu viajava, levava uma marmita de comida, quenem sempre chegava em bom estado ao final da viagem. Aí, além depassar a noite com fome, ainda tinha de dormir dentro do veículo, naspoltronas do fundo, que eram as menos desconfortáveis. Lembro-mede várias viagens para Barra da Estiva, em que dormi com fome e frio,porque a temperatura ali é sempre muito baixa, sobretudo à noite,devido à sua localização no alto da Chapada Diamantina. Uma vez,levei uma marmita que azedou durante a viagem. Ao pararmos emMaracás para fazer um lanche, comi todo o frasco de pimenta e a fari-nha que estavam sobre a mesa da lanchonete.

Cansei de dormir dentro do veículo nas cidades. Em Salvador,cheguei até a dormir dentro do bagageiro do ônibus, pois o calor erainsuportável dentro do carro e as muriçocas faziam uma festa. Com obagageiro aberto, pelo menos, a temperatura ficava mais agradável.De madrugada, o segurança da rodoviária me acordou, achando queeu era algum assaltante ou morador de rua. Tive que me identificarpara que me deixasse em “paz”. Em Manoel Vitorino, passava a noitemorrendo de medo, pois o ônibus estralava demais, e eu acordava so-bressaltado pensando que era alguém tentando entrar para roubar odinheiro da féria. Em Cravolândia, cidade próxima a Santa Inês, che-

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guei a pedir comida a um cobrador que morava na cidade e viajava decarona voltando para casa. Em Iramaia, morria de frio e fome, ao dor-mir no veículo. Em Nazaré, havia uma pousada de preço compatívelcom meu salário, onde pernoitei algumas vezes. A linha fazia o trajetode Jequié a Bom Despacho, mas o ônibus ia somente até Nazaré. Eudormia e jantava na pousadinha, juntamente com o motorista. O pro-blema era que ali os cobradores eram roubados durante a noite. Parame proteger dos ladrões, uma vez coloquei o dinheiro da féria embai-xo do travesseiro. A estratégia foi em vão. Pela manhã, percebi quefaltava quase metade do dinheiro, mas nada pude fazer, não havia comoprovar o roubo. Daquele dia em diante, resolvi deixar o dinheiro daféria escondido dentro de uma das poltronas do ônibus. Foi a soluçãoencontrada para evitar os roubos.

Passei aperto também em Itaquara. O ônibus que rodava paraaquela cidadezinha era o pior carro da frota e demorava o dobro dotempo para fazer a viagem. Quando chegava à cidade, o veículo eraestacionado numa praça e o motorista ia para sua casa, sem sequerme convidar para tomar um copo de água. Não restava alternativa se-não passar a noite inteira dentro do carro, esperando o dia amanhecerpara retornar a Jequié.

Nas viagens a Valença, o ônibus retornava no mesmo dia. Saíade Jequié às 5 horas da madrugada, chegando a seu destino ao meio-dia. Ali eu tinha que varrer o interior do veículo, almoçar minha quen-tinha e esperar pelo horário do retorno, às 13 horas, com chegada emJequié prevista para 21 horas aproximadamente. Ao chegar, aindaperdia um bom tempo prestando contas e, até sair da garagem, já nãocompensava mais ir à escola.

Quando eu trabalhava na linha Maracás-Jaguaquara, saía deJequié pela manhã, por volta das 5 horas da madrugada, e fazia diver-sas vezes o percurso entre as duas cidades. Só retornava à garagem nofinal da tarde, lá pelas dezoito ou dezoito e trinta horas. Nesses dias,eu ia direto para a escola tentar pegar algum assunto dos cadernos doscolegas. Essa viagem era de percurso curto e o cobrador tinha de usarmais de cinqüenta talões de passagens, cada um de uma cor. Era umamaluquice da cabeça do dono da empresa, Dalmar, com o objetivo dese precaver de fraudes por parte dos cobradores. Eu ficava mais aten-to às cores do talão que tinha de usar do que a qualquer outra coisa.

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Passava o dia inteiro tentando recapitular: agora é o talão azul, per-curso de ida; agora é o talão rosa, percurso de volta, e assim por dian-te.

Quando trabalhava nas linhas urbanas, no horário da manhã(das 6 às 14 horas), sempre prestava contas no escritório da empresa,ao retornarmos à garagem. Mas quando trabalhávamos no horário datarde (das 14 às 23 horas), contávamos o dinheiro, preenchíamos umformulário e colocávamos tudo dentro de um malote, que era fechadocom um cadeado. Jogávamos esse malote num buraco que dava para atesouraria e levávamos a chave do cadeado para casa. No dia seguinte,o cobrador entregava a chave a um funcionário da tesouraria, que abriao malote, conferia o dinheiro e fazia a prestação de contas do cobra-dor. Quando o cobrador estava escalado para viajar de madrugada,tinha que deixar a chave amarrada ao malote. Muitas vezes faltavadinheiro nesses malotes, e a diferença era debitada na conta de cadacobrador. Sempre desconfiei que alguém mais possuía cópias dessaschaves e tirava o dinheiro durante a noite. Mas, como sempre, nuncapodíamos comprovar nada.

Uma vez, um cobrador amigo meu colocou dentro do maloteuma nota de mil cruzados novos, e a nota simplesmente desapareceu.Fui testemunha de que ele tinha colocado a cédula lá dentro, pois foi aprimeira nota de mil cruzados novos que ele recebeu e nenhum outrocobrador havia recebido uma dessas antes. Ele havia mostrado a cé-dula a todos os colegas do turno da noite, na hora da prestação decontas na garagem. Era uma nota diferente e todo mundo ficou curio-so pra ver. E eu acompanhei a prestação de contas dele. O sumiço dedinheiro acontecia também com os cobradores que trabalhavam naslinhas intermunicipais.

Com os cobradores dos ônibus urbanos, acontecia ainda umoutro fato estranho: toda noite, ao sair do veículo, antes de prestarcontas, cada cobrador anotava a numeração da catraca, que indicava aquantidade de passageiros do seu turno de trabalho, a fim de calculara quantidade de dinheiro apurada. No dia seguinte, quando o confe-rente fazia a verificação, a numeração das catracas nunca coincidiacom a numeração que o cobrador tinha anotado na noite anterior. Ouseja, alguém girava a catraca várias vezes, a fim de que o cobradorpagasse as passagens extras.

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Havia uma linha que rodava do Parque de Exposições até a Ro-doviária. Mas o final dessa linha não era exatamente na rodoviária, esim dois pontos adiante. Alguns passageiros iam para o Parque deExposições e tomavam o ônibus em um dos pontos que ficavam antesdo final de linha na Rodoviária. Dalmar, o dono da empresa, queriaque evitássemos pegar passageiros nessas condições, e instruiu-nos aorientá-los para tomarem o ônibus quando este estivesse retornando.Uma vez, um determinado passageiro se recusou a descer do ônibus;pagou a passagem e sentou-se. Dalmar vinha seguindo o ônibus, decarro, passou à sua frente, obrigou o motorista a parar, entrou e rodoua catraca, para que eu pagasse a passagem extra do passageiro. O pas-sageiro protestou, mas Dalmar explicou que o cobrador - eu, no caso -era quem pagaria a passagem.

As linhas intermunicipais da empresa Tiradentes faziam, em suamaioria, trajetos para cidades distantes, cujo acesso era por estradasde chão, que atravessavam o sertão. Por esta razão, era muito comumum pneu furar. Nessas oportunidades, a melhor opção era fazer o “furo”na primeira borracharia encontrada naquele deserto. Mas para o donoda empresa o preço cobrado pelo conserto do pneu furado era sempremuito caro: cinqüenta centavos. Quando trazíamos as notas fiscais,ele se recusava a dar o “visto”, para que o valor não fosse ressarcido aocobrador. Cheguei a acumular mais de dez notas fiscais. Toda vez queencontrava Dalmar na garagem da empresa, ele alegava que só pode-ria tratar daquele tipo de assunto em seu escritório, que ficava no in-terior da garagem. E quando eu conseguia entrar no escritório, apóshoras de espera, Dalmar dizia que só poderia atender dentro da gara-gem. Eu ficava num bate-e-volta sem fim.

Acabei colocando um fim nessa novela, à minha maneira. Numaviagem para Valença, num sábado, com o ônibus cheio de vendedoresambulantes, tive a chance de me vingar. O pneu do carro furou nacidade de Mutuípe e o motorista parou o carro numa borracharia nasaída da cidade. Eu não paguei para fazer a “força”. E o motorista fa-lou para os passageiros que o ônibus não seguiria viagem enquanto eunão pagasse pelo serviço. Contei minha versão para os passageiros,que me apoiaram e disseram que, se o ônibus não seguisse viagem,eles iriam quebrar o carro. O motorista ligou para a garagem e de láordenaram que eu pagasse pelo “furo” do pneu. Não paguei. O moto-rista pagou do próprio bolso.

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Ao retornar para a garagem, meu nome não constava na escalade serviço e sim indicado para “comparecer ao escritório” e falar como gerente. Perdi meu dia de trabalho. Informei ao gerente que nãohavia pago nem pagaria mais por “furos” de pneus de ônibus, já que oproprietário da empresa não havia me ressarcido pelas notas fiscaisanteriores.

Voltei ao trabalho e, no dia seguinte, fui interceptado pelo Sr.Dalmar, no meio da rua, que se referiu a mim como “o cobrador quenão paga os ‘furos’ dos pneus”. Falei a ele que não só não havia pagocomo não pagaria nunca mais, até que ele assinasse todas as notasfiscais que eu acumulara. Ele retrucou, dizendo que era muito carouma força de pneu por cinqüenta centavos, etc. e tal. Respondi-lheque era impossível escolher onde levar o pneu para conserto, uma vezque no meio do deserto não dispúnhamos de muitas opções. Ele entãopegou todas as notas e assinou. Daquele dia em diante, voltei a pagarpor todos os outros “furos” de pneus, e ele passou a assinar as notassem hesitar.

Parecia haver uma combinação entre certos motoristas e a fis-calização da empresa para induzir os cobradores a fraudarem os ta-lões de passagem, de modo que obtivessem vantagens pessoais desti-nadas a cobrir almoços e diárias de hotel nas cidades onde dormis-sem. Mas comigo o truque nunca funcionou, sempre recusei essas in-vestidas. Não era difícil perceber que se tratava de “armação”, pois osmotoristas ditos “durões” e mais fiéis à empresa eram os que davamas melhores dicas de como roubar. E, para confirmar minhas suspei-tas, sempre havia fiscais na estrada quando eu viajava com esses mo-toristas. Era como se fosse um ardil, uma cilada preparada para mepegar em contradição ou, como se diz popularmente, “com a boca nabotija”. A política da empresa era a de demissão por justa causa, e agerência fazia de tudo para que os funcionários acumulassem adver-tências e suspensões até o limite legal, a fim de chantageá-los com opedido de demissão voluntária ou forçada, esquivando-se assim depagar os direitos trabalhistas. Jamais algum fiscal conseguiu me pe-gar cometendo erros, pois sempre fui muito correto em meu trabalho.Mesmo que a situação me obrigasse a sentir fome e a dormir dentrodos ônibus, nunca me vali dessas prerrogativas para lesar a empresa.

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Testemunhei episódios engraçados como cobrador. Um, parti-cularmente, merece ser contado aqui. Uma vez entraram dois passa-geiros, cada qual com um balaio enorme. Todos os passageiros tinhamdireito a um volume no bagageiro do ônibus, sem pagar taxa algumapor isso. Coloquei esses dois balaios no mesmo bagageiro, para ocu-par menos espaço. Quando o fiscal viu que os dois balaios estavamcom o tíquete “gratuito”, achou que eu tivesse recebido pagamentopor um dos balaios, que havia colocado aquele tíquete para embolsaro dinheiro e não vender o tíquete “pago”. Entrou no ônibus e pergun-tou de quem eram os balaios. Cada um dos respectivos donos levantoua mão. Muito sem graça, o fiscal foi embora. Era comum que os fiscaisaparecessem várias vezes no mesmo dia, para tentar surpreender ocobrador. Comigo sempre perderam seu tempo.

João, o controlador de tráfego da empresa, era quem fazia a es-cala de trabalho. Ele sabia que eu estudava à noite e que não poderiaficar fazendo viagens intermunicipais. Ainda mais porque a empresanão fornecia tíquete refeição nem providenciava local para dormidasnas cidades de destino. Eu era tido como o cobrador mais chato daempresa, pois me mostrava inconformado com aquela situação desu-mana, e não guardava este inconformismo somente para mim. Abria overbo, falava com os outros cobradores, reclamava com os fiscais, como gerente e com o controlador de tráfego, apesar de nunca ter tido umretorno ou uma solução.

Um belo dia, numa sexta-feira, quando acabava de chegar daviagem e prestar contas na tesouraria, fui informado que um ônibusda linha Jequié-São Miguel das Matas, percurso de cerca de 150 km,estava prestes a sair, com previsão de ficar naquela cidade todo o finalde semana, retornando somente na segunda-feira. O gerente da em-presa me disse que o cobrador do horário tinha “queimado a escala”.“Queimar escala” era uma gíria usada para designar a falta do funcio-nário escalado para um determinado serviço. E, como nesse dia nãohavia cobrador de plantão na garagem, a solução óbvia seria: eu viajarcom fome, permanecer todo o final de semana em São Miguel e retor-nar na segunda-feira. Aproveitei aquela oportunidade para protestar.Disse a João, o controlador de tráfego, que não iria viajar. Ele amea-çou me demitir ou me colocar “fora de escala” durante todo o final desemana, o que significaria perder o salário daqueles dias. Disse-lheque fizesse o que achasse melhor, em sua opinião. Ele veio então ten-

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tar me convencer a fazer a viagem, dizendo que eu poderia ter almoçoe jantar durante o serviço, que autorizaria as notas fiscais e tudo mais.Mas, desconfiado, recusei, pois em outras oportunidades já havia tra-zido notas que ele nunca assinou. O máximo que me propus a fazerpela empresa foi ir até a rodoviária e sair com o ônibus de lá, paraevitar que o então Departamento Estadual de Transportes e Termi-nais multasse a empresa por atraso na saída do veículo. Ali, pedi aomotorista que levasse o carro para a garagem, dizendo que João pro-videnciaria um outro cobrador para seguir viagem. Na garagem, descido ônibus, sentei-me à porta da entrada principal e não mais voltei aoveículo para seguir viagem.

Estava determinado a dar uma lição na empresa. Minha atitudedeve ter ficado para a história da Auto Viação Tiradentes e para seuproprietário, Dalmar Antônio de Souza.

Numa das viagens que fiz para Nazaré, conversava com um pas-sageiro a respeito da forma como a empresa tratava seus funcionári-os. Ele então me aconselhou a pedir demissão e tentar ganhar a vidaem Rondônia.

Peguei todos os seus endereços, inclusive telefones de contato,e guardei. Ele estava indo a Nazaré comprar material para candomblée fazer consultas com os pais e mães de santo da cidade. Depois dessaconversa, eu já tinha tudo planejado para viajar para Rondônia; sabia,inclusive, todo o roteiro que deveria fazer: de Jequié iria até Feira deSantana para pegar um ônibus até Brasília, de onde pegaria um outropara Cuiabá, e outro de Cuiabá para Rondônia. Ao chegar lá, tomariaum táxi na rodoviária e seguiria direto para a casa da pessoa que opassageiro me indicara, que me apresentaria ao prefeito da cidade econseguiria trabalho para mim.

Cansado de suportar o massacre que a empresa promovia con-tra seus funcionários, resolvi pedir demissão. Dirigi-me ao gerentegeral, Édson, e comuniquei-lhe que não pretendia mais continuar naempresa. Ele me aconselhou a procurar o dono da empresa, Dalmar,para resolver a questão. Fiquei quase uma semana indo e voltando daempresa, todos os dias, tentando uma “audiência” com a “Majestade”,em vão. Quando vi que não conseguiria falar com ele, decidi abando-nar o trabalho. Fiquei um mês sem comparecer ao batente. Quandovoltei e reencontrei o gerente, ouvi dele que a empresa não tinha mais

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interesse em meus serviços e que iria me despedir, mas que eu teria deescrever uma carta pedindo demissão. Não titubeei e escrevi a tal car-ta, sem me importar muito com o fato de que perderia parte dos meusdireitos trabalhistas com este procedimento. Entreguei a carta ao ge-rente no dia seguinte, e nesse mesmo dia fui demitido. Era a minharedenção para uma nova vida. Meus planos de ir para Rondônia aindaestavam de pé. Já havia começado a preparar as sacolas para a via-gem.

Antes, porém, de viajar para tão longe, resolvi tentar a sorte emSalvador. Ao sair da empresa de ônibus, acompanhei meu irmão Val-mir, que estava trabalhando numa serraria em Salvador, junto commeu ex-sogro Acetildes, pai de Márcia. Quando cheguei à serraria, lo-calizada nas proximidades do aeroporto da cidade, percebi que aqueletipo de trabalho não era para mim. Para minha sorte, no dia em quecomecei a trabalhar, a serraria estava sendo transferida para outrolocal, as madeiras e as máquinas estavam sendo levadas de caminhão.O que vi foi o suficiente para me convencer de que aquele não era,definitivamente, o tipo de trabalho mais adequado para o meu portefísico. Tentei ajudar na mudança, pegando algumas madeiras, masacabei desistindo, com as mãos sangrando e o corpo suado e trêmulode fraqueza. Na hora em que o pessoal pegava as máquinas e as colo-cava sobre o caminhão, eu fingia que ajudava. Quando senti que nãoagüentava mais o serviço, parei, peguei minhas coisas e voltei para ointerior. Mesmo desempregado e com promessa de emprego certo emRondônia, fui adiando um pouco a viagem. E, nesse meio tempo, con-segui trabalho no Hotel Itajubá, onde trabalhei por três meses comorecepcionista. O hotel é de propriedade de Waldomiro Borges, pai deCésar Borges, ex-governador da Bahia e atual senador da República.Não me adaptei muito bem ao horário de trabalho, que ia das 22 às 7horas da manhã. Quase não conseguia dormir ao chegar em casa, pois,além de não gostar de dormir durante o dia, o calor era insuportável.Ligava um ventilador pequeno, mas, mesmo assim, o sono não vinha.Além disso, meus irmãos e minha mãe conversavam alto o tempo todo,impedindo que eu relaxasse.

Certa vez, um casal hospedou-se no hotel somente por uma noi-te. Na opinião do gerente, teria sido uma artimanha para usarem oestabelecimento como motel. Fui demitido por ter autorizado a entra-da do casal - como se eu pudesse adivinhar o que as pessoas iriam

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fazer dentro de um quarto de hotel. Segundo o gerente, aquele “hós-pede” já era conhecido no hotel por tal prática, tendo ali se hospeda-do, em outras ocasiões, com a mesma finalidade. Por esse motivo, ogerente achou por bem me despedir sem justa causa.

Mais do que nunca o meu projeto de ir para Rondônia conti-nuou de pé, quando fiquei sabendo de um concurso para o TribunalRegional do Trabalho. Freqüentava diariamente a Biblioteca Públicade Jequié e gostava muito de ler jornais. Lia todas as reportagens etodas as notas. Preferia pegar o jornal do dia anterior, para evitar a filade pessoas querendo ler o jornal do dia e também porque não gostavade lê-lo rapidamente, para poder passar o jornal à próxima pessoa. Jáquanto aos jornais de um ou dois dias atrás, quase ninguém ligava.Pois foi num desses que vi a notinha, bem pequena, a respeito do con-curso, que despertou meu interesse.

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EM BUSCA DE UM LUGAR AO SOL

Fiquei interessado em participar do concurso. Seria o primeirode minha vida. Procurei informações por toda a cidade, em todos osórgãos públicos, mas ninguém sabia dizer nada a respeito. Quando jáfaltavam dois dias para o encerramento das inscrições, que tinhamcomeçado no dia 11 e se encerrariam no dia 17 de outubro de 1989,descobri um último destino e resolvi ir diretamente até a sede da Jus-tiça do Trabalho.

Fui atendido no balcão por uma moça, que mais tarde viria a setornar minha melhor amiga: Teresinha. Ela me mostrou um cartaz naentrada da Vara do Trabalho, onde constavam informações sobre oconcurso. O cartaz informava haver apenas UMA vaga para a cidadede Jequié, e que a vaga era para o cargo de Auxiliar Operacional - Ser-viço de Limpeza. Nem ali consegui uma cópia do edital que havia sidopublicado no Diário Oficial da União. Teresinha me falou que as ins-crições estavam sendo feitas no Banco Econômico (Banco Bilbao Viz-caya, atualmente do grupo Bradesco). Fui até lá, onde, por coincidên-cia, eu tinha uma conta-poupança, na qual estavam depositados cin-qüenta cruzados novos. Mantinha essa poupança como reserva para ocaso de qualquer emergência e para a minha viagem a Rondônia, queestava sendo meticulosamente planejada. No banco, havia apenas umcaixa destinado às inscrições, e lá a atendente me entregou uma cópiado Edital do Concurso, sublinhando o cargo “Auxiliar Operacional -Área de Limpeza” no documento e esclarecendo que havia apenas UMAVAGA para Jequié. Fiquei surpreso e triste, pois investiria quase todoo meu dinheiro numa aventura da qual não sabia se sairia vitorioso.Na verdade, a inscrição me custou quarenta e três cruzados novos enoventa e sete centavos. Mas valia a pena arriscar, pois o salário inici-

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al correspondia a 12 BTN - Bônus do Tesouro Nacional, do qual jáperdi a referência, mas que equivalia a vários salários mínimos da épo-ca. A moça do caixa ficou impaciente com minha indecisão. Sugeriu-me ler o edital com atenção e, caso me decidisse pela inscrição, que achamasse novamente. Li e reli o edital várias vezes e percebi que haviamuitas vagas para Salvador e fiquei tentado, mas resolvi arriscar e meinscrever para a única vaga oferecida em Jequié. Retirei todo o di-nheiro da conta de poupança e paguei a inscrição. Dali em diante, co-mecei a estudar arduamente e a me preparar para as provas, que seri-am realizadas na cidade de Vitória da Conquista. Não parava nem paraalmoçar. Debruçado sobre os livros, eu comia, estudava, escrevia, ten-tando me preparar da melhor forma possível para o grande dia dasprovas.

Viagem marcada, eu fui para a rodoviária levando comigo meusirmãos Dida e Tó, que queriam conhecer a cidade de Vitória da Conquis-ta. Carregava uma lata de leite Ninho, cheia de farofa de feijão, que seriaa nossa refeição durante a viagem. Ao chegar à rodoviária de Jequié, en-contrei muita gente conhecida, que também iria fazer a mesma prova.Fiquei desanimado com a concorrência, mas não desisti. Muitas dessaspessoas portavam apostilas enormes, que liam e reliam, passando ques-tionários. Aí, sim, foi que comecei realmente a acreditar que não teriamuita chance. O máximo que havia feito fora estudar por conta própriaem livros velhos, de primeiro e segundo graus, que não tinham muito aver com os assuntos daquelas apostilas sofisticadas.

Chegando a Vitória da Conquista, fiquei com meus irmãos narodoviária da cidade, pois não tinha como pagar por uma pousada ouhotel. À noite, o frio era insuportável e não conseguíamos dormir dei-tados naqueles bancos de cimento da rodoviária.

Já bem tarde, um motorista da empresa Gontijo, ao nos ver alideitados, perguntou se esperávamos por algum ônibus com destino aoutra cidade. Respondi negativamente, explicando-lhe que estávamosali porque eu deveria me submeter a um concurso público no dia se-guinte. E ele, generosamente, ofereceu-nos um ônibus para pernoi-tarmos. Pediu apenas que não ficássemos no veículo até o dia ama-nhecer, pois, se o fiscal da empresa soubesse que ele, motorista, tinhapermitido que estranhos dormissem no ônibus, acabaria lhe aplican-do uma advertência ou uma suspensão. E assim fizemos.

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Antes do amanhecer eu e meus irmãos saímos do ônibus e fo-mos até a escola pública onde as provas seriam aplicadas – EscolaComercial Edvaldo Flores, localizada à Rua Siqueira Campos, s/n°,Centro. Ao chegarmos lá, preferi me manter afastado da escola, comvergonha das pessoas que me conheciam. Comemos a farofa de feijãoe jogamos a lata no lixo. Depois que todos os concorrentes entraram,eu me aproximei e fui direto para a sala de provas. Terminei a prova esaí antes dos demais, com medo que algum conhecido me visse. Mi-nha preocupação era que, sendo conhecido como aluno CDF na cida-de, iria morrer de vergonha se alguém, porventura, viesse a saber quefiz o concurso e não passei.

Aguardei o resultado, que seria publicado no Diário Oficial doEstado. Durante várias semanas eu compareci à Vara do Trabalho embusca de informações sobre o resultado do concurso, mas a respostaera sempre a mesma: que o Diário Oficial ainda não havia chegado.Em uma das vezes, aconselharam-me a ligar para a sede do TRT, emSalvador, a fim de obter a informação desejada. Liguei para o setor depessoal do TRT e fui informado que na lista dos aprovados havia DOIScandidatos de nome Valdeck. Um em primeiro e outro em segundolugar, mas não me confirmaram se eu era o primeiro ou o segundocolocado. Aguardei mais alguns dias e retornei à Vara do Trabalho,para saber da chegada do Diário Oficial, não obtendo sucesso na mi-nha empreitada. A ansiedade pelo resultado do concurso não me per-mitia ficar parado. Assim, ocorreu-me viajar para Salvador, a fim deobter informações mais detalhadas. E foi exatamente o que fiz.

Não tinha dinheiro para pagar as passagens de ida e volta. Pre-cisava obtê-lo urgentemente, de alguma forma. Lembro-me que Ed-naldo, um vendedor ambulante, foi à minha casa numa quarta-feira eque viajei na sexta para Salvador, a fim de lutar pela vaga de trabalho.Nessa época, minha mãe começava a se entrosar com o pessoal daprefeitura municipal e me prometeu que tentaria conseguir as passa-gens. Ela foi várias vezes à prefeitura, até que, na última tentativa, nasexta-feira, conseguiu o que queria.

Andando com ajuda de muletas, ao chegar perto do prédio, viua pessoa que ela conhecia já dentro de seu carro, preparando-se parasair. Fez-lhe um sinal tentando dizer que queria conversar com ela. Apessoa então voltou, abriu a prefeitura e lhe deu uma carta, na qual

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solicitava ao gerente da empresa Auto Viação Camurugipe que forne-cesse as passagens. Nesse mesmo dia, fui à estação rodoviária, mas oatendente me disse que aquela carta não tinha valor algum sem a assi-natura do gerente geral da empresa. Corri até a sede da empresa deônibus e implorei ao gerente para dar o “visto” na carta. Finalmente,com o seu aval, voltei à rodoviária e pude retirar as passagens.

A viagem foi muito tensa. Estava nervoso e preocupado com oresultado de todo o meu esforço, e não tinha a mínima idéia de comoseria o desfecho. Chegando a Salvador, fui direto ao TRT, no bairroNazaré. Conversei com pessoas do Setor de Pessoal, que me aconse-lharam a aguardar a Diretora Geral, por quem esperei o dia inteiro,até conseguir falar-lhe. Tudo resolvido no final. Aliviado e contente,voltei para Jequié com um ofício para me apresentar ao trabalho. To-mei posse no dia 25 de janeiro de 1990, na Vara do Trabalho de Je-quié, onde permaneci trabalhando por aproximadamente três anos.Essa data, que já era muito especial para mim, por causa do aniversá-rio de minha mãe, se tornou ainda mais importante, por ser o dia emque tomei posse no trabalho.

Como fiz o concurso para um cargo no Serviço de Limpeza, mi-nha rotina ali era limpar o chão, servir café e suco, lavar os copos epratos, encerar o piso de taco, varrer as imediações do prédio, jogar olixo nos tonéis, limpar as mesas sujas com tinta azul de carimbos, var-rer as cascas de amendoins torrados que o povo jogava no piso demármore branco, limpar e podar as plantas na frente do prédio, lim-par as folhas que caíam das árvores no quintal, limpar o sanitário pú-blico, limpar o sanitário dos funcionários e o do juiz, limpar a placa debronze com o brasão da República com palha de aço e outras tarefasafins.

Como o prédio era pequeno, eu conseguia fazer todo o serviçoaté meio-dia. No tempo que sobrava, ia ajudar o pessoal da secretarianos serviços de escritório, como colar AR (aviso de recebimento docorreio), arquivar e protocolar processos, juntar e protocolar petições,preparar despachos, fazer notificações, emitir as listas de correspon-dências para envio ao correio, comprar vales-transporte para os fun-cionários, fazer cargas de processos, emitir certidões negativas ou po-sitivas, datilografar ofícios diversos, fazer autuação de processos, ex-pedir cartas precatórias e outras atividades correlatas.

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Nessa época, também substituía os funcionários que saíam deférias, de licença médica, licença-maternidade ou impedidos de tra-balhar por qualquer outro motivo. Fui Oficial de Justiça ad-hoc porum mês, substituí o diretor, secretário de audiências e todos os de-mais funcionários, em várias oportunidades. Só não substituí o juiz.

O Tribunal começou a informatizar todas as unidades da capitale do interior. Para Jequié foi enviado um terminal remoto de compu-tador, que se resumia a um monitor de tela verde, interligado ao com-putador central, localizado em Salvador, através de uma linha telefô-nica. Depois da instalação, uma equipe de técnicos foi até a cidadepara ensinar os usuários a utilizá-lo. Por ironia do destino, o terminalquebrou no primeiro dia. No segundo dia, faltou energia elétrica. So-mente no terceiro dia, um domingo, os técnicos conseguiram passaras instruções. Passei o domingo inteiro com a equipe da Secretaria dePlanejamento e Informática; anotei tudo o que ouvia, perguntei o quefoi possível e tirei centenas de dúvidas. Tornei-me um expert no as-sunto e fiquei incumbido de repassar as informações para os demaisfuncionários.

Eu já trabalhava ali há alguns meses quando chegou uma funci-onária transferida de Brasília: Mônica Barroso. Era casada com umholandês de nome Peter, que não era naturalizado brasileiro e traba-lhava como engenheiro na fazenda Serra da Pipoca, do grupo PaesMendonça. Mônica tornou-se uma grande amiga, sempre conversá-vamos muito. Visitava-a com freqüência e, quando ela viajava para oRio, sua cidade natal, deixava sua casa sob minha responsabilidade.Nesses dias em que eu me instalava na casa de Mônica, recebia visitasde meus irmãos, que acabavam ficando por lá. A casa era muito con-fortável. Mônica deixava sempre muita comida e bebida na geladeirae dizia que eu poderia consumir tudo durante sua ausência. Meus ir-mãos faziam uma festa. Lembro-me de uma vez em que eles comeramtanto milho verde em conserva que ficaram doentes por mais de umasemana.

Mônica tinha um notebook, no qual digitava muitas sentençasdos juízes substitutos que passavam pela Vara. Ela me ensinou a utili-zar o computador pessoal dela; foi minha primeira oportunidade deacesso a um computador de verdade.

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Em uma das inúmeras viagens que Mônica fez ao Rio de Janei-ro, ousei pegar seu carro emprestado, sem ao menos saber dirigir. Tivemuita sorte de não ter me envolvido em nenhum acidente. Fui da casadela até a minha com o carro. Convidei a família inteira para dar umpasseio pela cidade. No final da aventura, penei para recolocar o carrona garagem, cujo acesso era bastante complicado. Quando Mônicavoltou de viagem, descobriu que eu tinha saído com o veículo; eu ti-nha mudado a posição do banco do motorista e ela percebeu. Pedi des-culpas e ela disse que não se importava. Mas, desse dia em diante,passou a não mais deixar as chaves do carro acessíveis durante suasviagens.

O trabalho era muito bom, a equipe de funcionários era maravi-lhosa, mas eu queria mudar para outra cidade, tentar fazer um cursouniversitário e também mudar de função. Consegui remoção para Ilhé-us, mas na última hora desisti, após receber um telefonema do serviçode pessoal informando-me que a transferência implicava que eu con-tinuasse a executar os serviços de limpeza, por determinação do Pre-sidente José Joaquim. Já havia me acostumado ao tipo de serviço quevinha prestando na Vara e não queria mais voltar a fazer limpeza. Poresta razão, desisti da remoção para Ilhéus. Além do mais, notei que osfuncionários que tinham prestado concurso para outras áreas esta-vam sendo nomeados para a secretaria, o que eu achava um absurdo.

Por intermédio de uma diretora que foi trabalhar na Vara deJequié, Alice Lopes, consegui uma função gratificada de Secretário deAudiências na recém-instalada Vara do Trabalho de Brumado, em1993. Mas, antes de aceitar a nova função, fiz uma visita ao local eacabei desistindo de morar lá. A cidade era muito pequena e não ofe-recia muitas perspectivas para que eu pudesse estudar ou crescer ali.Mais uma vez, continuei mesmo em Jequié, onde prestei vestibularpara Enfermagem, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, ecomecei a cursar.

Adorava o curso de Enfermagem, bem como os colegas, os pro-fessores, tudo. Apesar de ter de manipular ossos e cadáveres humanosde vez em quando e de o curso envolver uma boa base em Química,conseguia acompanhar bem o ritmo das aulas. Tudo ia muito bem, atéque um dia comecei a sentir fortes dores na barriga, que culminaramnuma cirurgia e na conseqüente interrupção do curso.

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Passei dois dias sentindo muitas dores na barriga. Suava barba-ramente e não parava de ir ao sanitário. Minha mãe preparava-meuma infinidade de chás, que de nada, ou quase nada, adiantavam. Acheipor bem então tentar conseguir uma ficha para atendimento médico.Após dormir a noite inteira na calçada do posto médico do INSS, oclínico me atendeu e solicitou exames de sangue e raios-X com con-traste, para verificar a causa do caroço enorme que ele detectara nomeu intestino. Mais de seis meses levei tentando realizar o exame deraios-X. Sempre que chegava o dia agendado, o exame tinha de serremarcado porque o radiologista não tinha ido trabalhar, ou a máqui-na de raios-X estava quebrada, ou faltava o material de contraste.

Para aliviar as dores e por uma questão de precaução, além domedo de morrer, não parei de tomar antibiótico por conta própria,enquanto aguardava uma solução. Finalmente, após longos seis me-ses de espera, consegui fazer o exame. Mas ainda teria de esperar maisuns dois meses pelo resultado com o laudo do radiologista. Tão logome vi com o material nas mãos, levei-o a um outro médico clínico, queme aconselhou a procurar uma cidade de grande porte, como São Pauloou Rio de Janeiro, a fim de me submeter a uma cirurgia para extrairum provável tumor cancerígeno do intestino, segundo sua opinião.Fiquei apavorado e com medo de morrer. Acabei fazendo a cirurgiaem Jequié mesmo, na Clínica Santa Helena, tendo por equipe de ci-rurgiões a Dra. Josefina e o Dr. Diniz, seu esposo. Antes de me inter-nar, porém, resolvi passar um final de semana em Ilhéus, a fim deespairecer e tomar mais coragem para encarar uma cirurgia daqueleporte.

Tranquei o curso de enfermagem, do qual acabei desistindo apósa cirurgia, por não me achar em condições de acompanhar o ritmo daturma. O material retirado na cirurgia (cerca de trinta centímetros deintestino delgado, intestino grosso e cólon) foi enviado para biópsiaao Hospital Santa Izabel, em Salvador. Alguns meses depois, recebi oresultado do exame confirmando que se tratava apenas de uma apen-dicite aguda em regressão. A médica disse que eu tinha acertado sozi-nho numa loteria de milhões, já que a suspeita de câncer não tinha seconfirmado.

Nessa oportunidade, recebi apenas a visita de um único amigo.Todos os outros que saíam comigo para farras e cervejadas desapare-

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ceram. Cada um achava um motivo nobre para não ter podido visitarum amigo doente. Um verso me vem à mente, diante deste fato:

Donec eris felix, multos numerabis amicos.

Enquanto fores feliz, terás muitos amigos.

É um verso de Ovídio, em que o poeta lamenta a perda dos ami-gos, após ter caído na desgraça de Augusto (Tristia, 1, 1-39).

Recuperado da cirurgia, prestei novo vestibular, desta vez paraLetras. Adorei o curso e cheguei a concluir um semestre. Durante operíodo, fomos a Ouro Preto para estudar o Barroco Mineiro. A via-gem foi muito divertida, dentro de um microônibus lotado de estu-dantes.

Tiramos muitas fotos, brincamos bastante, enfim, foi um pas-seio maravilhoso. Eu não tinha máquina fotográfica e pedi uma em-prestada a um amigo. Com medo de errar, na hora de colocar o filme,pedi ao funcionário da loja que o fizesse para mim. Tirei fotos durantetoda a viagem, mas, para minha decepção, ao levá-las para revelar,descobri que todo o filme havia sido inutilizado, em virtude de ter sidocolocado incorretamente na máquina. Mas ainda pude guardar comolembrança dessa viagem as fotos que tirei com as máquinas dos ami-gos.

Outra viagem interessante que fiz foi para curtir o carnaval deAracaju. Viajei de ônibus com passagem de ida gratuita conseguidapor uma amiga. No retorno, tive que pagar, mas não pude voltar nadata que planejara. Deveria voltar no último dia do carnaval, para po-der trabalhar na manhã do dia seguinte. Não consegui passagem e tiveque antecipar meu retorno em um dia. Meu plano era pegar o ônibusdas 20 horas, no último dia de carnaval. Impossível. E só conseguicomprar para o dia anterior porque um dos passageiros havia desisti-do de viajar. Mas acabei chegando em casa a tempo de descansar.

Ao chegar em casa, encontrei minha moto com problemas. Meusirmãos, Dida e Tó, tinham saído com ela e queimado as velas. Discuti

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com os dois até que conseguissem arranjar velas novas para substituiras defeituosas.

Com a moto já funcionando, fui à casa da patroa de China, a fimde devolver a mochila que eu tinha tomado emprestado. Levei Netecomigo. A patroa de China insistiu para que eu jantasse lá, mas educa-damente recusei. Voltei para casa com pressa, a fim de assistir ao Jor-nal Nacional, às 20 horas. Foi justamente nesse horário que acabeibatendo de frente com uma mobilete. Quebrei o pé e o outro piloto que-brou a boca e o nariz. Nete ficou desmaiada no meio do asfalto e só acor-dou no hospital, sem saber o que tinha acontecido. Arrisco-me a umaconclusão: o horário que planejara voltar de Aracaju era justamente ohorário em que, por alguma obra do acaso, eu deveria estar em Jequié,para sofrer aquele acidente. Mistérios que não se explicam.

Gastei muito dinheiro para consertar a moto acidentada e dei comoentrada na compra de um modelo mais novo. Numa noite fria e tranqüi-la, resolvi sair de moto para dar umas voltas pela cidade. Acabei desistin-do e voltei para casa, pois o frio estava insuportável. No retorno, WalterSampaio Filho, filho do prefeito da cidade, me atropelou. O saldo foi: umafratura em várias partes da patela, o nariz e um dedo do pé direito que-brados. Walter nem sequer me prestou socorro, e ainda tentou impedirque os motoristas que paravam para ver o acidente me levassem para ohospital. Não bastando, depois de eu já estar no pronto-socorro aguar-dando atendimento, ainda entrou para me dizer que eu estava errado eque não iria me ajudar em nada na cirurgia.

Passei a noite inteira deitado numa maca de alumínio, com frio,esperando pelo médico ortopedista, que chegaria somente pela ma-nhã. Minha mãe, assim que foi avisada do acidente, correu para o hos-pital. Com pena de mim, acabou voltando em casa mais tarde parapegar um cobertor, com o qual cobri parte da maca e me embrulheitodo, para agüentar o frio da madrugada.

Fui submetido a uma cirurgia dois dias depois, não no hospitalgeral, mas na Clínica São Vicente. A cirurgia foi um sucesso, e eu con-segui recuperar 100% dos movimentos da perna.

Passei mais de seis meses fazendo fisioterapia. Era praticamen-te uma via crucis todos os dias. Um colega de trabalho, chamado Pa-raíso, que possuía um fusca velho, muito me ajudou nesse calvário. Ia

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todos os dias me buscar em casa, carregava-me no colo, colocava-medentro do seu carro, levava-me à clínica de fisioterapia, carregava-medo carro para a clínica, ia embora e voltava no horário combinado parame levar de volta. Tão logo me senti melhor, e já podendo caminhar,resolvi fazer natação na piscina do Jequié Tênis Clube. Rita, minhacolega de trabalho, foi quem conseguiu meu acesso ao clube.

Sem ânimo para continuar estudando e pela dificuldade das cir-cunstâncias, acabei trancando o curso de Letras, do qual fui jubiladoapós minha transferência definitiva para Salvador.

Já estava recuperado do trauma na perna direita, resultado doacidente, quando minha transferência para Salvador foi aprovada. Naépoca, eu tinha participado de um curso intensivo para secretários deaudiência e fui aprovado em primeiro lugar. Fiquei muito feliz, pois,caso eu conseguisse uma função gratificada de secretário de audiên-cia, em uma das Varas da capital, poderia manter meus gastos em umanova cidade, onde as despesas seriam bem maiores. Mas, infelizmen-te, não consegui a vaga. Todos os demais participantes do curso foramchamados, exceto eu.

Tinha ciência de que seria muito difícil me estabelecer em Sal-vador, e que tal mudança demandaria certo tempo de adaptação. Co-mecei a me desfazer de todo o meu patrimônio: vendi duas casas, umamoto e uma linha telefônica. Coloquei o dinheiro na poupança, na ten-tativa de fazer uma economia para o novo investimento de minha vida,que seria um apartamento ou casa na capital. Para não deixar minhafamília desamparada, comprei uma casa no bairro Agarradinho, emJequié, e acomodei minha mãe e meus irmãos neste imóvel. A casaque comprei já tinha sido minha, onde morei com Márcia quando mecasei. Na separação, deixei a casa para ela, que me revendeu. Toda aminha família ficou nessa casinha pequena no bairro do Agarradinho.

Minha mãe não tinha ficado muito satisfeita com a casa do bair-ro Agarradinho (Urbis IV), que levou esse nome por alusão a um bi-chinho de pelúcia que se agarrava às pessoas, cujo nome era “Agarra-dinho”. Paula sempre reclamava que a casa era pequena, que não ca-bia todos os móveis e que daria um jeito de sair dali. E deu.

Foi à Caixa Econômica Federal e se inscreveu para comprar umacasinha, do mesmo tamanho daquela, no bairro Brasil Novo, que esta-

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va sendo criado no outro lado da cidade, próximo ao bairro Inocoop.Quando eu soube da história, ela já estava morando na nova residên-cia, com metade da família.

Valmir resolveu ficar morando no Agarradinho com a futuraesposa, Célia. Nesse período, ele trabalhava como cobrador na mesmaempresa de ônibus em que eu trabalhara antes, a Auto Viação Tira-dentes. Depois de sua demissão da empresa, passou a freqüentar acasa de minha mãe, juntamente com a mulher e o filho recém-nasci-do, Ramon. Com o tempo, acabou fechando a casa onde morava e semudou de vez para a casa da mamãe. Valmir sempre foi muito es-quentado e muito preocupado com sua família. Não agüentava ver ofilho passando fome quando não podia comprar o leite e os ingredien-tes para a comida do bebê. Resolveu então viajar para São Paulo, ondejá moravam algumas de suas cunhadas, que prometeram dar suportea ele e à sua família, enquanto não conseguisse trabalho.

Valmir viajou para São Paulo com Célia, sua esposa, e o filhoRamon, ainda de braço, com seis meses de idade. Partiram no dia 25de agosto de 1995, e desde então não voltaram mais à Bahia, à exceçãoda vinda de Valmir para o funeral de minha mãe, em junho de 2000.Ele conta que o sofrimento foi grande até conseguir se estabelecer numacidade violenta e competitiva como Sampa. A prova de fogo começarajá na viagem de ônibus, pois levara consigo tudo o que pôde. Chegan-do a Sampa, foi morar na casa das cunhadas, que sempre ofereceramtodo o apoio que a família necessitava. Mas esse apoio estava muitolonge de ser o suficiente. Afinal, as cunhadas trabalhavam como em-pregadas domésticas e não ganhavam bons salários.

Segundo Valmir, nem colchão pra dormir ele pôde comprar. Ascunhadas, penalizadas, mas sem poder ajudar muito, conseguiram umcolchão de casal, doado por uma senhora que pesava duzentos e cin-qüenta quilos, após tê-lo substituído por um novo. Esta gordinha nãoconseguia levantar da cama por causa do seu peso, nela permaneciadeitada a maior parte de sua vida. Por esta razão, o suor de seu corpohavia impregnado todo o colchão ao longo dos anos. Quando Mi rece-beu o presente, ficou muito alegre porque não mais precisaria dormirem papelões no meio da sala. Mas, ao mesmo tempo, ficou enojado doaspecto e do cheiro do colchão. Mesmo assim, agradeceu a Deus pelopresente. Todos os dias pela manhã ele tinha que tirar a roupa com a

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qual havia dormido e colocá-la para lavar, pois o colchão, além deemanar um cheiro extremamente desagradável, liberava uma “tinta”escura e gordurosa que grudava na roupa dele, da esposa e do filho.Valmir conta que chegou a levantar muitas vezes no meio da noitepara vomitar, devido ao cheiro repugnante, mas logo voltava a se dei-tar ali, pois era o único lugar quente e aconchegante que tinha parapassar a noite.

Conta também que várias vezes teve de andar mais de vinte qui-lômetros a pé, procurando emprego, porque não queria usar o vale-transporte que as cunhadas lhe davam, com medo de não achar traba-lho naquele dia e ter de retornar no dia seguinte, refazendo o mesmopercurso. E isso não era raro de acontecer. Foram vários e vários me-ses de caminhada em busca de uma colocação, onde pudesse ganhar osuficiente para o sustento do filho e da esposa.

Quando já estava prestes a desistir, encontrou uma pessoa quelhe aconselhou a “esquentar” a carteira de trabalho, a fim de podercomprovar experiência como trabalhador de portaria e jardinagem. Apessoa alegava que somente desta maneira poderia aumentar suaschances de encontrar uma empresa que lhe fichasse. E assim ele fez.Conseguiu trabalho na mesma semana. No início, os turnos de traba-lho eram sempre à noite ou de madrugada, o que lhe impedia de ver ofilho acordado, pois o pouco tempo que sobrava era gasto no trânsito,de casa para o trabalho e vice-versa.

Com o passar dos anos, foi conseguindo modificar sua rotina.Atualmente, trabalha num grande condomínio, como porteiro, no ho-rário de 8 às 14 horas, o que lhe permite chegar em casa antes das seisda tarde, quando Ramon e a caçula Amanda, que nasceu em São Pau-lo, podem desfrutar da presença do pai. A garota é especial, nasceucom a Síndrome de Tourette, uma doença raríssima que impede o de-senvolvimento da fala, das funções motoras e de outras funções. Val-mir tem o maior carinho pelos dois filhos, especialmente por essa fi-lhinha caçula.

Eu me mudei para Salvador dois anos antes de Valmir viajarpara São Paulo, mas acompanhei boa parte de sua luta em Jequié,pois eu viajava sempre para visitar minha família.

Quando viajei para Salvador, já tinha sido indicado por Graçapara trabalhar no Setor de Distribuição, com Dina. Fiquei ali um bom

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tempo, adorei o setor e as pessoas, mas o serviço era muito estressan-te. Pedi para sair do setor e fui para a 3ª Vara de Salvador. Os funcio-nários costumavam se referir ao prédio onde funcionavam as Varascomo “Senzala” e ao prédio do TRT como “Casa-Grande”, em alusãoao livro de Gilberto Freire, Casa-Grande e Senzala. Todo mundo que-ria ir trabalhar na Casa-Grande. Mais tarde descobri o motivo dessacomparação.

Inicialmente não comprei apartamento. Graça, uma colega detrabalho, havia me apresentado um amigo que morava no EdifícioCrescenciano dos Santos, em Salvador. Procurei-o, acreditando queele aceitaria a proposta de “dividir” o apartamento comigo, mas de-cepcionei-me diante de sua recusa. Resolvi então ficar um mês de féri-as em Salvador, em fevereiro de 1993, dividindo as despesas em umapartamento em Ondina, onde morava Jaqueline, filha de Edlene,então Diretora da Vara de Jequié, até encontrar um apartamento paraalugar ou comprar. Acabei encontrando um à venda no Edifício Cres-cenciano - o “Balança, mas não cai”, alusão a um programa de TV daépoca. Comprei o imóvel por intermédio de um corretor. Ao receberas chaves e entrar em meu apartamento próprio, pulei várias vezes,gritei e chorei de alegria. E a segunda vez em que chorei de alegria foiquando pude repassá-lo ao proprietário oficial, mesmo tendo perdidometade da grana que, com muito esforço, juntei ao longo de váriosanos.

Foi o maior mico que paguei. O apartamento era financiado peloBanco Nacional de Habitação, em nome de um determinado titular.Mas quem me vendeu foi uma terceira pessoa, com o aval do real pro-prietário. Já morando nesse apartamento, eu peregrinei por mais dedois meses por toda a cidade, coletando documentos, certidões e ou-tros papéis, a fim de formalizar a transferência do contrato para meunome. Dia e hora combinados, fui ao banco com o proprietário do apar-tamento, acreditando que tudo seria formalizado em questão de ho-ras. O banco informou que o processo de transferência seria longo eque poderia ou não ser aceito pelo agente financiador. Inexperiente eacreditando na boa-fé do vendedor e do corretor do imóvel, resolviapostar todas as minhas fichas nesse arriscado investimento.

Paguei uma fortuna ao corretor e ao dono do imóvel. Três me-ses depois de ter entregue uma verdadeira pilha de documentos e cer-

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tidões ao setor de financiamento, recebi do banco a informação de quea transferência não poderia ser realizada, pois o proprietário do imó-vel tinha outro apartamento financiado pelo BNH, o que impediria atransação. Fiquei desesperado e coloquei um anúncio no jornal, com aintenção de “revender” o apartamento. O dono original do imóvel leuo anúncio e me procurou para chantagear, obrigando-me a devolver-lhe o apartamento pela metade do preço que eu havia pago. Não tinhaoutra saída. Era receber cinqüenta por cento do investimento ou per-der tudo, já que ele ameaçara entregar o financiamento ao banco, casoeu não aceitasse devolver o apartamento pela metade do preço quehavia pago.

Comprei, então, outro apartamento, no mesmo edifício, destavez sem intermediários, mas com uma dívida de IPTU e condomíniode mais de dez anos. Até o presente momento, não transferi o aparta-mento para meu nome, apesar de já ter quitado a dívida com o bancofinanciador. O apartamento encontra-se fechado até hoje, por falta decomprador. Não há quem queira morar ali, devido aos vários proble-mas que o prédio enfrenta.

O “Balança mas não cai” já foi manchete de programas de tele-visão e de jornais da cidade. Os moradores alegam que o prédio tremeo tempo todo. Dizem os mais antigos que uma equipe de engenheirosjá examinou o fenômeno e atribuiu-o ao movimento constante de veí-culos pesados que passam em frente ao prédio, apesar de afirmaremnão haver risco de desabamento. Quanto a isso, não posso garantirnada, mas posso afirmar categoricamente que o prédio é uma verda-deira favela vertical. O edifício tem uma dívida astronômica com acompanhia de água e esgoto, que cortou o abastecimento. O sistemaserá restabelecido somente após a quitação da dívida, que está finan-ciada em dez anos. Caminhões-pipa abastecem o prédio em intervalosregulares de tempo e a água é fornecida aos apartamentos através deuma mangueira, em dias e horários predeterminados. Dos três eleva-dores, apenas dois ainda funcionam precariamente. O terceiro foi se-qüestrado pela justiça para pagamento de dívidas trabalhistas. E asescadarias estão em completo estado de destruição, entre outros pro-blemas.

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Eu não pude comprar novos móveis, botijão de gás, colchão earmário e acabei pedindo que minha mãe trouxesse para Salvador parteda mobília que eu tinha deixado em Jequié. Ela veio de ônibus com amobília. Quando fui me encontrar com ela na rodoviária, levei doisamigos para ajudar a carregar as coisas. Mas fiquei com tanta vergo-nha de ver toda aquela tralha sendo colocada no ônibus que tive umacrise de riso e fugi, deixando meus amigos, minha mãe e uma irmãpara pagarem o mico de carregar tudo no ônibus coletivo, que pega-ram da rodoviária para o bairro Sete Portas, onde eu morava.

Passei a maior parte do tempo morando sozinho em Salvador.Porém, não era raro ter sempre alguém da família por perto. Váriosirmãos chegaram a viver comigo e depois voltaram para o interior.Nete foi quem passou mais tempo. Ficou em minha casa até passar emprimeiro lugar num concurso público para Auxiliar de Enfermagemem Porto Seguro, onde morou por quase um ano. Desistiu de continu-ar morando lá por causa do salário, que era muito baixo e ainda porcima atrasava meses para ser pago. Nete resolveu então que seria me-lhor voltar para Jequié e fazer um curso universitário antes de sair dacidade para enfrentar a vida.

Sempre quis morar bem próximo ao local de trabalho, já que acidade de Salvador não tem um sistema de transporte público eficien-te, fato que eu já havia comprovado. Experimentei, várias vezes, sairde Ondina, antes de me transferir definitivamente para o bairro SetePortas, de ônibus para chegar ao bairro Nazaré. O atraso era constan-te, o veículo vinha lotado e muitas vezes não parava no ponto parapegar passageiros. Este problema me desestimulou de morar distantedo trabalho. Do edifício Crescenciano, onde eu morava, para o TRT,gastava dois ou três minutos subindo uma ladeira interminável, comminha marmita, cujo conteúdo era sempre o mesmo: feijão, arroz, umpedaço de abóbora cozida e um pedaço de carne. Havia um espaçochamado Centro de Convivência, onde os funcionários se encontra-vam para assistir televisão, bater papo e almoçar. Todos os dias estavaeu ali com meu marmitão. Morria de vergonha dos outros colegas, quelevavam uma comida diferente a cada dia e sempre pediam que euabrisse a minha quentinha para trocar com eles um pedaço de carneou de outra coisa qualquer. Como eu sempre levava a mesma coisadiariamente, alguns colegas nem queriam ver minha marmita, enquan-

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to outros, já adivinhando o que nela continha, faziam brincadeiras egozações.

Afogamento em Itapoã

Quase morri afogado em Itapoã. Fazia apenas dois meses queeu havia chegado a Salvador. Em abril de 1993, reencontrei um gran-de amigo do interior, chamado Greyko, e saímos para tomar umascervejas na praia de Itapoã. Tomamos duas cervejas e comemos doiscaranguejos - o primeiro caranguejo de minha vida. Quando caminhá-vamos em direção ao ponto de ônibus, vimos uma galera andando decaiaque e paramos para olhar.

Meu amigo cismou de dar umas voltas de caiaque e me chamoupara acompanhá-lo, o que recusei de pronto. Mas ele insistiu e acabeiseduzido pela aventura de andar de caiaque no mar. Já tinha andadode caiaque num rio da cidade de Ilhéus alguns anos antes. Depois dedarmos algumas remadas, resolvemos sair do caiaque para dar ummergulho. Na hora de entrar no caiaque, eu não conseguia me equili-brar e caía na água toda vez que tentava subir. Com as inúmeras tenta-tivas, o caiaque afundou e tivemos que nadar de volta à praia. Tendo anarina esquerda comprometida por causa do segundo acidente de motoque quebrou meu nariz, cansei rápido e parei para descansar. Pediajuda a ele. Precisei me segurar nele para poder respirar mais livre-mente e voltarmos a nadar.

Não agüentei o pique e comecei a me afogar. Meu amigo aindatentou me salvar, mas eu estava desesperado e ele ficou com medo demorrer junto comigo. Após me debater muito, percebi que eu afunda-va, sentindo a temperatura da água se tornar cada vez mais fria. De-pois, não vi mais nada, tudo estava muito escuro. Acreditando queaquele seria meu último dia de vida, entreguei-me ao mar, sem resis-tência.

Parecia estar “sonhando” com meu corpo deitado sobre umapedra, ao nível da água do mar, e que as ondas batiam em mim. Sentiao brilho intenso do sol forte e quente sobre mim, enquanto gritava:“Deus, eu não posso morrer agora, me dê mais uma oportunidade!Tenho somente dois meses em Salvador e muita coisa para viver aindanesta cidade!”.

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Na cena seguinte, alguém me pegou, me colocou dentro de umbarco e me levou de volta à praia. Meu amigo contou que conseguiuser salvo por um cara que passava num barco à vela e o levou até apraia. Achou que eu tinha morrido. Estava chorando na praia, quandoo dono da barraca de aluguel de caiaque pediu que alguém fosse aomar pela segunda vez, já que na primeira haviam encontrado apenasos remos do caiaque. Disse-me depois que não acreditou quando viuque me traziam de volta à praia com vida. Eu também não acrediteinaquilo, achei que fora um milagre, uma segunda chance de vida, pararealizar alguma coisa que estaria por vir.

Socorrido na praia por populares, fui levado de hospital em hos-pital, mas não recebi atendimento médico em nenhum deles, sob amesma alegação de que não havia pneumologista de plantão. Fui leva-do para casa, com os pulmões cheios de água, tive febre altíssima, se-guida de bronquite e pneumonia. Consultei-me com um médico nomeu trabalho, que me receitou remédios para dores. A doença evoluiue acabei tendo tuberculose. Por conta disso, fui submetido a um trata-mento que durou mais de um ano. Mas, finalmente, fiquei curado. Nãoera a minha hora.

Dona Nini

Tive uma vizinha chamada Dona Nini. Morava no apartamentoao lado e era uma criatura maravilhosa. Sempre me presenteava comfrutas e, quando fazia uma comida diferente, me chamava para ofere-cer um prato do novo quitute.

Depois que me mudei do prédio, soube que ela também tinha semudado para a Pituba e que passava por sérios problemas de saúde.Procurei seu endereço e fui visitá-la. A cena me cortou o coração. Foichocante para mim ver aquela mulher, que antes era tão firme, vaido-sa, bonita e vistosa, reduzida a um monte de carne retorcida em cimade uma cama.

Dona Nini tinha tido um infarto que deixara seqüelas. Estavatorta de um lado, a boca meio aberta, até para comer tinha dificulda-des. Aquela cena me deixou mortificado, mas não deixei transparecerminha perplexidade. Ela sabia que estava com seus dias contados, mas

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não me privei de incentivá-la. Falei-lhe que já tinha visto pessoas pas-sarem por situações mais complicadas e que conseguiram dar a voltapor cima e muitas outras palavras de ânimo. Mas ela estava inconfor-mada.

Alguns dias depois, sua saúde piorou e precisou ser internadanum hospital da cidade, onde fui visitá-la. Fiquei mais estarrecido aindaquando a vi se alimentando por meio de tubos e respirando com aajuda de aparelhos, numa semi-UTI. Veio a falecer pouco tempo de-pois. Fiquei muito impressionado com o desenrolar dos fatos; a ima-gem dela ocupou minha mente por vários dias. Uma noite, tive umsonho. Estava sentado num grande sofá, juntamente com outras pes-soas. O sofá estava completamente lotado de gente, e todos fixavam oolhar para frente, não se mexiam para os lados. Passados alguns mi-nutos, Dona Nini entrou no ambiente. Sentia que era ela, mas, de al-guma forma, sabia que não podia olhá-la diretamente. Parecia que meupescoço estava preso e não podia girar. Dona Nini se aproximou demim, olhou-me nos olhos e me estendeu a mão. Eu fiquei com medo,assustado, pois eu sabia que ela tinha morrido. E ela falou: “Pegue emminha mão!” Eu peguei, mas achando que pegaria numa mão de nu-vem, sem forma e sem consistência. Minha mão tocou uma mão quen-te, firme e humana. Ela, como que lendo meus pensamentos, falou:“Está vendo? É uma mão de verdade. Eu estou bem. Não se preocupe.Eu estou bem!”. O sonho acabou aí. Acordei muito assustado e fiz al-gumas orações, antes de tentar dormir novamente.

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Quando eu morava no Edifício Crescenciano dos Santos, meusirmãos Dida e Tó estavam em Ilhéus, onde trabalhavam. Dida viviacom uma garota, e Tó morava junto com eles, numa casa alugada. Sem-pre dava um jeito de visitar meus irmãos em Ilhéus. Quase todos osmeses, viajava para o interior de ônibus, ou com minha mãe ou sozi-nho. Tinha planos de ajudá-los a comprar um terreno ou uma casa.

Em uma dessas minhas visitas, conversamos sobre a compra deum imóvel, e ambos me prometeram procurar um local adequado àconstrução de uma oficina, já que o desejo deles era ter o próprio ne-

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gócio. Semanas depois, me ligaram dizendo que ainda não tinhamencontrado nada razoável. Em uma nova viagem a Ilhéus, saí com osdois em busca de uma casa ou terreno. Encontramos uma casa enor-me, no bairro Teotônio Vilela, com um quintal descomunal, que tantoserviria de moradia como dispunha de área apropriada para a cons-trução de uma oficina mecânica. Eles argumentaram que aquele nãoseria o local ideal, pois o bairro, além de não oferecer infra-estruturaadequada, era muito violento. Voltei para Salvador e, na semana se-guinte, recebi um telefonema deles dizendo que tinham encontradoum terreno muito bom.

Com o dinheiro que enviei, eles compraram um terreno horrí-vel, num despenhadeiro. A área era grande, mas tinha apenas trêsmetros de terreno plano, o restante era um barranco que descia atéum manguezal, que desembocava no rio Cachoeira. Fiquei bastanteirritado com o fato de meus irmãos terem desperdiçado a oportunida-de de comprar uma boa área onde pudessem morar e trabalhar. Co-meçaram a construir ali uma casa de dois metros de largura por trêsde comprimento, e me pediram mais dinheiro para comprar o materi-al de construção da oficina mecânica. Mas, ao invés de investirem odinheiro que enviei em material de trabalho, compraram um Fuscavelho, caindo aos pedaços. Ao chegar a Ilhéus e verificar que haviamcomprado um carro velho e não o material para trabalhar, não pudeesconder minha indignação. Resolvi não mais ajudá-los e passei umenorme sermão nos dois. Uma semana depois, soube que haviam ven-dido o Fusca e comprado material para construir mais dois cômodosna casa.

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Já trabalhando na 3ª Vara de Salvador, fui chamado por Dina,que dizia ter uma notícia muito boa para mim. Perguntou-me se eutinha interesse em substituir a funcionária de um gabinete que entra-ra de férias. Eu já havia substituído várias pessoas, em todos os seto-res onde trabalhei, inclusive na Distribuição, onde Dina era a chefe.Perguntei qual era o trabalho a ser feito e Dina me disse que era umacoisa fácil e que eu iria gostar. Sob tais condições, aceitei. Comunicou-me então que, assim que tudo tivesse acertado, me telefonaria, o que

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aconteceu uma semana depois. Foi um pouco complicado ser liberadoda 3ª Vara para substituir uma funcionária do gabinete, mas acabeiconseguindo, sob a condição de trabalhar nos dois setores em horári-os diferentes, cumprindo duas cargas horárias. Aceitei prontamente.

No dia combinado, fui ao gabinete, com a roupa que eu costu-mava vestir no dia-a-dia: uma conga marca Alcolor com um buraco nodedão do pé direito, uma calça jeans velha, com furo no joelho, e umacamiseta de malha. Conversei com o juiz Gustavo Lanat, sem fazer amenor idéia de quem era e que importância tinha. Uma das perguntasque ele me fez foi se eu sabia datilografar. Respondi que sim. E eledisse que havia em torno de oitenta processos acumulados no gabine-te e precisava de alguém para ajudar sua equipe a dar conta do traba-lho. Aceitei. Perguntou-me também se eu apertaria um parafuso outentaria consertar algum objeto que se quebrasse. Eu disse que sim,caso eu soubesse realizar o conserto. Ao final da conversa, marcou odia para eu começar a trabalhar. Iniciei no dia 28 de novembro de1993 e permaneci ali, até junho de 2005, a trabalhar com ele e comsua equipe, onde nunca precisei apertar nenhum parafuso.

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Não foi muito fácil o processo de adaptação a uma cidade tãogrande, repleta de coisas boas e ruins; muita gente bonita e tambémmuita gente mal-intencionada. Mas tentava me acostumar com tudo,fui aprendendo a lidar com as adversidades e a tirar de cada uma delasuma lição de vida.

Recém-chegado de Jequié, uma cidade carente de diversões,quando comecei a conhecer os points da Salvador, me esbaldei atéonde pude. Quase toda semana ia assistir a filmes, não perdia umaestréia; não faltava a uma “terça da bênção” no Pelourinho. Eu sem-pre ia à festa do Pelourinho, nas noites de terça-feira, mas jamais ima-ginei que a expressão “bênção” se relacionava à “água benta que o pa-dre jogava sobre os fiéis, na igreja de Nossa Senhora do Rosário dosPretos, durante a missa”; pensava que era apenas o nome da festa po-pular. Via muitas peças de teatro no Teatro Santo Antônio, no bairroCanela, de graça; adorava tomar banho de mar nas diversas praias;curtia o carnaval adoidado, no meio da multidão, e não perdia uma

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seresta ou pagode. Praticamente, não parava em casa. Estava sempreem atividade. Até toquei no Ilê Ayê, quando o grupo ensaiava no Fortede Santo Antônio, no bairro de mesmo nome. Os ensaios eram às quar-tas-feiras e aos sábados. Ficávamos a noite inteira ensaiando. Mas,como não sou uma pessoa notívaga, acabei abandonando esses ensai-os em poucos meses.

Numa dessas idas e vindas de festas, conheci Elias, que se tor-nou meu amigo. Elias era muito mais festeiro do que eu e sempre medava boas dicas de lugares onde estava rolando algum “reggae”. Mui-tas vezes, fui com ele a Periperi, um bairro suburbano, distante maisde dez quilômetros do centro da cidade, para curtir serestas e pagodesaté altas horas. Acontecia com freqüência de eu me esquecer do horá-rio e perder o último ônibus. Aí o jeito era esperar o “pernoitão”, alinha especial de ônibus que circula de madrugada. O sono era tantoque dormia sentado no ponto de ônibus.

Por intermédio de Elias, conheci um outro camarada, Elivan,cuja mãe morava em Periperi. Ele vivia com o pai em São Tomé deParipe, o bairro mais distante do centro. Elivan vendia sorvetes numagaragem da casa do pai. Quando ia a São Tomé, após tomar umas cer-vejas na praia, era comum eu ir almoçar ou comer alguma coisa no bardo tio dele, o Bar do Chico.

Sempre que encontrava Elivan por ali, perdíamos a noção dashoras, conversando sobre todo o tipo de assunto, inclusive sobre tra-balho. Ele tinha o sonho de ser marinheiro, vencer na vida e ajudar amãe. Eu ficava ouvindo seus planos e não deixava de lhe incentivar,mas tinha quase certeza de que ele não iria chegar a lugar algum, poisa dificuldade de se vencer na vida numa cidade grande é diretamenteproporcional ao tamanho dessa mesma cidade. No entanto, para sur-presa minha, Elivan lutou contra todas as adversidades, se preparoupara o concurso e entrou na Marinha Mercante. Hoje é Sargento daMarinha, trabalha no Rio de Janeiro, servindo no Primeiro Distrito, jáviajou por quase toda a costa brasileira, já se casou e teve dois filhos. Eo mais importante: ajudou e continua ajudando a mãe e os irmãos.Construiu uma casa para a mãe em Aratu e depois resolveu levá-lacom alguns de seus irmãos para o Rio, deixando a casa aos cuidadosde outros irmãos.

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Ele é um exemplo de pessoa. Em sua trajetória de vida, pudeidentificar uma semelhança muito grande com a minha própria histó-ria: a história de um menino pobre, morador de periferia, que conse-gue vencer todos os obstáculos e dar a volta por cima. Assim, conquis-ta seu lugar ao sol, com honestidade, sem trapaças, sem conchavos,sem passar por cima de ninguém e sem puxar o tapete de quem querque fosse.

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Desde sempre, quis me mudar do Edifício Crescenciano dos San-tos, no bairro Sete Portas, onde morei. Mas, para isso, teria de sacrifi-car muita coisa: evitar de sair às farras, de comprar muitas roupas,reduzir as viagens. Passei mais de três anos arquitetando o dia de mi-nha libertação. Quando estava com uma boa grana no banco, comeceia pesquisar preços de casas e apartamentos.

Conheci muitos lugares de Salvador, caminhando em busca deum lugar para morar. Poucos me agradavam. Até que encontrei o apar-tamento do Edifício Gama, no bairro Nazaré. Apaixonei-me de carapelo imóvel e fechei negócio imediatamente. Essa compra se deu em1997. Seria o início de uma nova fase. Depois que passei a morar nonovo prédio, iniciei uma longa jornada de viagens pelo Brasil e poralguns países do mundo.

Convidei então meus irmãos para virem morar em Salvador noEdifício Crescenciano dos Santos, que logo aceitaram.

No dia 25 de julho de 1997, nasceu meu filho Junior, fruto deuma aventura rápida que tive com Maria Raimunda da Conceição,natural de Ilhéus. Após o nascimento, no Hospital Sagrada Família,em Salvador, decidimos, eu e sua mãe, que nosso relacionamento ti-nha chegado ao fim e que o nenê ficaria comigo. A mãe voltou para ointerior e de lá se mudou para São Paulo, para onde levo Junior, sem-pre que posso, para visitá-la.

Minha mãe morava comigo e cuidava de Junior. Foi uma expe-riência muito boa, o nascimento de meu filho. Além de representaruma extensão de mim, que teria de cuidar para sempre, ele me trouxemuitas alegrias. Mudei vários conceitos e planos que tinha para mi-

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nha vida em função dele. O projeto de viver no exterior, por exemplo,foi adiado por causa de minha mãe e de Junior, que representavammuito mais que uma vida para mim. Cuidei de meu filho com muitocarinho, enquanto ele morou comigo e com minha mãe. Troquei fral-das, dei mamadeira e banho. Brincava sempre com ele quando chega-va do trabalho. Aprendi a ter paciência e a descobrir o significado dochoro. Preocupava-me com cada movimento dele, perto de mim, nacama. Ficamos muito ligados um no outro, principalmente depois queminha mãe morreu, e eu me vi sozinho para cuidar dele.

Contratei pessoas para ficarem em minha casa cuidando de meufilho, mas, depois de pensar muito, achei que o melhor para o meninoseria estar perto de alguém da família, que pudesse cuidar dele comoele merecia. E resolvi deixá-lo com minha irmã Valquíria, em Jequié.Falamo-nos freqüentemente por telefone e, vez ou outra, envio-lhecartas. Ele também me escreve, manda cartões de aniversário, de Na-tal e Ano Novo. Quando nos encontramos, Junior coloca toda a con-versa em dia, quer me mostrar a roupa nova, o brinquedo novo, con-tar as coisas que aprendeu na escola.

Quanto a meus irmãos, eles aceitaram vir para Salvador. Ao che-garem, não demoraram a encontrar trabalho nas oficinas mecânicasda cidade. Depois de dois ou três anos, resolveram voltar para Ilhéus,e de lá foram para São Paulo, onde vivem até hoje. Quando se muda-ram para São Paulo, eu já tinha ajudado Mi a comprar uma casa nobairro Parque Novo Santo Amaro. A casa custou R$ 20.000,00 (vintemil reais), dos quais emprestei, a fundo perdido, cinqüenta por cento.O restante foi financiado pela própria imobiliária, e as prestaçõesmensais eram divididas também com a sogra e com as cunhadas, quesaíram de suas casas de aluguel para morarem na nova casa. O imóvelera bem amplo; possuía três andares e ainda um telhado, que permi-tia bater uma laje para a construção de mais um andar. Vitório acaboubatendo uma laje nesse telhado, onde construiu sua casa.

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Primeira viagem a São Paulo

Viajei pela primeira vez para São Paulo em 1996. Fui de ônibus.A viagem parecia não terminar. Mas foi muito agradável. Transcrevoabaixo uma espécie de “diário de bordo”, relato desta experiência:

“Jequié, 2 de abril de 1996.

10:21 h

Saí de Salvador no início da manhã e, neste exatomomento, encontro-me no Ponto de Apoio da empresade ônibus São Geraldo, em Jequié.

10:27 h

Estou dentro do ônibus para São Paulo, comendotaboca, um doce enroladinho, feito de tapioca. Aqui dápara ver muita coisa bonita. O ônibus segue estradaadentro.

15:04 h

Passamos pelas cidades de Manoel Vitorino, Poçõese Planalto. Paramos em Vitória da Conquista para almo-çar. O ônibus é delicioso. Tem água mineral à vontade ecafé quentinho da hora. O ar condicionado torna o ambi-ente bem agradável. Passamos pela pequena cidade deCândido Sales, que é cortada por um riachinho de águabarrenta. Aqui faz muito frio.

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16:00 h

Estamos no estado de Minas Gerais, a paisagem éencantadora, com pedras e montanhas enormes por to-dos os lados. Muitas curvas na estrada. Em frente à mi-nha poltrona, duas moscas muito chatas resolveram seacomodar. Penso que são duas moscas baianas indo decarona para São Paulo.

20:00 h

Paramos em Teófilo Otoni para o jantar. Preferi nãocomer nada, achei a comida uma boa droga. Paguei caropela quentinha, que acabei jogando no lixo. Arrependi-me amargamente de ter comprado aquela porcaria e ain-da por cima ter de carregá-la dentro do ônibus, com o arcondicionado desligado, por mais de meia hora. Teria sidomelhor sair da rodoviária e fazer um lanche numa bodegade beira de estrada.

06:00 h

Está amanhecendo. Já é dia 3 de abril e estamosentrando no estado do Rio de Janeiro. Dormi quase a noi-te inteira. Com isso, deixei de ver um monte de cidadesmineiras.

06:50 h

Agora estamos passando por Sapucaia, uma cida-dezinha do Rio de Janeiro, pequena e bem cuidada.

07:10 h

O ônibus atravessa a cidade de Anta, bem menorque Sapucaia.

07:30 h

Passamos por Três Rios, ainda no Rio de Janeiro.Um pouco depois da saída da cidade, vi um caminhão deleite enlatado virado e uma multidão saqueando a carga.

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08:00 h

Paramos em Paraíba do Sul para tomar café e, emseguida, atravessamos Vassouras, cidade pequena, arbo-rizada, bonita e aconchegante.

09:00 h

Passamos por Barra do Piraí, outra cidadezinha doRio de Janeiro, pequena, muito pobre, cheia de morros.

09:30 h

Já estamos em Volta Redonda. De longe se percebea nuvem de poluição a cobrir a cidade, que é bem desen-volvida e cheia de prédios. Acredito que morar neste lu-gar deve ser um pesadelo por causa da poluição. Dormium pouco e acordei em Resende. É uma cidade pequena,com alguns edifícios e um rio muito caudaloso que mar-geia a estrada por muitos quilômetros.

11:40 h

Agora entramos no estado de São Paulo, mais exa-tamente nas proximidades de Aparecida, onde há umaparada para o almoço. A cidade é muito simpática. De lon-ge, pude ver a Catedral Basílica, que impressiona por suaimponência.

13:00 h

Chegamos a Taubaté. A cidade é enorme e eu atéacreditei que já estava na cidade de São Paulo. Se o moto-rista não me adverte, eu teria desembarcado ali. O ônibusparou na rodoviária. Muita gente desceu, mas eu preferificar no carro, por estar nervoso demais. Talvez pelo medodo desconhecido. Não vejo poluição, mas o horizonte dacidade é escurecido.

15:30 h

Finalmente, São Paulo. Ao desembarcar na EstaçãoRodoviária do Tietê, tomei um susto. O terminal era imen-so e havia uma multidão incalculável ali, partindo e che-

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gando, ônibus pra todo lado. Fiquei apreensivo, achandoque não encontraria minha cunhada, que prometera meesperar. Mas não demorei dez minutos para avistar Célia,acompanhada de Bela, sua irmã. Da rodoviária até o dis-trito de Jardim Ângela, onde meu irmão morava, foi umaviagem de mais de seis horas. Um engarrafamento mons-truoso paralisava o trânsito da cidade inteira. Memorizeiquase todas as casas e prédios da avenida Santo Amaro,pois o ônibus parava a cada metro que conseguia andar.Fazia um calor infernal, e eu lá de casaco, carregado demalas e mochilas. Parecia até que estava indo de mudan-ça definitiva para São Paulo. Finalmente, chegamos aoJardim Ângela, e logo em seguida ao Parque Novo SantoAmaro, onde ficava a casa de meu irmão.

O tempo ali entre eles passou voando. Em vinte dias,pude descansar e ordenar minha mente e refazer meusprojetos de vida. Gostei tanto das pessoas que não tinhaainda tido oportunidade de conhecer: um montão de cu-nhadas de meu irmão, a sogra dele e mais gente, muitagente. No dia que voltei para Salvador, todos choraramna despedida. Eu não me agüentei e chorei também.

Gostei tanto da experiência que um ano depois via-jei de ônibus com minha mãe, meu sobrinho Murilo, meufilho Junior e Jean, um amigo da família. Desta vez, a vi-agem não foi tão surpreendente quanto a primeira, poisjá conhecia o trajeto. A partir de então, passaria a visitarmeus irmãos todos os anos, no Natal e no Ano Novo. Fuiduas vezes de carro e outras tantas vezes de avião.

Houve uma viagem que me marcou em especial, nasegunda vez em que fui de carro. Resolvi sair de São Pau-lo quando faltavam vinte e cinco minutos para a meia-noite. Todos protestaram: minha mãe, meu irmão, as cu-nhadas dele e outras pessoas que estavam na casa. Masnão ouvi ninguém. Era uma noite de reveillon. Vimos aqueima de fogos, em comemoração ao Ano Novo, quandoatravessávamos a cidade, passando pela Avenida SantoAmaro, em direção à BR-116.

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Cursos de inglês e espanhol

Tinha muitos planos de fazer viagens ao exterior, por isso co-mecei a aprender inglês. Fiz um curso de três anos em uma escolatradicional da cidade. A princípio, parecia que jamais conseguiriaaprender uma palavra sequer. Mas, com o passar do tempo, fui meacostumando com a língua, e hoje já consigo conversar normalmenteaté com próprios nativos. Já o curso de espanhol durou apenas vintedias, acabei desistindo. Preferi me aperfeiçoar primeiro no inglês esomente depois recomeçar o curso de espanhol.

Viagens para Jequié

Quase toda semana eu viajava para Jequié e, na maioria das ve-zes, ficava na casa de minha irmã Quira. Numa dessas viagens, fui atéo açougue com ela para comprar uns dois quilos de bife. O açougueirocortou a carne e separou as peles das partes mais duras num monti-nho. Enquanto ele pesava e embalava a carne, mostrei o montinho depeles à minha irmã e perguntei-lhe se aquilo a fazia lembrar de algo.Ela sorriu, como que concordando com a lembrança do tempo em quecomíamos os refugos doados pelos barraqueiros da feira livre da cida-de. O açougueiro, pensando que queríamos levar as peles, falou quepoderia embalar aquele sebo para darmos aos cachorros, caso os ti-véssemos. Respondemos que não tínhamos cachorro e que falávamosde outra coisa. Ele não entendeu nada.

Pedalando e dirigindo em Salvador

Resolvi comprar uma bicicleta, a fim de fazer exercícios físicos.Não me agradava muito ficar em academias, pela minha timidez e tam-bém por ser um lugar fechado, onde geralmente não se pode ver pai-sagens, a não ser através das janelas. Encontrei um anúncio no jornal,telefonei e fui até o bairro de Pituaçu, que era onde morava o vende-dor da bike. Voltei de lá pedalando pela avenida Paralela. Daí em di-ante, passei a pedalar por duas ou mais horas, todos os dias. Lembro-me que, numa das manhãs em que pedalava pela Pituba, começou achover e, quando olhei para o relógio, vi que já eram sete e trinta da

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manhã e eu deveria estar no trabalho antes das oito, pois era dia desessão no Tribunal. Corri tanto que parecia que a bicicleta flutuavasobre a água. Mas cheguei a tempo ao trabalho.

Saía quase todos os dias de Nazaré e ia até Paripe, Alto de Cou-tos, pedalando pela Suburbana e por Ipitanga, em Lauro de Freitas.Muitas vezes, pedalava de manhã cedo, antes de ir para o trabalho, e,quando chegava em casa à tarde, repetia a dose. Cometi loucas aven-turas com minha bike, como sair às 22 horas de Salvador rumo a DiasD’Ávila, aonde cheguei após pedalar três horas na chuva. Fiquei emcasa de amigos e voltei no dia seguinte, pedalando de novo.

Eu tinha muito medo do trânsito de Salvador, mas, depois queeu comecei a pedalar pela cidade, acabei me acostumando com o rit-mo e com o movimento rápido dos carros. Até quando andava de táxisentia medo, ficava sempre segurando na porta do carro. Aos poucos,fui me habituando.

Ao ver senhores e senhoras dirigindo tranqüilamente, fiquei maisanimado e confiante para dirigir também. Resolvi então entrar numconsórcio de carro e me matricular numa auto-escola para aprender adirigir. Tomei mais aulas do que o necessário, e mesmo depois delasainda continuava um pouco inseguro e com medo de tirar a carteira demotorista. Mas a forma com que os instrutores davam as aulas foi de-cisiva para me ajudar a resgatar a minha segurança. Certa vez, quandomanobrava o veículo, o instrutor pediu que me aproximasse de ummuro e parasse, para que um outro carro que estava atrás pudessepassar. O carro ficou numa posição complicada. Só poderia ser retira-do dali através do uso de meia embreagem e de marcha à ré. Eu estavaapenas começando a aprender a fazer meia embreagem, e por isso oinstrutor ficou preocupado com a possibilidade de eu bater com o car-ro no muro. Ele já ia saindo para pegar o carro e retirá-lo dali, quandomudou de idéia e resolveu que eu poderia fazê-lo, seguindo suas ori-entações. Fiquei supernervoso, mas ele me transmitiu toda a calmaque eu precisava. Foi minha primeira grande vitória, pois dali em di-ante criei coragem para enfrentar desafios outros que porventura pu-dessem ocorrer na direção de um veículo.

Quando o instrutor achou que eu já estava apto a me submeteraos exames do Detran, falou em marcar os testes. Relutei bastante.

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Depois resolvi alugar o carro da própria auto-escola por um dia intei-ro, a fim de treinar bastante antes de fazer os testes práticos. Marca-mos os exames. Fiz todos os testes e passei de primeira, para minhaprópria surpresa.

Ao receber minha carteira de motorista, a primeira providênciafoi reservar um carro em uma locadora de Salvador. No dia marcado,fui à locadora de veículos, mas não tive coragem de entrar para fazer ocontrato e alugar o carro. Passava várias vezes em frente à loja, olhavapara os carros circulando na rua e ficava apavorado. Os carros passa-vam sem parar, a uma distância muito curta uns dos outros. Concluin-do que não tinha condições de dirigir num trânsito daqueles, volteipara casa sem alugar o veículo.

Mais de um mês se passou e eu, enfim, criei coragem de alugarum carro. Mas não o fiz em Salvador. Viajei de ônibus até Ilhéus, ondealuguei um Fiat Pálio. De lá viajei para Jequié, que ficava a uns duzen-tos quilômetros de distância. Aprendi muita coisa, inclusive que nãose deve entrar numa curva em alta velocidade, como eu estava fazen-do. O carro cantava pneus em todas as curvas por que eu passava. Naestrada para Jequié, presenciei um acidente com outro veículo Pálio,que capotou para evitar o atropelamento de um cachorro. Um dos pas-sageiros, uma moça de mais ou menos vinte anos de idade, em trajesde banho, voou pelo pára-brisa e caiu morta no asfalto. O motorista eoutros passageiros ficaram gravemente feridos e foram levados para ohospital geral da cidade de Jequié. Aquilo me chocou e me fez repen-sar em uma forma mais segura e preventiva de dirigir, o que adoto atéhoje.

Dirigi por toda a cidade de Jequié como uma criança deslum-brada com um brinquedo novo. Não me cansava. Acredito que gasteium tanque de combustível, rodando por Jequié inteira.

Em outra oportunidade, aluguei um carro em Jequié, duranteum final de semana prolongado. O mico que paguei foi sair com o car-ro sem ligar os faróis. Somente alguns metros após sair da locadora éque fui parar o carro para procurar onde ficavam os botões para ligaras luzes, pois eu fiquei com vergonha de perguntar aos funcionáriosda locadora.

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Meu primeiro carro

Fui contemplado no consórcio de um veículo Gol, novo, ano 1998.Com esse carro, andei cerca de duzentos mil quilômetros. Fiz duasviagens para São Paulo, várias para Aracaju, uma para Petrolina, alémde viajar toda semana para Ilhéus, onde visitava meus irmãos Dida eTó e para Jequié, onde moravam outros irmãos e minha mãe. Rodavacerca de mil quilômetros por final de semana. Fiz uma viagem a Ara-caju somente para tomar uma água de coco na praça e voltar a Salva-dor. Nesse dia, eu estava meio na “maresia”, sem muita coisa parafazer, meio desanimado, no tédio. Então resolvi ligar para um amigo.Marquei com ele de nos encontrarmos para dar umas voltas e espaire-cer. Acabei pegando a orla, em direção a Itapoã, depois segui rumo aLauro de Freitas, depois Arembepe.

Conversando, conversando, passamos por Praia do Forte e aca-bamos subindo até Aracaju. Chegamos à capital sergipana por voltadas dez horas da noite. A cidade estava quase um deserto. Parada.Passei por uma pracinha e parei numa barraca de lanches, onde eu emeu amigo tomamos uma água de coco. Em seguida, pegamos a estra-da de volta a Salvador. Mais de seis horas de viagem para beber umaágua de coco, mas valeu. A gasolina era muito barata e dava para en-cher um tanque com R$ 25,00. Atualmente, tornou-se impossível via-jar todas as semanas, devido ao preço exorbitante do combustível.

Lembro de uma viagem que fiz a São Paulo, com minha mãe,Quira, Nete, meu amigo Fernando e Valdeck Junior, de carro. Leva-mos tanta comida que os passageiros tinham de colocar seus pés so-bre caixas de refrigerantes, bolos e panelas de comida pronta.

Em outra oportunidade, retornei a São Paulo com Quira, Chi-na, o amigo Anderson, meu filho Junior e meu sobrinho RobertoJunior de carro. Foi uma longa jornada. Nessa viagem, passei mui-to mal enquanto dirigia. Faltava pouco mais que cem quilômetrospara chegar a Sampa, quando parei para comer alguma coisa e des-cansar. Como eu estava dirigindo há mais de vinte horas, fiquei es-gotado e quase não consegui seguir viagem. Preferi não dizer a nin-guém que estava me sentindo mal, para evitar preocupações. De-pois de uma meia hora, já me sentia melhor e pude então continuara viagem.

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Eu tinha bebido muito extrato de guaraná para evitar dormir aovolante, e o efeito do guaraná foi muito forte, deixando-me despertodurante toda a viagem. Dirigindo “ligado”, tal qual um zumbi, quaseprovoco um acidente grave, que jogaria o carro ribanceira abaixo. Se-guia em direção ao acostamento; de repente, saí da pista e o carro foiem direção ao barranco. Via que estava indo de encontro à morte enão conseguia reagir. Mas, de súbito, “acordei” e mudei rapidamentea direção do veículo. Por uma questão de segundos, não causei umacidente grave. Na volta para Jequié, preferi não tomar qualquer tipode estimulante. Viajei vinte e duas horas de São Paulo a Jequié, semparar para dormir.

Disco voador na estrada de Santa Inês

Depois que comprei o carro, não parei mais de viajar. Já não erade ficar muito parado em casa, pois sempre fui muito ansioso. Com ocarro, fiquei mais ansioso ainda. Um dia, peguei a rodovia BR-101 paraJequié. Gostava de ir por lá, porque passava por Santa Inês, onde po-dia dormir ou descansar na casa de minha irmã China.

Nessa ocasião, convidei Lázaro Telles, um amigo que hoje viveem Londres, e Akira, um japonês que tinha vindo ao Brasil fazer umcurso de Português, que conheci e de quem me tornei amigo. Quandopeguei a BR-420, no entroncamento de Laje, já eram mais ou menosseis horas da tarde e a chuva nos acompanhava há bastante tempo.Essa rodovia é quase deserta, principalmente em tardes chuvosas definal de semana. Percebia luzes no horizonte, que confundia com farolde algum carro em sentido contrário. Como chovia bastante e o pára-brisa ficava constantemente embaçado, pensei também na hipótesede ser algum reflexo da água no vidro dianteiro do carro. Tinha a ma-nia de brincar de apagar todas as luzes do carro, parado no meio daestrada deserta, e ligar e desligar os faróis várias vezes. Depois seguiaem frente. Repeti isso várias vezes durante a viagem. A tal “luz” meacompanhou por muitos quilômetros, mas não me chamou a atenção.

Cheguei a Santa Inês por volta das oito horas da noite, tomeibanho, jantei e resolvi seguir viagem para Jequié, distante apenas oi-tenta quilômetros dali. Meu cunhado Roberto e minha irmã acharamque era loucura sair numa chuva daquelas e enfrentar a estrada, mas

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não dei ouvidos às suas advertências. Logo ao sair da cidade, no en-troncamento, percebi uma claridade estranha vindo da cidade. A prin-cípio, tive a nítida sensação de serem os faróis de um carro em movi-mento, por trás de uma fileira de árvores. Continuei a não dar atençãoe segui olhando para o asfalto, a fim de evitar buracos e um possívelacidente. Alguns quilômetros adiante, o japonês, intrigado com a luzque via, perguntou-me de onde ela vinha. Respondi que se tratava dosfaróis de meu carro refletidos nos barrancos, pois era o que eu real-mente supunha ser. Ele não se conformou e perguntou de novo, pe-dindo para que eu olhasse na direção em que apontava. E eis que, quan-do virei a cabeça para o lado esquerdo do carro, avistei uma luz imen-sa, que emanava de algo com formato circular. Parecia um círculo derefletores fortíssimos, apontados para o céu, girando e vindo em dire-ção ao carro. Fiquei extasiado com aquela visão. Parei o carro e pus-me a admirar a cena, muito curioso e louco de vontade de saber qualseria a fonte daquela luz, que se aproximava cada vez mais. A coisa, deformato esférico, tinha mais ou menos o tamanho de um estádio comoo Balbininho, em Salvador.

Meu amigo Lázaro começou a gritar desesperado e imploravapara que eu saísse dali. Eu não queria sair, permaneci olhando, masacabei cedendo a seus berros desesperados. Liguei o carro e disparei amais de cem por hora. Parei vários quilômetros adiante e resolvi vol-tar, sob o protesto de Lázaro. Só que não vi mais nada. No primeirotelefone público que encontrei, já em Jaguaquara, liguei para casa epara alguns amigos, relatando a história. Enviei mensagens para pro-gramas de televisão. Alguns até responderam, enviando e-mails ondepediam provas concretas, fotos etc., para poderem relatar a história.Mas não havia provas. Nunca mais vi a tal coisa, apesar de semprepassar pela mesma estrada, em horários noturnos diversos.

Viagens a Nova York

Tive a felicidade de fazer duas viagens a Nova York. A primeira,em 1999, com vôo saindo diretamente de Salvador para NYC; a segun-da, em 2000, com escala em São Paulo. Adorei conhecer os EstadosUnidos, apesar de ter visitado somente um único estado. Na primeiravez, passei todos os vinte dias de viagem caminhando pela cidade, com

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a câmera a tiracolo para registrar tudo. Visitei o Central Park, fui aoEmpire State Building, atravessei a Brooklyn Bridge. Passava a maiorparte do tempo apreciando a arquitetura, os traçados retilíneos dasruas e avenidas, as centenas de pessoas que iam e vinham. Fui de fer-ry-boat da ilha de Manhattan à Staten Island e conheci mais um pou-co dos arredores da cidade. Ali, sobretudo na estação da ferry, vi mui-tos mendigos se protegendo do frio cortante que fazia. Não tive muitavontade de visitar a Estátua da Liberdade, depois que me disseramque o acesso ao topo da estátua era abafado e quente. Também não meanimei a visitar as Torres Gêmeas, pois fui informado de que a vistaera a mesma do Empire State Building, com a diferença de mais al-guns andares de altura. Futuramente, após a tragédia com as Torres,isso se transformaria numa grande frustração, diante da certeza denunca mais poder subir ao topo do World Trade Center.

Visitei um programa de televisão chamado Ricky Lake, uma es-pécie de “Programa do Ratinho” à moda americana, onde as pessoasse xingavam e se agrediam o tempo todo. Foi muito divertido.

O que mais me impressionava na cidade era a organização e orespeito ao sinal de trânsito, mesmo nas madrugadas. Por várias ve-zes, ao pegar um táxi voltando das farras para a casa onde estava hos-pedado, testemunhei a mesma cena: sempre que o sinal ficava verme-lho, a qualquer hora da madrugada, o taxista parava o carro e espera-va o sinal abrir. O sistema de metrô da cidade também me pareceufantástico, de uma pontualidade infalível.

Na segunda viagem, eu já não estava tão preocupado em tirarfotos. Além do mais, fui fazer um curso de inglês em uma escola deintercâmbio cultural. Fiquei hospedado na casa de uma família noBrooklyn e estudava em Manhattan, na Sexta Avenida. Na casa ondeeu fiquei havia um sistema de alarme cuja senha de acesso era trocadatodos os dias. A pessoa tinha que digitar a senha, abrir a porta, fechá-la e digitá-la novamente. Um dia, eu me atrapalhei e o sistema dispa-rou o alarme. Todos os moradores da casa correram para ver do que setratava, achando que era um assaltante. Quando viram que era eu,respiraram aliviados, mas fiquei muito envergonhado e sem saber meexplicar direito.

Um dia antes de minha viagem de volta ao Brasil, liguei para oserviço de táxi e marquei uma corrida para o aeroporto no dia seguin-

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te. A pessoa que me atendeu ao telefone falou “hold on”, e eu imagineique ela voltaria a falar comigo. Fiquei “aguardando” e, depois que per-cebi que não havia ninguém na linha, desliguei. Alguns minutos maistarde parou um táxi em frente à casa e começou a buzinar. Saí para vero que era e me deparei com o táxi à minha espera para me levar aoaeroporto. Fiquei tão nervoso na hora que comecei a conversar emportuguês com um dos filhos da dona da casa. Ele me olhava espan-tando, e eu continuava a falar sem parar, até me dar conta de que elenada entendia do meu idioma. Depois de me acalmar, pedi a ele queexplicasse ao taxista que a corrida era para o dia seguinte.

Conhecer os Estados Unidos foi uma experiência muito feliz,apesar de ser torturado pelo frio, que me obrigava a vestir várias rou-pas ao mesmo tempo, para conseguir me esquentar um pouco.

Na primeira viagem que fiz tomei um grande susto, como é pró-prio dos inexperientes. Remarquei o meu vôo pessoalmente no escri-tório da VASP em Nova York com uma brasileira. Tudo confirmado.No dia da viagem, fui para o aeroporto John Fitzgerald Kennedy, lépi-do e fagueiro, crente que meu vôo sairia dali. Qual não foi meu espan-to quando vi o guichê de check-in da VASP fechado. Procurei informa-ções e me disseram que não havia nenhum vôo saindo dali para o Bra-sil naquele dia. Fiquei desesperado. Depois, acabei descobrindo que ovôo sairia de New Jersey, do aeroporto Newark. Peguei um táxi e, du-rante a corrida, não parava de pedir ao motorista que corresse bastan-te. Mas ele sempre respondia que já estava correndo dentro do limitemáximo permitido e que ali havia controle de velocidade. Por maisque corresse, não conseguia me convencer de que ele não andava de-vagar. Mas no final deu tudo certo. Cheguei a tempo, fiz o check-in,embarquei e cheguei ao Brasil em paz.

Viagem a Madrid

Quando retornei de Nova York, em minha segunda viagem, noano de 2000, fui direto para Madrid, conhecer um pedaço da Europa.Aproveitei para fazer um curso de espanhol de vinte dias. Viajandocomo estudante, as despesas da viagem ficam menores, já que há des-contos nas passagens aéreas e é fácil conseguir alojamento em casasde família. Aproveitei a viagem ao máximo. Caminhei muito pela ci-

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dade, fui à tourada, feiras livres, danceterias, visitei Segóvia e Toledo.Adorei o pessoal da escola onde estudei. Ali conheci gente do Japão,Coréia, Itália, Estados Unidos e outros países. A parte triste foi queaconteceu um acidente de carro com duas amigas coreanas, que aca-baram morrendo. Todo o pessoal da escola ficou consternado e eu atéchorei a morte delas. Fiquei impressionado quando a família de umadelas foi buscar o corpo e destruiu todos os seus pertences, inclusiveas fotos que os amigos tiraram.

Faltando alguns dias para retornar ao Brasil, comecei a ficarsubitamente apreensivo. Sentia uma necessidade grande de ver mi-nha mãe. Por várias vezes ligara para saber como andava a saúde delae sempre obtinha a resposta de que tudo estava bem, o que me deixavamais tranqüilo, mas não eliminava aquela sensação de apreensão.Resolvi antecipar meu retorno. Mudei a data de embarque no vôo queestava reservado e, de tão atrapalhado que estava, acabei chegando aoaeroporto um dia depois de o vôo ter partido. Com algum esforço, aVarig conseguiu um lugar para mim num vôo das Aerolíneas Argenti-nas. O vôo era para Buenos Ayres, com escala em São Paulo. Ao che-gar à capital paulista, notei que havia problemas com minha baga-gem: ou não havia sido desembarcada ou fora extraviada. Registrei aocorrência junto à companhia aérea e viajei para Salvador, a fim deaguardar em casa o resultado das investigações.

Falecimento de minha mãe

Dois ou três dias depois de ter chegado de viagem, recebi umtelefonema dando conta de que minha bagagem tinha sido localizadano aeroporto de Buenos Ayres e que já havia sido remetida a Salvador.Nesse meio tempo, meu celular ficou sem carga na bateria e, como ocarregador se encontrava na mala extraviada, resolvi ir até o TribunalRegional do Trabalho para usar o carregador de minha chefe, que ti-nha o aparelho igual ao meu.

Assim que a bateria completou a carga, recebi um telefonemade meu cunhado Nilson, de Jequié, com a trágica notícia de que mi-nha mãe tinha acabado de falecer. Foi uma fatídica tarde do dia 14 dejunho de 2000. Perdi a noção do tempo, do espaço, de tudo. Entrei emdesespero e liguei para meu amigo Fernando, que me acompanhou na

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viagem a Jequié. Para minha surpresa, minha então chefe, Ramin, emeus colegas Márcio e Iraci também foram até Jequié para o enterrode minha mãe. Encontrei-me com eles somente no cemitério. Possodizer que esta foi a maior perda de minha vida. Uma tristeza que nãopassa, uma lacuna que não se preenche, uma lembrança que jamaisserá esquecida.

Todos os irmãos conseguiram chegar para o velório, inclusiveMi, que morava em São Paulo, e Tó, que morava em Ilhéus, onde fuibuscá-lo. Só Dida não conseguiu vir de São Paulo, pois não conseguiudinheiro emprestado para pagar a passagem de avião.

Em todas as viagens de férias que fiz ao exterior, sempre fui so-zinho. A única coisa que fazia era ligar para casa ou mandar um car-tão-postal, não costumava comprar presentes. Mas, voltando dessaviagem à Espanha, trazia na mala para minha mãe um ímã de geladei-ra, com a frase “Te quiero, Mamá” (Te amo, Mamãe) e o desenho deuma senhora descascando alguma fruta ou verdura. Não consegui dara ela o presentinho que comprei, já que falecera antes de eu chegar aJequié.

Nunca havia pensado em levar alguém da família comigo nes-sas viagens, nem mesmo minha mãe. Porém, retornando de Madri parao Brasil, no avião das Aerolíneas Argentinas, encontrei uma senhoraque morava em São Paulo. Viajava com sua mãe, pela primeira vez emmuitos anos. Contou-me que era proprietária de uma empresa quefornecia alimentação para o exército e que passou muitos anos traba-lhando sem parar. Um belo dia, voltando sonolenta do trabalho, seucarro atravessou a pista e quase bateu de frente em uma carreta queestava na pista oposta. Disse ela que, desse momento em diante, re-solveu trabalhar menos e cuidar mais da saúde e da família. Estava aliviajando com a mãe justamente para dar início ao novo ciclo de suavida. Após ouvir essa história, decidi que levaria minha mãe comigona próxima viagem que fizesse ao exterior. Mas o destino não me deutempo de realizar este desejo. A morte chegou antes, levando minhamãe de surpresa.

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Faculdade de Turismo em 2001

Prestei vestibular para turismo, concluí três semestres e tran-quei o curso por motivos particulares. Esses motivos me levaram, tam-bém, a solicitar uma licença sem remuneração do meu trabalho, porseis meses. Durante esse tempo, pensei e repensei minha vida, fiz pla-nos de me transferir para outro estado, pensei até mesmo em ir morarem Manaus. Felizmente, após muito refletir, voltei ao trabalho, masresolvi não mais continuar com o curso superior (Ver capítulo “Natale Ano Novo 2003/2004”).

Viagem a Porto Alegre

Participo do programa de milhagem da Varig. Em 2001, já pos-suía milhagem suficiente para uma viagem dentro do Brasil. Resolvientão gastar minhas milhas em uma viagem pelo sul do país, em mar-ço daquele ano. Gostei muito da cidade, mas fiquei somente dois dias,pois não suportei o calor do verão no sul. De Porto Alegre parti paraFlorianópolis, de ônibus. Amei a cidade. Conheci a Ilha de Santa Cata-rina, a praia da Joaquina, o bairro Jurerê Internacional e outros locaisfascinantes. Passei uma noite e um dia naquela cidade. Em seguida,segui para Foz do Iguaçu, Paraguai, Argentina, Rio de Janeiro, Vitóriae Fortaleza. Foi uma viagem bem eclética.

Primeira viagem de avião de Junior

Meu filho Junior sempre me acompanhou em quase todas asviagens que fiz a São Paulo, de ônibus e de carro. Um belo dia decidifazer-lhe uma surpresa. Falei que iríamos ao aeroporto ver os aviões.Era uma segunda-feira de carnaval, do dia 11 de fevereiro de ano 2002.Fui para a avenida Sete dar uma olhada na festa e me divertir um pou-co, antes de viajar. Quando faltava uma hora para o embarque, marca-do para 21 horas, saí correndo feito louco para não perder o vôo.

Ao chegar ao balcão da empresa, fui informado que o check-intinha sido encerrado e que os passageiros já estavam embarcados. Ale-guei que estava com uma criança e a atendente da Varig ligou para aaeronave e providenciou o embarque. Na verdade, os passageiros ain-

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da aguardavam no salão. Junior nem tinha tomado banho ainda e euvestia uma bermuda, camiseta e sandálias havaianas. Minha roupa e aroupa de Junior estavam dentro de um saco plástico do supermercadoBompreço.

Como eu não sabia que os passageiros do nosso vôo ainda aguar-davam no salão, entrei apressado pelo túnel de embarque e, no meiodo caminho, fui informado por um funcionário para retornar ao salãoe aguardar o chamado. Aproveitei então para ir ao sanitário trocar deroupa. O saco onde eu guardava as roupas se rompera e eu precisavaprovidenciar um novo saco para guardar meus pertences. A soluçãofoi pegar um saco de lixo do sanitário. Mas, após todos os contratem-pos, embarcamos e fizemos uma viagem tranqüila. Junior ficou mara-vilhado e muito contente. Não parava de repetir: “Pai, o senhor nãodisse que viríamos ver aviões?”, ao que eu respondia que era melhorestar dentro de um avião do que apenas vê-los por uma janela de vi-dro. E ele concordava exultante, mas não parava de perguntar quandoiríamos ver os aviões.

Chegamos ao aeroporto de Guarulhos no horário previsto, ouseja, às 23 horas. Pegamos um ônibus executivo para o Centro da ci-dade e, ao chegarmos lá, o serviço de metrô já tinha encerrado o expe-diente. Tivemos de pegar vários ônibus, indo de um terminal paraoutro, até chegarmos à casa de meu irmão, no Jardim Ângela, às 5horas da madrugada. Evitava deixar Junior dormir, para que não setornasse mais um fardo a carregar, já que eu estava levando nossasmalas, além do saco de lixo cheio de roupas.

Viagem à Venezuela em 2002

Ganhei uma passagem de milhagem pela TAM e fui até Manaus.De lá, peguei um ônibus que atravessou toda a floresta amazônica pelaBR-174 até a cidade de Pacaraíma/RR. Ali, tomei um outro ônibus efui até Santa Elena de Guairén, na Venezuela. Foi uma viagem mara-vilhosa, onde pude contemplar as lindas paisagens naturais, índios eanimais exóticos. Foram apenas três dias nesse roteiro. Retornei logoa Salvador, partindo em direção a Jequié, para passar os festejos juni-nos com meus irmãos.

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Acidente com o Santana

Resolvi trocar meu Gol por um Santana. Viajei para Jequiénum final de semana, em setembro de 2002, e, na volta para Salva-dor, quase me envolvi num acidente fatal, próximo à região da ci-dade de Santo Estêvão. Ao perceber que vinha um caminhão nacontramão, freei o carro, que derrapou para a pista oposta, indoem direção a outro caminhão. Tentei desviar; o Santana derrapouna pista e “voou” em direção ao matagal que havia ao lado. O carrocorreu alguns metros por dentro do mato e parou num barranco.Respirei fundo, toquei em mim para ver se ainda estava vivo e saído carro contente e sorrindo, junto com Fernando Bingre, um ami-go que me acompanhava na viagem. O susto foi muito grande, masme ajudou a aprender a valorizar mais a vida.

Viagem a Cuba

Antes de ir a Cuba, procurei informações sobre o país na Inter-net, comprei um guia e me informei sobre visto de entrada, hospeda-gem, moeda corrente, clima, meios de transporte e tudo que um turis-ta precisa saber para visitar um país desconhecido. Devidamente in-formado, liguei para algumas agências de turismo e enviei e-mails paraoutras, solicitando um orçamento de passagem aérea e hospedagem.Várias agências responderam. Fiquei sabendo que os vôos partiam deSão Paulo, pela Cubana de Aviación ou pela Copair. Comparei os pre-ços e escolhi os três mais baratos. Liguei então para as agências solici-tando que refizessem os orçamentos, desta vez sem a hospedagem.Todas me prometeram enviar as informações, que até hoje não chega-ram, infelizmente. Fui pessoalmente a uma terceira agência, onde aatendente me aterrorizou dizendo que não valia a pena ir a Cuba. Ale-gou que era um local muito pobre e feio e que era uma viagem muitocara. Disse, inclusive, que um amigo dela que esteve em Cuba passarapor situações terríveis e criticou a comida escassa, isso, aquilo e muitomais. Fiquei estarrecido com o relato, principalmente porque o obje-tivo de uma agência de turismo é “convencer o cliente a viajar”, e nãoo contrário.

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Resolvi, então, montar meu pacote por conta própria. Ligueidiretamente para a empresa de aviação e reservei minha passagem. Aprópria companhia aérea se encarrega de enviar, via sedex, a passa-gem e o “cartão de turista”, que é o visto cubano. Tudo foi resolvidoem apenas um dia. Informei-me sobre hospedagem alternativa e en-contrei as “casas de aluguel”, que são casas de cubanos que podem seralugadas a turistas, mediante uma autorização prévia do governo fe-deral do país. Uma dessas casas era a de Miriam Crespo, em Havana,onde fiquei hospedado. Liguei para a proprietária e fiz a reserva, pa-gando-lhe as diárias assim que cheguei à sua residência. O custo foimuito mais barato do que o informado nos orçamentos das agênciasde turismo.

No dia 5 de outubro de 2002, embarquei em São Paulo rumo aHavana. Infelizmente, houve um problema com o radar do avião, oque obrigou os passageiros a desembarcarem e ficarem hospedadosnum hotel por quase dois dias, tudo pago pela companhia aérea deCuba. Somente no domingo à noite conseguimos embarcar. Não dire-tamente para Cuba, mas com destino a Buenos Ayres, pela AerolíneasArgentinas. De lá, pegamos um avião da Cubana de Aviación para San-tiago do Chile e, finalmente, do Chile para Havana. Cheguei a Havanaao meio-dia de uma segunda-feira, dia 7 de outubro.

Transcrevo abaixo, algumas impressões sobre a viagem, escri-tas no dia 8 de outubro de 2002:

“Estou na varanda da casa que aluguei, olhando omovimento da rua. Devem ser oito horas da manhã. Pou-cas pessoas passam por aqui, que é um bairro residencial.Acho que, a esta hora, todos já foram para o trabalho.

Ainda não conheci o centro e a parte nova da cida-de. Tudo que conheci até agora foi o que observei duranteo percurso do carro que me trouxe do aeroporto, que ficaa mais ou menos 20 km daqui, além do que pude ver nacaminhada que fiz ontem, de uns cinco quilômetros. A ci-dade dá uma nítida impressão de simplicidade, extremasimplicidade, tudo muito parecido com o subúrbio de Sal-vador, especialmente com os bairros de Vista Alegre, Pa-

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ripe, Alto de Coutos e Avenida Suburbana, no que diz res-peito à arquitetura, ao traçado das ruas, à falta de conser-vação e manutenção das habitações e das praças e ruasem geral. A diferença é que, no bairro onde me hospedei,as ruas têm um estilo americano, onde as casas, afastadasumas das outras, têm jardim e cerca muito baixa. Umaparte da calçada é gramada e outra possui uma trilha ci-mentada. A maioria das casas é térrea. E os poucos edifí-cios que vi são bem antigos e muito parecidos com os pré-dios da Ilha de São João (subúrbio de Salvador, próximoa São Tomé de Paripe). A diferença primordial é que osprédios de Havana não têm grades na frente nem portei-ros - nem mesmo eletrônicos -, porque não há violênciaou perigo de roubo ou assalto. Fiquei impressionado comeste fato, que se contrapõe à vida em Salvador, onde vive-mos presos atrás de grades, tal qual animais enjaulados.

Hoje, pelo menos até agora, a temperatura estáamena, ao contrário da temperatura de ontem que, de tãoquente, tirou-me o ânimo de continuar a caminhar e co-nhecer melhor o bairro. Pretendo passar o dia inteiro forade casa, tirando fotos e visitando lugares.

Aqui há três canais de televisão e a programação ébem diferente do que se vê no Brasil, inclusive não há pro-pagandas comerciais. As emissoras exibem quase todo otempo, programas educativos, aulas de idiomas, de His-tória, Geografia e assuntos relacionados a Cuba. Há umnoticiário - o “Noticero” - que é transmitido em cadeiapelos três canais durante a noite. O restante da progra-mação é composto de shows de músicos cubanos, balé etudo o que se refere à cultura e à revolução cubana. À noi-te, são apresentadas minisséries brasileiras duas vezes porsemana (chamadas de novelas pelos locais). São interca-ladas com novelas cubanas. Atualmente estão exibindoChiquinha Gonzaga e Aquarela do Brasil, minissériesproduzidas pela Rede Globo. Notícias esportivas tambémfazem parte da programação, mas os jogos ao vivo nuncasão transmitidos, nem mesmo os da Copa Mundial. Não

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há satélites nem antenas parabólicas em Cuba, para evi-tar a entrada de imagens e interferências americanas nasTVs e rádios locais.

9 de Outubro de 2002, 11:35h

Estou em casa. Ontem fui à La Habana. Muito doque vi deixou-me chocado, pasmo... Todas as informaçõese fotos que antes coletara sobre Cuba estavam muito lon-ge da verdadeira realidade cubana, que eu desconheciatotalmente. Observando in loco, notei que a dureza da vidado povo e a pobreza do país são muito maiores do que sepossa imaginar. Tudo, absolutamente tudo, é antiquado eultrapassado, desde os carros até os edifícios. As coisassão velhas e mal conservadas. Em contraste com toda apobreza e decadência, porém, há alguns prédios em im-pecável estado de conservação, principalmente aquelesonde funcionam as embaixadas. Também vi carros impor-tados de última geração e estranhei. Fui informado de-pois que esses carros pertenciam a técnicos estrangeirosque trabalhavam no país. Dificilmente um cubano comumpoderia comprar um carro daqueles, devido ao altíssimopreço. Cabe assinalar aqui que, de fato, há carros particu-lares, mas a maioria deles pertence ao estado.

Tomei uma bebida cubana, muito tradicional e po-pular, o “Mojito” (pronuncia-se “morrito”). É uma espé-cie de caipirinha: rum, limão, açúcar, gelo, água mineralcom gás e folhas de hortelã fina. Toma-se com um canu-do. A bebida é ótima, mas seu preço é salgado: OITO DÓ-LARES o copo!

Fui comer em um restaurante chinês, mais pareci-do com aquelas espeluncas da Baixa do Sapateiro (Salva-dor/BA) do que propriamente com um restaurante. Comiuma bisteca, um pouco de salada de pepino, uma colherde arroz e tomei uma cerveja em lata. Preço: QUINZEDÓLARES.

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Pelas ruas do bairro onde fiquei todos os dias pas-sava um homem vendendo pão, iogurte de goiaba e leitede soja. Este homem é o “mensageiro”. Cada família temum limite máximo de pães para comprar, acho que UMpão por pessoa. Tudo que se compra deve ser anotado na“libreta”, uma espécie de caderneta da família. Não po-dem ultrapassar o limite preestabelecido, para que todasas famílias possam comprar, já que a comida é escassa nopaís.

Em uma de minhas caminhadas pelo centro de Ha-vana, tomei uma água de coco que me custou DOIS DÓ-LARES. O coco era pequeno, feio e murcho, do tipo queeu jamais compraria se estivesse no Brasil. Tampouco umvendedor teria coragem de colocar aquele fruto à venda.

Não comi carne bovina nem vi aonde poderia com-prar. Fui informado de que não deveria comprar carnenas ruas (não vi ninguém vendendo), pois o cubano queme vendesse a carne poderia ser preso. É proibido o co-mércio de carne, exceto nas “carnicerías” (açougues). Onativo que for pego pela polícia ou for denunciado porvender carne é preso. No entanto, nada acontece ao turis-ta que a compra. As pessoas vigiam umas às outras e qual-quer deslize é logo denunciado. Em cada quadra dos bair-ros há um “Mayor” (responsável), a quem todos os mora-dores devem dar informações de tudo o que ocorre na vi-zinhança. Eles se reúnem uma vez por semana. A dona dacasa onde o turista se hospeda é obrigada a informar nome,endereço e carteira de identidade de todas as pessoas quevisitam o turista, sob pena de sanção por parte do Estado,que poderá ser de uma simples advertência e cancelamen-to da autorização para alugar a casa e até penas mais pe-sadas. Não obtive informações sobre em que consistiriamessas penas.

Não há muitas lojas ou vendas/armazéns, nem su-permercados. Há pequenas lojinhas onde se vende de co-mida a roupa, tudo muito caro e da pior qualidade. Emuma das “tiendas” (lojas) mais completas que entrei, en-

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contrei somente coxa de frango, fígado e moela de gali-nha, tudo de origem brasileira. O arroz era todo quebra-dinho e custava OITO DÓLARES o quilo, mas mesmo as-sim era muito mais barato que comer em restaurantes.

Os táxis são do estado; ônibus urbanos são raros.Os “camelos” - espécie de carreta imensa adaptada paratransportar pessoas -, os trens, os automóveis, tudo per-tence ao estado. Até mesmo as motos-táxi, umas pareci-das com laranjas e outras parecidas com aquelas motosamericanas, com um side-car, pertencem ao estado. Háainda as bicicletas-táxi, que cobram mais barato. Estas eunão sei se pertencem ao estado, mas sei que pagam taxasde licença para rodar como “táxi”. Ninguém usa cintos desegurança nos carros. A maioria dos automóveis é muitoantiga, das décadas de 40 e 50. Todos muito velhos, po-rém correm bastante. Por dentro, são destruídos e des-providos de peças, já que ninguém consegue encontrá-laspara reposição. O cheiro de gasolina, muito forte dentrodesses carros, fazia com que eu me sentisse mal. A maio-ria desses veículos é particular e seus proprietários os uti-lizam como táxi, mediante uma licença do Estado. Outrostransportam pessoas clandestinamente, correndo o riscode serem pegos pela polícia e serem presos.

Os telefones públicos são raros. Para fazer uma li-gação internacional é necessário comprar um cartão quecusta DEZ DÓLARES, ligar para a telefonista e solicitar achamada, que não dura mais de cinco minutos. Ligar deuma residência é quase impossível, a menos que se co-nheça, e muito bem, o dono da casa, pois os cubanos têmmedo de perder suas linhas telefônicas, já que as chama-das telefônicas podem ser gravadas pelo estado, por mo-tivo de segurança.

Fui informado sobre a cesta básica mensal que cadafamília de quatro pessoas tem direito a comprar, a preçosbaixíssimos, para garantir que TODOS possam comer, pelomenos, o necessário. Os que têm dinheiro podem com-prar de particulares, a preços maiores.

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1 kg de biscoito

20 l de iogurte

20 l de leite

1 kg de sal

12 kg de arroz

2,5 kg de feijão

6 kg de açúcar branco

4 kg de açúcar preto

5 caixas de cigarros (somente para maiores de 42anos de idade)

1 l de óleo

2 pacotes de café

4 sabonetes (que devem durar até três meses)

1 creme dental

20 kg de gás de cozinha, a cada 20 dias

4 kg de frango

6 kg de peixe

1 kg de salsicha

1 kg de carne bovina

4 dúzias de ovos

frutas diversas

Mais informações sobre Cuba:

1. El Malecon – uma avenida extensa, que medemais ou menos uns oito quilômetros, que ligaHabana Vieja (Centro Histórico) a Vedado(parte mais moderna), repleta de casarões an-tigos - muitos precisando de reforma urgen-te. Boa parte dos prédios antigos está sendo

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restaurada. As construções mais antigas e asruas transversais próximas ao centro de Ha-bana Vieja lembram muito as casas e prédiosdo Pelourinho, antes da reforma, e a atual rua28 de setembro, ambos em Salvador/BA. Nãose pode comentar nada a respeito de políticaou sobre o governo. As pessoas se recusam afalar, com medo de que alguém as denuncie.

2. As emissoras de rádio funcionam em ondasmédias e curtas, com uma transmissão muitoprecária. A programação é baseada em músi-cas cubanas, política, notícias nacionais e,uma ou outra vez, colocam uma música es-trangeira, principalmente brasileira, comoRoberto Carlos e Alexandre Pires, em espa-nhol.

3. A frota de aviões da empresa cubana é for-mada por aeronaves antigas e algumas comproblemas no sistema de refrigeração.

4. Em minhas andanças, vi algumas embarca-ções no porto, que mais parecia um cemitériode navios do que verdadeiramente um porto.

5. A última moda entre os cubanos é a camiseta“furadinha”, de cores berrantes, tipo azul,verde, laranja, rosa e vermelho.

6. Acesso à Internet é uma raridade, se não to-talmente inexistente. Os cubanos podem aces-sar “correio eletrônico”, o que não pode serchamado de Internet, como é hábito no restodo mundo, uma vez que não há acesso a sitesestrangeiros e, talvez, nem mesmo a sites cu-banos. Somente estrangeiros podem acessara Internet, a preços desestimulantes.”

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Viagem para São Paulo com Gal e Eliana

No ano de 2003, viajei de ônibus, mais uma vez, para São Paulo.Dessa vez, levei meu irmão Gal, sua esposa Eliana, minha sobrinhaPaulinha e meu filho Junior. Na viagem de volta, uma cena me cha-mou a atenção. Na verdade, eu já tinha visto esta cena várias vezes,nas idas e vindas entre Salvador e Jequié. Mas eu queria mostrá-la aJunior e Paulinha. Queria que vissem aquelas pessoas sentadas à bei-ra da rodovia, com as mãos estendidas. Paulinha perguntou o que elasestavam fazendo naquela posição. Falei que estavam pedindo esmo-las. E ela, surpresa, me perguntou o que significava “esmolas”... Lan-cei um sorriso de cumplicidade a meu irmão e minha cunhada, e ex-pliquei a Paulinha do que se tratava. Afinal, tive uma boa experiênciana ação de pedir esmolas.

Natal e Ano Novo em 2003/2004

Devido a uma série de problemas particulares, conflitos, con-tradições e pirações diversas, além de um assalto a mão armada quesofri, o final de ano de 2003 para 2004 não foi dos melhores, apesarde eu ter passado as festas de Natal e Ano Novo rodeado de familiaresem São Paulo. Ao retornar a Salvador, fui forçado pelas circunstânciasa pedir uma licença não-remunerada de meu trabalho e a trancar meucurso de Turismo na Faculdade São Salvador.

Passei oito meses enclausurado em mim mesmo, tentando sairde uma profunda depressão, do poço escuro... Recorri até a ajuda pro-fissional. Durante esse período, não produzi absolutamente nada, nemsequer acrescentei uma vírgula a esse livro, já em fase final. Pensei,repensei, caminhei mentalmente mil vezes o Caminho de Santiago deCompostela, peregrinei pelas profundezas de minha alma até que, fi-nalmente, após várias injeções de doses de misericórdia, e tambémauxiliado pela terapia TEATRO, com André Mustafá e Marília Galvãono comando, fui sendo, aos poucos, trazido de volta à vida. E aqui es-tou, inteiro, completo, repleto de milhões de idéias positivas e rejuve-nescedoras, pronto para compartilhar com quem quer que venha aomeu encontro.

Antes de sair desse estado de torpor, praticamente vegetei. Du-rante muitos dias eu acordava pela manhã em pânico, triste e depri-

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mido, apesar de estar tomando remédios fortíssimos para combater adoença psicológica. Todas as manhãs eu ouvia músicas de Enya, vindode longe, como se o vento as estivesse trazendo para me perturbar.Aquelas músicas eram as mesmas que eu ouvia ao namorar, ao buscarme concentrar em meus trabalhos mentais e também quando eu que-ria ficar em paz. Mas, nas circunstâncias em que eu as estava ouvindo,era muito contraditório. Elas serviam para me deixar cada vez maisenclausurado e com medo de sair de casa.

Nesses momentos de solidão, eu pensava em morrer, em fugirda cidade, em fugir das pessoas e de mim mesmo. Todos os meus com-promissos sociais eu cancelava sem motivo justo, ou simplesmentenão comparecia a encontros com amigos e parentes, para não conver-sar com ninguém.

Busquei, além de ajuda psicológica e psiquiátrica, ajuda espiri-tual. Freqüentei o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairro daBoa Viagem, em Salvador, por várias semanas. Ali, eu conseguia umpouco de paz espiritual, mas, quando retornava para casa, o mundocaía de novo em minha cabeça. Fui, também, à Federação Espírita, noPelourinho, tomar “passes”, que me acalmavam enquanto eu estavana casa espírita.

Foram muitas noites de fuga, muita desilusão e falta de interes-se de voltar à realidade... Então eu decidi enfrentar o problema de fren-te. Parei de tomar os remédios controlados, comecei a sair de casa,mesmo apavorado. Andei a pé por muitas ruas e praias ditas perigo-sas, evitando olhar para trás. Meu medo era que alguém estivesse meseguindo para me matar ou me causar um mal, mas eu enfrentavaesse medo para que ele não me controlasse mais ainda.

Aos poucos fui tomando confiança em mim, acreditando que eupoderia sobreviver àquele pesadelo. Paulatinamente, eu percebia quea cada dia melhorava um pouco mais... Até no teatro eu comecei asentir que me concentrava mais e mais nos textos e na interpretação.Após longos oito meses de terapia convencional e não-convencional,me achei apto a voltar a trabalhar e a levar adiante meus projetos devida, que até então estavam estacionados.

Graças a Deus consegui me libertar do medo e da depressão, àcusta de muito esforço e de muita ajuda espiritual. Eu orei muito du-

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rante várias semanas, buscando fortalecer o meu ego e minha alma,que tinha passado por uma experiência muito difícil. Finalmente en-trei em estado de consciência positiva e prossegui minha jornada atéhoje. Continuo em busca, cada vez mais, de um equilíbrio emocional eespiritual.

Natal e Ano Novo em 2004/2005

Praticamente todos os anos eu viajava para São Paulo. E, nosfinais de ano, sempre levando minha mãe e mais algum irmão ou pa-rente que ainda não tivessem conhecido a maior cidade do Brasil. Em2004, devido aos ensaios de uma peça teatral que estrearia em brevenas casas de espetáculo de Salvador, preferi não viajar. E foi um Nataldiferente. Passei na casa de Dona Célia, em Monte Gordo.

Conheço dona Célia e sua família há mais de dez anos. Acabeipor adotá-la como mãe e seus filhos como irmãos. Mas, antes mesmode me sentir irmão de seus filhos, estes já me consideravam como tal.E, por incrível que pareça, foi o primeiro Natal em que troquei presen-tes, como se estivesse no seio da minha verdadeira família, o que, ali-ás, nunca fizera antes com meus irmãos de sangue. À meia-noite emponto, estouramos champanhe, fizemos a ceia, trocamos presentes edesejamos uns aos outros muitas felicidades e saúde. Depois caímostodos na piscina, que estava com sua boca azul e aberta, esperandopara nos devorar naquela noite maravilhosa.

Foi um Natal espetacular, regado a sentimento, carinho, respei-to, amor, afeto e positividade. Os participantes da festa: eu, Dona Cé-lia e seus filhos Roque e Ivana, suas netinhas Estéfane e Ariana, e osamigos: Edmar Mascarenhas, Isabela, Vera, Everaldo, Edebaldo, Mei-re, Érika, Cris e o bebê Eriem, que vieram de Jacobina especialmentepara esta confraternização de final de ano.

Orientação Religiosa

Talvez não coubesse neste livro discorrer sobre “religião”, já queo que se ouve por aí é que “religião, futebol e política não se discute”.Mas tenho muito medo do que se esconde por trás de frases comoessas que se perpetuam através da existência humana e que acabamtravando ou atrasando o fluir do pensamento e sua evolução. Não me

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refiro aqui à minha orientação ou crença pessoal, mas a uma visãomais abrangente do assunto. Estou colocando apenas uma impressão,enquanto ser único e individual, que é, ao mesmo tempo, influenciá-vel e influenciador.

Nasci na religião católica, com direito a missas, catecismo, pri-meira comunhão, crisma e tudo mais, como a maioria dos brasileiros.Diz-se que todo aquele que não tem religião é católico, o que é bastan-te discutível, já que há “católicos” (os praticantes) e “católicos” (os nãopraticantes). Mas o mérito desta questão eu deixo para os doutores noassunto.

O que me compete dizer aqui é que eu e todos da minha família(tudo começou no Jardim do Éden, com meu pai e minha mãe) fomoscatólicos por muitos anos. Por força da necessidade de comer e beber– necessidades básicas do ser humano –, tivemos contato com o Espi-ritismo Kardecista, atraídos principalmente pelas cestas básicas dis-tribuídas aos freqüentadores do Centro Espírita Bezerra de Menezes.Devido às circunstâncias da vida, problemas de saúde, financeiros eoutros, minha mãe acabou voltando aos terreiros de Candomblé, osquais já havia freqüentado em sua juventude, segundo seus relatos.Mesclaram-se três religiões a partir de então.

Na minha adolescência, em virtude dos conflitos existenciais,acabei me perdendo em meio a tantas definições sobre o que era certoe o que era errado. Busquei refúgio na Igreja Batista Monte Horebe eme “converti”, amedrontado por aqueles filmes que mostravam o des-tino dos “infiéis”, que eram queimados no mármore do inferno. Bíbliana mão, cantor cristão, harpa, livrinho de hinos e idas diárias à igreja.Levava comigo a família inteira e os vizinhos mais próximos. Depois“acordei” para outros horizontes e saí da igreja, arrastando todos osmeus SEGUIDORES de volta.

Transcorridos oito ou nove anos desde que passei a morar emSalvador, conheci pessoas que professavam o Candomblé, que me con-vidaram para assistir a rituais e participar de festas. E fui. Conhecivárias “roças”, e tinha sempre sensações estranhas em quase todas asfestas das quais participava: tremores, calafrios, tonturas e arrepios.Fiquei receoso do que poderia resultar essa experiência e preferi darum tempo, fora das atividades, para pensar no assunto.

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Por ocasião deste tema, gostaria de deixar registrado que minhamãe era um pouco bruxa. Conhecia e fazia uso com sucesso de inúme-ras plantas medicinais, pressentia o que estava por vir, tinha visões deacontecimentos futuros, que posteriormente eram sempre comprova-dos. Isso sempre nos deixou um tanto perturbados, pois nos recusáva-mos a acreditar que ela pudesse possuir tais poderes. Mas os fatossempre se confirmavam. Tinha planos de escrever um livro, relatandotodo o seu conhecimento a respeito das plantas e de suas proprieda-des medicinais. Fui adiando, adiando, e hoje me arrependo de não tê-lo escrito.

Para concluir a questão religiosa, minha mãe morreu espiritua-lista e foi velada numa igreja batista. Minha irmã Valquíria se conver-teu ao protestantismo e hoje freqüenta uma igreja batista. Minha irmãIvonete é beata de carteirinha, freqüenta e quase mora na igreja cató-lica. Está mesmo se tornando uma freira. Os demais irmãos freqüen-tam qualquer igreja que esteja aberta e na passagem dos seus cami-nhos. E eu freqüento o Centro Espírita Leopoldo Machado, no bairroda Boa Viagem, em Salvador, e a Federação Espírita da Bahia, no Lar-go São Francisco, no Pelourinho. Mas, se for convidado para assistir auma missa, irei; para participar de um culto evangélico, participarei;para ir a uma festa de candomblé, estarei lá, sempre com a maior boavontade.

Atualmente

Trabalho ainda no Tribunal Regional do Trabalho, em Salva-dor. Valquíria (Quira), minha irmã mais velha, mora há oito anos emJequié com seu novo marido, Nilson, com quem se casou recentemen-te. Em oito de novembro de 2004, Quira foi submetida a uma cirurgia.Quando criança teve complicações de saúde que a deixaram com se-qüelas sérias. Tinha de ficar amarrada na cama para não cair, pois sebatia o tempo todo. Depois do tratamento médico, ficou boa. Mas oque ela nem a família sabiam era que o tratamento não poderia tersido interrompido. Resultado: teve uma febre reumática e a bactériacausadora da doença se alojou na válvula mitral esquerda do coração.Com o passar dos anos, começou a se queixar freqüentemente de can-saço, falta de ar e outros distúrbios relacionados à respiração e circu-lação sangüínea. Em janeiro de 2004, Quira resolveu entrar numa aca-

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demia de ginástica e, no teste de avaliação física, desmaiou. Procurouum médico cardiologista especializado, que sugeriu uma valvuloplas-tia urgente.

Após vários exames nos hospitais de Salvador e uma espera deseis meses para que o INSS concluísse o processo de licitação interna-cional e compra do material a ser utilizado, finalmente conseguiumarcar sua cirurgia no Hospital Santa Isabel para o dia 20 de setem-bro de 2004, que foi adiada dois dias antes, sem previsão de nova datapara sua realização. Enquanto a intervenção não acontecia, Valquíriapassava momentos difíceis, com apenas 10% da capacidade da válvulamitral esquerda em funcionamento.

Em decorrência de várias complicações, foi atendida mais detrês vezes na emergência cardiológica do Hospital Santa Isabel, quesempre exigia um cheque de R$ 2.000,00 como depósito antecipadopara realizar o atendimento médico. E isso depois de conseguirmosfurar a barreira dos seguranças na entrada da emergência, que só sepreocupavam em perguntar, antes de qualquer coisa: “qual é o convê-nio médico?”. Por meio de informações diversas, descobrimos que oHospital das Clínicas (UFBA) também realizava esse tipo de cirurgia.E assim conseguimos marcar uma outra data, 28 de outubro de 2004,que supúnhamos ser definitiva. Porém, fomos surpreendidos, na vés-pera da cirurgia, com a notícia de que ela teria de ser adiada, sem pre-visão de nova data, porque o INSS não tinha liberado o material ne-cessário ao procedimento, que custava mais de R$ 40.000,00.

Pesquisando na Internet, descobrimos o Instituto do Coraçãode Cachoeiro do Itapemirim/ES, para onde encaminhei Quira, queviajou acompanhada de Nete, nossa irmã, para se submeter à cirurgia.Viajaram no dia 4 de novembro. Quira ficou hospedada em uma casade apoio mantida pela comunidade cachoeirense e, no dia 8 de no-vembro de 2004, foi internada e submetida à intervenção cirúrgica,que, graças a Deus, foi um sucesso total. Em questão de dias, o proble-ma, que esperou durante anos por uma solução, chegou ao fim.

Valdecy (China) mora hoje em Vitória da Conquista com o ma-rido Roberto e o filho Roberto Junior. Foram oito longos anos de es-pera por uma transferência da Escola Agrotécnica Federal de SantaInês/Ba, onde seu marido trabalhava, para o Centro Federal de Edu-cação Tecnológica de Vitória da Conquista/BA.

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Valmir (Mi) mora em São Paulo, com a esposa Célia e os filhosRamon e Amanda. Também em São Paulo moram Valdir (Dida), com aesposa Raimunda e a filha Jéssica, e Vitório (Tó), com a esposa Rejane eos filhos Vítor e Tiago. O primeiro trabalha como porteiro de um grandecondomínio e os demais como chapistas em oficinas mecânicas.

Vivaldo (Gal) mora em Jequié, com a esposa Eliana e a filhaPaula, e trabalha como chapista em uma oficina mecânica. Nete, caçu-la e solteira, está fazendo faculdade de Pedagogia em Jequié.

Creio que somos todos vencedores, sobretudo porque não fugi-mos à luta. De tudo, ficaram lições que disponibilizo aqui como umaespécie de roteiro.

Roteiro para quem quer vencer na vida:

1. Traçar um objetivo real e plausível, para não se frus-trar, caso não consiga atingi-lo.

2. Fazer um plano de metas a serem atingidas, a cadadia ou a cada semana.

3. Caso não consiga concluir o plano diário ou sema-nal, verificar o que não deu certo para tentar nova-mente ou mudar de plano.

4. Ter muita paciência, pois o dia-a-dia nem sempre éestimulante.

5. Ter muita fé naquilo que se propuser a fazer e per-sistir sempre.

6. Dividir sonhos e objetivos somente com aqueles quepossam lhe ajudar a concretizá-los ou, ao menos,incentivar-lhe e dar boas dicas.

7. Nunca se lamentar de uma situação difícil, nem usaros pontos negativos para desistir ou diminuir a luta.

8. Falar muito pouco sobre os planos estratégicos paraa sua caminhada.

9. Sempre dizer “não” a vendedores e promotores devendas.

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10. Evitar gastos desnecessários com festas, roupas ediversões.

11. Estudar e planejar, mesmo nos dias em que nãohouver o que comer, e concluir a tarefa do dia a qual-quer custo.

12. Não passar para a etapa seguinte sem antes con-cluir a atual.

13. Contabilizar erros, acertos, gastos monetários etc.,a fim de fazer uma análise crítica dos dados obti-dos.

14. Adotar sempre uma atitude positiva diante da vidae deixar que esta imagem transpareça ao olhar dosoutros.

15. Não desistir, nunca.

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CONCLUSÃO

O objetivo principal da existência humana é a evolução. Masmuitas vezes evolução é confundida com conquista de bens materiaise conforto físico. Acredito, no entanto, que seja um pouco mais queisso, e que o maior patrimônio que se pode acumular com a experiên-cia de vida na Terra é o patrimônio espiritual.

Antes de compreender que a vida é curta e efêmera, protestei eme revoltei. Talvez por isso tenha sofrido alguns revezes relacionadosà saúde, ao amor, à família e a outros aspectos da vida.

Sempre lutando muito – e honestamente, diga-se de passagem–, consegui superar a barreira da mendicância e passei de pedinte aesmoler. Mas a brutalidade inata, ou adquirida, ainda permaneceu emminhas atitudes (e continua até hoje). Isso ocasionou (e ainda ocasio-na) muitos sofrimentos, mas, atualmente, já não com a mesma inten-sidade dos tempos passados.

Fui aprendendo, com a experiência, que doar não era o bastan-te; o ato da doação deve ser precedido por uma verdadeira vontade dedoar. Tentei, e tento ainda, praticar a doação com desprendimento,sem culpa, sem querer barganhar com os céus. E, com isso, tenho per-cebido que minha vida vem se transformando para melhor, à medidaque avanço nessa prática. Essa doação não deve ser necessariamentecompreendida com o ato de retirar algo físico de meu patrimônio paradá-lo a outrem. Deve ser compreendida, sobretudo, como o ato de doarsabedoria, aconselhamento, atenção, tempo, um olhar de cumplicida-de, um ombro amigo...

Após esse estágio de quarenta anos de vida, tornei-me uma pes-soa mais humana, mais verdadeira, mais tolerante e mais polida, ape-

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sar de ainda estar muito longe do ideal. Mas já é um bom começo.Quem sabe na próxima encarnação a evolução aconteça mais rapida-mente...

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HISTÓRIAS BIZARRAS

Jequié/Ba

Mordida no Braçode Dida

Uma vez estava com ele, recém-nascido, no colo, andando pelosarredores da casa, mordendo-lhe a camisa recém-trocada por minhamãe. E eis que meu dente pegou no braço do menino, que começou agritar desesperado. Minha mãe veio pra me bater, mas, como não sa-bia o que havia ocorrido ao certo, desistiu. Nem percebeu a marca domeu dente no braço dele...

Choque elétrico

Uma vez estávamos eu e minha mãe pedindo esmola nas ruas.Ela entrou numa lanchonete, onde havia um balcão de vidro comuma lâmpada para iluminar as mercadorias. A lâmpada ficava naparte externa do balcão e, ao lado dela, havia um bocal sem lâmpa-da, no qual minha curiosidade infantil levou-me a enfiar o dedo.Tomei um choque elétrico brutal, que me fez cair ao chão e chorarmuito. O pessoal da lanchonete me socorreu. Passaram manteigaem meu dedo e me deram sorvete para acalmar. A lanchonete ain-da fica no Maringá, perto de um posto de gasolina, guardando mi-nhas histórias de menino.

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Pegador de Meninoe Tirador de Sangue

Uma das pérolas do folclore popular, alimentada pela ignorân-cia das pessoas, era a lenda dos “pegadores de menino” ou “tiradoresde sangue”, que supostamente andavam pelas ruas dos bairros pobrestentando atrair crianças com balas e doces, para depois seqüestrá-lase tirar seu sangue. Segundo os mais velhos, havia uma “carneira” nocemitério da cidade, que sangrava o tempo todo, e o sangue tirado dascrianças seria usado para lavar essa carneira, numa espécie de ritualpara purificar pecados e maldades do morto, que seria um bruxo oualgo que o valha. Eu ouvia essas histórias tanto em Jequié quanto nafazenda onde morei. Dizia o povo que esses malfeitores colocavam ascrianças em sacos grandes e as levavam para bem longe. Este argu-mento era usado, principalmente, para amedrontar os meninos, de-sestimulando-lhes a vontade de sair de casa. Na fazenda onde vivi dosmeus sete aos doze anos, cansei de ouvir essas histórias, e só depois demuitos anos consegui estabelecer um paralelo entre o folclore e a rea-lidade. Os homens da SUCAM - atual Fundação Nacional de Saúde,empresa governamental que realiza exames de sangue e também in-vestiga se há focos de dengue nas residências – encaixavam-se perfei-tamente nas características dos “pegadores de menino” e dos “tirado-res de sangue”. Por esta razão, eram muitas vezes mal compreendidospela população.

Lobisomem

Tínhamos muito medo de lobisomem, quando eu era criança etoda noite aparecia alguém unhando a porta e a janela da casa deAmanda, onde morávamos. Minha mãe dizia que era “ele”, querendopegar crianças sapecas... Eu ficava apavorado, acreditando ser a maispura verdade. A lenda do lobisomem é muito comum nas cidades dointerior.

Meu anel preferido

Junto à casa de Amanda, onde morávamos, havia a casa da Anade Antônio Cego. Eu e meus irmãos costumávamos brincar por lá com

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os filhos dela. Certa vez, apareceram na casa umas moças que toma-ram meu anel. Era um anel bem simples, sem valor algum. Mas erameu, e eu o tinha no dedo há muito tempo. Porém, a forma com queme roubaram o anel, forçando-me a tirá-lo do dedo, marcou-me parasempre. E jamais me esquecerei desta mágoa e deste dia.

Achei um dinheiro

Quando tinha meus doze anos, costumava ir à feira livre commeu pai. Num belo dia de sorte, na avenida Franz Gedeon, encontreiuma cédula de dez cruzeiros. Estava molhada, estirada na calçada. Eupeguei a cédula e mostrei a meu pai, que a guardou com muito cuida-do no bolso direito, para que não fosse destruída pelos movimentosda perna da calça. Pelo tanto de compras que ele fez com aquele di-nheiro, a nota devia valer bastante.

Carrinho de rolimã

Todos os garotos de minha idade, ou mais velhos, possuíam umcarrinho de rolimã. Era uma tábua com duas rodinhas atrás e uma nafrente, onde cada um se sentava e era empurrado por alguém nas cal-çadas ou no asfalto. Muitos acidentes aconteciam quando algum me-nino caía ou quando o carrinho quebrava. Com rolamentos que acheinos lixos das oficinas mecânicas, construí meu carro de rolimã. Meusirmãos ficavam com muita raiva, e com razão. Obrigava-os sempre ame empurrar rua acima e rua abaixo no carrinho, mas, quando chega-va a minha vez de empurrá-los, eu sempre dava uma desculpa paraescapar daquele encargo.

Caminhada atéa Barragem

Nunca gostei muito de ficar em casa parado. Por isso, em certaocasião, chamei meus irmãos Mi, Tó e Dida para fazermos uma cami-nhada de Jequié até a Barragem de Pedras, situada a mais ou menosuns trinta quilômetros do centro da cidade. O sol estava escaldante e,

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no meio do caminho, a fome apertou. Sem muitas opções, fomos co-mendo tudo o que encontrávamos pela estrada, de casca de melanciaa laranja estragada. Na volta, ainda subimos no Morro do Totonho,onde ficam instaladas as torres de transmissão de TV e rádio da cida-de. Resultado: chegamos desidratados em casa e a maioria de nós tevefebre e vômitos.

Acidentes com Nete

Quando Nete - minha irmã mais nova - era criança, comeu fo-lhas de uma planta venenosa que minha mãe tinha dentro de casa. Eracocó, uma planta verde com pintas brancas espalhadas pelas folhas.Ela ficou espumando e foi levada ao hospital passando mal. Mas, gra-ças a Deus, o socorro foi rápido e eficiente e Nete sobreviveu a maisuma perigosa aventura infantil.

Mais uma aventura de Nete: quando tinha dois anos de idade,bebeu água sanitária Q-Boa. Não me lembro de maiores detalhes des-se outro incidente em que Nete se meteu. Só sei que ela passou muitomal e foi levada ao hospital regional para ser medicada. Ficou interna-da e depois foi liberada. Depois desse episódio, nós a apelidamos de“Q-boa”. Ela ficava muito chateada quando a chamávamos assim.

Roubo de doces

Lembro de uma vez que fui ao Supermercado Cardoso comprarum doce. Tinha dinheiro somente para um pacotinho. Abri um pacotee comi a metade, depois o joguei na prateleira e peguei outro pacoteinteiro. Fui direto ao caixa, todo desconfiado, mas, antes de pagar pelopacotinho de doce, o segurança do mercado apareceu com o outro queeu tinha furado e jogou em cima do guichê do caixa, para que eu pa-gasse. Como o dinheiro não era suficiente para dois pacotes, deixei osdois no mercado e fui em casa buscar mais para pagar e resgatar osdoces. Até hoje não voltei nem para pagar nem para receber o pacotede doce, mas aprendi a lição.

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A calça de Memésio

Memésio, meu padrinho, era gordo como uma baleia. Uma vez,ele deu algumas roupas usadas para que minha mãe cortasse e fizesseroupas para nós. Para se ter uma idéia do tamanho do homem, umacalça dele, somente, se transformou em três calças para mim e aindasobrou tecido.

Miguel, o filho de Odília

Havia um campinho de bola em frente à casa em que moráva-mos, onde os moleques sempre jogavam baba no final da tarde. Eu,perna de pau de carteirinha, só olhava. Um dia, Miguel, o filho de DonaOdília, chutou a bola com muita força em cima de mim. Reagi, dando-lhe uns bons tabefes e murros. Esta foi uma das raríssimas brigas emque me meti contra outros rapazes. Depois fizemos as pazes. Em ou-tra oportunidade, nós nos encontramos num jogo de futebol. Jogáva-mos em times diferentes, para sorte dele. Eu nunca conseguia passara bola para os jogadores do meu time, mesmo estando eles vestidoscom camisa igual. Sempre tive problemas de coordenação. Conclusão:meu time acabou perdendo e eu fui expulso porque, de uma forma oude outra, acabava ajudando o time adversário.

Caderninho de gastos

Durante muitos anos usei um caderninho onde anotava todasas minhas transações comerciais, ou seja, tudo o que envolvia gastos eganhos de dinheiro. Era uma forma de controlar meu orçamento. Naprática, não deixava de ser uma contabilidade rudimentar, pois, atra-vés desses lançamentos, tinha idéia do quanto possuía, do quanto po-deria gastar e com o quê. Um simples picolé que eu comprasse ficavaali registrado, para não me esquecer que, naquela semana, eu já tinhachupado um picolé e não deveria comprar outro, incorrendo assim em“gasto extra” com guloseimas. Foi um tempo muito difícil, mas apren-di a controlar minhas modestas finanças. Hoje já não há necessidadedessas anotações, tampouco possuo planilhas eletrônicas para acom-panhar minha vida financeira. A própria experiência de vida me deu

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bases para este controle, onde evito não me envolver em empreendi-mentos mirabolantes ou em compras de bens desnecessários, que pos-sam comprometer meu equilíbrio financeiro.

A cabra

Minha mãe ganhou uma cabrita de presente e levou para criarem casa cujo quintal não era murado. A pobre da cabrita tinha queviver amarrada a uma corda durante todo o tempo. Quando o sol esta-va muito quente, minha mãe colocava-a dentro de casa, fazendo omesmo também à noite, para que a cabra dormisse protegida dos la-drões que moravam no bairro Pau Ferro. Em fotos de família aindapodemos ver minha mãe sentada em sua cadeira de rodas com a cabrano colo.

Feira do Cardoso

Minha mãe pedia esmolas em frente ao Supermercado Cardoso,no Centro da cidade de Jequié. Todos os dias, um de nós a levava até aporta do supermercado. Isso fez com que ela passasse a conhecer odono do estabelecimento, que passou a doar-lhe uma cesta básica porsemana. Esta cesta de comida sustentou a família inteira por muitosanos.

Pinduca

Na época em que moramos no bairro Pau Ferro, por volta de1987, nosso gosto musical era muito influenciado pelo que ouvíamosna casa dos vizinhos. Assim, nós nos encantamos pelas músicas dePinduca, tocadas nas radiolas de quase todos os moradores do bairro.Até encomendei uma edição antiga do disco de vinil dele, numa em-presa que fazia regravações de sucessos antigos. A sede da empresaera em São Paulo e o disco foi enviado pelo correio. Foi uma festa.Ouvíamos esse disco todos os dias, repetidamente. E, nos finais desemana, colocávamos as músicas de Pinduca para tocar na radiola, naporta de casa, do lado de fora. Era uma radiola pequena, daquelas comuma tampa que, quando fechada, se transformava numa espécie de

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maletinha. Tão pequena que tínhamos de abri-la completamente paraque o disco pudesse tocar. Nesse bairro, onde somente moravam pes-soas muito pobres, o costume era colocar o som do lado de fora. As-sim, toda a vizinhança era obrigada a ouvir as músicas que estivessemtocando na casa de alguém.

Percevejos

Durante toda a nossa vida fomos perseguidos pelos percevejos.Somente quando passamos a morar em nossa primeira casa própria,no loteamento Itaygara, começamos a nos livrar dessa praga. Desdecriança convivi com os percevejos. Eles nos acompanhavam por todasas casas onde morávamos. Ou levávamos os nossos, ou encontráva-mos percevejos novos nas casas onde passávamos a habitar. Era umacoisa terrível. Eu tinha uma espécie de alergia a percevejos e quasenão conseguia dormir quando atacado por eles. Mais terrível aindaera o mau cheiro que deles exalava quando os espremíamos para matá-los. As casas onde morávamos sempre ficavam com as paredes pinta-das de sangue, pois os matávamos onde quer que estivessem. Mas,por mais que os matássemos, nunca conseguíamos nos livrar dessesinsetos horrorosos. Entranhavam pelas frestas das paredes e dos mó-veis, escondendo-se da claridade do dia. Só apareciam à noite, parainfernizar nossa vida e sugar nosso sangue. Nessa casa do Mandacaru,eles começaram a desaparecer. Havia na sala um sofá velho, que tinhasomente a carcaça de madeira e um colchão deformado que servia dealmofada. Esse sofá velho servia de cama para nós e para um cachorrochamado Rex, que criávamos. Todos os dias, minha mãe colocava essacarcaça ao sol para que os percevejos começassem a sair das frestas dosofá, pelo efeito do calor. Em seguida, ela jogava água fervente sobre osofá e matava centenas deles. Com o tempo, os percevejos foram fi-cando cada vez mais raros, até desaparecerem por completo de nossasvidas, após mais de 25 anos de perseguição.

O beliche que Paula construiu

Nesta casinha do bairro Mandacaru o espaço era exíguo e cadacentímetro muito importante. Como não havia onde colocar camas

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para todos, minha mãe acabou “construindo” um beliche com as ca-mas velhas que possuíamos. Amarrou com paus e arames uma camasobre outra e fez um beliche até o teto. Certa noite, Tó acordou gritan-do, desesperado, dizendo que tinha um olho nas telhas a lhe espreitar.Ele estava dormindo no último dos beliches, que ficava quase coladoao telhado. A luz da lua passava pelo buraco de uma das telhas, fazen-do-o imaginar que seu reflexo era um olho.

Clínica São Vicente

Uma ocasião, Nete, nossa irmã caçula, foi internada na ClínicaSão Vicente, com febre e diarréia. Minha mãe voltou para casa e reu-niu toda a família. Pegou lençóis, cobertores, sacolas de roupas e maisalguns apetrechos e levou-nos todos para lá. Chegando à clínica, en-tramos e nos acomodamos na enfermaria onde minha irmã estava in-ternada. Tomamos banho nos banheiros da clínica, jantamos, assisti-mos TV e depois nos acomodamos nas camas destinadas aos pacien-tes internados. A festa não durou muito. Quando as enfermeiras per-ceberam que havia somente uma pessoa doente e que as demais fazi-am parte da família, expulsou-nos de lá.

Penico de bosta

Meus irmãos contam uma cena muito cômica. Não tínhamossanitário em casa, até porque não havia esgotamento sanitário no re-cém-lançado bairro Itaygara, onde morávamos. Assim, cada moradorse virava como podia para satisfazer suas necessidades fisiológicas. Amaioria usava o matagal próximo à sua casa ou então enchia sacos debosta e jogava-os no mato - os chamados “aviões”. Vitório, um de meusirmãos, preferia cagar atrás do muro que fizemos para cercar a casa.Tínhamos um penico, que era usado durante toda a noite e despejadono mato na manhã seguinte. Só que todos se recusavam a descarregaro penico, alegando não terem feito uso do dito-cujo durante a noite.Sobrava para minha mãe, como sempre, que despejava o penico porcima do muro. Num belo dia, quando Vitório estava agachado atrás domuro, cagando compenetradamente, o penico foi despejado subita-mente em sua cabeça. Ele ficou furioso. Xingou feito louco e ainda

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teve que caminhar quase um quilômetro até o rio de Contas, para to-mar banho e tirar o fedor de bosta do corpo.

Escorpiões

Nossa casa foi a primeira a ser construída no bairro Itaygara eera cercada de mato por todos os lados, exceto na frente. E o lotea-mento era infestado de escorpiões. Tomávamos todas as precauçõespossíveis, mas não pudemos escapar da fatalidade: Quira, ainda grá-vida de Murilo, foi picada por um escorpião e levada às pressas para ohospital regional. Semanas mais tarde, minha mãe foi a vítima seguintedo inseto. Felizmente, o socorro foi rápido e eficiente, em ambas asoportunidades, o que ensejou recuperação rápida tanto de minha irmãquanto de minha mãe.

China em Salvador

China foi uma das pessoas da família que menos conviveu den-tro de casa com os irmãos, já que passava a maior parte de seu tempotrabalhando em casas de família. Se não era em Jequié, era em Salva-dor. Quando foi morar na casa de uma moça na Politeama, China en-viava-nos muitas cartas, dizendo que se sentia muito triste e que nãoagüentava viver longe da família. Falava que era tratada a pão e águana casa onde vivia e das situações constrangedoras por que tinha depassar. Queixava-se que, quando as visitas a confundiam com alguémda família, tratavam-na muito bem. Mas, tão logo descobriam que elaera apenas uma empregada doméstica, mudavam radicalmente suaforma de tratamento.

Vitório e Dida em Ilhéus

Vitório não estava gostando muito do salário que recebia na ofi-cina mecânica onde trabalhava em Jequié, por volta do ano de 1992, eresolveu ir para Ilhéus tentar vida nova. Levou apenas uma sacola plás-tica com um par de bermudas e outro de camisas, além de uma sandá-lia havaiana e objetos de uso pessoal, como escova e pente. Tinha so-mente o dinheiro da passagem de ida.

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Contou-nos depois que, ao chegar a Ilhéus, arrependeu-se equeria voltar para Jequié. Mas não podia, pois não tinha dinheiro dapassagem. Disse que pensou que a cidade era apenas a rodoviária ealguns barracões que estavam enfileirados ao longo da rodovia. O cen-tro da cidade fica distante dali, e quem chega à cidade não tem idéiado quanto é linda. Ele ficou por ali mesmo, conseguiu um trabalho emuma oficina mecânica e se instalou na cidade. Um mês depois, Didaresolveu também viajar para Ilhéus. Os dois sempre viveram muitopróximos, até mesmo por causa da semelhança de idade e de profis-são.

Meses depois, fui visitá-los na nova cidade. Fiquei morrendo depena dos dois. Dormiam dentro de uma carcaça de carro, que nemjanela possuía. Era algo desumano. Tive uma conversa séria com eles,mas não deixei transparecer que estava com dó, pois sabia que aquelesofrimento, de alguma forma, significava um estágio necessário na vidadeles e que logo passaria. Além disso, aquela situação poderia vir a setransformar em mais um estímulo para que continuassem a lutar poruma vida melhor.

Em outra oportunidade, visitei-os novamente. Notei que, destavez, tinham passado a um estágio superior: moravam dentro de umbarraco de madeira, com fogão, cama e alguns pratos. Ali tambémmoravam centenas de guaiamus, que à noite saíam dos buracos nochão para devorar qualquer tipo de comida que encontrassem. Chega-vam até a lascar os sacos de feijão ou de outros cereais que estivessemem local próximo ao chão.

Salvador/Ba

Joanita

Conheci Joanita durante um curso que eu fiz em Salvador.Eu ainda morava em Jequié, nessa época. Ela trabalhava da 14ªVara do Trabalho como secretária de audiências. Procurava-a sem-pre que viajava a Salvador, e passávamos horas conversando. Joa-nita dizia que tinha muita vontade de engravidar, mas temia terproblemas no parto, pois sofria de anemia falciforme. A vontadefoi maior que o medo, e, após inúmeras tentativas, ela engravidou

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e morreu de parto. Senti bastante sua morte. Joanita foi uma daspessoas com quem mais me identifiquei no trabalho. Era uma fun-cionária muito dedicada; não tinha tempo nem para fazer as com-pras de casa durante o dia, era obrigada a ir aos mercados à noite.Por causa de tanta dedicação, não viveu a vida, só trabalhou. Outralição para minha vida: aproveitar as oportunidades, me divertir,visitar amigos e parentes, mesmo quando o tempo parecer escasso.A vida passa muito rapidamente. Muita gente espera para vivê-ladepois de se aposentar. Esquecem-se de que nem todos conseguemchegar à aposentadoria, ou que podem chegar lá com várias limita-ções impostas por problemas de saúde.

Primeira viagem de avião

Morando em Salvador, costumava sempre viajar para o interi-or, principalmente nos feriados prolongados e durante as férias. Ti-nha uma imensa vontade de viajar de avião e resolvi realizar meu de-sejo. Fui para Ilhéus de ônibus e voltei de avião. O vôo durou apenasvinte minutos, mas marcou toda a minha vida. Não senti medo algum,sempre soube que aquele era o meio de transporte mais seguro domundo. Mas que deu um friozinho na barriga... Ah, isso deu. Este so-nho foi realizado em dezembro de 1993.

A terceira moto

Comecei a pagar um consórcio de moto, na intenção de usá-locomo investimento para futuramente comprar um outro apartamen-to. Não gostaria de viver para sempre num prédio com permanentesproblemas de elevadores e de abastecimento de água, como era o casodo Edifício Crescenciano dos Santos. Ao ser contemplado, fui buscar oveículo. Mas não tive coragem de pilotar a moto até minha casa. Pa-guei uma pessoa para trazê-la. Chegando ao edifício, subi para o sextoandar com a moto no elevador. Foi um trabalhão danado, mas acabeisendo bem-sucedido em mais esta proeza.

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Iraci

Conheci uma colega de trabalho chamada Iraci. Ela sempre foimuito engraçada. Chegava ao setor onde trabalhava, animando o am-biente com suas expressões personalizadas: “Qual o significado damesma?”, “Algo a declarar?”, “Não se afobeis”. Iraci é uma pessoa muitointeressante e de um coração enorme. Ela é muito conhecida no TRTda 5ª Região, pela sua alegria e pelo alto astral que espalha por ondepassa. Trabalhou por muitos anos ali e depois se aposentou. É a únicapessoa em cuja casa eu me sinto como se estivesse em minha própria.Nossas famílias se conhecem e todos nós nos sentimos como se fôsse-mos velhos conhecidos. Sempre que posso vou à sua casa bater papoou comer um belo prato de feijoada, que ela sabe preparar como nin-guém.

Pagando micos

Certa feita conversava com alguns colegas de trabalho sobrecomida, café e coisas afins. Falava que gostava de tudo, exceto de café“resquentado”. O pessoal começou a gargalhar, corrigindo-me em se-guida. Mas eu estava convencido de que era assim mesmo que se fala-va, aprendera o termo em Jequié. Fui ao dicionário, tirei minha dúvi-da e paguei mais um grande mico.

Em uma outra conversa, desta vez sobre festas de aniversário,começamos a falar de festa de quinze anos, e comentei que ainda nãotinha pensado na festa de quinze anos de meu filho. Mais uma vez fuialvo de risos. Ensinaram-me então que não era comum rapazes faze-rem festa de quinze anos, quando muito de dezoito.

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VALDECK ALMEIDA DE JESUS é funcionário público federal,nascido em 15 de março de 1966 em Jequié/BA, onde viveu até os seisanos de idade, quando foi residir na Fazenda Turmalina (região deItagibá/BA), onde continuou a estudar até os 12 anos de idade.

Aluno exemplar, retornou a Jequié/Ba para se matricular na 5ªsérie do primeiro grau. Ingressou na Faculdade de Enfermagem daUniversidade Estadual do Sudoeste da Bahia em 1990, desistindo decontinuar o curso. Prestou vestibular para Letras, na mesma universi-dade, no ano seguinte, onde concluiu apenas o primeiro semestre.

Por motivos financeiros e outros, resolveu se transferir paraSalvador, onde reside desde fevereiro de 1993. Na capital, fez cursosde Informática, Relações Humanas e Fotografia. No exterior, fez ain-da um curso de Espanhol, em Madri, por um período de dois meses, eum curso intensivo de Inglês, em Nova York, também com duração dedois meses, complementando os três anos do curso de Inglês iniciadoem Salvador.

Em 2003, iniciou o curso de Turismo, concluindo três semes-tres, na Faculdade São Salvador, e um cursinho de teatro por um anoe meio.

Suas habilidades na área literária valeram Menção Honrosa, em1989, no 1° Concurso Nacional de Poesia, promovido pelo InstitutoInternacional da Poesia de Porto Alegre/RS e no Concurso LiterárioOswald de Andrade, promovido pela Universidade Estadual do Sudo-este da Bahia, em 1990, na cidade de Jequié/BA.

SOBRE O AUTOR

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Possui poemas publicados nas antologias:

Poetas Brasileiros de Hoje -1984,Editora Shogun Arte, Rio de Janeiro,1984.

Transcendental, Editora Gráfica daBahia, Salvador, 1986.

II Antologia Cultural: 500 Anos deLíngua Portuguesa no Brasil, EditoraClube de Letras, Barra Bonita/SP,2005.

Antologia de Poetas BrasileirosContemporâneos, 14º volume, CâmaraBrasileira de Jovens Escritores, Rio deJaneiro, 2005.

Antologia de Poetas BrasileirosContemporâneos, 15º volume, CâmaraBrasileira de Jovens Escritores, Rio deJaneiro, 2005.

Letras Libertas - Contos, Crônicas ePoesias - Vol 2, Editora Ilha das Letras,Santa Catarina, 2005.

XV Concurso Internacional Literáriode Verão, Editora Agiraldo, São Paulo2005.

Sangue, Suor e Lágrimas, ArnaldoGiraldo Editor, São Paulo, 2006.

Palavras que Falam, Editora Scortecci,São Paulo, 2005.

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Todas as Formas de Amar, Casa doNovo Autor Editora, São Paulo, 2005.

O Amor na Literatura, São Paulo, Casado Novo Autor Editora, 2005.

Livro de Ouro da Poesia BrasileiraContemporânea, Câmara Brasileira doJovem Escritor, Rio de Janeiro, 2005.

VII Antologia Nau Literária, KomediEditora, Campinas/SP, 2005.

Poetry Vibes, Editora Poetry Vibes,Ohio, USA, 2005.

20 Anos de Poesia - Caderno 32, OficinaEditores, Rio de Janeiro, 2005.

Pérgula Literária - VII, Editora EVSA,Rio de Janeiro, 2005.

Amor, Sublime Amor, Editora Litteris,Rio de Janeiro, 2006.

Ensaios Poéticos, Academia VirtualBrasileira de Letras, Rio de Janeiro,2005.

X Coletânea Komedi, Editora Komedi,Campinas/SP, 2006.

Participação no V Fórum SocialMundial, em Porto Alegre/RS - 26 a 31de janeiro de 2005.

Expositor, como escritor independente,da VII Bienal do Livro da Bahia, emsetembro de 2005, em Salvador/Ba.

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Fundador e presidente do Primeiro Fã-Clube Oficial do Jean Wyllys, cujo siteé www.jeanwyllys.com.

Livros publicados:

Heartache Poems. A Brazilian GayMan Coming Out from the Closet,Editora iUniverse, New York, USA,2004.

Feitiço Contra o Feiticeiro, EditoraScortecci, São Paulo 2005.

Jamais Esquecerei do Brother JeanWyllys, juntamente com Edmar JoséMascarenhas da Silva e Karina Schill,Casa do Novo Autor Editora, São Paulo,2005.

Memorial do Inferno. A Saga daFamília Almeida no Jardim do Éden,1ª edição, Editora Scortecci, São Paulo,2005.

1ª Antologia Poética Valdeck Almeidade Jesus, Casa do Novo Autor Editora,São Paulo, 2006.

Tem poemas publicados em jornais de grande circulação da ca-pital e do interior do estado da Bahia, além dos jornais de Brasília/DF; Colaborador, desde 1985, do jornal A Prosa, Brasília/DF.

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Organizador do projeto Antologia Poética Valdeck Almeida deJesus, que publica e divulga poetas do Brasil inteiro, em edição anual,já no segundo ano.

Membro da Federação Canadense de Poetas desde 2004 e daUnião Brasileira de Escritores desde 2005.

Participante ativo, nos anos oitenta, da Diretoria Regional doPartido Comunista do Brasil, em Jequié/BA, em 1987 foi eleito o pri-meiro diretor de imprensa do Grêmio Estudantil Dinaelza Coqueiro,do Instituto de Educação Régis Pacheco, sendo o fundador do jornalJornada Estudantil.

Poeta e escritor, filho de Paula Almeida de Jesus e de João Ale-xandre de Jesus, já falecidos.

E-mail de contato: [email protected]

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Incentivando novos

talentos literários!

Esta obra foi composta nas fontes Bernhard Bold Condensed BTe Geogia. Impressão em papel Cartão Supremo 250g/m2 (capa)

e papel Offset 75g/m2 (miolo).