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UMA FACE CONTEMPORNEA DA BARBRIE1
Jos Paulo Netto2
RESUMO: Este artigo critica a ideia de uma nova questo social e remete a suaproblemtica lei geral da acumulao capitalista. Depois de sinalizar astransformaes societrias que configuram o tardo-capitalismo no qual se manifesta acrise estrutural , argumenta-se que a face mais evidente da barbrie contempornea(visvel no Brasil de Lula da Silva) a articulao da represso aos pobres com aminimizao dos programas de combate pobreza.
Palavras-chave:Socialismo. Barbrie. Capitalismo. Pobreza.
ABSTRACT: This paper criticizes the idea of a new social issue and refers it to thegeneral law of the capitalist accumulation. After having signed the societal changes thatcompose the late-capitalism in which the structural crisis express itself , it arguesthatthe most evident trait of the contemporary barbarism (which can be seen in Lula daSilvas Brazil) is the concatenation of the repression to the poor people and theminimization of programs in poverty struggle.
Keywords: Socialism. Barbarism. Capitalism. Poverty.
Introduo
Este artigo retomando e resumindo reflexes que venho desenvolvendo h
alguns anos tem como hiptese central a ideia de que o tardo-capitalismo (o
capitalismo contemporneo, resultado das transformaes societrias ocorrentes desde
os anos 1970 e posto no quadro da sua crise estrutural) esgotou as possibilidades
civilizatrias que Marx identificou no capitalismo do sculo XIX e, ainda, que este
exaurimento deve-se ao fato de que o estgio atual da produo capitalista
necessariamente destrutivo (conforme o caracteriza Istvn Mszros). O esgotamentoem tela, que incide sobre a totalidade da vida social, manifesta-se visivelmente na
barbarizao que se generaliza nas formaes econmico-sociais tardo-capitalistas.
1Artigo baseado na comunicao apresentada na sesso temtica O agravamento da crise estrutural docapitalismo: o socialismo como alternativa barbrie do III Encontro Internacional Civilizao ou
Barbrie (30 de outubro a 1 de novembro de 2010), promovido em Serpa (Portugal), pela Cmara
Municipal de Serpa e odiarioinfo, sob a coordenao geral de Miguel Urbano Rodrigues e CatarinaAlmeida.2Professor Titular da Escola de Servio Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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Entendo que uma face contempornea da barbrie se expressa exatamente no
trato que, nas polticas sociais, vem sendo conferido questo social. Por isto, inicio
este texto referenciando-a explicitamente. Em seguida, sumario as transformaes
societrias que esto na base da constituio do tardo-capitalismo e, na sequncia,
procuro indicar, no marco da restaurao capitalista que se verificou nos ltimos trinta
anos, os traos do que considero os constitutivos dessa face contempornea do
barbarismo. Depois, fao brevssimos comentrios acerca dos dois mandatos
presidenciais de Lula da Silva num andamento to sinttico quanto polmico e de
minha inteira responsabilidade pessoal. Enfim, sinalizo que a antiga escolha entre
socialismo ou barbrie hoje dramaticamente atual.
Dada a natureza prpria do espao de um artigo, em muitos passos fui obrigado
a simplificaes que espero no comprometam substantivamente a argumentao. E
me desculpo, de antemo, pela longa listagem bibliogrfica, explicvel apenas por dois
motivos: 1) continuo acreditando que uma das poucas observaes acertadas que
Galbraith fez ao longo da vida, diz respeito s notas apostas a um texto; ele nunca as
julgou excessivas, na medida em que so um ndice expressivo do cuidado posto no
estudo de um determinado assunto;32) minhas reflexes so muito pouco originais;
constituem, certamente, o produto de uma elaborao coletiva e sempre uma questo
de princpio deixar claro de onde se parte.
I
Nos ltimos vinte anos, idelogos social-democratas pretenderam ter descoberto
um fenmeno novo nas sociedades dos pases capitalistas centrais: a nova pobreza
perceptvel em especial a partir da crise do Welfare State. Principalmente na Europa
Ocidental, produziu-se uma larga documentao sobre esta novidade (de que paradigmtica a elaborao de Pierre Rosanvallon) e foram postas no centro de
significativos debates acadmicos as polmicas sobre uma pretensa nova questo
social.4Discretamente, essa documentao sugeria que a velhaquesto social fora
solucionada. Comecemos, pois, com esta ltima para, em seguida, voltar
pretensamente nova.
3
J. K. Galbraith,A crise econmica de 1929. Lisboa: Dom Quixote, s.d., p. 29.4Cf., por exemplo, P. Rosanvallon,La nouvelle question sociale. Paris: Seuil, 1995 e J.-P. Fitoussi e P.Rosanvallon,Le nouvel ge des ingalites. Paris: Seuil, 1996.
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Todas as indicaes disponveis sugerem que a expresso questo social tem
histria recente: seu emprego data de menos de duzentos anos. Parece que comeou a
ser utilizada na terceira dcada do sculo XIX e foi divulgada at a metade daquela
centria por crticos da sociedade e filantropos situados nos mais variados espaos do
espectro deo-poltico.5
A expresso surge para dar conta do fenmeno mais evidente da histria de uma
Europa Ocidental que experimentava os impactos da primeira onda industrializante,
iniciada na Inglaterra no ltimo quartel do sculo XVIII: trata-se do fenmeno do
pauperismo. Com efeito, a pauperizao massiva da populao trabalhadora constituiu o
aspecto mais imediato da instaurao do capitalismo em seu estgio industrial-
concorrencial e no por acaso engendrou uma copiosa documentao.6
Para os mais lcidos observadores da poca, independentemente da sua posio
deo-poltica, tornou-se claro que se tratava de umfenmeno novo, sem precedentes na
histria anterior conhecida.7 Com efeito, se no era indita a desigualdade entre as
vrias camadas sociais, se vinha de muito longe a polarizao entre ricos e pobres, se
era antiqussima a diferente apropriao e fruio dos bens sociais, era radicalmente
nova a dinmica da pobreza que ento se generalizava.8
Pela primeira vez na histria registrada, a pobreza crescia na razo direta em
que aumentava a capacidade social de produzir riquezas. Tanto mais a sociedade se
revelava capaz de progressivamente produzir mais bens e servios, tanto mais
aumentava o contingente dos seus membros que, alm de no terem acesso efetivo a tais
bens e servios, viam-se despossudos at das condies materiais de vida de que
5 Desde um legitimista francs como Armand de Melun a um jovem revolucionrio alemo como F.Engels (cf. A situao da classe trabalhadora na Inglaterra. S. Paulo: Boitempo, 2010).Sintomaticamente, a expresso questo social surge quase ao mesmo tempo em que aparece, no
vocabulrio poltico, a palavra socialismo.6O texto de Engels, referido na nota anterior, apenas um exemplo de uma larga bibliografia, na qualconcorreram, como j sugeri, autores de posies deo-polticas as mais diversas (Gaskell, Villerm,Ducptiaux e Buret). At mesmo um conservador como A. de Tocqueville ocupou-se do problema, na sua
Mmoire sur le pauprisme, apresentada Academia de Cherbourg, em 1835.7No seu ensaioAs metamorfoses da questo social. Uma crnica do salrio(Petrpolis: Vozes, 1998, p.284), Robert Castel assinala que autores como E. Buret e A. de Villeneuve-Bargemont tinhamconscincia da novidade do pauperismo em questo, cabendo mesmo a sua caracterizao poca comouma nova pobreza.8Dados quantitativos do pauperismo europeu esto disponveis tanto em obras estritamente histricas (cf.,por exemplo, E. J. Hobsbawm, A era das revolues. 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988 ou,especificamente para a Inglaterra, E. P. Thompson, A formao da classe operria inglesa. Rio deJaneiro: Paz e Terra, I-II-III, 1987) quanto em textos de natureza sociolgica (cf. o citado trabalho de R.
Castel). Releva notar que, no sculo XX, muito antes do interesse acadmico descobrir os excludos,foi um marxista norte-americano quem dedicou especial ateno ao pauperismo (cf. a obra, originalmentepublicada em 1937, de Leo Huberman,Histria da riqueza do homem. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986).
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dispunham anteriormente. Se nas formas de sociedade precedentes sociedade
capitalista a pobreza estava ligada a um quadro geral de escassez (quadro em
largussima medida determinado pelo nvel de desenvolvimento das foras produtivas
materiais e sociais), agora ela se mostrava conectada a um quadro geral tendente a
reduzir com fora a situao de escassez. Numa palavra: a pobreza acentuada e
generalizada no primeiro tero do sculo XIX o pauperismo aparecia como nova
precisamente porque ela se produzia pelas mesmas condies que propiciavam os
supostos, no plano imediato, da sua reduo e, no limite, da sua supresso. Este
pauperismo marca a emergncia imediatamente visvel da dimenso mais evidente da
moderna barbrie, a barbrie capitalista.9
A designao deste pauperismo pela expresso questo social relaciona-se
diretamente aos seus desdobramentos sociopolticos. Mantivessem-se os pauperizados
na condio cordata de vtimas do destino, assumissem eles a resignaoque Comte
considerava a grande virtude cvica, e a histria subsequente haveria sido outra.
Lamentavelmente para a ordem burguesa que se consolidava, os pauperizados no se
conformaram com a sua situao: da primeira dcada at a metade do sculo XIX, seu
protesto tomou as mais diversas formas, da violncialuddista constituio das trade-
unions,10configurando uma ameaa real s instituies sociais existentes.
A partir da segunda metade do sculo XIX, a expresso questo social deixa
de ser usada indistintamente por crticos sociais de diferenciados lugares do espectro
deo-poltico ela desliza, lenta, mas nitidamente, para o vocabulrio prprio do
pensamento conservador.
O divisor de guas, tambm aqui, a revoluo de 1848. De um lado, os eventos
de 1848, fechando o ciclo progressista da ao de classe da burguesia, impedem, desde
ento, aos intelectuais a ela vinculados (enquanto seus representantes ideolgicos) a
compreenso dos nexos entre economia e sociedade11 donde a interdio dacompreenso da relao entre desenvolvimento capitalista e pauperizao. Posta em
primeiro lugar, com carter de urgncia, a manuteno e a defesa da ordem burguesa, a
questo social perde paulatinamente sua estrutura histrica determinada e
9 Para sermos rigorosos, a moderna barbrie isto , a barbrie prpria da ordem do capital j semanifestara, originariamente, no processo do que Marx caracterizou como acumulao primitiva.10 Uma sntese bastante didtica da histria do movimento operrio encontra-se em W. Abendroth, A
histria social do movimento trabalhista europeu (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977). Vale recorrer aindaa G. D. H. Cole,Historia del pensamiento socialista. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, I-VIII, 1974.11Cf. G. Lukcs, El asalto a la razn. Barcelona-Mxico: Grijalbo, 1968, pp. 471-473.
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crescentemente naturalizada, tanto no mbito do pensamento conservador laico quando
no do confessional (que, alis, tardou at mesmo a reconhec-la como pertinente).
Entre os idelogos conservadores laicos, as manifestaes da questo social
(acentuada desigualdade econmico-social, desemprego, fome, doenas, penria,
desproteo na velhice, desamparo frente a conjunturas econmicas adversas etc.)
passam a ser vistas como o desdobramento, na sociedade moderna (leia-se: burguesa),
de caractersticas ineliminveis de toda e qualquer ordem social, que podem, no
mximo, ser objeto de uma interveno poltica limitada (preferentemente com suporte
cientfico), capaz de ameniz-las e reduzi-las atravs de um iderio reformista(aqui, o
exemplo mais tpico oferecido por Durkheim e sua escola sociolgica). No caso do
pensamento conservador confessional, reconhece-se a gravitao da questo social e
se apela para medidas sociopolticas para diminuir os seus gravames, insistindo-se em
que somente a sua exacerbao contraria a vontade divina ( emblemtica, aqui, a
lio de Leo XIII, de 1891).
Em qualquer dos dois casos o que, alis, explica a perfeita complementaridade
poltico-prtica dessas duas vertentes do conservadorismo , mesmo as limitadas
reformas sociais possveis esto hipotecadas a uma prviareforma moral do homem e
da sociedade. De fato, no mbito do pensamento conservador, a questo social, numa
operao simultnea sua naturalizao, convertida em objeto de ao moralizadora.
E, em ambos os casos, o enfrentamento das suas manifestaes deve ser funo de um
programa de reformas que preserve, antes de tudo o mais, a propriedade privada dos
meios fundamentais de produo. Mais precisamente: o trato das manifestaes da
questo social expressamente desvinculado de qualquer medida tendente a
problematizar a ordem econmico-social estabelecida; trata-se de combater as
manifestaes da questo social sem tocar nos fundamentos da sociedade burguesa.
Tem-se aqui, obviamente, um reformismo para conservar.12Mas a exploso de 1848 no afetou somente as expresses ideais (tericas,
culturais, ideolgicas) do campo burgus. Ela feriu substantivamente as bases da cultura
poltica que calava at ento o movimento dos trabalhadores: 1848, trazendo luz o
carter antagnico dos interesses das classes sociais fundamentais, acarretou a
12No se deve confundir o pensamento conservador, que ganha densidade e expanso aps 1848, com o
reacionarismo. Se, para este, a alternativa s mazelas da ordem burguesa consiste na restaurao doAntigo Regime, o que prprio ao pensamento conservador o reformismo, no interior e sem feri-las das instituies fundantes do mundo do capital.
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dissoluo do iderio formulado pelo utopismo (o socialismo de um Owen, por
exemplo). Desta dissoluo resultou a clareza de que a resoluo efetiva do conjunto
problemtico designado pela expresso questo social seria funo da subverso
completa da ordem burguesa, num processo do qual estaria excluda qualquer
colaborao de classes13 uma das resultantes de 1848 foi a passagem, em nvel
histrico-universal, do proletariado de classe em si a classe para si. As vanguardas
operrias acederam, no seu processo de luta, conscincia poltica de que a questo
social est necessariamentecolada sociedade burguesa: somente a supresso desta
conduz supresso daquela. A partir da, o pensamento revolucionrio passou a
identificar, na prpria expresso questo social, uma tergiversao conservadora e a
s empreg-la indicando este trao mistificador.14
Conscincia poltica, porm, no o mesmo que conscincia terica e o
movimento dos trabalhadores tardaria ainda alguns anos a encontrar os instrumentos
tericos e metodolgicos para apreender a gnese, a constituio e os processos de
reproduo da questo social.
Se, j nas vsperas da ecloso de 1848, K. Marx avanava no rumo daquela
apreenso como se pode verificar nitidamente nas suas duas obras mais importantes
ento publicadas (na Misria da filosofia e, em colaborao com F. Engels, no
Manifesto do partido comunista) , apenas com a publicao, em 1867, do livro
primeiro dO capital, que a razo terica acedeu compreenso do complexo de
causalidades da questo social. Somente com o conhecimento rigoroso do processo
de produo capitalista Marx pde esclarecer com preciso a dinmica da questo
social, consistente em um complexo problemtico muito amplo, irredutvel sua
manifestao imediata como pauperismo.15
A descoberta e a anlise marxianas da lei geral da acumulao capitalista,
sintetizada no vigsimo terceiro captulo do livro primeiro dO capital, revela aanatomia da questo social, sua complexidade, seu carter de corolrio necessriodo
desenvolvimento capitalista em todos os seus estgios. O desenvolvimento capitalista
13 Para que se tenha uma noo das iluses do utopismo, recorde-se que um de seus mais dotados econseqentes representantes, o j mencionado Robert Owen, preparou um memorial dirigido a todos osrepublicanos vermelhos, comunistas e socialistas da Europa, enviado tanto ao Governo Provisriofrancs de 1848 quanto... Rainha Vitria e seus conselheiros responsveis!14Da, pois, as aspas que utilizo sempre que a emprego.15
de notar que, tanto na Misria da filosofia quanto no Manifesto do partido comunista, Marxprognostica que o desenvolvimento do capitalismo implica em pauperizao absoluta da massa proletria.NO capitalele distingue nitidamente os mecanismos de pauperizao absolutae relativa.
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produz, compulsoriamente, a questo social diferentes estgios deste
desenvolvimento produzem diferentes manifestaes da questo social; esta no
uma sequela adjetiva ou transitria do regime do capital: sua existncia e suas
manifestaes so indissociveis da dinmica especfica do capital tornado potncia
social dominante. A questo social constitutiva do capitalismo: no se suprime
aquela se este se conservar.
A anlise de conjunto que Marx oferece nO capitalrevela, luminosamente, que
a questo social est elementarmente determinada pelo trao prprio e peculiar da
relao capital/trabalho a explorao. A explorao, todavia, apenas remete
determinao molecular da questo social; na sua integralidade, longe de qualquer
unicausalidade, ela implica a intercorrncia mediada de componentes histricos,
polticos e culturais. Contudo, sem ferir de morte os dispositivos exploradores do
regime do capital, toda luta contra as suas implicaes poltico-econmicas, sociais e
humanas (inclusive o que se designa por questo social) est condenada a enfrentar
sintomas, consequncias e efeitos.
A anlise marxiana fundada no carter explorador do regime do capital permite,
muito especialmente, situar com radicalidade histrica a questo social, isto ,
distingui-la das expresses sociais derivadas da escassez nas sociedades que precederam
a ordem burguesa. A explorao no um trao distintivo do regime do capital (sabe-se,
de fato, que formas sociais assentadas na explorao precederam largamente a ordem
burguesa); o que distintivo deste regime que a explorao se efetiva no marco de
contradies e antagonismos que a tornam suprimvel sem a supresso das
possibilidades mediante as quais se cria exponencialmente a riqueza social. Ou seja: a
supresso da explorao do trabalho pelo capital, constituda a ordem burguesa e
altamente desenvolvidas as foras produtivas, no implica bem ao contrrio
reduo da produo de riquezas (ou seja, a produo de bens e servios necessrios vida social, a produo de valores de uso).
Nas sociedades anteriores ordem burguesa, as desigualdades, as privaes etc.
decorriam de uma escassez que o baixo nvel de desenvolvimento das foras produtivas
no podia suprimir (e a que era correlato um componente ideal que legitimava as
desigualdades, as privaes etc.); na ordem burguesa constituda, decorrem de uma
escassez produzida socialmente, de uma escassez que resulta necessariamente da
contradio entre as foras produtivas (crescentemente socializadas) e as relaessociais de produo (que garantem a apropriao privada do excedente e a deciso
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privada da sua destinao) e do carter mercantil que reveste obrigatoriamente os
valores de uso. A questo social, nesta perspectiva terico-analtica, no tem nada a
ver com os desdobramentos de problemas sociais que a ordem burguesa herdou ou com
traos invariveis da sociedade (uma natureza humana conclusa, dada para todo o
sempre); tem a ver, exclusivamente, com a sociabilidade erguida sob o comando do
capital. Por isto mesmo, a anlise terica marxiana interdita qualquer iluso acerca do
alcance das reformas no interior do capitalismo.
Provaram-no sobejamente, j no marco do estgio clssico do imperialismo,16as
transformaes poltico-institucionais que o Estado burgus promoveu, incorporando
demandas postas pelas lutas do movimento dos trabalhadores dinmica prpria da
organizao monoplica (com a instaurao das primeiras formas de polticas sociais),
no processo antologicamente descrito (1949) pelo liberal progressista Marshall como
constitutivo da moderna cidadania.17 Na sequncia da Segunda Guerra Mundial e no
processo de reconstruo econmica e social que ento teve curso, especialmente na
Europa Ocidental, o capitalismo experimentou o que alguns economistas franceses
denominaram de as trs dcadas gloriosas da reconstruo do ps-guerra transio
dos anos 1960 aos 1970, mesmo sem erradicar as suas crises peridicas (cclicas), o
regime do capital viveu uma larga conjuntura de crescimento econmico. No por
acaso, a primeira metade dos anos 1960 assistiu caracterizao da sociedade
capitalista evidentemente desconsiderado o inferno da sua periferia, o ento chamado
Terceiro Mundo como sociedade afluente, sociedade de consumo etc.18
A construo do Welfare State na Europa Nrdica e nalguns pases da Europa
Ocidental, bem como o dinamismo da economia norte-americana (desde a Segunda
Guerra, o carro-chefe do capitalismo mundial), parecia remeter para o passado a
questo social e suas manifestaes elas seriam um quase privilgio da periferia
capitalista, s voltas com seus problemas de subdesenvolvimento. Praticamente s osmarxistas insistiam em assinalar que as melhorias no conjunto das condies de vida
das massas trabalhadoras, nos pases capitalistas centrais, no alteravam a essncia
exploradora do capitalismo, continuando a revelar-se atravs de intensos processos de
16 Levo em conta, aqui, a cronologia que Mandel estabelece para o perodo imperialista: para ele, talestgio clssico situa-se, aproximadamente, entre 1890 e 1940 (cf. Ernst Mandel, O capitalismo tardio.S. Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 380).17Cf. T. H. Marshall, Citizenship and social class. London: Pluto Press, 1992.18
Tratava-se, obviamente, de uma caracterizao falseadora; na crtica a esta viso apologtica, Lefebvrecunhou a expresso sociedade burocrtica de consumo dirigido (cf. H. Lefebvre, La vie quotidiennedans le monde moderne. Paris: Gallimard, 1968).
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pauperizao relativa apenas os marxistas e uns poucos crticos sociais, como Michael
Harrington, que tinha a coragem de investigar a pobreza, o outro lado da Amrica.19
Na entrada dos anos 1970, porm, esgotou-se a onda longa expansiva da
dinmica capitalista,20que garantiu mais de duas dcadas de significativo crescimento
econmico. reduo das taxas de lucro, condicionadas tambm pelo ascenso do
movimento operrio, que alcanara expressivas vitrias naqueles anos e nos
imediatamente anteriores,21o capital respondeu com uma ofensiva poltica (de incio,
basicamente repressiva recorde-se o trato que ao movimento sindical brindaram a
Senhora Tatcher e R. Reagan , depois fundamentalmente de natureza ideolgica) e
econmica. O que se seguiu conhecido (trata-se do que Ruy Braga denominou de
restaurao do capital) e j foi objeto de larga documentao22: a conjuno
globalizao/neoliberalismo veio para demonstrar aos desavisados que o capital no
tem nenhum compromisso social o seu esforo para romper com qualquer regulao
poltica democrtica, extra-mercado, da economia tem sido coroado de xito. Erodiu-se
o fundamento do Welfare State em vrios pases e a resultante macroscpico-social
saltou vista: o capitalismo globalizado, transnacional, ps-fordista, desvestiu a
pele de cordeiro e a intelectualidade acadmica, a mesma que em boa parcela
considera Marx o criador de um paradigma em crise, descobriu a nova pobreza, os
excludos etc. em suma, descobriu a nova questo social.
Esta caricatural descoberta, nas condies contemporneas, condies que
tornam cada vez mais problemticas as possibilidades de quaisquer reformas
19 Cf. Michael Harrington, The Other America: Poverty in the United States. New York: Macmillan,1962.20 Cf. Ernst Mandel, O capitalismo tardio, ed. cit., cap. 4 e ainda A crise do capital. Os fatos e suainterpretao marxista. S. Paulo/Campinas: Ensaio/UNICAMP, 1990.21
Cf., por exemplo, o ensaio de Vicente Navarro in Asa Cristina Laurell, org., Estado e polticas sociaisno neoliberalismo. S. Paulo: Cortez/CEDEC, 1995.22Para as questes sinalizadas a seguir, cf., entre outros: Suzanne de Brunhoff, Lheure du march. Paris,PUF, 1986; David Harvey, The Condition of Postmodernity. Oxford: Basil Blackwell, 1989; idem, Onovo imperialismo. S. Paulo: Loyola, 2004; idem, A brief history of neoliberalism. Oxford: OxfordUniversity Press, 2005; Franois Chesnais,La mondialisation du capital. Paris: Syros, 1994; idem, org.,Amundializao financeira. S. Paulo: Xam, 1998; Jos Paulo Netto, Crise do socialismo e ofensivaneoliberal. S. Paulo: Cortez, 1995; Emir Sader e Pablo Gentilli, orgs., O ps-neoliberalismo. Rio deJaneiro: Paz e Terra, 1995; Michel Husson, Misre du capital. Paris: Syros, 1996; Viviane Forrester,
Lhorreur conomique. Paris: Fayard, 1996; Oswaldo Coggiola, org., Globalizao e socialismo. S.Paulo: Xam, 1997; Francisco J. Teixeira e Manfredo A. Oliveira, orgs.,Neoliberalismo e reestruturao
produtiva. S. Paulo: Cortez/UECE, 1998; Hans-Peter Martin e Harald Schumann, A armadilha daglobalizao. Lisboa: Terramar, 1998; Michel Chossudowsky, A globalizao da pobreza. S. Paulo:
Moderna, 1999; Keith Dixon, Os evangelistas do mercado. Oeiras: Celta, 1999; James Petras,Neoliberalismo: Amrica Latina, Estados Unidos e Europa. Blumenau: FURB, 1999; Edmilson Costa,Aglobalizao e o capitalismo contemporneo. S. Paulo: Expresso Popular, 2008.
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progressistas no interior do regime do capital,23 mostra-se, a despeito da sua eventual
credibilidade acadmica, com uma anemia terico-analtica que somente comparvel
anemia das intervenes scio-polticas que prope como alternativas (a isto voltarei
adiante). Do ponto de vista terico, a noo de nova questo social no apresenta uma
s determinao que resista ao exame rigoroso na esteira da crtica da economia poltica
marxiana;24 do ponto de vista sociopoltico, retrocede ao nvel das utopias
conservadoras do sculo XIX, proponentes de novos contratos sociais que
restabeleam vnculos de solidariedade no marco de comunidades ilusrias25 uma
solidariedade naturalmente abstrata (transclassista) e comunidades pensadas com o
inteiro apagamento dos (novos) dispositivos de explorao.
De fato, inexiste qualquer nova questo social. O que se deve investigar, para
alm da permanncia de manifestaes tradicionais da questo social, a
emergncia de novas expresses da questo social que insuprimvel sem a supresso
da ordem do capital. A dinmica societria especfica desta ordem no s pe e repe os
corolrios da explorao que a constitui medularmente; como j sugeri, a cada novo
estgio do seu desenvolvimento, ela instaura expresses sociopolticas diferenciadas e
mais complexas, correspondentes intensificao da explorao que a sua razo de
ser. O verdadeiro problema terico consiste em determinar concretamente a relao
entre as expresses emergentes e as modalidades imperantes de explorao.
Uma tal determinao, se no pode desconsiderar a forma contempornea que
adquire a lei geral da acumulao capitalista, precisa levar em conta a complexa
totalidade dos sistemas de mediaes em que ela se realiza. Sistemas nos quais, mesmo
dado o carter universal e planetarizado daquela lei geral, objetivam-se particularidades
culturais, geopolticas e nacionais que, igualmente, requerem determinao concreta. Se
a lei geralopera independentemente de fronteiras polticas e culturais, seus resultantes
23 Uma das caractersticas da cultura poltica contempornea, hegemnica e conservadora, a radicalressignificao de termos e expresses que trazem consigo uma carga histrica precisa o caso dapalavra reforma, que, ao longo do sculo XX, sinalizou alguma ampliao ou instaurao de direitos. Olxico poltico da era neoliberal ressemantizou a palavra, utilizando-a para denotar, na realidade, o recorteou a supresso de direitos veja-se o caso das reformas nos regimes previdencirios; aqui, o que defato temos so contra-reformas.24 J so inmeros os estudos que explicitam a nulidade terica desta noo; uma abordagem crtica,apoiada nas ideias de Istvn Mszros, oferecida por Edlene Pimentel, Uma nova questo social?.Macei: UFAL, 2007.25 curioso como intelectuais de porte, subjetivamente honestos, tm capitulado diante de utopiasregressivas no Brasil, o caso mais emblemtico o do Professor Paul Singer, que se tornou o idelogo
da chamada economia solidria. Os espantosos limites dos projetos de economia solidria j foramobjeto de justa e dura crtica; cf., por exemplo, Maria Teresa Menezes, Economia solidria: elementospara uma crtica marxista. Rio de Janeiro: Gramma, 2007.
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societrios trazem a marca da histria que a concretiza. Isto significa que o desafio
terico acima salientado envolve, ainda, a pesquisa das diferencialidades histrico-
culturais (que entrelaam elementos de relaes de classe, geracionais, de gnero e de
etnia constitudos em formaes sociais especficas) que se cruzam e tensionam na
efetividade social. Em poucas palavras: a caracterizao da questo social, em suas
manifestaes j conhecidas e em suas expresses novas, tem de considerar as
particularidades histrico-culturais e nacionais.
II
Muito especialmente, a caracterizao acima mencionada tem que levar em
conta as profundas transformaes societrias emergentes desde a dcada de 1970,26que
redesenharam amplamente o perfil do capitalismo contemporneo est claro que,
planetarizado, este capitalismo apresenta traos novos e processos inditos. Estas
transformaes esto vinculadas s formidveis mudanas que ocorreram no chamado
mundo do trabalho27 e que chegaram a produzir as equivocadas teses do fim da
sociedade do trabalho e do desaparecimento do proletariado como classe,28
mudanas que certamente se conectam aos impactos causados nos circuitos produtivos
pela revoluo cientfica e tcnica em curso desde a metade do sculo XX (potenciada
em seus desdobramentos, por exemplo, pela revoluo informacional e pelos avanos
da micro-eletrnica, pelos novos passos da biologia, da fsica e da qumica29). Mas so
26 Uma sntese destas transformaes encontra-se em Jos Paulo Netto, Transformaes societrias eServio Social, in Servio Social & Sociedade. S. Paulo: Cortez, n 50, ano XVII, abril de 1996 e emJos Paulo Netto e Marcelo Braz, Economia poltica. Uma introduo crtica. S. Paulo: Cortez, 2006.Nos pargrafos seguintes, resumirei a argumentao contida nestas duas fontes.27 Sobre tais mudanas, cf., alm de textos citados na nota 19, os trabalhos de Ricardo Antunes,
especialmente Os sentidos do trabalho. S. Paulo: Boitempo, 1999 e tambm Giovanni Alves, O novo (eprecrio) mundo do trabalho. S. Paulo: Boitempo, 2000; para referncias especficas ao Brasil, cf. CarlosAlonso B. Oliveira et alli, orgs., Crise e trabalho no Brasil. S. Paulo: Scritta, 1996; Ricardo Antunes,org.,Riqueza e misria do trabalho no Brasil. S. Paulo: Boitempo, 2006; Jos Ricardo Tauile, Trabalho,autogesto e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009 e Edvnia Loureno et alii, orgs., Oavesso do trabalho II: trabalho, precarizao e sade do trabalhador. S. Paulo: Expresso Popular,2010.28 Uma crtica radical s concepes acerca do fim da sociedade do trabalho e sobre odesaparecimento do proletariado encontra-se em Srgio Lessa, Trabalho e proletariado no capitalismocontemporneo. S. Paulo: Cortez, 2007. Veja-se, ainda, F. Teixeira e Celso Frederico, Marx no sculo
XXI. S. Paulo: Cortez, 2008.29 Do ponto de vista terico, sobre as complexas relaes entre cincia, tecnologia e produo, cf. K.Marx, Capitale e tecnologia. Roma: Riuniti, 1980; Enrique Dussel, Hacia un Marx desconocido. Un
comentrio a los Manuscritos del 61-63. Mxico: Siglo XXI, 1988;Daniel Romero,Marx e a tcnica.Um estudo dos manuscritos de 1861-1863. S. Paulo: Expresso Popular, 2007; Istvn Mszros, O poderda ideologia. S. Paulo: Boitempo, 2004. Do ponto de vista histrico, ainda referncia a obra de J. D.
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transformaes que desbordam amplamente os circuitos produtivos: elas envolvem a
totalidade social, configurando a sociedade tardo-burguesa que emerge da restaurao
do capital.
No que toca s exigncias imediatas do grande capital, o projeto restaurador viu-
se resumido no trplice mote da flexibilizao (da produo, das relaes de trabalho),
desregulamentao (das relaes comerciais e dos circuitos financeiros) e da
privatizao (do patrimnio estatal).30 Se esta ltima transferiu ao grande capital
parcelas expressivas de riquezas pblicas, especial mas no exclusivamente nos pases
perifricos,31a desregulamentao liquidou as protees comercial-alfandegrias dos
Estados mais dbeis e ofereceu ao capital financeiro a mais radical liberdade de
movimento, propiciando, entre outras consequncias, os ataques especulativos contra
economias nacionais.32
Bernal, Science in History. London: C. A. Watts, 1964. Acerca da revoluo cientfica e tcnica e darevoluo informacional, cf. Radovan Richta, ed., La civilisation au carrefour. Paris: Anthropos, 1968 eJean Lojkine, A revoluo informacional. S. Paulo: Cortez, 1995. Ver tambm, entre uma profusadocumentao, apenas a ttulo de ilustrao: Tom Forester, ed., The Microeletronics Revolution.Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1982; Theotnio dos Santos, Revoluo cientfico-tcnica ecapitalismo contemporneo. Petrpolis: Vozes, 1983; Ren Dreifuss, A poca das perplexidades.
Petrpolis: Vozes, 1996;Michio Kaku, Vises do futuro: como a cincia revolucionar o sculo XXI. Riode Janeiro: Rocco, 2001; Mihail C. Roco & William S. Sims, Converging Technologies for improvinghuman performance: nanotechnology, biotechnologie, information technology and cognitive science.NSF-DOC Report, June 2002. Arlington VA, USA; Laymert Garcia dos Santos, Politizar as novastecnologias: o impacto scio-tcnico das novas tecnologias. S. Paulo: Ed. 34, 2003; E. Mayr, Biologia.Cincia nica. S. Paulo: Cia. das Letras, 2005; Paulo Roberto Martins, org., Nanotecnologia, sociedade emeio ambiente. S. Paulo: Xam, 2006; David Gross, O futuro da fsica. Revista USP. S. Paulo: USP, n76, 2008; Michel Paty, A fsica do sculo XX. S. Paulo: Ideias e Letras, 2009. Um painel interessante darelao entre inovao tecnolgica e capitalismo contemporneo encontra-se em Helena M. M. Lastres etalii, orgs., Conhecimento, sistemas de inovao e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005.30 A cartilha da restaurao capitalista, com a inevitvel receita do ajuste fiscal embutida narecomendao da reforma do Estado, foi sintetizada, para a Amrica Latina, no tristemente clebreConsenso de Washington (1989), cujo principal idelogo foi John Williamson. Elementos crticos ao
Consenso de Washington encontram-se em Paulo Nogueira Batista, O consenso de Washington: aviso neoliberal dos problemas latino-americanos, in Barbosa Lima Sobrinho et alii. Em defesa dointeresse nacional. Desinformao e alienao do patrimnio pblico. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994.Para uma crtica s polticas de ajuste, cf. Laura Tavares Ribeiro, Ajuste neoliberal e desajuste socialna Amrica Latina. Petrpolis: Vozes, 2001. No Brasil, foram os dois governos de Fernando HenriqueCardoso (1995-2002) que aplicaram coerentemente o receiturio do Consenso de Washington; umasntese de seus resultados encontra-se em Ivo Lesbaupin, org., O desmonte da nao: balano do governoFHC. Petrpolis, RJ: Vozes, 1999 e em Ivo Lesbaupin e Adhemar Mineiro, O desmonte da nao emdados. Petrpolis: Vozes, 2002.31 Para uma resenha das privatizaes no subcontinente latino-americano, cf. James Petras e HenriVeltmeyer, orgs.,Las privatizaciones y la desnacionalizacin de Amrica Latina . Buenos Aires: Proteo,2004; especificamente sobre o Brasil, cf. Aloysio Biondi, O Brasil privatizado: um balano do desmontedo Estado e O Brasil privatizado II: o assalto das privatizaes continua (ambos publicados em S. Paulo:
Fundao Perseu Abramo, 2003).32 Sobre este ponto, cf. o breve e sugestivo artigo, de maio de 2000, de M. Chossudovski, A guerrafinanceira, disponvel em http:/resistir.info/chossudovski/guerra_financeira. html.
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A desregulamentao e a flexibilizao que o capital vem implementando
hipertrofiam as atividades de natureza financeira (resultado seja da superacumulao,
seja da especulao desenfreada), cada vez mais autonomizadas de controles estatais-
nacionais e dotadas, graas s tecnologias da comunicao, de extraordinria
mobilidade espao-temporal. Simultaneamente, a produo segmentada, horizontalizada
e descentralizada a fbrica difusa , que fomentada em vrios ramos, propicia uma
mobilidade (ou desterritorializao) dos polos produtivos, encadeados agora em
lbeis redes supranacionais, passveis de rpida reconverso. Ao mesmo tempo, os
novos processos produtivos tm implicado uma extraordinria economia de trabalho
vivo, elevando brutalmente a composio orgnica do capital; resultado direto na
sociedade capitalista: o crescimento exponencial da fora de trabalho excedentria em
face dos interesses do capital e os economistas burgueses (que se recusam a admitir
que se trata do exrcito industrial de reserva prprio do tardo-capitalismo) descobrem...
o desemprego estrutural!. De fato, o chamado mercado de trabalho vem sendo
radicalmente reestruturado33 - e todas as inovaes levam precarizao das
condies de vida da massa dos vendedores de fora de trabalho: a ordem do capital
hoje, reconhecidamente, a ordem do desemprego e da informalidade.34
A to celebrada globalizao econmica vincula-se, no por acaso, a esta
financeirizao do capitalismo35 e articulao supranacional das grandes
corporaes, mesmo que no se reduza a ambas e vem acentuando o padro de
competitividade intermonopolista e redesenhando o mapa poltico-econmico do
mundo: as grandes corporaes imperialistas tm conduzido processos supranacionais
de integrao (os megablocos) que, at agora, no se mostram como espaos livres de
problemas para a concertao dos interesses do grande capital (como as recentes
frices na Europa dita comunitria o esto provando). Grande capital que, levando ao
33Lapidares notaes acerca da constituio deste novo mercado de trabalho encontram-se em DavidHarvey, The Condition of Postmodernity, ed. cit.34Para referncias insuspeitas, dado o ponto de vista de classe que expressam, cf. as preocupaes sobre odesemprego do chamado Grupo de Lisboa (ver o seu Limites competio. Lisboa: Europa-Amrica,1994) e Jeremy Rifkin, O fim dos empregos. S. Paulo: Makron Books, 1995.35Quanto a esta financeirizao, um analista norte-americano observou que ela foi em tudo espetacularpor seu estilo especulativo e predatrio. Valorizaes fraudulentas de aes, falsos esquemas deenriquecimento imediato, a destruio estruturada de ativos por meio da inflao, a dilapidao de ativosmediante fuses e aquisies e a promoo de nveis de encargos de dvidas que reduzem populaesinteiras, mesmo nos pases capitalistas avanados, a prisioneiros da dvida, para no dizer nada da fraude
corporativa e do desvio de fundos [...] decorrente de manipulaes do crdito e das aes tudo isso socaractersticas centrais da face do capitalismo contemporneo (D. Harvey, O novo imperialismo,ed. cit.,p. 123).
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limite os histricos processos de concentrao e centralizao, dispe de um potencial
de poder superior ao de boa parte dos Estados nacionais36e opera o controle estratgico
dos recursos necessrios produo de ponta.37
Como assinalei, as transformaes em curso envolvem a totalidade social. No
que toca estratificao social, verifica-se que a estrutura de classes da sociedade
burguesa vem se modificando sensivelmente, inclusive com a desapario de antigas
classes sociais.38Ocorrem alteraes profundas, quer no plano econmico-objetivo da
produo/reproduo das classes e suas relaes, quer no plano deo-subjetivo do
reconhecimento da pertena de classe (e sabe-se da unidade de ambos os planos na
prtica social). No conjunto dos que vivem da venda da sua fora de trabalho, est claro
que a classe operria que fixou a sua identidade classista (sindical e poltico-partidria)
enfrentando o capitalismo monopolista experimenta mudanas significativas, afetada
que por diferenciaes, divises, cortes e recomposies refratando as novas
clivagens postas por alteraes na diviso social e tcnica do trabalho. Tambm se
modificam as hierarquias e as articulaes de camadas mdias, tradicionais (como a
36
Em 2002, arguto analista argentino constatava que apenas duzentas megacorporaes transnacionais,96% delas com suas matrizes em apenas oito pases, tm um volume combinado de vendas que supera oPIB de todos os pases do globo (exceto os nove maiores!) (Atlio Born, Imperio & Imperialismo.Buenos Aires: Clacso, 2002, p. 150-151).37Dados reunidos em matria do Brasil de Fato(So Paulo, ano 4, n. 160, maro/ 2006) mostram quegrupos de monoplios comandam, em escala mundial, os seguintes setores: biotecnologia (Amgen,Monsanto, Genentech, Serono, Biogen Idec, Genzyme, Applied Byosistems, Chiron, Gilead Sciences,Medimmune); produtos veterinrios (Pfizer, Merial, Intervet, DSM, Bayer, BASF, Fort Dodge, Elanco,Schering-Plough, Novartis); sementes (Monsanto, DuPont, Syngenta, KWS Ag, Land OLakes, Sakata,Bayer, Taikki, DLF Trifolium); agrotxicos (Bayer, Syngenta, BASF, Dow, Monsanto, DuPont, Koor,Sumitomo, Nufarm, Arysta); produtos farmacuticos (Pfizer, Glaxo Smith Kline, Johnson & Johnson,Merck, Astra Zeneca, Hoffman-La Roche, Novartis, Bristol-Meyers Squibb, Wyeth); alimentos e bebidas(Nestl, Archer Daniel Midlands, Altria, Pepsico, Unilever, Tyson Foods, Cargill, Coca-Cola, Mars,
Danone). A mesma concentrao verifica-se no circuito de distribuio, com redes comerciais deamplitude mundial, onde os grupos dominantes so: Wal-Mart, Carrefour, Metro AG, Ahold, Tesco,Kroger, Costco, ITM Enterprises, Albetsons e Edeka Zentrale. Os movimentos de concentrao ecentralizao do capital revelaram-se intensssimos nos ltimos trinta anos em todos os ramos e setoreseconmicos, envolvendo a produo, a circulao e atividades relativas reproduo social; para dadosgerais, consulte-se Chesnais (op. cit.) e, para especficos, D. Moraes (Planeta mdia. Campo Grande:Letra Livre, 1998) sobre mdia, entretenimento e publicidade e R. A. Dreifuss (A poca das
perplexidades, ed. cit.) sobre finanas, indstria da informtica, telecomunicaes e equipamentosaeronuticos. Dois exemplos desses movimentos: na indstria automobilstica, as 50 empresas queexistiam no mundo, em 1964, em meados dos anos 1990 no eram mais que 20 (das europias, que eramcerca de 40, s restaram 7); na passagem do sculo XX ao XXI, menos de 300 bancos (e corretoras dettulos e aes) controlavam as finanas internacionais.38Um dos maiores historiadores marxistas constatava, no fim do sculo XX, que a mudana social mais
impressionante e de mais longo alcance da segunda metade deste sculo, e que nos isola para sempre dopassado, a morte do campesinato (E. J. Hobsbawm, Era dos extremos. O breve sculo XX. 1914-1991.S. Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 284).
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pequena burguesia urbana) ou no.39Aquele conjunto, hoje mais que nunca, bastante
heterclito. E tambm h modificaes nas suas camadas situadas no que se poderia
chamar de rs do choda ordem tardo-burguesa, cuja existncia vem sendo degradada
progressivamente pelo capitalismo contemporneo: a mirade de segmentos
desprotegidos, que no podem ser sumariamente identificados ao lumpem clssico.40
Tais segmentos compreendem universos heterogneos, desde aposentados com penses
miserveis, crianas e adolescentes sem qualquer cobertura social, migrantes e
refugiados, doentes estigmatizados (recordem-se os aidticos pobres) at trabalhadores
expulsos do mercado de trabalho (formal e informal).
Menos estudadas por motivos facilmente conhecidos so as classes e franjas
de classes que esto no topo da pirmide da estratificao: os grandes capitalistas e o
grande patronato, seus estrategistas e executivos transnacionais, seus grandes
intelectuais. De qualquer modo, legtimo afirmar que, independentemente de
modificaes e diferenciaes internas (com novos conflitos e novas vias de ingresso
em seus crculos de que o caso Bill Gates exemplar), os portadores do grande
capital veem estruturando uma oligarquia financeira global, concentradora de um
enorme poderio econmico e poltico. De fato, trata-se de um microscpico universo
pessoal,41que controla o conjunto das riquezas sociais e exerce uma determinante ao
planetria que inclusive ladeia as instncias democrtico-formais consagradas no Estado
de direito42 controle e ao que, como o demonstra a experincia dos ltimos anos,
tm introduzido na cena pblica um componente corruptor outrora impensvel.43
39Cf., como exemplos de documentao j produzida sobre este ponto, Jean Lojkine,Ladieu la classemoyenne. Paris: La Dispute, 2005 e Jean Lojkine, Pierre Cours-Salies e Michel Vakaloulis, orgs.,
Nouvelles luttes de classes. Paris: PUF, 2006.40O prprio lumpem se metamorfoseia no tardo-capitalismo pense-se, por exemplo, na organizaoempresarial de atividades ilcitas e/ou criminosas, bem como a sua interao contempornea com o
mundo da economia formal.41Atente-se para um dado aleatrio, oferecido pelo PNUD para o ano de 2004: os 500 indivduos maisricos do mundo tinham um rendimento conjunto maior que o rendimento dos 416 milhes de pessoasmais pobres (PNUD,Relatrio do desenvolvimento humano 2005. Lisboa: Ana Paula Faria Ed., 2005, p.21). Ou, como escrevia, ainda em 1999, um estudioso brasileiro: A concentrao [da riqueza] chegou aoponto de o patrimnio conjunto dos raros 447 bilionrios que h no mundo ser equivalente rendasomada da metade mais pobre da populao mundial cerca de 2,8 bilhes de pessoas (Alex F. Mello,
Marx e a globalizao. S. Paulo: Boitempo, 1999, p. 260). Dados mais recentes indicam que os dois 2%adultos mais ricos do mundo possuem a metade da riqueza global, enquanto a parcela correspondente aapenas 1% da populao adulta detm 40% dos ativos mundiais. Em contrapartida, a metade mais pobreda populao adulta s possui 1% da riqueza global (E. Costa, A globalizao e o capitalismocontemporneo. Ed. cit., p. 109).42Eis o que h poucos anos escrevia uma cientista poltico: [...] Esses homens [...], os mais influentes do
planeta, possuidores de poderes jamais vistos na histria da humanidade, se encontram regularmente emcentros de conferncias virtuais e em espaos privilegiados de articulao, seguros e afastados do olhopblico. [...] Com uma viso global e referncias mentais supranacionais, as novas elites orgnicas agem
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Tais mudanas no sistema de estratificao da sociedade burguesa
contempornea acompanham-se de alteraes no perfil demogrficodas populaes, no
processo de urbanizao, no crescimento das atividades de servio, na difuso da
educao formal e nos circuitos da comunicao social (conduzindo ao pice a
indstria cultural analisada pela Escola de Frankfurt). Rebatendo na estrutura da
famlia,44tudo isto convulsiona os padres da sociabilidade, para o que contribui, ainda,
a emerso de dois agentes sociais independentes (Hobsbawm): as mulheres e os
jovens. As peculiares problemticas femininas (nem sempre inteiramente recuperadas
pelos movimentos feministas), indo da opresso no espao domstico aos mais variados
tipos de subalternidade/explorao no espao pblico, irromperam pesadamente nos
ltimos cinco lustros. Graas especialmente aos empenhos das vanguardas feministas,
as demandas femininas ganharam um apelo emancipatrio que, independentemente do
alcance efetivo das suas conquistas, atravessam as prticas sociais como questes que j
no podem ser ladeadas. Quanto juventude, que esteve na base da revoluo de
costumes dos anos 1960, ela passou na escala em que as relaes geracionais foram
tambm grandemente redimensionadas a constituir uma categoria social que adquiriu
amplitude internacional, gerando inovaes valorativas e rupturas com padres de
comportamento, frequentemente incorporadas (quando no induzidas) pela ordem do
capital.
A dinmica cultural do capitalismo contemporneo, o tardo-capitalismo,
parametrada por dois vetores, de natureza econmico-poltica e tcnica: a translao da
lgica do capital para todos os processos do espao cultural (criao/produo,
divulgao, fruio/consumo) e o desenvolvimento de formas culturais socializveis
pelos meios eletrnicos (a televiso, o vdeo, a multimdia). Essa cultura incorpora as
transnacionalmente [...], contornam Estados nacionais e governos, reafirmando a autonomia poltica dascorporaes estratgicas e contribuindo para a formao do pensamento nico. [Este tipo de articulao]viabiliza e perpetua o segredo poltico-estratgico, subtraindo as questes vitais do olhar pblico. [...] Poroutro lado, muitos dos tradicionais locais de representao e agregao de demandas sociais (congressos,parlamentos, governos estaduais, autarquias estatais, associaes e instncias polticas diversas) semostram ineficazes, enquanto os mecanismos e as prticas convencionais da poltica passam a ser vistoscomo inadequados (Ren A. Dreifuss,A poca das perplexidades, ed. cit., pp. 175-176).43A corrupo que caracteriza a ao dos grupos monopolistas e seus serventurios polticos tambmglobalizada: envolve figures de todos os quadrantes. A lista de escndalos infinita recordemosalguns dos que mais repercutiram, nomeando seus protagonistas: Anthony Gebauer (lobbista norte-americano), Bernard Trapie (empresrio e ex-ministro francs), Roh Tae Woo (ex-presidente da Coreiado Sul), Pierre Suard (ex-presidente executivo da Alcatel Alsthom), Paolo Berlusconi (irmo do capoitaliano), Willy Claes (ex-secretrio-geral da NATO), Toschio Yamaguchi (ex-ministro japons),
Thorstein Moland (ex-presidente do Banco Central da Noruega).44Cf. Gran Therborn, Between Sex and Power: Family in the World, 1900-2000. London: Routledge,2004.
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caractersticas prprias da mercadoria no tardo-capitalismo: sua obsolescncia
programada, sua fungibilidade, sua imediaticidade reificante. Embora sociedade
burguesa contempornea no caiba legitimamente, como vimos, a identificao como
uma sociedade de consumo, a cultura que nela hoje se afirma uma cultura de
consumo:45 ela cria a sensibilidade consumidora que se abre devorao
indiscriminada e equalizadora de bens materiais e ideais e, nela, a prpria distino
entre realidade e representaes esfumada: promove-se uma semiologizao do real,
em que os significantes se autonomizam em face dos referentes materiais e, no limite, se
entificam.
A imediaticidade da vida social planetariamente mercantilizada proposta como
a realidade e, no por acaso, a distino epistemolgica clssica entre aparncia e
essncia desqualificada.46A realidade, na complexidade ontolgica dos seus vrios
nveis, apreendida no efmero, no molecular, no descontnuo, no fragmentrio, que se
tornam a pedra-de-toque da nova sensibilidade: o dado, na sua singularidade
emprica, desloca a totalidade e a universalidade, suspeitas de totalitarismo.
Sabe-se a que me refiro: tese segundo a qual, depois da metade do sculo XX,
pelo menos, exauriu-se o programa de Modernidade, fundado no captulo iluminista do
projeto ilustrado, configurando-se uma mutao sociocultural estrutural, que implicaria
a anacronizao dos padres de anlise (e das suas categorias tericas) dos objetos
socioculturais e dos projetos sociais modernos. Vale dizer: de uma parte, teramos uma
crise de paradigmas, com a urgncia da superao das metanarrativas e das
abordagens tericas caladas na categoria de totalidade; de outra, estaria colocada a
alternativa de s pensar a micropoltica ou de encontrar novos referenciais para a ao
sociopoltica.47
O que se pode designar como movimento ps-moderno constitui um campo deo-
terico muito heterogneo e, especialmente no terreno das suas inclinaes polticas,pode-se mesmo distinguir uma teorizao ps-moderna de capitulao e outra de
45Sobre este aspecto, cf. M. Featherstone, Cultura de consumo e ps-modernismo. S. Paulo: StudioNobel, 1995.46 Conhecido pensador portugus considera a distino aparncia/essncia um dos suportes doepistemicdio, chega a vincul-la ao eurocentrismo e afirma expressamente que o paradigmacientfico ps-moderno suspeita da distino entre aparncia e essncia (cf. Boaventura de SousaSantos, Pela mo de Alice. S. Paulo: Cortez, 1995, p. 331). Em obra posterior (A crtica da razoindolente. Contra o desperdcio da experincia. S. Paulo: Cortez, 2000, parte I, cap. 1), o mesmo autoraprofunda a sua concepo coerentemente com as ideias antes avanadas da epistemologia ps-
moderna.47 Cf. Jean-Franois Lyotard, La condition post-moderne. Paris: Minuit, 1979 e Boaventura de SousaSantos,Introduo a uma cincia ps-moderna. Porto: Afrontamento, 1989 e Pela mo de Alice, ed. cit.
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oposio.48Do ponto de vista dos seus fundamentos terico-epistemolgicos, porm, o
movimento funcional lgica cultural do tardo-capitalismo:49-o tanto ao caucionar
acriticamente as expresses imediatas da ordem burguesa contempornea quanto ao
romper com os vetores crticos da Modernidade (cuja racionalidade os ps-modernos
reduzem, abstrata e arbitrariamente, dimenso instrumental, abrindo a via aos mais
diversos irracionalismos). Mas, por esta mesma funcionalidade, a retrica ps-moderna
no uma intencional mistificao elaborada por moedeiros falsos da academia e
publicitada pela mdia a servio do capital. Antes, ela um sintoma das transformaes
em curso na sociedade tardo-burguesa, tomadas na sua epidrmica imediaticidade
como Eagleton observou em belo ensaio,50 o que os ps-modernos assumem como
tarefa criadora (ou, segundo outros, desconstrutora) corresponde prpria
estruturao fetichista da mercadoria e do tardo-capitalismo.
Essa funcionalidade est em mar-montante nos anos correntes porque a
dissoluo de antigas identidades sociais (classistas), a atomizao e a pulverizao
imediatas da vida social, as novas sensibilidades produzidas pelas tecnologias da
comunicao tudo isso, mais as transformaes j sinalizadas, erodiu os sistemas
constitudos de vinculao e insero sociais. No um acidente, pois, que grupos,
categorias e segmentos sociais se empenhem na construo de novas identidades
culturais, nem que busquem, dramaticamente, estruturar suas comunidades. A
cultura global se movimenta entre a produo/divulgao/consumo mercantilizados
de artefatos globais e a incorporao/consagrao de expresses particularistas
movimenta-se entre o cosmopolitismo e o localismo/singularismo, entre a
indiferenciao abstrata de valores globais e particularismos fundamentalistas. Quer
no cosmopolitismo, quer no localismo/singularismo, h uma ntida desqualificao da
esfera pblica universalizadora: no primeiro, o privilgio conferido a um
individualismo de carter possessivo; no segundo, o direito diferena se impeabstrata e arbitrariamente. Nessa cultura, parece vigorar a mxima segundo a qual no
48 Cf. J. Habermas, in H. Foster, ed., The Anti-Aesthetic. Washington: Bay Press, 1984; H. Foster, inJosep Pic, org., Modernidad y postmodernidad. Madrid: Alianza, 1988 e A. Huyssen, in HelosaBuarque de Hollanda, org., Ps-modernismo e poltica. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.49Ainda que no seja inteiramente satisfatria a to citada anlise desta funcionalidade por F. Jameson,Postmodernism, or the cultural logic of late capitalism.New Left Review. London: NLB, n 146, 1984.50
Cf. Da polisao ps-modernismo, in Terry Eagleton, A ideologia da esttica. Rio de Janeiro: JorgeZahar, 1993. O marxista ingls tematizou especificamente o ps-modernismo em outro livro: As ilusesdo ps-modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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h sociedade, s indivduos.51 por isto que no se afigura exagerado observar que a
revoluo cultural de fins do sculo XX pode assim ser mais bem entendida como o
triunfo do indivduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes
ligavam os seres humanos em texturas sociais.52
As transformaes ocorrentes no plano poltico so igualmente notveis e
portadoras de novas problemticas. Impactados pelas novas dinmicas econmicas e
socioculturais, sociedade civil e Estado da ordem tardo-burguesa modificam-se nas suas
esferas prprias e nas suas relaes.
Na sociedade civil, enquanto a oligarquia financeira global se movimenta de
maneira crescentemente articulada, encontrando e forjando canais e instituies para dar
forma a seus projetos, as tradicionais expresses e representaes das classes e camadas
subalternas experimentam crises visveis (pense-se na dessindicalizaoe nos impasses
dos partidos polticos democrtico-populares e/ou operrios), ao mesmo tempo em que
emergem no seu espao novos sujeitos coletivos, de que os chamados novos
movimentos sociaisso o sinal mais significativo. Tais movimentos, demandando novos
direitos e aspirando a ampliaes do estatuto de cidadania que Marshall no
imaginava coexistindo sem tenses com a estrutura de classes , vm vitalizando a
sociedade civil e renovando pulses democrticas. Na medida, contudo, em que a esses
movimentos, at agora, no se imbricaram instncias polticas capazes de articular e
universalizar a pluralidade de interesses e motivaes que os enfibram, seu potencial
emancipatrio v-se frequentemente comprometido (inclusive com a recidiva de
corporativismos).
Tambm o Estado burgus, mantendo o seu carter de classe, experimenta um
considervel redimensionamento. A mudana mais imediata a diminuio da sua ao
reguladora, especialmente o encolhimento de suas funes legitimadoras:53quando o
grande capital rompe o pacto que suportava o Welfare State, comea a ocorrer aretirada das coberturas sociais pblicas e tem-se o corte nos direitos sociais programa
tatcherista que corporifica a estratgia do grande capital de reduo do Estado, num
processo de ajuste que visa a diminuir o nus do capital no esquema geral de
reproduo da fora de trabalho (e das condies gerais da reproduo capitalista).
51A frase, como se sabe, da Senhora Tatcher.52
E. J. Hobsbawm, Era dos extremos, ed. cit., p. 238.53 Tais como formuladas por J. OConnor, USA: a crise do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1977.
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Entretanto, aquela reduo, bem definida nas palavras-de-ordem que j assinalei e na
sua prtica flexibilizao, desregulamentao e privatizao decorre do
prprio movimento da globalizao. De uma parte, a magnitude das atividades
planetrias das corporaes monopolistas extrapola largamente os controles estatais,
fundados na circunscrio nacional do Estado; de outra, dada a articulao privada
daquelas atividades, torna-se limitada a interveno estatal no nvel macroeconmico.54
evidente que o tardo-capitalismo no liquidou com o Estado nacional, mas tambm
claro que vem operando no sentido de erodir a sua soberania porm, cumpre assinalar
a diferencialidade desta eroso, que atinge diversamente Estados centrais e Estados
perifricos (ou mais dbeis).55
A desqualificao do Estado tem sido, como notrio, a pedra-de-toque do
privatismo da ideologia neoliberal: a defesa do Estado mnimo pretende,
fundamentalmente, o Estado mximo para o capital;56 nas palavras de Przeworski,
constitui um projeto histrico da Direita, dirigido para liberar a acumulao
[capitalista] de todas as cadeias impostas pela democracia.57 Independentemente da
viabilidade poltica de longo prazo desse projeto,58h que constatar que ele conquistou,
enquanto satanizao do Estado, uma pondervel hegemonia: desenvolveu-se, a partir
dele, uma cultura poltica anti-estatal e ela no tem sido estranha s relaes
contemporneas entre Estado e sociedade civil nem a certas formulaes polticas que,
renovando velhos equvocos anarquistas, pretendem-se de esquerda.59
As corporaes imperialistas, o grande capital, implementam a eroso das
regulaes estatais visando claramente liquidao de direitos sociais, ao assalto ao
patrimnio e ao fundo pblicos, com a desregulamentao sendo apresentada como
54Atesta-o, por exemplo, o fluxo planetrio de capital meamente especulativo, que no controlado pornenhuma autoridade monetria. Recorda Harvey (The postmodern condition, ed. cit.): [...] A partir de
1973, o sistema financeiro mundial conseguiu [...] fugir de todo controle coletivo, mesmo nos Estadoscapitalistas mais poderosos; o mesmo autor estima que, em 1987, o mercado financeiro, sem o controlede nenhum governo nacional, movimentou quase 2 trilhes de dlares. A mais recente crise financeira,que eclodiu em 2008, mostrou a interveno estatal operando apenas post festume com dbil articulaosupra-nacional.55O mundo mais conveniente para os gigantes multinacionais aquele povoado por Estados-anes, ousem Estado algum (Hobsbawm, Era dos extremos, ed. cit., p. 276).56Jos Paulo Netto, Crise do socialismo e ofensiva neoliberal,ed. cit., p. 81.57A. Przeworski, Capitalismo e social-democracia. S. Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 258.58 Para apreciaes diversas dessa viabilidade, cf. A. J. Avels Nunes, O keynesianismo e a contra-revoluo monetarista. Coimbra: Separata do Boletim de Cincias Econmicas da Universidade deCoimbra, 1991, pp. 510-520; Jos Paulo Netto, Crise do socialismo e ofensiva neoliberal,ed. cit., pp. 50-56, 81-85 e P. Anderson, in Emir Sader e Pablo Getilli, orgs., Ps-neoliberalismo. As polticas sociais e o
Estado democrtico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 22-23.59 Cf., por exemplo, John Holloway, Change the World Without Taking Power: The Meaning ofRevolution Today. London: Pluto Press, 2002.
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modernizao que valoriza a sociedade civil, liberando-a da tutela do Estado
protetor e h lugar, nessa construo ideolgica, para a defesa da liberdade, da
cidadania e da democracia. E, com frequncia, foras imediatamente opositivas ao
grande capital tm incorporado o anti-estatismo como priorizao da sociedade civil e,
tambm, como demanda democrtica, do que decorrem dois fenmenos: 1) a
transferncia, para a sociedade civil, a ttulo de iniciativa autnoma, de
responsabilidades antes alocadas ao estatal;60 2) a minimizao das lutas
democrticas dirigidas a afetar as instituies estatais. As implicaes da incorporao
desse anti-estatismo pelas foras opositivas pode significar no uma politizao de
novos espaos sociais (ou a repolitizao de espaos abandonados), mas a
despolitizao de demandas democrticas, numa quadra em que precisamente pelas
caractersticas das prticas neoliberais as lutas pela democracia se revestem de maior
importncia.
Em pinceladas muito largas, este o perfil com que a sociedade tardo-burguesa
se apresenta na abertura do sculo XXI. As transformaes societrias aqui assinaladas
configuram uma srie de inequvocas vitrias do grande capital.
III
Acabei de mencionar inequvocas vitrias do grande capital. Do ponto de vista
poltico, medidas de ajuste e flexibilizao/desregulamentao/privatizao, em
muitos casos, foram chanceladas por mecanismos eleitorais dotados de legitimidade
formal.61Do ponto de vista deo-cultural, contando com a mar-montante ps-moderna,
os ganhos do capital no foram desprezveis contriburam para conter e reverter os
avanos dos anos 1960 e incios da dcada de 1970, configurando o perodo aberto
pelos anos 1980 como o de um conservadorismo cada vez mais beligerante;62 a
60 Neste aspecto, impossvel no mencionar o papel desempenhado pela vaga das chamadasorganizaes no-governamentais, as ONGs, que, objetivamente, contribuem para desonerar o Estado dassuas responsabilidades pblicas. Para a anlise da compatibilidade da ideologia do onguismo com aspropostas neoliberais de minimizao do Estado, cf. Carlos Montao, Terceiro setor e questo social. S.Paulo: Cortez, 2002; quanto funo poltica das ONGs, cf. James Petras, Neoliberalismo: Amrica
Latina, Estados Unidos e Europa. Ed. cit., cap. 3 e Neoliberalismo en Amrica Latina. La izquierdadevuelve el golpe. Rosario: Homo Sapiens, 1997, pp. 50-54. Veja-se ainda Virgnia Fontes, O Brasil e ocapital-imperialismo. Rio de Janeiro: Fiocruz/UFRJ, 2010, cap. 5.61Cf. P. Anderson, in Sader e Gentilli, orgs., op. cit.62
Cf. A. Cueva, org., Tempos conservadores. A direitizao no Ocidente e na Amrica Latina. S. Paulo:Hucitec, 1989, p. 11. E arguto analista, afirmando que o ps-modernismo, de travs, vem reforar o coroda apologia neoliberal das qualidades divinas do mercado, no tem dvidas de que, a despeito de certas
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em tela.63E por uma razo clarssima: a flexibilizao do tardo-capitalismo, levando a
massa dos trabalhadores defensiva e penalizando duramente a esmagadora maioria da
populao mundial, no resolveu nenhum dos problemas fundamentais postos pela
ordem do capital. Mais ainda: diante da magnitude hoje alcanada por estes problemas
e expressa em trs ordens de fenmenos: o crescente alargamento da distncia entre o
mundo rico e o pobre [...]; a ascenso do racismo e da xenofobia; e a crise ecolgica,
que nos afetar a todos64 , todas as indicaes sugerem que o tardo-capitalismo
oferecer respostas dominantemente regressivas, operando na direo de um novo
barbarismo, de que as formas contemporneas de apartheid social so j
suficientemente ntidas. Tais respostas, todavia, retroagem sobre a ordem da
reproduo sociometablica do capital, afetando a viabilidade da reproduo do
prprio tardo-capitalismo e trazem superfcie a ativao dos limites absolutos do
capital.65
Em sntese, nos ltimos quarenta anos, o modo de produo capitalista
experimentou transformaes de monta, que se refratam distintamente nas diversas
formaes econmico-sociais em que se concretiza e que exigem instrumentos
analticos e heursticos mais refinados. Ainda que se registrem polmicas acerca da
natureza e das complexas implicaes dessas transformaes, bem como do ritmo em
que levam o modo de produo capitalista a aproximar-se dos seus limites estruturais,
duas inferncias parecem-me inquestionveis:
1. nenhumadessas transformaes modificou a essncia exploradora da relao
capital/trabalho; pelo contrrio, tal essncia, conclusivamente planetarizada e
universalizada, exponencia-se a cada dia;
2. a ordem do capital esgotou completamente as suas potencialidades
progressistas, constituindo-se, contemporaneamente, em vetor de travagem e reverso
de todas as conquistas civilizatrias.A primeira inferncia revela-se mediante vrios indicadores: as jornadas de
trabalho prolongadas para aqueles que conservam seus empregos (extenso que
envolve todos os setores de atividades econmicas para retomar a superficial e
63 Como se pode comprovar com o recurso a mdias alternativas e a centros de documentaocredibilizados de que exemplo, dentre vrios, o Centre Tricontinental (Louvain-la-Neuve, Blgica),com suas publicaes (Mondialisations des rsistences, tat des rsistences dans le Sud).64
E. J. Hobsbawm, in R. Blackburn, org., Depois da queda. O fracasso do comunismo e o futuro dosocialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. p. 104).65Cf. I. Mszros,Beyond Capital. London: Merlin Press, 1995, I, 5.
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conhecida tipologia dos setores econmicos de Colin Clark: o primrio, o
secundrio e o tercirio), a intensificao do trabalho(tambm nos trs setores),
a enorme defasagem entre o crescimento das rendas capitalistas e o crescimento da
massa salarial etc., resultando na extrao articulada de mais-valia absoluta e relativa e
na recuperao de formas de trabalho tpicas dos primeiros momentos da instaurao do
capitalismo (trabalho a domiclio) e, mesmo, em formas de trabalho forado e, em casos
extremos, mas no to excepcionais, escravo.66 A constatao mais bvia desse
incremento da explorao aparece, em todos os quadrantes do mundo, nos mal-
chamados fenmenos de excluso social.67 Mas a segunda inferncia que me
interessa aqui, posto que expresso da barbrietardo-capitalista.
As concretas possibilidades civilizatrias da ordem do capital sempre estiveram
presentes nas anlises de Marx (e de Engels) e a explcita determinao de tais
possibilidades aparece com nitidez ao longo de toda a sua obra, dos Manuscritos
econmico-filosficos de 1884, passando pela Misria da filosofia e pelo Discurso
sobre o problema do livre-cmbio, aos ltimos textos autgrafos. A gigantesca
transformao do mundo operada pela burguesia revolucionria objeto de um trato em
tom quase elegaco no Manifesto do partido comunista; a instaurao do capitalismo
abre um extraordinrio horizonte de desenvolvimento das foras produtivas, que
permite a otimizao da relao sociedade/natureza; a criao do mercado mundial
instaura a alternativa do gnero humano tomar conscincia da sua unidade; viabiliza-se
uma literatura universal; realiza-se a emancipao poltica dos homens e a ordem
burguesa engendra a sua negao, isto , a possibilidade concreta da sua superao, da
superao da pr-histria da humanidade, mediante o protagonismo de uma de suas
criaes o proletariado na revoluo que abre o passo sociedade fundada na livre
66A documentao sobre as condies atuais da explorao do trabalho enorme; parte das fontes citadasnas notas 19 e 24, supra, d alguma conta delas e pode ser ampliada em Pierre Salama, Pobreza eexplorao do trabalho na Amrica Latina. S. Paulo: Boitempo, 1999; Juan Chingo, Crisis ycontradicciones del capitalismo del siglo XXI, in Estrategia Internacional. Buenos Aires: LEI/QI, n24, dic. 2007/en. 2008 e Srgio Prieb, As novas configuraes do trabalho diante da crise, in Novostemas. Salvador/S.Paulo: Quarteto/Instituto Caio Prado Jr., set.-maro de 2010-2011, vol. 2, n 2. No quetoca s vrias formas do trabalho forado contemporneo, at mesmo a OIT tem se ocupado, em diversosdocumentos, da sua constatao. No Brasil, onde indiscutvel a incidncia do trabalho forado, hinmeras fontes que atestam a sua vigncia, especialmente, mas no exclusivamente, no campo: cf., porexemplo, Gelba C. Cerqueira et alii, orgs., Trabalho escravo contemporneo no Brasil. Rio de Janeiro:Ed. UFRJ, 2008; obra de referncia, neste domnio, constituda pelos estudos de Ricardo RezendeFigueira, autor de Pisando na prpria sombra: a escravido por dvida no Brasil contemporneo. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 2004.67Cf. Mrcio Pochmann et alii, orgs.,Atlas da excluso social. Vol. 4: A excluso no mundo. S. Paulo:Cortez, 2004.
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associao de livres produtores, onde o livre desenvolvimento de cada um a
condio para o livre desenvolvimento de todos.
Mas as possibilidades civilizatrias da ordem do capital como prprio destas
possibilidades em toda organizao societria embasada na existncia de classes
sociais foram apreendidas por Marx na sua contraditoriedade dialtica: a misso
civilizatria da burguesia realizou-se, ela mesma, por meios brbaros. A anlise da
acumulao primitivaest longe de ser a mais exemplar das elaboraes de Marx sobre
a inextrincvel dialtica civilizao/barbrie que se processa no marco da ordem do
capital basta evocar outras passagens dO capital ou dos clebres manuscritos de
1857/1858, os Grndrisse..., para documentar que, na viso marxiana, desenvolvimento
capitalista avano civilizatrio fundado na barbrie,68verificvel inclusive no tocante
destruio da natureza.69E se o otimismo revolucionrio de Marx nada utpico,
antes embasado na sua apaixonada convico terico-poltica do xito do protagonismo
revolucionrio do proletariado levou-o sempre a apostar na soluo positiva que a
humanidade encontraria na ultrapassagem da sociedade burguesa, nem por isto est
descartada a possibilidade da vitria da barbrie.70
Ora, o que a mim me parece que o ltimo tero do sculo XX assinala o
exaurimento das possibilidades civilizatrias da ordem do capital. Em todosos nveis
da vida social, a ordem tardia do capital no tem mais condies de propiciar quaisquer
alternativas progressistas para a massa dos trabalhadores (num sentido mais geral, para
68Num ensaio de 1938 (Marx e o problema da decadncia ideolgica), o maior filsofo marxista dosculo XX anotava que a contraditoriedade do progresso um problema geral do desenvolvimento dasociedade dividida em classes (G. Lukcs,Marxismo e teoria da literatura. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1968; itlicos meus); mais ou menos mesma poca, Lukcs observava que, na tica de Marx,diferentes formaes sociais experimentaram o progresso (desenvolvimento das foras produtivas,dominao da natureza pela sociedade) de modo contraditrio: a dominao exercida sobre a natureza
implicou a dominao dos homens sobre os homens, a explorao e a opresso (G. Lukcs, crits deMoscou. Paris: d. Sociales, 1974, p. 181) em suma, o progresso, para Marx (alis, seguindo a trilhaaberta por Hegel), nada tem a ver com o evolucionismo linear e necessariamente ascendente dos
positivistas.69 Cf. Istvn Mszros, A necessidade do controle social. S. Paulo: Ensaio, 1987, pp. 19-24; John B.Foster, Marxs Ecology: Materialism and Nature. New York: Monthly Review Press, 2000; CarlosFrederico B. Loureiro, org., A questo ambiental no pensamento crtico. Rio de Janeiro: Quartet, 2007;veja-se, ainda, Elmar Altvater, Existe um marxismo ecolgico?, in A. Born, J. Amadeo e S. Gonzlez,orgs., A teoria marxista hoje. Problemas e perspectivas. Buenos Aires/S. Paulo: CLACSO/ExpressoPopular, 2007.70Esta problemtica altamente polmica e no pode ser desenvolvida neste espao; remeto apenas aofinal do segundo pargrafo do Manifesto do partido comunista, onde se l que as lutas de classesacabaram sempre com uma transformao revolucionria de toda a sociedade ou com o declnio comum
das classes em conflito (K. Marx e F. Engels,Manifesto do partido comunista. Lisboa: Avante!, 1975, p.59; itlicos meus; para um confronto com o original alemo, veja-se K. Marx-F. Engels, Werke. Berlin:Dietz Verlag, vol. 4, 1959, p. 462).
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a massa dos que s dispem da sua fora de trabalho) e para a humanidade. O
fundamento ltimo desta verdadeira mutao na dinmica do capital reside no que o
Prof. Mszros vem caracterizando como a especificidade do tardo-capitalismo: a
produo destrutiva, que presentifica a crise estrutural do capital.71 Todos os
fenmenos e processos em curso na ordem do capital nos ltimos vinte e cinco anos,
atravs de complexas redes e sistemas de mediao que exigem investigaes
determinadas e concretas para a sua identificao e a compreenso da sua complicada
articulao , esto vinculados a esta transformao substantiva. Eles afetam a
totalidade das instncias constitutivas da vida social em escala planetria.
Consequentemente, largo o leque de fenmenos contemporneos que indicam
o exaurimento das possibilidades civilizatrias da ordem tardia do capital ou, para
diz-lo de outro modo, para atestar que esta ordem s tem a oferecer,
contemporaneamente, solues barbarizantes para a vida social.72Poder-se-iam arrolar
vrios desses fenmenos, da financeirizao especulativa e parasitria do tardo-
capitalismo e sua economia do desperdcio e da obsolescncia programada, passando
pelas tentativas de centralizao monopolista da biodiversidade e pelos crimes
ambientais73e alcanando a esfera da cultura aqui, jamais a decadncia ideolgica
atingiu tal grau de profundidade74e a manipulao das conscincias pela mdia atingiu
tal magnitude (com todas as suas consequncias no plano poltico imediato). Limitar-
me-ei a duas aluses, que nos remetem forma do enfrentamento contemporneo da
(velha e de suas novas expresses) questo social.
71Cf. especialmente Istvn Mszros, Beyond Capital, ed. cit., eA crise estrutural do capital. S. Paulo:Boitempo, 2009.72 Autor que tem explorado intensivamente os vetores da barbarizao da vida social Robert Kurz ainda que no se subscrevam as suas bases tericas e as suas concluses (e este o meu caso), trata-se depensador que tem produzido obras instigantes. No Brasil, h rebatimentos de suas ideias nos expressivos
trabalhos de Marildo Menegat (Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbrie. Rio deJaneiro: Relume-Dumar, 2003; O olho da barbrie. S. Paulo: Expresso Popular, 2006).73Cf., entre outras fontes, Istvn Mszros, Beyond Capital, ed. cit. e O poder da ideologia. S. Paulo:Boitempo, 2004; Samir Amin, Au-del du capitalisme snile. Paris: PUF, 2001; David Harvey, O novoimperialismo, ed. cit.; Felipe Melo da Silva Brito, Acumulao (democrtica) de escombros. Tese dedoutoramento no Programa de Ps-Graduao em Servio Social. Rio de Janeiro: ESS/UFRJ, mmeo,2010; Andr Villar Gomez,Revoluo tecnolgica e capitalismo: tpicos sobre a destruio e a criaode uma outra natureza. Tese de doutoramento no Programa de Ps-Graduao em Servio Social. Rio deJaneiro: ESS/UFRJ, mmeo, 2010.74 expressivo como personalidades significativas da intelectualidade tm reagido s intervenesbelicistas do gendarme mundial norte-americano: em face da Guerra do Golfo (1991), lembrem-se asposies de Jean Braudrillard (cf. Christopher Norris, Uncritical theory: postmodernism, intellectuals andthe Gulf War. London: Lawrence & Wishart, 1992) ou do conhecido jurista e terico poltico Norberto
Bobbio, que a declarou um guerra justa e no poucos respeitveis autores, como Jurgen Habermas,Axel Honneth e Michael Walzer, acompanharam o posicionamento do ilustre italiano (cf. Paulo E.Arantes, Extino. S. Paulo: Boitempo, 2007, pp. 31-32).
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Sabe-se que a guerra foi, ao longo de todo o sculo XX, uma resposta auto-
reprodutiva do capitalismo. Alm de a guerra operar como uma sada provisria para as
suas crises, mediante a destruio massiva de foras produtivas, as atividades
econmicas ligadas guerra a indstria blica sempre constituram um elemento
dinamizador da economia capitalista (como o demonstraram, a seu tempo, inmeros
estudiosos marxistas75), sem o qual as taxas de ociosidade industrial seriam
insuportveis e o desemprego alcanaria cifras altssimas. No tardo-capitalismo (ou,
para usar da excelente metfora de Samir Amin, no capitalismo senil), esta
funcionalidade no s se mantm, mas se acentua, inclusive porque, na verificao de
Chossudovski, a guerra e a globalizao caminham juntas.76Entretanto, se a guerra,
como tal, apresentou-se no sculo XX como um fenmeno que excedeu completamente
o teatro e o mbito dos combates, envolvendo muito mais para alm deles,77o que agora
se verifica que o belicismo passa a incluir as polticas de segurana pblica em
perodos de paz formal e se estende como negcio capitalista privado vida na paz e na
guerra,78configurando a emergncia da militarizao da vida social.
que, no marco do que L. Wacquant observou como sendo a substituio do
Estado de bem-estar social pelo Estado penal,79 a represso estatal se generaliza
sobre as classes perigosas, ao mesmo tempo em que avulta a utilizao das empresas
de segurana e de vigilncia privadas assim como a produo industrial, de alta
tecnologia, vinculada a estes novos negcios (e no se esquea do processo de
privatizao dos estabelecimentos penais). Tais empresas crescem 300% ao ano, desde
2001 a maioria delas nos Estados Unidos.80 A represso deixou de ser uma
75Cf., entre outros, Paul A. Baran e Paul M. Sweezy, Monopoly Capital. New York: Monthly ReviewPress, 1966 e Victor Perlo,Militarismo e indstria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.76 Michel Chossudovski, Guerra e globalizao: antes e depois do 11 de setembro de 2001. S. Paulo:
Expresso Popular, 2004, p. 169.77Na Primeira Guerra Mundial, cerca de 5% dos mortos eram civis; na Segunda Guerra Mundial, estenmero elevou-se a 66%. [...] Estima-se em 80 a 90% o nmero de civis mortos nas guerras atuais(Felipe Melo da Silva Brito, op. cit., p. 46).78A segurana privada opera nas reas formalmente conflagradas: Em abril de 2007, o Departamentode Defesa [norte-americano] declarou que aproximadamente 129 mil homens de diversas nacionalidadestrabalhavam em servios de segurana no Iraque. O nmero quase o mesmo de militares norte-americanos, antes do reforo de 30 mil homens, anunciado em janeiro deste mesmo ano (Felipe Melo daSilva Brito, op. cit., p. 56).79 Cf. L. Wacquant, Punir os pobres: a nova gesto da pobreza nos Estados Unidos. Rio de Janeiro:Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002 e tambm, do mesmo autor, As prises da misria. Rio deJaneiro: Jorge Zahar, 2001.80 Na entrada da dcada de 1990, nos Estados Unidos, um estudo do National Institute of Justice
destacou que a segurana privada tornou-se o principal meio de proteo da Nao, superando asegurana pblica em 73%. O gasto anual em segurana privada foi estimado em U$ 52 bilhes e onmero de formalmente empregados foi de 1,5 milho de pessoas. No que tange segurana pblica, o
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excepcionalidade vem se tornando um estado de guerra permanente, dirigido aos
pobres, aos desempregados estruturais, aos trabalhadores informais, estado de
guerra que se instala progressivamente nos pases centrais e nos pases perifricos: na
lista dos pases que atualmente possuem, em termos relativos, a maior quantidade de
encarcerados no mundo, os quatro primeiros so os Estados Unidos, a China, a Rssia e
o Brasil. Trata-se, porm, de um estado de guerra permanente, cuja natureza se exprime
menos no encarceramento massivo que no extermnioexecutado ou no em nome da lei
no Brasil, por exemplo, entre 1979 e 2008, morreram violentamente quase 1 milho
de pessoas, nmero que pode ser comparado ao de pases expressamente em guerra,
como Angola, que demorou 27 anos para chegar a cifra semelhante.81 Em poucas
palavras: crescentemente, pareceque s a hipertrofia da dimenso/ao repressiva do
Estado burgus pode dar conta da populao excedentria em face das necessidades do
capital(Marx). Mas esta apenas uma aparncia.
De fato, hipertrofia da dimenso/ao repressiva do Estado burgus conjuga-se
outra dimenso, coesiva e legitimadora: o novo assistencialismo, a nova filantropiaque
satura as vrias iniciativas estatais e privadas, mediante as chamadas parcerias
pblico-privado que configuram as polticas sociais implementadas desde os anos
1980/1990 para enfrentar o quadro da pauperizao contempornea, isto , da questo
social, nova e/ou velha.82J no se est diante da tradicional filantropia (de base
confessional e/ou laica) que marcou os modelos de assistncia social que emergiram no
sculo XIX nem, muito menos, diante dos programas protetores ou de promoo social
que vieram a institucionalizar-se a partir do Estado de bem-estar social. A poltica social
dirigida aos agora qualificados como excludos se perfila, reivindicando-se como
inscrita no domnio dos direitos, enquanto especfica do tardo-capitalismo: no tem nem
mesmo a formal pretenso de erradicar a pobreza, mas de enfrentar apenas a penria
mais extrema, a indigncia conforme seu prprio discurso, pretende confrontar-se comapobreza absoluta(vale dizer, a misria). O minimalismo desta proposio gritante se
gasto estimado foi de U$ 30 bilhes por ano, com uma fora de trabalho de aproximadamente 600 milpessoas (Felipe Melo da Silva Brito, op. cit., p. 57).81Cf., para as fontes destes nmeros, Felipe Melo da Silva Brito, op. cit., p. 21.82 larga a documentao acerca das polticas sociais; na bibliografia brasileira, cf., entre outras fontes,Elaine R. Behring e Ivanete Boschetti, Poltica social. Fundamentos e histria. S. Paulo: Cortez, 2006;Ivanete Boschetti et alii, orgs., Poltica social no capitalismo. Tendncias contemporneas. S. Paulo:Cortez, 2008 e Jos Paulo Netto, Capitalismo monopolista e Servio Social. S. Paulo: Cortez, 2009. A
participao empresarial na novafilantropia, revestida com o verniz da responsabilidade social dasempresas, foi analisada por Monica de Jesus Cesar em Empresa cidad. Uma estratgia dehegemonia. S. Paulo: Cortez, 2008.
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comparado aos objetivos, alis nunca alcanados, dos programas de proteo/promoo
social elaborados e implementados no perodo das trs dcadas gloriosas atrs
referidas pode ser apreciado na Declarao do Milnio (2000), consensuada na
Organizao das Naes Unidas: atravs dos objetivos de desenvolvimento do
milnio, h a proposta/promessa de libertar os nossos semelhantes, homens, mulheres
e crianas, das condies abjetas e desumanas da extrema pobreza (itlicos meus);
mais precisamente, a proposta , em 15 anos (ou seja, at 2015), reduzir a extrema
pobreza pela metade este o primeiro objetivo do desenvolvimento do milnio:
reduzir pela metade a percentagem de pessoas que vivem com menos de um dlar por
dia.83Apesar deste espantoso minimalismo frente a uma questo social maximizada,
os vrios relatrios sobre o desenvolvimento humano, regularmente preparados pelo
PNUD, ainda que enfatizem ganhos deste programa, deixam claro que seus objetivos
reitere-se: minimalistas dificilmente sero alcanados.
Pois precisamente este minimalismo que tem factualmente caracterizado os
vrios programas que, por via de transferncias de renda programas de rendas
mnimas , tm sido implementados em alguns pases capitalistas centrais e em muitos
pases perifricos. A experincia de mais de uma dcada, especialmente na Amrica
Latina,84 muito pouco promissora: na medida em que no se conjugam efetivamente
com transformaes estruturais (e esta uma das condies polticaspara que o tardo-
capitalismo os suporte), eles acabam por cronificar-se como programas emergenciais e
basicamente assistencialistas.
A articulao orgnica de represso s classes perigosas e assistencializao
minimalista das polticas sociais dirigidas ao enfrentamento da questo social
constitui uma face contempornea da barbrie.
IV
Vale, a esta altura, quase como um parntese, uma breve remisso ao Brasil
pois meu pas um verdadeiro laboratrio para uma anlise da imbricao entre
83Tratei da insuficincia deste objetivo do milnio em Desigualdade, pobreza e Servio Social, in Empauta. Teoria social e realidade contempornea. Rio de Janeiro: Revan/UERJ, n 19, 2007.84Para uma viso informada desses programas na Amrica Latina, cf. o sinttico estudo de Rosa Helena
Stein, Configurao recente dos programas de transferncia de renda na Amrica Latina: focalizao econdicionalidade, in Ivanete Boschetti et alii, orgs., Poltica social no capitalismo. Tendnciascontemporneas, ed. cit., p. 196 e ss.