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Sumário INTRODUÇÃO: 3 1. A PALAVRA EVANGELHO E O SEU CONTEÚDO: 5 A. LITERATURA CLÁSSICA: 5 B. NO ANTIGO TESTAMENTO: 6 C. A UNIDADE DO EVANGELHO NO ANTIGO E NO NOVO TESTAMENTO: 7 1) SUA CONVERGÊNCIA: 7 2) A NOVIDADE DO EVANGELHO: 8 3) O EVANGELHO SINGULAR: 10 4) EVANGELHO: HISTÓRIA E TEOLOGIA: 12 2. TEOLOGIA E PROCLAMAÇÃO: 12 A. FUNDAMENTAÇÃO HISTÓRICA: 12 B. JESUS CRISTO POR ELE MESMO: 13 C. DEFINIÇÃO DE EVANGELIZAÇÃO: 15 D. PRESSUPOSTOS TEOLÓGICOS DA PROCLAMAÇÃO: 16 1. A INSPIRAÇÃO E INERRÂNCIA DAS ESCRITURAS: 17 2. A UNIVERSALIDADE DO PECADO: 22 A) PECADO COMO ALGO NIVELADOR: 23 B) A GRAVIDADE DO PECADO: 23 C) A PERDA DA DIMENSÃO DA GRAVIDADE DO PECADO: 25 D) A AÇÃO DA IGREJA: 34 3. A SOBERANA GRAÇA DE DEUS: 35 A) A LIBERDADE DE DEUS E DO SEU PODER: 38 B) A SOBERANIA GRACIOSA DE DEUS NA SALVAÇÃO: 46 C) A SOBERANIA DE DEUS E A PROCLAMÃO: 58 4. A RESPONSABILIDADE HUMANA: 59 A) O DEUS MISTERIOSO: 59 B) O HOMEM COMO SER RESPONSÁVEL: 66 C) UMA PROCLAMAÇÃO PODEROSAMENTE SUBMISSA E INTELIGENTE: 67 5. A SUFICIÊNCIA E EFICÁCIA DA OBRA SACRIFICIAL DE CRISTO: 72 A) A GRAÇA QUE SE MANIFESTA EM OBRA: 72 B) A EXCLUSIVIDADE DA OBRA DE CRISTO: 74 6. O PROPÓSITO DE DEUS EM SALVAR O SEU POVO: 76 7. O MINISTÉRIO EFICAZ DO ESPÍRITO SANTO: 77 8. O ANSEIO PELO REGRESSO DE CRISTO: 80 9. A DOUTRINA DA ELEIÇÃO: 81

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Sumário

INTRODUÇÃO: 3

1. A PALAVRA EVANGELHO E O SEU CONTEÚDO: 5

A. LITERATURA CLÁSSICA: 5 B. NO ANTIGO TESTAMENTO: 6 C. A UNIDADE DO EVANGELHO NO ANTIGO E NO NOVO TESTAMENTO: 7 1) SUA CONVERGÊNCIA: 7 2) A NOVIDADE DO EVANGELHO: 8 3) O EVANGELHO SINGULAR: 10 4) EVANGELHO: HISTÓRIA E TEOLOGIA: 12

2. TEOLOGIA E PROCLAMAÇÃO: 12

A. FUNDAMENTAÇÃO HISTÓRICA: 12 B. JESUS CRISTO POR ELE MESMO: 13 C. DEFINIÇÃO DE EVANGELIZAÇÃO: 15 D. PRESSUPOSTOS TEOLÓGICOS DA PROCLAMAÇÃO: 16 1. A INSPIRAÇÃO E INERRÂNCIA DAS ESCRITURAS: 17 2. A UNIVERSALIDADE DO PECADO: 22 A) PECADO COMO ALGO NIVELADOR: 23 B) A GRAVIDADE DO PECADO: 23 C) A PERDA DA DIMENSÃO DA GRAVIDADE DO PECADO: 25 D) A AÇÃO DA IGREJA: 34 3. A SOBERANA GRAÇA DE DEUS: 35 A) A LIBERDADE DE DEUS E DO SEU PODER: 38 B) A SOBERANIA GRACIOSA DE DEUS NA SALVAÇÃO: 46 C) A SOBERANIA DE DEUS E A PROCLAMÃO: 58 4. A RESPONSABILIDADE HUMANA: 59 A) O DEUS MISTERIOSO: 59 B) O HOMEM COMO SER RESPONSÁVEL: 66 C) UMA PROCLAMAÇÃO PODEROSAMENTE SUBMISSA E INTELIGENTE: 67 5. A SUFICIÊNCIA E EFICÁCIA DA OBRA SACRIFICIAL DE CRISTO: 72 A) A GRAÇA QUE SE MANIFESTA EM OBRA: 72 B) A EXCLUSIVIDADE DA OBRA DE CRISTO: 74 6. O PROPÓSITO DE DEUS EM SALVAR O SEU POVO: 76 7. O MINISTÉRIO EFICAZ DO ESPÍRITO SANTO: 77 8. O ANSEIO PELO REGRESSO DE CRISTO: 80 9. A DOUTRINA DA ELEIÇÃO: 81

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A) UMA INDAGAÇÃO SINCERA: 81 B) UMA QUESTÃO PASTORAL: 83 C) DEFININDO A DOUTRINA: 85 D) DEUS CHAMA OS SEUS: 85 10. GLORIFICAR A DEUS: 92 A) A GLÓRIA DE DEUS NA SALVAÇÃO DOS SEUS: 92 B) O OBJETIVO FINAL DA VIDA HUMANA: 94 C) A IGREJA COMO EXPRESSÃO E AGENTE DA GLÓRIA DE DEUS: 95

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A IGREJA, SUA TEOLOGIA E PROCLAMAÇÃO: 101

A) UMA DEFINIÇÃO DE IGREJA: 101 B) A PREGAÇÃO COMO MARCA DA IGREJA: 101 C) O CONTEÚDO E O SIGNIFICADO DA PROCLAMAÇÃO: 103 D) A PREGAÇÃO COMO RESPONSABILIDADE E PRIVILÉGIO DE TODO O CRISTÃO: 107 E) DEVEMOS ESTAR PREPARADOS PARA DEFENDER E CONFIRMAR O EVANGELHO: 107 F) EVANGELIZAR E ENSINAR SÃO ATIVIDADES INSEPARÁVEIS E PERMANENTES: 112 G) DEVEMOS TER CONSCIÊNCIA DE QUE O NOSSO TRABALHO DEPENDE INTEIRAMENTE DO ESPÍRITO DA GRAÇA

DE DEUS: 114

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Fundamentos da Teologia Reformada e de Sua Proclamação

“Nosso comprometimento com a efi-ciência única da Escritura significa que desejamos estar seguros de estar dizen-

do o que a Bíblia diz” ‒ Bryan Chapell.1

“A teologia cristã oferece uma estru-tura pela qual as ambiguidades da ex-periência podem ser interpretadas. A teologia visa interpretar a experiência. É como uma rede que podemos lançar sobre a experiência, a fim de capturar seu sentido. A experiência é vista como algo para ser interpretado, em vez de algo que em si é capaz de interpretar. A teologia cristã visa assim a dirigir-se a, in-terpretar e transformar a experiência hu-

mana” ‒ Alister E. McGrath.2

INTRODUÇÃO: A Teologia Reformada compreende que a sua reflexão não é feita sem pressu-postos3 e, que também, positiva e essencialmente, tem compromissos com o seu anúncio e proclamação. Refletir sobre teologia significa buscar uma melhor compre-ensão do Deus revelado a fim de vivermos de modo santo e um partilhar desta fé, instando com os homens que se arrependam de seus pecados e creiam no Senhor Jesus. A teologia nunca é um fim em si mesma, antes deve ser um “evangelho”, um a-núncio de boas novas de reconciliação e salvação. Pensar teologia é um pensar crendo, desejoso de vivenciar de forma mais intensa o que temos aprendido pela i-

1Bryan Chapell, Pregação Cristocêntrica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 40.

2Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo:

Shedd Publicações, 2007, p. 66-67. 3 “A diferença real entre o liberalismo e o cristianismo bíblico não é uma questão de pesqui-

sa acadêmica, mas de pressuposições” (Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 289).

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luminação do Espírito e, um proclamar vibrante de nossa fé. Fazer teologia é um e-xercício de oração, reflexão e proclamação sob o controle do Espírito que nos fala por meio da Escritura, que é a Sua Escola.4 A teologia, portanto, não substitui a Escritura, antes ela é a sua serva.5 A nossa proclamação não toma o texto como pretexto; não o usa, antes o servimos em nossa grandiosa e responsabilizadora missão de expô-lo e aplicá-lo. A teologia deve ser uma exposição da Escritura. Portanto, de nós teólogos, servos em Cristo no serviço de Sua igreja, não se espera brilhantismo especulativo,6 mas sim, que sejamos fiéis ao nosso Senhor, que nos deu a Sua Palavra e nos comissionou a edificar o Seu povo por meio de seu ensino.7 A grande virtude de quem serve é ser encontrado fiel (1Co 4.2). O teólogo não pode ter outro propósito do que o de glorificar a Deus por meio da compreensão genuína das Escrituras, praticá-la e ensiná-la ao povo de Deus. Deixe-me dar ainda mais uma palavra introdutória. Quando falamos de Teologia Reformada, estamos nos referindo à Teologia proveniente da Reforma (Calvinista)

em distinção à Teologia Luterana. O designativo Reformada é preferível ao Calvinis-ta8 – ainda que o empreguemos indistintamente –, considerando o fato de que a Te-

4 “A tal ponto se tem proveito em Sua escola que não há necessidade de acrescentar nada

que venha de outros, e se deve ignorar tudo o que não é ensinado nela” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, Vol. 4, (IV.12), p. 24). Sobre a Escritura como Escola do Espírito, veja-se: Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 85-93. 5Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São

Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 16. 6

“Aprendamos, pois, a evitar as inquirições concernentes a nosso Senhor, exceto até onde Ele nos revelou através da Escritura. Do contrário, entraremos num labirinto do qual o escape não nos será fácil” (João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.33), p. 426-427). 7

“O verdadeiro ministro de Cristo sabe que o verdadeiro valor de um sermão está, não em seu molde ou modo, mas na verdade que ele contém. Nada pode compensar a ausência de ensino; toda retórica do mundo é apenas o que a palha é para o trigo, em contraste com o evangelho da nossa salvação. Por mais belo que seja o cesto do semeador, é uma miserável zombaria, se estiver sem sementes” (Charles Spurgeon, Lições aos Meus Alunos, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1982, Vol. II, p. 88). “A glória da pregação pode ser a eloquência, mas a batida do coração é a fidelidade” (Bryan Chapell, Pregação Cristo-cêntrica, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 27). 8Sabermos que a expressão “Calvinismo” foi introduzida em 1552 pelo polemista luterano Joacquim

Westphal (c. 1510-1574), pastor em Hamburgo, para referir-se em especial aos conceitos teológicos de Calvino (Cf. Alister E. McGrath, The Intellectual Origins of The European Reformation, Cambridge, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1993, p. 6; Bernard Cottret, Calvin: a Biography, Grand Rapids, Mi.: Eerdmans and Edinburgh: T & T Clark, 2000, p. 239). Na realidade, Calvino deplorou o uso do termo (1563) que ele considera empregado cruelmente por esses “zelotes frenéticos” (Cf. John Cal-vin, Commentaries on the Prophet Jeremiah, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin’s Commentaries, Vol. IX), 1996 (reprinted), (Carta Dedicatória do seu comentário do Livro de Jeremias), p. xxii). No entanto, usamos o termo no sentido que permanece até os nossos dias, como designativo da teologia Reformada em contraste com a Luterana. (Vd. B.B. Warfield, Calvin and Calvinism, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (The Work’s of Benjamin B. Warfield), 2000 (Reprinted), Vol. V, p. 353; W.S. Reid, Tradição Reformada: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, Vol. III, p. 562). McGrath oferece-nos dados com-

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ologia Reformada não provém estritamente de João Calvino (1509-1564).9 Em nossas palestras abordaremos diversos temas sob a perspectiva Reformada. Como poderemos perceber, a visão Reformada não significa a sustentação de dou-trinas exóticas e estranhas, antes, tem como fundamento a aceitação da autoridade suficiente das Escrituras para nos falar do Trino Deus, do homem e de toda a reali-dade, sob a iluminação do Espírito, tendo como objetivo principal glorificar a Deus em todo o nosso labor. Caminhemos juntos.

1. A PALAVRA EVANGELHO E O SEU CONTEÚDO:

A. Literatura Clássica: O verbo “Evangelizar” (Eu)aggeli/zw) (euangelizo) e o substantivo “Evangelho” (Eu)agge/lion) (euangélion) − com os seus cognatos, “Evangelismo”, “Evangélico”, ”Evangelista”, “Evangelização” −, são palavras provenientes do grego, que passando pelo latim, chegaram ao nosso idioma de forma transliterada.10 O uso destas ex-pressões é bem antigo na língua grega, antecedendo em muito ao Novo Testamen-to, remontando aos escritos de Homero (IX séc. a.C.). A palavra “evangelho” passou evolutivamente por três significados básicos, a sa-ber: 1) A recompensa dada ao mensageiro por sua mensagem (Homero11 e Plutar-co). 2) As ofertas de ações de graça aos deuses por uma boa nova recebida. 3) O conteúdo da mensagem: as próprias boas novas (1Sm 31.9).12 Após uma

plementares sobre o uso da expressão em outro de seus valiosos livros, indicando que a palavra foi empregada pelos luteranos alemães referindo-se ao Catecismo de Heidelberg (1563), que havia pe-netrado no até então inabalável território luterano (lembremo-nos do princípio predominante então, de que: “sua região determina sua religião”); assim a expressão queria indicar algo que era “estrangeiro”, estranho à fé luterana, era “calvinista”. (Vd. Alister E. McGrath, Reformation Thought: An Introduction, p. 9; Alister E. McGrath, A Life of John Calvin: A Study in the Shaping of Western Culture, Oxford, UK & Cambridge, USA.: Blackwell Publishers, 1991, p. 202-203.). Barth está correto quando nos diz que “O ‘calvinismo’ é um conceito que devemos aos historiadores modernos. Quando nós o usarmos, te-nhamos a certeza que as Igrejas reformadas do século XVI, do século XVII, e mesmo a do século XVIII, jamais se nomearam como sendo ‘calvinistas’ .” (Karl Barth, em introdução à obra, Calvin, Tex-tes Choisis par Charles Gagnebin, p. 10). 9 Ver: Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, História e Filosófica: uma introdução à teologia cristã,

São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 99. 10

Vd. Evangelho: In: Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, 2ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 338. 11

Homero, Odisséia, São Paulo: Abril Cultural, 1979, XIV.152. p. 130. 12

“Cortaram a cabeça a Saul e o despojaram das suas armas; enviaram mensageiros pela terra dos filisteus, em redor, a levar as boas-novas à casa dos seus ídolos e entre o povo” (1Sm 31.9).

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campanha vitoriosa, os arautos percorriam o país anunciando o evangelho, ou seja, as novas de vitória.13 Como no Império Romano o imperador tipificava uma espécie de deus e salvador, tendo poder sobre todas as coisas, os acontecimentos de sua vida se constituíam num “evangelho”. Por isso ele era cultuado. Assim, desde o seu nascimento, maioridade, sua ascensão ao trono, discursos, decretos ou mesmo a sua visita à determinada cidade, era anunciado como uma boa nova de alegria, feli-cidade e paz: era o evangelho.14

B. No Antigo Testamento: A palavra hebraica correspondente (hfb&:B)(besorâh) tem um emprego militar, estando a sua raiz associada ao trazer boas notícias, ainda que não necessariamen-te. Ou seja: A boa nova nem sempre é entendida assim por quem a recebe (1Sm 4.16-17; 2Sm 18.19-20/Jr 20.15).15 Num contexto de expectativa, a sentinela aguar-da com ansiedade o mensageiro para saber das novas (2Sm 18.24-27/Is 52.7). De forma teológica a palavra indica uma mensagem que inicialmente somente Israel possui a respeito do reinado de Deus com a consequente paz, justiça e salvação (Sl 40.9; 96.1-13; Is 40.9; 41.27; 52.7; 95.1); contudo, no futuro, a mensagem se plenifi-cará no Messias e todas as nações se regozijarão na plenitude dessas bênçãos (Is 61.1-3/Lc 4.16-21; 1Co 15.54-56; Cl 1.5-6; 2.13-15/Is 60.6).16 Na Septuaginta o substantivo Eu)agge/lion (euangélion) não ocorre no sentido re-ligioso, sendo usado na forma secular de trazer “boa notícia” ou “recompensa pelas boas novas” (Cf. 2Sm 4.10; 18.22,25);17 já o verbo eu)aggeli/zomai (euangelízomai) é usado teologicamente.

13

Ver: H.J. Jager, Palabras Clave del Nuevo Testamento, 2ª ed. Madrid: Fundacion Editorial de Lite-ratura Reformada, 1982, Vol. 1, p. 7. 14

Vejam-se: Justino de Roma, I Apologia, São Paulo: Paulus, 1995, 21, p. 38; Gerhard Friedrich, Eu)agge/lion: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. II, p. 724-725; U. Becker, Evangelho: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. II, p. 167-168; Michael Green, Evangelização na Igreja Primitiva, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 63-65; H.J. Jager, Palabras Clave del Nuevo Testamento, Vol. 1, p. 7. 15

Cf. John N. Oswalt, Bãsar: In: R. Laird Harris; Gleason L. Archer, Jr.; Bruce K. Waltke, orgs. Dicio-nário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 227. 16

Ver: John N. Oswalt, Bãsar: In: R. Laird Harris; Gleason L. Archer, Jr.; Bruce K. Waltke, orgs. Dicio-nário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 227; U. Becker, Evangelho: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. II, p. 168; Gerhard Friedrich, Eu)agge/lion: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testa-ment, Vol. II, p. 709-710. 17

“Porém Davi, respondendo a Recabe e a Baaná, seu irmão, filhos de Rimom, o beerotita, disse-lhes: Tão certo como vive o SENHOR, que remiu a minha alma de toda a angústia, se eu logo lancei mão daquele que me trouxe notícia, dizendo: Eis que Saul é morto, parecendo-lhe porém aos seus olhos que era como quem trazia boas-novas, e como recompensa o matei em Ziclague” (2Sm 4.9-10). “Prosseguiu Aimaás, filho de Zadoque, e disse a Joabe: Seja o que for, deixa-me também correr após o etíope. Disse Joabe: Para que, agora, correrias tu, meu filho, pois não terás recompensa das no-vas?” (2Sm 18.22). “Gritou, pois, a sentinela e o disse ao rei. O rei respondeu: Se vem só, traz boas notícias. E vinha andando e chegando” (2Sm 18.25).

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O sentido básico da palavra (Eu)agge/lion) (Evangelho) é “boas novas”, sendo um termo técnico para “novas de vitória”;18 consistindo o “evangelizar” [grego: Eu)aggeli/zw e Eu)aggeli/zomai], no ato de “trazer ou anunciar boas novas”, “pro-clamar”, “pregar”, ser o agente das notícias de vitória. Podemos tabular o uso de eu)aggeli/zomai de três formas especiais, antecipan-do, de certo modo, o sentido dado no Novo Testamento: 1) Proclamar a Glória de Deus, manifesta em Sua justiça, fidelidade, salvação, graça e verdade (Sl 40.9; Sl 96.2).19 2) Proclamar as boas novas referentes ao Ungido de Deus (Is 40.9; 52.7).20 3) As boas novas proclamadas pelo Ungido de Deus (Is 61.1).21

C. A Unidade do Evangelho no Antigo e no Novo Testamento:

1) SUA CONVERGÊNCIA:

As raízes do uso da palavra “Evangelho” no Novo Testamento, devem ser buscadas não no grego secular, mas sim no Antigo Testamento.22 Ou seja, mesmo a palavra tendo um emprego comum no grego clássico, o seu conteúdo encontra-se nas páginas do Antigo Testamento. Biblicamente, o Evangelho é a boa mensagem de Deus, declarando que em Je-sus Cristo temos o cumprimento de Suas promessas a Israel, e que o caminho da

18

Cf. Gerhard Friedrich, Eu)agge/lion: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. II, p. 722. 19

“Proclamei as boas-novas de justiça na grande congregação; jamais cerrei os lábios, tu o sabes, SENHOR” (Sl 40.9). “Cantai ao SENHOR, bendizei o seu nome; proclamai a sua salvação, dia após dia” (Sl 96.2). 20

“Tu, ó Sião, que anuncias boas-novas, sobe a um monte alto! Tu, que anuncias boas-novas a Je-rusalém, ergue a tua voz fortemente; levanta-a, não temas e dize às cidades de Judá: Eis aí está o vosso Deus!” (Is 40.9). “Que formosos são sobre os montes os pés do que anuncia as boas-novas, que faz ouvir a paz, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação, que diz a Sião: O teu Deus reina!” (Is 52.7). 21

“O Espírito do SENHOR Deus está sobre mim, porque o SENHOR me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados” (Is 61.1). 22

Vejam-se: Gerhard Friedrich, Eu)agge/lion: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictio-nary of the New Testament, Vol. II, p. 725; P. Blaser, Evangelho: In: Heinrich Fries, dir., Dicionário de Teologia, 2ª ed. São Paulo: Loyola, 1983, Vol. II, p. 153; Donatien Mollat, Evangelho: In: Xavier Léon-Dufour, dir. Vocabulário de Teologia Bíblica, 3ª ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1984, p. 319; U. Becker, Evangelho: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamen-to, Vol. II, p. 169.

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salvação foi aberto a todos os povos. Deste modo, o Evangelho não deve ser colo-cado em contraposição ao Antigo Testamento, como se o Deus do Antigo Testamen-to fosse um outro Deus23 ou que Deus mesmo tivesse alterado Sua maneira de tra-tar com o homem, mas antes, é o cumprimento da Sua promessa (Mt 11.2-5)24.25 O ponto central para compreensão da unidade do Evangelho está na atitude de Jesus Cristo que, na Sinagoga, ao ler a profecia de Isaías, identificou-se como O que fora prometido: Ele é o Messias. Registra Lucas: “Indo para Nazaré, onde fora criado, en-trou, num sábado, na sinagoga, segundo o seu costume, e levantou-se para ler. En-tão, lhe deram o livro do profeta Isaías, e, abrindo o livro, achou o lugar onde estava escrito: O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar (Eu)aggeli/zw) os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restau-ração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano a-ceitável do Senhor. Tendo fechado o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se; e todos na sinagoga tinham os olhos fitos nele. Então, passou Jesus a dizer-lhes: Ho-je, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (Lc 4.16-21). “Jesus Cristo é o cumprimento de todas as profecias e promessas do Velho Testamento”. 26 De passagem, devemos dizer que o fato mais importante concernente à adoração no Novo Testamento é a centralidade de Jesus Cristo,27 Aquele que é o cumprimento das promessas e profecias do Antigo Testamento, sendo o Senhor e Mediador único e definitivo da Aliança selada entre Deus e o Seu Povo. A visão desta Aliança é a chave que abre as portas para a compreensão de toda teologia bíblica. A Pessoa de Cristo é o elo que une os dois Testamentos.28 Em suma, Jesus Cristo é o fundamen-to da verdadeira adoração a Deus.

2) A NOVIDADE DO EVANGELHO:

A novidade da Boa Mensagem não está, como se tem pretendido, em alguns dos seus conceitos, tais como: a Paternidade de Deus,29 o Deus de amor, perdão e

23

Conforme sustentava Márcion (� c. 165). A respeito de seus ensinamentos, vejam-se, entre outros: Tertulian, The Five Books Against Marcion. In: Alexander Roberts; James Donaldson, eds. Ante-Nicene Fathers, 2ª ed. Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1995, Vol. III, p. 269-475; I-rineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, I.27.2-4. p. 109-110; Justino de Roma, I Apologia, 58, p. 73-74. 24

“Quando João ouviu, no cárcere, falar das obras de Cristo, mandou por seus discípulos perguntar-lhe: És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro? E Jesus, respondendo, disse-lhes: Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos vêem, os coxos andam, os lepro-sos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo prega-do o evangelho (eu)aggeli/zw)” (Mt 11.2-5). 25

Cf. R.H. Mounce, Evangelho: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. I, p. 566. 26

D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, Vol. 1), p. 317. 27

Cf. John M. Frame, Worship in Spirit and Truth, Phillipsburg, NJ.: P & R. Publishing, 1996, p. 25ss. 28

Ver: Confissão de Westminster, VII.6. 29

É muito comum a afirmação de que o Deus do Antigo Testamento é um “Deus Vingador” e, o do Novo Testamento, é o “Deus Pai”, “Deus de amor”. Tal distinção, além de ser maléfica pois, prejudica

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misericórdia; pois nada disto falta ao Antigo Testamento. Ela também não consiste simplesmente, na ênfase destes elementos que, no caso, estariam sombreados no Antigo Testamento (embora isto também ocorra); na realidade, a novidade está na palavra já mencionada, cumprimento. Aquilo que é prometido no Antigo Testamento atingiu o seu clímax: o prometido se cumpriu. O Novo Testamento não diz algo novo a respeito de Deus; ele apenas mostra que Deus cumpriu as Suas promessas (Vd. Mt 1.21-23; 8.17; Mc 15.28; At 2.16-36; 13.32-35/301Co 15.3-4; 1Pe 1.10-12).31 Con-forme interpreta Calvino (1509-1564): “.... no que tange à substância da Escritu-ra, nada se acrescentou. Os escritos dos apóstolos nada contêm além de simples e natural explicação da lei e dos profetas juntamente com uma clara descrição das coisas expressas neles”.32 Os apóstolos atribuíram ao Antigo Tes-tamento a mesma relevância que fora conferida por Jesus Cristo em Sua vida e en-sinamentos (Vd. Mc 8.31; Lc 4.21; 24.27,32,44; Jo 5.39; 10.35,36; 13.18; 17.12; 18.9; At 2.17-36; 3.11-26; 4.4; 5.42; 9.22; 13.22-42,44; 17.11; 18.28; 23.23-31, etc). Abrindo um parêntese, podemos usar a figura do eminente teólogo de Princeton, B.B. Warfield (1851-1921), que, referindo-se à doutrina da Trindade, disse:

“Podemos comparar o Velho Testamento com um salão ricamente mobi-lado, mas muito mal iluminado; a introdução de luz nada lhe traz que nele não estivesse antes; mas apresenta mais, põe em relevo com maior nitidez muito do que mal se via anteriormente, ou mesmo não tivesse sido aperce-bido. O mistério da Trindade não é revelado no Velho Testamento; mas o mis-tério da Trindade está subentendido na revelação do Velho Testamento, e a compreensão da unicidade da Teologia Bíblica – dicotomizando Deus e a Sua Palavra –, é ilusória, amparada em uma visão superficial das Escrituras. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, en-contramos a revelação de Deus como Pai de amor, bondade e justiça. (Vejam-se: Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso: A Oração do Senhor, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, 319p.; Hermisten M.P. Costa, Eu Creio, São Paulo: Edições Parakletos, 2002, 479p.). 30

“Ela dará à luz um filho e lhe porás o nome de Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles. Ora, tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo Senhor por intermédio do profeta: Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco)“ (Mt 1.21-23). “Chegada a tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninha-dos; e ele meramente com a palavra expeliu os espíritos e curou todos os que estavam doentes; para que se cumprisse o que fora dito por intermédio do profeta Isaías: Ele mesmo tomou as nossas en-fermidades e carregou com as nossas doenças” (Mt 8.16-17). “Com ele crucificaram dois ladrões, um à sua direita, e outro à sua esquerda. E cumpriu-se a Escritura que diz: Com malfeitores foi contado” (Mc 15.27-28). “Nós vos anunciamos o evangelho (eu)aggeli/zomai) da promessa feita a nossos pais, como Deus a cumpriu plenamente a nós, seus filhos, ressuscitando a Jesus, como também está es-crito no Salmo segundo: Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei. E, que Deus o ressuscitou dentre os mor-tos para que jamais voltasse à corrupção, desta maneira o disse: E cumprirei a vosso favor as santas e fiéis promessas feitas a Davi. Por isso, também diz em outro Salmo: Não permitirás que o teu Santo veja corrupção” (At 13.32-35). 31

Vd. Chr. Senft, Evangelho: In: Jean-Jacques Von Allmen, dir., Vocabulário Bíblico, 2ª ed., São Pau-lo: ASTE, 1972, p. 137 e Michael Green, Evangelização na Igreja Primitiva, p. 95ss. J. Calvino escre-veu: “Com efeito, recebo o Evangelho como a clara manifestação do mistério de Cristo. E uma vez que o Evangelho é chamado por Paulo ‘a doutrina da fé’ (1Tm 4.6), reconheço, na verdade, que se lhe contam como partes todas e quaisquer promessas que amiúde ocor-rem na Lei acerca da graciosa remissão dos pecados, mediante as quais Deus reconcilia os homens a Si” (J. Calvino, As Institutas, II.9.2). 32

João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Edições Paracletos, 1998, (2Tm 3.17), p. 264.

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aqui e acolá é quase possível vê-lo”.33

3) O EVANGELHO SINGULAR:

A Boa Nova de Deus recebe, entre outras, as seguintes designações no No-vo Testamento: "Evangelho de Deus" (Rm 1.1; 1Ts 2.9); "Evangelho de Cristo" (Mc 1.1; Rm 15.19; 1Co 9.12; 2Co 2.12; Gl 1.7); "Evangelho da Promessa" (At 13.32); "Evangelho da graça de Deus" (At 20.24); "Evangelho da glória de Cristo" (2Co 4.4); "Evangelho da glória de Deus" (1Tm 1.11); "Evangelho da vossa salvação" (Ef 1.13); "Evangelho da paz" (Ef 6.15); “Evangelho eterno” (Ap 14.6). Contudo, o Novo Tes-tamento fala frequentemente no Evangelho, sem o definir (Cf. Mc 1.15; 8.35; 14.9; 16.15; At 15.7;34 Rm 11.28; 2Co 8.18): O Evangelho é a Boa Nova procedente de Deus, não é fruto de uma conquista ou invenção humana; por isso, Ele não carece de maiores adjetivos; a Sua procedência garante a sua qualidade e efetividade: Ele é a Boa Nova por excelência;35 é o “Poder de Deus” (Rm 1.16) por meio do qual somos gerados em Cristo (1Co 4.15).36 Deste modo, Jesus Cristo é o próprio Evan-gelho; Ele é a encarnação da Boa Nova de salvação concedida por Deus ao Seu povo. O Evangelho, antes de ser uma mensagem, é uma Pessoa: Jesus Cristo, o Deus encarnado: verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Não existe Evangelho sem Jesus Cristo; portanto, não há mensagem a ser anunciada sem a Sua encarnação, morte e ressurreição. Por isso, pregar o Evangelho significa pregar Jesus Cristo:37 “Esforçando-me, deste modo, por pregar o evangelho (eu)aggeli/zw), não onde Cris-to já fora anunciado, para não edificar sobre fundamento alheio” (Rm 15.20).38

33

B.B. Warfield, A Doutrina Bíblica da Trindade, Leiria: Edições Vida Nova, (s.d.), p. 130-131. 34

“.... arrependei-vos e crede no evangelho (eu)agge/lion)” (Mc 1.15). “Quem quiser, pois, salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho (eu)agge/lion) salvá-la-á” (Mc 8.35). “E disse-lhes: Ide por todo o mundo e pregai o evangelho (eu)agge/lion) a toda criatura” (Mc 16.15). “Havendo grande debate, Pedro tomou a palavra e lhes disse: Irmãos, vós sabeis que, desde há muito, Deus me escolheu dentre vós para que, por meu intermédio, ouvissem os gentios a palavra do evangelho (eu)agge/lion) e cressem” (At 15.7). 35

Vejam-se, por exemplo: Rm 10.16; 1Co 1.17; 9.14, 23; 15.1; 2Co 4.3; Gl 2.5,14; Fp 1.5,7,12,16; 2.22; 4.3,15; 1Ts 1.5; 2.4; 2Tm 1.8; Fm 13. 36

“Porque, ainda que tivésseis milhares de preceptores em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; pois eu, pelo evangelho (eu)agge/lion), vos gerei em Cristo Jesus“ (1Co 4.15). 37

Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 41-43. 38

Para um estudo mais detalhado do emprego da palavra Evangelho, Vejam-se: Gerhard Friedrich, Eu)aggeli/zomai: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. II, p. 707-737; U. Becker, Evangelho: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Vol. II, p. 166-174; Rudolf Bultmann, Teologia Del Nuevo Testamento, Salamanca: Ediciones Sigueme, 1980, p. 134-135; William F. Arndt; F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 2ª ed. Chicago: University Press, 1979, in loc. p. 317-318; Euaggelion: W. Barclay, Palavras Chaves do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 73; Isidro Pereira, Dicionário Grego-Português e Português-Grego, 7ª ed., Braga: Livraria Apostolado da Imprensa, (1990), in loc; Hermisten M.P. Costa, Evangelhos Sinóticos: Belo Horizonte, MG. 1980, 34p.; W.G. Kummel, Introdução ao Novo Testamento, São Paulo: Pauli-nas, 1982, p. 33-34; E.F. Harrison, Introducción al Nuevo Testamento, Grand Rapids, Michigan: Sub-comision Literatura Cristiana, 1980, p. 131ss.; R.H. Mounce, Evangelho: In: J.D. Douglas, ed. org., O

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O Novo Testamento desconhece a forma plural “Evangelhos” − ainda que ela seja usada na Septuaginta ta\ eu)agge/li/a (2Sm 4.10), “recompensa pelas boas novas” e ”h( eu)aggeli/a” (2Sm 18.20,22,25,27; 2Rs 7.9) −, isto porque o Evangelho é um só. Se alguém proclamar outro, seja considerado “anátema” (= maldito) (Gl 1.8,9). Harri-son, comentando a respeito dos registros evangélicos, observou acertadamente que, “Aos olhos da igreja primitiva estes documentos eram virtualmente um. Jun-tos, eles abarcavam o evangelho único, que foi diversamente expressado por Mateus, Marcos, Lucas e João. O feito de Cristo foi a causa de um novo tipo de literatura”.39 As quatro narrativas são na realidade uma descrição inspirada do mesmo e único Evangelho; biblicamente falando, “evangelhos” é uma contradição de termos. Não há outro Evangelho (Gl 1.6-9).40 A forma plural referindo-se aos registros de Mateus, Marcos, Lucas e João, só é documentada a partir de Justino, o Mártir (100-167 AD), que por volta do ano 155 AD., na sua obra Primeira Apologia, descrevendo a Santa Ceia e o seu significado, escreveu: “....Os Apóstolos nas Memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos transmitiram....”.41 Assim, quando falamos de “Evangelhos”, no plural, estamos nos referindo não à mensagem, que é uma só, mas às narrativas inspiradas feitas pelos Evangelistas. Há um só Evangelho com quatro registros redigidos por Mateus, Marcos, Lucas e João.

Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. I, p. 566-567; R.H. Mounce, Evangelho: In: Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, Vol. II, 1990, p. 109. H.J. Jager, Palabras Clave del Nuevo Testamento, 2ª ed., Madrid: Fundacion Editorial de Lite-ratura Reformada, 1982, Vol. I, p. 7ss.; Evangelho: In: W.E. Vine; Merril F. Unger; William White Jr., Dicionário Vine: O Significado Exegético e Expositivo das Palavras do Antigo e do Novo Testamento, p. 629; John N. Oswalt, Bãsar: In: R. Laird Harris; Gleason L. Archer, Jr.; Bruce K. Waltke, orgs. Di-cionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 227. 39

E.F. Harrison, Introducción al Nuevo Testamento, p. 132. 40

“Admira-me que estejais passando tão depressa daquele que vos chamou na graça de Cristo para outro evangelho (eu)agge/lion), o qual não é outro, senão que há alguns que vos perturbam e querem perverter o evangelho (eu)agge/lion) de Cristo. Mas, ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho (eu)aggeli/zw) que vá além do que vos temos pregado, seja anátema. Assim, como já dissemos, e agora repito, se alguém vos prega evangelho (eu)aggeli/zw) que vá além daque-le que recebestes, seja anátema” (Gl 1.6-9). 41

Justino, Primeira Apologia, 66, p. 82. (Ver: Eusebio de Cesarea, Historia Eclesiástica, Madrid: La Editorial Catolica, S.A., (Biblioteca de Autores Cristianos), 1973, III.37.2. p. 187; V.8.2ss. p. 296ss). Devemos observar, que, mesmo fora dos escritos do Novo Testamento, a palavra evangelho continu-ou sendo usada no sentido singular. Por exemplo: No Didaquê, obra anônima publicada por volta do ano 100 d.C., lemos: “E não oreis como os hipócritas, mas como o Senhor os mandou em Seu Evangelho....” (Didaquê, VIII.2) (Vejam-se também, Inácio de Antioquia (c. 30-110), Epístola aos Fi-ladélficos, V.1-2; VIII.2; IX.2; Epístola aos Esmirnenses, V.1; VII.2. In: Cartas de Santo Inácio de Anti-oquia, 3ª ed. São Paulo: Vozes, 1984; Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1995, IV.20.6; Euse-bio de Cesarea, Historia Eclesiástica, V.24.6.

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4) EVANGELHO: HISTÓRIA E TEOLOGIA:

Paulo emprega a palavra Evangelho de duas formas que, na realidade, se completam: a) Ele se refere ao Evangelho como os fatos que envolveram a morte substitutiva e ressurreição de Cristo conforme as Escrituras: perspectiva histórica (1Co 15.1-4); b) A interpretação dos acontecimentos narrados: perspectiva teológica (Rm 2.16; Gl 1.7,11; 2.2).42 Contudo, não devemos levar esta distinção tão longe. A perspectiva teológica só adquire relevância enquanto fundamentada na veracidade destes fatos: a historicidade da encarnação, vida, morte e ressurreição de Cristo, ou seja: no Evangelho. No capítulo 15 de 1 Coríntios Paulo revela este ponto de forma contundente ao dizer que se “Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a vossa fé; e somos tidos por falsas testemunhas de Deus, porque temos asseverado contra Deus que Ele ressuscitou a Cristo.....” (1Co 15.14-15). E mesmo quando nar-ra o Evangelho histórico, Paulo já apresenta a sua perspectiva teológica: “Cristo morreu pelos nossos pecados” (1Co 15.3). A morte vicária entra necessariamente na narrativa. A história de Cristo é também a história de nossos pecados e do amor e da justiça de Deus. 2. TEOLOGIA E PROCLAMAÇÃO:

A. Fundamentação Histórica: O Cristianismo é uma religião de história. Ele não se ampara em lendas, antes, em fatos os quais devem ser testemunhados, visto que eles têm uma relação direta com a vida dos que crêem. O Cristianismo é uma religião de fatos, palavra e vida. Os fatos, corretamente compreendidos, têm uma relação direta com a nossa vida. A fé cristã fundamenta-se no próprio Cristo: O Deus-Homem. Sem o Cristo Histórico não haveria Cristianismo.43 A sua força e singularidade estão neste fato, melhor di-zendo: na pessoa de Cristo, não simplesmente nos seus ensinamentos.44 O Cristia-nismo é o próprio Cristo. Como escreveu Bavinck (1854-1921): “Ele ocupa um lu-gar completamente único no Cristianismo. Ele não foi o fundador do Cristia-

42

Cf. Evangelho: In: W.E. Vine; Merril F. Unger; William White Jr., Dicionário Vine: O Significado E-xegético e Expositivo das Palavras do Antigo e do Novo Testamento, Rio de Janeiro: Casa Publicado-ra das Assembléias de Deus, 2002, p. 629. 43

Georges Duby (1919-1996), dentro de uma perspectiva puramente histórica, admite: “O Cristia-nismo, que impregnou fundamentalmente a sociedade medieval, é uma religião da história. Proclama que o mundo foi criado num dado momento e que, num outro, Deus fez-se ho-mem para salvar a humanidade. A partir disso, a historia continua e é Deus quem a dirige” (Georges Duby, Ano 1000, ano 2000, na pista de nossos medos, São Paulo: Editora U-NESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999, p. 16). “Os historiadores insistiram com justeza sobre o fato de que o cristianismo é uma religião histórica, ancorada na história e se afirmando co-mo tal” (Jacques Le Goff, Tempo: In: Jacques Le Goff; Jean-Claude Schmitt, coords. Dicionário Te-mático do Ocidente Medieval, Bauru, SP/São Paulo:SP.: Editora da Universidade Sagrado Cora-ção/Imprensa Oficial do Estado, 2002, Vol. 2, p. 534). 44

Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 23ss.

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nismo em um sentido usual, ele é o Cristo, o que foi enviado pelo Pai e que fundou Seu reino sobre a terra e agora expande-o até o fim dos tempos. Cris-to é o próprio Cristianismo. Ele não está fora, Ele está dentro do Cristianismo. Sem Seu nome, pessoa e obra, não há Cristianismo. Em outras palavras, Cris-to não é aquele que aponta o caminho para o Cristianismo, Ele mesmo é o caminho”.45 Se as reivindicações divinas e redentivas do Jesus Cristo histórico são verdadei-ras como de fato são, a mensagem do Evangelho deve ser anunciada ao mundo pa-ra que aqueles que crerem sejam salvos. Noll resume bem ao dizer que: “Estudar a história do cristianismo é lembrar continuamente o caráter histórico da fé cristã”.46 Sem o fato histórico da encarnação, morte e ressurreição de Cristo, podemos fa-lar até de experiência religiosa, mas não de experiência cristã. A experiência cristã depende fundamentalmente destes eventos.47 A fé cristã é para ser vivida e procla-mada. A pregação caracteriza essencialmente a fé cristã e a sua proclamação. Pau-lo, então indaga: “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!” (Rm 10.14-15). No final de sua vida, Paulo, com a consciência certa de ter concluído fielmente o seu ministério, exorta ao jovem Timóteo: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina. Pois haverá tempo em que não supor-tarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas pró-prias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos; e se recusarão a dar ouvidos à verdade, entregando-se às fábulas (mu=qoj = lenda, mito). Tu, porém, sê sóbrio em todas as coisas, suporta as aflições, faze o trabalho de um evangelista, cumpre ca-balmente o teu ministério” (2Tm 4.2-5).

B. Jesus Cristo por Ele Mesmo:

Considerando o que temos visto, nos deparamos agora com algumas ques-tões fundamentais: O que significa evangelizar? Quais os pressupostos que a evan-gelização tem? Qual o conteúdo da evangelização?. Alguém talvez pudesse respon-der, usando as palavras empregadas acima, que: “Evangelizar é pregar a Cristo”. Creio que nenhum evangélico discordaria desta proposição. A questão, que nos pa-rece relevante no caso, é saber, de que Cristo estamos falando: do Cristo revelado nas Escrituras, Divino, Eterno, Senhor, Soberano, igual em poder, honra e glória, ao Pai e ao Espírito Santo?, ou um Cristo, criado pela “fantasia” dos cristãos primitivos, 45

Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 311. 46

Mark A. Noll, Momentos Decisivos na História do Cristianismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000, p. 16. Vejam-se também: Clyde P. Greer, Jr., Refletindo Honestamente sobre a História: In: John F. MacArthur Jr. ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 400-401. 47

Cf. J. Gresham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 77.

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destituído de Sua Glória, sendo o “produto da fé” dos discípulos? Se queremos pre-gar a Cristo, devemos “definir” quem é o Cristo que anunciamos ou, em nossa pers-pectiva, aceitar a definição bíblica do Cristo. A questão de quem é o Cristo que cre-mos e pregamos permanece; esta tem sido ao longo da História uma das indaga-ções mais relevantes para a nossa fé. A Cristologia48 se constitui no cerne de toda Teologia Cristã.49 Ela é o eixo da Te-ologia Bíblica: uma visão defeituosa da Pessoa e Obra de Cristo, determina a exis-tência de uma "teologia" divorciada da plenitude da Revelação bíblica. A consciência deste fato deve nortear o nosso labor Cristológico e, também, servir como referência e ponto de partida teológico. A concepção Reformada não consiste num esforço pa-ra atribuir a Cristo valores que julgamos serem próprios Dele; antes ela se ampara no reconhecimento e na aceitação incondicional de Suas reivindicações. Assim, a-quilo que dizemos de Cristo, permanecerá ou não, conforme seja fiel à proclamação do Verbo de Deus. Por isso, a vivacidade da Cristologia Reformada e, por que não, da sua proclamação, estará sempre em sua fidelidade à Cristologia do Cristo. Cristo por Ele mesmo; este é o anelo de toda Cristologia Reformada, e, portanto, o funda-mento de toda a nossa proclamação. Deste modo, devemos indagar sempre a res-peito de nossas convicções e testemunho, avaliando-os por meio dAquele que ver-dadeira e compreensivelmente diz Quem é. Neste afã, devemos estar atentos ao fato de que Cristo por Ele mesmo, envolve o limite do que foi revelado e o desafio do que nos foi concedido. Não podemos ultra-passar o revelado, contudo, não podemos nos contentar com menos do que nos foi dado.50 Procurar a Cristologia do Cristo equivale a buscar compreender em submis-

48

O estudo da Pessoa e Obra de Cristo. 49

Vd. Wolfhart Pannenberg, Fundamentos de Cristologia, Barcelona: Ediciones Sígueme, 1973, p. 27-28. Após redigir primariamente estas linhas, li o conhecido teólogo luterano Braaten, que diz: “Cristologia é a doutrina da Igreja acerca da pessoa de Jesus como o Cristo. Ela sempre o-cupa lugar central num sistema dogmático que reivindica ser cristão. Toda tentativa de re-mover a cristologia de seu lugar central ameaça o cerne da fé cristã. O princípio cristocên-trico da teologia não rivaliza com um ponto de vista teocêntrico. Quem quer que olhe para Jesus, o Cristo, a partir da perspectiva do Novo Testamento, estará inevitavelmente situado dentro de um quadro de referência teocêntrico. Quanto mais profundamente a teologia sonda o significado de Jesus como o Cristo de Deus, tanto mais diretamente é levada ao próprio Deus de Cristo.... “A dogmática cristã é cristocêntrica na medida em que nenhuma doutrina pode ser chamada de cristã se não contém uma conexão significativa com a revelação definitiva de Deus na pessoa de Jesus, o Cristo” (Carl E. Braaten, A Pessoa de Jesus Cristo: In: Carl E. Braaten; Robert W. Jenson, eds. Dogmática Cristã, São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1990, Vol. I, p. 459). Do mes-mo modo, Erickson: “Quando passamos a estudar a pessoa e a obra de Cristo, estamos bem no centro da teologia cristã” (Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 275). 50

Como vimos, Calvino colocou esta questão nestes termos: "As cousas que o Senhor deixou re-cônditas em secreto não perscrutemos, as que pôs a descoberto não negligenciemos, para que não sejamos condenados ou de excessiva curiosidade, de uma parte, ou de ingratidão, de outra" (As Institutas, III.21.4). Em outro lugar: “Tudo o mais que pesa sobre nós e que deve-mos buscar é nada sabermos senão o que o Senhor quis revelar à Sua igreja. Eis o limite de nosso conhecimento” (João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1995, (2Co 12.4), p. 242.243).

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são ao Espírito tudo o que foi revelado para nós (Dt 29.29b/Rm 15.4). Por certo, este conhecimento não estará restrito ao Cristo Salvador, mas, além disto, nos fala do Cristo Deus-Homem; do Cristo Eterno e Glorioso. Aliás, só podemos falar do Cristo Salvador, se Ele de fato for – como é –, o Deus encarnado, visto que a nossa reden-ção não foi levada a efeito pelo Logos divino, nem pelo “Jesus humano”, mas por Jesus Cristo: Deus-Homem.51 Não somos o senhor do Cristo, antes, seus servos. Não pretendamos apresentá-lo com cores da moda, com “tons pastéis”, tão saboro-sos em determinadas épocas.52 A teologia é serva da Escritura. Somente assim ela poderá ser relevante à Igreja e a toda a humanidade na apresentação do Cristo con-forme é-nós dado conhecer nas Escrituras. Parece-nos oportuno, lembrar a advertência de Calvino (1509-1564):

“Devemos precaver-nos para que, cedendo ao desejo de adequar Cris-to às nossas próprias invenções, não o mudemos tanto (como fazem os papistas), que ele se torne dessemelhante de si próprio. Não nos é permiti-do inventar tudo ao sabor de nossos gostos pessoais, senão que pertence exclusivamente a Deus instruir-nos segundo o modelo que te foi mostrado [Ex 25.40]”.53

No decorrer de nosso estudo, pretendemos responder às questões levantadas a-cima, bem como a outras que nos pareçam pertinentes.

C. Definição de Evangelização: Podemos definir operacionalmente a evangelização, como sendo a proclama-ção essencial54 da Igreja de Cristo, que consiste no anúncio de Suas perfeições e de Sua obra salvífica, conforme ensinadas nas Sagradas Escrituras, reivindicando pelo Espírito, que os homens se arrependam de seus pecados e creiam salvadoramente em Cristo. Evangelizar significa confrontar os homens com as reivindicações de Cristo, de-correntes do caráter de Deus. Deste modo, a Evangelização deve ser definida dentro de uma perspectiva da sua mensagem, não do seu resultado. Nem toda proclamação que “surte efeito” é evan-

51

Vd. J. Calvino, As Institutas, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985, II.14.3. 52

“A essa altura, o evangelicalismo é fortemente contracultural, defendendo o direito fun-damental do cristianismo de ser dominado por Cristo, em vez de dominá-lo à luz dos costu-mes sociais transitórios contemporâneos” (Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 30). 53

João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 8.5), p. 209. 54

Coloquei a evangelização como uma “proclamação essencial”, por entender que a Igreja por si só já é um testemunho do “Evangelho de Deus” e, como tal, faz parte da sua essência anunciá-lo como realidade historificada. João Calvino (1509-1564) observou com precisão, que uma das marcas da I-greja de Cristo, é a “pregação pura da Palavra de Deus” (Vd. As Institutas, Dedicatória, 10; IV.1.9-12; IV.2.1).

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gelização e, nem toda a pregação que “não alcança os resultados esperados”, dei-xou de ser evangelização.55 Esta visão pragmática não pode ser aplicada à evange-lização, sem que percamos de vista o seu significado fundamental. Há sempre o pe-rigo de forjarmos resultados partindo de métodos estranhos à Palavra. Por exemplo: em busca de uma maior vivacidade espiritual de nossos ouvintes, podemos criar um ambiente artificial de alegria e comunhão, tendo o pressuposto ilusório de que todas as pessoas demonstram o seu contentamento, edificação e crescimento do mesmo modo. Possivelmente sem perceber, elegemo-nos, sem nenhuma modéstia, o pa-drão comportamental litúrgico de todas as pessoas, tornamo-nos, por nossa conta e risco, o “metroliturgós”... Dentro desta insanidade tão comum em nossos tempos, começamos a pregar de forma “diferente” para atrair, contagiar e, até mesmo, con-verter pecadores endurecidos. Quando assim fazemos, estamos, sem nos darmos conta, passando a confiar em nossos métodos, e não mais no Evangelho como o Poder de Deus para a transformação (Rm 1.16). Insisto: a proclamação cristã deve ser avaliada primeiramente pelo seu conteúdo, não simplesmente pelo seu aparente resultado.

D. Pressupostos Teológicos da Proclamação: Quando anunciamos o Evangelho, levamos conosco, mesmo que ainda não tenhamos parado para analisar, alguns pressupostos fundamentais que norteiam o conteúdo de nossa proclamação e, mais do que isso, direcionam o nosso ato pro-clamante, bem como as nossas expectativas no que se refere aos frutos da evange-lização. São estes pressupostos que determinam a nossa maneira de ver e, portan-to, agir no mundo.56 A nossa percepção e ação fundamentam-se em nossos pressu-postos os quais sãos reforçados, transformados, lapidados ou abandonados em prol de outros, conforme a nossa percepção dos “fatos”. Portanto, a evangelização, como a praticamos e se praticamos, está relacionada à nossa perspectiva da Palavra. A questão epistemológica antecede à práxis.

55

Vejam-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 22ss.; 29ss.; John R.W. Stott, A Base Bíblica da Evangelização: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Paulo/ Belo Horizonte, MG.: ABU/Visão Mundial, 1982, p. 39-40. 56 “Seria atenuar os fatos dizer que a cosmovisão ou visão de mundo é um tópico importan-te. Diria que compreender como são formadas as cosmovisões e como guiam os limitam o pensamento é o passo essencial para entender tudo o mais. Compreender isso é algo como tentar ver o cristalino do próprio olho. Em geral, não vemos nossa própria cosmovisão, mas vemos tudo olhando por ela. Em outras palavras, é a janela pela qual percebemos o mundo e determinamos, quase sempre subconscientemente, o que é real e importante, ou irreal e sem importância” (Phillip E. Johnson no Prefácio à obra de Nancy. Pearcey, A Verdade Absoluta: Libertando o Cristianismo de Seu Cativeiro Cultural, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assem-bléias de Deus, 2006, p. 11). “Todas as pessoas têm seus pressupostos, e elas vão viver de modo mais coerente possível com estes pressupostos, mais até do que elas mesmas possam se dar conta. Por pressupostos entendemos a estrutura básica de como a pessoa encara a vida, a sua cosmovisão básica, o filtro através do qual ela enxerga o mundo. Os pressupostos apóiam-se naquilo que a pes-soa considera verdade acerca do que existe. Os pressupostos das pessoas funcionam como um filtro, pelo qual passa tudo o que elas lançam ao mundo exterior. Os seus pressupostos fornecem ainda a base para seus valores e, em consequência disto, a base para suas decisões” (Francis A. Schaeffer, Como Viveremos?. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 11).

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Vejamos alguns desses pressupostos.

1. A Inspiração e Inerrância das Escrituras:57 Entendemos a inspiração, como sendo a influência sobrenatural do Espírito de Deus sobre os homens separados por Ele mesmo, a fim de registrarem de forma inerrante e suficiente toda a vontade revelada de Deus, constituindo este registro na única fonte e norma de todo o conhecimento cristão (2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21).58 Benjamin B. Warfield (1851-1921), comentando o Texto de 2Tm 3.16, diz:

"Numa palavra, o que se declara nesta passagem fundamental é, sim-plesmente, que as Escrituras são um produto divino, sem qualquer indica-ção da maneira como Deus operou para as produzir. Não se poderia es-colher nenhuma outra expressão que afirmasse, com maior saliência, a produção divina das Escrituras, como esta o faz. (...) Paulo (...) afirma com toda a energia possível, que as Escrituras são o produto de uma opera-ção especificamente divina".59

A palavra Qeo/pneustoj não significa "ins-pirado" mas, sim "ex-pirado"; ou seja, ao invés de soprado para dentro, soprado para fora. O que Paulo quer dizer, é que toda a Escritura Sagrada é soprada, exalada por Deus. Ou, se tomarmos a palavra apenas no sentido passivo, diremos que "Deus em sua revelação é soprado pelas páginas das Escrituras". Deste modo, podemos dizer que Deus é o Autor e o Conte-údo das Escrituras. A Bíblia é o resultado da vontade soberana de Deus, que se revelou e fez regis-trar fidedignamente esta revelação. É justamente devido ao fato de muitos cristãos terem negado de modo confessio-nal e/ou vivencial a inspiração e a inerrância das Escrituras, que tem havido tantas heresias em toda a história do Cristianismo. Este desvio teológico, acerca destas verdades, tem contribuído de forma acentuada, para que os homens não mais dis-cirnam a Palavra de Deus e, por isso, não possam usufruir da Sua operação eficaz levada a efeito pelo Espírito. Paulo escreve aos tessalonicenses: "Outra razão ainda temos nós para incessantemente dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de ho-

57

Sobre este tópico, veja-se, Hermisten M.P. Costa, A Inspiração e a Inerrância das Escrituras, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998. 58

“Toda a Escritura é inspirada por Deus (Qeo/pneustoj) e útil para o ensino, para a repreensão, pa-ra a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamen-te habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17). “Sabendo, primeiramente, isto: que nenhuma profe-cia da Escritura provém de particular elucidação; porque nunca jamais qualquer profecia foi dada por vontade humana; entretanto, homens santos falaram da parte de Deus, movidos pelo Espírito Santo” (1Pe 1.20-21). 59

B.B. Warfield, Revelation and Inspiration: In: The Works of Benjamin B. Warfield, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 2000 (Reprinted), Vol. I, p. 79.

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mens, e, sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está ope-rando eficazmente em vós, os que credes” (1Ts 2.13/Jo 17.17). Devemos observar aqui que os tessalonicenses receberam a pregação de Paulo reconhecendo na sua mensagem a procedência de Deus. Pelo Espírito eles creram, "acolheram" a men-sagem e, a partir de então, Deus continuou operando eficaz e poderosamente em sua vida; notem bem; na vida dos que creram. O ouvir deve ser acompanhado pela fé; a Palavra não pode ser dissociada da fé. “A Palavra só exerce o seu poder em nós quando a fé entra em ação”.60 (Hb 4.2).61 No ato evangelizador da Igreja, ela prega a Palavra de Deus, conforme a ordem divina expressa nas Escrituras; fala da salvação eterna oferecida por Cristo, confor-me as Escrituras; proclama as perfeições de Deus, conforme as Escrituras. Ora, se a Igreja não tem certeza da fidedignidade do que ensina, como então, poderá teste-munhar de forma honesta? Uma Igreja que não aceite a inspiração e a inerrância bíblica, não poderá ser uma igreja missionária.62 Como poderemos pregar a Palavra se não estivermos confian-tes do sentido exato do que está sendo dito? Como evangelizar se nós mesmos não temos certeza, se o que falamos procede da Palavra de Deus ou, está embasado numa falácia? Billy Graham, em 1974, no Congresso de Lausanne, na Suíça, afirmou correta-mente: “Se há uma coisa que a história da Igreja nos deveria ensinar, é a im-portância de um evangelismo teológico derivado das Escrituras”.63 Neste sentido, encontramos a convicção de Paulo, o grande missionário, de que a Palavra de Deus é fiel; por isso, ele a ensinava com autoridade (1Tm 1.15; 4.9/2Tm 4.6-8).64

60

João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 4.2), p. 101. 61

“Porque também a nós foram anunciadas as boas-novas, como se deu com eles; mas a palavra que ouviram não lhes aproveitou, visto não ter sido acompanhada pela fé naqueles que a ouviram” (Hb 4.2). 62

Não faço aqui nenhuma distinção entre “missão” e “evangelização” (Vd. R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 1). Orlando E. Costa, que diz haver uma confusão entre os termos, assim os distingue: “Missão e evangelismo são, pois, dois lados da mesma moeda. A moeda é Deus (Sic) e Sua atividade redentora em favor de toda a humanidade. Evangelismo é o anúncio dessa obra; missão é o mandamento que nos compele a pôr em ação esse anúncio” (Orlando E. Costas, La Iglesia e Su Mision Evangelizado-ra, Buenos Aires: La Aurora, 1971, p. 27). O autor acrescenta, de forma acertada, que a distinção e-quivocada entre “missão” e “evangelização, tem levado a Igreja a ter uma visão unilateral de missão: ou apenas no exterior, esquecendo-se do seu âmbito local, ou apenas local em detrimento daquela. (Vd. Ibidem., p. 33ss). Neste sentido, vejam-se as pertinentes observações de Francis A. Schaeffer (F. A. Schaeffer, Forma e Liberdade na Igreja: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Pau-lo/Belo Horizonte, MG.: ABU/Visão Mundial, 1982, p. 222). 63

Billy Graham, Por que Lausanne?: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, p. 20. 64

“Fiel é a palavra e digna de toda aceitação: que Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecado-res, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15). “Fiel é esta palavra e digna de inteira aceitação” (1Tm 4.9). “Quanto a mim, estou sendo já oferecido por libação, e o tempo da minha partida é chegado. Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé. Já agora a coroa da justiça me está guar-

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A grandiosidade da pregação consiste basicamente, não nos recursos de retórica (os quais certamente devem ser buscados), mas em sua pureza, em sua fidelidade à Palavra.65 Como bem disse Charles H. Spurgeon (1834-1892), “Se o que prega-rem não for a verdade, Deus não estará aí”.66 Assim sendo, a pregação grandi-osa é bíblica. Pois bem, se eu não creio na inspiração e inerrância da Bíblia, certa-mente, poderei ter consciência da biblicidade da minha pregação (basta que pregue o que está escrito), contudo, como poderei ter certeza da veracidade daquilo que prego, visto que neste caso, ser bíblico não é a mesma coisa que ser inerrante e por isso verdadeiro? Se destruo os fundamentos, cai todo o edifício. Creio que Satanás objetivando esmorecer o ímpeto evangelístico da Igreja, tem usado deste artifício: minar a doutrina da inspiração e inerrância das Escrituras, a fim de que a Igreja perca a compreensão de sua própria natureza e, assim, substitua a pregação evangélica por discursos éticos, políticos, sociais, filosóficos e de auto-ajuda.67 Aliás, a Escritura sempre foi um dos alvos prediletos de Satanás (Vd. Gn 3.1-5; Mt 4.3,6,8,9; 2Co 4.3,4).68 Satanás não diz diretamente algo a nós, mas dá a entender, induz, sugere uma ideia. Ele nos faz pensar de uma forma equivocada, dando-nos a impressão de que agora, de fato, descobrimos a verdade, temos a so-lução autônoma para o nosso problema e para os dos outros. A Eva, ele diz: “É assim que Deus disse: não comereis de toda árvore do jardim?” (Gn 3.1). Ora, Deus não tinha dito isto; ao contrário; de toda a árvore o homem po-deria comer exceto uma: a árvore do conhecimento do bem e do mal. No entanto, usando palavras semelhantes ele diz coisas bem diferentes. Na insinuação satânica havia a tentativa de dizer que Deus era mentiroso e que, portanto não deveria ser obedecido. Eva cedeu; duvidou da Palavra de Deus e consequentemente do Deus da Palavra. A Jesus, com fome no deserto, ele usa da mesma estratégia, dizendo: “Se és Fi-lho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pão” (Mt 4.3). O seu desejo é fazer com que Jesus duvide da Sua filiação divina ou, que tente

dada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda” (2Tm 4.6-8). 65

Vd. John H. Jowett, O Pregador, Sua Vida e Obra, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1969, p. 97. 66

C.H. Spurgeon, Firmes na Verdade, Lisboa: Edições Peregrino, 1990, p. 85. Alhures, Spurgeon, nos diz: “O verdadeiro ministro de Cristo sabe que o verdadeiro valor de um sermão está, não em seu molde ou modo, mas na verdade que ele contém. Nada pode compensar a ausência de ensino; toda retórica do mundo é apenas o que a palha é para o trigo, em contraste com o evangelho da nossa salvação. Por mais belo que seja o cesto do semea-dor, é uma miserável zombaria, se estiver sem sementes” (Lições aos Meus Alunos, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1982, Vol. II, p. 88). 67

Vejam-se: D. Martyn Lloyd-Jones, Pregação e Pregadores, São Paulo: Fiel, 1984, p. 9-10; James M. Boice, O Pregador e a Palavra de Deus: In: J.M. Boice, ed. O Alicerce da Autoridade Bíblica, São Paulo: Vida Nova, 1982, p. 143-167; J.C. Ryle, A Inspiração das Escrituras, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 15. 68

Veja-se: Hermisten M. P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001.

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prová-la, sucumbindo assim, à tentação. Aliás, este foi um desafio comum a Jesus Cristo: usar de Seu poder eterno para fazer o que desejasse; no entanto, em tudo Ele se submeteu ao Pai conforme o pacto eterno (Mt 26.29; Jo 8.28, 29,42; 17.1-6). Não satisfeito com a resposta de Jesus, Satanás continua: “Se és Filho de Deus, atira-te abaixo, porque está escrito: Aos seus anjos ordenará a teu respeito; que te guardem; e: Eles te susterão nas suas mãos, para não tropeçares nalguma pedra” (Mt 4.6). Mais tarde, na sua crucificação, o mesmo tipo de tentação é feito ao Senhor Je-sus: “E foram crucificados com ele dois ladrões, um à sua direita, e outro à sua es-querda. Os que iam passando blasfemavam dele, meneando a cabeça e dizendo: Ó tu que destróis o santuário e em três dias o reedificas! Salva-te a ti mesmo, se és Fi-lho de Deus, e desce da cruz! De igual modo, os principais sacerdotes, com os es-cribas e anciãos, escarnecendo, diziam: Salvou os outros, a si mesmo não pode salvar-se. É rei de Israel! Desça da cruz, e creremos nele. Confiou em Deus; pois venha livrá-lo agora, se, de fato, lhe quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus” (Mt 27.38-43) (Mc 15.30-32). Na insinuação diabólica há sempre uma tentativa de mostrar que o nosso cami-nho, a nossa opção é a melhor; a sua proposta sempre se configurará como a mais lógica e atraente. A desobediência a Deus de fato é, com frequência, o caminho que nos parece mais objetivo e prático, além de encontrarmos uma inclinação natural pa-ra ele. No entanto, a vontade de Deus para nós é que resistamos a estas tentações e continuemos crendo em Deus e na Sua Palavra, seguindo a rota proposta; o cami-nho de vida por Ele traçado para nós. A heresia normalmente surge assim: Satanás, que cita a Palavra de Deus,69 insi-nua que há algo mais profundo e rápido do que o árduo estudo das Escrituras; ele propicia “revelações especiais”, sonhos, “luz interior”. Ele nos diz que por intermédio destes meios podemos chegar a conhecer mais do que todos os homens. Que fi-nalmente descobrimos o “método” de Deus para o nosso “crescimento espiritual”, para adquirir uma visão mais abrangente do mundo que nos circunda. Satanás é o grande divulgador da “auto-ajuda”.70 Faça você mesmo sem necessidade de Deus e da sua Palavra; esta é a sua insinuação. “Satanás, furtivamente, se move sobre nós e gradualmente nos alicia por meio de artifícios secretos, de modo tal que quando chegamos a extraviar-nos, não nos apercebemos de como o fi-zemos. Escorregamo-nos gradualmente, até finalmente nos precipitarmos na ruína”.71 O alvo constante de Satanás é a Palavra de Deus. Ele procura tirá-la de nós, ou, senão, dar-nos uma visão distorcida do seu teor. Como bem disse Bonhoeffer (1906- 69

Bonhoeffer, com argúcia, disse que “Também Satanás sabe empregar a Palavra de Deus como arma na luta” (D. Bonhoeffer, Tentação, Porto Alegre, RS.: Editora Metrópole, 1968, p. 52). 70

Outro mal contemporâneo é aquilo que MacArthur chama de “teologia da auto-estima” e “psi-cologia da auto-estima” (Ver: John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cul-tura Cristã, 2002, p. 74ss). 71

João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 6.4), p. 151-152.

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1945): “A fraude, a mentira do diabo consiste na sua tentativa de fazer o homem acreditar que poderia viver sem a Palavra de Deus”.72 Com este propósito ele também age por intermédio de falsos mestres, dizendo-nos que pode nos levar à verdade plena... Foi isto que ocorreu na Igreja de Corinto: os falsos mestres usados por Satanás fizeram muitos crentes acreditarem que o A-póstolo Paulo era desprezível, portanto, não poderia dar-lhes ensinamento profundo. Nós sabemos quanto sofrimento isto trouxe à Igreja e a Paulo; quanta dor e desvios doutrinários e consequentemente um distanciamento de Deus. Satanás sempre ob-jetiva nos afastar de Deus e, quando damos crédito às suas insinuações, ele conse-gue o seu objetivo. Entretanto, a Igreja é chamada a proclamar com firmeza o Evangelho, conforme registrado na Bíblia e preservado pelo Espírito ao longo dos séculos: "Prega a pala-vra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a lon-ganimidade e doutrina” (2Tm 4.2). Calvino orienta-nos:

“Visto que Satanás está diariamente fazendo novos assaltos contra nós, é necessário que recorramos às armas, e é mediante a lei divina que so-mos munidos com a armadura que nos capacita a resistir. Portanto, quem quer que deseje perseverar em retidão e integridade de vida, então que aprenda a exercitar-se diariamente no estudo da Palavra de Deus; pois, sempre que alguém despreze ou negligencie a instrução, o mesmo cai fa-cilmente em displicência e estupidez, e todo o temor de Deus se desva-nece em sua mente”.73

A Igreja prega o Evangelho, consciente de que Ele é o poder de Deus para a sal-vação dos que crêem (Rm 1.16);74 por isso, recusar o Evangelho significa rejeitar o próprio Deus que nos fala (1Ts 4.8).75 Comentando Rm 1.16, Calvino diz que aque-les que se recusam ouvir “a Palavra proclamada estão premeditadamente re-jeitando o poder de Deus e repelindo de si a mão divina que pode libertá-los”.76 A Igreja proclama a Palavra, não as suas opiniões a respeito da Palavra, consciente que Deus age por meio das Escrituras, produzindo frutos de vida eterna

72

D. Bonhoeffer, Tentação, p. 60. 73

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 18.22), p. 383. “Nada é mais solicitamente intentado por Satanás do que impregnar nossas mentes, ou com dúvi-das, ou com menosprezo pelo evangelho” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.13), p. 35). 74

“Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego” (Rm 1.16). 75

“Dessarte, quem rejeita estas coisas não rejeita o homem, e sim a Deus, que também vos dá o seu Espírito Santo” (1Ts 4.8). 76

João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 1.16), p. 58.

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(Rm 10.8-17; 1Co 1.21; 1Co 15.11; Cl 1.3-6; 1Ts 2.13-14).77 A Igreja por si só não produz vida, todavia ela recebeu a vida em Cristo (Jo 10.10)78 por meio da Sua Pa-lavra vivificadora; deste modo, ela ensina a Palavra, para que pelo Espírito de Cristo, que atua mediante as Escrituras, os homens creiam e recebam vida abundante e e-terna. A Igreja anuncia a Palavra crendo na Sua autenticidade, sabendo que Ela é a Pa-lavra de Deus, poderosa para a salvação de todo aquele que crê. Quando anuncia-mos o Evangelho podemos ter a certeza de que Deus cumpre a Sua Palavra. Sem esta convicção não há lugar para a pregação eficaz.

2. A Universalidade do Pecado: Ao evangelizarmos, não saímos com uma “lanterna acesa”, procurando en-tre os homens aqueles que sejam pecadores. Também não abordamos as pessoas perguntando: “Você é pecador?” e no caso de uma resposta negativa, pedimos-lhe desculpas e vamos embora, buscando outros homens com “aparência” de pecador... Quando nos dirigimos aos homens apresentando a salvação por Cristo, estamos na realidade, reivindicando que eles se arrependam e creiam no Evangelho. Ao assim procedermos, estamos, de fato, pressupondo corretamente que todos os homens pecaram distanciando-se de Deus, estando perdidos, necessitando, portanto, da salvação. Esta é a convicção de Paulo: “.... todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23).

77

“Porém que se diz? A palavra está perto de ti, na tua boca e no teu coração; isto é, a palavra da fé que pregamos. Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação. Porquanto a Escritura diz: Todo aquele que nele crê não será confundido. Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de to-dos, rico para com todos os que o invocam. Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas! Mas nem todos obedeceram ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem acreditou na nossa pregação? E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.8-17). “Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação” (1Co 1.21). “Portanto, seja eu ou sejam eles, assim pregamos e assim crestes” (1Co 15.11). “Damos sempre graças a Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, quando oramos por vós, desde que ouvimos da vossa fé em Cristo Jesus e do amor que tendes para com todos os santos; por causa da esperança que vos está preservada nos céus, da qual antes ouvistes pela palavra da ver-dade do evangelho, que chegou até vós; como também, em todo o mundo, está produzindo fruto e crescendo, tal acontece entre vós, desde o dia em que ouvistes e entendestes a graça de Deus na verdade” (Cl 1.3-6). “Outra razão ainda temos nós para, incessantemente, dar graças a Deus: é que, tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de homens, e sim como, em verdade é, a palavra de Deus, a qual, com efeito, está operando eficazmen-te em vós, os que credes. Tanto é assim, irmãos, que vos tornastes imitadores das igrejas de Deus existentes na Judéia em Cristo Jesus; porque também padecestes, da parte dos vossos patrícios, as mesmas coisas que eles, por sua vez, sofreram dos judeus” (1Ts 2.13-14). 78

“O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10.10).

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A) PECADO COMO ALGO NIVELADOR:

O pecado é o grande nivelador de toda a humanidade: todos pecaram; todos estão no mesmo nível;79 não há lugar para arrogância ou supostas boas obras justificadoras (Rm 3.19-20).80 Se todos pecaram, isso significa que nós também pe-camos; se todos precisam de salvação, significa que nós também precisamos. “Pe-cado não é algo peculiar a uns poucos, senão que permeia o mundo intei-ro”.81 O pecado nos impossibilita totalmente de nos salvar a nós mesmos. Na Oração do Senhor temos um indicativo da universalidade do pecado. “O fato de Jesus ensinar a todas as pessoas a fazerem esta oração demonstra a uni-versalidade do pecado; e para repetir esta oração se requer um sentido de pecado”.82 A Escritura nos fala que o pecado, comum a todos nós (Rm 3.23), nos fez cativos (Jo 8.34; Rm 6.20; 7.2383), habitando em nós (Rm 7.17,20),84 mantendo-nos sob o seu domínio. Portanto, negar a nossa condição de pecadores, é negar a própria Pa-lavra de Deus, que diz: “Se dissermos que não temos cometido pecado, fazemo-lo mentiroso e a sua palavra não está em nós” (1Jo 1.10). “Não ser consciente de pecado algum é o pior pecado de todos”.85

B) A GRAVIDADE DO PECADO:

Sem a consciência do pecado não há Evangelho. Somente o Evangelho trata o pecado com seriedade.86 A Lei é o Evangelho ainda que não em sua plenitu-de. Contudo, sem a Lei não há consciência do pecado e, por isso mesmo, a convic-ção da necessidade de salvação. A Boa Nova de salvação engloba o pecado, as su-as consequências e a libertação de suas mazelas pela graça de Deus. Por isso é que podemos dizer que a Lei é graça.

79

Ver: Francis Schaeffer, A Obra Consumada de Cristo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2003, p. 70. 80

“Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.19-20). 81

João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.2), p. 52. 82

W. Barclay, El Padrenuestro, Buenos Aires: La Aurora/ABAP, 1985, p. 118. 83

“....Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34). “Porque, quando éreis escravos do pecado, estáveis isentos em relação à justiça” (Rm 6.20). “Mas vejo, nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros” (Rm 7.23). 84

“Neste caso, quem faz isto já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. (...) Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim” (Rm 7.17,20). 85

W. Barclay, El Padrenuestro, p. 118. 86

Veja-se: J. Grescham Machen, Cristianismo e Liberalismo, São Paulo: Os Puritanos, 2001, p. 69ss.

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É natural que os homens se inclinem prazerosamente para os ensinamentos que falam de suas virtudes e capacidade.87 O homem é hábil em buscar “uma capa e subterfúgio para seu pecado”.88 Ou, quem sabe, podemos nutrir até alguma no-ção sobre pecado, contudo, tendemos a pensar que isso é coisa praticada por pes-soas ignorantes, deste modo, o conhecimento, por si só, nos liberta desta prática, supomos. Portanto, falar de pecado é algo que não encontra tão facilmente ouvidos prazerosos ou mesmo atentos. Daí, uma tendência comum é a tentativa de suavizar esta doutrina, mudando nomes, perspectivas ou simplesmente silenciado a respeito. Dentro de uma perspectiva mais, diria filosófica, tenta-se driblar a real questão por meio da amenização da realidade com a apresentação do perdão, como se a noção de perdão, por si só, trouxesse alívio, enquanto que a proclamação da realidade do pecado assustasse as pessoas, as afastassem da mensagem do Evangelho. Pois bem, talvez isso seja assim no campo especulativo onde o pecado e o perdão são apenas conceitos vagos sobre os quais reflito por meio de uma análise fenomenoló-gica, não me importando com a sua essência e fundamentação teológica. Deste mo-do, o que importa é a percepção subjetiva do conceito, não a veracidade e implica-ções dos fatos. Neste sentido, recordo-me a declaração de Erasmo de Roterdã (1466-1536): "Por certo são numerosos e fortes os argumentos contra a insti-tuição da confissão pelo próprio Senhor. Mas como negar a segurança em que se encontra aquele que se confessou a um padre qualificado?".89 Por isso, entendemos que somente pela graça, por meio da Palavra, podemos ter uma clara consciência de nossa pecaminosidade ativa e concreta e de sua afronta a Deus.90 Ter consciência do pecado significa reconhecer o quão urgentemente preci-samos de perdão. O Evangelho só se torna subjetivamente necessário – enquanto que na realidade ele é urgentemente necessário – quando as pessoas percebem, por Deus, a sua necessidade. Enquanto isso não acontecer, ele soará sempre como algo descartável. Quando tratamos deste tema, devemos ter em mente que a questão primeira não é a quantidade ou intensidade de nossos pecados, mas, o fato de que pecamos – e, diferentemente da compreensão de determinados pensadores humanistas, inclusive cristãos91 –; a gravidade do pecado está no ponto de que todo pecado é primeira-

87

Cf. João Calvino, As Institutas, II.1.2. 88

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2003, Vol. 3, (Sl 105.6), p. 671. 89

Erasmo, Opera Omnia, Leyde, 1704, v, col. 145-6, Apud Jean Delumeau, A Confissão e o Perdão: As Dificuldades da Confissão nos Séculos XIII a XVIII, São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 37. Em outro lugar, também indagou: “Por que se dar ao trabalho de confessar seus pecados a outro ser humano apenas pelo fato de ser um sacerdote, quando pode confessá-los direta-mente a Deus?” (Apud Alister E. McGrath, Teologia, sistemática, histórica e filosófica: uma introdu-ção à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 84). 90

“É mister graça e iluminação espiritual para crermos que nossos pecados são um proble-ma sério aos olhos de Deus, conforme a Bíblia nos diz. Precisamos orar para que Deus nos torne humildes e dispostos a aprender, quando estudamos esse tema” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 63. Ver também p. 70s). 91

Dentro desta perspectiva limitante do sentido do pecado, incluímos, entre outros, Cecil Osborne, que seguindo o pensamento de Erich Fromm (1900-1980) (“Pecado não se dirige primariamente

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mente contra Deus, o eternamente santo,92 que não tolera o mal (Hc 2.13). O que in-tensifica ainda mais a complexidade de nossa rebelião é o fato de rejeitarmos o Seu infinito amor plenificado em Jesus Cristo.93 Schaeffer (1912-1984) coloca a questão nestes termos:

“Nós pecamos deliberadamente contra o santo de Deus; é por isso que a nossa situação é desesperadora. [...] “O problema não está na quantidade de pecados que praticamos, mas em quem ofendemos. Nós pecamos contra um Deus infinitamente santo, que realmente existe. E, a partir do momento em que pecamos contra um Deus infinitamente santo, que realmente existe, nosso pecado é infinito”.94

O problema é que o pecado não nos deixa perceber as suas consequências; es-tamos totalmente alienados de Deus. Isso nos conduz ao próximo ponto.

C) A PERDA DA DIMENSÃO DA GRAVIDADE DO PECADO:

1) Desconsideração do que éramos e do que nos tornamos: Por outro lado, o que nos torna tantas vezes indiferentes, é a nossa to-

contra Deus, mas contra nós mesmos” (Erich Fromm, Psicanálise e Religião, 2ª ed. Rio de Janei-ro: Livro Ibero-Americano, Ltda., 1962, p. 105). Do mesmo modo, ver a obra de Fromm, Análise do Homem, São Paulo: Círculo do Livro, (s.d.), 218p), escreveu: “Pecado é essencialmente um erro contra si mesmo ou contra outro ser humano” (Cecil Osborne, A Arte de Compreender-se a Si Mesmo, Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 139). Do mesmo modo, esse conceito tem sido amplamen-te difundido por um discípulo de Norman Vincent Peale, Dr. Robert Schuller, que enfatiza: “o peca-do é uma ofensa psicológica a si mesmo” (Vejam-se as pertinentes críticas a esta posição em: John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 78ss). 92

"O pecado envolve uma certa responsabilidade, por um lado, responsabilidade esta sur-gida da santidade de Deus, e, por outro lado, da seriedade do pecado como oposição à-quela santidade" (John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cris-tã, 1993, p. 29). “Jamais compreenderemos o que o pecado realmente é, enquanto não a-prendermos a pensar nele em termos de nosso relacionamento com Deus” (J.I. Packer, Vocá-bulos de Deus, p. 64). 93

“O incrédulo despreza o amor de Deus. Se este amor fosse pequeno, seria um pecado pequeno ignorá-lo. Se é grande, é grande pecado rejeitá-lo. Mas o fato é que este amor é infinito. Isso faz da rejeição deste amor um pecado de proporções infinitas” (R.B. Kuiper, E-vangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 19). “Como o amor de Deus é infinito, desprezar esse amor é pecado de proporções infinitas No entanto, é o que fazem aqueles que, por sua descrença, rejeitam o Filho de Deus, dom do Seu amor. (...) Rejeitar este amor é incorrer no banimento eterno da presença de Deus. Responder com fé e amor é herdar a vida eterna. Nada pode ser mais urgente do que a escolha de uma destas atitudes" (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 72). 94

Francis Schaeffer, A Obra Consumada de Cristo, p. 75.

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tal incapacidade de perceber quem somos;95 o que éramos e no que agora nos tor-namos; o nosso pecado e a sua gravidade, como observou Ryle (1816-1900): “Os próprios animais, cujo odor nos é bastante ofensivo, não têm a menor ideia de que são tão mau cheirosos, e nem parecem tais uns para os outros. E o homem, o homem caído, segundo creio, não tem noção de quão vil coisa é o pecado aos olhos de Deus, cujas obras são absolutamente perfeitas”.96 A Bíblia no relato da Criação nos mostra que os seres criados por Deus (peixes, aves, animais domésticos, animais selváticos, etc.) o foram conforme as suas res-pectivas espécies. O homem, diferentemente, teve o seu modelo no próprio Deus Criador (Gn 1.26; Ef 4.24), sendo distinto assim, de todo o resto da Criação, parti-lhando com Deus de uma identidade desconhecida por todas as outras criaturas, vis-to que somente o homem foi criado “à imagem e semelhança de Deus”. Somente o homem pode partilhar de um relacionamento pessoal, voluntário e consciente com Deus. Por isso, quando se trata de encontrar uma companheira para o homem com a qual ele possa se relacionar de forma pessoal – já que não se encontra em todo o resto da criação –, a solução é uma nova criação, tirada da costela de Adão e, trans-formada por Deus em uma auxiliadora idônea, com a qual Adão se completará,97 passando a haver uma “fusão interpessoal”, “unidade essencial”, constituindo-se os dois uma só carne (Gn 2.20-24; Mc 10.8), unidos por Deus (Mt 19.6). A imagem e semelhança refletem, em Adão, características próprias por inter-médio das quais ele poderia relacionar-se consigo mesmo, com o mundo e com Deus. A imagem de Deus é uma precondição essencial para o seu relacionamento com Deus, e expressa, também, a sua natureza essencial: o homem é o que é, por ser a imagem de Deus: não existiria humanidade senão pelo fato de ser a imagem de Deus; esta é a nossa existência autêntica e toda inclusiva. “Ser humano é ser a imagem de Deus. Portanto, imago Dei descreve nosso estado normal. Não assinala algo que está dentro de nós, ou a algo acerca de nós, senão a nos-sa humanidade”.98 A imagem de Deus não é algo colado ou anexado a nós po-dendo ser tirado ou recolocado. Antes, é algo essencial ao nosso ser. “A imagem de Deus é intrínseca à humanidade. Não seríamos humanos sem ela. De to-da a criação, somente nós somos capazes de ter um relacionamento pesso-al consciente com o Criador e de reagir a Ele”.99 Portanto, o homem não sim-plesmente possui a imagem de Deus, como algo externo ou acessório, antes, ele é a própria imagem de Deus.100

95

“A tragédia do mundo é que as pessoas não conhecem seu próprio ser; eles não sabem o que deveriam ser” (D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 43). 96

J.C. Ryle, Santidade, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1987, p. 26. 97

Ver: O. Palmer Robertson, Cristo dos Pactos, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1997, p. 69. 98

Gordon J. Spykman, Teología Reformacional: Un Nuevo Paradigma para Hacer la Dogmática, Jeni-son, Michigan: The Evangelical Literature League, 1994, p. 248-249. 99

Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1997, p. 207. 100

Vd. Morton H. Smith, Systematic Theology, Greenville, South Carolina: Greenville Seminary Press, 1994, Vol. 1, p. 238.

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Desde a criação o homem foi colocado numa posição acima das outras criaturas, cabendo-lhe o domínio sobre os outros seres criados, sendo abençoado por Deus com a capacidade de procriar-se (Gn 1.22)101 e dispondo de grande parte da criação para o seu alimento (Gn 1.26-30; 2.9). Como indicativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o Criador compartilha com ele, abençoando e capacitando-o,102 do poder de nomear os animais – envolvendo neste processo, inteligência e não arbitrariedade –, e também de dar nome à sua mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20). E mais: Deus delega-lhes poderes para cultivar (db;[') (‘abãr) (lavrar, servir, trabalhar o solo) e guardar (rm;v') (shãmar) (proteger, vigiar, manter as coisas)103 o jardim do É-den (Gn 2.15/Gn 2.5; 3.23), demonstrando a sua relação de domínio, não de explo-ração e destruição, antes, um cuidado consciente, responsável e preservador da na-tureza:104 “6 Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: 7 ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo; 8 as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares” (Sl 8.6-8). No entanto, todas estas atividades envolvem o trabalho compartilhado por Deus com o ser humano. O nomear, procriar, dominar, guardar e cultivar refletem a graça providente e capacitante de Deus. Ao homem foi conferido o poder de ir além da matéria, podendo raciocinar, esta-belecer conexão e visualizar o invisível, concretizar os seus propósitos ou modificá-los conforme a sua “visão” primeira, etc. “O pensamento e o conhecimento do homem, apesar de serem extraídos de seu cérebro, são todavia em sua es-sência uma atividade inteiramente espiritual, pois transcendem aquilo que ele pode ver e tocar”.105 Coube ao homem por determinação de Deus, o domínio sobre toda a criação infe-rior. Em outro lugar escrevemos: “O homem foi coroado como rei da criação divina; foi-lhe dado domínio sobre todas as criaturas inferiores. Como tal foi seu dever e privilégio fazer com que toda a natureza e todas as coisas cria-das colocadas sob seu governo servissem à sua vontade e propósito, para que ele e todo o seu glorioso domínio, glorificassem o Todo-Poderoso Criador e Senhor do Universo”.106 O homem não foi criado como um ser neutro entre o bem e o mal; ele foi formado 101

“Embora aos homens seja de natureza infundido o poder de procriar, Deus quer, entre-tanto, que seja reconhecido a Sua graça especial que a uns deixa sem progênie, a outros agracia com descendência, pois que dádiva Sua é o fruto do ventre” (Sl 127.3). (João Calvi-no, As Institutas, I.16.7). 102

Ver Gerard Van Groningen, Revelação Messiânica no Velho Testamento, Campinas, SP.: Luz pa-ra o Caminho, 1995, p. 97. 103

Vejam-se: Gn 3.24; 30.31; 2Sm 15.16; Sl 12.7; Is 21.11-12. 104 Veja-se: Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, p. 48-50. 105

Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 18. 106

Hermisten M.P. Costa, Reflexões Antropológicas, Campinas, SP., 1979, p. 13. (Trabalho não pu-blicado).

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bom, santo, como Deus o é de forma absoluta. Daí que, segundo a própria avaliação do seu Autor, tudo “era muito bom” (Gn 1.31). Ele foi formado em "retidão" e "verda-deira santidade" (Ec 7.29; Ef 4.24; Cl 3.10).107 A santidade e retidão originais do homem não significam simplesmente inocência, mas, sim, o desejo inerente de ter maior comunhão com Deus e agradar-Lhe; havia uma perfeita harmonia entre o seu ser e a Lei Divina. O homem conhecia e tinha prazer na vontade divina. A santi-dade dependia fundamentalmente desta sua comunhão com o Criador. O homem é a “expressão mais nobre e sumamente admirável de Sua justiça, e sabedoria e bondade”.108 Antes de pecar, Adão tinha uma compreensão genuína a respeito de Deus. No entanto, “após a sua rebelião, ficou privado da verdadeira luz divina, na au-sência da qual nada há senão tremenda escuridão”.109 O seu conhecimento tornou-se totalmente nulo quanto à salvação.110 A queda trouxe sérias consequên-cias: a morte e a escravidão. “Como a morte espiritual não é outra coisa senão o estado de alienação em que a alma subsiste em relação a Deus, já nas-cemos todos mortos, bem como vivemos mortos até que nos tornamos parti-cipantes da vida de Cristo”.111 O homem perdeu totalmente seu discernimento espiritual: ele está morto! Portanto, o grande problema do homem é a sua permanente rebelião contra Deus.112 Pecado consiste basicamente numa atitude errada para com Deus. “Pe- 107

“Eis o que tão-somente achei: que Deus fez o homem reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” (Ec 7.29. “E vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e reti-dão procedentes da verdade” (Ef 4.24). “E vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Cl 3.10). Calvino (1509-1564) explica as expressões: "Portanto, por essa palavra, a perfeição de nossa natureza com-pleta é designada, como ela apareceu quando Adão foi dotado de um correto julgamen-to, tinha afeições em harmonia com a razão, tinha todos os sentidos sãos e bem regulados, e verdadeiramente excedido em tudo o que é bom” (John. Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Vol. 1, (Gn 1.26), p. 94-95). 108

João Calvino, As Institutas, I.15.1. 109

João Calvino, Efésios, (Ef 4.18), p. 137. 110

“Depois da Queda do primeiro homem, nenhum conhecimento de Deus valeu para a salvação sem o Mediador” (João Calvino, As Institutas, II.6.1). 111

João Calvino, Efésios, (Ef 2.1), p. 51. “O gênero humano, depois que foi arruinado pela queda de Adão, ficou não só privado de um estado tão distinto e honrado, e despojado de seu primevo domínio, mas está também mantido cativo sob uma degradante e ignomínia escravidão” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 8.6), p. 171). “O primeiro homem foi criado por Deus em retidão; em sua queda, porém, ar-rastou-nos a uma corrupção tão profunda, que toda e qualquer luz que lhe foi originalmente concedida ficou totalmente obscurecida” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 62.9), p. 579). “Todos nós estamos perdidos em Adão” (João Calvino, Efésios, (Ef 1.4), p. 24). “Não te-remos uma ideia adequada do domínio do pecado, a menos que nos convençamos dele como algo que se estende a cada parte da alma, e reconheçamos que tanto a mente quanto o coração humanos se têm tornado completamente corrompidos” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 51.5), p. 431). 112

“O pecado é antes um poder militante diametralmente oposto à vontade divina e seus propósitos” (Gustaf Aulén, A Fé Cristã, São Paulo: ASTE., 1965, p. 143).

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Fundamentos da Teologia Reformada e de sua proclamação – Rev. Hermisten – 10/10/10 – 29

cado não é tanto uma expressão do que fazemos quanto uma expressão do nosso relacionamento com Deus”, interpreta Lloyd-Jones.113 A Palavra de Deus ao povo de Israel permanece como verdade para todos aqueles que ainda se en-contram distantes dEle: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim” (Is 1.2). Todos, sem exceção, estão nesta situação, até que conheçam, pela fé, salva-doramente a Cristo. O homem desde a queda encontra-se sob o domínio do pecado e, por isso mesmo é incapaz de responder positivamente ao chamado externo do Evangelho. O pecado corrompeu o intelecto, a vontade e a faculdade moral de toda a raça humana; por isso, o homem está morto espiritualmente, sendo escravo do pecado (Gn 6.5; 8.21; Is 59.2; Jo 8.34,43,44 Rm 3.9-12,23; Ef 2.1,5; Cl 1.13; 2.13)114 e, nada pode fazer – e na realidade nem sequer deseja – para retornar à comunhão perdida. Como disse o Senhor Jesus Cristo: “Em verdade, em verdade vos digo: to-do o que comete pecado é escravo do pecado”. (Jo 8.34) (Vejam-se: Is 64.6; Rm 6.6). Agora “O homem peca com o consentimento de uma vontade pronta e disposta”.115A depravação total é justamente isto: a contaminação de todas as nos-sas faculdades pelo pecado. Perdemos totalmente a nossa capacidade de percep-ção espiritual. As coisas de Deus soam como loucura (1Co 1.18-21; 2.6-8; 12-16). A nossa lógica tão hábil para desvendar os mistérios do saber e desmantelar sofismas, se mostra totalmente inadequada e incapaz para perceber a realidade da Palavra que nos fala de Deus e do que somos. “O intelecto do homem está de fato ce-gado, envolto em infinitos erros e sempre contrário à sabedoria de Deus; a vontade, má e cheia de afeições corruptas, odeia a justiça de Deus; e a for-ça física, incapaz de boas obras, tende furiosamente à iniquidade”.116

113

D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Sele-cionadas, 2003, p. 25-26. 114

“Viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração” (Gn 6.5). “.... o SENHOR (...) disse consigo mesmo: Não tornarei a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade....” (Gn 8.21). “.... as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.2). “Replicou-lhes Je-sus: Em verdade, em verdade vos digo: todo o que comete pecado é escravo do pecado. (...) Qual a razão por que não compreendeis a minha linguagem? É porque sois incapazes de ouvir a minha pa-lavra. Vós sois do diabo, que é vosso pai, e quereis satisfazer-lhe os desejos. Ele foi homicida desde o princípio e jamais se firmou na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira” (Jo 8.34,43,44). “Que se conclui? Te-mos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12). “.... todos pecaram e carecem da glória de Deus” (Rm 3.23). “Ele vos deu vida, estando vós mortos nos vossos delitos e pecados, nos quais an-dastes outrora, segundo o curso deste mundo, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito que agora atua nos filhos da desobediência; (...) e estando nós mortos em nossos delitos, nos deu vida juntamente com Cristo, —pela graça sois salvos” (Ef 2.1,5). “Ele nos libertou do império das trevas e nos transportou para o reino do Filho do seu amor (...). E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdo-ando todos os nossos delitos” (Cl 1.13; 2.13). 115

João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 5, p. 16. 116

João Calvino, Instrução na Fé, Cap. 4, p. 15.

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Ainda que o homem não seja absolutamente mau − não é tão mau quanto poderia −, é extensivamente mau − todo o seu ser está contaminado pelo pecado.117 O pe-cado nos domina completamente; na linguagem de Isaías, “toda a cabeça está do-ente e todo o coração enfermo. Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cou-sa sã, são feridas, contusões e chagas inflamadas, umas e outras não espremidas, nem atadas, nem amolecidas com óleo” (Is 1.5-6). “Não teremos uma ideia ade-quada do domínio do pecado, a menos que nos convençamos dele como algo que se estende a cada parte da alma, e reconheçamos que tanto a mente quanto o coração humanos se têm tornado completamente corrom-pidos”.118 Calvino, interpretando Rm 8.7, diz:

“....nada, senão a morte, procede dos labores de nossa carne, visto que os mesmos são hostis à vontade de Deus. Ora, a vontade de Deus é a norma da justiça. Segue-se que tudo quanto seja contrário a ela é injusto; e se é injusto, também traz, ao mesmo tempo, a morte. Contemplamos a vida em vão, caso Deus nos seja contrário e hostil, pois a morte, que é a vingança da ira divina, deve necessariamente seguir de imediato a ira di-vina. “Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos o-posta à vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a retidão”.119

O homem foi criado essencialmente como ser social.120 O pecado alienou-nos de

117

"Lembremo-nos de que nossa ruína se deve imputar à depravação de nossa natureza, não à natureza em si, em sua condição original, para que não lhe lancemos a acusação contra o próprio Deus, autor dessa natureza" (J. Calvino, As Institutas, II.1.10). Vejam-se: Confis-são de Westminster, VI.2; IX.3; Catecismo Menor de Westminster, Questão 18; Catecismo de Heidel-berg, Questões 5 e 7; Cânones de Dort, III e IV; L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 248; W.J. Seaton, Os Cinco Pontos do Calvinismo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 6-7; Duane E. Spencer, TULIP: Os Cinco Pontos do Calvinismo à Luz das Escrituras, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1992, p. 39; L. Boettner, La Predestinaci-ón, Grand Rapids, Michigan: SLC. (s.d.), p. 55-73; A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1977, p.101-119; Edwin H. Palmer, Doctrinas Claves, Carlisle, Pennsylvania: El Estandarte de la Ver-dad, 1976, p. 11-36; A.A. Hodge, Esboços de Theologia, Lisboa: Barata; Sanches, 1895, Cap. XX, p. 312-321; John L. Dagg, Manual de Teologia, São Paulo: Fiel, 1989, p. 126-130. 118

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 51.5), p. 431. Do mesmo modo MacArthur: “A de-pravação (...) significa que o mal contaminou cada aspecto da humanidade – coração, mente, personalidade, emoções, consciência, razões e vontade (Cf. Jr 17.9; Jo 8.44)” (John MacArthur Jr., Sociedade sem Pecado, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 81). 119

João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.7), p. 266-267. 120

“O homem foi formado para ser um animal social” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (Reprinted), Vol. I, (Gn 2.18), p. 128). Em outro lugar: “O homem é um animal social de natureza, consequente-mente, propende por instinto natural a promover e conservar esta sociedade e, por isso, ob-servamos que existem na mente de todos os homens impressões universais não só de uma certa probidade, como também de uma ordem civil” (João Calvino, As Institutas, II.2.13).

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Deus e de nosso semelhante.121 Assim, o pecado, de certa forma, desumanizou-nos. A Queda trouxe consequências desastrosas à imagem de Deus refletida no homem. Após a queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e semelhança de Deus (aspecto metafísico): Apesar de o pecado ter sido devastador para o homem, Deus não apagou a sua “imagem”, ainda que a tenha corrompida,122 alienando-o de Deus. O pecado trouxe como implicação a perda do aspecto ético da imagem de Deus.123 A nossa vontade, como agente de nosso intelecto,124 agora, é oposta à vontade de Deus: “Observemos aqui que a vontade humana é em todos os aspectos oposta à vontade divina, pois assim como há uma grande diferença entre nós e Deus, também deve haver entre a depravação e a re-tidão”.125 A imagem que agora refletimos estampa mais propriamente o caráter de Satanás.126 Deus faz uma analogia extremamente forte para ilustrar a nossa situação. Ele to-ma dois animais difíceis de trato: o boi e o jumento. Mostra que a obtusidade, a tei-mosia e a dificuldade de condução destes animais dão-se pela sua própria natureza; no entanto, assim mesmo, eles sabem reconhecer os seus donos, aqueles que lhes alimentam. O homem, por sua vez, como coroa da criação, cedendo ao pecado per-deu totalmente o seu discernimento espiritual; já não reconhecemos nem mesmo o

121

“Pelo pecado estamos alienados de Deus” (João Calvino, Efésios, (Ef 1.9), p. 32); “Tão logo Adão alienou-se de Deus em consequência de seu pecado, foi ele imediatamente despo-jado de todas as coisas boas que recebera” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 2.5), p. 57). “Como a vida espiritual de Adão era o permanecer unido e ligado a seu Criador, assim também o dEle alienar-se foi-lhe a morte da alma” (João Calvino, As Institutas, II.1.5). 122

Vejam-se: João Calvino, As Institutas, I.15.4; II.1.5; Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana, Bar-celona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 13; João Calvino, Efésios, (Ef 4.24), p. 142; João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 8.5), p. 169; Vol. 2, (Sl 62.9), p. 579. 123

Vejam-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 51.5), p. 431-432. John Calvin, Commen-taries on the Epistle of James, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, (Calvin's Commentaries, Vol. XXII), (Tg 3.9) p. 323; As Institutas, I.15.8; II.2.26,27. 124

Ver: James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 111. Agostinho (354-430), comentando o Salmo 148, faz uma analogia muito interessante: “Como nossos ouvidos captam nossas palavras, os ouvidos de Deus captam nossos pensamentos. Não é possível agir mal quem tem bons pensamentos. Pois as ações procedem do pensamento. Ninguém pode fazer alguma coisa, ou mover os membros para fazer algo, se primeiro não preceder uma ordem de seu pensamento, como do interior do palácio, qualquer coisa que o impe-rador ordenar, emana para todo o império romano; tudo o que se realiza através das pro-víncias. Quanto movimento se faz somente a uma ordem do imperador, sentado lá dentro? Ao falar, ele move somente os lábios; mas move-se toda a província, ao se executar o que ele fala. Assim também em cada homem, o imperador acha-se no seu íntimo, senta-se em seu coração; se é bem e ordena coisas boas, elas se fazem; se é mau, e ordena o mal, o mal se faz” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 9/3), 1998, Vol. III, (Sl 148.1-2), p. 1126-1127). 125

João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.7), p. 266-267. 126

“Moral e espiritualmente, o caráter do homem estampa a imagem de Satanás, e não a de Deus. Ora, é precisamente isso o que a Bíblia quer dizer quando fala sobre o homem caí-do no pecado como ‘filho do diabo’. (Jo 8.44; Mt 13.38; At 13.10 e 1Jo 3.8)” (J.I. Packer, Vo-cábulos de Deus, p. 67).

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nosso Criador; antes lhe voltamos as costas e prosseguimos em outra direção:127 “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende. Ai desta nação pecaminosa, povo carregado de iniquidade, raça de malignos, filhos corruptores; abandonaram o SE-NHOR, blasfemaram do Santo de Israel, voltaram para trás” (Is 1.3-4). 2) Desconsideração da Santidade de Deus revelada na Cruz: Devido à depravação de nossa natureza, todos pecamos e somos res-ponsáveis diante de Deus; a proximidade de Deus nos faz mais sensíveis a isto; a contemplação da Sua gloriosa santidade realça de forma eloquente a gravidade de nosso pecado.128 Diversos servos de Deus ilustram este fato: Pedro, após pesca maravilhosa, registra Lucas, “prostrou-se aos pés de Jesus, dizendo: Senhor, retira-te de mim, porque sou pecador” (Lc 5.8). Paulo, o apóstolo de Cristo, que tinha uma visão correta da glória de Deus e da sua dimensão espiritual, escreve: “....Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal” (1Tm 1.15). Esta experiência foi comum também a Moisés, Jó, Isaías, Ezequiel, Daniel e João (Vd. Ex 3.6; Jó 42.5-6; Is 6.1-5; Ez 1.28; Dn 10.9; Ap 1.17). O fato é que jamais poderemos ser santos sem que antes e durante, tenhamos a consciência de nosso pecado. De modo enfático assevera Lloyd-Jones (1899-1981): “Nunca houve um santo sobre a face da terra que não tenha visto a si mesmo como um vil pecador; de modo que se você não sente que é um vil pecador, não é parecido com os santos”.129 No entanto, como o nosso conhecimento de Deus é menor do que estes homens tiveram, a nossa consciência do pecado também é diminuta. A contempla-ção da santidade de Deus ilumina as nossas trevas, mostrando-nos como realmente somos e o quanto necessitamos de Deus. A santidade de Deus se revela na cruz, onde o seu amor e a sua justiça se evi-denciam de forma eloquente e perfeita.130 A cruz não fez Deus nos amar, antes, o Seu amor por nós a produziu e se revelou ali.131

Enquanto para nós as circunstâncias servem de pretexto para os nossos atos pe-caminosos e os posteriores atenuantes, para Deus tais circunstâncias – sobre as

127

Lloyd-Jones explora com vivacidade a analogia do texto. Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, p. 43-46. 128

Ver: Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001; J.I. Packer, Vocábulos de Deus, p. 63-64. 129

David M. Lloyd-Jones, O Clamor de um Desviado: Estudos sobre o Salmo 51, São Paulo: PES., 1997, p. 40. 130

“A cruz e a coroa revelam não apenas as virtudes do Filho, mas também do Pai. Todos os atributos divinos alcançam plena expressão aqui. Dentre todas elas, uma sobressai: a justiça do Pai. Se Ele não tivesse sido justo, certamente não teria entregue Seu Filho Unigênito. E também, se não fosse justo, Ele não teria recompensado o Filho por Seu sofrimento. Mais, por meio dos louvores da multidão salva, o Pai (bem como o Filho) é glorificado” (William Hen-driksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (Jo 17.1), p. 754). 131

Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Sele-cionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, Vol. 1), p. 426.

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quais tem total domínio: Ele também é o Senhor das circunstâncias – oportunizam a manifestação do que Ele é em Sua essência. O pecado não tornou Deus misericor-dioso, santo ou justo; Ele é eternamente misericordioso, santo e justo. No entanto, o pecado propiciou a Deus, por sua livre graça, revelar-se desta forma para conosco. Na cruz vemos a manifestação gloriosa dos atributos de Deus. “A justiça e o amor se encontraram e se abraçaram. Os santos atributos de Deus são glorificados juntamente na morte do Filho de Deus na cruz”. 132 Não haveria para nenhum de nós salvação de nossos pecados sem a justificação. Da mesma forma, existe a justificação porque Jesus Cristo é a nossa justiça; é Ele mesmo quem nos redime (1Co 1.30).133 Como escreveu Lloyd-Jones (1899-1981): “Se lhes fosse solicitado responder onde a Bíblia ensina a santidade de Deus mais poderosamente te-riam de ir ao Calvário. Deus é tão santo, tão plenamente santo, que nada senão aquela morte terrível poderia tornar possível que Ele nos perdoasse. A cruz é a suprema e a mais sublime declaração e revelação da santidade de Deus”.134 Na cruz temos a reconciliação do santo com o pecador, do perfeitamente justo com o totalmente injusto, do infinito com o finito; do Deus eterno com o homem temporal: “A cruz é o centro da história e a reconciliação de todas as antíte-ses”.135 Isaías diz que “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o SENHOR fez cair sobre ele [Jesus Cristo] a iniqui-dade de nós todos” (Is 53.6). 3) A Cruz realça a justiça gloriosa de Deus e o Seu invencível amor: O pecado fala de nossa condenação e, portanto, da nossa necessidade de salvação. A cruz revela este fato e, de forma gloriosa, nos mostra o caráter santo e justo de Deus. Sem a justiça de Deus não haveria condenação para os nossos pecados. “Se Deus perdoasse o pecado sem contudo ministrar sua justiça, deixaria de ser Deus. A maravilha deste plano é que Deus, ao colocar os nos-sos pecados sobre Cristo e ao tratar deles punindo-os em Cristo, pode per-doar-nos e ainda ser justo. Ele puniu o pecado, não o esqueceu, não o igno-rou”.136 Jamais poderemos entender o sentido da grandiosidade do perdão conce-

132

David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2ª ed. Rio de Ja-neiro: Textus, 2004, p. 222. 133

Ver: John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 19. 134 D. M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997, p. 97. “A santidade e a retidão do Seu ser eterno e do Seu caráter significam que Ele não pode ignorar o pecado. O pecado é uma realidade, um problema (...) até para Deus. É uma coisa que Ele vê e da qual tem que tratar, e assim manifesta a glória do Seu ser em Sua santidade e justiça” (D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evan-gélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 51). 135

Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 48. 136

D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 53. Veja-se também as páginas 105-106; William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004 (Jo 17.1), p. 754.

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dido por Deus sem a percepção adequada da nossa ofensa ao Deus Santo.137 “Somente aquele que conhece a grandeza da ira será dominado pela magnitude da misericórdia. Do mesmo modo é verdade: Somente aquele que experimentou a magnitude da misericórdia pode mensurar de quão grande ira somos devedores”.138 A certeza do perdão gratuito de Deus não deve nos levar a barateá-lo. Pense na gravidade do seu pecado e na obra vicária de Cristo. Sem o derramamento do san-gue do Cordeiro, não haveria remissão de pecados: todos pereceríamos. Calvino acentua: “Jamais aplicaremos seriamente o perdão divino, enquanto não ti-vermos obtido uma visão tal de nossos pecados, que nos inspire terror”.139 John Stott coloca este ponto em cores vivas:

“Quando (...) tivermos um vislumbre da deslumbrante glória da santida-de divina, e formos convencidos de nosso pecado pelo Espírito Santo de tal modo que tremamos na presença de Deus e reconheçamos o que so-mos, a saber, pecadores que merecem ir para o inferno, então, e somente então a necessidade da cruz ficará tão óbvia que nos espantaremos de jamais tê-la visto antes. “O pano de fundo essencial da cruz, portanto, é uma compreensão equilibrada da gravidade do pecado e da majestade de Deus. Se diminu-irmos uma delas, diminuímos a cruz”.140

A Trindade bendita em Seu amor e santidade provê a salvação do pecador. Pau-lo, considerando esta bendita realidade, louva a Deus: “Graça a vós outros e paz, da parte de Deus, nosso Pai, e do nosso Senhor Jesus Cristo, o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segun-do a vontade de nosso Deus e Pai, a quem seja a glória pelos séculos dos séculos. Amém!” (Gl 1.3-5).

D) A AÇÃO DA IGREJA:

Portanto, todo o labor evangelístico da Igreja se ampara neste pressupos-

137

Vejam-se: A. Booth, Somente pela Graça, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 15, 31; J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 121; Ja-mes M. Boice, O Evangelho da Graça, p. 106. 138

Gustav Stählin, o)rgh/, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Tes-tament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. V, p. 425. Vd. também: John Mur-ray, Redenção: Consumada e Aplicada, p. 20-21. 139

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 51.3), p. 424. 140

John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Florida: Editora Vida, 1991, p. 99. “Quando a percepção que temos de Deus e do homem, da santidade e do pecado, é tortuosa, então nossa com-preensão da expiação provavelmente também será tortuosa” (John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, p. 78). “A revelação do inferno na Escritura pressupõe uma profundidade de discerni-mento da santidade divina e da pecaminosidade humana e demoníaca que a maioria de nós não tem” (J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 238).

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to fundamental: Todos os homens pecaram, distanciando-se de Deus, o Seu Cria-dor, em Quem somente há vida. A Igreja anuncia o Evangelho sabendo que o ho-mem nada pode fazer para voltar à vida; todos estão mortos em seus delitos e peca-dos (Ef 2.1,5). Lloyd-Jones está correto ao declarar que “.... é completamente an-tiescriturístico favorecer qualquer tipo de evangelização que negligencie a doutrina sobre o pecado”.141 A Igreja evangeliza consciente de que o pecado envolve de forma terrível e de-sumanizante toda a raça humana; ela sabe que a cura para o homem não está nele mesmo, mas em Jesus Cristo, Aquele que restaura a nossa verdadeira humanidade. Somente o Deus criador pode restaurar definitivamente a Sua criatura; Ele se dispôs a isso por meio de Seu Filho amado que deu a sua vida pelo Seu Povo (Jo 3.16), co-fiando esta mensagem à Igreja, que proclama o Evangelho do Poder de Deus (Rm 1.16), reivindicando que todos os homens se arrependam de seus pecados e, por graça, tornem-se para Deus. “Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consi-go mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que so-mos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermé-dio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus. Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos jus-tiça de Deus. E nós, na qualidade de cooperadores com ele, também vos exortamos a que não recebais em vão a graça de Deus (porque ele diz: Eu te ouvi no tempo da oportunidade e te socorri no dia da salvação; eis, agora, o tempo sobremodo oportu-no, eis, agora, o dia da salvação) (2Co 5.18-6-2).

3. A Soberana Graça de Deus:

“A doutrina da soberania divina seria grosseiramente mal aplicada se porven-tura a invocássemos de uma maneira tal que viesse a diminuir a urgência, o impulso, a prioridade e o constrangi-mento obrigatório do imperativo evan-

gelístico” – J.I. Packer.142

O homem como ser paradoxal143 que é, tende a nutrir posições diferentes sobre o mesmo assunto, dependendo das circunstâncias que, amiúde são de caráter passional. Posso, por exemplo, defender a supremacia da lei, até que eu mesmo a tenha quebrado. Do mesmo modo, posso sustentar determinados princípios liberais ou conservadores, desde que a minha família não esteja em jogo, etc. Ou seja: ten-demos a ser mais subjetivos do que imaginamos ou estaríamos dispostos a admitir.

141

D.M. Lloyd-Jones, Santificados Mediante a Verdade, São Paulo: Publicações Evangélicas Sele-cionadas (Certeza Espiritual, Vol. 3), 2006, p. 115. 142

J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 26. 143

“O ser humano tende a ser paradoxal” (Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 123).

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Uma doutrina que facilmente é objeto de posicionamentos contraditórios é a sobe-rania de Deus.144 Gostamos de alardear a nossa liberdade, a nossa capacidade de escolha e persuasão. Quando assim fazemos, falar em soberania de Deus parece diminuir um pouco a nossa autoconfiança e suposta autonomia; portanto, conside-ramos ser melhor deixá-la guardada em alguma gaveta para onde empurramos os papéis que não estão sendo utilizados e não sabemos bem o que fazer com eles. No entanto, quando nos vemos sem recursos, sem perspectivas favoráveis, sem saber o que fazer, podemos, sem talvez nos darmos conta, nos contentar com uma fé sin-gela no cuidado de Deus e, podemos então dizer para nós mesmos: “Deus é sobe-rano, Ele sabe o que faz”; “nada acontece por acaso...”. A bem da verdade, nós mesmos, crentes em Cristo, com certa frequência tendemos a adotar atitude seme-lhante. Calvino (1509-1564) capta bem isso ao dizer: “Mesmo os santos precisam sentir-se ameaçados por um total colapso das forças humanas, a fim de a-prenderem, de suas próprias fraquezas, a depender inteira e unicamente de Deus”.145 Mas, afinal, Deus é ou não soberano? Parece que esta é uma das doutrinas mais repudiadas pelo homem natural e, ao mesmo tempo, é a doutrina mais consoladora para todos nós que cremos em Cristo Jesus. Uma das grandes dificuldades dos homens em todos os tempos é deixar Deus ser Deus;146 recebê-lo tal qual Ele Se revela, não cedendo à tentação de construí-lo dentro de nossos pressupostos culturais ou mesmo do nosso gosto pessoal.147 Es-tamos dispostos a fabricar nossos deuses para que estes possam cobrir as brechas de nossa compreensão. Deste modo, quando consigo dominar a realidade, já não preciso de Deus; quando não, invoco este meu deus para justificar as minhas cren-ças, expectativas e, ao mesmo tempo, a minha falta de fé. Dentro desta perspectiva, onde há ciência não precisamos de Deus; onde reina a ignorância há um espaço pa-ra um ser transcendente, destituído de sua glória, é verdade, mas assim mesmo um “ser superior”. Aqui há o esquecimento proposital, de que o ateísmo é também uma questão de fé.148 No Antigo Testamento os judeus insensíveis aos seus próprios pecados, tomaram o aparente silêncio de Deus como uma aprovação tácita de seus erros, projetando 144

Pink lamenta: “Hoje, porém, mencionar a soberania de Deus em muitos ambientes, é falar uma língua desconhecida” (A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 19). 145

João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 1.8), p. 22. 146

“Dizer que Deus é soberano é declarar que Deus é Deus” (A.W. Pink, Deus é Soberano, p. 19). 147

Veja-se: Alister E. McGrath, Paixão pela Verdade: a coerência intelectual do Evangelicalismo, São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 32-35. 148

“O ateísmo é uma questão de fé tanto quanto o cristianismo” (Alister McGrath, O Deus Desconhecido: Em Busca da Realização Espiritual, São Paulo: Loyola, 2001, p. 23). “Portanto, os homens que rejeitam ou ignoram a Deus o fazem não porque a ciência ou a razão requeira que o façam, mas pura e simplesmente porque querem fazê-lo” (Henry H. Morris, The Bible has the Answer, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1971, p. 16. Apud D. James Kennedy, Por Que Creio, Rio de Janeiro: JUERP., 1977, p. 33).

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em Deus o seu comportamento. Considerando que eles mesmos procediam deste modo, pensavam que Deus fosse igual a eles. No entanto, Deus, no momento pró-prio, exporia diante deles os seus delitos “Tens feito estas coisas, e eu me calei; pensavas que eu era teu igual; mas eu te arguirei e porei tudo à tua vista” (Sl 50.21). Calvino (1509-1564), diz que o homem pretende usurpar o lugar de Deus: “Cada um faz de si mesmo um deus e virtualmente se adora, quando atribui a seu próprio poder o que Deus declara pertencer-lhe exclusivamente”.149 De fato, os homens estão dispostos a reconhecer espontaneamente diversas vir-tudes em Deus: o seu amor, sua graça, bondade, perdão, tolerância, provisão, etc. Agora, a sua soberania, jamais.150 Pink (1886-1952) entende que “negar a sobe-rania de Deus é entrar em um caminho que, seguindo até à sua conclusão lógica, leva a manifesto ateísmo”.151 A nossa dificuldade está em reconhecer a Deus como o Senhor que reina.152 A Palavra, por sua vez, nos desafia a aprender com Ela a respeito de Deus. O nosso Deus, entre tantas perfeições, é o Deus sobe-rano; sem este atributo, Deus não seria Deus: “Verdadeiramente reconhecer a soberania de Deus é, portanto, contemplar o próprio Deus soberano”.153 No entanto, Jó demonstra a dificuldade de nossa compreensão, ao indagar: “Eis que is-to são apenas as orlas dos seus caminhos! Que leve sussurro temos ouvido dele! Mas o trovão do seu poder, quem o entenderá?” (Jó 26.14). Mas, o fato que faz par-te amplamente da experiência cristã, é que somente aquele que confia intensamen-te na soberania de Deus poderá encontrar a paz em meio as vicissitudes da vida.154 Estudemos este ponto doutrinário de tão grande relevância, como pressuposto da evangelização.

149

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 100.1-3), p. 549. Veja-se também: João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Caps. 1-3, p. 11-14. 150

Kennedy diz precisamente isso: “O motivo por que tantas pessoas se opõem a essa doutri-na (predestinação) é que elas querem um Deus que seja qualquer coisa, menos Deus. Talvez permitam-lhe ser algum psiquiatra cósmico, um pastor prestativo, um líder, um mestre, qual-quer coisa, talvez... contanto que Ele não seja Deus. E isso por uma razão muito simples... elas mesmas querem ser Deus. Essa sempre foi a essência do pecado – o fato que o homem pre-tende ser Deus” (James Kennedy, Verdades que Transformam, São Paulo: Editora Fiel, 1981, p. 31). 151

A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: Editora Fiel, 1977, p. 21. Em outro lugar: “Os idólatras do lado de fora da cristandade fazem ‘deuses’ de madeira e de pedra, enquanto que os milhões de idólatras que existem dentro da cristandade fabricam um Deus extraído de suas mentes carnais. Na realidade, não passam de ateus, pois não existe alternativa possível se-não a de um Deus absolutamente supremo, ou nenhum deus” (A.W. Pink, Os Atributos de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 28). “Defender a crença num ‘poder do alto’ nebuloso é balançar entre o ateísmo e um cristianismo total com suas exi-gências pessoais” (R.C. Sproul, Razão para Crer, São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 48). 152

Ver o sermão de Spurgeon sobre Mt 28.15 citado por Pink. A.W. Pink, Os Atributos de Deus, p. 32-33. 153

A.W. Pink, Deus é Soberano, p. 138. 154

Veja-se: John MacArthur Jr., Abaixo a Ansiedade, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 30.

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A) A LIBERDADE DE DEUS E DO SEU PODER:

Um dos aspectos fundamentais da soberania é a independência. Quando a nossa independência depende de algo alheio ao nosso controle, a nossa suposta capacidade de decidir livremente está ameaçada ou sofre de limitações que podem ser bastante comprometedoras. Na realidade, somente em Deus há a autonomia to-tal e absoluta. Spurgeon (1834-1892) enfatiza corretamente: "Deus é independen-te de tudo e de todos. Ele age de acordo com Sua própria vontade. Quan-do Ele diz: 'Eu farei', o que quer que diga será feito. Deus é soberano, e Sua vontade, não a vontade do homem, será feita".155

Deus Se apresenta nas Escrituras como de fato é, o Deus Todo-Poderoso (Onipo-tente), com capacidade para fazer todas as coisas conforme a Sua vontade (Sl 115.3; 135.6; Is 46.10; Dn 4.35; Ef 1.11);156 entretanto, Deus também Se mostra co-erente com as demais de Suas perfeições; ou seja, Deus exercita o Seu Poder em harmonia com todas as perfeições de Sua natureza (2Tm 2.13);157 a Sua vontade é eticamente determinada. O poder de Deus se harmoniza perfeitamente com a Sua vontade.158 A soberania de Deus se manifesta no fato dEle poder fazer tudo o que faz (poder ordenado) e mesmo aquilo que não realiza, visto que não determinou fa-zê-lo (poder absoluto). O poder absoluto de Deus envolve o seu poder ordenado.159 Deus exerce o Seu poder no cumprimento do que decretou e nas obras da provi-dência. Aliás, as obras da Providência consistem na execução temporal dos decre-tos eternos de Deus.160 Contudo, o que Deus realiza não serve de limites para o Seu poder. “Destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão”, adverte João Batista aos arrogantes descendentes da carne, mas, não da fé de Abraão (Mt 3.9). Contudo, Deus não fez isso. Por quê? Simples: porque não determinou. Entre tantos outros exemplos, podemos citar um que consiste numa grandiosa demonstração de fé e co-

155

C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 42-43. 156

“No céu está o nosso Deus e tudo faz como lhe agrada” (Sl 115.3). “Tudo quanto aprouve ao SE-NHOR, ele o fez, nos céus e na terra, no mar e em todos os abismos” (Sl 135.6). “... O meu conselho permanecerá de pé, farei toda da minha vontade” (Is 46.10). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Dn 4.35). “Nele (Jesus Cristo), digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o propósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.11). 157

“Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13). 158

“Deus tem poder para fazer tudo quanto Ele queira; e com certeza a pessoa que tenta separar o poder de Deus de Sua vontade, ou retratá-lo como incapaz de fazer o que Ele queira, o que o tal faz é simplesmente tentar rasgá-lo em pedaços” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 3, (Sl 78.18), p. 212). 159

Ver: Stephen Charnock, The Existence and Attributes of God, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Two Volumes in one), 1996 (Reprinted), Vol. 2, p. 12. 160

No Catecismo Maior de Westminster (1647) temos a pergunta 14: “Como executa Deus os seus decretos?”. Responde: “Deus executa os seus decretos nas obras da criação e da providên-cia, segundo a sua presciência infalível e o livre e imutável conselho da Sua vontade” Veja-se também: Vd. Agostinho, A Trindade, São Paulo: Paulus, 1994, III.4.9.

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ragem resultantes da percepção correta do poder e da vontade de Deus. Vejamos o contexto: Nabucodonosor rei da Babilônia havia levado cativa parte do povo de Judá para a Babilônia (605 a.C.). Entre os exilados estava o jovem Daniel e seus três a-migos. Eles se destacaram diante do rei por sua fidelidade a Deus e pelo fato de Daniel ter interpretado um sonho do rei, conforme a sabedoria concedida por Deus (Dn 1.17). O rei que tão rapidamente reconhecera a soberania de Deus (Dn 2.47), logo se esquece disso e constrói – certamente também com propósito religioso-político161 –, um obelisco (que era a sua imagem ou de algum deus babilônio) de ouro com cerca 30 metros de altura e três de largura, promovendo ostentosa consa-gração – inclusive com música bem cuidada –, acompanhada de uma ameaça real para aqueles que se negassem a adorar àquela imagem (Dn 3.1-7). Acontece que a promoção de Daniel e de seus amigos – simples exilados –, gerou o ciúme de outros líderes162 que, ainda que não ousassem desafiar a Daniel, preparam uma armadilha para Hananias, Misael e Azarias, sem dúvida para atingir a Daniel e enfraquecer o seu poder. Eles dizem ao rei que aqueles jovens judeus não adoravam, conforme o decreto real ao deus imperial (Dn 3.8-12). O rei então os chama e lhes faz a pergun-ta, mostrando-se profundamente arrogante; porém, conferindo-lhes assim, a oportu-nidade de retratação; o que de fato seria impossível. “Falou Nabucodonosor e lhes disse: É verdade, ó Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, que vós não servis a meus deuses, nem adorais a imagem de ouro que levantei? Agora, pois, estai dispostos e, quando ouvirdes o som da trombeta, do pífaro, da cítara, da harpa, do saltério, da gaita de foles, prostrai-vos e adorai a imagem que fiz; porém, se não a adorardes, sereis, no mesmo instante, lançados na fornalha de fogo ardente. E quem é o deus que vos poderá livrar das minhas mãos? Responderam Sadraque, Mesaque e Abe-de-Nego ao rei: Ó Nabucodonosor, quanto a isto não necessitamos de te responder. Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste” (Dn 3.14-18). Sadraque, Mesaque e Abede-Nego163 não sabiam se sobreviveriam à condenação do rei, no entanto, tinham certeza de que Deus Se assim O quisesse (poder ordena-do), nada nem ninguém poderia impedir-lhe (poder absoluto). “Os jovens não têm necessidade de um milagre para acreditar na onipotência divina, ao contrá-rio dos pagãos. Deus pode libertar do fogo: se não o faz, alimenta outros pro-jetos aos quais é justo abandonar-se com extrema confiança”.164 Ou seja: Estes jovens conheciam o seu Deus de forma que sabiam que Ele tinha poder abso-luto para livrá-los; contudo, o que eles não poderiam fazer, e de fato não fizeram, era

161

“A estátua (...) não foi um ídolo senão um símbolo do glorioso poder de Babilônia. Sem embargo, se mandou que os homens a adorassem. Nesse instante o poder da Babilônia se converteu em ídolo” (S.G. De Graaf, El Pueblo de la Promesa, Grand Rapids, Michigan: Subomisi-on Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1981, Vol. II, p. 372). 162

Vejam-se: João Calvino, Daniel, São Paulo: Edições Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.8-12), p. 197; Joyce G. Baldwin, Daniel: Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1983, (Dn 3.8), p. 110. 163

Que tiveram os seus nomes mudados: “Entre eles, se achavam, dos filhos de Judá, Daniel, Hana-nias, Misael e Azarias. O chefe dos eunucos lhes pôs outros nomes, a saber: a Daniel, o de Beltessa-zar; a Hananias, o de Sadraque; a Misael, o de Mesaque; e a Azarias, o de Abede-Nego” (Dn 1.6-7). 164

B. Marconcini, Daniel: Um povo perseguido procura as fontes da esperança, São Paulo: Paulinas, 1984, p. 30.

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declarar levianamente que Deus os livraria.165 “[Deus] é poderoso para nos sal-var se assim quiser”.166 Daqui tiramos um princípio de suma importância: Deus não satisfaz necessariamente as nossas expectativas. Ele cumpre sempre as Suas pro-messas, não aquilo que imaginamos que Ele vá fazer. Precisamos aprender a con-fiar em Deus e nas suas promessas, no entanto, devemos também aprender a não confundir os nossos anseios com o propósito de Deus, ainda que aqueles sejam considerados por nós santos e justos. Calvino conclui: “Sempre que for oportuno, Deus usará Seu poder e nos salvará; contudo, se Ele nos levar à morte, deci-damos em nossos corações que não nos há nada melhor do que morrermos, e que é prejudicial o prolongamento de nossas vidas”.167

Eles demonstraram também que a acusação feita era parcialmente verdadeira,

eles não serviriam nem adorariam a deuses estranhos, que nada são: “Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste” (Dn 3.17-18/Dn 3.12). Eles sabiam que Deus age como determina agir, tendo plenos poderes para levar adiante a Sua determinação (Sl 115.3).

Deus por intermédio de Isaías, falando a respeito da futura destruição da babilô-

nia, diz: “.... O meu conselho permanecerá de pé, farei toda da minha vontade” (Is 46.10). Deus salvou os Seus servos e, o próprio rei pagão Nabucodonosor, teve de admi-tir: “.... não há outro Deus que possa livrar como este” (Dn 3.29). Ele tem total domínio sobre o Seu poder, estando este sob o Seu controle, caso contrário, Deus deixaria de ser livre. “Ele tem poder sobre o seu poder”.168 As-sim, o poder de Deus é essencialmente harmônico e compatível com todo o Seu Ser. Por isso, a Bíblia declara que Deus não pode MENTIR (Nm 23.19; 1Sm 15.29; Tt 1.2; Hb 6.18);169 NEGAR-SE (2Tm 2.13);170 MUDAR (Tg 1.17);171 PECAR (Tg

165

“Ao ler esta história não temos de chegar à conclusão de que Deus sempre livra a seus fi-lhos como livrou a aqueles três. Deus nem sempre nos concede livramentos tão dramáticos. (...) A salvação eterna é segura; a liberação do forno de fogo somente foi um sinal dessa salvação” (S.G. De Graaf, El Pueblo de la Promesa, Vol. II, p. 372). 166

João Calvino, Daniel, São Paulo: Edições Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.16-18), p. 206. 167

João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.23-25), p. 216. 168

Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2003, Vol. 1, p. 428. 169

“Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumprirá?” (Nm 23.19). “Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa“ (1Sm 15.29). “Na esperança da vida eterna que o Deus que não pode mentir prometeu antes dos tempos eternos” (Tt 1.2). “Para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança propos-ta” (Hb 6.18). 170

“Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13).

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1.13).172 Estudemos agora, alguns aspectos do Soberano Poder de Deus. O Poder de Deus é soberanamente livre. Deus não tem primariamente compro-missos com terceiros; em outras palavras, Deus é soberano em Si mesmo, a onipo-tência faz parte da sua essência, por isso para Ele não há impossíveis; apesar de qualquer oposição, Ele executa o Seu plano;173 tudo o que Ele deseja, pode realizar (Mt 19.26; Jó 23.13174).175 No entanto, Deus não precisa exercitar o Seu poder para ser o que é. 1) Liberdade de Existência: Poder de Existência: Os homens, por mais poderosos que sejam, na realidade, estão pode-rosos em decorrência de alguma posição que ocupam, das riquezas e/ou prestígio que possuem, do sucesso de suas realizações ou até mesmo devido à proximidade com pessoas influentes que, por sua vez, se encaixam em alguma das colocações acima.176 Entretanto, quando a Bíblia fala do poder soberano de Deus, ela se refere não a um estado determinado por fatores externos, tais como dinheiro, fama, prestí-gio, etc., mas sim, à Sua própria natureza. Deus não simplesmente está poderoso: Ele é o próprio Poder. Por isso, se manifesta poderosamente: "Uma vez falou Deus, duas vezes ouvi isto: Que o poder pertence a Deus” (Sl 62.11). Deus é tão eterno quanto o Seu poder; Ele sempre foi e será o que é, indepen-dentemente de qualquer elemento externo a Ele. Deus existe eternamente por Si próprio.177 Por isso que a Bíblia não tenta explicar a existência de Deus; ela parte apenas do fato consumado de que Deus existe, manifestando o Seu poder em Seus atos criativos (Gn 1.1). "O poder de Deus, diz Spurgeon, é como Ele mesmo, auto-existente, auto-sustentado. O mais poderoso dos homens não pode acrescentar sequer uma sombra de poder ao Onipotente. Ele não se firma sobre nenhum trono refor-çado; nem se apóia em nenhum braço ajudador. Sua corte não é mantida 171

“Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17). 172

“Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta” (Tg 1.13). 173

Ver: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 479-512. 174

“Jesus, fitando neles o olhar, disse-lhes: Isto é impossível aos homens, mas para Deus tudo é possível” (Mt 19.26). “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem o pode dissuadir? O que ele deseja, isso fará” (Jó 23.13). 175

Stott coloca nestes termos: “.... A liberdade de Deus é perfeita, no sentido de que Ele é livre para fazer absolutamente qualquer coisa que Ele queira” (John Stott, Ouça o Espírito, Ouça o Mundo, São Paulo: ABU Editora, 1997, p. 58). 176

T. Hobbes, O Leviatã, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XIV), 1974, I.x., p. 57ss, fala sobre algumas formas de poder humano. 177

Veja-se uma boa discussão sobre isso em R.C. Sproul, Razão para Crer, São Paulo: Mundo Cris-tão, 1986, p. 80-83.

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por Seus cortesãos, nem toma Ele emprestado das Suas criaturas o Seu es-plendor. Ele próprio é a grande fonte central e o originador de toda energi-a"178 (Vd. Ex 3.14; At 17.25; 1Tm 6.15,16). 2) Liberdade de Decisão: Poder de Determinação: Pelo fato de Deus ser Todo-Poderoso, Ele pode determinar livremente as Suas ações, o que de fato faz, manifestando tal poder nos Seus decretos.179 Deus eternamente tem diante de Si uma infinidade de possibilidades de “decisões” sobre todas as coisas; entretanto, Ele “decidiu”180 fazer do modo como fez por Seus próprios motivos, sem que haja a possibilidade de influência de ninguém, nem de anjos, nem de homens, visto que nenhum deles fora ainda criado e, também, porque Deus não necessita de conselhos (Is 40.13,14; Rm 11.33-36). O plano de Deus é sempre o melhor, porque foi Ele Quem sábia e livremente O escolheu! 3) Liberdade de Execução: Poder Executivo: Deus executa o Seu plano por intermédio do Seu poder, conforme a Sua vontade (Mt 8.2; Jr 32.17).181 Não podemos marcar hora e lugar para Deus fa-zer isto ou aquilo. Deus opera como e quando quer, dentro de Suas próprias delibe-rações. Deus age sempre conforme o Seu Decreto, não dependendo de nenhum meio externo para realizá-lo, a menos que Ele assim O determine. Ou seja; ontologi-camente Deus não precisa de nada fora de Si mesmo; Ele se basta a Si. Deus não precisa de meios para executar o que quer. “Esta simples ideia da onipotência de Deus, de que Ele pode fazer sem esforço, mediante volição, tudo o que quer, é a ideia de poder mais elevada e mais claramente apresentada nas Escrituras”.182 Contudo, por graça, Ele se agencia também por intermédio das cau-sas externas para concretizar o Seu propósito. Por exemplo: Deus poderia, se qui-sesse, salvar a todos os homens independentemente da Palavra (Bíblia) e da fé em Cristo; entretanto, Ele assim não faz; esta não é a Sua forma ordinária de agir por-que sábia e livremente estabeleceu o critério de salvação, que é pela graça, sempre pela graça, que opera mediante a fé por meio da Palavra (Rm 10.17; Ef 2.8). Deus sempre age de forma compatível com a sua perfeita justiça.183 Jesus Cristo se en-carnou a fim de que Deus pudesse ser justo, e ao mesmo tempo o justificador da-

178

C.H. Spurgeon, Apud A.W. Pink, Os Atributos de Deus, 1985, p. 48. 179

Vd. Confissão de Westminster (1647), Capítulo III. 180

Reconheço que a palavra decisão não é a melhor, pois, pressupõe a ideia de algo anterior à de-cisão; no entanto, não disponho de outra melhor. A ideia é que eternamente Deus sempre teve diante de Si as escolhas e eternamente as fez livre e soberanamente. 181

“E eis que um leproso, tendo-se aproximado, adorou-o, dizendo: Senhor, se quiseres, podes puri-ficar-me” (Mt 8.2). “Ah! SENHOR Deus, eis que fizeste os céus e a terra com o teu grande poder e com o teu braço estendido; coisa alguma te é demasiadamente maravilhosa” (Jr 32.17). 182

Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2001, p. 307. 183

Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 36.5), p. 128.

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queles que confiam em Jesus para salvação (Rm 3.26);184 portanto, para nós que cremos, Ele se tornou justiça, santificação e redenção (1Co 1.30).185 Deste modo, sem a graça de Deus, amparada no sacrifício de Cristo,186 ninguém será salvo!. Deus tem poder para executar toda a Sua deliberação.187 Ele é o Todo-Poderoso (Gn 17.1)188 e nenhum dos Seus planos pode ser frustrado (Jó 42.2).189 Ele deter-minando, quem o impedirá?. A Palavra de Deus é poderosa no cumprimento do que Deus Se propôs,190 porque provém do Deus onipotente: “Jurou o SENHOR dos E-xércitos, dizendo: Como pensei, assim sucederá, e, como determinei, assim se efe-tuará. Quebrantarei a Assíria na minha terra e nas minhas montanhas a pisarei, para que o seu jugo se aparte de Israel, e a sua carga se desvie dos ombros dele. Este é o desígnio que se formou concernente a toda a terra; e esta é a mão que está es-tendida sobre todas as nações. Porque o SENHOR dos Exércitos o determinou; quem, pois, o invalidará? A sua mão está estendida; quem, pois, a fará voltar atrás?” (Is 14.24-27). 4) Liberdade de Limitação: Poder Auto-Limitante: Algumas pessoas ficam desconfiadamente impressionadas pelo fato de falarmos de Deus, que é Todo-Poderoso, como sendo isto ou aquilo, fazendo e não fazendo, podendo e não podendo. O raciocínio de tais pessoas, que a priori pode parecer lógico, é o seguinte: Se Deus é soberano, Livre e Todo-Poderoso, Ele pode

184

“Tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26). 185

“Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (1Co 1.30). 186

“Devemos buscar refúgio na graciosa promessa da misericórdia que nos é oferecida em Cristo, para que saibamos com certeza que somos considerados justos aos olhos de Deus” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 4.4), p. 131). “A maior desonra que alguém poderia lançar sobre Seu nome é a de contestar Sua justiça” (João Cal-vino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 50.21), p. 417). “Deus, que é justo, pode perdoar pecado porque Ele já puniu o pecado na Pessoa de Seu unigênito Filho. (...) Deus proclama Sua e-terna justiça e ainda pode perdoar os pecados daqueles que crêem em Jesus – eis uma ter-ribilíssima, uma profundíssima declaração” (D.M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, Vol. 1), p. 420). (Vejam-se também: Confissão de Westminster, (1647), VIII.1,5,8; Catecismo Maior de Westminster, Perguntas: 36,37 e 59; J. Calvino, As Institutas, II.17.1ss.). 187

“O poder de Deus é a sua capacidade de fazer aquilo que deseja e determina que a-conteça, seja na área física, moral ou espiritual. É a capacidade de ação onipotente que esteja de acordo com a Sua vontade” (Heber Carlos de Campos, O Ser de Deus, São Paulo: E-ditora Cultura Cristã, 1999, p. 384). 188

“Quando atingiu Abrão a idade de noventa e nove anos, apareceu-lhe o SENHOR e disse-lhe: Eu sou o Deus Todo-Poderoso; anda na minha presença e sê perfeito” (Gn 17.1). 189

“Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42.2). 190

“Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me a-praz e prosperará naquilo para que a designei” (Is 55.11).

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muito bem, conforme a Sua vontade, mudar "as regras do jogo",191 modificando as leis, Seus princípios de ação, Seus critérios; enfim, alterar aquilo que Ele mesmo re-velou e fez registrar na Sua Palavra. Pois bem; se este poder pertencesse a um ho-mem, deveríamos temer. A História tem demonstrado que o pensamento do Lorde Acton (1834-1902) é verdadeiro em muitos casos, visto que, amiúde o poder tende a corromper.192 Afinal, Deus poderia fazer tudo isto ou não?! Deus estaria sujeito à corrupção re-sultante do mau uso do poder? Retardemos um pouco mais a resposta. Geralmente quem raciocina da forma apresentada acima tem em mente a ação do homem como modelo – cometendo o mesmo equívoco de muitos gregos na Anti-guidade –, tomando o homem como parâmetro para uma comparação, como se o "homem fosse a medida de todas as coisas".193 Este tipo de raciocínio encontra alento em Thomas Hobbes (1588-1679), que entendia que "o soberano de uma República, seja ele uma assembléia ou um homem, não está absolutamente sujeito às leis civis. Pois tendo o poder de fazer ou desfazer as leis, pode, quando lhe apraz, livrar-se desta sujeição revogando as leis que o incomo-dam e fazendo novas".194 De fato, apesar desta atitude não ser apreciável em si, ela ocorre com frequência na esfera humana. Respondo agora: Entretanto, com Deus é diferente; os homens, são tão fracos em suas condições de poderosos que não conseguem controlar os seus ímpetos, por is-so, agem por paixões das mais variadas, tais como: preconceito, vaidade, ódio, inte-resses, etc. Deus, no entanto, é tão poderoso que estabelece limites para Si mesmo! Por isso, quando afirmamos que Deus não mente, não se contradiz, não muda, não peca e não pode salvar fora de Jesus Cristo, não pretendemos estabelecer limites para Deus, mas sim, reconhecer os próprios limites ou critérios que Ele declarou a respeito de Si mesmo em Sua relação consigo e com o universo. Estes critérios são decorrentes das Suas perfeições, pois, se Deus é perfeitamente poderoso, é tam-bém perfeitamente verdadeiro, justo, fiel, sábio, amoroso, bondoso, santo. Deus é tão poderoso que trata conosco conforme as perfeições do Seu ser e nos deu a co-nhecer tais perfeições a fim de que pudéssemos nEle confiar e as Suas virtudes pro-clamar (Ml 3.6; 1Pe 2.9,10). O poder de Deus está sob o controle de Sua sábia e

191

Atitude muito comum nas crianças, que quando estão perdendo o jogo, formam uma nova regra para se beneficiar, dizendo que o que antes não podia "agora pode". Diga-se, de passagem, que esta atitude infelizmente não caracteriza somente as crianças; muitas vezes nós adultos quando estamos investidos de alguma autoridade, somos amiúde – com uma imaturidade maldosa – "levados" a mu-dar as normas e as leis, obedecendo a casuísmos que, "coincidentemente", nos beneficiam... 192

A frase completa é a seguinte: “O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe de modo absoluto. Os grandes homens são quase sempre homens maus” (Lord Acton, Ensai-os e Estudos Históricos). 193

O sofista grego Protágoras (c. 480-410 a.C.) afirmara: "O homem é a medida de todas as coi-sas, da existência das que existem e da não existência das que não existem". (Apud Platão, Teeteto, 152a e Aristóteles, Metafísica, XI, 6. 1062). O Humanismo Renascentista tomou este dito como lema na sua "virada antropológica". 194

T. Hobbes, Apud G. Lebrun, O Que é Poder?, 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 28. Vd. tam-bém, T. Hobbes, O Leviatã, II.xviii, p. 111ss.

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santa vontade, "Deus pode fazer tudo o que Ele deseja, porém Ele não deseja fazer tudo o que pode"195 (Ex 3.14; Nm 23.19; 1Sm 15.29; At 4.12; 2Tm 2.13; Hb 6.18; Tg 1.13,17).196 "Deus é lei para Si próprio, de modo que tudo quanto Ele faz é justo".197 O poder absoluto de Deus não é incoerente com a Sua essência. A vontade de Deus é santa. Não há propósitos e atitudes contraditórios em Deus. O soberano poder de Deus somente é limitado pelo absurdo ou pelo autocontraditório e por ações imorais.198 “Deus é o padrão para a moralidade humana, assim Ele não pode ser menos que perfeito em Sua santidade, bondade, e reti-dão”.199 Portanto Ele não pode realizar coisas auto-excludentes em si mesmas: não pode deixar de ser Deus, não pode ser diferente de Si mesmo. O Seu poder é exe-cutado em completa harmonia com a Sua perfeita e gloriosa dignidade, enfim, com o seu caráter sábio e santo. A perfeição da natureza de Deus permeia todas as Suas obras. “Deus age consistentemente consigo mesmo, e jamais poderá desviar-se do que Ele disser”.200 Deste modo, as suas promessas sempre serão cumpri-das visto que Ele é poderoso para cumprir tudo o que promete. Por Deus ser fiel, justo e poderoso, o que Ele promete, Ele cumprirá.201 “Seja o que for que Deus tenha que fazer, inquestionavelmente o fará, se Ele o tiver prometido”.202

195

A.H. Strong, Systematic Theology, 35ª ed. Valley Forge, Pa.: Judson Press, 1993, p. 287. 196

“Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós outros” (Ex 3.14). “Deus não é homem, para que minta; nem filho de homem, para que se arrependa. Porventura, tendo ele prometido, não o fará? Ou, tendo falado, não o cumpri-rá?” (Nm 23.19). “Também a Glória de Israel não mente, nem se arrepende, porquanto não é homem, para que se arrependa“ (1Sm 15.29). “E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12). “Se somos infiéis, ele permanece fiel, pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo” (2Tm 2.13). “Para que, mediante duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, forte alento tenhamos nós que já corremos para o refúgio, a fim de lançar mão da esperança proposta” (Hb 6.18). “Ninguém, ao ser tentado, diga: Sou tentado por Deus; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e ele mesmo a ninguém tenta” (Tg 1.13). “Toda boa dádiva e todo dom perfeito são lá do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17). 197

A.W. Pink, Os Atributos de Deus, p. 34. Em outro livro, o mesmo autor escreve: "Afirmamos que Deus não está sujeito a nenhuma regra ou lei fora da sua própria vontade e natureza e que Deus é a sua própria lei, não tendo qualquer obrigação de prestar contas dos seus propósi-tos a quem quer que seja" (A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1977, p. 21). 198

Vejam-se: William G.T. Shedd, Dogmatic Theology, Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publi-shing House, (s.d.), (Reprinted), Vol. 1, p. 359-360; L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 83; J.I. Pac-ker, Teologia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 34; Augustus H. Strong, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2003, Vol. 1, p. 428; Agostinho, A Cidade de Deus, 2ª ed. Petrópolis, RJ./São Paulo: Editora Vozes/Federação Agostiniana Brasileira, 1990, Vol. I, V.10. p. 204-205; John M. Frame, The Doctrine of God, Phillipsburg, NJ.: P & R Publishing, 2002, p. 518-521; Wayne Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 160; Richard A. Muller, Dictio-nary of Latin and Greek Theological Terms, 4ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1993, p. 231; Heber Carlos de Campos, O Ser de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 386-389. 199

John M. Frame, The Doctrine of God, p. 519. 200

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 2, (Sl 62.11), p. 581. 201

Ver: J.I. Packer, Teologia Concisa, p. 34. 202

João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 3.20-21), p. 106.

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Este fato nos enche de alegre confiança em Deus. H. Bavinck (1854-1921) resu-me bem este ponto, dizendo: "A vontade de Deus é idêntica à sua existência, sua sabedoria, sua bon-dade e todos os seus atributos. E é por essa razão que o coração e a mente do homem podem descansar nessa vontade, porque é a vontade, não da sina cega, nem da energia obscura da natureza, mas de um Deus onipoten-te e de um Pai misericordioso. Sua soberania é uma soberania de ilimitado poder, porém é também uma soberania de sabedoria e graça. Ele é Rei e Pai ao mesmo tempo".203

B) A SOBERANIA GRACIOSA DE DEUS NA SALVAÇÃO:

1) A Liberdade de Deus na manifestação de Sua graça: Como vimos, a liberdade é um dos atributos da soberania. Deus é so-berano e, por isso mesmo, é livre na manifestação da Sua graça. Aliás, este conceito é fundamental à ideia bíblica de graça, pois, se a graça não fosse livre, não seria graça; graça que é obrigatória não é graça, é obrigação. Deus tem misericórdia de quem Lhe aprouve (Ex 33.19). “A graça é absolutamente livre de toda a nossa influência, ou então não é graça de modo algum”.204 Deus nos olha com gra-ça porque assim O decidiu; o homem não pode exercer nenhuma influência sobre isso, todavia, Deus é gracioso para com o homem porque determinou em Si mesmo considerar a necessidade do Seu povo. Packer, corretamente declarou:

“A graça é livre, no sentido de ser auto-originada e de proceder de Al-guém que podia ou não conceder graça. Somente quando se percebe que o que decide o destino do homem é o fato de Deus resolver ou não salvá-lo de seus pecados – sendo esta uma decisão que Ele não é obriga-do a tomar em nenhum caso – é que se começa a apreender a ideia bí-blica da graça”.205

Se Deus, soberana e livremente estabelecesse a Lei como sendo o caminho da graça, a graça continuaria sendo graça; todavia, não haveria salvação para o ho-mem, já que o padrão de Deus é a perfeição. A graça reina livremente justamente por ser soberana!: “A fim de que, como o pecado reinou pela morte, assim também

203

Herman Bavinck, The Doctrine of God, 2ª ed. Grand Rapids, Michigan: W. M. Eerdmans Publish-ing Co., 1955, p. 235. 204

A. Booth, Somente pela Graça, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p.14. Do mesmo modo, Parker: “Se a graça fosse uma obrigação da parte de Deus, já não seria graça. Porém é em Sua divina liberdade que Deus nos mostra sua graça” (T.H.L. Parker, Gra-cia: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., 1985, p. 254b). Vd. também: (John Gill, “A Complete Body of Doctrinal and Practical Divinity,” The Collected Writings of: John Gill, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 2000), I.13, p. 196). 205

J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 119.

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reinasse a graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Se-nhor” (Rm 5.21). “Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça, a fim de recebermos misericórdia e acharmos graça para socorro em ocasião opor-tuna” (Hb 4.16). (Vejam-se: 1Rs 8.23; Is 55.3; Jr 9.24; Rm 3.24; 9.15-18206).207 2) Definição de Graça: Graça pode ser definida como um favor imerecido, manifestado livre e continuamente por Deus aos pecadores que se encontravam num estado de depra-vação e miséria espirituais, merecendo o justo castigo pelos seus pecados208 (Rm 4.4/Rm 11.6; Ef 2.8,9).209 3) A Graça e a Salvação: Calvino, diz que a graça é um antídoto contra a corrupção de nossa na-tureza.210 Em outro lugar: “O acesso à salvação a ninguém é vetado, por mais

206

“E disse (Salomão): Ó SENHOR, Deus de Israel, não há Deus como tu, em cima nos céus nem embaixo na terra, como tu que guardas a aliança e a misericórdia a teus servos que de todo o cora-ção andam diante de ti” (1Rs 8.23). “Inclinai os ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá; porque convosco farei uma aliança perpétua, que consiste nas fiéis misericórdias prometidas a Davi” (Is 55.3). “Mas o que se gloriar, glorie-se nisto: em me conhecer e saber que eu sou o SENHOR e fa-ço misericórdia, juízo e justiça na terra; porque destas coisas me agrado, diz o SENHOR” (Jr 9.24). “Sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3.24). “Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão. Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem cor-re, mas de usar Deus a sua misericórdia. Porque a Escritura diz a Faraó: Para isto mesmo te levantei, para mostrar em ti o meu poder e para que o meu nome seja anunciado por toda a terra. Logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz” (Rm 9.15-18). 207

Vejam-se também, Confissão de Westminster, III.5; IX.4; XV.3; Catecismo Menor, Pergs. 33,34, 35. 208

Vejam-se outras definições em: A.W. Pink, Os Atributos de Deus, p. 69; Idem., Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1977, p. 24; A. Booth, Somente pela Graça, São Paulo: Publicações Evangélicas Se-lecionadas, 1986, p. 31; João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 5.15), p. 193; R.P. Shedd, Andai Nele, São Paulo: ABU., 1979, p. 15; W. Hendriksen, 1 y 2 Timoteo/Tito, Grand Rapids, Michigan: S.L.C., 1979, (Tt 2.11), p. 419; L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 74; W. Barclay, El Pensamiento de San Pablo, Buenos Aires: La Aurora, 1978, p. 154; L. Boettner, Predestinación, Grand Rapids, Michi-gan: S.L.C., (s.d.), p. 258; D.M. Lloyd-Jones, Por que Prosperam os Ímpios, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1983, p. 103; J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 120; Tom Wells, Fé: Dom de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 101; Samuel Falcão, Predestinação, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1981, p.100-101; James Moffatt, Grace in the New Testament, New York: Ray Long; Richard R. Smith. Ind., 1932, p. 5; Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 146, 147; John Gill, “A Complete Body of Doctrinal and Practical Divinity,” The Col-lected Writings of: John Gill, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 2000), I.13. p. 195-196. 209

“Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim como dívida“ (Rm 4.4). “E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Rm 11.6). “Porque pela gra-ça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que nin-guém se glorie” (Ef 2.8,9). 210

João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 3.4), p. 111.

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graves e ultrajantes sejam seus pecados”.211 A nossa salvação é decorrente do Pacto da Graça, por meio do qual Deus confiou o Seu povo ao Seu Filho para que Este viesse entregar a Sua vida por ele. Cristo deu a Sua vida em favor de todos a-queles que o Pai Lhe confiara na eternidade212 (Is 42.6/2Tm 1.9; Jo 6.39;213 17.1,6-26). Assim, todos os homens – judeus e gentios – tanto no Antigo como no Novo Testamento foram salvos pela graça. Assim declara o Apóstolo Pedro: “Mas cremos que fomos salvos pela graça do Senhor Jesus, como também aqueles o foram” (At 15.11). Mérito e graça são conceitos que se excluem: “E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Rm 11.6). “A graça divina e o mérito das obras humanas são tão opostos entre si que, se estabelecermos um, des-truiremos o outro”, conclui Calvino (1509-1564).214 De fato, a graça tem sempre como pressuposto a indignidade daquele que a recebe.215 A graça brilha nas trevas do pecado; desta forma, a ideia de merecimento está totalmente excluída da salva-ção por graça (Ef 2.8,9; 2Tm 1.9).216 Não há mérito humano na fé. A Palavra de Deus nos ensina que a nossa salvação é por Deus, porque é Ele Quem faz tudo;217 por isso, o homem não pode criar a graça, antes, ela lhe é outorgada, devendo ser recebida sem torná-la vã em sua vida (2Co 6.1; 8.1/1Co 15.10). “Uma manifesta-ção mais intensa da graça de Deus para conosco equivale um maior peso de culpa sobre nós, se porventura viermos a desprezá-la”.218 211

João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.15), p. 43. 212

Vd. John Gill, A Complete Body of Doctrinal and Practical Divinity, Arkansas: The Baptist Standard Bearer, 1989 (Reprinted), I.13. p. 83. (John Gill, “A Complete Body of Doctrinal and Practical Divinity,” The Collected Writings of: John Gill, (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Software, 2000), I.13). 213

“Eu, o SENHOR, te chamei em justiça, tomar-te-ei pela mão, e te guardarei, e te farei mediador da aliança com o povo e luz para os gentios” (Is 42.6). “Que nos salvou e nos chamou com santa voca-ção; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9). “E a vontade de quem me enviou é esta: que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.39). 214

J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 11.6), p. 388. 215

Vd. A. Booth, Somente pela Graça, p. 13. 216

“Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de o-bras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8,9). “Que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9). 217

"... Em sua inteireza a nossa salvação procede do Senhor. É sua realização. Ele mesmo a-presenta Sua noiva a Si mesmo porque ninguém mais pode fazê-lo, ninguém mais é compe-tente para fazê-lo. Somente Ele pode fazê-lo. Ele fez tudo por nós, do princípio ao fim, e concluirá a obra apresentando-nos a Si mesmo com toda esta glória aqui descrita" (D.M. L-loyd-Jones, Vida No Espírito: No Casamento, no Lar e no Trabalho, São Paulo: Publicações Evangé-licas Selecionadas, 1991, (Ef 5.27) p. 137). Do mesmo modo acentua Murray: “A salvação é do Senhor, tanto em sua aplicação como em sua concepção e realização” (John Murray, Re-denção: Consumada e Aplicada, p. 98). Vejam-se, R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, Michi-gan: SLC., 1985, p. 169ss; 177ss.; C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publica-ções Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 12ss. 218

João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.9), p. 127.

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A graça de Deus abre o nosso coração, fazendo-nos ver a necessidade da salva-ção, passando a desejá-la ardentemente desde então;219 a graça de Deus promove a paz em nosso coração por intermédio da nossa reconciliação com Deus (Rm 5.1; 2Co 5.18-21/Rm 1.7; 1Co 1.3; 2Co 1.2). Em paz com Deus, somos agenciadores desta paz por meio da proclamação do Evangelho (Sl 34.14; Mt 5.9; Rm 12.18; 2Co 13.11; Hb 12.14/2Co 5.20) e, também, por meio de nossa conduta. Agora vivemos na esfera do Reino da graça, estando sob a graça, num estado de graça, numa nova posição em Cristo (Rm 5.2; 6.14; Ef 1.20; 2.6; Cl 1.13). O Novo Testamento ensina claramente que a nossa salvação é resultado da gra-ça de Deus; além desta declaração abrangente, podemos encontrar ainda nas pági-nas do Novo Testamento, a relação de vários elementos da “ordem da salvação”; ei-los: a) Eleição: A nossa eleição caracteriza o Reino da Graça de Deus como ante-cedendo à história (Rm 11.5-6; Gl 1.15; 2Tm 1.9). A eleição não é condicionada ou dependente de “boas obras” nossas, nem de fé ou mesmo, de previsão de fé, mas sim do beneplácito de Deus (At 13.48; Rm 9.11,16,23; 11.4-7; Ef 1.7,12; 2Tm 1.9; 1Pe 1.2).220 Notemos que, se a fé e as obras são resultados da eleição, obviamente, elas não podem ser a condição de nossa salvação. (At 15.11; 1Co 4.7; Ef 2.8-10). Por outro lado, se Deus nos escolheu para sermos santos (Ef 1.4; 2Ts 2.13), é porque de fato não éramos; logo, não foi devido às nossas obras que Deus nos es-colheu. A declaração de Paulo elimina qualquer centelha de orgulho por parte do suposto eleito (Vd. 1Co 1.26-31). “A graça não teria razão de ser se os méritos a precedessem. Mas a graça é graça. Não encontrou méritos, foi a causa dos méritos. Vede, caríssimos, como o Senhor não escolhe os bons mas esco-lhe para fazer bons”, orienta pastoralmente Agostinho (354-430).221

219

“A graça de Deus não só salva o homem: também mostra ao homem sua necessidade de ser salvo e introduz em seu coração o desejo de salvação” (W. Barclay, El Pensamiento de San Pablo, Buenos Aires: La Aurora, 1978, p. 164). 220

Veja-se, Cânones de Dort, I.9,10 e João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 11.6), p. 388-389. Kuiper observa corretamente: “A eleição foi inteiramente incondicional. Não foi condicionada à fé e à obediência do homem. Deus não escolheu os pecadores para a vida eterna de-pendendo se eles iam crer e obedecer. Nem escolheu certas pessoas para a salvação, por-que previu que iriam crer e obedecer” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Pu-blicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 57). 221

Augustin, On The Gospel of St. John. Tractate 86.2-3. In: Philip Schaff; Henry Wace, eds. Nicene and Post-Nicene Fathers of Christian Church, (First Series), 2ª ed. Peabody, Massachusettes: Hen-drickson Publishers, 1995, (Jo 15.16), p. 353-354. (Quanto aos principais conceitos de Agostinho a respeito deste assunto, Vd. Reinhold Seeberg, Manual de Historia de las Doctrinas, El Paso, Te-xas/Buenos Aires/Santiago: Casa Bautista de Publicaciones/Editorial “El Lucero”, 1963, Vol. I, p. 347ss.). Vd. John Gill, “A Complete Body of Doctrinal and Practical Divinity,” The Collected Writings of: John Gill, I.13, p. 198.

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b) Arrependimento: O arrependimento envolve a nossa mente, sentimento e vontade.222 Ele consiste numa mudança de mente, ocasionando um sentimento de tristeza pelos nossos pecados, que se caracteriza de forma concreta no seu abandono,223 refletin-do isso na adoção de novos valores, ideias, objetivos e práticas. Como resume Pac-ker: “A mudança é radical, tanto interior como exteriormente: ânimo e opi-nião, vontade e afetos, conduta e estilo de vida, motivos e propósitos são todos envolvidos. Arrependimento significa começo de uma nova vida”.224 O arrependimento distingue-se, assim, do remorso, que é apenas uma tristeza por um ato pecaminoso, em geral, percebido por causa das consequências, ainda que par-ciais, do seu pecado. (Jr 3.7). Esta tristeza (remorso) pelo pecado faz parte do arre-pendimento, contudo, ela sozinha é insuficiente. O arrependimento sincero é uma “concessão” de Deus: “.... Porque a tristeza se-gundo Deus produz arrependimento (meta/noia) para a salvação....” (2Co 7.10/2Tm 2.25). “....a bondade de Deus é que te conduz ao arrependimento (meta/noia)” (Rm 2.4/Hb 12.17). “A fé e o arrependimento não devem ser reputados coisas me-ritórias mediante as quais merecemos o perdão. Pelo contrário, são os meios pelos quais nos apropriamos da graça de Deus”.225 Em síntese: “O arrepen-dimento não está no poder do homem”.226 Por isso, ele é próprio do novo ho-mem.227 O conceito de arrependimento, envolvendo uma mudança radical na vida do ho-mem é um conceito cristão, sem paralelo na literatura grega.228 O arrependimento bíblico consiste em voltar-se total e integralmente para Deus. O arrependimento, por-tanto, envolve uma atitude de abandono do pecado e uma prática da Palavra de Deus. Esta prática consiste nos “frutos do arrependimento”. Paulo, testemunhando diante do rei Agripa a respeito do seu ministério, diz: “Pelo que ó rei Agripa, não fui desobediente à visão celestial, mas anunciei primeiramente aos de Damasco e em Jerusalém, por toda a região da Judéia, e aos gentios, que se arrependessem e se convertessem a Deus praticando obras dignas de arrependimento (meta/noia)” (At

222

Hoekema assim define: “o retorno consciente da pessoa regenerada, para longe do pe-cado e para perto de Deus, numa completa mudança de vida, manifestando-se numa no-va maneira de pensamento, sentimento e vontade” (Anthony A. Hoekema. Salvos Pela Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 133). Especialmente, p. 133-135. 223

Ver: Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 479-480. 224

J.I. Packer, Teologia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 152. 225

Leon Morris, Perdão: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, Vol. III, p. 1268a. 226

João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 6.6), p. 155. 227

Cf. Herman Bavinck, Teologia Sistemática, p. 479. 228

Cf. J. Goetzmann, Conversão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teolo-gia do Novo Testamento, Vol. I, p. 499.

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26.19,20. Vd. também: At 20.21/Lc 3.8). O arrependimento e a fé são passos iniciais, inseparáveis e complementares229 da vida cristã como resposta ao chamado divino; no entanto, ambos devem acom-panhar a nossa vida; devemos continuar crendo em Deus em todas as circunstân-cias e cultivar, pelo Espírito, uma atitude de arrependimento pelas nossas falhas. Deus deseja que procuremos agradá-Lo em todas as coisas; no entanto, sabemos que pecamos, que falhamos, que não atingimos o alvo proposto por Deus; por isso, conscientes de nossos pecados, devemos nos arrepender, buscando o perdão de Deus e o reparo para o nosso erro. Na disciplina de Deus, Ele, além de revelar a Sua justiça, tem, em seus filhos, este propósito primordial: conduzir-nos ao arrepen-dimento: “Porque a Deus não Lhe basta ferir-nos com sua mão, a menos que também nos toque interiormente com Seu Espírito Santo. (...) Até que Deus nos toque no mais profundo de nosso interior, é certo que não faremos nada senão dar coices contra Ele, cuspindo mais e mais veneno; e toda vez que nos castigue rangeremos os dentes, e nada mais faremos senão atacar-Lhe. (...) Então vocês vêem como Deus mostra Sua justiça cada vez que castiga aos homens, ainda que dito castigo resulte não em uma correção para sua correção”.230 A Confissão de Westminster (1647) resume: “... O pecador pelo arrependi-mento, de tal maneira sente e aborrece os seus pecados, que, deixando-os, se volta para Deus, tencionando e procurando andar com Ele em todos os caminhos dos seus mandamentos” (XV.2). c) Adoção: “Por meio da fé, Cristo nos é comunicado, através de quem chegamos a Deus, e através de quem usufruímos os benefícios da adoção”, escreve Calvino.231 E, por sua vez, “é somente sob a direção do Espírito que tomamos posse de Cristo e de todos os seus benefícios”.232 229

“O arrependimento é fruto da fé, que é, ela própria, fruto da regeneração. Contudo, na vida real, o arrependimento é inseparável da fé, sendo o aspecto negativo (a fé é o aspec-to positivo) de voltar-se para Cristo como Senhor e Salvador. A ideia de que pode haver fé salvadora sem arrependimento, e que uma pessoa pode ser justificada por aceitar Jesus como Salvador, e ao mesmo rejeitá-lo como Senhor, é uma ilusão destrutiva” (J.I. Packer, Te-ologia Concisa, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 152-153). 230

Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 3), p. 48. “Estejamos seguros de que quando Deus nos faz sentir Sua mão, de modo a humilhar-nos sob ela, que Deus nos está fazendo um favor espe-cial, e que se trata de um privilégio que Ele não concede a ninguém, senão a seus próprios filhos” (Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, p. 49). (Ver também: João Calvino, As Institutas, (1541), IV.17; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 79.1), p. 250. 231

João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 1.8), p. 30. 232

João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 13.13), p. 271.

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Fomos adotados pela graça de Deus, tornando-nos Seus filhos. (Ef 1.5,6/Gl 4.4-6). “Entre todos os dons da graça, a adoção é o maior”.233 A paternidade divina é entendida como um ato de intenso amor pa-ra com os homens que se encontravam num estado de rebelião, total depravação e miséria (Jo 3.16; 1Jo 3.1). O pecado tornou-nos – já que todos pecamos – inimigos de Deus, contrários aos Seus mandamentos e propósitos. A nossa filiação revela parte do amor inefável e eterno de Deus; temos aqui “a mais elevada expressão do próprio amor de Deus”.234 Ao considerarmos a gra-ça da adoção, vemos nesta doutrina estampada o amor invencível de Deus, que nos tira da condenação do pecado para a Sua herança eterna. “Vede que grande amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus....” (1Jo 3.1). “O amor transcende todos os outros dons em duração, pois todos os dons um dia cessarão, mas o amor é eterno”.235 Os homens são filhos de Deus não simplesmente por nascimento natural, mas, sim, por um novo nascimento concedido por Deus, tornando-se, assim, Seus filhos adotivos. A nossa filiação, olhando pelo ângulo que for, é um ato da livre graça de Deus (Jo 3.3,5; Rm 8.15; Gl 4.3-6; Ef 1.5). Todas as demais bênçãos que recebe-mos, decorrem da “graciosa adoção divina como sua causa primeira”.236 A Palavra nos diz que “Deus enviou Seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de fi-lhos” (Gl 4.4,5). A Palavra também nos diz que este ato histórico amparou-se no decreto eterno, livre, soberano e bondoso de Deus: “Nos predestinou para Ele, para adoção de fi-lhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de Sua vontade” (Ef 1.5). Portanto, quando falamos de nossa filiação, devemos ter em mente que ela é um dom de Deus; “é o próprio Deus agindo graciosamente para conosco”.237 O Catecismo de Heidelberg (1563), à pergunta 33 – “Por que é Ele chamado Filho UNIGÊNITO DE DEUS, se nós também somos filhos de Deus?” – responde: “Por-que só Cristo é o Filho eterno de Deus, ao passo que nós, por Sua causa, e pela graça, somos recebidos como filhos de Deus”. A Confissão de Westminster (1647) declara de forma correta: “A todos os que são justificados, Deus se digna fazer participantes da graça da adoção....” (XII.1). Do mesmo modo, o Catecismo Menor, em resposta à pergunta 34, – “O que 233

J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 197. 234

D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, p. 108. 235

Herman Bavinck, Our Reasonable Faith, 4ª ed. Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1984, p. 394. 236

J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.28), p. 294. 237

John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Miami: Editora Vida, 1991, p. 95.

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é adoção?” – diz: “Adoção é um ato da livre graça de Deus, pelo qual somos recebidos no número dos filhos de Deus, e temos direito a todos os seus privi-légios. (1Jo 3.1; Jo 1.12; Rm 8.14-17)”. d) Justificação: De acordo com as Escrituras, ou somos justificados por Cristo por meio da fé, ou estamos definitivamente condenados. Não há meio-termo, não há sín-tese entre nossas supostas obras e a fé em Cristo. Não há meia-justiça; ou é tudo ou nada. Para a Teologia Reformada, a justificação é totalmente pela graça, mediante a fé; ou seja: por Cristo Jesus.238 Jesus Cristo é o único que cumpriu perfeitamente a justiça divina. Portanto, so-mente nEle podemos e de fato somos declarados justos. A graça nos justifica na jus-tiça de Cristo. Deste modo, não é a fé que nos justifica, antes, é Deus quem nos jus-tifica em Cristo nos comunicando esta bênção pela fé. A fé em Cristo é o esvazia-mento de toda confiança em nossa capacidade e merecimento. A eficácia da fé não está em sua suposta perfeição – aliás, nossa fé sempre é limitada e imperfeita –, mas, no seu repouso humilde e total na justiça perfeita de Cristo.239 Não existe justificação sem a pessoa e obra de Cristo (Rm 3.24; Tt 3.7240).241 “A justiça que nos justifica, portanto, não deve ser separada da pessoa de Cris-to. Ela não consiste de um dom material ou espiritual que Cristo nos concede fora de Si mesmo, ou que nós podemos aceitar e receber sem que aceite-mos e recebamos a pessoa de Cristo. Não há possibilidade de se desfrutar dos benefícios de Cristo sem que haja comunhão com a pessoa de Cristo e a comunhão com Cristo invariavelmente traz consigo os benefícios de Cristo. Para ser aceito diante de Deus, para ser livre de toda culpa e punição e pa-ra desfrutar da glória de Deus e da vida eterna, nós temos que ter Cristo, não algo dele, mas o próprio Cristo”.242 A justificação é o fundamento judicial da santificação;243 aqui há uma mudança na nossa condição legal: Deus declara que já não há mais culpa em nós; aqui de fato

238

Veja-se: João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 2.15-16), p. 68-71.. 239

Ver: Joel R. Beeke, Justificação pela Fé Somente (A Relação da Fé com a Justificação): In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual da Igreja: Justificação pela Fé Somente, São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 54. 240

“Sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3.24). “A fim de que, justificados por graça, nos tornemos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna” (Tt 3.7). 241

Ver: Michael Horton, União com Cristo. In: Michael Horton, org., Cristo o Senhor: A Reforma e o Senhorio da Salvação, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2000, p. 105-106; Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 1115. 242

Herman Bavinck, Teologia Sistemática, p. 499. 243

Vd. L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1989, p. 540.

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passamos a ter vida;244 mudamos da situação de um condenado que aguardava tris-temente a terrível sentença condenatória para a condição de filho de Deus, na ex-pectativa da sua majestosa herança (Rm 8.14-18).245 É importante enfatizar que na justificação “Deus não declara que o ímpio é santo; ele declara que, não obs-tante sua pecaminosidade e indignidade pessoal, ele é aceito como justo com base no que Cristo fez por ele”.246 A justificação – que ocorre fora de nós – não produz nenhuma transformação es-piritual em nosso ser. Contudo, significa que Deus já a fez pela regeneração e conti-nuará fazendo pela santificação. Na regeneração recebemos um coração novo, com uma santa disposição; na justificação Deus nos declara justos, perdoando todos os nossos pecados, os quais foram pagos definitivamente por Cristo; por isso, já não há nenhuma condenação sobre nós; estamos em paz com Deus amparados pela justiça de Cristo (Vd. Rm 5.1; 8.1,31-33). O preço de nossa justificação, para nós gratuita, foi o sangue de Cristo Jesus. A justificação, por envolver a regeneração,247 é uma vocação incondicional à santificação, conforme a vontade de Deus.248 A justificação nos livra da condenação do pecado. Deus chama pecadores, todavia, não deseja que eles continuem assim; antes, infunde neles a justiça de Cristo, dando-lhes um novo coração, mudando as inclinações de sua alma, habilitando-os a toda boa obra (Ef 2.8-10).249 "Cristo a ninguém justifica, a quem ao mesmo tempo, não santi-fique".250 Todavia, a realidade do pecado ainda existe em nós; o justificado é simul-taneamente justo e pecador (“Simul justus et peccator”), conforme expressão de Lu-tero (1483-1546).251 Ele é declarado justo por Deus; as evidências de seu novo nas-cimento vão, gradativamente se tornando mais claras por meio de sua obediência a Deus em santificação. 244

Vd. George Whitefield, Cristo: Sabedoria, Justiça, Santificação, Redenção, São Paulo: Publica-ções Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 8. 245

Vd. J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1980, p. 121. 246

Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos Editora, 2001, p. 1115. 247

“A regeneração é inseparável de seus efeitos, e um destes efeitos é a fé” (John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 119). 248

“É certamente verdade que somos justificados em Cristo tão-somente pela misericórdia divina, mas é igualmente verdade e correto que todos quantos são justificados são chama-dos pelo Senhor para que vivam uma vida digna de sua vocação. Portanto, que os crentes aprendam abraçá-lo, não somente para a justificação, mas também para a santificação, assim como ele se nos deu para ambos os propósitos, para que não venham a mutilá-lo com uma fé igualmente mutilada” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.13), p. 274). Ver também: João Calvino, Efésios, (Ef 2.10), p. 63. 249

“A justificação é unicamente pela fé. A santificação não é unicamente pela fé. A totali-dade da vida cristã é uma vida de fé, porém na santificação temos que agir, e desenvolver, despir-nos e vestir-nos; como o apóstolo nos diz em todos esses pormenores que nos oferece aqui. (Ef 4)” (D.M. Lloyd-Jones, As Trevas e a Luz, São Paulo: Publicações Evangélicas Seleciona-das, 1995, p. 130). 250

J. Calvino, As Institutas, III.16.1. 251

Vejam-se: G.C. Berkouwer, Faith and Sanctification, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1952, p. 71ss.; R.C. Sproul, A Natureza Forense da Justificação: In: John F. MacArthur, Jr., et. al., A Marca da Vitalidade Espiritual a Igreja: Justificação pela Fé Somente, São Paulo: Editora Cultura Cristã, (2000), p. 34.

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A nossa justificação é pela graça mediante a fé (Gl 3.11; Fp 3.9; Tt 3.4-7). "....A fé é o instrumento pelo qual o pecador recebe e aplica a si tanto Cristo como sua justiça".252 O veredicto de Deus sobre o pecador o considera justo porque ele, pela fé, aceitou a justiça de Cristo. Esta justiça nada tem a ver com obras humanas, antes, é a “justiça de fé”. Fazendo uma analogia entre a “adoção” e a “justificação”, Packer diz: “A justifi-cação é a bênção básica, sobre a qual a adoção se fundamenta; a ado-ção é a bênção do coroamento, para a qual a justificação abre o cami-nho”.253 e) A capacidade para crer:

Deus é Quem abre os nossos corações e mentes, para que possa-mos entender salvadoramente a mensagem do Evangelho. Após a ressurreição de Cristo os discípulos ainda não entendiam adequadamente as Escrituras em relação ao Messias, Jesus Cristo. Com dois deles, no caminho de Emaús, o Senhor abriu-lhes os olhos para que a compreendessem e cressem por meio da exposição das Escrituras. Foi esta a percepção deles. Narra Lucas: “E aconteceu que, quando es-tavam à mesa, tomando ele o pão, abençoou-o e, tendo-o partido, lhes deu; então, se lhes abriram (dianoi/gw)254 os olhos, e o reconheceram; mas ele desapareceu da presença deles. E disseram um ao outro: Porventura, não nos ardia o coração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha (dianoi/gw) as Escritu-ras?” (Lc 24.30-32). Agora, com os demais discípulos, Jesus mostra como as Escri-turas se cumpriram em Seu ministério, vida, morte e ressurreição. Lucas resume: “Então, lhes abriu (dianoi/gw) o entendimento (nou=j) para compreenderem (su-ni/hmi) as Escrituras” (Lc 24.45). De passagem, podemos observar que o caminho para atingir a mente e o coração das pessoas é a exposição da Palavra. O Espírito que opera por meio dela não força as evidências, nem nos obriga a diminuir a nossa capacidade de pensar, antes, nos faz enxergar e crer nas evidências (At 3.16; 16.14; 18.27; Rm 4.16; 1Co 3.5; Fp 1.29).255 Lucas relata: “Paulo, segundo o seu costume,

252

Catecismo Maior de Westminster, Pergunta 73. 253

J.I. Packer, Teologia Concisa, p. 157. 254

Este verbo tem uma aplicação espiritual, conforme a do texto de Lc 24.31,32,45, e também física (Mc 7.34-35). 255

“Pela fé em o nome de Jesus, é que esse mesmo nome fortaleceu a este homem que agora ve-des e reconheceis; sim, a fé que vem por meio de Jesus deu a este saúde perfeita na presença de todos vós” (At 3.16). “Certa mulher, chamada Lídia, da cidade de Tiatira, vendedora de púrpura, te-mente a Deus, nos escutava; o Senhor lhe abriu (dianoi/gw) o coração para atender às coisas que Paulo dizia” (At 16.14). “Querendo ele percorrer a Acaia, animaram-no os irmãos e escreveram aos discípulos para o receberem. Tendo chegado, auxiliou muito aqueles que, mediante a graça, haviam crido” (At 18.27). “Essa é a razão por que provém da fé, para que seja segundo a graça, a fim de que seja firme a promessa para toda a descendência, não somente ao que está no regime da lei, mas também ao que é da fé que teve Abraão (porque Abraão é pai de todos nós” (Rm 4.16). “Quem é A-polo? E quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um” (1Co 3.5). “Porque vos foi concedida a graça de padecerdes por Cristo e não somente de crerdes nele” (Fp 1.29).

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foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou com eles acerca das Escrituras, expon-do (dianoi/gw = “explicando”, “interpretando”) e demonstrando ter sido necessário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio” (At 17.3). Deus não nos elegeu na eternidade porque um dia teríamos fé; mas sim, para que tivéssemos fé: Sem a graça de Deus não haveria fé.256 A fé é essencial à salvação, como uma evidência da nossa eleição: Só os que crêem serão salvos; só crêem os eleitos! (1Ts 1.3,4; 2Ts 2.13; Tt 1.1). A fé não tem méritos salvadores; ela é apenas o instrumento gracioso de Deus para a apropriação da salvação preparada pelo Tri-no Deus para o Seu povo escolhido (Lc 8.12; At 16.31; 1Co 1.21; Ef 2.8; 2Ts 2.13). “Eu não me apresento – escreveu Schaeffer – presunçosamente pensando que posso salvar a mim mesmo, mas entregando-me ao trabalho completo de Cristo e às promessas escritas de Deus. Minha fé é simplesmente as mãos vazias com as quais aceito a dádiva de Deus”.257 A razão estigmatizada pelo pecado, que se mostra tão eficaz nas coisas naturais, perde-se diante do mistério de Deus revelado em Cristo e, também diante da Reve-lação geral na Natureza: “As mentes humanas são cegas a essa luz, a qual res-plandece em todas as coisas criadas, até que sejam iluminadas pelo Espírito de Deus e comecem a compreender, pela fé, que jamais poderão entendê-lo de outra forma”.258 A graça, portanto, antecede à fé e ao conhecimento.259 “Se Deus não se antecipasse aos homens com sua graça, todos eles pereceriam totalmente”.260 A fé consiste na convicção de que a salvação está além de nossos recursos; no caso da fé salvadora, significa que depositamos nossa fé em Deus por meio de Cristo.261

256

“É pela fé que nos apropriamos da graça de Deus, a qual está oculta e é desconhecida do entendimento carnal” (João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 13.5), p. 267). 257 Francis A. Schaeffer, O Deus Que Intervém, São Paulo: Refúgio/ABU, 1981, p. 208. Figura seme-lhante encontramos em outros autores: “A fé é, por assim dizer, a mão pela qual o pecador recebe a salvação oferecida por Deus” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Pu-blicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 20). “A salvação é um dom, e o pecador não con-tribui com nada, tendo apenas as mãos vazias estendidas para recebê-la. Mesmo esse sim-ples ato de fé em si mesmo é da iniciativa divina, e não pela autogeração autônoma. A fé salvadora é, em si mesma, um dom, não uma capacidade natural pela qual simplesmente decidimos concentrar em Cristo como um objeto de nossa confiança” (R.K. McGregor Wright, A Soberania Banida, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 102). 258

João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299. 259

“Diz ele (Paulo) que, antes que nascêssemos, as boas obras haviam sido preparadas por Deus; significando que por nossas próprias forças não somos capazes de viver uma vida san-ta, mas só até ao ponto em que somos adaptados e moldados pelas mãos divinas. Ora, se a graça de Deus nos antecipou, então toda e qualquer base para vanglória ficou eliminada” (João Calvino, Efésios, (Ef 2.10), p. 64). 260

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, Vol. 1, (Sl 25.8), p. 548. 261

Vd. Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, p. 147.

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Sem a graça de Deus jamais creríamos na Mensagem do Evangelho, jamais po-deríamos entendê-la de forma salvadora, portanto, de modo algum seríamos salvos. f) Redenção e remissão dos pecados: Cristo redimiu-nos, levando sobre Si a maldição de nossos pecados, pagando o altíssimo preço do nosso resgate (Rm 3.24; Ef 1.7/1Pe 1.18,19; At 20.28/ Hb 8.12). “O sangue de Cristo tem valor infinito por causa da gloriosa digni-dade d’Aquele que o derramou”.262 Cristo, com o seu próprio sangue, reconcili-ou-nos com Deus, sendo assunto aos céus, como nosso eterno e perfeito Media-dor.263 g) Vocação: Deus nos chama eficazmente por Sua livre graça (Gl 1.15; 2Tm 1.9). A vocação de Deus permanece e nos sustenta até o fim (Fp 1.6).264 h) A Conversão: É Deus Quem converte o homem do domínio de Satanás para o Seu Reino (At 26.18/At 11.21,23/1Tm 1.12-14). A conversão se evidencia em nossa ca-minhada, que deve se coadunar com a nossa natureza transformada pelo Espírito Santo; agora, as coisas velhas passaram. i) A Perseverança: Aquele que começou a boa obra a nosso favor (Elegendo, justifican-do, concedendo-nos fé, adotando, etc.), nos confirmará pela Sua graça até o fim (Fp 1.6/Jo 10.28; 1Pe 1.5). Ninguém será deixado no meio do caminho!265 j) A Salvação Eterna: A salvação é uma obra exclusiva de Deus (At 15.11; Rm 6.23; Ef 2.5,8; 2Tm 1.9; Tt 2.11). A nossa salvação é decorrente primeiramente da vontade Soberana de Deus (Mt 19.23-36; Hb 7.25; Tg 4.12). Deus age por meio da Sua Poderosa Palavra (Rm 1.16; 9.16-18; 10.17; 1Co 1.18), conduzindo-nos a Cristo (Jo 6.44,65), confessando-O como nosso Senhor (1Co 12.3). Deus mesmo dá-nos a certeza de que fomos salvos

262

Abraham Booth, Somente pela Graça, p. 31. 263

Vd. João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 10.22), p. 268. 264

Vd. C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, p. 20. 265

Vd. C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, p. 12.

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pelo poder da Sua Graça (Jo 10.27-29); confirmando (Rm 16.25-27),266 selando (Ef 1.13; 4.30), edificando (At 20.32), santificando (2Ts 2.13) e preservando-nos (Jd 24,25) até à conclusão do Seu propósito em nós: A salvação eterna para a Glória de Deus (Fp 1.6; 2Ts 1.11,12; 1Pe 1.3,5; 2Pe 1.3). Nós seremos o troféu de Cristo por toda a eternidade; somos o resultado de Sua obra salvadora; por isso, quando Ele vier, será glorificado em nós (Ef 1.5,6; 2.7/Jo 17.10; 2Ts 1,10,12). “Na eternidade, olharemos para nós mesmos e diremos: ‘Eis aqui a prova de que Deus é bondoso – Ele me salvou!’ Seremos os troféus na galeria dos troféus de Deus”.267

C) A SOBERANIA DE DEUS E A PROCLAMÃO:

Na prática ninguém evangeliza sem a convicção do soberano poder trans-formador de Deus. Se não fosse assim, não teria sentido orar pedindo que Deus a-plique a Sua Palavra, que transforme aquele coração, que lhe dê discernimento, etc. Assim fazemos, porque sabemos que em primeira e última instância, a salvação per-tence a Deus. A certeza de que Deus é o Senhor da Salvação e, que a Ele pertence o poder pa-ra nos salvar conforme o Seu decreto eterno268 deve nortear e direcionar todo o nosso pensar e agir evangélico.269 A salvação é uma prerrogativa única e exclusiva de Deus: Ele tem poder e total liberdade para salvar a quem quiser; a Palavra diz que a salvação pertence a Deus (Hb 2.10; 5.9; Tg 4.12; Ap 7.10; 19.1).270 De fato, Deus é Quem salva conforme o Seu propósito gracioso revelado nas Escrituras Sa-gradas. Quando evangelizamos, estamos certos do poder soberano de Deus, que age nos

266

Calvino comentando o texto de Rm 16.25, diz que Paulo ensina aqui a perseverança final. "E para que descansem (os romanos) e se apóiem neste poder, indica que ele nos foi assegurado pelo evangelho. Por isso não só nos promete a graça presente, ou seja, atual, senão tam-bém nos dá a certeza de uma graça eterna. Pois Deus nos anuncia que não somente é nos-so Pai agora, senão para sempre, e o que é mais ainda, sua adoção sobrepassa a morte porque nos conduz à herança eterna" (J. Calvino, La Epistola Del Apostol Pablo A Los Romanos, Grand Rapids, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristiana Reformada, 1977, p. 393). 267

Tom Wells, Fé: Dom de Deus, p. 100. 268

Leia: A.W. Pink, Deus é Soberano, p. 24, 49ss.; Idem., Os Atributos de Deus, p. 31-36; Loraine Boettner, La Predestinación, p. 26ss; 259; J. I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 11-15; Confissão de Westminster, (1647), IX.3; VI.4; VII.1. 269

Vd. J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 22-23. 270

“Porque convinha que aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, aperfeiçoasse, por meio de sofrimentos, o Autor da salvação deles“ (Hb 2.10). “E, tendo sido aperfeiçoado, tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (Hb 5.9). “Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer....” (Tg 4.12). “E clama-vam em grande voz, dizendo: Ao nosso Deus, que se assenta no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação” (Ap 7.10). “Depois destas coisas, ouvi no céu uma como grande voz de numerosa multidão, dizendo: Aleluia! A salvação, e a glória, e o poder são do nosso Deus” (Ap 19.1).

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eleitos, criando fé por intermédio da Sua Palavra. Contudo, como crerão e invocarão o nome do Senhor, se não conhecerem o Evangelho? (Rm 10.9-15).271 A Soberania de Deus é uma determinante da evangelização! J.I. Packer, ressaltando a importância da convicção da Soberania de Deus no mi-nistério evangélico, diz:

“(A) fé fervorosa na soberania absoluta de Deus (...) não somente fortale-ce a evangelização, como sustenta o evangelista, criando uma esperança de êxito que, de outro modo, não poderia ser realidade; e igualmente nos ensina a ligar a pregação à oração, tornando-nos ousados e confiantes pe-rante os homens, ao mesmo tempo em que nos torna humildes e persistentes perante Deus”.272 (Vejam-se: Jo 15.5; 16.33; 1Co 15.57-58; Fp 4.13).

4. A Responsabilidade Humana:

A) O DEUS MISTERIOSO:

A aceitação do paradoxo ou antinomia faz parte da própria limitação nos-sa diante da Revelação de Deus. Reconhecemos a clareza de temas individuais nas Escrituras, mas, ao mesmo tempo, confessamos a nossa incapacidade em relacio-ná-los de forma perfeita em nossa mente bastante limitada.273 A Escritura é suficien-temente clara, mas, não absolutamente clara em todas as coisas. A própria Confis-são de Westminster nos instrui: “Na Escritura não são todas as coisas igualmen-te claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em uma ou outra passagem da Escritura são tão claramente expostas e aplica-das, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas” (I.7).

271

“Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o res-suscitou dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da salvação. Porquanto a Escritura diz: Todo aquele que nele crê não será con-fundido. Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouvi-ram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como es-tá escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!” (Rm 10.9-15). 272

J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 84-85. Veja-se, também, p. 66-67; 74-75; R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 50-51. 273

Esta compreensão é bastante forte no pensamento de Calvino. Vejam-se: Edward A. Dowey, Jr., The Knowledge of God in Calvin’s Theology, New York: Columbia University Press, 1952, p. 39-40. George comenta: “Com toda sua reputação de teólogo de lógica rigorosa, Calvino preferiu viver com o mistério e a incoerência de lógica a violar os limites da revelação ou imputar culpa ao Deus que as Escrituras retratam como infinitamente sábio, completamente amoro-so e absolutamente justo” (Timothy George, A Teologia dos Reformadores, São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 209).

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A Bíblia apresenta verdades antinômicas (verdades que aparentemente se con-tradizem), sem ter a preocupação de nos explicar a relação entre ambas; e, tanto o crente sem maiores estudos teológicos, como o teólogo,274 são, cada um à sua ma-neira, tentados a explicar o que Deus não diz em Sua Palavra. Por isso, tenho afir-mado com veemência, que a Teologia não é explicativa, mas sim, descritiva; isto porque se ela explica o que já foi explicado por Deus, está na realidade descrevendo a explicação e, se por outro lado, tenta explicar o que Deus não explicou, está aden-trando aos mistérios de Deus o que, além de ser inútil, visto que nada conseguimos de positivo com isso, é um ato pecaminoso. Então, alguém perguntaria: para que a Teologia? Se ela é apenas descritiva, quem precisa dela? Entendemos que a Teolo-gia, especialmente a conhecida tecnicamente como Teologia Sistemática,275 se pro-põe a estudar a verdade bíblica em seu todo, tentando relacionar as partes com o todo e o todo com as suas partes, declarando, assim, de forma mais ou menos sis-temática, as doutrinas que não foram criadas por homens, mas sim, reveladas por Deus, do Gênesis ao Apocalipse. Creio que foi neste sentido que escreveu Lloyd-Jones (1899-1981): “O estudo bíblico é de bem pouco valor se termina em si próprio e se é principalmente uma questão de sentido das palavras. O pro-pósito do estudo das Escrituras é chegar à doutrina”.276 Todas as tentativas históricas para explicar a relação ente a Soberania de Deus e a suposta liberdade humana (livre arbítrio) redundaram em fracasso, na parcializa-ção das Escrituras. Creio que muitos dos homens que se atiram nesta empreitada, o fazem sinceramente, como que querendo defender as Escrituras, mostrar a sua coe-rência e, consequentemente, do Seu Autor, Deus; entretanto, quando há uma tenta-tiva motivada por este espírito, reconhecemos a sua boa disposição; contudo, temos que perceber a sua ignorância a respeito da Palavra e do Senhor da Palavra. Deus não precisa ser conciliado nem explicado; a Sua Palavra, em última instância não precisa de defesa; ela permanece. É por isso que nós Reformados não formulamos doutrinas, apenas reconhecemos as doutrinas que já estão, por vontade de Deus na Sua Palavra, fazendo – de modo imperfeito é verdade –, o que Jesus Cristo (Lc 24.44-49) e os Apóstolos (At 2.14-36) perfeitamente fizeram; uma relação dos textos e sua aplicação correta dentro do contexto e do propósito de sua redação.277

274

Para uma classificação útil a respeito dos níveis de teologia, ver: Stanley J. Grenz; Roger C. Ol-son, Quem Precisa de Teologia? Um convite ao estudo sobre Deus e sua relação com o ser humano, São Paulo: Vida, 2002, especialmente, p. 25-39. 275

Operacionalmente podemos dizer que a Teologia Sistemática é o estudo sistematizado da Reve-lação Especial de Deus conforme registrada nas Escrituras Sagradas, buscando uma compreensão real e harmônica de "todo o desígnio de Deus" e de suas relações intrínsecas e extrínsecas, realçan-do a sua relevância para a vida do povo de Deus. Cabe ainda uma palavra explicativa: a nomenclatu-ra “sistemática”, que pode parecer redundante para alguns, é proveniente do verbo grego sunista/w, que significa: organizar, coligar, congregar. Portanto, a designação de Teologia Sistemática é perti-nente visto que ela se propõe a organizar em um sistema unificado os ensinamentos bíblicos. 276

D.M. Lloyd-Jones, Por Que Prosperam os Ímpios?, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecio-nadas, 1983, p. 101. 277

F.F. Bruce (1910-1990), está correto, ao afirmar que: “Os crentes possuem um padrão per-manente e um modelo no uso que nosso Senhor fez do Antigo Testamento, e uma parte do atual trabalho do Espírito Santo no tocante aos crentes é abrir-lhes as Escrituras, conforme o Cristo ressurreto as abriu para os dois discípulos no caminho para Emaús (Lc 24.25ss)". (F.F.

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Dentro dos esforços por “explicar as Escrituras” no que concerne à liberdade hu-mana e à soberania de Deus, encontramos por um lado, a ênfase na “liberdade hu-mana”, ao ponto de sacrificar a Soberania de Deus (Arminianismo); no outro extre-mo, temos a perspectiva errada da Soberania de Deus, em detrimento da liberdade-responsabilidade do homem (Hiper-Calvinismo). Curiosamente aqui, verifica-se mais uma vez o encontro dos extremos opostos. O hiper-calvinismo e o arminianismo se tocam em seu racionalismo, na tentativa de explicar o que a Bíblia apenas descreve. Edwin H. Palmer age com sabedoria quando, ao tratar deste assunto, chama de “o Grande Mistério”.278 Sem dúvida, este assunto se constitui num dos grandes misté-rios de Deus. Devemos dar graças a Deus, pois, sem a Sua revelação bíblica, nem a consciência de que há este mistério teríamos.

Tratando da doutrina da Predestinação, Calvino delimita o campo da sua teolo-gia: “A Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, como nada é omitido não só necessário, mas também proveitoso de conhecer-se, assim também nada é ensinado senão o que convenha saber”.279

Nas Institutas, orienta e adverte àqueles que querem discutir com Deus, limitan-do-O ao seu raciocínio:

“Ponderem, por uns instantes, aqueles a quem isto se afigura áspero, quão tolerável lhes seja a impertinência, quando, porque lhes excede a compreensão, rejeitam matéria atestada de claros testemunhos da Escri-tura e inquinam de vício o serem a público trazidas cousas que, a não ser que houvesse reconhecido serem proveitosas de conhecer-se, Deus ja-mais haveria ordenado fossem ensinadas através de Seus Profetas e Após-tolos. Ora, nosso saber não deve ser outra cousa senão abraçar com branda docilidade e, certamente, sem restrição, tudo quanto foi ensinado nas Sagradas Escrituras”.280

O fato é que a Escritura nos diz, com cores vivas, que Deus é Senhor de todas as coisas, nada acontecendo sem a Sua prévia permissão consciente (Sl 106.8; Is 40.13-14; Dn 3.17-18; 4.35; Mt 10.29; At 4.27-28; Rm 9.15; 11.34-36; Ef 1.5,11).281 Por outro lado, também afirma a responsabilidade do homem como ser Bruce, Interpretação Bíblica: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. II, p. 753). Vejam-se também: João Calvino, As Institutas, I.9.3; II.8.7. 278

E. H. Palmer, Doctrinas Claves, Carlisle, Pennsylvania: El Estandarte de la Verdad, 1976, p. 142. 279

J. Calvino, As Institutas, III.21.3. 280

J. Calvino, As Institutas, I.18.4. "'A Escritura é proveitosa.' Segue-se daqui que é errôneo usá-la de forma inaproveitável. Ao dar-nos as Escrituras, o Senhor não pretendia satisfazer nossa curiosidade, nem alimentar nossa ânsia por ostentação, nem tampouco deparar-nos uma chance para invenções místicas e palavreado tolo; sua intenção, ao contrário, era fazer-nos o bem. E assim, o uso correto da Escritura deve guiar-nos sempre ao que é proveitoso” (J. Calvino, As Pastorais, (2Tm 3.16) p. 263). 281

“Mas ele os salvou por amor do seu nome, para lhes fazer notório o seu poder” (Sl 106.8). “Quem guiou o Espírito do SENHOR? Ou, como seu conselheiro, o ensinou? Com quem tomou ele conselho, para que lhe desse compreensão? Quem o instruiu na vereda do juízo, e lhe ensinou sabedoria, e lhe

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moral e livre, que prestará contas de seus atos a Deus (Mt 11.20-24;12.36-37; Jo 3.18; At 13.38-41; Rm 14.10-12; 2Co 5.10; 2Ts 1.7-10; Ap 20.11-13).282 Calvino (1509-1564), como jurista que era, nos chama a atenção para o fato de que a puni-ção do infrator da lei só pode existir se este tiver liberdade e, por isso, puder ser res-ponsabilizado pelos seus atos.283 (Rm 1.18-2.16).284 Agostinho (354-430) revela a mostrou o caminho de entendimento?” (Is 40.13-14). “Se o nosso Deus, a quem servimos, quer livrar-nos, ele nos livrará da fornalha de fogo ardente e das tuas mãos, ó rei. Se não, fica sabendo, ó rei, que não serviremos a teus deuses, nem adoraremos a imagem de ouro que levantaste” (Dn 3.17-18). “Todos os moradores da terra são por ele reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes? (Dn 4.35). “Não se vendem dois pardais por um asse? E nenhum deles cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai” (Mt 10.29). “Porque verdadeiramente se ajuntaram nesta cidade contra o teu santo Servo Jesus, ao qual ungiste, Herodes e Pôncio Pilatos, com gentios e gente de Is-rael, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu propósito predeterminaram” (At 4.27-28). “Pois ele diz a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão” (Rm 9.15). “Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.34-36). “Nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, (...). Nele, digo, no qual fomos também feitos herança, predestinados segundo o pro-pósito daquele que faz todas as coisas conforme o conselho da sua vontade” (Ef 1.5,11). 282

“Passou, então, Jesus a increpar as cidades nas quais ele operara numerosos milagres, pelo fato de não se terem arrependido: Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque, se em Tiro e em Sidom se tivessem operado os milagres que em vós se fizeram, há muito que elas se teriam arrependido com pano de saco e cinza. E, contudo, vos digo: no Dia do Juízo, haverá menos rigor para Tiro e Sidom do que para vós outras. Tu, Cafarnaum, elevar-te-ás, porventura, até ao céu? Descerás até ao inferno; porque, se em Sodoma se tivessem operado os milagres que em ti se fizeram, teria ela permanecido até ao dia de hoje. Digo-vos, porém, que menos rigor haverá, no Dia do Juízo, para com a terra de Sodoma do que para contigo” (Mt 11.20-24). “Digo-vos que de toda palavra frívola que proferirem os homens, dela darão conta no Dia do Juízo; porque, pelas tuas palavras, serás justificado e, pelas tuas palavras, serás condenado” (Mt 12.36-37). “Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julga-do, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” (Jo 3.18). “Tomai, pois, irmãos, conheci-mento de que se vos anuncia remissão de pecados por intermédio deste; e, por meio dele, todo o que crê é justificado de todas as coisas das quais vós não pudestes ser justificados pela lei de Moisés. Notai, pois, que não vos sobrevenha o que está dito nos profetas: Vede, ó desprezadores, maravilhai-vos e desvanecei, porque eu realizo, em vossos dias, obra tal que não crereis se alguém vo-la contar” (At 13.38-41). “Porque com o coração se crê para justiça e com a boca se confessa a respeito da sal-vação. Porquanto a Escritura diz: Todo aquele que nele crê não será confundido. Pois não há distin-ção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam” (Rm 14.10-12). “Porque importa que todos nós compareçamos perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo” (2Co 5.10). “E a vós outros, que sois atribulados, alívio juntamente conosco, quando do céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em chama de fogo, tomando vingança contra os que não conhe-cem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder, quando vier para ser glorificado nos seus santos e ser admirado em todos os que creram, naquele dia (porquanto foi crido entre vós o nosso testemunho)” (2Ts 1.7-10). “Vi um grande trono branco e aquele que nele se assenta, de cuja presença fugiram a terra e o céu, e não se achou lugar para eles. Vi também os mortos, os grandes e os pequenos, postos em pé diante do trono. Então, se abriram livros. Ainda ou-tro livro, o Livro da Vida, foi aberto. E os mortos foram julgados, segundo as suas obras, conforme o que se achava escrito nos livros. Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o além entrega-ram os mortos que neles havia. E foram julgados, um por um, segundo as suas obras” (Ap 20.11-13). 283

Vd. J. Calvino, As Institutas, I.17.3 e 5. 284

“A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a ver-dade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a

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sua angústia de forma poética: “A pena me acompanha, porque me deste li-vre-arbítrio. Se, pois, não me tivésseis dado o livre-arbítrio, e desta forma não me tivesses feito melhor do que os animais, não sofreria justa condenação ao pecar. Então, pelo livre-arbítrio me elevaste, e por justo juízo me derrubas-te”.285 Temos consciência que os dois postulados são bíblicos e consequentemente ver-dadeiros; só não sabemos explicá-los satisfatoriamente em sua correlação e, segun-do creio, nem Deus nos pediu tal tarefa.286 Packer coloca a questão nestes termos: “A antinomia particular que está em vista neste caso é a aparente opo-

sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo co-nhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus entregou tais homens à imun-dícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém! Por causa disso, os entregou Deus a paixões infames; porque até as mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas por outro, contrário à natureza; seme-lhantemente, os homens também, deixando o contacto natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo, em si mesmos, a me-recida punição do seu erro. E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes, cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores, caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, invento-res de males, desobedientes aos pais, insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia. Ora, conhecendo eles a sentença de Deus, de que são passíveis de morte os que tais coisas prati-cam, não somente as fazem, mas também aprovam os que assim procedem. Portanto, és indescul-pável, ó homem, quando julgas, quem quer que sejas; porque, no que julgas a outro, a ti mesmo te condenas; pois praticas as próprias coisas que condenas. Bem sabemos que o juízo de Deus é se-gundo a verdade contra os que praticam tais coisas. Tu, ó homem, que condenas os que praticam tais coisas e fazes as mesmas, pensas que te livrarás do juízo de Deus? Ou desprezas a riqueza da sua bondade, e tolerância, e longanimidade, ignorando que a bondade Deus é que te conduz ao ar-rependimento? Mas, segundo a tua dureza e coração impenitente, acumulas contra ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus, que retribuirá a cada um segundo o seu procedi-mento: a vida eterna aos que, perseverando em fazer o bem, procuram glória, honra e incorruptibili-dade; mas ira e indignação aos facciosos, que desobedecem à verdade e obedecem à injustiça. Tri-bulação e angústia virão sobre a alma de qualquer homem que faz o mal, ao judeu primeiro e também ao grego; glória, porém, e honra, e paz a todo aquele que pratica o bem, ao judeu primeiro e também ao grego. Porque para com Deus não há acepção de pessoas. Assim, pois, todos os que pecaram sem lei também sem lei perecerão; e todos os que com lei pecaram mediante lei serão julgados. Por-que os simples ouvidores da lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados. Quando, pois, os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e os seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se, no dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos homens, de conformidade com o meu evangelho” (Rm 1.18-2.16). 285

Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1997-1998, (Patrística, 9/1-3), (Sl (102)101.11), Vol. III, p. 22. 286

Vd. João Calvino, As Institutas, I.18.4.

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sição entre a soberania divina e a responsabilidade humana, ou (expres-sando o caso de modo mais bíblico) entre o que Deus faz como Rei e o que Ele faz como Juiz. As Escrituras ensinam que, como Rei, Ele ordena e controla todas as coisas, inclusive as ações humanas, de conformidade com Seu próprio propósito eterno (Gn 45.8; 50.20; Pv 16.9; 21.1; Mt 10.29; At 4.27-28; Rm 9.20-21; Ef 1.11, etc). As Escrituras igualmente ensinam que, como Juiz, Ele considera todo homem responsável pelas escolhas que faz, bem como pelos cursos de ação que segue (Mt 25; Rm 2.1-16; Ap 20.11-13, etc). (...) O homem é um agente moral responsável, embora seja também divinamente controlado; o homem é divinamente controlado, embora se-ja também um agente moral responsável”.287

Diante disso, creio que a atitude correta do cristão sincero, é a confissão da sua ignorância e, concomitantemente a glorificação de Deus, por Ele nos dirigir de forma sábia e soberana e, misteriosamente não anular a nossa vontade-responsabilidade. Creio também, que uma forma de demonstrarmos a nossa compreensão, gratidão e reverência para com Deus e para com Sua Palavra, é não tentar indevidamente especular sobre estas verdades. O que Deus quis que soubéssemos revelou em Sua Palavra; nada ficou de fora, nada foi demais: Na Palavra temos registrado ape-nas o que Deus quis que permanecesse; e para nós, isto basta! Calvino (1509-1564), com sabedoria e humildade escreveu:

"Nem nos envergonhemos em até este ponto submeter o entendimento à sabedoria imensa de Deus, que em Seus muitos arcanos sucumba. Pois, dessas cousas que nem é dado, nem é lícito saber, douta é a ignorância, a avidez de conhecimento, uma espécie de loucura".288

“É estulto e temerário de cousas desconhecidas mais profundamente indagar do que Deus nos permita saber”.289 (Vd. Dt 29.29; 1Co 1.18). “Tudo o mais que pesa sobre nós e que devemos buscar é nada saber-mos senão o que o Senhor quis revelar à Sua igreja. Eis o limite de nosso conhecimento”.290

No mesmo pensamento, a Confissão Belga (1561), falando sobre a Providência de Deus, orienta-nos:

287

J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p.18-19. Pa-ra uma visão crítica do emprego do termo “antinomia”, não do conceito teológico sustentado por Pac-ker, ver: R.C. Sproul, Eleitos de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 38-40 e Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 18. Veja-se também: K.S. Kantzer, Paradoxo: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, Vol. III, p. 98-99 e Anthony Hoekema. Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 11-13. 288

J. Calvino, As Institutas, III.23.8. 289

J. Calvino, As Institutas, III.25.6. Vd. As Institutas, III.21.4; Idem., Exposição de Romanos, (Rm 9.14), p. 330. 290

J. Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 12.4), p. 242-243.

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“.... E no que se refere ao que Ele [Deus] faz fora do alcance da inteli-gência humana, isso não o queremos investigar mais curiosamente do que nossa razão pode suportar; porém adoramos com toda humildade e reve-rência os justos juízos de Deus, os quais nos são ocultos; tendo-nos por satis-feitos por sermos discípulos de Cristo para aprender unicamente o que Ele

nos indica em sua Palavra, sem ultrapassar estes limites”.291 (destaques meus).

Qualquer atitude queixosa deve ser evitada pois não edifica e, denota a nossa pretensa prepotência diante de Deus (Rm 9.19-21). “Nossas especulações não podem servir de medida para nosso Deus”, acentua Packer.292 Lembremo-nos de que Deus não precisa ser justificado, explicado ou racionaliza-do. Ele ultrapassa em muito a nossa capacidade de percepção (Jó 11.7; Is 40.18, 28; 45.15; Rm 11.33-36):293 um Deus plenamente explicado, seria um “deus” huma-nizado, à altura da nossa "razão" humana e preso à cosmovisão contemporânea. Em cada época este “deus” seria compreendido de uma forma, de acordo com a percepção e valores hodiernos.294 Neste caso a Teologia se transformaria em antro-pologia.295 A Teologia não tem nem pode ter esta pretensão – de justificar Deus –; ela apenas O descreve conforme Ele Se revelou em atos e palavras nas Escrituras, buscando permanentemente a Sua iluminação para a compreensão da Sua Pala-vra.296 "A teologia reformada sustenta que Deus pode ser conhecido, mas que ao homem é impossível ter um exaustivo e perfeito conhecimento de Deus (...). Ter esse conhecimento de Deus seria equivalente a compreendê-lo, e isto está completamente fora de questão: 'Finitum non possit capere in-finitum'.".297

291

Confissão Belga, XIII. 292

J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 20. 293

“.... o Criador é incompreensível para as Suas criaturas. Um Deus que pudesse ser exausti-vamente compreendido por nós, cuja revelação sobre Si mesmo não nos apresentasse qualquer mistério, seria um Deus segundo a imagem do homem e, portanto, um Deus imagi-nário, e nunca o Deus da Bíblia” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 20). 294

Farley acentua com propriedade que “Um Deus que não fosse inefável, que fosse inteiramen-te conhecido como um objeto, uma coisa ou um dado, não seria o Deus da Escritura” (Ben-jamin Wirt Farley, A Providência de Deus na Perspectiva Reformada: In: Donald K. Mckim, ed. Gran-des Temas da Tradição Reformada, São Paulo: Pendão Real, 1999, p. 74). 295

Como equivocadamente entendia Feuerbach (1804-1872). (Vd. L. Feuerbach, A Essência do Cris-tianismo, Campinas, SP.: Papirus 1988, Prefácio à 2ª edição, p. 35 e p. 55. 296

Charles Hodge (1797-1878) observou com precisão: “...A teologia não é filosofia. Não preten-de descobrir a verdade nem conciliar o que ensina como verdadeiro com todas as outras verdades. Seu lugar é simplesmente declarar o que Deus tem revelado em Sua Palavra, e justificar estas declarações até onde seja possível frente a equívocos e objeções. Este limita-do e humilde ofício da teologia é especialmente necessário ter em mente, quando passa-mos a falar dos atos e propósitos de Deus” (Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1986, Vol. I, p. 535). 297

L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz Para o Caminho, 1990, p. 32. “.... somos

seres humanos, e é preciso que observemos sempre as limitações de nosso conhecimento, e

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Após falar da soberania de Deus na Criação e na eleição, Isaías exclama: “Ver-

dadeiramente tu és Deus misterioso....” (Is 45.15). Em outro lugar: “Não se pode es-quadrinhar o seu entendimento” (Is 40.28/Is 55.9; Pv 25.2; Rm 11.33). Nós aceita-mos o mistério. Cremos que Deus é Soberano, e que realiza sempre os Seus propó-sitos. Nada nem ninguém pode impedir-Lhe (Jó 42.2; Sl 33.11; 115.3; 135.6; Dn 4.34,35; Ef 1.11, etc); o homem como ser moral e responsável dará contas de si mesmo a Deus, colhendo de forma obrigatória o que semeou livre e espontanea-mente (Rm 14.10-12; 2Co 5.10; Gl 6.7,8). Deus nos tratará conforme de fato somos: agentes morais responsáveis.298

B) O HOMEM COMO SER RESPONSÁVEL:

O homem foi criado como um ser pessoal que tem consciência e determi-nação própria. Diferentemente de todos os outros animais, faz a distinção entre o eu, o mundo e Deus; daí a capacidade de se relacionar com Deus (Gn 3.8-14; Jr 29.13; Mt 11.28-30) e com o seu semelhante, podendo entender (racionalmente) a vontade de Deus, fazer-se entender e avaliar todas as coisas (Gn 1.28-30; 2.18,19). Como temos visto, apesar de o pecado ter comprometido, de forma gravíssima todas as suas faculdades originais, o homem não deixou de ser a imagem e seme-lhança de Deus − visto que isto implicaria em deixar de ser homem. Contudo, ele se tornou uma imagem desfigurada, desfocalizada, mais propriamente uma “caricatura” do Seu Criador. Calvino (1509-1564) escrevendo sobre isso, disse: “Quando de seu estado (original) decaiu Adão, não há a mínima dúvida de que por esta defecção se haja alienado de Deus. Pelo que, embora concedamos não haja sido aniquilada e apagada de todo a imagem de Deus, foi ela, todavi-a, corrompida a tal ponto que, o que quer que resta, é horrenda deformida-de”.299

não os ultrapassemos, pois tal gesto seria usurpar as prerrogativas divinas” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos,1998, (1Tm 5.25), p. 160). “Deus não pode ser apreendido pela mente humana. É mister que Ele se revele através de Sua Palavra; e é à medida que Ele desce até nós que podemos, por sua vez, subir até os céus” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Pau-lo: Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.2-7), p. 186). Do mesmo modo, enfatiza Schaeffer (1912-1984): “A comunicação entre Deus e o homem é verdadeira, o que não significa que ela seja exausti-va. Esta é uma importante diferença e precisa sempre ser mantida em mente. Para conhe-cer qualquer coisa que seja, de forma exaustiva, teríamos que ser infinitos, como Deus é. Mesmo no céu não seremos assim” (Francis A. Schaeffer, O Deus que Intervém, São Paulo: Cultu-ra Cristã, 2002, p. 151). 298

Vejam-se: J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 20-23; Hermisten M.P. Costa, Pro-vidência de Deus: Governo ou Fatalismo?, São Paulo, 2006, passim. 299

J. Calvino, As Institutas, I.15.4. “É verdade que ao vir a este mundo, trazemos conosco um remanescente da imagem de Deus com a qual Adão foi criado: porém esta mesma ima-gem está tão desfigurada que estamos repletos de injustiças e em nossas mentes não há se-não cegueira e ignorância” (Juan Calvino, Se Deus fuera nuestro Adversario: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 6), p. 86). Vd. Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana, Barcelona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 13; João Calvino, Efésios, (Ef 4.24), p. 142. Para uma exposição mais ampla sobre o conceito de Calvino a respeito de imagem

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A Bíblia apresenta o Evangelho como uma mensagem que deve ser anunciada a todos os homens a fim de que eles possam entendê-la e crer. Deus não simples-mente arrasta o pecador para Si sem que ele deseje. Ninguém será salvo a contra-gosto. Deus não simplesmente nos “nocauteia”;300 Ele nos convence. O homem pre-cisa desejar a salvação e recebê-la pela fé. Sabemos que a fé é um dom de Deus (Ef 2.8) e é Deus mesmo Quem desperta em nós a consciência de nossa necessi-dade de salvação e, ao mesmo tempo, a capacitação para crer no Evangelho.301

C) UMA PROCLAMAÇÃO PODEROSAMENTE SUBMISSA E INTELIGEN-TE:

A proclamação compete a nós; é uma responsabilidade inalienável e es-sencial de toda a Igreja.302 Como temos visto, não compreendemos exaustivamente a relação entre a Soberania de Deus e a responsabilidade humana, contudo, a Bíblia ensina estas duas verdades: Deus é Soberano e o homem é responsável diante de Deus por suas decisões (Rm 1.18-2.16).303 O nosso confronto com os mistérios da Palavra deve nos conduzir à adoração sincera (Rm 11.33-36). Em nosso testemunho, procuramos anunciar o Evangelho de forma inteligível, nos dirigindo a seres racionais a fim de que entendam a mensagem e creiam; por isso, ao mesmo tempo em que sabemos que é Deus Quem converte o pecador, devemos usar os recursos de que dispomos − que não contrariem a Palavra de Deus −, para atingir a todos os homens. A nossa proclamação deve ser apaixonada, no sentido de que queremos alertar os homens para a realidade do Evangelho, “persuadindo-os” pelo Espírito, a se arrependerem de seus pecados e a se voltarem para Deus. (Vd. Lc 5.10; Rm 11.13-14; 1Co 9.19-23; 2Co 5.11)304.305 Cremos que o Espírito da Ver- e semelhança, ver: Hermisten M.P. Costa, Reflexões Antropológicas – O Conceito de Imagem e Se-melhança na Teologia de Calvino –, São Paulo, 2005. 300

Para usar uma expressão de Lloyd-Jones (D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus não o Nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 161). 301

“Ninguém jamais foi convertido ao cristianismo à força. Todo verdadeiro converso volta-se para Cristo porque quer – embora seja certo que este querer é dom de Deus, transmitido a ele por ocasião do seu novo nascimento” (R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 27). Do mesmo modo, ver: D.M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evan-gélicas Selecionadas, 1996, p. 230-231. 302

“A evangelização é a inalienável responsabilidade de toda comunidade cristã, bem como de todo indivíduo crente” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 21). 303

Vd. J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 16-27; R.B. Kuiper, Evangelização Teo-cêntrica, p. 27. 304

“....Disse Jesus a Simão: Não temas; doravante serás pescador de homens” (Lc 5.10). “Dirijo-me a vós outros, que sois gentios! Visto, pois, que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério, para ver se, de algum modo, posso incitar à emulação os do meu povo e salvar alguns deles” (Rm 11.13-14). “Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Procedi, para com os judeus, como judeu, a fim de ganhar os judeus; para os que vivem sob o regime da lei, como se eu mesmo assim vivesse, para ganhar os que vivem debaixo da lei, embora não esteja eu debaixo da lei. Aos sem lei, como se eu mesmo o fosse, não estando sem lei para com Deus, mas debaixo da lei de Cristo, para ganhar os que vivem fora do regime da lei. Fiz-me fraco pa-ra com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por to-

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dade nos capacita a proclamar o Evangelho com fidelidade e sabedoria. Evangeli-zar não é um exercício de aniquilamento da razão, antes é um desafio à utilização de uma mente sã, que só pode ser restaurada pelo poder do Espírito. Toda verdade procede de Deus e, o Espírito de Deus nos concede este discernimento na compre-ensão e no uso da verdade. “O Espírito Santo é o Espírito da verdade, que se importa com a verdade, ensina a verdade e dá testemunho da verdade”.306 O Livro de Atos registra que Paulo por três semanas pregou, conforme seu cos-tume, na sinagoga de Tessalônica. Lucas usa alguns termos muito interessantes pa-ra descrever a pregação de Paulo: “Tendo passado por Anfípolis e Apolônia, chega-ram a Tessalônica, onde havia uma sinagoga de judeus. Paulo, segundo o seu cos-tume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou (diale/gomai) com eles acerca das Escrituras, expondo (dianoi/gw) e demonstrando (parati/qhmi) ter sido neces-sário que o Cristo padecesse e ressurgisse dentre os mortos; e este, dizia ele, é o Cristo, Jesus, que eu vos anuncio. Alguns deles foram persuadidos (pei/qw) e unidos a Paulo e Silas, bem como numerosa multidão de gregos piedosos e muitas distintas mulheres” (At 17.1-4). Analisemos os verbos usados por Lucas: a) “Arrazoar” (diale/gomai).307 No grego clássico a palavra tinha o emprego usual de “conversar” ou “discutir”. (Ver: Mc 9.34). A partir de Sócrates (469-399 a.C.) pas-sou a ser usada com o sentido de persuasão por meio de perguntas e respostas. Em Aristóteles (384-322 a.C.), tem o sentido de investigação dos fundamentos últimos do conhecimento.308 Daí o sentido de argumentar, conduzir uma discussão e discur-sar, envolvendo sempre a ideia de estímulo intelectual por intermédio do intercâmbio de ideias.309 Enfim, envolvia uma argumentação com o fim de persuadir, sendo permitida à congregação fazer perguntas.310 Paulo, portanto, passou três semanas fazendo perguntas, ouvindo indagações, respondendo, argumentando com respeito ao Antigo Testamento e à Pessoa de Cristo. A pregação do Evangelho envolve ra-ciocínios e argumentos. Lucas registra também que em Corinto: “Todos os sábados [Paulo] discorria (diale/gomai) na sinagoga, persuadindo tanto judeus como gregos” (At 18.4). Este era o método habitual de Paulo. Ele usou do mesmo recurso na sina-

dos os modos, salvar alguns. Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar cooperador com ele” (1Co 9.19-23). “E assim, conhecendo o temor do Senhor, persuadimos os homens e somos cabalmente conhecidos por Deus; e espero que também a vossa consciência nos reconheça” (2Co 5.11). 305

Vd. J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 36-37. 306

John R.W. Stott, A Verdade do Evangelho: um apelo à Unidade, Curitiba, PR./São Paulo, SP.: Encontro/ABU., 2000m p. 130. 307

A palavra tem o sentido de “dissertar” (At 17.17; 19.8; 24.25); “discorrer” (At 18.4; 19.9; Hb 12.5); “pregar” (At 18.19); “exortar” (At 20.7); “discursar” (At 20.9); “discutir” (At 24.12); “disputar” (Jd 9). 308

Ver: Gottlob Schrenk, diale/gomai: In: Gerhard Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Vol. II, p. 93. 309

Cf. A.T. Robertson, “Word Pictures in the New Testament, Volume 3 – Acts,” The Master Christian Library, (CD-ROM), Version 8 (Rio, Wi: Ages Software, 2000), in loc. 310

Cf. D. Furst, Pensar: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do No-vo Testamento, Vol. III, p. 515.

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goga de Tessalônica (At 17.2);311 na sinagoga de Atenas e na praça (At 17.17);312 na sinagoga de Éfeso e na escola de Tirano durante dois anos (At 18.19; 19.8-10),313 na igreja em Trôade (At 20.7,9)314 e diante de violento Procurador Félix (At 24.25).315 b) “Expor” (dianoi/gw).316 “Abrir completamente”. Tem o sentido figurado de “ex-planar” e “interpretar”. Ou seja: pelo Espírito, a exposição de Paulo tornava a men-sagem compreensível, “abria o significado” do texto, evidenciado a sua aplicabilida-de ao contexto de seus ouvintes (Cf. Lc 24.31-32).317 As pessoas poderiam não crer no que foi proclamado; contudo, não poderiam alegar falta de compreensão. c) “Demonstrar” (parati/qhmi).318 “Colocar ao lado”, “colocar diante de”. Figura-damente tem o sentido de apresentar evidências; ou seja, provar com passagens bí-blicas a veracidade de seu argumento. “Citar para provar”, “demonstrar”. Ou seja: Paulo argumentava biblicamente o que ensinava, demonstrando, por exemplo, o cumprimento das profecias em Cristo e, ao mesmo tempo, confrontava as teses de seus oponentes com textos bíblicos.

311

“Paulo, segundo o seu costume, foi procurá-los e, por três sábados, arrazoou com (diale/gomai) eles acerca das Escrituras” (At 17.2). 312

“Por isso, dissertava (diale/gomai) na sinagoga entre os judeus e os gentios piedosos; também na praça, todos os dias, entre os que se encontravam ali” (At 17.17). 313

“Chegados a Éfeso, deixou-os ali; ele, porém, entrando na sinagoga, pregava (diale/gomai) aos judeus” (At 18.19). “Durante três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava ousadamente, dis-sertando (diale/gomai) e persuadindo com respeito ao reino de Deus. Visto que alguns deles se mos-travam empedernidos e descrentes, falando mal do Caminho diante da multidão, Paulo, apartando-se deles, separou os discípulos, passando a discorrer (diale/gomai) diariamente na escola de Tirano. Durou isto por espaço de dois anos, dando ensejo a que todos os habitantes da Ásia ouvissem a pa-lavra do Senhor, tanto judeus como gregos” (At 18.8-10). 314

“No primeiro dia da semana, estando nós reunidos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia se-guir viagem no dia imediato, exortava-os (diale/gomai) e prolongou o discurso até à meia-noite. (...) Um jovem, chamado Êutico, que estava sentado numa janela, adormecendo profundamente durante o prolongado discurso (diale/gomai) de Paulo, vencido pelo sono, caiu do terceiro andar abaixo e foi levantado morto” (At 20.7,9). 315

“Dissertando (diale/gomai) ele acerca da justiça, do domínio próprio e do Juízo vindouro, ficou Félix amedrontado e disse: Por agora, podes retirar-te, e, quando eu tiver vagar, chamar-te-ei” (At 24.25). 316

A palavra tem o sentido de “expor” (Lc 24.32) e, especialmente, de “abrir”: abrir o ventre (Lc 2.23); abrir o céu (At 7.56). No sentido figurado: abrir os ouvidos (Mc 7.34-35); abrir os olhos para que com-preenda (Lc 24.31/Gn 3.5,7); abrir o coração (At 16.14); abrir a mente (Lc 24.45). 317

Comentando At 16.14, onde a mesma palavra é empregada, Stott escreve: “Percebemos que a mensagem era de Paulo, mas a iniciativa salvadora vinha de Deus. A pregação de Paulo não era efetiva em si mesma; o Senhor operava através dela. E a obra do Senhor não era di-reta em si; Ele preferiu operar por intermédio da pregação de Paulo. Sempre é assim” (John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: até os confins da Terra, São Paulo: ABU Editora, 1994, (At 16.13-15), p. 296). 318

Significa “propor” (Mt 23.24,31); “distribuir” (Mc 6.41; 8.6-7); oferecer (Lc 10.8; 11.6); confiar (Lc 12.48); entregar (Lc 23.46); encomendar (At 14.23; 20.32; 1Pe 4.19); “pôr diante de” (1Co 10.27); “encarregar” (1Tm 1.18); transmitir (2Tm 2.2).

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d) “Persuadir” (pei/qw), que significa convencer despertando a confiança de al-guém sobre o quê foi persuadido, “dar crédito” (At 27.11). Lucas também registra que alguns dos judeus e numerosa multidão de gregos – homens e mulheres distin-tas –, “foram persuadidos (pei/qw) e unidos a Paulo e Silas....” (At 17.4). Paulo es-forçava-se por persuadir os seus ouvintes a respeito do Evangelho (At 13.43; 18.4;19.8,26; 26.28; 28.23-24; 2Co 5.11).319 “Paulo não procurava dar origem à fé no Deus único e, sim, persuadir os ouvintes quanto à graça que acabava de ser dada por meio de Cristo”.320 Seus ouvintes são seriam levados à fé sim-plesmente pela sabedoria humana. No entanto, devemos estar conscientes que a proclamação não exclui de forma alguma a nossa razão.321 Mesmo havendo um tipo de linguagem que propiciava a persuasão, Paulo não se valia deste método. Diz aos coríntios: “A minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva (peiqo/j) de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder” (1Co 2.4). Há sempre o risco de substituir o poder de Deus pela “técnica”, pela capacidade de convencer os nossos ouvintes. Neste caso, subs-tituiríamos o conteúdo pelo sucesso; a soberania de Deus pelo poder de nossos ar-gumentos.322 É preciso um cuidado especial neste ponto. Calvino se detêm especi- 319

“Despedida a sinagoga, muitos dos judeus e dos prosélitos piedosos seguiram Paulo e Barnabé, e estes, falando-lhes, os persuadiam (pei/qw) a perseverar na graça de Deus” (At 13.43). “E todos os sábados discorria na sinagoga, persuadindo (pei/qw) tanto judeus como gregos” (At 18.4). “Durante três meses, Paulo frequentou a sinagoga, onde falava ousadamente, dissertando e persuadindo (pei/qw) com respeito ao reino de Deus” (At 19.8). Demétrio insuflando o povo: “e estais vendo e ou-vindo que não só em Éfeso, mas em quase toda a Ásia, este Paulo tem persuadido (pei/qw) e desen-caminhado muita gente, afirmando não serem deuses os que são feitos por mãos humanas” (At 19.26). “Então, Agripa se dirigiu a Paulo e disse: Por pouco me persuades (pei/qw) a me fazer cristão” (At 26.28). “Havendo-lhe eles marcado um dia, vieram em grande número ao encontro de Paulo na sua própria residência. Então, desde a manhã até à tarde, lhes fez uma exposição em testemunho do reino de Deus, procurando persuadi-los (pei/qw) a respeito de Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas. Houve alguns que ficaram persuadidos (pei/qw) pelo que ele dizia; outros, porém, con-tinuaram incrédulos” (At 28.23-24). “E assim, conhecendo o temor do Senhor, persuadimos (pei/qw) os homens e somos cabalmente conhecidos por Deus; e espero que também a vossa consciência nos reconheça” (2Co 5.11). 320

O. Becker, Fé: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Tes-tamento, Vol. II, p. 214. 321

Veja-se o excelente tópico do livro de Stott: John R.W. Stott, Crer é também Pensar, São Paulo: ABU., 1984 (2ª impressão), p. 45-51. 322

Packer desenvolve este tema de forma pertinente: “Se considerarmos que nossa tarefa consiste não simplesmente em apresentar Cristo, mas realmente em produzir convertidos – evangelizando não apenas fielmente, mas também com sucesso – então nossa maneira de evangelizar tornar-se-á pragmática e calculista. Terminaríamos por concluir que nosso equipamento básico, tanto para tratar pessoalmente como para pregar publicamente, deve ser duplo. Precisaríamos possuir não apenas uma compreensão clara do significado e aplicação do evangelho, mas igualmente uma técnica irresistível capaz de induzir os ouvinte a aceitá-lo. Assim sendo, precisaríamos nos esforçar por experimentar e desenvolver tal técnica. E deveríamos avaliar toda evangelização, tanto a nossa como a de outras pessoas, não pelo critério da mensagem pregada, mas também dos resultados visíveis. E, se nossos próprios esforços não estivessem produzindo frutos, conclu-iríamos que nossa técnica ainda precisa de melhoramentos. E caso estivessem produzindo fruto, concluiríamos que isso justifica a técnica usada. Se assim fosse, deveríamos considerar

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almente nesta questão: “Para que possa haver eloquência, devemos estar sempre em alerta a fim de impedir que a sabedoria de Deus venha sofrer degradação por um brilhantismo forçado e corriqueiro”.323 A eloquência “é um dom muito excelente, mas que, quando se vê divorciado do amor, de nada serve para alguém obter o favor divino”.324 A questão está em não usar desses meios como sendo a força do Evangelho, esquecendo-nos de sua simplici-dade que é-nos comunicada pelo Espírito: “Não devemos condenar nem rejei-tar a classe de eloquência que não almeja cativar cristãos com um requinte exterior de palavras, nem intoxicar com deleites fúteis, nem fazer cócegas em seus ouvidos com sua suave melodia, nem mergulhar a Cruz de Cristo em sua vã ostentação”.325 “O Espírito de Deus também possui uma eloquência particularmente sua”.326 Continua Calvino: “.... a eloquência que está em con-formidade com o Espírito de Deus não é bombástica nem ostentosa, como também não produz um forte volume de ruídos que equivalem a nada. An-tes, ela é genuína e eficaz, e possui muito mais sinceridade do que refina-mento”.327

a evangelização como uma atividade que envolve uma batalha de vontades entre nós mesmos e aqueles para quem pregamos, uma batalha cuja vitória dependeria de havermos detonado uma barragem suficiente de efeitos calculados. Dessa maneira, nossa filosofia de evangelização tornar-se-ia terrivelmente semelhante à filosofia da lavagem cerebral. E já não poderíamos mais argumentar, quando tal semelhança fosse aceita como fato, que es-sa não é a concepção certa de que seja evangelizar. Pois seria um conceito apropriado de evangelização, se a produção de convertidos fosse responsabilidade nossa.

“Isso nos mostra o perigo de esquecermos as implicações práticas da soberania de Deus” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 22-23). 323

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1996, (1Co 2.13), p. 91. 324

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 13.1), p. 394. 325

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 55. “Deus quer que sua Igreja seja edifi-cada com base na genuína pregação de sua Palavra, não com base em ficções humanas. (...) Nesta categoria estão questões especulativas que geralmente fornecem mais para os-tentação – ou algum louco desejo – do que para a salvação de homens” (João Calvino, Ex-posição de 1 Coríntios, (1Co 3.12), p. 112). “A pregação de Cristo é nua e simples; portanto, não deve ela ser ofuscada por um revestimento dissimulante de verbosidade” (João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 54). “(A) fé saudável equivale à fé que não sofreu ne-nhuma corrupção proveniente de fábulas” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (Tt 1.14), p. 320). “Se porventura desejarmos conservar a fé em sua integridade, temos de aprender com toda prudência a refrear nossos sentidos para não nos entregarmos a in-vencionices estranhas. Pois assim que a pessoa passa a dar atenção às fábulas, ela perde também a integridade de sua fé” (João Calvino, As Pastorais, (Tt 1.14), p. 320). 326

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 56. 327

João Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 1.17), p. 56. Sobre esta questão, ver: Hermisten M.P. Costa, A Construção do Pensamento Moderno e a Pregação Bíblica, São Paulo, 2005.

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5. A Suficiência e Eficácia da Obra Sacrificial de Cristo:

A) A GRAÇA QUE SE MANIFESTA EM OBRA:

Jesus Cristo é a personificação da graça; Ele encarna a graça e a verda-de (Jo 1.17; 14.6). Ele é a causa, o conteúdo e a manifestação da graça de Deus; fa-lar de Cristo é falar da graça. Os profetas do Antigo Testamento falavam de uma salvação futura pela graça (1Pe 1.10).328 Jesus Cristo, a graça de Deus encarnada, veio na plenitude do tempo (Gl 4.4),329 na plenitude da graça (2Tm 1.9330/Jo 1.16; 1Co 1.4; Ef 1.6,7; 2Tm 2.1). A auto-entrega de Jesus pelos pecados dos pecadores eleitos, foi um dom da graça que, como já vimos, fora profetizada (1Pe 1.10-11/Rm 5.15; Hb 2.9). A pobreza as-sumida por Cristo revela a riqueza da Sua graça (2Co 8.9);331 por isso, Ele, somente Ele nos dá acesso à graça (Hb 4.14-16), convidando-nos: “Vinde a mim” (Mt 11.28).

Jesus Cristo se encarnou a fim de que Deus pudesse ser justo, e ao mesmo tem-po o justificador daqueles que confiam em Jesus para salvação (Rm 3.26);332 por-tanto, para nós que cremos, Ele se tornou justiça, santificação e redenção (1Co 1.30).333 Calvino resume bem a relação entre o Deus soberano e gracioso revelado de forma plena em Seu Filho, Jesus Cristo:

“Visto que todo homem é indigno de se dirigir a Deus e de se apresentar diante de Sua face, a fim de nos livrar da vergonha que sentimos ou que de-veríamos sentir, o Pai celeste nos deu Seu Filho, o nosso Senhor Jesus Cristo, para ser o nosso Mediador e Advogado para com Ele, para que, por meio dele, pudéssemos aproximar-nos livremente dele (1Tm 2.5; 1Jo 2.1; Hb 8.6 e 9.15). Com isso nos certificamos de que, tendo tal Intercessor, o qual não po-de ser recusado pelo Pai, também nada nos será negado de tudo o que pedirmos em Seu nome (Hb 4.14-16). Seguros também de que o trono de Deus não é somente trono de majestade, mas também de Sua graça, po-

328

“Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acer-ca da graça a vós outros destinada” (1Pe 1.10). 329

“Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei” (Gl 4.4). 330

“Que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9). 331

“Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos” (2Co 8.9). 332

“Tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26). 333

“Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (1Co 1.30).

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dendo nós comparecer perante ele com toda a confiança e ousadia, em nome do Mediador e Intercessor, para rogar misericórdia e encontrar graça e ajuda, em toda necessidade que tivermos”.334 Conforme já observamos, a graça de Deus não é barata. Nós muitas vezes nos comportamos como filhos que, amados e agraciados com presentes de seus pais, se esquecem que se aquilo que ganhamos foi “fácil”, “generoso”, sem mérito algum de nossa parte, custou muitas vezes um alto preço para os pais: privação de adquirir um outro bem para si, filas, crediários, juros, economias, etc. A graça de Deus tem um outro lado, que com frequência nos esquecemos: a obra sacrificial de Cristo. É um erro lamentável julgar toda a verdade considerando apenas a parte que nos compete do todo. A graça de Deus se evidencia nas obras da Trindade. O Pacto da Graça, por meio do qual somos salvos, foi Pacto de Obras para Cristo. A nossa sal-vação é muito cara, custou o precioso sangue de Cristo (1Pe 1.18-20/At 20.28; 1Co 6.20). Isso longe de apontar para o suposto valor inerente de nossas almas, revela o amor gracioso de Deus que confere valor a nós. Deus não quebra a Sua justiça por amor; antes, cumpre a justiça em amor; a gra-ça reina pela justiça (Rm 5.21).335 "De fato a graça reina, mas uma graça rei-nante à parte da justiça não é apenas inverossímil, mas também inconcebí-vel".336 Abraham Booth (1734-1806) escrevendo sobre este assunto, assim se expressou: “A graça de Deus está fundamentada na obediência perfeita e meritória de Cristo”.337 “Ainda que este perdão seja gratuito para os pecadores, nunca devemos nos esquecer de que Cristo pagou um alto preço por ele. Perdão para a menor das nossas ofensas só se tornou possível porque Cristo cumpriu as mais aflitivas condições – Sua encarnação, Sua perfeita obediência à lei divina e Sua morte na cruz. O perdão que é absolutamente gratuito ao pecador teve um alto custo para o Salvador”.338 “A graça de Deus vem a nós não porque Deus revela o fato da Sua lei ser quebrada por nós, mas porque a Sua lei foi plenamente satisfeita pelos atos de justiça que Cristo fez a nosso favor. (...) Ele cumpriu perfeitamente a lei de Deus”.339

334

João Calvino, As Institutas, (1541), III.9. 335

“A fim de que, como o pecado reinou pela morte, assim também reinasse a graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 5.21). 336

John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 19. 337

A. Booth, Somente pela Graça, p. 15. 338

A. Booth, Somente pela Graça, p. 31. Vd. J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, p. 121. 339

A. Booth, Somente pela Graça, p. 56-57.

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B) A EXCLUSIVIDADE DA OBRA DE CRISTO:

Somente Jesus Cristo, por meio da Sua justiça, obtida na Sua encarna-ção, morte e ressurreição, poderia satisfazer as exigências de Deus para a nossa salvação. Portanto, “Quando Deus justifica pecadores à base da obediência e da morte de Cristo, está agindo com toda equidade. Dessa maneira, lon-ge de comprometer Sua retidão judicial, esse método de justificação em realidade a exibe”.340 A base de nosso perdão é a obra expiatória de Cristo, coroada com a Sua ressur-reição (Lc 24.45-47; Rm 4.25; 1Co 15.17; 2Co 5.15).341 O perdão de nossos peca-dos ampara-se no sacrifício remidor de Cristo. O perdão para a "menor" de nossas ofensas custou a Cristo a Sua oferta voluntária em nosso favor, envolvendo todos os Seus sofrimentos e morte na cruz. Sem a obra de Cristo não haveria perdão para nós. As Escrituras insistem neste ponto: “No qual (Jesus) temos a redenção pelo seu sangue, a remissão dos pecados segundo a riqueza da sua graça” (Ef 1.7). “Antes sede uns para com os outros benignos, compassivos, perdoando-vos uns aos ou-tros, como também Cristo vos perdoou” (Ef 4.32). “Sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3.24). O perdão concedido por Deus é em nome de Cristo (At 10.43/Cl 1.14/1 Jo 2.12). (Vd. também: Mt 26.28; Jo 1.29; At 5.31; 18.38). “Deus se paga a Si mesmo por Sua misericór-dia manifestada em Seu Filho, nosso Salvador Jesus Cristo, que uma vez por todas se ofereceu ao Pai para ser Ele próprio a satisfação que Lhe devería-mos prestar”.342 Mesmo no Antigo Testamento, os patriarcas, os profetas e o povo em geral foram perdoados, não porque ofereceram sacrifícios, mas sim, pela fé no Cristo que viria. A obra de Cristo envolve todos os crentes: todos os fiéis do passado, presente e futu-ro.343 "A única maneira de alguém ser perdoado, antes de Cristo, depois de Cristo e em qualquer ocasião, é através de Cristo, e este crucificado".344 A

340

J.I. Packer, Justificação: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, Vol. II, p. 899b. 341

“Então, lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras; e lhes disse: Assim está escrito que o Cristo havia de padecer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados a todas as nações, começando de Je-rusalém” (Lc 24.45-47). “O qual foi entregue por causa das nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação” (Rm 4.25). “E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda per-maneceis nos vossos pecados”(1Co 15.17). “E ele morreu por todos, para que os que vivem não vi-vam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou” (2Co 5.15). 342

João Calvino, As Institutas, (1541), III.9. 343

“Quando o Filho de Deus sofreu e morreu, Ele assim expiou os pecados de todos os que o aceitaram ou iriam aceitá-lo por meio de uma fé viva, ou seja, por todos os crentes de am-

bas as dispensações. Os méritos da cruz extendem-se tanto para trás como para adiante” (W. Hendriksen, Romanos, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, (Rm 3.25-26), p. 178). 344

D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: FIEL., 1984, p. 359. “Ninguém pode dizer, nem por um momento, que pessoas como Davi, Abraão, Isaque e Jacó não fo-ram perdoadas. Mas não o foram por causa daqueles sacrifícios que ofereceram. Eles foram perdoados porque olhavam para Cristo. Não percebiam isso claramente, mas criam no en-

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obra de Cristo envolve todo o Seu povo, ninguém ficará de fora nem jamais houve ou haverá redenção fora do sacrifício único e vicário de Cristo: a obra de Cristo é completa e suficiente “.... Em cada época, desde o princípio, houve pecados que necessitavam de expiação. Portanto, a menos que o sacrifício de Cristo fosse eficaz, nenhum dos [antigos] pais haveria obtido a salvação. Visto que se achavam sujeitos à ira divina, qualquer remédio para livrá-los teria resulta-do em nada, se Cristo, ao sofrer uma vez por todas, não sofresse o suficiente para reconciliar os homens com a graça de Deus, desde o princípio do mundo e até ao fim. A não ser que desejemos muitas mortes, contentemo-nos com um só sacrifício. (...) Não está no poder do homem inventar sacrifí-cios como lhe apraz. Eis aqui uma verdade expressa pelo Espírito Santo, a saber: que os pecados não são expiados por um sacrifício, a menos que haja derramamento de sangue. Por conseguinte, a ideia de que Cristo é sacrifi-cado muitas vezes não passa de uma invenção diabólica”.345 Paulo nos diz que o triunfo de Cristo em nos perdoar, concedendo-nos vida, foi manifesto na cruz do Calvário: "E a vós outros, que estáveis mortos pelas vossas transgressões, e pela incircuncisão da vossa carne, vos deu vida juntamente com ele, perdoando todos os nossos delitos; tendo cancelado o escrito de dívida, que era contra nós e que constava de ordenanças, o qual nos era prejudicial, removeu-o in-teiramente, encravando-o na cruz; e, despojando os principados e as potestades, publicamente os expôs ao desprezo, triunfando deles na cruz" (Cl 2.13-15). Nunca é demais insistir no ponto de que o perdão que nos vem pela graça, custou um alto preço para o nosso Salvador: o Seu precioso sangue. A graça é o benefício das obras de Cristo. “...Sem derramamento de sangue não há remissão” (Hb 9.22). “...O sangue de Jesus, seu Filho, nos purifica de todo pecado” (1Jo 1.7). Por isso, já não há condenação para todos aqueles que estão em Cristo (Rm 8.1). O perdão es-tá associado de forma dependente à auto-entrega graciosa de Deus em Cristo (Rm 8.32/2Co 5.21). O perdão não torna Deus indiferente ao pecado, nem revela uma frouxidão ou a-tenuação no padrão de Deus (Ex 34.6-7); mas, sim, o Seu amor ativo em Cristo que teve como trajetória eternamente definida a cruz, o sacrifício. Por isso, Paulo diz: “Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.8). “O perdão é obra exclusiva de Deus,

sinamento e faziam essas ofertas pela fé. Criam na Palavra de Deus, que Ele um dia no por-vir, proveria um sacrifício, e pela fé se mantiveram firmes nisso. Foi a fé em Cristo que os sal-vou, exatamente como é a fé em Cristo que salva agora” (D.M. Lloyd-Jones, A Cruz: A Justifi-cação de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 9-10). 345

João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 9.26), p. 245-246. “A ra-zão pela qual Deus ordenara que se oferecessem vítimas como expressão de ações de gra-ça foi, como é bem notório, para ensinar ao povo que seus louvores eram contaminados pelo pecado, e que necessitavam de ser santificados exteriormente. Por mais que propo-nhamos a nós mesmos louvar o nome de Deus, outra coisa não fazemos senão profaná-lo com nossos lábios impuros, não houvera Cristo se oferecido em sacrifício com o propósito de santificar a nós e às nossas atividades sagradas (Hb 10.7). É através dele, como aprendemos do apóstolo, que nossos louvores são aceitos” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: E-dições Parakletos, 1999, Vol. 2, (Sl 66.15), p. 631).

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é dom de Deus”.346 Jesus Cristo, nosso Mediador,347 cumpriu de forma cabal e vicária as demandas da Lei em favor do Seu povo.348 Se a Obra de Cristo não fosse plenamente satisfei-ta, não haveria “bênção” alguma a ser aplicada. (Jo 17.4; 19.30; Hb 9.23-28; 1Pe 3.18). Isto nos conduz à historicidade da Sua ressurreição. A ressurreição de Cristo dá sentido à genuína pregação da Igreja (1Co 15.14). A pregação não se baseia em fábulas e mitos por ela inventados (Vd. 2Tm 4.3,4), mas sim, naquilo que Deus disse e realizou, conforme registrado nas Escrituras. Por isso, a mensagem apostólica enfatizou − juntamente com a morte expiatória de Cristo −, a realidade histórica da Sua ressurreição (Vd. At 1.22; 2.24; 3.15; 4.10,33; 5.30; 10.39-41; 17.2,3,17,18; 26.23). Paulo nos diz que era corrente tal tes-temunho (1Co 15.12), sendo ele mesmo um dos pregadores desta verdade (1Co 15.14,15/At 17.18). Pois bem, se Cristo não ressuscitou toda esta pregação está fundamentada num erro, numa mentira... Entretanto, Cristo ressuscitou; portanto, to-da a proclamação tem sentido; sem a ressurreição, não haveria boa nova, não have-ria evangelho nem atos salvadores de Deus para serem anunciados. R.B. Kuiper (1886-1966), observa que a declaração do Cristo ressurreto: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (Mt 28.18), prefacia o mandamento evan-gelístico. “Isso torna a Grande Comissão uma afirmação da soberania media-tária de Cristo”.349 Aqui vemos estampada parte da esfera do domínio de Cristo. Ele manda a Igreja evangelizar todo o mundo, porque o mundo todo Lhe pertence.

6. O Propósito de Deus em Salvar o Seu Povo: O anúncio da salvação feito pela igreja só tem sentido se: 1) De fato houver pessoas necessitando serem salvas; 2) Houver de fato a possibilidade de salvá-las. Obviamente estas duas premissas não esgotam a questão; contudo, são essenciais. Como vimos, com o pecado de todo o ser humano, todos passaram a necessitar da salvação. Vimos também que a obra de Cristo foi completa; Ele satisfez plenamente as santas e justas exigências do Pai, pagando todas as nossas dívidas. Assim, de fato, há salvação para todos aqueles que crêem em Cristo. A igreja não pode salvar nem outorgar salvação a ninguém, sendo ela mesma a beneficiária desta graça. Todavia, cabe à igreja a gloriosa tarefa de proclamar esta mensagem da qual ela mesma é uma testemunha a partir de sua própria existência: 346

G. Aulén, A Fé Cristã, São Paulo: ASTE, 1965, p. 258. 347

“Falando de modo geral, Messias é o termo do Velho Testamento para o Redentor, e Mediador é o termo no Novo Testamento” (W.G.T. Shedd, Dogmatic Theology, 2ª ed. Nashville: Thomas Nelson Publishers, 1980, Vol. II, p. 353-354). 348

Vd. Confissão de Westminster, (1647), VIII.1,5,8; Catecismo Maior de Westminster, Questões: 36, 37 e 59; J. Calvino, As Institutas, II.17.1ss. 349

R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 46.

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a igreja é o que é pela graça salvadora de Deus. Portanto, Deus não tornou a salva-ção uma mera possibilidade − que poderia ser realizada ou não −. Ele a fez um fato real conforme o Seu Plano eterno, por intermédio dos atos salvadores da Trinda-de.350 John Owen (1616-1683), diz: “Se Cristo apenas tivesse obtido os benefícios e não pudesse dá-los, então Sua morte talvez não salvasse ninguém. (...) Se uma coisa é obtida para mim, certamente deve ser minha por direito, e tudo o que for meu por direito, há de ser meu de fato. Portanto, a salvação que Cristo obteve há de pertencer àqueles para os quais Ele a obteve. Se é dito: ‘sim, mas é deles sob condição de crerem’, eu repito novamente: ‘mas a fé também é dada por Deus’.”.351 Jesus Cristo veio para obter a salvação definitiva para o Seu povo (Mt 1.21; Jo 3.16; 2Co 5.21; Gl 1.4; 1Tm 1.15; Hb 2.14-15). Ele de fato cumpriu o Seu propósito (Jo 10.27-28; Cl 1.21-22; Hb 1.3; 9.12-14; 1Pe 2.24; Ap 5.9-10).352 A Igreja evangeli-za amparada nesta certeza: Deus salvará a todos aqueles que crerem em Jesus Cristo, recebendo-O como Seu Senhor e Salvador. Deus salvará todo o Seu povo. A salvação é uma prerrogativa exclusiva do Deus Trino.

7. O Ministério Eficaz do Espírito Santo: “É somente sob a direção do Espírito que tomamos posse de Cristo e de todos os seus benefícios”.353 O Espírito é chamado de “Espírito da Graça” (Hb 10.29/Zc 12.10),354 porque é Ele Quem aplica a graça de Deus aos pecadores elei-tos, conduzindo-os progressivamente à conformação da imagem de Cristo. O Espíri-to é “comunicador da graça”.355 Este ministério tem início, quando o Espírito nos leva a aceitar a mensagem de perdão dos nossos pecados. O Espírito anuncia que chegou o tempo da salvação, o qual é caracterizado pelo perdão para todos aqueles que se arrependem de seus pecados.

350

Vd. R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 7-14; Idem., El Cuerpo Glorioso de Cristo, Grand Rapids, Michigan, SLC., 1985, p. 169-175; A.W. Pink, Deus é Soberano, p. 49ss., especialmente, p. 75-76; J. Owen, Por Quem Cristo Morreu?, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1986, p. 19-22. 351

John Owen, Por Quem Cristo Morreu?, p. 33. J.I. Packer observa: “Cristo não obteve uma sal-vação hipotética para crentes hipotéticos, uma mera possibilidade de salvação para qual-quer indivíduo que quisesse crer. Antes proveu uma salvação real para todo o seu povo es-colhido” (O “Antigo” Evangelho, São Paulo: Fiel, 1986, p. 16). Vd. Confissão de Westminster, X.1e Catecismo Maior de Westminster, Questões: 67 e 68. 352

Vd. John Owen, Por Quem Cristo Morreu?, p. 29-32. 353

João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 13.13), p. 271. 354

Vd. Hermisten M.P. Costa, A Pessoa e Obra do Espírito Santo, São Paulo: 2006, p. 65ss.; A.W. Pink, Os Atributos de Deus, p. 74. 355

A.W. Pink, Os Atributos de Deus, p. 74.

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Sem as obras da Trindade, jamais seríamos salvos pela graça. A graça de Deus, que é personificada em Cristo, é apenas um lado das obras redentoras do Deus Tri-úno. Toda a Trindade está comprometida na salvação do Seu povo, tendo cada uma das Pessoas da Santíssima Trindade, conforme o Conselho trinitário, um papel fun-damental. A obra do Espírito é distinta da obra do Pai e do Filho porém, não é independente. A Trindade opera conjuntamente, tendo o mesmo propósito eterno: a glória do pró-prio Deus por meio da salvação do Seu povo (Is 43.7/Ef 1.6; 1Pe 2.9,10).356 A Teo-logia Reformada, fiel aos ensinamentos das Escrituras, ensina esta verdade. J. I. Packer, comentando este ponto, disse: “Deus – O Jeová Triúno, Pai, Filho e Espírito Santo; três pessoas trabalhando em conjunto, em sabedoria, poder e amor soberanos, a fim de realizar a sal-vação de um povo escolhido. O Pai escolhendo, o Filho cumprindo a von-tade do Pai de remir, o Espírito executando o propósito do Pai e do Filho me-diante a renovação do homem”.357 É precisamente isto que estamos dizendo, quando declaramos que a nossa sal-vação é por Deus: O Deus Triúno é o Autor e o executor da nossa salvação; do prin-cípio ao fim, a salvação é obra do Deus da graça. Paulo estimulando os filipenses, inspirado por Deus, fala de sua convicção inabalável: “Estou plenamente certo de que aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6).358 A Obra do Espírito torna efetivo em nós aquilo que Cristo realizou definitivamente por nós. Podemos afirmar, que sem as operações do Espírito, o Ministério Sacrificial de Cristo não teria valor objetivo para os homens, visto que os méritos redentores e salvadores de Cristo não seriam comunicados aos pecadores. Calvino (1509-1564) afirmou corretamente, que é necessário que Cristo habite em nós para que comparti- 356

Vd. Sinclair B. Ferguson, O Espírito Santo, p. 54. 357

J.I. Packer, O “Antigo” Evangelho, São Paulo: Fiel, 1986, p. 9. (Ver também: Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, p. 18-22; R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1976, p. 7-14; Idem., El Cuerpo Glorioso de Cristo, Grand Rapids, Michi-gan: SLC., 1985, p. 169-175; A.W. Pink, Deus é Soberano, São Paulo: Fiel, 1977, p. 49ss., especial-mente, p. 75-76; J. Owen, Por Quem Cristo Morreu?, São Paulo: Publicações Evangélicas Seleciona-das, 1986, p. 19-22; Loraine Boettner, Studies in Theology, p. 117-118). 358

"A graça começa, continua e termina a obra da salvação no coração de uma pessoa" (C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 45). ".... Em sua inteireza a nossa salvação procede do Senhor. É sua realização. Ele mesmo apresenta Sua noiva a Si mesmo por que ninguém mais pode fazê-lo, ninguém mais é competente para fazê-lo. Somente Ele pode fazê-lo. Ele fez tudo por nós, do princípio ao fim, e concluirá a obra apresentando-nos a Si mesmo com toda esta glória aqui descrita" (D.M. Lloyd-Jones, Vida No Espírito: No Casamento, no Lar e no Trabalho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, (Ef 5.27), p. 137). Do mesmo modo acentua Murray: “A salvação é do Senhor, tanto em sua aplicação como em sua concepção e realização” (John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 98). Vejam-se, R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, Michigan: Subcomision Literatura Cristiana de la Iglesia Cristia-na Reformada, 1985, p. 169ss; 177ss.; C.H. Spurgeon, Sermões Sobre a Salvação, p. 12ss

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lhe conosco o que recebeu do Pai. Ele conclui dizendo que: “O Espírito Santo é o elo pelo qual Cristo nos vincula efetivamente a Si”.359 Em outro lugar declara: “Sabemos que nosso bem, nossa alegria e repouso é estar unido ao Filho de Deus”.360 Cristo cumpriu perfeitamente as demandas da Lei e adquiriu todas as bênçãos que envolvem a salvação. A Obra do Espírito consiste em aplicar os merecimentos de Cristo aos pecadores, capacitando-os a receberem a Graça da salvação.361 So-mente por meio do Espírito “recebemos todos os bens e dons que nos são da-dos em Jesus Cristo”.362 É Ele quem derrama sobre nós, as bênçãos da graça, ob-tidas pela obra eficaz de Cristo. Desta forma, podemos dizer que o Ministério soterio-lógico do Espírito se baseia nos feitos de Cristo e, que o Ministério Sacrificial de Cristo reclama a ação do Espírito (Jo 7.39/Jo 14.26; 16.13-14).363 “A obra do Espí-rito na aplicação da redenção de Cristo é descrita como tão essencial quanto a própria redenção”.364 “A condição prévia indispensável para a ou-torga do Espírito é a obra de Cristo”.365 A Palavra nos ensina que o Espírito Santo é o Espírito de Cristo (Gl 4.6; Fp 1.19);366 por isso, a presença do Espírito em nós, é a presença do Filho (Rm 8.9).367 Quando evangelizamos, o fazemos, confiantes de que Deus, pelo Espírito, aplicará os méritos de Cristo no coração do Seu povo. Portanto, aí está a nossa responsabi-lidade e o nosso conforto, conforme bem observou Billy Graham:

“O Espírito Santo é o grande comunicador do Evangelho, usando como instrumento pessoas comuns como nós. Mas é dele a obra. Assim, quando o Evangelho é fielmente proclamado, o Espírito Santo é quem o envia co-

359

João Calvino, As Institutas, III.1.1. 360

Juan Calvino, Sermones Sobre La Obra Salvadora De Cristo, Jenison, Michigan: T.E.L.L. 1988, Sermon nº 2, p. 23. 361

“De fato a graça reina, mas uma graça reinante à parte da justiça não é apenas inve-rossímil, mas também inconcebível" (John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, p. 19). 362

Catecismo de Genebra, (1541/2), Perg. 91. (Vd. Hermisten M.P. Costa, A Graça de Deus: Co-mum ou Exclusiva?, São Paulo: 2000). 363

“Isto ele disse com respeito ao Espírito que haviam de receber os que nele cressem; pois o Espíri-to até aquele momento não fora dado, porque Jesus não havia sido ainda glorificado” (Jo 7.39). “Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coi-sas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito” (Jo 14.26). “Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.13-14). 364

Charles Hodge, Teologia Sistemática, p. 390. 365

Frederick D. Bruner, Teologia do Espírito Santo, São Paulo: Vida Nova, 1983, p. 179. 366

“E, porque vós sois filhos, enviou Deus ao nosso coração o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!” (Gl 4.6). “Porque estou certo de que isto mesmo, pela vossa súplica e pela provisão do Espírito de Jesus Cristo, me redundará em libertação” (Fp 1.19). 367

“Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se, de fato, o Espírito de Deus habita em vós. E, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele” (Rm 8.9)

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mo dardo flamejante aos corações dos que foram preparados”.368 Portanto, desprezar esta doutrina bíblica equivaleria a perder o significado do E-vangelho,369 sustentando uma fé indefinida e por isso mesmo superficial, não condi-zente com a plenitude da revelação bíblica.

Lembremo-nos: “Todo aquele que ultrapassa a doutrina de Cristo e nela não per-manece, não tem Deus; o que permanece na doutrina, esse tem assim o Pai, como o Filho” (2Jo 9).

8. O Anseio pelo regresso de Cristo: A Igreja evangeliza porque ela anseia pelo regresso triunfante de Cristo. Desta forma, a evangelização tem em seu conteúdo uma conotação escatológica. Pedro nos diz: “Esperando e apressando a vinda do dia de Deus, por causa do qual os céus incendiados serão desfeitos e os elementos abrasados se derreterão” (2Pe 3.12). A ideia aqui expressa, não é a de que possamos modificar o dia do re-gresso de Cristo. A palavra traduzida por “apressar” (speu/dw),370 indica um desejo intenso pelo que virá, envolvendo a ideia de diligenciar com zelo, solicitude, urgenci-ar, etc. Ela revela uma pressa prazerosa daquilo que terá de ocorrer.371 Não signifi-ca também, uma simples pressa para que aconteça de uma vez aquilo que terá de acontecer, como por exemplo, no caso de alguém que diz: “Já que tenho de ser ope-rado mesmo, vou logo”; ou, “se tenho que ir mesmo, vou de uma vez...”. A ideia aqui é totalmente diferente; denota uma urgência prazerosa de que Cristo venha. A Igreja mesmo sem poder alterar o dia da Vinda de Jesus – e devemos dar gra-ças a Deus por isso –, faz parte do cronograma relativo ao regresso glorioso e triun-fante de Cristo. Somos intimados a levar adiante os eventos que devem ocorrer an-tes do dia de Deus. Neste sentido, a evangelização faz parte desse cronograma. A expansão missionária, além da obediência à ordem de Cristo, deve refletir em cada

368

Billy Graham, Por que Lausanne?: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Paulo/Belo Ho-rizonte, MG.: ABU/Visão Mundial, 1982, p. 30. A consciência de que os “resultados” da Evangelização dependem do Deus soberano, traz como implicação a nossa ousada confiança em Deus, não em nosso métodos. Packer analisou bem este ponto, fazendo aplicações complementares: "Se esque-cermos que a prerrogativa de Deus é produzir resultados quando o evangelho é pregado, acabaremos pensando que é nossa responsabilidade assegurá-los. E, se nos esquecermos de que somente Deus pode infundir fé, acabaremos pensando que a conversão, em última análise, depende não de Deus, mas de nós, e que o fator decisivo é a maneira como evan-gelizamos. E essa linha de pensamento, coerentemente seguida, nos fará desviar em muito" (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 22). 369

Ver: Albertus Pieters, Fundamentos da Doutrina Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1979, p. 179-180. 370

O verbo “speu/dw” ocorre 6 vezes no Novo Testamento, a saber: Lc 2.16; 19.5,6; At 20.16; 22.18; 2Pe 3.12. 371

A única possível exceção está em At 22.18; todavia, talvez possamos interpretar o texto, enten-dendo o prazer de Deus em preservar a vida de Saulo, que seria o Seu instrumento especial na pro-clamação do Evangelho (Cf. At 9.15).

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coração, o desejo de que Cristo venha. Evangelizar é uma das formas práticas de dizer: “Venha o Teu Reino”. (Vd. Mt 28.19/Mt 24.14).372 Anthony A. Hoekema (1913-1988) observou que: “O período entre a primeira e a segunda vinda de Cristo é a era missionária por excelência. Este é o tempo da graça, um tempo em que Deus convida e insta com todos os ho-mens para serem salvos”.373

9. A Doutrina da Eleição:374

A) UMA INDAGAÇÃO SINCERA:

“.... alguns dizem: ‘A doutrina da predestinação é prejudicial à uti-lidade da pregação’. Como se fosse contrária à pregação do apóstolo: O Doutor dos Gentios não proclamou tantas vezes a predestinação na fé e na verdade e por acaso desistiu de pregar a Palavra de Deus? (...) Por que jul-gamos a doutrina da predestinação, que a Escritura divina proclama, como prejudicial à pregação, aos mandamentos, à exortação e à correção, que aparecem tantas vezes na mesma Escritura?”, indaga Agostinho (354-430).375 De fato, há sempre o perigo de nossa teologia se transformar em um cerceamen-to das Escrituras, como se pretendêssemos delimitar de forma policiada a Deus, um velhinho caduco que já não diz coisa-com-coisa e, por isso, precisa ser atenuado em sua Revelação. Calvino, biblicamente, tinha uma compreensão bem diferente. Pode-ríamos citar vários de seus textos que comprovam a nossa afirmação; no entanto, basta-nos o que destacamos a seguir. Diz ele:

“A Escritura é a escola do Espírito Santo, na qual, como nada é omitido não só necessário, mas também proveitoso de conhecer-se, assim tam-bém nada é ensinado senão o que convenha saber. ”Portanto, tudo quanto acerca da predestinação na Escritura se dá a conhecer, impõe-se cuidar que disso não alijemos os fiéis, para que não pareçamos ou maldosamente defraudá-los de benevolência de seu Deus, ou acusar e escarnecer o Espírito Que haja divulgado essas cousas que se-ja proveitoso supressas sejam de quaisquer modo. Permitamos, insisto eu, ao homem cristão abrir a mente e os ouvidos a todas as palavras de Deus que lhe são dirigidas, desde que com esta moderação: que nem bem ha-ja o Senhor fechado Sua sagrada boca, também ele a si feche o caminho ao perquirir. Aqui estará o melhor limite da sobriedade: se não só, indo-nos

372

“Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (Mt 28.19). “E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemu-nho a todas as nações. Então, virá o fim” (Mt 24.14). 373

A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 187. 374

Vd. Hermisten M.P. Costa, A Eleição de Deus, São Paulo, 2006, passim. 375

Agostinho, A Graça (II), 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2002, p. 247,248.

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a Ele à frente, sempre sigamos a Deus no aprender, mas também, Ele Pró-prio pondo fim ao ensinar, desistamos de querer saber”.376

O apóstolo Paulo diz: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, (didaskali/a = “instrução”) para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça" (2Tm 3.16). Entre outras coisas, isto significa que o nosso pensar teológi-co deverá estar sempre conectado com a fidelidade à Escritura e com o ensino da Palavra; este aspecto realça a nossa responsabilidade como intérpretes e pregado-res da Palavra. Por outro lado, há aqui um grande conforto, que nem sempre temos nos dado conta: não precisamos – nem nos foi requerido –, "desculpar" ou "justifi-car" Deus e a Sua Palavra.377 Não há o que selecionar ou cortar: "Toda Escritura é (...) útil o para ensino". Algumas vezes, tenho a impressão de que diante de "ques-tões embaraçosas" tais como: a "condenação de todos os homens inocentes que morrerem sem conhecer a Cristo", a "eleição de uns para a salvação em detrimento de outros", "o quase silêncio dos evangelhos sobre os trinta primeiros anos de Cris-to", e semelhantes, ficamos como que procurando uma justificativa para O Soberano agir desta ou daquela forma, buscamos uma maneira de tornar Deus apetecível à mente e aos valores modernos e “pós-modernos”. Como cristãos, devemos apren-der, se ainda não o fizemos, a nos calar diante do silêncio de Deus, sabendo que o som da nossa voz petulante e "lógica"378 – em tais circunstâncias –, por si só seria uma "heresia".379 Diante da vontade de Deus – que é a causa final de todos os Seus atos –, temos que manter um reverente silêncio, reconhecendo que Ele assim age, porque foi do Seu agrado; conforme o Seu santo, sábio e bondoso querer: Isto nos basta! (Sl 115.3;135.6; Dn 4.35; Ef 1.11).380 O que nos compete é procurar entender, por meio do estudo e da oração, o que Deus quer nos ensinar em "toda a Escritura" e em cada parte da Escritura.381

376

João Calvino, As Institutas, III.21.3 377

Calvino afirma que: “Contra os ímpios, que com destemor falam mal de Deus abertamen-te, o Senhor se defende suficientemente com a Sua justiça, sem que Lhe sirvamos de advo-gados” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pes-quisa, Vol. III, (III.8), p. 49). Na sequência, entretanto, ele nos mostra como Deus nos fornece argu-mentos racionais para fazer calar as suas maldades e injustiças. 378

A lógica dirigida pelo espírito de submissão a Deus, sempre será útil; caso contrário, esqueçamo-la. No entanto, devemos ter em que mente que “não podemos prender Deus na prisão da lógica humana”. (Anthony Hoekema. Salvos pela Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 86). 379

Vd. João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 9.14), p. 330; J. Cal-vino, As Institutas, III.21.4 e III.23.8. 380

Vd. Hermisten M.P. Costa, O Soberano Poder de Deus, São Paulo: 1998, passim. 381

Spurgeon (1834-1892) salientou: “Não se deve reter nenhuma doutrina. A doutrina retida, tão detestável na boca dos jesuítas, não é nem um pouco menos abjeta quando adotada por protestantes” (C.H. Spurgeon, Lições aos Meus Alunos, São Paulo: PES., 1982, Vol. II, p. 94). “O ensino saudável é a melhor proteção contra as heresias que assolam à direita e à es-querda entre nós” (C.H. Spurgeon, Lições aos Meus Alunos, Vol. II, p. 89).

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B) UMA QUESTÃO PASTORAL:

Esta doutrina que é alvo de tantas especulações, tem o seu lugar aqui de forma bastante evidente e prática. Aliás, quando Calvino tratou deste tema partiu de uma questão concreta – comum a todos nós ainda hoje –: por que nem todos crêem no Evangelho?.382 Nas Institutas (1541), quando Calvino vai tratar da Predestinação e da Providên-cia de Deus, inicia o capítulo com palavras sóbrias oriundas de uma constatação comum aos crentes. Ao mesmo tempo revela a orientação pastoral de sua teologia, preocupada com a compreensão da Palavra de Deus por parte do Seu povo:

“.... Tendo-se em vista o fato de que a Aliança da Vida não é pregada igualmente a todos, e também que onde é pregada não é recebida i-gualmente por todos, vê-se nessa diversidade um admirável mistério do ju-ízo de Deus. Não há dúvida nenhuma de que essa variedade atende ao Seu beneplácito, agrada ao Seu querer. Pois bem, como é evidente que isto é feito pela vontade de Deus – que a salvação é oferecida a uns e os outros são deixados de lado – daí decorrem grandes e altas questões, as quais só se resolvem ensinando aos crentes o que eles podem compreen-der da eleição e da predestinação de Deus”.383

Na sequência, acrescenta:

“.... quando os homens quiserem fazer pesquisa sobre a predestinação, é preciso que se lembrem de entrar no santuário da sabedoria divina. Nes-ta questão, se a pessoa estiver cheia de si e se intrometer com excessiva autoconfiança e ousadia, jamais irá satisfazer a sua curiosidade. Entrará num labirinto do qual nunca achará saída. Porque não é certo que as coi-sas que Deus quis manter ocultas e das quais Ele não concede pleno co-nhecimento sejam esquadrinhadas dessa forma pelos homens. Também não é certo sujeitar a sabedoria de Deus ao critério humano e pretender que este penetre a Sua infinidade eterna. Pois Ele quer que a Sua altíssima sabedoria seja mais adorada que compreendida (a fim de que seja ad-mirada pelo que é). Os mistérios da vontade de Deus que Ele achou bom comunicar-nos, Ele nos testificou em Sua Palavra. Ora, Ele achou bom co-

382

“O ponto de partida de sua doutrina (predestinação) foi sempre a experiência cristã e o reconhecimento de que a graça não é oferecida a todos igualmente, e nem por todos i-gualmente recebida – fatos que via confirmados na Escritura e pela observação diária” (Henry Strohl, O Pensamento da Reforma, São Paulo: ASTE, 1963, p. 151). 383

João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 3, (III.8), p. 37. Este mesmo princípio orientador foi mantido na edição final (1559): “Já, porém, que o pacto de vida não é pregado entre todos os homens igualmente e, entre aqueles a quem é pregado, não acha a mesma receptividade, ou qua-litativa, ou continuativamente, nessa diversidade se manifesta a admirável profundeza do ju-ízo divino. Pois, nem padece dúvida de que esta variedade sirva também ao arbítrio da e-terna eleição de Deus”. (J. Calvino, As Institutas, III.21.1).

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municar-nos tudo o que viu que era do nosso interesse e que nos seria pro-veitoso”.384

Comentando o texto de 2Pe 3.9, – “Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não que-rendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3.9)

–, revela a sua preocupação pastoral e, ao mesmo tempo, a sua honestidade diante da aparente antinomia: “Tão maravilhoso é seu amor pela humanidade, que ele poderia salvar a todos, e que ele mesmo está preparado para dar salva-ção ao perdido. A ordem é para ser noticiada, que Deus está pronto para receber todos ao arrependimento, de modo que nenhum se perca. (...) Po-de ser perguntado aqui: se Deus não quer que ninguém pereça, por que en-tão muitos perecem? Para isso, minha resposta é que não há menção, aqui, sobre o decreto secreto de Deus pelo qual os ímpios são condenados à sua própria ruína, mas somente de sua própria vontade como feita conhecida para nós no Evangelho. Pois, ali, Deus estende a mão sem distinção a todos, mas só segura, de forma a conduzi-los a si, aqueles que Ele escolheu antes da fundação do mundo”.385 Mcgrath enfatiza: “Longe de ser uma especulação teológica árida e abstra-ta, a análise de Calvino sobre a predestinação se inicia a partir de fatos em-píricos”.386 Portanto, continua: “A crença na predestinação não é uma ques-tão de fé em si mesma, mas representa o resultado final de uma reflexão, in-formada pelas Escrituras, a respeito dos efeitos da graça sobre os indivíduos, à luz dos enigmas da experiência. A experiência ensina que Deus não toca todo coração humano (As Institutas, III.24.15)”.387 Prossegue: “Para Calvino, a predestinação é apenas um exemplo adicional do mistério da existência humana, por meio do qual alguns são inexplicavelmente favorecidos por dons materiais e intelectuais, os quais são negados a outros. A predestinação não levanta qualquer dificuldade que já não esteja presente em outras á-reas da existência humana”.388

384

João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 3, (III.8.1), p. 38. 385

John Calvin, Calvin's Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, Vol. XXII, (2Pe 3.9), p. 419-420. Por outro lado, orienta: “Deus não é destituído de sua misericór-dia em manifestar, em ocasiões próprias, a severidade do Juiz, ao tentar de todas as formas, porém em vão, em trazer o pecador ao arrependimento, tampouco pode o exercício de tal severidade ser considerado uma impugnação de sua clemência” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Paracletos, 1999, Vol. 2, (Sl 58.10), p. 526). 386

Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 195. 387

Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, p. 195. 388

Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, p. 196. Ver também: I. John Hesselink, Calvin’s First Catechism: A Commentary. Louisville, Kentucky: Westminster/John Knox Press, Louisville, 1997, p. 94.

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C) DEFININDO A DOUTRINA:

Podemos dizer que a Eleição é o ato eterno de Deus, por meio do qual, Ele decretou – livre, soberana e misericordiosamente – salvar em Cristo Jesus um determinado número de homens – dentre toda a raça humana voluntariamente caí-da –, aplicando, no decorrer da História a Sua Graça Redentora, capacitando-os, pelo Espírito Santo, a responderem com fé, à mensagem redentiva de Cristo, sendo preservados assim, até o fim.

D) DEUS CHAMA OS SEUS:

Deus chama os seus eleitos por intermédio da pregação da Palavra. “Deus quer que o Evangelho seja proclamado ao mundo todo e em todo o tempo para que seja congregada a soma total dos eleitos”.389 A Palavra de Deus é sempre um ato criador, por meio da qual Deus chama, convence, transforma e edifica os Seus. Cada um de nós que foi alcançado pela Graça de Deus, tornou-se um instru-mento de testemunho da bendita salvação, a fim de que o povo de Deus seja salvo (Rm 10.14-17/At 18.9-11).390 A Igreja é chamada para fora do mundo a fim de inva-dir o mundo com a pregação do Evangelho (Mt 5.14-16; Mc 16.15-16; At 1.8; 1Co 9.16).391 A eleição eterna de Deus, inclui os fins e os meios.392 Os meios de Deus são infalíveis porque Deus também o é.393 Nós somos o meio ordinário estabelecido por Deus para que o mundo ouça a mensagem do Evangelho. Jesus Cristo confiou à Igreja a tarefa evangelística. A Igreja é “o agente por excelência para a e-vangelização”.394 Nenhum homem será salvo fora de Cristo, mas para que isto aconteça ele tem que conhecer o Evangelho da Graça. Como crerão se não houver

389

R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 21. (Veja-se, também, p. 39). 390

“Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas! Mas nem todos obedeceram ao evangelho; pois Isaías diz: Senhor, quem acreditou na nossa pregação? E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (Rm 10.14-17). “Teve Paulo durante a noite uma vi-são em que o Senhor lhe disse: Não temas; pelo contrário, fala e não te cales; porquanto eu estou contigo, e ninguém ousará fazer-te mal, pois tenho muito povo nesta cidade. E ali permaneceu um ano e seis meses, ensinando entre eles a palavra de Deus” (At 18.9-11). 391

Vd. Michael Green, Estratégia e Métodos Evangelísticos na Igreja Primitiva: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Paulo/Belo Horizonte, MG.: ABU/Visão Mundial, 1982, p. 67-68 e Bruce L. Shelley, A Igreja: O Povo de Deus, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 127. 392

Confissão de Westminster, (1647), III.6. Ver também: R.C. Sproul, Eleitos de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1998, p. 190. 393

“Os muitos meios para o fim de salvar cada um dos eleitos são tão eficazes que terminam sempre em resultados bem-sucedidos. Os meios são infalíveis porque Deus é infalível” (R.K. McGregor Wright, A Soberania Banida: Redenção para a cultura pós-moderna, São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p. 143). 394

R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 220. (Veja-se, todo o capítulo, p. 220-226).

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quem pregue? (Rm 10.13-15). “O evangelismo pelo qual Deus leva os seus elei-tos à fé é um elo essencial na corrente dos propósitos divinos”.395 Herman Ridderbos (1909-2007), diz acertadamente que “A igreja é o povo que Deus separou para Si em sua atividade salvífica, para que mostrasse a ima-gem de Sua graça e Sua salvação”.396

Portanto, quando estamos levando o Evangelho a todos os homens, cumprindo prazerosamente parte de nossa missão, estamos de fato demonstrando o nosso amor pelo nosso próximo, desejando que ele conheça a Cristo e, segundo a miseri-córdia de Deus, se arrependa e creia.397 Como bem observou R.B. Kuiper (1886-1966): “A eleição requer a evangelização. Todos os eleitos de Deus têm que ser salvos. Nenhum deles pode perecer. E o evangelho é o meio pelo qual Deus lhes comunica a fé salvadora. De fato, é o único meio que Deus emprega para esse fim”.398(Ef 1.13).399 O meio ordinário de Deus agir é chamando, persuadindo e congregando o Seu povo por intermédio do Seu povo. Em outras palavras, nós somos instrumentos, “e-los vitais” no desenvolvimento do propósito salvífico de Deus, proclamando a Sua Palavra de salvação.400 Deus opera por meio da Sua Palavra, contudo, “só quando Deus irradia em nós a luz de seu Espírito é que a Palavra logra produzir algum efeito. Daí a vocação interna, que só é eficaz no eleito e apropriada para ele, distingue-se da voz externa dos homens”.401 Cabe aqui uma palavra de advertência e consolo quanto à nossa responsabili-dade e limite: Quem será salvo? Quantos serão salvos? São perguntas que não nos

395

J.I. Packer, Vocábulos de Deus, p.146. 396

Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo, Buenos Aires: La Aurora, 1987, Vol. 2, § 53, p. 9. 397

John Stott observou bem este ponto, ao declarar em 1974: “A Grande Comissão não explica ou esgota, nem supera o Grande Mandamento. O que ela faz, na verdade, é acrescentar ao mandamento do amor e serviço ao próximo uma nova e urgente dimensão cristã. Se de fato amamos o nosso próximo, não há dúvida de que lhe diremos as boas novas de Jesus” (John R.W. Stott, A Base Bíblica da Evangelização: In: A Missão da Igreja no Mundo de Hoje, São Paulo/Belo Horizonte, MG. ABU/ Visão Mundial, 1982, p. 37). 398

R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 28. 399

“Em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salva-ção, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa” (Ef 1.13). 400

Vd. J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 66-67. 401

João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 10.16), p. 374 A vocação eficaz do eleito, “não con-siste somente na pregação da Palavra, senão também na iluminação do Espírito Santo” (J. Calvino, As Institutas, III.24.2). Do mesmo modo, Spurgeon escreveu: “Nós nunca conheceremos nada enquanto não formos ensinados pelo Espírito Santo, que fala mais ao coração do que ao ouvido” (C.H. Spurgeon, Firmes na Verdade, Lisboa: Peregrino, 1987, p. 72).

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compete fazer. Contudo, a nossa responsabilidade é de cumprirmos a ordem ex-pressa de Cristo, de anunciar o Evangelho a todas as pessoas, sabendo que a con-versão é uma operação do Espírito, que ultrapassa à nossa capacidade.402 Compe-te-nos apenas pregar, não especular.403 “Ademais, diz Calvino, devemos depre-ender dessa passagem que a doutrina da predestinação não serve para nos arrebatar para as especulações extravagantes, mas para abater todo orgu-lho em nós, bem como a tola opinião que sempre concebemos do nosso va-lor e mérito próprios, e para mostrar que Deus tem livre poder sobre nós, bem como privilégio e domínio soberano, de tal modo que pode reprovar a quem quiser e eleger a quem lhe apetecer”.404 Recorro mais uma vez à pru-dência recomendada por Calvino, inspirado em Agostinho (354-430): “Se alguém assim se dirige ao povo: ‘Se não credes é porque Deus já os há predestinado à condenação’, esse não somente alimentaria a negligên-cia como também a malícia. Se alguém também para com o tempo futuro estenda a asserção de que não hajam de crer os que ouvem, porquanto hão sido condenados, isto seria mais maldizer do que ensinar. (...) Como nós não sabemos quem são os que pertencem ou deixam de pertencer ao nú-mero e companhia dos predestinados, devemos ter tal afeto, que desejemos que todos se salvem; e assim, procuraremos fazer a todos aqueles que en-contrarmos, sejam participantes de nossa paz (...). Quanto a nós concerne, deverá ser a todos aplicada, à semelhança de um remédio, salutar e severa correção, para que não pereçam eles próprios, ou a outros não percam. A Deus, porém, pertencerá fazê-la eficaz àqueles a Quem preconheceu e predestinou”.405

402

Na manhã do domingo de 2 de outubro de 1859, o então jovem ministro Charles Spurgeon (1834-1892), pregava em Londres sobre “O Sangue do Concerto Eterno” (Hb 13.20). Ao aproximar-se do fi-nal de sua exposição, diz: “O decreto da eleição é limitado, porém as boas novas abrangem o mundo todo. A ordem que recebi de Deus é a de proclamar as boas novas a toda criatu-ra debaixo do céu. A aplicação eficaz do evangelho está restringida aos eleitos de Deus, e consequentemente pertence à vontade secreta de Deus, porém não é assim com a men-sagem; esta deve ser anunciada a todas as nações” (C.H. Spurgeon, Sermões no Ano do Avi-vamento, p. 60). 403

“A predestinação divina se constitui realmente num labirinto do qual a mente humana é completamente incapaz de desembaraçar-se. Mas a curiosidade humana é tão insistente que, quanto mais perigoso é um assunto, tanto mais ousadamente ela se precipita para ele. Daí, quando a predestinação se acha em discussão, visto que o indivíduo não pode conter-se dentro de determinados limites, imediatamente, pois, mergulha nas profundezas do oce-ano de sua impetuosidade” (João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 9.14), p. 329-330). Ver: João Calvino, Efésios, (Ef 1.4), p. 26. João Calvino, Sermões em Efésios, Brasília, DF.: Monergismo, 2009, p. 82. 404

JOÃO CALVINO, SERMÕES EM EFÉSIOS, BRASÍLIA, DF.: MONERGISMO, 2009, P. 82. 405

João Calvino, As Institutas, III.23.14. Comentando 2Tm 2.25, diz: “Visto que a conversão de uma pessoa está nas mãos de Deus, quem sabe se aqueles que hoje parecem empederni-dos subitamente não sejam transformados pelo poder de Deus em pessoas diferentes? E as-sim, ao recordarmos que o arrependimento é dom e obra de Deus, acalentaremos espe-rança mais viva e, encorajados por essa certeza, aceleraremos nosso labor e cuidaremos da instrução dos rebeldes. Devemos encará-lo da seguinte forma: é nosso dever semear e regar

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Calvino entendia que “a pregação é um instrumento para a consecução da salvação dos crentes” e, que “embora não possa realizar nada sem o Espí-rito de Deus, todavia, através da operação interior do mesmo Espírito, ela re-vela a ação divina muito mais poderosamente”.406 “Deus, a Si prescrevendo a iluminação da mente e a renovação da mente e a renovação do cora-ção, adverte ser sacrilégio, se o homem a si arroga alguma parte de uma e outra dessas duas operações”.407 Deste modo, a doutrina da eleição longe de ser um obstáculo à evangelização, é na realidade um estímulo vital e consolador.408 Esta doutrina ainda que nem sempre tenha sido vista por este ângulo; tendo inclusive alguns tentado justificar a sua inér-cia partindo de uma interpretação racionalizada, a verdade é que o zelo missionário de Calvino tem muito a ver com este ensinamento da Escritura. A doutrina da pre-destinação não tornou a evangelização desnecessária; antes, a torna fundamental, já que é por meio do Evangelho que Deus chama o seu povo. Calvino, em diversas partes de seus escritos demonstrou a compreensão de que o Evangelho deveria ser pregado a todos e, como esta missão ainda não foi completada, obviamente compe-te a nós realizá-la.409 Bavinck comenta: “O propósito da eleição é a criação de um organismo, isto é, a renovação, redenção, renovação e glorificação de uma humanidade regenerada que proclame as excelências de Deus e leve Seu nome sobre sua testa”.410 Fiel ao seu princípio de que “....as escolas teológicas [são] berçários de pas-

e, enquanto o fazemos, devemos esperar que Deus dê o crescimento (1Co 3.6). Portanto, nossos esforços e labores são por si sós infrutíferos; e no entanto, pela graça de Deus, não são infrutíferos” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (2Tm 2.25), p. 246-247). Do mesmo modo assevera Packer: “Até onde os cristãos saibam, os reprovados não têm fa-ce, não nos cabendo tentar identificá-los. Devemos, antes, viver à luz da certeza de que qualquer um pode ser salvo, se ele ou ela arrepender-se e colocar sua fé em Cristo. “Devemos ver todas as pessoas que encontramos como possivelmente incluídas entre os eleitos” (Eleição: In: J.I. Packer, Teologia Concisa: Síntese dos Fundamentos Históricos da Fé Cristã, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 143). 406

João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.14), p. 407. 407

João Calvino, As Institutas, IV.1.6. 408

O conceituado teólogo batista Millard Erickson, conclui: “A predestinação não anula o incenti-vo para a evangelização e as missões. Não sabemos quem são os eleitos e os não eleitos, portanto, precisamos continuar a divulgar a Palavra. Nossos esforços evangelísticos são os meios que Deus usa para levar a salvação aos eleitos. A ordenação de Deus para o fim também inclui a ordenação dos meios para atingir tal fim. O conhecimento de que as mis-sões são o meio de Deus é uma forte motivação para o empenho e nos dá confiança de que será bem-sucedido” (Millard J. Erickson, Introdução à Teologia Sistemática, p. 390). 409

Ver: John Calvin, Commentary on the Prophet Micah. In: John Calvin Collection, (CD-ROM), (Al-bany, OR: Ages Software, 1998), (Mq 4.3), p. 101. 410

Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 564.

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tores”,411 Calvino criou uma Academia em Genebra (5/6/1559) – contando com 600 alunos, aumentando já no primeiro ano para 900 alunos –, a quem coube a educa-ção dos protestantes da língua francesa, atingindo em sua maioria, alunos estran-geiros vindos da França, Holanda, Inglaterra, da Alemanha, da Itália e de outras ci-dades da Suíça. Além disso, Genebra se tornou um grande centro missionário, uma verdadeira “escola de missões”, porque os foragidos que lá se instalaram, pu-deram, posteriormente, levar para os seus países e cidades o Evangelho ali apren-dido.412 “O estabelecimento da Academia foi em parte realizado por causa do desejo de suprir e treinar missionários evangélicos”, informa-nos Mackin-non.413 Destacamos que, com exceção de Isaías, todos os comentários de Calvino sobre os profetas “consistem em sermões direcionados a alunos em treina-mento para o trabalho missionário, principalmente na França”.414 Acontece que o envio de missionários para outras cidades e países era uma questão delicada para a qual a Companhia de Pastores manteve, enquanto pôde, sigilo absoluto até mesmo do Conselho Municipal.415 Os nomes dos missionários e-ram em geral mantidos em sigilo. A primeira vez416 que tais nomes são menciona-dos na Companhia de Pastores de Genebra foi em 22 de abril de 1555, Jehan Ver-noul e Jehan Lauvergeat, enviados para as igrejas dos vales de Piemonte e Jacques Langlois Tours, Lausanne e Lyon, onde seria martirizado em 1572.417 Outro exemplo: o envio de dois ministros para a missão no Brasil, em resposta ao apelo de Villegagnon,418 é descrita de forma sumaríssima: O registro simplesmente menciona (25/08/1556) que Pierre Richier († 1580)419 e M. Guillaume Charretier (Chartier)420 foram enviados.421 A própria correspondência que vinha dos franceses

411

J. Calvino, As Pastorais, (1Tm 3.1), p. 82. Schaff usa essa expressão referindo-se à Academia de Genebra, um “berçário de pregadores evangélicos” (Philip Schaff, History of the Christian Chur-ch, Peabody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1996, Vol. VIII, p. 820). 412Para maiores detalhes, ver: Hermisten M.P. Costa, A Academia de Genebra e a Evangelização. In: Brasil Presbiteriano, São Paulo: Cultura Cristã, janeiro de 2009, p. 4-5. 413James MacKinnon, Calvin and the Reformation, Londres: Penguin Books, 1936, p. 195. 414 T.H.L. Parker em Prefácio à Versão Inglesa do Comentário de Daniel (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, Vol. 1, p. 13). 415

Vejam-se detalhes em Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 211-213. 416

Cf. Alister E. McGrath, A Vida de João Calvino, p. 211. 417

Robert-M. Kingdon, Registres de La Compagnie dês Pasteurs de Genève au Tempos de Calvin, Genève: Librairie E. Droz, 1962, p. 62-63. 418

Cf. Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, (1960), p. 51-52. Léry narra que “Ao receber as suas cartas e ouvir as notícias trazidas, a igreja de Genebra rendeu an-tes de mais nada graças ao Eterno pela dilatação do reino de Jesus Cristo em país tão longínquo, em terra estranha e entre um povo que ignorava inteiramente o verdadeiro Deus” (p. 51). 419

Antes de aderir ao protestantismo era monge carmelita e doutor em teologia. Calvino o achava que ele tinha algum problema no cérebro (Carta a Farel de 14/02/1558). Carta 2814. In: Herman J. Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0, Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, Vol. 17). 420

Posteriormente Calvino demonstrou ter dúvida quanto à integridade de Chartier. (Carta a Macari-us de 15/03/1558). Carta 2833. In: Herman J. Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0, Nether-

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no Brasil para Calvino, recorria a algum de seus pseudônimos.422

A proclamação do Evangelho objetiva glorificar a Deus: “O nome de Deus nunca é melhor celebrado do que quando a verdadeira religião é extensamente propagada e quando a Igreja cresce, a qual por essa conta é chamada ‘plantações do Senhor, pa-ra que Ele seja glorificado’ [Is 61.3]”.423

Este objetivo da Academia faz jus à compreensão missionária de Calvino. Consi-

derando que o reino de Deus envolve todos os povos – Jesus Cristo não foi enviado apenas aos judeus424 –, a mensagem do Evangelho deve ser anunciada a todos. Comentando 1Tm 2.4, Calvino afirma: “.... nenhuma nação da terra e nenhuma clas-se social são excluídas da salvação, visto que Deus quer oferecer o Evangelho a to-dos sem exceção”.425 À frente: “Aqueles que se encontram sob o governo do mesmo Deus não são excluídos para sempre da esperança de salvação”.426 Por isso, “O Senhor ordena aos ministros do Evangelho (que preguem) em lugares distantes, com o propósito de espalhar a doutrina da salvação em cada parte do mundo”.427 Analisando uma das implicações da petição “venha o Teu Reino”, comenta: “Portan-to, nós oramos pedindo que venha o reino de Deus; quer dizer, que todos os dias e cada vez mais o Senhor aumente o número dos Seus súditos e dos que nele crê-em....”.428

Em outro lugar, acrescenta: “Não existe outra forma de edificar a igreja de

Deus senão pela luz da Palavra, em que o próprio Deus, por sua própria voz, aponta o caminho da salvação. Até que a verdade brilhe, os homens não

lands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, Vol. 17). Macarius (pastor Jean Macard), no entanto, depois de investigar, atesta a fidelidde de Chartier (Cartas de Macarius a Calvino de 21/03/1558 e 27/03/1558). Cartas 2838 e 2841. In: Herman J. Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0, Nether-lands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, Vol. 17). 421

Robert-M. Kingdon, Registres de La Compagnie dês Pasteurs de Genève au Tempos de Calvin, Genève: Librairie E. Droz, 1962, p. 68. 422

Vejam-se Frans L. Schalkwijk, O Brasil na Correspondência de Calvino. In: Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, IX/1 (2004) 101-128; Vejam-se as explicações a respeito dos pseudônimos e fac-similes das respectivas assinaturas in: Emile Doumer-gue, Jean Calvin: Les hommes et les choses de son temps, Lausanne: Georges Bridel & Cie Editerurs, 1899, Vol. 1, p. 558-573 (Apêndice nº VIII). 423

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 102.21), p. 581. 424

Cf. John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. VII, (Is 2.4), p. 99. Do mesmo modo: John Calvin Collection, (CD-ROM), (Alba-ny, OR: Ages Software, 1998), (Mq 4.1-2), p. 94. 425

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 2.4), p. 60. Ver também: John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. XII, (Ez 18.23), p. 246-249. 426

João Calvino, As Pastorais, (1Tm 2.5), p. 62. 427

John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. XVII, (Mt 28.19), p. 384. 428

João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, Vol. 3, (III.9.39), p. 124.

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podem se unir juntos, na forma de uma verdadeira Igreja”.429 Analisando a instrução bíblica para que todos os povos louvem ao Senhor, co-

menta: “À luz dessa afirmação, inferimos que se aponta para o reino de Cristo.

O nome de Deus não podia ser invocado em qualquer outra parte do mundo além da Judéia, até que o mesmo fosse revelado. E as nações pagãs estavam naquele tempo necessitadas e totalmente impossibilitadas para um exercício como esse. Não obstante, é evidente que o Espírito San-to incitou os santos que estavam sob a lei a celebrarem os divinos louvores, até que chegasse aquele período quando Cristo, pela difusão do Evange-lho, enchesse toda a terra com sua glória. (...) Isso não poderia ser efetua-do [a devoção do mundo inteiro], a menos que o Evangelho fosse univer-salmente difundido como o meio de comunicar o conhecimento de Deus. (...)Ele [o salmista] convoca a todos a anunciarem sua salvação e, dese-jando que a celebrassem dia após dia, insinua que ela não era de uma natureza transitória ou evanescente, mas que duraria para sempre”.430 Devemos trabalhar com urgência dentro da esfera que nos foi confiada por Deus.

O que não nos pertence deixemos onde está de modo firme e seguro: sob os cuida-dos de Deus. Portanto, “como nós não sabemos quem são os que pertencem ou deixam de pertencer ao número e companhia dos predestinados, devemos ter tal a-feto, que desejemos que todos se salvem; e assim, procuraremos fazer a todos a-queles que encontrarmos, sejam participantes de nossa paz (...). Quanto a nós con-cerne, deverá ser a todos aplicada, à semelhança de um remédio, salutar e severa correção, para que não pereçam eles próprios, ou a outros não percam. A Deus, po-rém, pertencerá fazê-la eficaz àqueles a Quem preconheceu e predestinou”.431

O nosso trabalho deve ser feito com total confiança em Deus, sabendo que cabe

a Ele converter o coração do homem e, que a rejeição do Evangelho neste momento não implica necessariamente na rejeição absoluta. Esta convicção nos estimula a trabalhar com fervor e alegre perseverança: “Visto que a conversão de uma pessoa está nas mãos de Deus, quem sabe se aqueles que hoje parecem empedernidos subitamente não sejam transformados pelo poder de Deus em pessoas diferentes? E assim, ao recordarmos que o arrependimento é dom e obra de Deus, acalentare-mos esperança mais viva e, encorajados por essa certeza, aceleraremos nosso la-bor e cuidaremos da instrução dos rebeldes. Devemos encará-lo da seguinte forma: é nosso dever semear e regar e, enquanto o fazemos, devemos esperar que Deus dê o crescimento (1Co 3.6). Portanto, nossos esforços e labores são por si sós infru-tíferos; e no entanto, pela graça de Deus, não são infrutíferos”.432 A nossa respon-

429

Ver: John Calvin, Commentary on the Prophet Micah. In: John Calvin Collection, (CD-ROM), (Al-bany, OR: Ages Software, 1998), (Mq 4.1-2), p. 101. 430

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 96.1), p. 514-515. 431

João Calvino, As Institutas, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, III.23.14. 432

João Calvino, As Pastorais, (2Tm 2.25), p. 246-247.

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sabilidade: “.... é nosso dever proclamar a bondade de Deus a toda nação”.433 Portanto, preguemos sinceramente, de forma inteligente, com amor e entusiasmo.

Quanto aos resultados, estes pertencem a Deus, escapam da nossa esfera de a-ção.434 Aproveitemos também as oportunidades concedidas por Deus: “.... lem-bremo-nos de que a porta se nos abriu pela mão de Deus a fim de que pro-clamemos Cristo naquele lugar, e não recusemos aceitar o generoso convite que Deus assim nos oferecer”.435

10. Glorificar a Deus:

“A Ele, pois, a glória eternamente. A-mém!” – Rm 11.36. “A glória do Pai lhe é invisível até que ela resplandeça em Cristo” ‒ João Calvi-

no.436

A) A GLÓRIA DE DEUS NA SALVAÇÃO DOS SEUS:

Vimos no tópico anterior que Deus chama o Seu povo por meio dos Seus filhos. De fato; este é o método de Deus. Quando a igreja cumpre assim a Sua mis-são, sendo coerente com a sua natureza, Deus é glorificado, visto que o objetivo fi-nal da nossa eleição – bem como o de todas as coisas –, é a Glória de Deus (Ef 1.4-6,12-14; 2.6,7; Rm 9.22-23/Is 43.7)437.438 Deus nos elegeu para sermos o ins-

433

John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), Vol. VII, (Is 12.5), p. 403. 434

Vd. João Calvino, As Institutas, II.5.5,7; III.24.2,15. 435

João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Edições Paracletos, 1995, (2Co 2.12), p. 52. 436

João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 1.3), p. 34. 437

4 assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensí-veis perante ele; e em amor 5 nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o bene-plácito de sua vontade, 6 para louvor da glória (do/ca) de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado, 12 a fim de sermos para louvor da sua glória (do/ca), nós, os que de antemão esperamos em Cris-to; 13 em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salva-ção, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa; 14 o qual é o penhor da nossa herança, até ao resgate da sua propriedade, em louvor da sua gló-ria (do/ca) (Ef 1.4-6,12-14). “E, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Je-sus; para mostrar, nos séculos vindouros, a suprema riqueza da sua graça, em bondade para conos-co, em Cristo Jesus” (Ef 2.6,7). “Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a co-nhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdi-ção,a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória (do/ca) em vasos de misericór-

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trumento de Seu louvor. Na eleição resplandece a gloriosa graça de Deus em atos de bondade para conosco. A conclusão de nossa salvação revelará a glória da graça salvadora de Deus (Ef 1.6,11,12,13,14): “O objetivo final da eleição não será a-tingido até que Deus, tendo operado a salvação dos eleitos - e tendo-os le-vado para a glória - seja, deste modo, glorificado plenamente em Si Mes-mo”.439 Aqui temos o nosso horizonte espiritual ampliado: “a coisa principal não é que os eleitos sejam salvos, mas que Deus seja justificado em todas as suas

obras e glorificado no juízo”.440 A glória de Deus, portanto, que é a beleza harmo-niosa de Suas perfeições, é realçada por meio da nossa salvação e santificação em Cristo Jesus. Deus manifesta a Sua Glória por intermédio dos eleitos que com-põem a Sua Igreja. Ele mesmo, “nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da gló-ria de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado” (Ef 1.5-6).441 Como igreja, seremos o troféu de Cristo por toda a eternidade; somos o resultado de Sua obra salvadora; por isso, quando Ele vier, será glorificado em nós (Ef 1.5,6; 2.7/Jo 17.10; 2Ts 1,10,12). “Na eternidade, olharemos para nós mesmos e di-remos: ‘Eis aqui a prova de que Deus é bondoso – Ele me salvou!’ Seremos os troféus na galeria dos troféus de Deus”.442 Alguém poderia perguntar: por que a Glória de Deus como alvo de todas as coi-sas? A resposta bíblica é simples e majestosa: porque não há nada maior do que Ela.443 Portanto, não procurar a Sua Glória, significaria a autonegação de que Ele

dia, que para glória (do/ca)preparou de antemão” (Rm 9.22-23). “A todos os que são chamados pelo meu nome, e os que criei para minha glória ((ּכבוד)(kabod),(LXX: do/ca)) e que formei, e fiz” (Is 43.7). 438

Vd. Catecismo de Genebra, Pergs. 1-2: In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962, p. 29; Catecismo Menor de Westminster, Perguntas: 1,7,46,47,101; J. Calvino, Exposi-ção de Romanos, (Rm 9.23), p. 343-344; J. Calvino, As Institutas, III.23.8; III.24.14; Archibald A. Hod-ge, Confissão de Fé Westminster Comentada por A.A. Hodge, São Paulo: Editora os Puritanos, 1999, p. 96. Hodge: “A causa final de todos os propósitos de Deus é Sua própria glória” (Ap 4.11; Nm 14.21; Is 48.11; Ez 20.9). (Charles Hodge, Systematic Theology, Vol. I, p. 535). 439

Fred H. Klooster, A Doutrina da Predestinação em Calvino, Santa Bárbara D’Oeste, SP.: SOCEP., 1992, p. 29. “A ideia geral expressa (Jó 17.1) é que o nosso Senhor está desejoso de que a glória de Deus seja manifestada, e manifestada especialmente na salvação dos homens” (D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 42). 440

Abraham Kuyper, The Work of the Holy Spirit, Chattanooga: AMG. Publishers, 1995, p. 10. 441

Vejam-se também: Confissão de Westminster, III.3,5,7; V.1; XXXIII.2; Catecismo Maior, Pergs. 12 e 18; Catecismo Menor, Perg. 7. 442

Tom Wells, Fé: Dom de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 100. John MacArthur Jr. usa figura semelhante em seu instrutivo e desafiador livro: Chaves para o Cresci-mento Espiritual, 2ª ed. São José dos Campos, SP.: FIEL, 1986, p. 47. 443

“Sendo Deus mesmo infinitamente mais digno do que a soma de todas as criaturas, se-gue-se que a manifestação da sua própria excelência é fim infinitamente mais digno e exal-tado do que o seria a felicidade das criaturas; seria realmente o fim o mais exaltado e digno que nos é possível imaginar” (A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 223). Vejam-se também: J.I. Packer, O Plano de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, (s.d.), p. 16; (John F. MacArthur, Jr. Chaves para o Crescimento Espiritual, 2ª ed. São José dos Campos, SP.: Fiel, 1986, p. 15-50.

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é o Senhor da Glória.444

B) O OBJETIVO FINAL DA VIDA HUMANA:

No Catecismo de Genebra (1541/2), nas primeiras duas perguntas, le-mos:

“Mestre: Qual é o fim principal da vida humana? Discípulo: Conhecer os homens a Deus Seu Criador”. “Mestre: Por que razão chamais este o principal fim?

Discípulo: Porque nos criou Deus e pôs neste mundo para ser glorificado em nós. E é coisa justa que nossa vida, da qual Ele é o começo, seja de-dicada à Sua glória”.445

Em outro lugar, Calvino afirma: “A glória de Deus é a finalidade mais eleva-da, à qual a nossa santificação está subordinada”.446 Desta forma, o homem como criatura de Deus só se realiza quando vive para a glória de Deus, que é também, o seu fim último (2Co 5.8; Gl 2.20; Fp 1.21,23).447 O Catecismo Menor de Westminster, à pergunta nº 1, “Qual é o fim principal do ho-mem?”, responde: “O fim principal do homem é glorificar a Deus, e gozá-lo pa-ra sempre” (Ver: Is 43.7; 60.21; 61.3; Rm 11.36; 14.7-8; 1Co 10.31; Ef 1.5-6). Portanto, a nossa vida deve ter como propósito último, glorificar a Deus: “A glória de Deus deve resplandecer sempre e nitidamente em todos os dons com os quais porventura Deus se agrade em abençoar-nos e em adornar-nos. De sorte que podemos considerar-nos ricos e felizes nele, e em nenhuma outra fonte".448

444

Vd. Hermisten M.P. Costa, Providência de Deus: Governo ou Fatalismo?, São Paulo, 2006. 445

John Calvin, Catechism of the Church of Geneva, perguntas 1 e 2. In: John Calvin, Tracts and Treatises on the Doctrine and Worship of the Church, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1958, Vol. II, p. 37. 446

João Calvino, Efésios, (Ef 1.4), p. 25. “Ora, a vida eterna e imortal só pode ser encontrada em Deus. Portanto, é necessário que a principal preocupação e solicitude de nossa vida se-ja buscar a Deus, aspirá-lo com toda a afeição de nosso coração e descansar nele somen-te” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 1, p. 11). 447

“Entretanto, estamos em plena confiança, preferindo deixar o corpo e habitar com o Senhor” (2Co 5.8). “Logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na car-ne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gl 2.20). “Por-quanto, para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro. Ora, de um e outro lado, estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o que é incomparavelmente melhor” (Fp 1.21,23). 448

João Calvino, O Livro dos Salmos, (Sl 48.3), p. 356. “O propósito geral da minha salvação e da sua é que nós glorifiquemos o Pai. (...) O alvo, o objetivo supremo da nossa salvação é que glorifiquemos a Deus” (D.M Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 1), p. 47,48).

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A felicidade do homem está condicionada ao Seu genuíno conhecimento de Deus; ela está subordinada à Glória de Deus. Só obtemos uma visão adequada dos objetivos secundários quando conseguimos enxergar corretamente o fim principal. O homem só descobre o sentido da vida e da eternidade, quando, pelo Espírito, consegue compreender que o fim principal de todas as coisas é a Glória de Deus e, então passa a viver para este fim (1Co 10.31; Cl 3.23).449 Calvino, então, aconselha: “Não busquemos nossos próprios interesses, mas antes aquilo que compraz ao Senhor e contribui para promover sua glória”.450 Comentando o Salmo 69.9, fala com a veemência própria de quem vivia este princípio:

“A forma como ele [Davi] fazia isso, ele mostra que era através do zelo pela Igreja de Deus com que sua alma se inflamava. Não só assinalava a causa dos maus tratos que recebia − seu zelo pela casa de Deus −, mas também declara que, qualquer que fosse o tratamento de que imereci-damente fosse alvo, todavia, por assim dizer, esquecendo-se de si mesmo, ele arderia de santo zelo para manter a Igreja, e ao mesmo tempo a glória de Deus, com a qual vive em comunhão indestrutível. [...] “Davi ignorou a si próprio, e que toda a tristeza que sentia era proce-dente do santo zelo com que ardia quando via o sacro nome de Deus in-sultado e ultrajado com horríveis blasfêmias. [...] “Até que tenhamos aprendido a dar pouco valor a nossa reputação pessoal, jamais seremos inflamados com genuíno zelo em contender pela preservação e avanço dos interesses da glória divina [...] “Visto que Cristo, em quem resplandece toda a majestade da Deidade, não hesitou a expor-se a todo gênero de afronta para a manutenção da glória de seu Pai, quão vil e ignominioso será se nos reduzirmos a seme-lhante sorte”.451

C) A IGREJA COMO EXPRESSÃO E AGENTE DA GLÓRIA DE DEUS:

“A glória do Senhor deve permanecer inalterada em toda e qual-quer parte”.452 Deus criou todas as coisas, inclusive a Igreja, para a Sua Glória. “Glória é excelência manifestada. A excelência dos atributos de Deus é ma-nifestada por sua operação”.453 A glória de Deus não lhe é atribuída, acrescen-

449

Vd. Charles Hodge, Systematic Theology, Vol. I, p. 535-537 450

João Calvino, A Verdadeira Vida Cristã, São Paulo: Novo Século, 2000, p. 30. De forma seme-lhante: “Não busquemos as cousas que são nossas, mas aquelas que não somente sejam da vontade do Senhor, como também contribuam para promover-lhe a glória” (João Calvino, As Institutas, III.7.2). 451

João Calvino, O Livro dos Salmos, (Sl 69.9), Vol. 3 , p. 21-22. 452

João Calvino, Romanos, 2ª ed. São Paulo: Parakletos, 2001, (Rm 11.36), p. 430. 453

A.A. Hodge, Esboços de Theologia, p. 223.

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tada, diminuída ou mesmo esgotada em sua complexidade;454 é-Lhe totalmente in-trínseca. Ele é o Rei, o Senhor e Pai da Glória (Sl 24.7-10; At 7.2; Ef 1.17)455 que, por meio de Seu Filho “vestido de nossa carne, se revelou agora par ser o Rei da glória e Senhor dos Exércitos”.456 (1Co 2.8; Tg 2.1/Jo 1.14).457 O alvo final de todas as coisas é a glória Deus: nada é mais elevado ou importan-te do que o próprio Deus. Como decorrência do tópico anterior, podemos afirmar que há aqui um desafio extremamente difícil para todos nós individualmente e para a i-greja como todo: abrir mão de nossos interesses aparentemente mais relevantes (a-liás, em nossa ótica, o que há de mais importante do que os nossos interesses? Qual a dor maior do que a minha?) pelo que, de fato, é urgentemente relevante em sua própria essência. Lloyd-Jones ilustra este ponto positivamente partindo do e-xemplo de Jesus Cristo, que na quinta feira antes de Sua entrega em favor do Seu povo, ora ao Pai revelando a sua genuína preocupação: glorificar o Deus Pai (Jo 17.1): “Acima de nossa preocupação com as almas dos homens e com a sua salvação deve estar a nossa preocupação com a glória de Deus. O que devemos acentuar para os homens e para as mulheres que estão fora de Cristo e para os pecadores do mundo atual não é, primariamente, o fato de que eles são pecadores, e que são infelizes porque são pecadores, mas o fa-to de que o pecado deles é uma agressão a Deus e uma difamação da gló-ria de Deus. O nosso interesse pela glória de Deus deve vir antes do nosso in-teresse pelo estado e condição do pecador. Isso foi verdade quanto ao nos-so Senhor, e é Ele que nos envia”.458

Jesus Cristo desafia a Igreja a assumir a sua identidade, não uma simples másca-ra periódica: “Vós sois o sal da terra; ora, se o sal vier a ser insípido, como lhe res-taurar o sabor? Para nada mais presta senão para, lançado fora, ser pisado pelos homens. Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder a cidade edificada sobre

454

“Pois se homens e anjos juntassem sua eloquência em função deste tema, ainda assim tocariam mui diminutamente em sua imensurabilidade” (João Calvino, Efésios, São Paulo: Pa-racletos, 1998, (Ef 1.14), p. 39). 455

“Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. Quem é o Rei da Glória? O SENHOR, forte e poderoso, o SENHOR, poderoso nas batalhas. Levantai, ó portas, as vossas cabeças; levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória. Quem é esse Rei da Glória? O SENHOR dos Exércitos, ele é o Rei da Glória” (Sl 24.7-10). “Estêvão respondeu: Varões irmãos e pais, ouvi. O Deus da glória apareceu a Abraão, nosso pai, quando esta-va na Mesopotâmia, antes de habitar em Harã” (At 7.2). “Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda espírito de sabedoria e de revelação no pleno conhecimento dele” (Ef 1.17). 456

João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 24.8), p. 536. 457

“Sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem co-nhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória (do/ca)” (1Co 2.8). “Meus irmãos, não tenhais a fé em nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória (do/ca), em acepção de pessoas” (Tg 2.1). “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória (do/ca), glória (do/ca) como do unigênito do Pai” (Jo 1.14). 458

D.M. Lloyd-Jones, Seguros Mesmo no Mundo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: Vol. 2), p. 20. Veja-se: David M. Lloyd-Jones, O Supremo Propósito de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 127.

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um monte; nem se acende uma candeia para colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e alumia a todos os que se encontram na casa. Assim brilhe também a vos-sa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem (do-ca/zw) a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.14-16). A Igreja, como criação de Deus, é conclamada a viver de forma intencional para a glória de Deus, sendo um sinal luminoso que aponta de forma efetiva para o Seu Criador, a fim de que todos, por meio do nosso testemunho, possam glorificar a Deus. O modo como pregamos o Evangelho reflete o nosso conceito de Deus. Nada é mais importante do que o caráter de Deus. Todavia, quando perdemos a dimensão de Quem é Deus, as demais coisas são descaracterizadas; somente a compreensão correta de quem é Deus pode conferir sentido à nossa existência e a todo o nosso labor missionário. Diante da majestade de Deus todas as demais coisas tornam-se aos nossos olhos, o que realmente são: pequenas.459 De fato: “Não há glória real senão em Deus”.460 A perda da dimensão correta da Majestade de Deus, tem co-mo causa primeira, o descrédito para com a Sua Palavra: quando não conhecemos (cremos) nas Escrituras, também não conhecemos a Deus (Mt 22.29/Os 4.1,6).461 Em 1996, um grupo de Evangélicos radicados nos Estados Unidos elaborou a Decla-ração Teológica de Cambridge. Na Quinta Tese, lemos:

“Todas as vezes que a autoridade bíblica é perdida na igreja, Cristo é despojado de seu lugar, o evangelho é distorcido, ou a fé pervertida, a ra-zão é uma só: nossos interesses substituíram os de Deus e estamos fazendo seu trabalho à nossa maneira. A perda da centralidade de Deus na vida da igreja de hoje é comum e lamentável. É esta perda que nos permite transformar o culto em entretenimento, a pregação do evangelho em marketing, a confiança em técnica, ser bom em sentir-se bem a respeito de si mesmo e fidelidade em ser um sucesso. Como resultado, Deus, Cristo e a Bíblia acabam significando muito pouco para nós e permanecem mui-to inconsequentemente sobre nós. “Deus não existe para satisfazer nossas ambições, desejos e apetites de consumidores ou nossos interesses espirituais particulares. Devemos focar a nossa adoração em Deus, ao invés de buscar na adoração a satisfação de nossas necessidades pessoais. Deus é soberano na adoração; nós não

459

Comentando Dn 3.28 – quando Nabucodonosor admite que Sadraque, Mesaque e Abedenego preferiram obedecer a Deus ao decreto real –, Calvino escreve: “Toda e qualquer pessoa que o-lha para Deus, facilmente menospreza a todos os mortais e a tudo o que se afigura esplên-dido e majestoso no mundo inteiro” (João Calvino, O Profeta Daniel: 1-6, São Paulo: Parakletos, 2000, Vol. 1, (Dn 3.28), p. 228). 460

João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 1.17), p. 46. 461

“Respondeu-lhes Jesus: Errais, não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus” (Mt 22.29). “Ouvi a palavra do SENHOR, vós, filhos de Israel, porque o SENHOR tem uma contenda com os ha-bitantes da terra, porque nela não há verdade, nem amor, nem conhecimento de Deus. (...) O meu povo está sendo destruído, porque lhe falta o conhecimento. Porque tu, sacerdote, rejeitaste o co-nhecimento, também eu te rejeitarei, para que não sejas sacerdote diante de mim; visto que te es-queceste da lei do teu Deus, também eu me esquecerei de teus filhos” (Os 4.1,6).

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o somos. Nossa preocupação absoluta deve ser pelo reino e a glória de Deus, não por nossos impérios, popularidade ou sucesso”.

462

Portanto, o que anunciamos jamais será o Evangelho bíblico se consistir apenas numa mensagem de alívio para as supostas necessidades do homem. Esta concep-ção nos parece imperiosamente relevante. Quando proclamamos o Evangelho, es-tamos glorificando a Deus por meio de nossa obediência ao Seu mandamento de anunciar a mensagem de redenção a todos os homens. “O nome de Deus nunca é melhor celebrado do que quando a verdadeira religião é extensamente propagada e quando a Igreja cresce, a qual por essa conta é chamada ‘plantações do Senhor, para que Ele seja glorificado’ [Is 61.3]”.463 Contudo, devemos também ter em mente que o nosso propósito em assim fazê-lo deve ser o de glorificar a Deus no anúncio de Sua mensagem redentiva. Deus é glo-rificado não somente por intermédio dos que crêem, quando a Sua misericórdia res-plandece, mas, mesmo por meio daqueles que rejeitam a mensagem, sendo glorifi-cada a sua paciência e justiça (Rm 9.22-24)464 que são tão santas como o seu amor e misericórdia. Portanto, a Igreja de Deus, no seu ato essencial de proclamar as vir-tudes de Deus (1Pe 2.9-10), tem como objetivo final a Glória de Deus (Rm 11.36; 1Co 10.31). A Evangelização visa glorificar a Deus, por intermédio do anúncio da na-tureza de Deus e de Sua obra eficaz efetivada em Cristo Jesus. Ousamos dizer, que a Evangelização tem fundamentalmente como alvo final, glorificar a Deus; e Deus é glorificado por meio da salvação de Seu povo (Is 43.7; Jo 17.6-26; Ef 1.7/2Ts 1.10-12) e a consequente confissão de Sua soberania (Fp 2.5-11). A glória de Deus é muito maior do que a nossa salvação; mas, também sabemos que “a glória de Je-sus é a salvação de seus seguidores”.465 O Espírito dirige a Igreja na glorificação de Cristo, ensinando-lhe a obediência proveniente da fé.466 Para isto, temos no Filho o próprio paradigma a ser seguido: Foi justamente na obediência perfeita ao Pai, que o Filho O glorificou. “Eu te glorifi-quei (doca/zw) na terra, consumando a obra que me confiaste para fazer” (Jo 17.4). Quando evangelizamos estamos revelando o nosso amor a Deus e ao nosso próxi-mo, glorificando a Deus, sendo-Lhe obedientes na vivência de nossa natureza de

462

Documento consultado em 08/11/07 no site: www.alliancenet.org 463

João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 102.21), p. 581. 464

“Que diremos, pois, se Deus, querendo mostrar a sua ira e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita longanimidade os vasos de ira, preparados para a perdição, a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória (do/ca) em vasos de misericórdia, que para glória (do/ca) preparou de antemão, os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios?” (Rm 9.22-24). 465

William Hendriksen, O Evangelho de João, São Paulo: Cultura Cristã, 2004, (Jo 17.6), p. 758. 466

“A principal obra do Espírito Santo é glorificar ao Senhor Jesus Cristo. Portanto, não have-rá valor em nossas orações, se não crermos nEle, em Sua divindade singular, em Sua encar-nação, nascimento virginal, milagres, morte expiatória, ressurreição e ascensão. O Espírito O glorifica e, portanto, devemos crer nEle e ser ‘unânimes’ em nossa doutrina” (D. Martyn Lloyd-Jones, A Unidade Cristã, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1994, p. 72).

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proclamação e serviço. “Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama” (Jo 14.21). A obediência é fruto da genuína fé. “Só o crente é o-bediente, e só o obediente é que crê”.467 Na obediência a Cristo, a Igreja O glo-rifica. O Espírito que cumpre Seu Ministério obedientemente (Jo 16.13-14),468 con-duz a Igreja a ser a glorificação de Cristo em sua obediência (Jo 17.9,10).469 Se pudéssemos imaginar na eternidade alguém perguntando sobre os frutos da Obra do Pai, do Filho e do Espírito Santo, encontraríamos a resposta na indicação jubilosa da Igreja de Deus, a qual Ele comprou com o Seu próprio sangue e preser-vou até o fim (At 20.28/Is 43.7/Ef 1.3-14; 2.6,7). "A Igreja é o brilho mais esplen-dente da sabedoria de Deus (...). A Igreja é a expressão final da sabedoria de Deus, a realidade que, acima de todas as demais, capacita até os anjos a compreenderem a sabedoria de Deus".470 O Evangelho deve ser proclamado em sua inteireza a todos os homens e ao ho-mem todo; a Teologia oferece solidez na transmissão desta verdade, mostrando Quem é Deus e a real necessidade do homem. "Tudo o que as Escrituras dizem a respeito do homem, e particularmente tudo o que elas dizem sobre a salva-ção do homem, é afinal de contas para glória de Deus. Nossa teologia está centralizada em Deus porque nossa vida está centrada em Deus".471 Quando a evangelização transforma-se apenas em questão de estatística ― nú-mero de membros, tamanho do edifício, arrecadação, relevância social das pessoas que frequentam os cultos, etc. ―, há muito deixamos de compreender o genuíno significado do Evangelho bíblico. A grandeza e importância da Igreja está em Seu Senhor; as demais coisas são periféricas. A mensagem do Evangelho propõe-se a anunciar a Deus na beleza de Sua santidade, sabendo que Deus será glorificado por meio de nossa fidelidade à Sua Palavra. O livro de Atos se constitui no maior relato da glorificação de Cristo pelo Espírito: A expansão missionária e a edificação dos crentes. Quando cristãos sinceros prega-vam o Evangelho e, homens e mulheres eram transformados pelo seu poder, sendo conduzidos a uma vida santa, Cristo estava sendo glorificado. E este ainda é o modo efetivo de glorificar a Deus: obedecendo aos Seus mandamentos. Nas páginas do Novo Testamento vemos que quando a liderança da Igreja de Je-

467

Dietrich Bonhoeffer, Discipulado, 2ª ed. São Leopoldo, RS.: Sinodal, 1984, p. 25. 468

“Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir. Ele me glori-ficará (doca/zw), porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar” (Jo 16.13-14). 469

“É por eles que eu rogo; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus; ora, todas as minhas coisas são tuas, e as tuas coisas são minhas; e, neles, eu sou glorificado” (Jo 17.9-10). 470

D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 77. 471

Cornelius Van Til, An Introduction to Systematic Theology, Phillipsburg, New Jersey: Presbyterian and Reformed Publishing Co. 1974, p. 1.

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rusalém foi convencida por Pedro ― como este também o fora pelo Senhor ―, de que a mensagem do Evangelho era para todos, sem exceção; com alegria glorifica-ram a Deus: “E, ouvindo eles estas coisas, apaziguaram-se e glorificaram (doca/zw) a Deus, dizendo: Logo, também aos gentios foi por Deus concedido o arrependimen-to para vida” (At 11.18). Posteriormente, quando os gentios entenderam a mensa-gem do Evangelho após a pregação de Paulo inspirada no profeta Isaías, relata Lu-cas: “Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam (doca/zw) a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna” (At 13.48). Quando Paulo relata aos presbíteros de Jerusalém como Deus operara entre os gentios por intermédio do seu ministério, “Ouvindo-o, deram eles glória (doca/zw) a Deus e lhe disseram: Bem vês, irmão, quantas dezenas de milhares há entre os judeus que creram, e todos são zelosos da lei” (At 21.20). Notemos que em todas estas manifestações, Deus e a Sua mensagem é que eram engrandecidos: a glória pertence unicamente a Deus! Paulo no final da segunda carta aos tessalonicenses, roga àqueles irmãos que conheciam o poder e glória do Evangelho: “Finalmente, irmãos, orai por nós, para que a palavra do Senhor se propague e seja glorificada (doca/zw), como também es-tá acontecendo entre vós” (2Ts 3.1). A Igreja prega o Evangelho e ora para que Deus, somente Deus seja glorificado por meio de sua missão. De fato, Deus o será todas as vezes que a Igreja for-Lhe fiel. Concluo este tópico com as contundentes palavras de R.B. Kuiper (1886-1966):

“A fé calvinista propõe o mais elevado objetivo da evangelização. E não é a salvação de almas. Nem o crescimento da Igreja de Cristo. Tam-pouco é a vinda do reino de Cristo. Todos estes objetivos da evangeliza-ção são importantes, inestimavelmente importantes. Mas são apenas mei-os para a consecução do fim para o qual todas as coisas foram trazidas à existência e continuam existindo, para o qual Deus faz tudo o que faz, no qual a história toda culminará um dia, e no qual estão focalizadas todas as eras da eternidade sem fim – a glória de Deus. Em resumo, de todos os cris-tãos, o calvinista tem de ser o mais zeloso pela evangelização. É o que ele será, se for verdadeiramente calvinista – e não só de nome”.472

O objetivo final da evangelização bem como da salvação do Seu povo, é que Deus seja glorificado.

472

R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 149. Vejam-se também: R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 58-59; 90-91; Idem, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 225-226; J.I. Packer, Evangeliza-ção e Soberania de Deus, 2ª ed. São Paulo: Vida Nova, 1990, p. 51ss.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS: A IGREJA, SUA TEOLOGIA E PROCLA-MAÇÃO:

a) Uma definição de Igreja: Podemos definir a Igreja como sendo a comunidade de pecadores regenera-dos, que pelo dom da fé, concedido pelo Espírito Santo, foram justificados, respon-dendo positivamente ao chamado divino, o qual fora decretado na eternidade e efe-tuado no tempo, e agora vivem em santificação, proclamando, quer com sua vida, quer com suas palavras, o Evangelho da Graça de Deus, até que Cristo venha.

b) A Pregação como Marca da Igreja: Na Reforma Protestante do Século XVI, a Igreja foi compreendida dentro da perspectiva de “povo de Deus”, não simplesmente como um edifício ou uma organi-zação institucional,473 mas sim, como povo de Deus que se reúne para adorar a Deus, sendo a Igreja caracterizada pela ministração correta da Palavra e dos Sa-cramentos.474 Calvino (1509-1564) partindo do princípio de que “uma igreja que tem em si as marcas genuínas da religião pode ser reconhecida apesar das falhas de seus membros individuais”,475 tratando desse assunto, insistiu no fato de que as marcas da Igreja são: A verdadeira pregação da Palavra de Deus e a correta administração dos Sacramentos.476 473

Lutero (1483-1546) enfatizou que, “nem trabalho em pedra, nem boa construção, nem ou-ro, nem prata tornam uma igreja formosa e santa, mas a Palavra de Deus e a sã pregação. Pois onde é recomendada a bondade de Deus e revelada aos homens, e almas são enco-rajadas para que possam depender de Deus e chamar pelo Senhor em tempos de perigo, aí está verdadeiramente uma santa igreja” (Jaroslav Pelikan, ed. Luther’s Works, Saint Louis, Con-cordia Publishing House, 1960, Vol. II, (Gn 13.4), p. 332). O eminente teólogo puritano John Owen (1616-1683), escreveu: “Quão pouco pensam os homens sobre Deus e seus caminhos, se i-maginarem que um pouco de tinta e de verniz fazem uma beleza aceitável!” (Wiiliam H. Goold, ed. The Works of John Owen, 4ª ed. London: The Banner of Truth Trust, 1987, Vol. IX, p. 78). Vd. João Calvino, As Institutas, Carta ao Rei Francisco I, p. 28. 474

Vd. John H. Leith, A Tradição Reformada: Uma maneira de ser a comunidade cristã, São Paulo: Pendão Real, 1997, p. 330ss. 475

João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo: Paracletos, 1995, (2Co 1.1-5), p. 16. 476

J. Calvino, As Institutas, (Dedicatória: Carta ao Rei Francisco, X), Livro IV. Capítulo 1, Seções 9-12; Livro IV, Capítulo 2, Seção 1. Do mesmo modo a Confissão de Augsburgo (1530), escrita por Me-lanchton, Art. 7. Na Resposta ao Cardeal Sadoleto (01/09/1539), Calvino declara que a igreja é: "....A assembléia de todos os santos, a qual espalhada por todo o mundo, está dispersa em todo tempo, unida sem dúvida por uma só doutrina de Cristo, e que por um só Espírito guarda e observa a união da fé, junto com a concórdia e caridade fraterna" (Juan Calvino, Respuesta al Cardeal Sadoleto, p. 30-31). Ele diz que os membros da Igreja são reconhecidos "por sua confissão de fé, pelo exemplo de vida e pela participação nos sacramentos", sendo es-tes sinais indicativos de que tais pessoas "reconhecem ao mesmo Deus e ao mesmo Cristo que nós" (As Institutas, IV.1.8). A santidade e firmeza da Igreja segundo Calvino, repousam principal-mente em "três coisas", a saber: "doutrina, disciplina e sacramentos vindo em quarto lugar as

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Outros teólogos Reformados,477 acrescentaram aos dois sinais indicados por Cal-vino, um terceiro: O Exercício Fiel da Disciplina. A Confissão Belga (1561),478 no Artigo XXIX, diz:

"Os sinais para conhecer a Igreja verdadeira são estes: a pregação pu-ra do evangelho; a administração pura dos Sacramentos, tal como foram instituídos por Cristo; a aplicação da disciplina cristã, para castigar os pe-cados".479

De forma restrita, podemos falar da Verdadeira Pregação da Palavra como a marca distintiva da Igreja, decorrendo daí, as outras duas marcas indicadas.480 Esta concepção pode ser resumida na afirmação de que Cristo é a marca essencial da I-

cerimônias para exercitar o povo no dever da piedade" (Juan Calvino, Respuesta al Cardeal Sadoleto, p. 32). De modo mais informal, diz: “Onde se professava o Cristianismo, se adorava um único Deus, se praticavam os Sacramentos e se exercia algum gênero de ministério, ali per-maneciam as marcas da Igreja” (João Calvino, Gálatas, (Gl 1.2), p. 25). 477

Como já vimos, teólogos tais como: Andrew G. Hyperius (1511-1564); Peter Martyr Vermigli (1500-1562); John Knox (c.1514-1572); Zacharias Ursinus (1534-1583); Johann H. Heidegger (1633-1698); Marcus F. Wendelinus (1584-1652), entre outros. 478

A Confissão Belga que se inspirou na Confissão Gaulesa (1559), foi escrita em francês em 1561 por Guido (ou Guy, Wido) de Brès (1523-1567), com a ajuda de M. Modetus, Adrien de Saravia (1513-1613) – um dos primeiros protestantes a advogar a ideia de missões estrangeiras (Cf. I. Bre-ward, Saravia: In: J.D. Douglas, ed. ger. The New International Dictionary of the Christian Church, 3ª ed. Grand Rapids, Michigan, 1979, p. 878) e G. Wingen, sendo revisada por Francis Junius (1545-1602) e, publicada a sua tradução em holandês em 1562. "O pastor Guy de Brès escreveu uma carta de defesa aos magistrados. Lançou-a juntamente com um exemplar de sua recente 'Confession de Foy' por sobre o muro do castelo de Doornick, para assim ser levado ao go-vernador e ao rei. Se este jamais leu a confissão de fé, não se sabe, mas ela chegou a ocu-par um lugar de suma importância na Igreja Reformada holandesa" (Frans L. Schalkwijk, Igreja e Estado no Brasil Holandês, (1630- 1654), Recife, Pe: FUNDARTE (Coleção Pernambucana, 2ª Fa-se, Vol. 25), 1986, p. 27). Ela juntamente com o Catecismo de Heidelberg (1563), foi aprovada no Sínodo de Antuérpia, rea-lizado secretamente (Cf. Frans L. Schalkwijk, Igreja e Estado no Brasil Holandês, (1630- 1654), p. 27), em Wessel (1568) e adotada pelo Sínodo Reformado de Emden (1571), pelo Sínodo Nacional de Dort (1574), Middelburg (1581) e, também, pelo grande Sínodo de Dort (29/4/1619), o qual a sujeitou a uma minuciosa revisão, comparando a tradução holandesa com o texto francês e latino. A Confissão Belga e o Catecismo de Heidelberg são os símbolos de fé das Igrejas Reformadas na Holanda e Bél-gica, sendo também o padrão doutrinário da Igreja Reformada na América e na Igreja Evangélica Re-formada Holandesa no Brasil.(Vd. Philip Schaff, COC., Vol. 1, p. 502-508; III, p. 383; J. Van Engen, Confissão Belga: In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Pau-lo: Vida Nova, 1988, Vol. 1, p. 330).(Doravante citada como EHTIC). 479

Essa posição é também encontrada na Confissão Escocesa (1560), Cap. XVIII, que acrescenta: “Onde quer que essas marcas se encontrem e continuem por algum tempo – ainda que o número de pessoas não exceda de duas ou três – ali, sem dúvida alguma, está a verdadeira Igreja de Cristo, o qual, segundo a Sua promessa, está no meio dela”. 480

Cf. L. Berkhof, Teologia Sistemática, p. 580; Herman Hoeksema, Reformed Dogmatics, 3ª ed. Grand Rapids, Michigan, Reformed Publishing Association, 1976, p. 620. Vd. João Calvino, As Pasto-rais, (1Tm 3.15), p. 99.

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greja, visto ser Ele "o centro da Palavra e o cerne dos sacramentos".481

c) O Conteúdo e o significado da Proclamação: “Não pode haver missão sem mensagem, nem mensagem sem defini-ção da mesma”.482 Fazendo uma pequena digressão, podemos observar que a a-firmação feita acima, está de acordo com a compreensão de Condillac (1715-1780), que disse: “A necessidade de definir é apenas a necessidade de ver as coi-sas sobre as quais se quer raciocinar e, se fosse possível ver sem definir, as de-finições se tornariam inúteis”.483 De forma complementar, parece-nos extrema-mente pertinente a concepção aristotélica de definição; ele diz: “Uma definição é uma frase que significa a essência de uma coisa”.484 Quando falamos do conteúdo do Evangelho, devemos definir o significado deste termo. Compreendemos ser o Evangelho o próprio Cristo. Ele é a personificação do Reino; Cristo é o centro para onde tudo converge.485 O Evangelho é Cristocêntrico, porque sem a Pessoa e obra de Cristo não há “Boa Nova”. Cristo é o autor e o con-teúdo do Evangelho.486 Pregar o evangelho significa pregar a Cristo bem como tudo aquilo que tem relação com Ele (Rm 15.20),487 já que sem Cristo não haveria Evan-gelho (Lc 2.9-11).488 Conforme já indicamos anteriormente, o desejo ardente de toda Cristologia Re-formada é a compreensão do Cristo por Ele mesmo. Isto nos leva a indagar a respei-to de nossas convicções à Luz da Palavra, para que sejamos fiéis à Revelação bíbli-ca. 481

Bruce Milne, Conheça a Verdade, São Paulo: ABU., 1987, p. 227. (Veja-se, D.M. Lloyd-Jones, O Combate Cristão, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1991, p. 128). 482

John R.W. Stott, et. al., Dialogo Sobre La Mision, p. 13. 483

E.B. de Condillac, Lógica ou Os Primeiros Desenvolvimentos da Arte de Pensar, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XXVII), 1973, p. 121. 484

Aristóteles, Tópicos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. IV), 1973, I.5. p. 13. Espino-sa (1632-1677), por sua vez afirma que: “A verdadeira definição de cada coisa não envolve nem exprime senão a natureza da coisa definida” (Baruch Espinosa, Ética, São Paulo: Abril Cul-tural, (Os Pensadores, Vol. XVII), 1973, I.8. p. 91). 485

Vd. Blaise Pascal, Pensamentos, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. XVI), 1973, VIII. 556, p. 178. 486

Michael Green declara isto de forma diferente, quando diz: “Aquele que veio pregando as bo-as novas passou a ser o conteúdo das boas novas” (Michael Green, Evangelização na Igreja Primitiva, São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 58). 487

“Esforçando-me, deste modo, por pregar o evangelho (eu)aggeli/zw), não onde Cristo já fora a-nunciado, para não edificar sobre fundamento alheio” (Rm 15.20). 488

“E um anjo do Senhor desceu aonde eles estavam, e a glória do Senhor brilhou ao redor deles; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, lhes disse: Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salva-dor, que é Cristo, o Senhor” (Lc 2.9-11).

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Pregar é anunciar o “Evangelho de Deus” (Mc 1.14); o “Evangelho do Reino” (Mt 4.23; 9.35; 24.14) que é o “Evangelho do Reino de Deus” (Lc 4.43; 8.1; At 8.12) e o “Evangelho do Senhor Jesus” (At 11.20/At 8.12), que é o “Evangelho de Jesus Cris-to” (Mc 1.1/Rm 15.19; 2Co 2.12). O Reino de Deus é o coração da mensagem de Cristo bem como dos apóstolos. O crente no Antigo Testamento aguardava a chegada do Reino de Deus que estava associada à figura do Filho do Homem, descrita por Daniel (Dn 7.13-14/Mt 16.27,28; 17.12,22; Lc 9.58; Jo 3.13,14).489 Jesus Cristo, o Filho do Homem, inaugurou o Rei-no de Deus (Lc 11.20);490 por isso, o Reino está indissoluvelmente ligado à Sua Pessoa. Jesus Cristo, a Sua mensagem e atos incorporam a presença do Reino que chegara. Orígenes (c. 185-254), corretamente, disse que Jesus Cristo era a ”autoba-sileia”, o reino em pessoa.491 “A relação entre o Reino de Deus e a revelação messiânica passa a ser uma correlação de força tal que quase se poderia falar de identificação de Jesus Cristo com o Reino de Deus; Ele não apenas proclama, mas é, na Sua pessoa, o Reino que está entre nós”.492 Por isso, é que o Novo Testamento nos ensina que Pregar o Reino é o mesmo que pregar a Je-sus Cristo: “Todo aquele que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe ou mu-lher, ou filhos, ou campos, por causa do meu nome, receberá muitas vezes mais, e herdará a vida eterna” (Mt 19.29). “Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos, por amor de mim e por amor do evangelho, que não receba, já no presente...” (Mc 10.29-30). “Em verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou mulher, ou ir-mãos, ou pais, ou filhos por causa do reino de Deus” (Lc 18.29). “... Filipe, que os evangelizava a respeito do reino de Deus e do nome de Jesus Cristo...” (At 8.12). “Pregando o reino de Deus, e, com toda a intrepidez, sem impedimento algum, ensinava as cousas referentes ao Senhor Jesus Cristo” (At 28.31). (Grifos meus). Deste modo − insistimos neste ponto −, evangelizar significa, pregar o Reino e Senhorio de Jesus. Por isso, é que “o Reino de Deus é o tema central da pre-

489

“Por isso, podemos dizer que a presença do Espírito no Ministério de Jesus Cristo é uma presença escatológica, que marca o cumprimento da Promessa e, também, de forma simi-lar, a chegada do Reino” (Hermisten M.P. Costa, A Pessoa e Obra do Espírito Santo, São Paulo, 2006, p. 133). 490“Se, porém, eu expulso os demônios pelo dedo de Deus, certamente, é chegado o reino de Deus sobre vós” (Lc 11.20). 491

Orígenes, Comentário de Mateus, 14.7. Apud M. Green, Evangelização na Igreja Primitiva, p. 58. 492

J. Blauw, A Natureza Missionária da Igreja, São Paulo: ASTE., 1966, p. 72.

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gação de Jesus e, por extensão, da pregação e ensino dos apóstolos”.493 Paulo quando se despede dos Presbíteros de Éfeso, declara: "Agora, eu sei que to-dos vós, em cujo meio passei pregando o reino, não vereis mais o meu rosto. Por-tanto, eu vos protesto, no dia de hoje, que estou limpo do sangue de todos; porque jamais deixei de vos anunciar todo o desígnio de Deus” (At 20.25-27). (grifos meus). Este Evangelho também é chamado de “Palavra da verdade” (Cl 1.5; Ef 1.13); “E-vangelho da salvação” (Ef 1.13); “Evangelho das insondáveis riquezas de Cristo” (Ef 3.8); “Evangelho da promessa” (At 13.32); Evangelho da esperança (Cl 1.23); “E-vangelho da paz” (Ef 6.15). Portanto, quando evangelizamos, devemos ter em mente o sentido do que esta-mos proclamando. Não estamos simplesmente vendendo um produto ou, quem sa-be, divulgando uma ideia de forma descompromissada, não; evangelizar é proclamar o Reino de Deus e, o Reino de Deus é o Reinado de Cristo, onde se evidencia o tri-unfo da Sua justiça, do Seu governo e da Sua Lei.494 Deste modo, a pregação da I-greja deverá ser caracterizada sempre pelo senso de urgência, conclamando os ho-mens ao arrependimento e fé em Jesus Cristo, o Rei Eterno. A Igreja não é o Reino; mas, é por meio dela que o Reino se revela e se efetiva; por isso, ambos são inse-paráveis.495 Olhando a “Evangelização” ensinada e praticada no Novo Testamento, podemos perceber que ela era muito mais abrangente do que hoje normalmente costumamos pensar. O que tem acontecido é que muitas vezes temos nos esquecido da mensa-gem; temos corrido tanto, temos falado tanto, temos discutido tanto... que, de repen-te, descobrimos que a mensagem foi esquecida...496 Nos distanciamos do seu signi-ficado, perdemos a dimensão de sua urgência, relevância e eficácia. Estamos ainda usando o verbo “evangelizar”, todavia ele já não diz grande coisa, porque as letras

493

Anthony A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 59. Ladd diz que “a maior parte da escatologia de Jesus, conforme registrada pelos Sinópticos, tem a ver com os eventos relacionados à vinda do Reino de Deus escatológico” (George E. Ladd, Teologia do Novo Testamento, Rio de Janeiro: JUERP., 1985, p. 184). De semelhante modo, observa Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo, Vol. I, p. 39; George E. Ladd, “Reino de Deus, Reino dos Céus”: In: NDB., III, p. 1385b; R.B. Kuiper, Evangelização Teocêntrica, p. 87-90. 494

Vejam-se: Bruce Milne, Conheça a Verdade, São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, 1987, p. 259; D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: Fiel, 1984, p. 348; John R.W. Stott, A Mensagem do Sermão do Monte, 3ª ed. São Paulo: Aliança Bíblica Universitária, 1985, p. 151; A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, p. 63-64; Karl Barth, La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 51; George E. Ladd, Reino de Deus: In: E.F. Harrison, ed. Diccionario de Teologia, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., 1985, p. 448; John R.W. Stott, O Cristão em Uma Sociedade Não Cristã, Niterói, RJ.: VINDE, (1989), p. 43. 495

Vd. Herman Ridderbos, El Pensamiento del Apóstol Pablo, Vol. II, p. 66-67; Gustaf Aulén, A Fé Cristã, São Paulo: ASTE. 1965, p. 214. John R.W. Stott, afirma: “Ser Igreja significa ser a comuni-dade do Reino, um modelo daquilo que a comunidade humana deve parecer quando submetida ao domínio divino, uma alternativa desafiadora para a sociedade secular” (O Cristão em Uma Sociedade Não Cristã, Niterói, RJ.: VINDE, (1989), p. 43). 496

Vejam-se as observações pertinentes de Billy Graham, na sua palestra, O Evangelista em um Mundo Agitado. In: J.D. Douglas, ed., O Evangelista e o Mundo Atual, São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 9-10, bem como o comentário de John R.W. Stott, O Perfil do Pregador, São Paulo: Sepal, 1989, p. 145-149.

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“E-V-A-N-G-E-L-H-O”, tem nos dias atuais pouco a ver com o significado bíblico des-ta palavra. O Evangelho tem sido muitas vezes apenas mais um “slogan cristão”, que as pessoas não conseguem entender o seu significado. S.A. Kierkegaard (1813-1855) conta uma parábola que pode servir como ilustra-ção para o que queremos dizer. Ele conta que um circo se instalou próximo de uma cidadezinha dinamarquesa. Este circo pegou fogo. O proprietário do circo vendo o perigo do fogo se alastrar e atingir a cidade, mandou o palhaço, que já estava vesti-do a caráter, pedir ajuda naquela cidade a fim de apagar o fogo, falando do perigo iminente. Inútil foi todo o esforço do palhaço para convencer os seus ouvintes. Os aldeões riam e aplaudiam o palhaço entendendo ser esta uma brilhante estratégia para fazê-los participar do espetáculo... Quanto mais o palhaço falava, gritava e cho-rava, insistindo em seu apelo, mais o povo ria e aplaudia... O fogo se propagou pelo campo seco, atingiu a cidade e esta foi destruída.497 De forma semelhante, temos nós muitas vezes apresentado uma mensagem in-compreensível aos nossos ouvintes, talvez porque ela também seja incompreensível a nós. As pessoas se acostumaram a nos ouvir brincar tanto com as coisas sagra-das, que não conseguem descobrir o sagrado em nossas brincadeiras... Assim, sem nos darmos conta, estamos compactuando com a indiferença de nossos ouvintes, que, de certa forma, estão “cansados” da palavra “Evangelho”, sem que na realida-de, nunca tenham sido ensinados a respeito do Evangelho de Cristo. O Evangelho é uma mensagem acerca de Deus – da Sua Glória e de Seus atos salvadores −; acerca do homem – do seu pecado e miséria −; acerca da salvação e da condenação condicionada à submissão ou não a Cristo como Senhor de sua vi-da.498 Esta mensagem que envolve uma decisão na História, ultrapassa a História, visto ter valor eterno. Portanto, não podemos brincar com ela, não podemos fazer testes: estamos falando de vida e morte eterna (Jo 3.16-18).499 Albert Martin apresenta uma crítica pertinente; ele diz:

“O esforço desnatural de certos pregadores para serem ‘contadores de piadas’, entre a nossa gente, constitui uma tendência que precisa acabar. A transição de um palhaço para um profeta, é uma metamorfose extre-mamente difícil”.500

Em forma de esboço, podemos observar, que “Evangelizar” nos moldes do Novo

497

Esta parábola é contada e aplicada nas obras de Harvey Cox (1929- ) (A Cidade do Homem, 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971, p. 270) e J. Ratzinger (Introdução ao Cristianismo, São Paulo: Herder, 1970, p. 7-8). Todavia a aplicação que ambos fazem é divergente entre si. E a que faço é di-ferente da de ambos. 498

Vd. J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 41-51. 499

“Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porquanto Deus enviou o seu Filho ao mundo, não pa-ra que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele. Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus” (Jo 3.16-18). 500

Albert N. Martin, O Que há de Errado com a Pregação de Hoje?, São Paulo: Fiel, (s.d.), p. 23.

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Testamento, significa Proclamar:

d) A Pregação como responsabilidade e Privilégio de todo o cris-tão: Conforme já salientamos, a pregação é uma responsabilidade inalienável e essencial de toda a Igreja.501 “Estamos salvos, não somente para que esteja-mos a salvo, mas também para que Deus nos use na salvação de outros”.502 “16 Se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois sobre mim pesa essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho! 17 Se o faço de livre vontade, tenho galardão; mas, se constrangido, é, então, a responsabilidade de despenseiro que me está confiada. 18 Nesse caso, qual é o meu galardão? É que, evangelizando, proponha, de graça, o evangelho, para não me valer do direito que ele me dá” (1Co 9.16-18). “14 E certo estou, meus irmãos, sim, eu mesmo, a vosso respeito, de que estais possuídos de bon-dade, cheios de todo o conhecimento, aptos para vos admoestardes uns aos outros. 15 Entretanto, vos escrevi em parte mais ousadamente, como para vos trazer isto de novo à memó-ria, por causa da graça que me foi outorgada por Deus, 16 para que eu seja ministro de Cristo Jesus entre os gentios, no sagrado encargo de anunciar o evangelho de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável, uma vez santificada pelo Espírito San-to” (Rm 15.14-16). “A mim, o menor de todos os santos, me foi dada esta graça de pregar aos gentios o evangelho das insondáveis riquezas de Cristo” (Ef 3.8).

e) Devemos estar preparados para defender e confirmar o Evan-gelho:

“Os crentes são chamados por Deus para desenvolver suas mentes para o propósito da guerra intelectual e o pro-cesso educacional provê um mecanis-mo chave para ajudar o cristão com-prometido que deseja obedecer a esse

mandado” – John A. Hughes.503

Devemos nos preparar para apresentar, quando necessário, uma defesa de nossa fé. Devemos saber em quem e porque cremos. Paulo, na prisão, diz aos fili- 501

“A evangelização é a inalienável responsabilidade de toda comunidade cristã, bem como de todo indivíduo crente” (J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 21). 502

D.M. Lloyd-Jones, Santificados Mediante a Verdade, São Paulo: Publicações Evangélicas Sele-cionadas (Certeza Espiritual, Vol. 3), 2006, p. 23-24. 503

John A. Hughes, Por que Educação Cristã e não Doutrinação Secular?: In: John F. MacArthur, Jr. ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 377.

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penses: “....vos trago no coração, seja nas minhas algemas, seja na defesa (a)pologi/a)504 e confirmação (bebai/wsij)505 do evangelho....” (Fp 1.7/Fp 1.16). Pedro escreve às igrejas da Dispersão dizendo que eles deveriam estar “....sempre preparados (e)/toimoj)506 para responder (a)pologi/a) a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15). Paulo no final de sua vida não deu um “salto no escuro”, antes declarou a sua i-nabalável confiança no Deus que conhecia e pelo qual dedicou a sua vida: “.... por-que sei em quem tenho crido e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele Dia” (2Tm 1.12). “6 Quanto a mim, estou sendo já ofereci-do por libação, e o tempo da minha partida é chegado. 7 Combati o bom combate, completei a carreira, guardei a fé. 8 Já agora a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, reto juiz, me dará naquele Dia; e não somente a mim, mas também a todos quantos amam a sua vinda” (2Tm 4.6-8). Paulo não fala de hipóteses ou teori-as, afirma sim a sua firme certeza na verdade de Deus. Dentro da perspectiva pós-moderna, a verdade, se existe, é inacessível; daí o a-bandono da procura da verdade e, consequentemente, a carência de ensino sobre a importância da verdade e sobre valores considerados verdadeiros. Para não cair num agnosticismo absoluto, admite-se a verdade dentro do universo singular de cada indivíduo; deste modo, a sua verdade é sua e não tem nenhum va-lor objetivo, portanto, não há nada nela de universalizante. Deste modo, de posse de minha verdade procuro vivê-la dentro das dimensões de minha subjetividade e nada mais. O educador Paul Spears observa que “o treinamento de alunos sobre como chegar à verdade pela razão é algo que já foi abandonado porque, a ideia de que alguém pode ter realmente acesso à verdade absoluta parece toli-ce”.507 Quando a verdade é considerada, tem apenas um sentido local e circunstancial: “Minha verdade”, “sua verdade”, “verdade de cada um”, “verdade para aquela época”, “verdade para aquele povo”, etc. Já observaram como no campo das ciências sociais evita-se emitir juízo de valor? Fala-se de “fenômeno”; deste modo, foge-se da questão do certo e errado; verdade e mentira. Apenas des-

504

* At 22.1; 25.16; 1Co 9.3; 2Co 7.11; Fp 1.7,16; 2Tm 4.16; 1Pe.3.15. 505

A ideia da palavra é de solidez, indicando um firme fundamento. Ela tem o sentido aqui de apre-sentar as evidências confirmadoras do Evangelho. Bebai/wsij (*Fp 1.7; Hb 6.16). Ver também: Be/baioj (* Rm 4.16; 2Co 1.7; Hb 2.2; 3.6,14; 6.19; 9.17; 2Pe 1.10,19) e Bebaio/w (*Mc 16.20; Rm 15.8; 1Co 1.6,8; 2Co 1.21; Cl 2.7; Hb 2.3; 13.9). 506

Tendo o sentido de preparação, prontidão. 507

Paul Spears, Introdução à Filosofia. In: Paul Spears, et. al. Fundamentos Bíblicos e Filosóficos da Educação, São Paulo: Associação Internacional de Escolas Cristãs-Brasil, 2004, p. 13. “Ao criar uma crise epistemológica, os questionamentos pós-modernistas rejeitam até a possibilidade da verdade, histórica ou qualquer outra” (Clyde P. Greer, Jr., Refletindo Honestamente sobre a História: In: John F. MacArthur, Jr. ed. ger. Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mun-do, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 411).

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crevo o “fenômeno”, palavra mágica, que faz-me dizer o “fato” como se manifesta dentro de minha percepção e mais nada. Atitude ingênua: como se fosse possível ter percepção sem uma gama enorme de valores que a referenciam.508 Dentro desta perspectiva, a verdade passou a ser simplesmente construída; deste modo, não há lugar para absolutos. “Os pós-modernistas rejeitam totalmente a verdade objetiva. A verdade não é uma descoberta feita a partir do mundo externo. Antes, a verdade é uma construção”.509 No entanto, as Escrituras nos falam de verdade absoluta, acessível verificável e vivenciável. A Palavra de Deus nos desafia a conhecer a verdade e a praticá-la co-mo testemunho de fé, certos de que o propósito de Deus para o homem é sempre perfeito; a Sua vontade é boa, perfeita e agradável (Rm 12.2).

Nós cremos num Deus verdadeiro, em quem temos vida: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro (a)lhqino/j), e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3).

Jesus Cristo é a verdade e o verdadeiro Deus a quem reconhecemos pela graça. Ele mesmo afirma: “Eu sou o caminho, e a verdade (a)lh/qeia), e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6). João dá testemunho da veracidade do Pai e do Filho: “Também sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendi-mento para reconhecermos o verdadeiro (a)lhqino/j); e estamos no verdadeiro (a)lhqino/j), em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro (a)lhqino/j) Deus e a vi-da eterna” (1Jo 5.20). O Espírito é a verdade, dando testemunho e nos conduzindo à verdade: “Quando vier, porém, o Espírito da verdade (a)lh/qeia), ele vos guiará a toda a verdade (a)lh/qeia); porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas que hão de vir” (Jo 16.13). “.... E o Espírito é o que dá testemu-nho, porque o Espírito é a verdade (a)lh/qeia)” (1Jo 5.6). Os caminhos de Deus são verdadeiros em si mesmos, não havendo injustiça. No Apocalipse lemos o cântico dos santos libertos por Deus “E entoavam o cântico de Moisés, servo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus, Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros (a)lhqino/j) são os teus caminhos, ó Rei das nações!” (Ap 15.3). Como há outras vozes querendo nos afastar da verdade, apresentando um cami-nho que, à primeira vista, pode nos parecer mais convidativo e tentador, devemos perseverar no caminho da verdade. Paulo recrimina o esmorecimento dos gálatas que começando a crer corretamente na graça de Deus, agora, passam a viver, como se fosse possível, pelas obras. O legalismo judaico se constituía num impedimento aos judeus cristãos: “Vós corríeis bem; quem vos impediu (e)gko/ptw) de continuar-

508

Ver Hermisten M.P. Costa, Raízes da Teologia Contemporânea, São Paulo: Cultura Cristã, 2004. 509

Gene Edward Veith, Jr., De Todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 55-56.

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des a obedecer à verdade (a)lh/qeia)?” (Gl 5.7). Os falsos mestres, privados da verdade,510 procuram desviar-nos da verdade per-vertendo os ensinamentos da Palavra. Paulo cita dois falsos mestres de seu tempo, Himeneu511 e Fileto, que, seguindo ensinamentos gnósticos, com uma linguagem corrosiva, eliminavam a esperança na ressurreição futura, pervertendo a fé de al-guns: “Além disso, a linguagem deles corrói como câncer (γάγγραινα);512 entre os quais se incluem Himeneu e Fileto. Estes se desviaram da verdade (a)lh/qeia), as-severando que a ressurreição já se realizou, e estão pervertendo (a)natre/pw = “ar-ruinar”, “virar”513) a fé a alguns” (2Tm 2.17-18). A falsa doutrina é contagiante. Paulo exorta a Tito com veemência a respeito dos insubordinados, especialmente judeus: “É preciso fazê-los calar, porque andam pervertendo (a)natre/pw) casas inteiras, en-sinando o que não devem, por torpe ganância” (Tt 1.11). Por causa dos falsos mes-tres o caminho da verdade será infamado. “Assim como, no meio do povo, surgiram falsos profetas (yeudoprofh/thj),514 assim também haverá entre vós falsos mes-tres (yeudodida/skaloj), os quais introduzirão, dissimuladamente, heresias destru-idoras, até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. E muitos seguirão as suas práticas libertinas (a)se/lgeia), e, por causa deles, será infamado (blasfhme/w)515 o caminho da ver-dade” (2Pe 2.1-2). Pedro diz que o presbítero como pastor do rebanho deve estar em condições de alimentar o seu rebanho com a Palavra e, também, saber combater aqueles que ten-tarão seduzir os fiéis com “palavras fictícias (plasto/j)” (2Pe 2.3). O falso mestre é aquele que ensina a mentira, o engano: cria imagens que nada são para corromper seus ouvintes, conduzindo-os a negar o próprio Senhor Jesus Cristo e, também, à

510

“Altercações sem fim, por homens cuja mente é pervertida e privados da verdade (a)lh/qeia), su-pondo que a piedade é fonte de lucro” (1Tm 6.5). 511

Paulo se referira a este como que alguém que naufragou na fé (1Tm 1.19-20). 512

Esta palavra só ocorre aqui em todo o Novo Testamento. É deste termo que provém palavra gan-grena. 513 A palavra é usada no sentido literal Jo 2.15: “Em tendo feito um azorrague de cordas, expulsou todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou (a)natre/pw) as mesas”. 514

Jesus Cristo já nos alertara sobre eles. Vejam-se: Mt 7.15; 24.11,24; Lc 6.26. O apóstolo João fa-laria mais tarde de sua realidade presente (1Jo 4.1). 515

O verbo Blasfhme/w, que tem o sentido de “injuriar”, “difamar”, ”insultar”, “caluniar”, “maldizer”, “falar mal”, “falar para danificar”, etc., é formado de duas palavras, Bla/yij derivada de Bla/ptw = “injuriar”, “prejudicar” (* Mc 16.18; Lc 4.35) e Fhmi/ = “falar”, “afirmar”, “anunciar”, “contar”, “dar a en-tender”. A Blasfêmia tem sempre uma conotação negativa, de “maldizer”, “caluniar”, “causar má repu-tação”, etc., contrastando com Eu)fhmi/a (“boa fama” * 2Co 6.8) e Eu)/fhmoj (“boa fama” * Fp 4.8) (Eu)/ & fh/mh). No Fragmento 177 de Demócrito, lemos: “Nem a nobre palavra encobre a má ação, nem é a boa ação prejudicada pela má palavra (Blasfhmi/a)”. Paulo diz que o mau testemu-nho dos judeus contribuía para que os gentios blasfemassem o nome de Deus (Rm 2.24, citando Is 52.5). Compare este fato com a orientação de Paulo, 1Tm 6.1; Tt 2.5. A falsa doutrina propicia a prática da blasfêmia (1Tm 6.3,4), bem como os falsos mestres (2Pe 2.1-2,10-12).

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viverem libertinamente (a)se/lgeia), ou seja, de modo dissoluto e lascivo.516 Por causa disso, o caminho do Evangelho seria caluniado, reprovado, “blasfemado”. A mensagem desses falsos mestres consiste numa corrupção do Evangelho. Plas-to/j parece ter o sentido aqui de palavras artisticamente elaboradas, moldadas, su-gestivas, porém, falsas, forjadas em seu próprio proveito, e, que por isso mesmo es-tão em oposição à verdade. Curiosamente este é o termo de onde vem a nossa pa-lavra “plástico”.517 O ensino cristão envolve arte, mas não “arte plástica” para com a verdade.

A busca da verdade pela verdade é uma característica fundamental da Igreja. Já

que cabe à Igreja o privilégio de proclamar a Palavra, ela tem de compreender as Escrituras para anunciá-la com fidelidade e vivenciá-la para proclamar com autorida-de. Por isso, a Igreja é chamada de “coluna e baluarte da verdade”, porque a ela fo-ram confiados os oráculos de Deus (Rm 3.2/1Tm 3.15). A Igreja como baluarte da verdade está amparada no fundamento que consiste na obra de Deus realizada por meio de Cristo (Mt 16.18/Ef 2.20).518 “Escrevo-te estas coisas, esperando ir ver-te em breve; para que, se eu tardar, fiques ciente de como se deve proceder na casa de Deus, que é a igreja do Deus vivo, coluna (stu=loj)519 e baluarte (* e(drai/wma) da verdade (a)lh/qeia)” (1Tm 3.14-15).

Deus Se dignou em preservar a verdade por intermédio da Igreja. Quando a Igreja

falha neste propósito ainda que a verdade não seja abalada em sua essência, ela se torna fragilizada em sua exposição e aceitação. A Igreja tem, portanto, a grande res-ponsabilidade de estudá-la, proclamá-la e vivenciá-la. A Igreja é o meio de demons-tração desta verdade (Ef 3.8-11). A nossa responsabilidade primeira é com a verda-de de Deus.520 A igreja basicamente preserva a verdade por meio do seu conhecimento, prática e ensino: Devemos conhecer a Palavra a fim de poder usá-la corretamente. A Timó-teo, Paulo recomenda: “Procura (spouda/zw)521 apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem (o)rqotome/w)522a palavra da verdade (a)lh/qeia)” (2Tm 2.15).

516

A)se/lgeia ocorre nos seguintes textos do Novo Testamento: Mt 7.22; Rm 13.23; 2Co 12.21; Gl 5.19; Ef 4.19; 1Pe 4.3; 2Pe 2.2,7,18; Jd 4. 517

A palavra grega plastiko/j é derivada do verbo pla/ssw, cujo advérbio utilizado por Pedro é plasto/j. A nossa palavra plástico vem do grego (plastiko/j) passando pelo latim (plasticus), sem-pre de forma transliterada, significando aquilo “que tem propriedade de adquirir determinadas formas sensíveis, por efeito de uma ação exterior”. 518

Ver: J. Blunck, Firme: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, Vol. II, p. 246. 519

* Gl 2.9; 1Tm 3.15; Ap 3.12; 10.1. 520

Ver: Wayne A. Mack; David Swavely, A Vida na Casa do Pai. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 17-24. 521

A ideia da palavra é de fazer todo o possível – de modo intensivo, urgente, diligente e zeloso –, para cumprir a sua tarefa. Denota uma diligência que se esforça por fazer todo o possível para alcan-çar o seu objetivo. 522

O verbo o)rqotome/w – “cortar em linha reta”, “endireitar” –, que só ocorre neste texto, é formado

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Hoje mais do que nunca somos desafiados a apresentar as razões de nossa fé. A nossa batalha repousa no campo das ideias. As ideias movem, conduzem o mundo.

f) Evangelizar e Ensinar são atividades inseparáveis e permanen-tes:523 Evangelizar significa ensinar a Palavra de Deus, usando de nossa inteligência a fim de apresentar o Evangelho de forma compreensível; por isso Paulo argumen-tava, persuadia e ensinava, usando todos os seus recursos para conduzir os seus ouvintes a Cristo (At 9.29; 17.2,17; 18.4; 19.8-11,26; 24.25; 26.28; 28.23,31). Aqui não estamos negando o que temos afirmado desde o início, que o arrependimento e fé são dons de Deus. O que queremos enfatizar neste momento, é que temos a nos-sa responsabilidade de apresentar o Evangelho de forma persuasiva, ensinando a Palavra.

por o)rqo/j (“direito”, “reto”, “certo”, “correto”) (* At 14.10; Hb 12.13) e te/mnw (“cortar”), verbo que não aparece no Novo Testamento. Na LXX o)rqotome/w é empregado em Pv 3.6 e 11.5 com o sentido de endireitar o caminho. Analogias e aplicações variadas são possíveis, tais como: a ideia de lavrar a ter-ra fazendo os sulcos em linha reta; construir uma estrada em linha reta a fim de que o viajante alcan-ce com facilidade o seu objetivo sem se desviar por atalhos; o alfaiate que corta o tecido de forma correta a fim de fazer a roupa (Paulo como fabricante de tendas estava acostumado a este serviço no que se refere ao corte dos tecidos de pelo de cabra); o pedreiro que corta a pedra de forma correta para o seu perfeito encaixe, etc. A partir de 2Tm 2.15 várias analogias são feitas, tais como: a ideia de conduzir a Palavra pelo caminho correto para atingir de modo eficaz seu objetivo, manuseá-la bem, ministrá-la conforme o seu propósito, expô-la de maneira correta, ensinar correta e diretamente a Palavra, etc. (Vejam-se, entre outros: Helmut Köster, o)rqotome/w: In: G. Friedrich; Gerhard Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, 8ª ed. Grand Rapids, Michigan: WM. B. Eerdmans Publishing Co., (reprinted) 1982, Vol. VIII, p. 111-112; Joseph H. Thayer, “Thayer’s Greek-English Lexicon of the NT,” The Master Christian Library, Verson 8.0 (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Sofware, 2000, Vol. 2, p. 270; A. Barnes, “Notes on the Bible,” The Master Christian Library, Verson 8.0 (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Sofware, 2000, Vol. 15, p. 795; Adam Clark, “Commentary the New Testa-ment,” Master Christian Library, Verson 8.0 (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Sofware, 2000, Vol. 8, p. 222-223; R. Klöber, Retidão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1983, Vol. IV, 217-219; William F. Arndt; F.W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, Chicago: University of Chicago Press, 1957, p. 584; Russel N. Champlin, O Novo Testamento Interpretado, Guaratingue-tá, SP.: A Voz Bíblica, (s.d.), Vol. 5, p. 379; John R.W. Stott, Tu, Porém, A mensgem de 2 Timóteo, São Paulo: ABU Editora, 1982, p. 59-60; J.N.D. Kelly, I e II Timóteo e Tito: introdução e comentário, São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1983, p. 170; William Hendriksen, 1 Timóteo, 2 Timóteo e Tito, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 323-324; Newport J.D. White, Second Epistle to Timothy: In: W. Robertson Nicoll, ed., The Expositor’s Greek Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), Vol. 4, p. 165; p. 798-799; R.C.H. Lenski, Commentary on the New Testament, Pe-abody, Massachusetts: Hendrickson Publishers, 1998, Vol. 10, p. 425; W.C. Taylor, Dicionário do No-vo Testamento Grego, 5ª ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1978, p. 152-153; A.T. Robertson, “Word Pictu-res in the New Testament,” The Master Christian Library, Verson 8.0 (CD-ROM), (Albany, OR: Ages Sofware, 2000, Vol. 4, p. 703; William Barclay, El Nuevo Testamento Comentado, Buenos Aires: La Aurora, 1974, Vol. 12, (2Tm 2.15-18), p. 183; John F. MacArthur, Jr., Princípios para uma Cosmovisão Bíblica: uma mensagem exclusivista para um mundo pluralista, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 49-50). 523

Vd. J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 35-36; R.B. Kuiper, El Cuerpo Glorioso de Cristo, p. 227-233; Idem., Evangelização e Soberania de Deus, p. 49-50; John R.W. Stott, Crer é Também Pensar, São Paulo: ABU., 2ª impressão, 1984, p. 45-51

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Dentro deste ponto devemos nos lembrar, que a relação entre o “Evangelizar” e o “Ensinar” é constante em diversos textos bíblicos, sendo uma das características da pregação de Jesus e dos discípulos. Deste modo, a evangelização sempre terá um caráter educativo.

“Percorria Jesus toda a Galiléia, ensinando (dida/skw) nas sinagogas, pregando o evangelho (khru/sswn to\ eu)agge/lion) do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo” (Mt 4.23).

“E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando (dida/skw) nas sina-gogas, pregando o evangelho (khru,sswn to. euvagge,lion) do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades” (Mt 9.35).

“Aconteceu que, num daqueles dias, estando Jesus a ensinar (dida/skw) o povo no templo e a evangelizar (euvaggeli,zw)....” (Lc 20.1).

“E todos os dias, no templo e de casa em casa, não cessavam de ensinar e de

pregar Jesus, o Cristo (dida,skontej kai. euvaggelizo,menoi VIhsou/n to.n cristo,n)” (At 5.42).

“Paulo e Barnabé demoraram-se em Antioquia, ensinando (dida/skw) e pregando, (eu)aggeli/zomai) com muitos outros, a palavra do Senhor” (At 15.35).

“Ora, tendo acabado Jesus de dar estas instruções a seus doze discípulos, partiu

dali a ensinar (dida/skw) e a pregar (khru,ssw) nas cidades deles” (Mt 11.1). “Pregando (khru,ssw) o reino de Deus, e, com toda a intrepidez, sem impedimento

algum, ensinava (dida/skw) as coisas referentes ao Senhor Jesus Cristo” (At 28.31). “Prega (khru,ssw) a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreen-

de, exorta com toda a longanimidade e doutrina (didach,)” (2Tm 4.2). Nunca devemos separar a evangelização da educação cristã visto que ambas caminham juntas e se completam. “Não podemos pensar na Igreja Cristã sem ensino, assim como não podemos pensar num círculo sem um centro; ensino e ‘doutrina’ fazem parte de sua verdadeira natureza”.524 O novo nascimento não é um produto acabado, antes, o início de um novo cami-nho de vida modelado pelo Espírito por meio da Palavra. Assim a educação cristã é um processo natural e sobrenatural;525compete à igreja a tarefa de promover a fé dos eleitos: “.... é somente através do ministério da Igreja que Deus gera filhos para si e os educa até que atravessem a adolescência e alcancem a matu-

524

Emil Brunner, Dogmática, São Paulo: Novo Século, 2004, Vol. 1, p. 16. 525

Perry G. Downs, Introdução à Educação Cristã: Ensino e Crescimento, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2001, p. 64-65.

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ridade”.526

g) Devemos ter consciência de que o nosso trabalho depende in-teiramente do Espírito da Graça de Deus: Sem a operação do Espírito da Graça (Hb 10.29), toda a nossa reflexão, todo o nosso esforço, todos os nossos métodos, toda a nossa oratória e capacidade de persuasão serão vãos. O poder do Evangelho está no conteúdo da Sua Mensagem, que somente é compreendido mediante a ação do Espírito, que nos capacita a en-xergar o Evangelho da Glória de Deus. Aos imaturos coríntios que disputavam para saber quem era o maior entre aque-les que lhes haviam servido, Paulo lhes mostra que todos são servos: “1 Eu, porém, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, e sim como a carnais, como a crianças em Cristo. 2 Leite vos dei a beber, não vos dei alimento sólido; porque ainda não podíeis suportá-lo. Nem ain-da agora podeis, porque ainda sois carnais. 3 Porquanto, havendo entre vós ciúmes e contendas, não é assim que sois carnais e andais se-gundo o homem? 4 Quando, pois, alguém diz: Eu sou de Paulo, e outro: Eu, de Apolo, não é evidente que andais se-gundo os homens? 5 Quem é Apolo? E quem é Paulo? Servos por meio de quem crestes, e isto conforme o Senhor concedeu a cada um. 6 Eu plantei, Apolo regou; mas o crescimento veio de Deus. 7 De modo que nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega, mas Deus, que dá o crescimen-to. 8 Ora, o que planta e o que rega são um; e cada um receberá o seu galardão, segundo o seu pró-prio trabalho. 9 Porque de Deus somos cooperadores; lavoura de Deus, edifício de Deus sois vós” (1Co 3.1-9). (Vejam-se também: Hb 10.29/1Co 1.17; 2.1-5/1Ts 1.5). J.I. Packer nos diz isto de forma contundente:

“Por mais que apresentemos o evangelho de forma clara e convincen-te, não temos qualquer esperança de convencer ou converter quem quer que seja. Poderíamos o prezado leitor e eu, mediante nossas palavras mais intensas, quebrar o poder que Satanás exerce sobre a vida de um ho-mem? Não. Poderíamos proporcionar vida aos espiritualmente mortos? Não. Poderíamos nutrir a esperança de convencer os pecadores sobre a verdade do evangelho mediante as mais pacientes explicações? Não. Poderíamos esperar levar os homens a obedecerem ao evangelho através de quaisquer palavras de exortação que porventura disséssemos? Não. Nossa maneira de evangelizar não será realista enquanto não tivermos en-frentado esse fato esmagador, permitindo que ele exerça o devido im-

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João Calvino, Gálatas, São Paulo: Paracletos, 1998, (Gl 4.26), p. 144.

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pacto sobre nós. (...) Considerada como um empreendimento humano, a evangelização é uma tarefa inútil. Em princípio não pode produzir o efeito desejado. Podemos pregar, e pregar de modo claro, fluente e atrativo; podemos falar a indivíduos da maneira mais apropriada e desafiadora; podemos organizar cultos especiais, distribuir folhetos, exibir cartazes e en-cher a terra de publicidade - mas não há a mais remota esperança de que toda essa queima de esforços será capaz de conduzir qualquer alma a Deus. A não ser que algum outro fator interfira nessa situação, nossos próprios desempenhos, todas as atividades evangelísticas estarão conde-nadas de antemão ao fracasso. Esta é a verdade, nua e crua que temos de enfrentar”.527

Finalmente, devemos nos lembrar de que Deus é o Senhor. A nós compete pre-gar, ensinar, interceder, suplicar. A oração deve ser o elemento agregador de todos os nossos atos. A oração é a declaração solene e existencial do povo de Deus, de que a sua suficiência e capacidade estão em Deus. Orar é exercitar a nossa fé na-quele que temos conhecido. A salvação, como já vimos, é um ato exclusivo de Deus: Somente a Ele pertence (Jn 2.9; 1Co 1.21; Hb 2.10; 5.9; Tg 4.12; Ap 7.10; 19.1). Que Deus nos abençoe, nos capacitando, pelo Espírito a ser testemunhas fiéis. A-mém.

Maringá, 19 de setembro de 2010. Rev. Hermisten Maia Pereira da Costa

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J.I. Packer, Evangelização e Soberania de Deus, p. 74-75.