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CULT 37 Num artigo que apareceu no Jornal do Brasil , em 23 de agosto de 1979, o imortal Tristªo de Athayde lançou esta afirmaçªo: NinguØm menos acadŒmico que Machado de Assis. Tristªo cometeu um erro, pois o autor de Quincas Borba era bem acadŒmico. Era tªo acadŒmico que JosuØ Montello, no ano de 1961, dividiu a atividade de Machado de Assis em trŒs setores: o da vida literÆria, o da vida burocrÆtica e o da presidŒncia da Academia. Ele foi o presidente da nova instituiçªo desde o dia 15 de novembro de 1896, data da primeira sessªo preparatória, atØ o dia de sua morte, em 1908. O insofismÆvel academicismo do mestre inspirou a JosuØ Montello um livro de 334 pÆginas, intitulado O presidente Machado de Assis. Como era muito boŒmio e vivia entregue às libaçıes alcoólicas, o sarcÆstico Emílio de Meneses nªo pôde entrar logo na Academia, porque Machado se opôs a esta pretensªo do autor de Os deuses em ceroulas. Segundo informa Afrânio Peixoto, no seu livro Humour , o presidente Machado de Assis mostrou aos acadŒmicos, numa casa de pasto da rua da AssemblØia, um quadro no qual Emílio aparecia com um copo de cerveja na mªo, ostentando a sua enorme papada e o seu ventre rotundo, abarrotado de Ælcool. Machado comentou, enquanto os acadŒmicos olhavam o quadro: No dia em que o tivermos, nªo serÆ mais um salªo a Academia, apenas um botequim. Daí se deduz: para Machado de Assis a Academia era uma respeitÆvel casa de escritores, e nªo um antro de boŒmios ou de elementos afastados da literatura. Em 7 de dezembro de 1897, num discurso curto, ele definiu os objetivos da instituiçªo: Nascida entre graves cuidados de ordem pœblica, a Academia Brasileira de Letras tem de ser o que sªo as associaçıes anÆlogas: uma torre de marfim, onde se acolham espíritos literÆrios, com a œnica preocupaçªo literÆria, e de onde, estendendo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto. Mas esse ideal foi desvirtuado, após a morte do grande escritor. A influŒncia da política e atØ do poder militar alterou o rosto da Academia e suas feiçıes foram perdendo o aspecto literÆrio. JÆ em 1910 ela acolheu o marechal Dantas Barreto, escritor fraco, medíocre, mas que era JosØ Veríssimo, um dos luminares da nossa crítica literÆria, recusou-se a aceitar, na qualidade de presidente interino da Academia, a candi- datura de Lauro Müller, pois o ministro nªo havia publicado, declarou o crítico, em qualquer dos gŒneros de literatura, obras de reconhecido mØrito, ou fora desses gŒneros, livro de valor literÆrio. A eleiçªo do ministro obrigou o crítico a renunciar, em carÆter irrevogÆvel, ao cargo de secretÆrio-geral da Academia Brasileira de Letras. TambØm largou, por se sentir indignado, as suas funçıes de redator da revista da Academia. Essas e outras atitudes viris de JosØ Veríssimo, conseqüŒncias de uma admirÆvel independŒncia moral, deram mais relevo ao seu apelido: JosØ Severíssimo. Os políticos continuaram a ter força na Casa de Machado de Assis. Em 1925, o senador Antônio Azeredo apresentou-se como candi- dato. Nªo foi eleito, mas logrou abiscoitar catorze votos, enquanto Hermes Fontes, poeta de talento, de inspiraçªo potente no juízo de Olavo Bilac, recebeu apenas um voto... AcadŒmico desde o ano de 1919, o escritor Humberto de Campos registrou no seu DiÆrio secreto, em 25 de setembro de 1930, que a Academia elegera outro ministro, só por interesse e nada mais: Eleiçªo de OtÆvio Mangabeira, ministro das Relaçıes Exteriores, para a vaga de Alfredo Pujol, na Academia Brasileira de Letras. Apurados 35 votos, caso œnico na história da Academia, cujos membros, em grande parte, vinham recebendo favores do ministro candi- dato: Fernando Magalhªes, AustregØsilo, Aloísio, Medeiros e Albuquerque e Rodrigo OtÆvio foram à Europa, com ajuda de custa do Itamarati; Coelho Neto foi à Argentina, como embaixador; Joªo Ribeiro e Afonso Taunay ...cem anos de farda e cifrªo Fernando Jorge Da morte de Machado de Assis à posse de Roberto Marinho, a influŒncia da política e do poder militar marcou a história da ABL Getœlio Vargas, caricatura de Belmonte Para Guilherme Figueiredo, Vargas foi um escritor cujos dedos usaram mais o charuto do que a caneta ministro da Guerra e que se tornaria, no ano seguinte, governador de Pernambuco. Dantas Barreto conseguiu ser eleito porque prometeu arrancar do governo a doaçªo do PalÆcio Monroe, para neste instalar a sede da Academia. Um escândalo abala o nosso meio cultural em 1912: Lauro Müller, outro militar, mas nascido em Santa Catarina, ministro das Relaçıes Exteriores, torna-se imortal. Lauro tinha este apelido: Raposa de espada à cinta. Os acadŒmicos o elegeram, mesmo sabendo que ele nªo havia publicado nenhum livro. Foi preciso imprimir às pressas, em papel grosso e com letras garrafais, um pequeno discurso desse teuto-brasileiro. Isso foi feito em Paris, segundo nos esclarece Medeiros de Albuquerque no livro Homens e coisas da Academia.

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CULT37

Num artigo que apareceu no Jornal doBrasil, em 23 de agosto de 1979, o �imortal� Tristãode Athayde lançou esta afirmação: �Ninguémmenos acadêmico que Machado de Assis.�

Tristão cometeu um erro, pois o autor deQuincas Borba era bem acadêmico. Era tãoacadêmico que Josué Montello, no ano de 1961,dividiu a atividade de Machado de Assis em trêssetores: o da vida literária, o da vida burocrática eo da presidência da Academia. Ele foi o presidenteda nova instituição desde o dia 15 de novembrode 1896, data da primeira sessão preparatória, atéo dia de sua morte, em 1908. O insofismávelacademicismo do mestre inspirou a JosuéMontello um livro de 334 páginas, intitulado Opresidente Machado de Assis.

Como era muito boêmio e vivia entregue às�libações alcoólicas�, o sarcástico Emílio deMeneses não pôde entrar logo na Academia,porque Machado se opôs a esta pretensão doautor de Os deuses em ceroulas. Segundo informaAfrânio Peixoto, no seu livro Humour, opresidente Machado de Assis mostrou aosacadêmicos, numa casa de pasto da rua daAssembléia, um quadro no qual Emílio apareciacom um copo de cerveja na mão, ostentando asua enorme papada e o seu ventre rotundo,abarrotado de álcool. Machado comentou,enquanto os acadêmicos olhavam o quadro: �Nodia em que o tivermos, não será mais um salão aAcademia, apenas um botequim.�

Daí se deduz: para Machado de Assis aAcademia era uma respeitável casa de escritores,e não um antro de boêmios ou de elementosafastados da literatura. Em 7 de dezembro de1897, num discurso curto, ele definiu osobjetivos da instituição:

�Nascida entre graves cuidados de ordempública, a Academia Brasileira de Letras temde ser o que são as associações análogas: uma

torre de marfim, onde se acolham espíritosliterários, com a única preocupação literária, ede onde, estendendo os olhos para todos oslados, vejam claro e quieto.�

Mas esse ideal foi desvirtuado, após a mortedo grande escritor. A influência da política e atédo poder militar alterou o rosto da Academia esuas feições foram perdendo o aspecto literário.

Já em 1910 ela acolheu o marechal DantasBarreto, escritor fraco, medíocre, mas que era

José Veríssimo, um dos luminares da nossacrítica literária, recusou-se a aceitar, na qualidadede presidente interino da Academia, a candi-datura de Lauro Müller, pois o ministro nãohavia publicado, declarou o crítico, �emqualquer dos gêneros de literatura, obras dereconhecido mérito, ou fora desses gêneros, livrode valor literário�.

A eleição do ministro obrigou o crítico arenunciar, em caráter irrevogável, ao cargo desecretário-geral da Academia Brasileira deLetras. Também largou, por se sentir indignado,as suas funções de redator da revista daAcademia. Essas e outras atitudes viris de JoséVeríssimo, conseqüências de uma admirávelindependência moral, deram mais relevo ao seuapelido: �José Severíssimo�.

Os políticos continuaram a ter força na Casade Machado de Assis. Em 1925, o senadorAntônio Azeredo apresentou-se como candi-dato. Não foi eleito, mas logrou abiscoitarcatorze votos, enquanto Hermes Fontes, poetade talento, de �inspiração potente� no juízo deOlavo Bilac, recebeu apenas um voto...

Acadêmico desde o ano de 1919, o escritorHumberto de Campos registrou no seu Diáriosecreto, em 25 de setembro de 1930, que aAcademia elegera outro ministro, só porinteresse e nada mais:

�Eleição de Otávio Mangabeira, ministrodas Relações Exteriores, para a vaga de AlfredoPujol, na Academia Brasileira de Letras.Apurados 35 votos, caso único na história daAcademia, cujos membros, em grande parte,vinham recebendo favores do ministro candi-dato: Fernando Magalhães, Austregésilo,Aloísio, Medeiros e Albuquerque e RodrigoOtávio foram à Europa, com ajuda de custa doItamarati; Coelho Neto foi à Argentina, comoembaixador; João Ribeiro e Afonso Taunay

...cem anos defarda e cifrão

Fernando Jorge

Da morte de Machado de Assis àposse de Roberto Marinho, ainfluência da política e do podermilitar marcou a história da ABLGetúlio Vargas,

caricatura de Belmonte

Para GuilhermeFigueiredo,Vargas foi �umescritor cujosdedos usarammais o charutodo que a caneta�

ministro da Guerra e que se tornaria, no anoseguinte, governador de Pernambuco. DantasBarreto conseguiu ser eleito porque prometeuarrancar do governo a doação do PalácioMonroe, para neste instalar a sede da Academia.

Um escândalo abala o nosso meio culturalem 1912: Lauro Müller, outro militar, masnascido em Santa Catarina, ministro dasRelações Exteriores, torna-se �imortal�. Laurotinha este apelido: �Raposa de espada à cinta�.Os acadêmicos o elegeram, mesmo sabendo queele não havia publicado nenhum livro. Foipreciso imprimir às pressas, em papel grosso ecom letras garrafais, um pequeno discurso desseteuto-brasileiro. Isso foi feito em Paris, segundonos esclarece Medeiros de Albuquerque no livroHomens e coisas da Academia.

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38JULHO � 1997

180.000.000 à Academia para a construção dasede e minha candidatura perturbará tudo.�

No dia 3 de agosto, o acadêmico JosuéMontello, amigo de Juscelino, recebeu cartaanônima em papel oficial, procedente de Brasília,na qual seu autor colocou estas palavras:

�Quero lhe transmitir certas impressões ecomentários feitos por alguns militares sobrea candidatura de Juscelino à Academia deLetras. Atribui-se a você a iniciativa dessacandidatura e o maior apoio que ela está tendocomo sendo uma trama sutil contra a Revolu-ção.� E no fim da carta, com o objetivo deintimidar Josué, o anônimo fez uma ameaça:�Tome cuidado, pois as conseqüências paravocê poderão ser desagradáveis.�

tiveram comissões rendosas na Biblioteca doMinistério; e é corrente que Luís Guimarãesserá promovido a embaixador e que OlegárioMariano a cônsul ou vice-cônsul em Paris.�

O cúmulo da subserviência dos �imortais�diante do poder e da vaidade dos políticos, noentanto, ocorreu em 1943, ano da posse deGetúlio na desfigurada instituição. Vargas era umditador e com o golpe de 10 de novembro de 1938havia fechado o Congresso, instituindo um regimeem que imperava a mais severa das censuras.Ninguém tinha o direito de expressar livrementeos seus pensamentos. Qualquer livro suspeitopodia ser apreendido pelos agentes do policialFilinto Müller, o chefe da Gestapo brasileira.

Guilherme Figueiredo salientou: GetúlioVargas foi �um escritor cujos dedos usaram maiso charuto do que a caneta�. Pois bem, apesardisso, vários �imortais�, como Cassiano Ricardo,Olegário Mariano e João Neves da Fontoura, naânsia de eleger o ditador, reformaram os estatutosda Academia, a fim de que ele pudesse seradmitido �por aclamação�. Aliás, o mais corretoseria dizer o seguinte: por bajulação.

Em 12 de novembro de 1946, numa confe-rência pronunciada na Faculdade Nacional deFilosofia, o poeta Manuel Bandeira reconheceuque a cinqüentona já exibia �grandes culpas noseu passado�. Mas ainda teve a coragem deadmitir: �Alegam os adversários da Academia quea grande maioria das obras premiadas por ela estãono nível ou abaixo do nível da mediocridade. Édolorosamente verdade.�

Em 6 de abril de 1969, pressionada pelainfluência do governo, pela astúcia política dogeneral Golbery do Couto e Silva, ela elegeu oministro Oscar Dias Corrêa, ministro da Justiça,para ocupar a cadeira número 28, vaga com amorte de Menotti del Picchia.

Pouco tempo depois, em 23 de abril de1970, graças à mesma influência, a Academiaaceitou o ingresso do general Lyra Tavares, ex-membro da Junta Militar que governou o Brasilna época do Ato Institucional número 1.

Juscelino Kubitschek, em junho de 1975,quis entrar na Academia, mas Golbery interferiu,comunicou ao acadêmico Adonias Filho que ogoverno desaprovava a eleição do criador deBrasília. Este anotou no seu diário:

�16 de junho. O Athayde [Austregésilo deAthayde] alega que o governo emprestou

Resumindo tudo: por causa da ação doPalácio do Planalto, das pressões oficiais, dainterferência direta do general Golbery e de outromilitar, o ministro Ney Braga, o ex-presidenteJuscelino Kubitschek não foi eleito.

A Casa de Machado de Assis, em 1975,estava sob o domínio total do governo. Bastafrisar que o presidente Geisel fez a CaixaEconômica fornecer à Academia um sólidoapoio financeiro, o qual lhe permitiu erguer oprédio de sua nova sede, o Centro Cultural doBrasil, inaugurado no dia 20 de julho de 1979.

A força do governo federal, do prestígio dosdeputados, dos senadores, dos governadores, dosministros, nunca deixou de atuar na ABL e deinfluir decisivamente no resultado das eleiçõesdessa instituição. Gustavo Capanema, porexemplo, ex-ministro, pretendeu tornar-se�imortal�, mas acabou sendo derrotado pelaescritora Dinah Silveira de Queiroz. Consumadaa derrota, ele filosofou: �Se eu tivesse mecandidatado quando era ministro, certamente jáestaria lá há muito tempo.�

É impossível negar: por ter sido ministro éque Eduardo Portella alcançou logo a �imorta-lidade�. Mal o cadáver do acadêmico Octáviode Faria havia sido enterrado, correu para lançara sua candidatura. Apesar dessa deselegânciaque chocou alguns �imortais�, entrou airoso erisonho naquela casa de macróbios, derrotandoo grande poeta Mário Quintana.

Os acadêmicos, freqüentes vezes, agemcomo políticos e não como escritores. JosuéMontello é um mestre nesse sentido. Candidatoque ele apóia sempre consegue ser eleito. Sofreusó uma derrota, quando se empenhou pelaeleição de Juscelino. Josué, envolvente ehabilidoso, foi um dos que mais trabalharampela eleição de Roberto Marinho, obtida pormaioria quase absoluta, trinta e quatro votos.Dizem as más línguas: Montello batalhou peloRoberto Marinho porque queria colaborar nojornal O Globo e ver o seu romance Os tamboresde São Luís transformado numa telenovela. Atéo presente, porém, os seus dois sonhos não sematerializaram...

Fernando Jorgeescritor e jornalista, autor de Vida e obra do plagiário Paulo

Francis (Geração Editorial) e de Vida e poesia de Olavo Bilac (T.A .

Queiroz), entre outros; atualmente, prepara a edição do livro A

Academia do fardão e da confusão (A Academia Brasileira de Letras

e os seus �imortais� mortais), a ser publicado pela Geração Editorial

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Humberto de Campos, caricatura de Romano

José Veríssimo, caricatura de J. Carlos

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