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O descentramento do homem moderno Aurélio Alves Ferreira 1 Este breve ensaio tem como objetivo apresentar e discutir as questões que considero centrais para compreendermos o modo como foi formado, formatado, engendrado o mundo moderno. Mais exatamente o modo como o homem passou, a partir desse período, a entender-se a si mesmo e conseqüentemente o mundo que o envolve. Nesse caso, tomamos como referência, para a condução desse caminho a abordagem efetivada por Ernst Cassirer, em seu livro: Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana, assim como tomamos também como referência o livro: O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das ciências humanas, de Ivan Domingues, onde ele apresenta a modernidade e por conseqüência, o que nomeia como os descentramentos do homem moderno. Nossa tentativa é percorrer o caminho traçado por esses dois autores, no que se refere à modernidade e aos principais filósofos dessa época, uma vez que nossa busca primordial é tornar claro aquilo que a leitura direta dos textos acima referenciados não foi possível. Nesse caso, é preciso ainda esclarecer que se trata de um texto ainda em construção, pois é oriundo de notas decorrentes das aulas de Filosofia II, ministradas na PUC Minas, e pode ser alterado à medida que novas leituras forem realizadas, juntamente com as críticas e sugestões posteriores. 1 Professor de Filosofia II da PUC Minas.

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O descentramento do homem moderno

Aurélio Alves Ferreira1

Este breve ensaio tem como objetivo apresentar e discutir as questões que

considero centrais para compreendermos o modo como foi formado, formatado,

engendrado o mundo moderno. Mais exatamente o modo como o homem passou, a

partir desse período, a entender-se a si mesmo e conseqüentemente o mundo que o

envolve. Nesse caso, tomamos como referência, para a condução desse caminho a

abordagem efetivada por Ernst Cassirer, em seu livro: Ensaio sobre o homem:

introdução a uma filosofia da cultura humana, assim como tomamos também como

referência o livro: O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das

ciências humanas, de Ivan Domingues, onde ele apresenta a modernidade e por

conseqüência, o que nomeia como os descentramentos do homem moderno. Nossa

tentativa é percorrer o caminho traçado por esses dois autores, no que se refere à

modernidade e aos principais filósofos dessa época, uma vez que nossa busca

primordial é tornar claro aquilo que a leitura direta dos textos acima referenciados não

foi possível. Nesse caso, é preciso ainda esclarecer que se trata de um texto ainda em

construção, pois é oriundo de notas decorrentes das aulas de Filosofia II, ministradas na

PUC Minas, e pode ser alterado à medida que novas leituras forem realizadas,

juntamente com as críticas e sugestões posteriores.

De acordo com Domingues,

A modernidade é a época em que a alma se retira do mundo das coisas e recolhe-se no mundo dos homens, bem como a época em que os homens se acreditam suficientemente fortes e poderosos, qual um novo Prometeu, se não para elevarem-se contra a divindade e se imporem aos deuses, ao menos para prescindirem de sua proteção e dispensarem seus serviços. (DOMINGUES, 1999, p. 32).

Essa época, que foi e continua sendo concebida por muitos filósofos como

moderna, tem como marca preponderante a insaciável e incansável busca pelo

desvendamento da natureza, pela superação das explicações pautadas na metafísica

grega, pela superação das explicações teológicas, em outras palavras, pelo abandono e

superação da tradição filosófica e cristã de até então. Tal projeto tinha como objetivo

1 Professor de Filosofia II da PUC Minas.

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encontrar o ponto arquimediano, a certeza primeira, que pudesse sustentar todas as

outras, uma vez que as explicações acerca da natureza, do homem, de Deus ou das

divindades, existentes até então, não eram suficientes para explicar as dúvidas do novo

contexto histórico vivido.

Assim, diante da insatisfação acerca das explicações metafísicas e teológicas

e, da sede de conhecimento e da busca de superação das ideias e teorias da tradição,

inicia-se toda uma transformação do modo de conhecer e conceber Deus, a natureza e o

próprio homem. Esse novo modo de conhecer e de explicar todas as coisas passa a ser

guiado, em uma primeira fase, pela matemática. De acordo com Cassirer, a primeira

base sólida – não apenas para o conhecimento do Universo, mas também para

proporcionar uma nova visada na direção do conhecimento do homem e até mesmo de

Deus – é exatamente aquela que foi preparada por Nicolau Copérnico, através do

heliocentrismo. Não se trata, com isso, de afirmar a veracidade ou falsidade do sistema

heliocêntrico, já que, como afirma Koestler2, apesar de todo o alvoroço e de todas as

conseqüências do sistema copernicano, seu livro revolucionário, o livro das Revoluções

das estrelas celestes, apesar de toda a fama, apresenta sérios problemas. Contudo,

afirma Koestler, os argumentos de Copérnico estão fundados na matemática, em

considerações reais e físicas. São essas considerações que o levam a afirmar que no

centro do Universo está o sol e em volta dele giram os planetas: “Mercúrio, Vênus,

Terra, Marte, Júpiter e Saturno, nessa ordem. A lua gira em torno da Terra. A aparente

revolução diária de todo o firmamento se deve à rotação da terra sobre o próprio eixo.”3

Todos estes argumentos, portanto, retomemos Cassirer, só podem ser tomados como

sólidos porque tais demonstrações são científicas, são demonstráveis através da

geometria, da aritmética, o que significa dizer, para reforçar o pensamento de Cassirer,

que a questão fundamental aqui é a novidade instrumental. É o uso de um instrumento

jamais utilizado para conhecer qualquer coisa. Que instrumento é esse? É tão somente a

matemática, ou melhor, a geometria e a aritmética. Como afirma Cassirer: “(...) pela

primeira vez, o espírito científico, no moderno sentido da palavra, entra na arena.”4

Importante perceber aqui, uma vez mais o que Cassirer quer dizer com isso: “(...) no

moderno sentido da palavra.”5 Ou seja, no sentido de que o homem moderno, os

2 KOESTLER, Arthur. O homem e o universo: como a concepção do universo se modificou através dos tempos. São Paulo: IBRASA, 1989.3 KOESTLER, 1989. p. 129.4 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 28.5 CASSIRER, 1994. p. 28.

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filósofos e cientistas modernos entendem que algo só pode ser tomado como verdadeiro

se for possível provar cientificamente, universalmente, tal verdade. O século XVII

representa, nas palavras de DOMINGUES, a consolidação da nova astronomia e a

constituição de um novo modelo científico, nesse caso, absolutamente centrado nas

matemáticas.

Este novo modelo tem seu início com Copérnico (1473-1543), com a

proposta do heliocentrismo e a física de Galileu (1564-1642). Poderíamos acrescentar

também, desde já, o pensamento de Giordano Bruno (1548-1600), acerca do “infinito” e

fundamentalmente o pensamento de Descartes (1596-1650) que insere sua antropologia

do homem-máquina. O que podemos constatar também no texto de Cassirer, onde ele

menciona outros pensadores, também fundamentais no que se refere ao pensamento

matemático. Além dos mencionados podemos citar também Pascal (1623-1662),

Espinosa (1632-1677), Leibniz (1646-1716). Todos estes filósofos fundamentaram seus

estudos no modo cartesiano de pensar e compreender a verdade nas ciências. Até

mesmo Pascal, que se posiciona como um crítico de Descartes, também ele, no que se

refere ao conhecimento objetivo das coisas simples, acaba por se render à caracterização

do que é concebido como a verdade nas ciências.

Copérnico é considerado o iniciador desta revolução porque foi ele quem

“retirou” a Terra do centro do universo e em seu lugar colocou o Sol, e, além disso,

afirmou que é a Terra que gira ao redor do Sol, não o contrário, como afirmavam seus

antecessores. Tratava-se de uma importante revolução porque até aquele momento havia

a mais clara certeza de que a Terra não só era o centro do universo como também, em

uma perspectiva religiosa e até mesmo filosófica, o homem era concebido como um ser

privilegiado, pois compreendia que todas as coisas encontram-se, ao mesmo tempo, ao

seu dispor, criadas por Deus, para o seu benefício. Porém, este mesmo homem que se

concebia como filho privilegiado de Deus, a sua imagem e semelhança, encontrava-se,

paradoxalmente, em um mundo fechado, finito, cheio de mitos, de superstições, de

monstros.

Como afirma Kuhn, apud REALE:

Homens que acreditavam que sua morada terrestre fosse apenas um planeta, girando cegamente em torno de uma dentre bilhões de estrelas, começavam a avaliar a sua posição no esquema cósmico de modo bem diferente dos seus antecessores, que viam a Terra como o único centro focal da criação divina. (REALE, 1990, p. 212).

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Ao colocar a Astronomia em movimento, Copérnico, com um único golpe,

impulsiona a ciência e cientistas como Galileu, Tycho Brahe, Kepler, dentre outros, em

busca da confirmação do seu sistema e ao mesmo tempo possibilita uma impressionante

corrida em direção a novas descobertas. “Mundo novo, homem novo, ciência nova, os

tempos modernos são o ponto de não retorno do problema do homem e da reflexão

antropológica.” (DOMINGUES, 1999, p. 32). De acordo com Cassirer, o sistema

copernicano se apresenta como a primeira base sólida e segura para novos estudos e

novas descobertas antropológicas. O que está em questão aqui, é que, se toda a tradição

do pensamento ocidental tornou-se desacreditada e se, ao mesmo tempo, Copérnico

apresenta um sistema matemático, um sistema dotado de uma característica ou de

características passíveis de comprovação, então, esse mesmo sistema não poderia

mesmo funcionar apenas para justificar ou fundamentar os movimentos naturais e/ou a

peculiaridade do “novo” Universo. O que está em questão é inclusive o homem porque

todas as vezes que o homem se lança em busca do autoconhecimento, ele próprio só o

faz, a partir do momento em que ele mesmo adquire alguma clareza quanto ao lugar em

que ele se encontra no Universo. Ou seja, para qualquer investigação acerca do homem,

faz-se necessário descobrir também, antes de qualquer coisa, qual é a sua posição, qual

é o seu lugar nessa nova cosmologia em evidência.

Copérnico é quem instaura o primeiro descentramento do homem, quando

este deixa de ser, juntamente com a Terra, o centro do universo. As conseqüências

desse descentramento são constatadas, por exemplo, no pensamento de Galileu, que

toma a matemática como a principal forma de ler, estudar, investigar e compreender a

natureza. Já que, para ele, a natureza pode ser desvendada através de caracteres

matemáticos, ou seja, é possível conhecer a natureza através de retas, retângulos,

círculos, triângulos, enfim, a natureza será possível de ser desvendada e desmistificada,

conhecida, através da ciência, e não pode sê-lo através da religião. Então, para Galileu,

o modo como se encontra o céu, a distância entre o céu e a terra; a distância entre uma

região e outra; as leis responsáveis pelo movimento da Terra, de todos os astros, enfim,

todas estas explicações e investigações acerca da natureza são possíveis de serem

realizadas e provadas pela ciência matemática, uma vez que ela é a única que tem a

possibilidade de medir, de mensurar, de calcular movimentos, distâncias, revoluções,

transformações de toda a natureza.

Para Galileu, se a busca do homem é por conhecer a natureza, então, só há

uma saída: realizar uma investigação científica, guiada pela matemática, pois os

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elementos da natureza são possíveis de serem conhecidos através da mensuração dos

seus elementos.

Onde o homem se mostra como um ser independente, uma vez que passa a ser

guiado pela ciência, logo independente, livre das amarras metafísico-religiosas e

capaz de engendrar instrumentos capazes de verificar transformações geológicas,

fisiológicas e demais transformações e movimentos em todas as instâncias da

ntureza.

A natureza é reduzida a seus elementos mensuráveis e sua explicação se dá

através da descoberta das leis que a governam;

A linguagem da natureza é expressa através do número e da medida;

As causas finais já não explicam os fenômenos naturais;

É a época em que o conhecimento acerca da natureza e do homem torna-se um

problema a ser investigado pela ciência;

Do mesmo modo que Galileu investe na matemática para conhecer a

natureza, Descartes empreende todas as suas forças, num primeiro momento, em busca

de entender a característica fundamental do homem. Nesse caso, a busca de Descartes,

tem como propósito encontrar um ponto que fosse firme o suficiente para sustentar

todas as suas afirmações e descobertas posteriores nas ciências, então, movido por este

desejo, pela tarefa de mostrar de uma vez por todas, qual é o ponto arquimediano capaz

de sustentar toda e qualquer verdade científica, Descartes acaba por “descobrir", depois

de guiar-se pelo método da dúvida hiperbólica, que o ponto firme, tão buscado,

encontra-se no próprio homem. Ou seja, a certeza indubitável é aquela que caracteriza o

homem como ser pensante. Na verdade, que caracteriza a “coisa pensante”.

Eu, eu sou, eu, eu existo, isto é certo. Mas, por quanto tempo? Ora, enquanto penso, pois talvez pudesse ocorrer também que, se eu já não tivesse nenhum pensamento, deixasse totalmente de ser. Agora, não admito nada que não seja necessariamente verdadeiro: sou, portanto, precisamente, só coisa pensante, isto é, mente ou ânimo ou intelecto ou razão, vocábulos cuja significação eu antes ignorava. Sou, porém, uma coisa verdadeira e verdadeiramente existente. Mas, qual coisa? Já disse: coisa pensante. (DESCARTES, 2004, p. 27)

A afirmação de Descartes: “eu sou uma coisa pensante”, é a afirmação que

determina o homem, por um lado, como coisa. Nesse caso, esta coisa assim

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caracterizada tem exatamente as mesmas características de uma coisa qualquer. Que

funciona tal como qualquer outra coisa. Mais exatamente como uma máquina, para citar

novamente Descartes, tal como a máquina de um relógio. Todos os órgãos desta

máquina, assim como todos os elementos da natureza, o grande universo, todos os astros

e estrelas, todos de algum modo conectados funcionam perfeitamente bem, tal e qual

uma grande máquina em perfeitas condições de funcionamento. Porém, diferentemente

das outras máquinas, o homem é uma máquina que pensa. Esta é sua característica

fundamental, é o que o torna ao mesmo tempo um ser superior, pois é o único que tem a

consciência de que ele mesmo sabe de si. Ele mesmo pode conhecer a si mesmo, como

máquina, o modo como esta máquina funciona e pode também conhecer o

funcionamento das outras máquinas. Pode inclusive, a partir do conhecimento, dominar

as outras máquinas.

A um tempo efeito e causa deste processo, uma scientia nova vê-se assim nascer, profundamente associada com a técnica, por um lado, e algo estranha ao ideal contemplativo da antiguidade clássica, por outro. Segundo Descartes e Bacon, o objetivo das ciências torna-se a partir de agora oferecer os meios técnicos para que o homem se converta finalmente em senhor e possuidor da natureza. (DOMINGUES, 1999, p. 32)

A modernidade é a época em que prevalece um conhecimento do homem

pautado no homem;

O modo de conhecer também muda. A reflexão/contemplação em torno do

homem, a partir de Descartes, passa a ser guiada pela antropologia do homem-

máquina, não mais pelo homem interior de Sócrates, nem pelo homem

pecaminoso da Idade Média;

Esta nova ciência tem como meta a instauração de uma ciência universal

fundada no modelo de racionalização matemática;

É a partir dessa racionalização que se inicia também toda uma busca pela ordem

e medida (...) “do universo físico ao mundo moral, social e político.”

É importante destacar que ao mesmo tempo em que se inicia uma revolução

científica, instauram-se também outras mudanças não menos importantes, para a

completa transformação da modernidade;

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Tais mudanças ocorrem no plano econômico, cultural e político. Em primeiro

lugar, instaura-se uma alteração religiosa, A Reforma Protestante (1517), a

Expansão do capital comercial, a Descoberta da América;

Esta ciência nasce com uma profunda associação com a técnica e uma forte

distância do ideal contemplativo da antiguidade clássica;

Diante de tantas transformações, em um primeiro momento, ocorre uma crise

intelectual, um sentimento de perplexidade e mesmo de temor e insegurança em face do

novo cosmos, pois não se trata mesmo de mudanças simples, já que de um mundo

fechado, o homem passa a viver em um universo infinito e ao mesmo tempo deixa de

ser o filho privilegiado. Este novo homem precisa guiar-se por novas idéias, novos

ideais, novas pretensões, precisa enfim, construir um novo mundo.

Dois importantes pensadores, críticos desta época são Pascal (1623-1662) e

Montaigne (1533-1592). Dentre as críticas de Pascal, destacarei apenas a que mais nos

interessa para o momento. Então, para Pascal, é um grande absurdo pensar que a

matemática possa explicar o homem e também, por conseqüência, Deus. Para Pascal,

que é um grande matemático, depois de inúmeras pesquisas matemáticas, descobre que

esta ciência pode conhecer apenas as coisas simples. O que ela pode conhecer é a

constituição dos mais diversos objetos e elementos da natureza, do universo, enfim,

através da geometria e da aritmética é possível medir, mensurar as diversas coisas do

mundo natural, porém, o homem só pode ser abordado, mesmo assim por aproximação,

através da religião, uma vez que o homem é cheio de contradições e mistérios, e sua

natureza é muito diferente daquela que compõe as coisas naturais. As coisas naturais são

possíveis de serem conhecidas porque o que lhes ocorre está sempre de acordo com a

imutabilidade de sua natureza. Assim, por exemplo, do mesmo modo que agia uma

formiga, uma abelha, um castor, um urso, há centenas de anos, ele ainda hoje continua a

fazer do mesmo modo. Assim como uma árvore, uma rocha, um vulcão, o oceano, os

rios, os ventos, a chuva, tudo isso é possível de ser conhecido porque seus elementos

constitutivos e suas transformações são sempre possíveis de serem detectados e

explicados. Mesmo quando surge algo novo em cada contexto, podemos conhecer cada

fenômeno e mais uma vez formular e reformular o próprio conhecimento que envolve a

coisa investigada, o que não ocorre nem com o homem, nem com Deus. Deus é obscuro,

contraditório, misterioso e só através da religião é possível chegar até Ele. Só a religião

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poderá, através da fé, guiar o homem em direção a si mesmo e a Deus, porque também

ela é misteriosa e obscura tal como Deus que a criou.

Passado o susto, o medo do novo, a humanidade se refaz e confirma a aposta no

novo projeto das ciências universais, da nova cosmologia.

O século XVII então imprime, com muito otimismo, uma grande força à

racionalidade e surgem grandes pensadores em busca de novas descobertas

guiadas pela racionalidade matemática;

É o que ocorre com Galileu, através da Física; com Descartes, através da

matemática; com Leibniz, através do cálculo infinitesimal; com Espinosa,

através da Ética ao modo dos geômetras.

O espírito científico moderno, com isso, coloca em nova perspectiva a questão

antropológica. A pergunta: “o que é o homem?” Passa a ter como parâmetros:

1) o modelo da Física/matemática (pensadas por Galileu e Descartes);

2) a busca pela teorização com capacidade de explicar a natureza humana (Hobbes,

Locke, Montesquieu, Rousseau são apenas alguns exemplos de pensadores que

guiaram suas pesquisas nessa direção);

3) a consciência e a liberdade são vistas como barreiras que separam o homem da

natureza. (a consciência religiosa e mesmo a liberdade pensada ao modo dos

antigos gregos e medievais, que era vista como valor);

4) a separação entre ciência e moral. A estratégia a ser usada é a mesma das

ciências naturais. (para percebermos esta questão, basta pensar no modo como

Hobbes pensa os contratualistas pensaram a constituição da sociedade e do

Estado, que só ocorre com a criação de um Contrato social).

A sociedade moderna funda novos fenômenos, dos quais citaremos apenas

alguns:

1) O desenvolvimento da divisão do trabalho com base na associação

homem/máquina;

2) O surgimento de uma sociedade de mercado;

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3) O processo crescente de industrialização e separação entre a natureza e a

sociedade, ao mesmo tempo em que a natureza se transforma em fonte de

riqueza;

4) O surgimento do Estado Nacional centralizado;

5) A Reforma Protestante que cinde ao meio a unidade da fé cristã;

6) A secularização da cultura e a racionalização da técnica.

todos esses fenômenos foram possíveis em decorrência da nova concepção de

homem, de uma nova concepção de sociedade e de história. O que encontra-se

de comum acordo com o paradigma da racionalidade matemática que imperou

em todo o século XVII. Nesse caso, é importante destacar mais uma vez, que as

ciências humanas desta época conduziam, a exemplo de Descartes, suas

investigações acerca do homem, do mesmo modo, ou tendo como parâmetro, os

métodos utilizados para conhecer a natureza, ou seja, a partir da matemática.

enquanto no século XVII, prevalece a matemática, ao modo do cartesianismo

(quer dizer: ao modo de Descartes), em busca da pureza, da clareza e da

distinção, a partir do século XVIII, a Física newtoniana se torna o paradigma;

Isaac Newton (1643-1727) é o responsável por inserir um novo paradigma

na modernidade, não mais o conhecimento guiado pelo pensamento puro cartesiano,

pela pura racionalidade, em vez disso, acresce-se ao pensamento racional, a observação

experimental. O que não implica em dizer que houve, com isso, um abandono das

teorias e pensamentos do século XVII, no entanto, podemos dizer também, a partir de

meados do século XVIII, a física experimental de Newton ganha terreno e imprime uma

nova forma de conhecer e conceber a natureza e o próprio homem. A partir do século

XVIII,

Uma física agora dissociada da metafísica e algo heterogênea às

matemáticas, vale dizer, que é empírica antes de ser uma lógica e uma

axiomática e que, portanto, à diferença de Descartes, prefere as notas

da observação e da experiência às evidências do pensamento puro.

Seu modelo é a física experimental de Newton. (DOMINGUES, 1999,

p. 37).

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O empirismo então é o modelo que passa a imperar e a conduzir as novas

descobertas. A perspectiva empirista diferencia-se bastante do racionalismo

principalmente pela origem do conhecimento. Se para Descartes, o conhecimento tem

origem no pensamento, que é racional e puro, ou seja, é completamente independente da

experiência sensível, para os empiristas, Locke (1632-1704) e Hume (1711-1776), o que

me possibilita conhecer algo é a experiência. Em Locke, por exemplo, o conhecimento

não é inato, uma vez que a mente é vazia em seu nascimento, é tal e qual uma folha em

branco. Para Hume, as idéias que formamos das coisas só são possíveis porque antes das

idéias, temos acesso às coisas pela impressão que temos delas, ou seja, pelo modo como

nós vimos, tocamos, cheiramos tais coisas. Não o contrário, como pretendiam os

racionalistas.

Então, para Domingues, o que marca esta segunda fase da Modernidade é

exatamente este novo modo de perceber o homem e a natureza, que nesse caso, passa a

ser preponderantemente a perspectiva empirista. Assim, o que me possibilita conhecer o

homem, sua natureza, sua especificidade é exatamente aquilo que consigo perceber

através da observação e da experimentação ou indução empírica. Tal método serve não

apenas para conhecer o homem, mas também toda a natureza.

Tal será o esforço de um Locke, por exemplo, no plano da política, para quem a sociedade não deve ser mais compreendida como um todo racional que preexiste às suas partes, à imagem do cosmos, ou como uma réplica da cidade de Deus, a exemplo de Santo Agostinho; mas como uma comunidade de indivíduos em estado de natureza que, portadores de um instinto social, decidem através de um pacto (contrato) viver em sociedade – a sociedade política – e criam o corpus de suas leis e instituições. (DOMINGUES, 1999, p. 38).

O mesmo procedimento de Locke, Smith adota na economia, que segundo ele,

do mesmo modo que os indivíduos, em estado de natureza são guiados pelo

instinto de sobrevivência, com a criação do mercado, os indivíduos são guiados

pelo instinto de poupança, pela busca de comprar, vender e de ampliar seus

bens;

Nas ciências humanas, os fatos humanos e sociais são transformados em coisas e

analisados como tais, ou seja, caberia ao cientista estudar os fatos com a mais

absoluta neutralidade;

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Desaparece a pretensão em descobrir a essência última de cada coisa, ou

substância, pois o que há é o fenômeno e cabe ao cientista, através da

observação e experimentação, descobrir o que é propriamente o fenômeno.

Esvaziada das essências, a natureza humana também deve ser analisada a partir das notas da observação e da experiência. Porém, sem espontaneidade, sem intimidade e sem nenhuma unidade substancial, a alma não se oferece à inspeção interna, mas à percepção externa, e a morada do seu ser não é o Eu, mas o mundo e o espetáculo de sua manifestação: o fenômeno. Com isso, o que o espírito positivo [científico] nos oferece são sínteses de exterioridade: ao lado do homem-máquina de La Mettrie [1709-1751], há o homo politicus de Locke e Montesquieu [1689-1755] e o homo oeconomicus de Smith [1723-1790]. (DOMINGUES, 1999, p. 39)

Tais descobertas, ou melhor, tais definições, em vez de libertar de uma vez

por todas o homem e guiá-lo de forma segura, no sentido de encontrar uma

fundamentação suficientemente forte de modo a poder garantir uma explicação sobre si

mesmo, mais uma vez sua alma está perdida e sem compreender muito bem para onde

se deve guiar.

É importante lembrar que a revolução copernicana ainda é a responsável por

toda esta movimentação das ciências e do próprio homem. Por isso, mais uma vez, é

importante lembrar, que tudo isso ainda é apenas o primeiro descentramento do

homem.

Ocorre, no entanto, que as conseqüências do pensamento matemático,

juntamente com o pensamento empírico, que por sua vez foram adotados para

desvendar os segredos do homem e da natureza, não serviram para resolver os

problemas e os questionamentos do homem moderno, nem mesmo do homem do

período mais “avançado”, o período posterior às grandes revoluções modernas. Na

verdade, seja a Revolução Industrial, a Revolução Francesa e todas as transformações

da ordem política, econômica, cultural e social, acabaram por transformar o homem

moderno em um ser vazio, dados os esvaziamentos dos valores antigos e as explicações

quase que tão somente guiadas pelo pensamento racionalista-idealista. Tal vazio se deu

porque as explicações, sejam elas guiadas pelo racionalismo, sejam pelo empirismo ou

mesmo pelo criticismo já não eram mais suficientes para explicar fenômenos como a

desigualdade social, os conflitos sociais, as novas doenças, as novas perguntas da

ciência e até mesmo algumas das antigas afirmações filosóficas e teológicas

continuaram perseguindo o homem moderno.

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A antropologia do homem-máquina, ao privilegiar os mecanismos invariáveis que regulam as coisas humanas (as leis) (...) era solidária de uma visão estática demais do homem e da sociedade, e abandonava ao devir um sem-número de fatos e acontecimentos, tidos como sem explicação ou simplesmente atribuindo-a ao acaso. (DOMINGUES, 1999, p. 39)

No entanto, o homem moderno já não aceita mais explicações fundadas no

acaso, a idéia de que era preciso dar um sentido, ou encontrar um sentido para a vida em

sociedade, para a vida individual, enfim, o homem moderno permanece com seus

anseios e dúvidas acerca de todo aquele mundo e contexto vividos. Além disso, percebe

também que algo ainda não havia sido pensado, nem sido questionado. “Demais, marco

vazio das coisas, o tempo era uma variável espacial antes de ser temporal, o lugar onde

elas duram e acontecem e não o índice ou o modo de ser das coisas.” (DOMINGUES,

1999, p. 39). É a partir daí, do questionamento acerca do tempo, que inicia-se uma nova

viragem, o homem moderno inicia a partir de pensadores como Darwin (1809-1882),

Marx (1818-1883), Dilthey (1833-1911) e Bopp (1840-1887), uma busca da inserção da

história na ciência e esta passa a ser um novo paradigma para pensar o homem.

Como nem a matemática, nem a física experimental foram suficientes para

uma fundamentação última para os novos questionamentos antropológicos, então, as

pesquisas, a partir de Darwin, passaram a ser guiadas por uma aproximação com a

história. É importante destacar que com Darwin, o que está no centro das atenções é a

Biologia, pois é através da pesquisa fundada na Biologia que Darwin elabora sua teoria

da evolução das espécies, mas de modo algum, a história, ou ainda melhor, o tempo,

pode ser dispensado desta reflexão, uma vez que a “evolução das espécies”, as

transformações naturais, só podem ser percebidas a partir do tempo. É neste sentido que

Cassirer e também Domingues concordam que história é incorporada à ciência, ou

melhor, para continuarmos pensando em Darwin: história é incorporada à biologia.

Domingues afirma ainda que ocorre uma incorporação múltipla, pois se por um lado a

história é incorporada à ciência com o objetivo de se poder explicar os fatos; os

encadeamentos dos acontecimentos; há sempre uma razão para que tal evento ocorra de

modo tal ou tal, então, na verdade os fatos não podem ser tomados tão somente em sua

frieza fatual, como se tivessem acontecido por puro acaso; por outro lado, em um

segundo momento, a ciência também é incorporada à história. Como já dissemos acima,

o primeiro exemplo se deu com Darwin.

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O impacto da obra de Darwin foi extremamente profundo, do mesmo peso da astronomia de Copérnico: se o homem já tinha sido antes descentrado do universo, ele vê-se agora descentrado da própria natureza e converte-se num animal qualquer. (DOMINGUES, 1999, p. 41).

De acordo com Cassirer, apenas para seguirmos o mesmo fio condutor, a

partir do momento em que Darwin lança A origem das espécies, “(...) o verdadeiro

caráter da filosofia antropológica parece ter sido fixado de uma vez por todas. Após

inúmeras tentativas infrutíferas, a filosofia do homem está finalmente em terreno

firme.”6 Trata-se, em outras palavras, de uma explicação fundada em algo ainda mais

resistente, o que não podemos entender que há um abandono da primeiro instrumento

moderno de investigação, pois o método matemático cartesiano não deixa de ser o

condutor dessa nova investigação, mas agora, há um acréscimo de mais dois

instrumentos, isto é, da biologia e também da história.

Ao mesmo tempo que a teoria de Darwin serviu como modelo de

cientificidade – não há nenhuma dúvida que também ela recebeu críticas de todos os

lados, uma vez que alterou todo o pensamento acerca da origem, não apenas do homem,

mas de todas as espécies animais – ela serviu também para aprofundar ainda mais as

justificativas acerca da desigualdade social. Surge, por exemplo, o darwinismo social,

sob a influência do modelo proposto por Darwin, porém, aplicado à sociedade, ao

homem, ao trabalhador, ao capitalista. Nesse caso, a utilização dessa teoria tinha como

objetivo ideológico, pois desse modo, pretendia-se justificar, naturalizar a condição dos

desgraçados, miseráveis, pobres e desse modo, tal argumentação serviu para afirmar que

era natural haver na sociedade pessoas mais adaptadas ao sistema, enquanto outras não

conseguiriam mesmo se adaptar, e desse modo reforçavam que tais acontecimentos

eram normais e que assim como ocorre na natureza, ocorre também na sociedade. Tais

coisas, argumentavam, são saudáveis para todo o sistema, uma vez que só poderá

sobreviver mesmo, aquele que tiver maior potencial, maior propensão à competição e

que melhor conseguir se destacar, tal e qual a seleção natural das espécies.

Darwin foi, portanto, o responsável pelo segundo descentramento do

homem, pois com isso ele mais uma vez retira o homem do centro, desta vez, ele é

“retirado” do centro da natureza, ou seja, a partir de Darwin o homem não mais é

concebido como o animal superior, como o mais desenvolvido e, portanto, dominador

6 CASSIRER, 1994. p. 35.

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da natureza. O animal racional, a coisa pensante dá lugar a outra concepção. Em vez

disso, o homem é concebido como um animal qualquer, no sentido de ser dotado das

mesmas condições físicas dos demais seres vivos e como tal apenas permanecerá na

Terra se continuamente conseguir evoluir e se adaptar. Para Cassirer, o pensamento de

Darwin, foi profundamente determinante para a modernidade uma vez que este

pensamento alterou o modo de pensar e de investigar o fenômeno da vida e

conseqüentemente o próprio homem. Trata-se da inserção da ideia de que o

conhecimento da vida orgânica simples é suficiente para que se possa projetar o

entendimento das transformações nos organismos mais complexos e complicados e

desse modo conhecer toda espécie de vida, inclusive a do homem desde a sua origem.

A questão é que tais explicações também não foram suficientes, nem mesmo

foram aceitas como verdadeiras, para aquele homem do século XIX. A percepção

surgida naquele momento foi a de que cabia às ciências humanas, encontrar seus

próprios parâmetros de investigação uma vez que seu objeto, o homem, era bastante

diferente tanto daqueles estudados pela matemática, como os estudados pela física e por

última pela biologia. Um dos resultados a que se chegou foi apresentado por Dilthey

(1833-1911), quando ele entendeu que deveria haver uma separação das investigações

em duas áreas distintas. De um lado, as ciências da natureza, que deveriam cuidar da

própria natureza, da descoberta do seu funcionamento através de ciências como a

matemática, a física, a biologia, dentre outras. De outro lado, encontram-se as ciências

hermenêuticas ou históricas, que deveriam cuidar das investigações acerca do humano,

a partir de outro modelo de cientificidade, diferente daqueles utilizados pelas ciências

naturais, mas mais do que isso, o método de investigação das ciências hermenêuticas

deveria ser o método da compreensão o qual não pode dispensar as questões valorativas

e finalistas.

Com efeito, ao estabelecer a especificidade das ciências humanas,

Dilthey de certa forma reabilita tacitamente a velha natureza humana,

falando-nos da alma vital (vida), da consciência e de seu fundo

intuicionista (a entropatia ou a intuição simpática do vivido). É ela que

em última análise explicaria a própria especificidade dos fenômenos

humanos e sociais e, assim, das ciências hermenêuticas em relação às

ciências naturais. (DOMINGUES, 1999, p. 42).

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Apesar do avanço, e da nova “libertação” proposta por Dilthey, o que ele faz

através da fragmentação, ou simplesmente diferenciação e classificação das ciências em

duas áreas distintas, ainda não é suficiente para responder às questões dos filósofos e

cientistas do século XIX. A questão acerca da característica fundamental da alma ainda

persiste. As dúvidas pertinentes à particularidade constituinte, unificadora do próprio

homem ainda continua em aberto e pensadores como Hegel (1770-1831), Marx,

Nietzsche, mais uma vez Dilthey e Freud continuam em busca de uma compreensão

mais completa acerca desse princípio que possa explicar o que é que une espírito, vida,

vontade e desejo.

A nova antropologia não mais se atém às características do homem-máquina

para compreender o homem. A nova proposta, que parte das dúvidas e questionamentos

referidos acima, passa a ser guiada por uma perspectiva história, nesse caso, funda-se aí

uma antropologia do homem-histórico e nesse caso, não se atém puramente à história

para compreender o homem.

Eis os quadros dessas antropologias do homem histórico que em suas diferentes variantes – filosofia da vida, da vontade, da práxis etc – substituem no século XIX a antropologia do homem-máquina, falando-nos do homem como ser de carência e de desejo, do homem como ser de artifício e de invenção, do homem como ser lacunar e com o ego barrado e a alma decaída no tempo, e buscando nas potências do tempo (...) o princípio interior do ser e a lei do seu devir. (DOMINGUES, 1999, p. 42).

O novo quadro de compreensão ao qual foi colocada a pesquisa sobre o

homem, como diz Domingues, é também o que o impulsiona duplamente, para fora do

centro. Em primeiro lugar com Marx e em seguida com Freud.

É fundamental lembrar que persiste a ideia de que o homem é um ser

racional, ao modo de Descartes, e que como tal, é um ser consciente e conduzido por

um pensamento pautado no eu. Esta característica da subjetividade é pensada também

na política, seja com Maquiavel, Hobbes, Locke, para citar apenas alguns filósofos. Mas

é também pensado desse modo na religião, onde o homem pode evitar cair na perdição,

no pecado – se conscientemente e em decorrência do auto-conhecimento e por

conseqüência, ao conhecer, conscientemente, suas forças e fraquezas, inclusive para

pensarmos em Sócrates, também Agostinho pensa de modo parecido – esta condução,

então, se for guiada desse modo, pode levar o homem à libertação, ou à salvação, ou a

agir corretamente se compreender, conscientemente, qual é a melhor forma de agir.

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Ocorre, no entanto, em primeiro lugar, que nem sempre o homem,

subjetivamente, guiado pelo eu cartesiano, tem condição de agir diante da luta de

classes que sempre existiu.

A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história da

luta de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e

servo, mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos,

sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, envolvidos

numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou

sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a

sociedade, ou com o declínio comum das classes em luta. (MARX,

2004, 45).

Mais uma vez então, o homem perde o seu centro, de uma só vez, tanto da

história como da sociedade e em seu lugar, Marx coloca o coletivo como a parte central

da sociedade. Não se trata mais, como mostra Marx, de tomar o homem,

individualmente, como aquele que depende unicamente de si para ultrapassar as

barreiras da desigualdade econômica, social, cultural. O indivíduo, tão propalado e

defendido pelo Liberalismo é algo que precisa ser reprovado, negado, assim como a

competição e a defesa pura e simples do que é meu. Em vez disso, a defesa fundamental

precisa guiar-se na direção do coletivo. É nesse sentido que Marx retira o homem do

centro e em seu lugar coloca o coletivo, a sociedade. Não se trata mais de uma

determinação da história pelo indivíduo que conscientemente a transforma. Com Marx,

esta transformação só ocorre porque há uma luta que é histórica e social, coletiva, é uma

luta de classes. Mais ainda, o que move o homem não é a consciência, nem a vontade,

mas o modo de produção (escravista, feudal, capitalista, socialista), que se torna

preponderante e determinante das ações humanas, em toda a história da humanidade.

Freud é quem dá o último golpe, quando ele mostra que é o inconsciente e

não a consciência que, na maior parte das vezes, nos guia e dirige. O último

descentramento ocorre então, quando o homem é descentrado de si mesmo. Ou seja,

quando a consciência ou a razão deixa de ser o determinante na construção do ser do

homem. Domingues afirma que Freud:

(...) descentra a consciência do indivíduo, substituindo-a pelo inconsciente, e desloca nosso centro para um outro lugar, não mais a

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ordem da razão, mas a do desejo, energia difusa que age malgrado nós e se furta às nossas mais firmes intenções de barrá-la ou de controlá-la. (DOMINGUES, 1999, p. 43.)

O grande ganho dos estudos e conclusões aos quais chegaram Marx e Freud,

para Domingues, foi principalmente o fato de estes filósofos terem se utilizado do

método hipotético-dedutivo, tal como utilizado na física experimental newtoniana,

porém, de modo novo e a partir de novos elementos, para analisar, compreender,

investigar a vida psíquica e social.

Por ora não farei uma conclusão porque pretendo ouvir as sugestões, críticas

e também pretendo continuar esta investigação...por ora é só...

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura

humana. São Paulo: Marins Fontes, 2005.

DESCARTES, René. Meditações sobre filosofia primeira. São Paulo: Editora Unicamp,

2004.

DOMINGUES, Ivan. O grau zero do conhecimento: o problema da fundamentação das

ciências humanas. São Paulo: Loyola, 1999.

KOESTLER, Arthur. O homem e o universo: como a concepção do universo se

modificou através dos tempos. 2ª ed. São Paulo: IBRASA, 1989.

MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret, 2004.

REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: do humanismo a Kant.

Volume 2. São Paulo: Edições Paulinas.