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    ARTIGO

    A entrada da Sociologia na cena do crime:

    uma breve reviso literria

    Sintia Soares Helpes1

    Resumo

    O presente trabalho executa uma breve exposio e anlise das principais teorias sociolgicasque contriburam para os estudos sobre criminalidade. Para isso, abordamos autores do sculoXIX, XX e XXI, que elaboraram teorias e estudos sociolgicos sobre este tema. Percebemosque tais contribuies foram muito relevantes, porm, este ainda um tema que demanda

    contnuos esforos intelectuais.

    Palavras-chave: Criminalidade. Teorias Sociolgicas.

    The entry of Sociology in the crime scene:

    a literature review brief

    Abstract

    This paper performs a brief presentation and analysis of the major sociological theories thatcontributed to studies on crime. For this, we approached authors of the nineteenth, twentiethand twenty-first century, it developed theories and sociological studies on this topic. Werealize that such contributions were very relevant, however, this is still a topic that demandcontinuous intellectual effort.

    Key-words:Crime. Sociological Theories.

    INTRODUO

    A criminalidade sempre foi um tema abordado pela sociologia. Os autores do sculo

    XIX, por exemplo, discutiam o assunto com o intuito de retir-lo da esfera individual e

    patolgica e elev-lo esfera social. Desde ento, surgiram mltiplas abordagens sociolgicas

    sobre o tema, desde teorias que reafirmam a eficcia de polticas repressivas, at teorias

    crticas a estas prticas, que compreendem a criminalidade excessiva como uma das

    1Doutoranda em Cincias Sociais pelo Programa de Ps Graduao em Cincias Sociais da UniversidadeFederal de Juiz de Fora.

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    resultantes de uma sociedade com inmeros problemas sociais. Posto que, nas ltimas

    dcadas, este assunto esteve mais em evidncia devido poltica de guerra s drogas, que tem

    apresentado como resultado taxas alarmantes de crescimento da populao carcerria, assim

    como da violncia no trfico e na polcia, o interesse da sociologia pelo tema resultou em

    inmeras teorias e pesquisas recentes.

    Sero abordados, a seguir, relevantes estudos sociolgicos sobre criminalidade,

    partindo de autores clssicos at os estudiosos contemporneos, buscando demonstrar as

    principais contribuies desta disciplina para os estudos do crime nas sociedades modernas.

    1 MARX, DURKHEIM E TARDE: O CRIME ENQUANTO UM FENMENO SOCIAL

    Ainda no sculo XIX, a recm fundada disciplina denominada Sociologia ocupou-se

    de diversos objetos de estudo, principalmente aos que se referiam s questes nascentes, ou

    que ganhavam maior expresso, a partir da modernidade. No que diz respeito criminalidade,

    podemos afirmar que alguns precursores desta nova cincia abordaram o tema, embora no o

    elegesse enquanto central em suas teorias. As discusses tericas da criminalidade, no limiar

    da modernidade, ficaram mais a cargo dos psiquiatras e juristas, atravs da criminologia, do

    que dos socilogos.

    Quando a Sociologia se dirige ao estudo do crime, ela dificilmente consegue seeximir da desordem reinante neste campo. Em nenhum outro domnio a ofensivaDurkheimiana falhou tanto em se fazer notar. Alm da hegemonia mdico-

    psiquitrica que dominava o estudo do crime e de sua surdez s lies do mtodosociolgico, deve-se tomar conta das ambiguidades de uma construo sociolgicainacabada, que correspondia a um mero interesse parcial e, ao fim, marginal, dosdurkheimianos. As demais Sociologias europeias no aceitaram o desafio. Ao todo,o estudo do crime recebeu contribuies essencialmente jurdico-psiquitrica.

    (ROBERT, 2007, p. 14).

    Estes autores, apesar de apresentarem legados tericos bastante distintos entre si,

    assemelham-se pelo fato de explicarem o crime, assim como outros fenmenos, enquanto

    questes sociais, e no restringi-lo s patologias individuais. Esta parece no ter sido uma

    tarefa fcil, uma vez que, todo o pensamento do sculo XIX estava voltado, como fruto da

    filosofia iluminista, para as causas individuais dos fenmenos.

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    vai se consolidando enquanto punio principal, as penas com requintes de crueldade vo

    perdendo a centralidade. (S, 1996, p. 21).

    Alm de localizar a priso como um elemento do desenvolvimento capitalista, Marx

    designa ao criminoso um papel importante para o desenvolvimento das foras produtivas.

    Filsofo produz ideias, poetas poesias, pastor prdicas, professor compndios eassim por diante. Um criminoso produz crimes. Se mais de perto observarmos oentrosamento deste ltimo ramo de produo com a sociedade como um todo,libertar-nos-emos de muitos preconceitos. O criminoso no produz apenas crimes,mas tambm o direito criminal e, com este, o professor que produz prelees dedireito criminal e, alm disso, o indefectvel compndido em que lana no mercadogeral mercadorias, as suas conferncias. [...] O criminoso produz ainda toda a polciae a justia criminal [...] O criminoso quebra a monotonia e segurana cotidiana davida burguesa. Por conseguinte, preserva-a da estagnao e promove aquela tenso e

    turbulncia inquietantes. Estimula assim as foras produtivas. [...] Teriam asfechaduras atingido a excelente qualidade atual, se no houvesse os ladres? Afabricao de notas de banco teria chegado perfeio presente se no houvessemoedeiros falso? [...] O crime, com os meios de ataque propriedade sempre novos,

    provoca a gerao ininterrupta dos meios de defesa, e assim tem, como as grevesinfluncia to produtiva na inveno de mquinas. E se deixarmos a esfera do crime

    privado: sem crime nacional, teria jamais surgido o mercado mundial? E mesmonaes? E desde tempos de Ado, a rvore do pecado no a rvore doconhecimento? (MARX , 1987, p. 382).

    Desta forma, ainda no sculo XIX, o autor fez uma crtica ao direito nascente com

    base nos ideais burgueses, analisou o novo carter adquirido pelas prises com o surgimentodo Capitalismo e atribuiu ao criminoso um papel histrico e social: sua contribuio para o

    desenvolvimento das foras produtivas.

    1.2 MILE DURKHEIM: A CRIMINALIDADE ENQUANTO ELEMENTO COMUM S

    SOCIEDADES

    Durkheim, assim como Marx, foi contemporneo da gerao de criminologistas queatribuam ao crime causas puramente patolgicas. Obstinado pela construo da sociologia

    enquanto uma cincia independente das demais e entusiasta de uma anlise cientfica objetiva,

    encontrou um espao para o crime na sua teoria social.

    O autor diferencia-se da criminologia de sua poca quanto natureza do crime. Para

    ele, determinada ao constitui-se enquanto crime, no por ser criminosa em si, mas porque a

    conscincia coletiva assim a identifica. Ou seja, o ato no fere a conscincia coletiva por ser

    crime, ao contrrio, tal ato crime, uma vez que fere a conscincia coletiva. Porm, no basta

    que tais aes sejam contrrias conscincia coletiva, pois muitas prticas assim so e, no

    entanto, no constituem crime, mas, apenas uma transgresso moral. necessrio que a ao

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    ofenda a conscincia coletiva em uma intensidade considervel e que seja dotada de nitidez e

    preciso, j uma transgresso moral, normalmente, carece de tais caractersticas, apresentam-

    se com maior fluidez e impreciso. Podemos, pois, resumindo a anlise que precede, dizer

    que um ato criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da conscincia coletiva.

    (DURKHEIM, 1978, p. 41).

    Tal concepo representa um avano na delimitao do objeto crime, uma vez que, at

    ento, ele era compreendido pela natureza criminosa de determinada ao, como se certas

    prticas fossem, necessariamente, crimes, em todas as sociedades e em todas as pocas. Ou

    seja, desconsiderava-se sua contextualizao histrica e cultural. Garofalo, por exemplo, criou

    a ideia de um ncleo-duro do crime, que seriam os crimes verdadeiros e passveis de estudos,

    ou seja, os crimes naturais. Este ncleo duro engloba a prtica crimes que atingem nossosentimento de piedade e de probidade, tais como, homicdio, agresso e roubo. Durkheim

    critica essa ideia de Garofalo, uma vez que ele busca, a partir de suas referncias morais,

    determinar o que um verdadeiro crime e o que no . A este respeito Durkheim diz:

    Garofalo pretende tratar do crime, mas aquilo que maneja sua moral individual.

    (DURKHEIM apud ROBERT, 2007, p. 18).

    Em contraste teoria dos crimes naturais, Durkheim elabora uma relao de diversos

    tipos de crimes, encontrados na sociedade em que vivia, mas tambm englobando crimes desociedades anteriores, mostrando que, em cada momento, a sociedade determina aquilo que

    tratar enquanto crime e que esta gama de classificaes tem se reduzido nas sociedades

    modernas. (DURKHEIM, 1978, p. 24).

    Ele chega concluso de que, por estar presente em todas as sociedades, de uma

    forma ou de outra, independente de tempo e espao, o crime no se trata de nenhum tipo de

    anomia, ao contrrio, faz parte de uma sociedade saudvel. Tal afirmao, tambm se

    apresenta enquanto uma grande novidade, uma vez que, toda a criminologia existente buscavadeterminar quem eram os criminosos, para impedir a prtica de crimes. Ora, se normal, e

    como veremos, at positivo, a ocorrncia de crimes, todo o esforo dos criminologistas at

    ento, acabar com o crime, no faz nenhum sentido.

    O crime no se observa s na maior parte das sociedades desta ou daquela espcie,mas em todas as sociedades de todos os tipos. No h nenhuma em que no hajacriminalidade. Muda de forma, os atos assim qualificados no so os mesmos emtodo o lado; mas sempre e em toda parte existiram homens que se conduziam demodo a incorrer na represso penal. [...] No h, portanto, fenmeno que apresentede maneira mais irrefutvel todos os sintomas da normalidade, dado que aparececomo estritamente ligado s condies de qualquer vida coletiva. Transformar ocrime numa doena social seria admitir que a doena no uma causa acidental mas

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    que, pelo contrrio, deriva, em certos casos, da constituio fundamental do servivo; seria eliminar qualquer distino entre o patolgico e o fisiolgico.(DURKHEIM, 2003a, p. 82-83).

    Porm, nos alerta para o fato de que um aumento alarmante nas taxas de criminalidade em umdeterminado local pode significar a passagem de um estado fisiolgico normal, para, devido

    exorbitncia do fenmeno, tornar-se uma patologia.

    O autor retira do criminoso o papel de parasita a ele designado, e o atribui a funo de

    um agente regular da vida social. Considera, inclusive, que quando temos uma grande queda

    nas taxas de criminalidade, pode ser um sinal de perturbao social. Durkheim tambm se

    choca com a criminologia quando apresenta o que para ele se constitui na real motivao da

    punio. Para ele, a punio no consiste em uma reforma do infrator, mas em uma resposta sociedade diante uma atitude que fere sua conscincia.

    O autor contribuiu significamente com o tema em questo, uma vez que atribui um

    novo papel social para o crime, o criminoso e as penas, demonstrando um olhar bastante

    diferenciado a cerca de tais temas.

    1.3 GABRIEL TARDE: CRIMINALIDADE ENQUANTO IMITAO

    Jean Gabriel de Tarde, oriundo de uma famlia nobre da Idade Mdia, dedicou-se a

    estudos sobre o crime, combatendo o determinismo biolgico predominante no sculo XIX.

    Contrrio ideia de que fatores geogrficos ou raciais possam ser decisivos para a

    prtica ou no de crimes, Tarde coloca uma nova possibilidade causal: a imitao.

    Aps concebido, como o crime executado? Ela (a ideia) penetra, estende pouco apouco suas razes no terreno que lhe foi preparado. Do primeiro que a concebeu, elatransmite-se, por impressionabilidade imitativa ainda, a um nico catecmenoinicialmente, depois a dois, a trs, dez, cem mil. (TARDE, 1992, p. 196).

    Quando se prope a explicar de que forma esta imitao se d, a resposta bastante

    imprecisa, comparando-a condio de sonambulismo e hipnotismo. Considera a imitao

    como a verdadeira origem dos vnculos sociais, e as pessoas a praticam de forma quase

    inconsciente.

    Um elemento que Gabriel Tarde traz para a discusso criminolgica no sculo XIX a

    ideia de crime coletivo. Coloca que a multido2muitas vezes responsvel por crimes, assim

    como tambm o , o pblico3

    .

    2Multido: um aglomerado de pessoas no mesmo espao fsico. (TARDE, 1992)

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    As multides no so apenas crdulas, so loucas. Vrias das caractersticas queobservamos nela so as mesmas dos pacientes de nossos hospcios: hipertrofia doorgulho, intolerncia, imoderao em tudo. Elas vo sempre, como os loucos, aos

    polos extremos da excitao e da depresso [...] O pblico, quando criminoso, o mais por interesse de partido do que por vingana, mais por covardia do que porcrueldade, ele terrorista por medo, no por acesso de clera. [...] Regra geral, ouquase: por trs das multides criminosas h pblicos mais criminosos ainda e, frente destes, publicistas que o so ainda mais. (TARDE, 1992, p. 73;74).

    Por mais que Tarde tome para si posies polticas bastante conservadoras diante os

    crimes das multides durante assensos revolucionrios ou movimentos de resistncia,

    compreender a possibilidade de crimes coletivos pensar sob um ponto de vista social, no

    meramente individual, como fruto de uma doena mental ou da ao de um mal carter, como

    era o pensamento predominante. Portanto, Tarde tambm inovou ao trazer os aspectos sociais

    para a cena do crime.

    Quanto questo da punio, Tarde alerta que, embora todos ns, de certa forma,

    temos culpa pelos crimes realizados, uma vez que a sociedade permite o surgimento e

    crescimento das seitas e multides criminosas, isso no deve isentar o malfeitor de sua

    punio. Porm, no chega a desenvolver uma teoria sobre a pena, como Durkheim.

    2 A DESORGANIZAO SOCIAL: CONTRIBUIES DA ESCOLA DE CHICAGO

    Cabe ressaltar que, durante o sculo XX, maior parte dos estudos sociolgicos sobre o crime

    surgiram e tiveram notoriedade principalmente nos Estados Unidos. Ainda na primeira

    metade do sculo XX, alguns estudiosos da Escola de Chicago, como Henry McKay e

    Clifford Shaw, utilizaram o termo desorganizao socialpara explicar o processo atravs do

    qual alguns bairros de periferia, considerados reas pobres e degradadas mantinham umataxa de criminalidade relativamente constante, mesmo com a renovao da populao que l

    vivia.

    Em Chicago e em outras grandes cidades americanas as sucessivas levas de novosimigrantes dirigiam-se aos bairros onde o alojamento era mais econmico e aquelesinstalados nos mesmos durante o ciclo precedente fugiam dessa invaso. Entretanto,esse fenmeno reproduzia-se sem cessar, de sorte que, se verificava uma contnuarenovao populacional nas zonas intersticiais. A instabilidade as caracterizava. Asinstituies e os padres convencionais, que normalmente asseguram o controle

    3Pblico: pessoas que compartilham de uma mesma opinio, sem, no entanto, estarem aglomerados no mesmoespao fsico. (TARDE, 1992)

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    social de primeira linha, perdiam sua hegemonia. Tendncias contraditrias secontrapunham. A rua, espao das brincadeiras infantis, tambm era o cenrio ondese podia observar, no seio da misria social reinante, a ostentao pelos delinquentesde todos os atributos sociais de sucesso, onde se aprende que a pilhagem ou ovandalismo so as brincadeiras mais excitantes, aquelas com que se ganha a estima

    do grupo. No h no bairro uma frente de reprovao capaz de tachar tais desvios deindignos. A misria em si no engendra a violncia e sim a desordem normativa quea acompanha nas reas onde uma renovao perptua da populao impede qualquerestabilizao das relaes sociais. (ROBERT, 2007, p. 96;97).

    Assim, a teoria da Desorganizao Social trouxe temas como, imigrao, periferias, pobreza,

    ou seja, trata-se de questes sociais ocupando um espao central na discusso da

    criminalidade e das gangues. Alm da contribuio terica deixada pela Escola de Chicago,

    Phillipe Robert tambm chama nossa ateno para as contribuies metodolgicas que ela nos

    deixou.

    A tese de Trasher demonstra as virtudes da observao prolongada para o estudo defenmenos de gangues juvenis e as autobiografias de jovens delinquentesevidenciam a possibilidade da utilizao das narrativas de suas vidas: contanto quese escolham casos suficientemente tpicos, pode-se assim descobrir os processos eseus encadeamentos, bem como examin-los do ponto de vista do autor. Entretanto,a associao de Shaw com McKay no seio do Departamento de Sociologia do

    Institute for Juvenile Researche de Chicago produziu ainda outra liometodolgica: a virtude da combinao de esforos quantitativos (a determinaodas taxas por zona urbana e o clculo de sua relaes) com esforos qualitativos (ahistria de vida dos delinquentes). (ROBERT, 2007, p. 98).

    A partir dos anos 1930, essa estrutura social baseada em permanente migrao entre os

    bairros modifica-se. Diante um novo contexto, a teoria da desorganizao social, que tinha

    como base a discusso da dinmica territorial, no se sustentou por muito tempo, embora

    tenha influenciado consideravelmente as teorias que surgiram posteriormente a ela.

    A teoria da desorganizao social compreende estes territrios enquanto locais pobres,

    com moradores de baixa renda, mas tambm, como locais em que existem laos sociais pouco

    consolidados, o que impossibilita maior superviso dos jovens por parte dos adultos e umasociabilidade construda sobre poucas regras. Considerando que a mulher, principalmente na

    primeira metade do sculo XX, era percebida enquanto a responsvel pela educao dos filhos

    e pela superviso cotidiana dos mesmos, enquanto seu marido saa para garantir as condies

    econmicas de subsistncia da famlia, podemos considerar que, de acordo com esta teoria,

    elas tinham grande responsabilidade sobre o processo de crescente criminalidade. No caso das

    mulheres solteiras ou vivas que precisavam trabalhar fora para garantir o sustento da famlia,

    a superviso dos filhos ficaria ainda mais restrita.

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    3 O CULTURALISMO: CRIME ENQUANTO COMPORTAMENTO APRENDIDO

    Edwin Sutherland considerava o crime como um comportamento aprendido. Tais

    comportamentos so aprendidos a partir do grupo direto em que o indivduo se encontra, comquem estabelece relaes sociais mais prximas. Trata-se de aprender a tcnica, porm, mais

    do que isso, trata-se tambm de encontrar no grupo as motivaes e justificativas necessrias

    para a aprendizagem e permanncia no comportamento criminoso. Esta teoria, denominada de

    associao diferencialfoi construda em 1939 e uma de suas heranas para as teorias futuras

    foi justamente pensar o crime a partir de relaes sociais na esfera micro.

    Thorsten Sellin, ainda sob uma perspectiva culturalista, trouxe a seguinte questo: um

    indivduo no socializado no interior de um nico grupo, ao contrrio, ele transita por

    diversos grupos, muitas vezes com valores bastante contraditrios entre si. Assim, esta

    divergncia das normas entre os diferentes grupos, pode causar conflitos na personalidade do

    indivduo, que se encontra socializado sob diversos valores morais.

    As teorias baseadas no culturalismo nunca deixaram de existir, porm sofrem duras

    crticas, como, por exemplo, a supervalorizao da socializao, enquanto responsvel pelas

    aes dos indivduos.

    4 A ANOMIA: O ABISMO ENTRE EXPECTATIVA E REALIDADE SOCIAL

    Partindo do funcionalismo Durkheimiano, que considera a sociedade como um todo

    orgnico, movida por sua articulao interna, Robert Merton caracteriza a prtica do desvio

    como uma desarticulao entre aquilo que proposto e esperado pela sociedade, como

    sucesso profissional e financeiro, por exemplo, daquilo que permitido ao indivduo alcanar.

    Assim, para Merton, este desequilbrio entre as metas de sucesso impostas pela

    sociedade e as escassas condies para alcan-la, seria um estimulante para que muitaspessoas buscassem, de forma ilcita, atingir seus objetivos.

    5 O INTERACIONISMO SIMBLICO: CONSTRUES SOCIAIS A PARTIR DASINTERAES ENTRE ATORES

    Com suas origens remetendo Escola de Chicago, os interacionistas surgem enquanto

    uma reao ao Funcionalismo, que era predominante nas principais universidades norte-

    americanas, Havard e Columbia (ROBERT, 2007, p.110). Embora possamos falar em um

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    eixo central para os estudos interacionistas, cada um dos autores apresenta uma teoria bastante

    livre, que no se encontra sob uma perspectiva terica muito rgida.

    A perspectiva interacionista acredita na construo e reconstruo da realidadesocial e de seus objetos a partir da interao dos diversos atores envolvidos. Osignificado social dos objetos se desenvolveria pelo sentido que lhes so oferecidosno decurso das relaes sociais, portanto, a interao social seria uma ordem instvele temporria, que estaria em processo constante de construo pelos atores, demaneira que estes poderiam, atravs dela, interpretar o mundo em que estoinseridos e no qual interagem. (JUNQUEIRA, 2012, p. 41).

    Uma caracterstica importante do Interacionismo no se limitar a ideia de crime, mas

    ampli-la, assim como alguns socilogos j haviam feito, para a categoria de desvio, o que

    implica em estudar aquelas aes que fogem s regras amplamente aceitas e ao que considerado comum pela maioria da sociedade. Mas no basta que o indivduo realize

    determinadas aes para que ele seja um desviante, pois no se trata apenas da ao, mas sim

    da reao que as pessoas tem diante aquele ato. necessrio, para que o ator seja um

    desviante, que esta seja a forma pela qual a sociedade o veja, o rotule.

    O desvio no uma qualidade simples, presentes em alguns tipos decomportamentos e ausentes em outros. antes o produto de um processo que

    envolve reaes de outras pessoas ao comportamento. O mesmo comportamentopode ser uma infrao de regras num momento e no em outro; pode ser umainfrao quando cometida por uma pessoa, mas no quando cometido por outra;algumas regras so infringidas com impunidade, outras no. Em suma, se um dadoato desviante ou no, depende em parte da natureza do ato (isto , se ele viola ouno alguma regra), e em parte do que outras pessoas fazem acerca dele. (BECKER,2008, p. 26).

    Desta forma, o desvio no diz respeito apenas aquele que cometeu o ato desviante,

    mas um fruto das interaes entre o ator e as pessoas que reagem a ele.

    Becker nos chama a ateno para o fato de que determinado ator pode manter um

    comportamento infrator, sem, contudo, ser visto como um desviante. possvel ainda que o

    ator seja visto enquanto desviante, embora no pratique nenhuma ao desta natureza.

    (BECKER, 2008, p. 31- 32).

    Normalmente, o termo carreira utilizado para se referir a profissionais bem

    sucedidos em determinada rea profissional. Porm, alguns autores utilizam este termo

    tambm para se dirigirem ao desenvolvimento de uma pessoa em uma rea considerada

    desviante.

    Becker aponta que o primeiro passo na maioria das carreiras desviantes o

    cometimento de um primeiro ato inapropriado. Enquanto a maior parte das teorias

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    sociolgicas e psicolgicas buscava a compreenso das razes desta primeira infrao, o autor

    afirma que muitas podem ser as motivaes e que esta no deve ser a questo. A pergunta

    principal seria ento: porque as pessoas consideradas normais, no se deixam levar pelo

    impulso desviante que tem? O autor afirma que, a pessoa considerada normal, ao notar em si

    um ato desviante, o controla pensando nas consequncias que determinado ato poderia causar.

    J aqueles que continuam se desenvolvendo em uma carreira desviante podem, ao longo de

    sua vida, ter se envolvido em situaes nas quais no lhe seja cobrado os padres

    convencionais da sociedade, ficando, de certa forma, livre de dar estas explicaes para a

    sociedade. Ou ainda, buscam tcnicas de neutralizao que justifiquem suas aes e reprimem

    seus mpetos no desviantes. (BECKER, 2008, p.36-49).

    Quando uma pessoa, que j exercia determinado ato tido como desviante, rotuladacomo tal, normalmente, sua vida muda. Um homossexual, usurio de maconha, ou qualquer

    pessoa que pratique um ato tido como desviante, pode ter um trabalho, relaes sociais

    normais, mas quando percebido enquanto portador de um status desviante, muitas vezes,

    no poder mais manter sua vida cotidiana como era antes. A forma como os desviantes so

    tratados, muitas vezes, lhes nega os meios comuns de levar adiante as rotinas da vida

    acessveis maioria das pessoas. Em razo desta negao, estas pessoas podem desenvolver

    rotinas ilegtimas. O passo final na carreira do desviante o ingresso em um grupoorganizado. Nele, a pessoa aprende a evitar problemas, racionaliza suas aes e assimila uma

    fundamentao para continuar. A participao em um grupo desviante se torna, ento, um

    elemento consolidador da carreira. (BECKER, 2008, p. 36-49).

    O Interacionismo ainda possui muita referncia nos trabalhos realizados hoje em dia,

    mas tambm foi alvo de crticas, tais como: a pouca ateno que destinada ao processo

    inicial da delinquncia, a dissoluo do conceito de crimedentro de um termo mais amplo,

    designado como desvio, e criticado tambm por tratar predominantemente de relaesinterpessoais, diminuindo o peso da estrutura social e instituies. (ROBERT, 2007, p.110-

    114).

    Kokoreff (2005), ao estudar usurios e revendedores de drogas nos bairros pobres de

    Paris, chama a ateno para dois erros centrais que podemos cometer ao estudar carreiras em

    atividades ilcitas. O primeiro problema cairmos no erro de reproduzirmos uma discusso

    determinista, que oculte as heterogeneidades dos atores envolvidos com o processo, como se o

    envolvimento com as drogas por parte de certos grupos sociais fosse algo dado ou estivesse

    escrito pelo destino.

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    O segundo erro que o autor nos adverte considerarmos que as construes destas

    carreiras so realizadas sob livre escolha dos envolvidos. Kokoreff avalia que o

    Interacionismo, apesar de todos os aspectos relevantes que apresenta, passvel de realizar

    esta confuso. O perigo de considerarmos o sujeito enquanto autor, e no ator, de sua

    trajetria abre espao para desconsideramos os limites de escolha colocados a ele socialmente.

    Por isso, o autor prefere utilizar o termo caminho. Situado no mesmo sentido

    semntico que trajetria e percurso, ele enfatiza os aspectos no lineares que foram

    fundamentais para a conduo do sujeito pelo caminho do uso ou da revenda de drogas.

    Aspectos, estes, que limitam suas possibilidades de escolha. (KOKOREFF, 2005, p. 31-40).

    6 A TEORIA DO CONFLITO: O CRIME SOB UMA PERSPECTIVA CLASSISTA

    Durante a dcada de 70 presenciamos explicaes tericas sobre o crime que no eram

    baseadas em uma discusso do comportamento, mas nas relaes de poder da sociedade.

    Autores como Richard Quinney, Tonny Platt, Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young,

    influenciados pela teoria marxiana, buscavam enfatizar os crimes praticados pelos white

    collors e estudar o crime sob uma perspectiva classista. A Teoria do Conflito deu origem adiversas perspectivas diferentes entre si. Destacaremos os elementos bsicos comuns a elas

    O ponto de partida desta abordagem o conceito de crime. Legalmente, crime aquilo

    que tipificado, e no necessariamente determinado como crime tudo o que danoso para o

    ser humano, como genocdios, explorao, dentre outros. Alm disso, dentro daquilo que

    conceituado crime, uma parte no reprimida pela justia criminal de forma consequente, o

    crime de colarinho branco, como, por exemplo, fixao monopolista de preos, poluio do

    meio ambiente, corrupo governamental, dentre outros.Juarez Cirino dos Santos coloca que esta limitao do conceito legal de crime, no

    criticado pela maioria das vertentes criminolgicas, no casual e est a servio de uma

    distoro ideolgica, que busca justificar o peso da represso sobre os mais pobres. Ele utiliza

    o exemplo dos Estados Unidos, no perodo em que escrevera o livro, 1981, pas em que 20%

    da populao advm de pases subdesenvolvidos, e estes imigrantes representam 50% da

    populao carcerria do pas. Desta forma, nos Estados Unidos, existem mais negros nas

    prises do que nas universidades. Este um exemplo de como os crimes praticados pelos

    mais pobres so permanentemente reprimidos. (SANTOS, 1981, p.9).

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    Os autores da Criminologia Radical4 afirmam que as estatsticas dos crimes so, na

    verdade, enviesadas, devido cifra negra e cifra dourada do crime. A cifra negra a

    diferena entre aparncia, conhecimento oficial, e realidade, volume total, do crime. Isto se

    d, pois existem criminosos no identificados, ou no investigados. Muitos crimes de abuso

    sexual, estupro, no so denunciados, sendo, assim, impossvel conceber estatsticas que de

    fato representem a realidade. Muitos casos de homicdios tambm no so computados,

    consolidando-se como casos de desaparecimento, acidentes ou suicdios. J a cifra dourada

    est relacionada aos crimes de colarinho branco, nos quais os praticantes possuem um alto

    status socioeconmico, e, muitas vezes, tais crimes passam despercebidos. Por estes motivos,

    os defensores desta teoria afirmam que as estatsticas que definem o perfil do criminoso, no

    so fiis realidade, pois partem de um conceito de crime, e consequentemente de criminoso,direcionado para a criminalizao das classes desprivilegiadas.

    A criminologia radical define as estatsticas criminais como produtos da luta declasses, nas sociedades capitalistas: a) os crimes da classe trabalhadoradesorganizada (lumpenproletariados, desempregados crnicos, etc.), integrantes dacriminalidade de rua (de natureza essencialmente econmica e violenta) so super-representados nas estatsticas criminais porque apresentam (em um primeiro nvel deanlise) os seguintes caracteres: constituem uma ameaa generalizada ao conjuntoda populao, so produzidos pelas camadas mais vulnerveis da sociedade e

    apresentam maior transparncia ou visibilidade, com repercusses e conseqnciasmais poderosas na imprensa, na ao da polcia, do judicirio, etc. ; b) os crimes daclasse trabalhadora organizada, integrada no mercado de trabalho (furtos, danos),no aparecem nas estatsticas criminais pelas obstrues dos processos criminaissobre os processos produtivos; c) a criminalidade da pequena burguesia, geralmentedanosa ao conjunto da sociedade (a dimenso inferior da criminalidade do colarinho

    branco), raramente aparece nas estatsticas criminais, e a grande criminalidade dasclasses dominantes (as burguesias financeira, industrial e comercial), definida comoabuso de poder [...] produtora do mais intenso dano vida e sade da coletividade,e ao patrimnio social e estatal, est excluda das estatsticas criminais. (SANTOS,1981, pg. 10 e 11).

    A Criminologia Radical prope um conceito proletrio de crime. De acordo com esteconceito, crime tudo aquilo que fere uma concepo radical de Direitos Humanos. Tudo

    que, de alguma forma prejudique o direito segurana pessoal, vida, integridade, sade,

    liberdade, igualdade econmica, racial e sexual, ainda que, quem tenha interferido nestes

    4 Criminologia Radical ou Criminologia Marxista uma das principais vertentes da Teoria do Conflito. ACriminologia Radical diferencia os estudos sobre o crime em dois grandes grupos (que se dividem emsubgrupos). O primeiro grupo composto pelas teorias tradicionais, que engloba os estudos baseados em

    questes biolgicas e as teorias que, segundo a Criminologia Radical, contribuem para a criminalizao dapobreza e para consolidar as normas capitalistas, so elas:Escola de Chicago, associao diferencial, anomia esubcultura delinquente. J o segundo grupo formado pelas teorias crticas, em que as perspectivas de maioralcance so oInteracionismo Simblico e a prpria Criminologia Radical.

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    direitos, sejam indivduos, empresas, instituies, relaes capitalistas e imperialistas.

    (SANTOS, 1981, p. 34-35).

    Utilizando-se do conceito legal de crime, e das estatsticas que no so um retrato fiel

    da realidade, as abordagens consideradas tradicionais, de acordo com o Juarez Cirino dos

    Santos, contribuem com a criminalizao da pobreza, pois praticamente todos os criminosos

    contabilizados so oriundos das classes inferiores. O autor tambm explica , baseado em G.

    Rusche, que o fato do monoplio da punio ser praticamente restrito classes subalternas

    utilizado para justificar as condies de vida na priso. Pois, existe uma ideia do senso-

    comum, muito bem apropriada pelo Estado, de que o local onde as pessoas cumprem suas

    penas, deve ser pior do que o local no qual elas vivem normalmente, pois, caso contrario a

    punio no surtiria efeitos, e as prises estariam ainda mais cheias do que esto. (SANTOS,1981, p. 42-44).

    Outro atributo desta abordagem buscar compreender o crime contextualizado com os

    diferentes modos de produo nas diferentes sociedades. Na Alta Idade Media, por exemplo,

    com sua economia agrria, a violncia era praticamente limitada a abusos pessoais e sexuais.

    O sistema penal baseava-se na vingana pessoal e nas penitencias religiosas. J na Baixa

    Idade Media, onde a economia agrria feudal separa as classes sociais entre os latifundirios e

    os camponeses, as guerras so frequentes e a criminalidade se torna generalizada. O SistemaPenal utilizado para este perodo so os piores suplcios corporais.5 J no Mercantilismo,

    existe uma escassa mo de obra, atacada por pestes e guerras, e o principal mtodo punitivo

    deixa de ser o suplicio do corpo para ser o trabalho forado, momento no qual as prises so

    consolidadas enquanto mtodo punitivo. Aps a Revoluo Industrial, a situao do trabalho

    se reveste e o que temos a formao de mo de obra excedente, neste caso o sistema

    punitivo faz uso das prises, porm no mais do trabalho forado (SANTOS, 1981,p. 45-46).

    7 TEORIAS DO CONTROLE: A FAMLIA ENQUANTO INSTITUIORESPONSVEL PELA SOCIALIZAO

    Travis Hirchi e Michael Gottfredson, em 1990, apresentaram sua teoria geral do crime.

    Esta era baseada na ideia de que a delinquncia juvenil era fruto de uma ausncia de

    autocontrole vivenciada pelos jovens, o que era causado, primeiramente, pela desestruturao

    familiar. Assim, eles entendem a famlia enquanto principal instituio socializadora, e esta

    5FOCAULT (1987) descreve brilhantemente sobre as punies corporais na Idade Mdia.

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    deveria, por sua vez, retomar o seu modelo anterior -de papis bem definidos entre homens e

    mulheres- para disciplinar os filhos.

    Enquanto as Teorias do Conflito apresentam uma posio bastante crtica, as Teorias

    do Controle encontram-se na outra ponta do pensamento ideolgico, posicionando-se de

    forma um tanto quanto conservadora. Estas ideias foram bem recebidas, por certos setores da

    sociedade, e duramente criticadas, por outros.

    Sua ambio de generalidade foi criticada: ela no convm a certos tipos decriminalidade (o crime organizado ou a delinquncia econmico-financeira). Ela foirepreendida por ser puramente tautolgica, ou mesmo por partir de uma definioinadequada de crime. (ROBERT, 2007, p. 118).

    8 POLTICAS PBLICAS E PRODUO DA CRIMINALIDADE

    Garland (2001), em uma anlise das modificaes no sistema punitivo que acontece,

    desde a dcada de 1970, nos Estados Unidos e na Gr-Bretanha. No livro La cultura del

    control, argumenta que a modernidade tardia6 tm desenvolvido uma srie de riscos,

    inseguranas e problemas, gerando respostas cada vez menos tolerante e mais hostis ao crime

    por parte destes dois pases e, ao que parece, esta tendncia tem se manifestado em vrios

    outros lugares. Ele demonstra como o desmantelamento do Estado de Bem Estar Social, a

    favor do avano das polticas neoliberais, afetaram tambm o sistema penal. As principais

    mudanas no sistema penal apontadas pelo autor so as seguintes:

    1) Houve um declive do ideal da reabilitao. Durante o Estado de Bem Estar Social, a

    principal meta do sistema penal era buscar a reabilitao do delinquente. Hoje, cada

    vez mais, os programas de reabilitao perdem a centralidade nas medidas punitivas.

    2)

    Surgimento de sanes punitivas e justia expressiva. Trata-se da tendncia dareapario de penas decidida e exclusivamente punitivas, tais como, pena de morte,

    trabalho forado e castigo corporal.7

    3) Mudanas no discurso penal. At 1970, os discursos que baseavam as reformas penais

    eram tratados a partir de sentimentos nobres, tais como, solidariedade, dignidade e

    6 Define modernidade tardia como o padro distintivo de ralaes sociais, econmicas e culturais queemergiram nos EUA, Gr-Bretanha e em outros lugares do mundo, no ltimo tero do sculo XIX.

    (GARLAND, 2005)6No momento em que escrevemos este trabalho existe no Brasil uma discusso, com amplo apoio popular, sobre

    a necessidade da reduo da maioridade penal. Isto e outras questes demonstram que o Brasil tambm seenquadra na tendncia identificada por Garland de endurecimento do sistema penal.

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    ajuda, ainda que, na maior parte dos casos, estes sentimentos no sassem do plano do

    discurso. Nos ltimos anos, o sentimento que baseia as reformas penais o medo.

    4) O retorno da vtima. Sob um discurso de que a vtima deve ser respeitada, colocam-se

    vtima e delinquente enquanto dois opostos. Assim, para estar do lado da vtima, deve-

    se ser contra os direitos dos delinquentes. Nos EUA as vtimas podem participar do

    julgamento, so consultadas sob a pena e a libertao do agressor.

    5) Acima de tudo, o povo deve ser protegido. Sob este discurso aumentam-se as polticas

    de encarceramento e geram uma sensao de medo na populao, com cmeras em

    todas as partes, etc.

    6) Novas teorias que enfatizam a preveno da criminalidade em todos os espaos. O

    autor argumenta que existe uma cultura do controle, na qual so bem-vindas cmeraspor todos os lugares, interveno policial nos espaos cotidianos, grupos de

    autovigilncia na prpria comunidade, etc. As novas teorias criminolgicas que

    ganham centralidade no discurso de especialistas e operadores da lei fortalecem a ideia

    de que o combate ao crime precisa estar voltado para a preveno, isto , a interveno

    social policial e da sociedade civil precisa ocupar todos os espaos das interaes

    cotidianas para combater a criminalidade.

    7)

    A privatizao do sistema penal. Durante o estado de bem estar social o controle dodelito era uma funo exclusiva do Estado, porm, cada vez mais, a iniciativa privada

    ganha espao, dividindo com o Estado o monoplio da fora8.

    Estas e outras modificaes, na concepo do autor, significam uma reconfigurao do

    sistema penal nos pases estudados. Nesta reconfigurao, que ele denomina de cultura do

    controle, o medo do crime est refletido em toda parte, seja na participao da sociedade civil

    na preveno do crime, seja na presena policial no cotidiano das pessoas. Nos ltimos anos,

    a opinio dos especialistas tem sido cada vez menos requisitada e os polticos, movidos pelaopinio pblica conferem s leis mudanas significativas e rpidas, buscando uma maior

    credibilidade frente populao.

    Esta nova cultura no sistema penal destes pases, criada pelas implementaes das

    polticas neoliberais, parte do pressuposto de que o Estado de Bem Estar Social uma

    burocracia pouco eficiente que faz uso do dinheiro dos trabalhadores de bempara beneficiar

    8 No Brasil tambm percebemos um aumento na segurana privada. Foi inaugurada, em janeiro de 2013 a

    primeira priso de parceria pblico-privada do pas, em Ribeiro das Neves, Minas Gerais. Alm disso, temos,no pas, 690.000 trabalhadores da rea de segurana privada, sem levar em considerao os contratados nainformalidade. Estes trabalhadores superam o nmero de policiais brasileiros, que corresponde a 506.411.(BAVA, 2013. P. 3).

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    os vagabundos. Os benefcios sociais passam a ser vistos como as causas dos problemas da

    sociedade, e no como sua soluo. Assim, os pases neoliberais tardo-modernos garantem

    uma forma concebida como civilizada e legal para segregar as populaes tidas como

    problemticas, como se estas solues no passassem por mudanas sociais e econmicas

    estruturais da sociedade. (GARLAND, 2005, p. 295-297).

    Ethan Nadelmann, fundador e diretor executivo da Drug Policy Alliance9, em

    entrevista concedida revista Le monde diplomatique, ao descrever a situao prisional nos

    Estados Unidos, acaba por confirmar a discusso apresentada por Garland.

    Os Estados Unidos tem menos de 5% da populao mundial e quase 25% dos presos. Somos

    o primeiro no mundo em cidado encarcerados per capita. Mas nem sempre foi assim. H

    quarenta anos, as taxas de encarceramento eram mais prximas da mdia mundial. (LOBO,Flvio & BRASILINO, Lus. 2013. P 14-15).

    9 SUJEIO CRIMINAL NO BRASIL

    Apesar de no ser uma teoria de ampla abrangncia, como as j mencionadas neste

    trabalho, consideramos relevante abord-la, uma vez que voltada para compreendermos a

    maneira atravs da qual o estado e a sociedade brasileira posicionam-se frente ao criminoso.

    De acordo com Misse (2011), o Brasil apresenta certas particularidades acerca do tratamento

    do criminoso, que merecem uma elaborao mais especfica.

    O autor compreende que conceitos como rtulo e estigmano so suficientes para a

    compreenso da ideia de criminoso existente no Brasil. Por isso, sugere a categoria de

    sujeio criminal, onde so selecionados preventivamente os supostos sujeitos que iro

    compor um tipo social cujo carter socialmente considerado sempre propenso a cometer um

    crime.

    O ponto central que justifica, a meu ver, o uso da sujeio criminal em lugar dertulo, estigma e desvio secundrio que, aqui, a identidade social se subjetivavano apenas como incorporao de um papel social ou de um self deteriorado, mascomo personificao do crime. E no de qualquer crime, mas do crime violento, cujofantasma social est associado ideia do criminoso enquanto inimigo, que, pela sua

    periculosidade, tomado como sujeito irrecupervel para a sociedade. (MISSE,2011, p. 34).

    9Organizao no governamental, sediada nos Estados Unidos, que se dedica a promoo de alternativas dedescriminalizao e regulamentao das drogas.

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    Ao definir quem o bandido na sociedade brasileira, o autor o caracteriza enquanto

    algum que pode ser morto. No limite sua morte pode ser amplamente desejada (MISSE,

    2011, p. 34). Como um elemento que justifique sua afirmao, ele apresenta os resultados de

    uma pesquisa realizada em 1996 e 1997 no Rio de Janeiro, em que 70% da populao

    afirmavam que os bandidos no deveriam ter seus direitos respeitados. Alm disso,

    apresenta o caso de Sivuca, eleito deputado por trs vezes consecutivas pelo estado do Rio de

    Janeiro, sob o slogan bandido bom bandido morto.

    O bandido est relacionado pobreza. Por mais que algum que seja membro das

    classes dominantes tenha seus crimes descobertos, normalmente ele ser visto enquanto uma

    pessoa que errou, mas que passvel de correo e no como um bandido, que se encontra

    completamente fora das normas de sociabilidade e que nunca poder ser resgatado, poisviver e morrer sendo um bandido.

    10 CONSIDERAES FINAIS

    Buscamos realizar, no presente artigo, uma breve reviso da literatura sociolgica a

    respeito da criminalidade. Percebemos que desde o sculo XIX este tema foi recorrente nosestudos dos autores clssicos das cincias sociais, ou seja, a criminalidade um tema

    relevante para a sociologia, e outras cincias humanas, desde a consolidao da modernidade.

    Tais autores tiveram o mrito de, dentre outras coisas, destacar o crime enquanto um

    fenmeno social e no uma patologia individual.

    J no sculo XX, as teorias foram sendo lapidadas e diversas explicaes e estudos

    foram realizados sob perspectivas tericas diferentes. Percebemos que, com o aumento da

    relevncia social do tema, principalmente a partir da segunda metade do sculo XX, aumenta-se tambm o espao para investigao do tema na sociologia.

    As teorias mais recentes apresentadas neste trabalho remetem preocupao com o

    atual olhar da sociedade sobre a criminalidade: a indstria do medo e o avano das polticas

    neoliberais consolidadas nas ltimas dcadas formam pessoas cada vez mais abertas a

    qualquer tipo de represso, fomentando posies favorveis pena de morte, reduo da

    maioridade penal, privatizao das cadeias e ostensivo policiamento.

    Apesar das diversas elaboraes tericas sobre o tema, ressaltamos que ainda existem

    diversas lacunas que necessitam ser preenchidas com mais pesquisas, uma vez que se trata de

    uma questo to cara s sociedades modernas.

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