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6 7— Peruca, cadê seu pai?

— Meu pai? Lá no fundo.

— Lá no fundo?

— É, lá no fundo. Guardando os engradados que acabaram

de chegar. Eu acho. Não tenho certeza. Ou talvez ele tenha dado

uma saída. Disse que precisava passar no Freitas, pegar guarda-

napos. Ou eram canudos? Um dos dois. Vai ver ele foi primeiro

lá no fundo, guardar os refrigerantes e depois passou no Freitas

pegar guardanapos e canudos. Ou só guardanapos. Ou…

— Tudo bem, Peruca. Tudo bem. Não precisa continuar.

Sento e espero. Givaldo, essa coxinha saiu agora? Dá uma pra

mim. Não! Não! Essa não, pelo amor de Deus! Pega a maior, Gi-

valdo. A maior. Essa aqui, ó. A outra parece um croquete, de tão

pequena. Tá louco? Agora deu para mutretar freguês antigo?

Quero a coxinha maior, rapaz. Essa do canto. Ô Peruca, fala para

ele. Venho aqui há um par de anos. Não vem regular comigo, não.

Fala pra ele, Peruca. Que sou freguês antigo do seu pai.

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dínei Mágicas. Vários mágicos profissionais compram lá. Então.

De mês em mês, Charllynho vai até o Stilus para que Rose teste,

na cabeça do próprio filho, sua mais recente invenção. Para azar

de Charllynho, a mãe alia um péssimo gosto a muita imaginação.

O resultado? De mês em mês, o pobre garoto sai do Stilus com o

cabelo mais feio do planeta. E não adianta tentar convencê-la do

contrário.

— Mãe…

— O que?

— Que tal um corte simples hoje? Hein? Básico. Só pra dar

uma variada. Hein? Igual ao de todo mundo…

— Ah, não! Não! Você não é “igual a todo mundo”. É meu

príncipe. Nada de “básico”. Vai, endireita essa cabeça. Não, mais

pra cá. Isso, retinho — e, com o filho em posição, punha mãos à

obra até sorrir, orgulhosa, frente ao trabalho concluído.

— Tchã-rã!! E então? Meu príncipe está um arraso!!

Assustado com o próprio visual, Charllynho mal conse-

guia responder.

— Ai, meu Deus, mãe. De onde você tirou esse corte de ca-

belo?

— De uma revista.

— De uma revista? Mas era assim mesmo? Tem certeza?

Com o topete deste tamanho?

— Ai, filho. Não lembro exatamente. Mas acho que sim.

Eu sou uma artista, meu lindo. Não saio copiando os outros. Vejo

o look dos astros de Hollywood e, em cima disso, crio. Artistas

criam, não copiam.

— Mas, mãe, nunca vi ninguém com um topete deste ta-

manho em Hollywood. Só em filme de terror.

— Charllynho…

— É verdade. Mais um pouco batia no teto… Estou parecendo o…

— Vai continuar com besteira? Se nunca viu igual, é por-

— É, sim. Antigo mesmo. Lembro. Desde que eu tinha oito

anos. Ou sete? Porque, com sete, eu ainda estudava lá na Briga-

deiro Galvão. Então talvez sejam oito. Mas com nove eu…

— Tudo bem, Peruca. Tudo bem. Já peguei minha co-

xinha, vou sentar no canto e esperar pelo seu pai, tá bom? Ve-

nha ele dos fundos, do Freitas ou de qualquer outro lugar.

Charllynho detestava ser chamado de Peruca. Óbvio. Pés-

simo apelido. Mas quem escolhe nosso apelido são os outros.

Infelizmente. Eu, por exemplo, num carnaval em Mococa, tentei

divulgar “Rambo do Ipiranga” como se fosse meu próprio ape-

lido. Na minha cabeça, impressionaria várias garotas. “Oi, tudo

bom? Sou o Rambo do Ipiranga. Qual o nome da gatinha?” Triste

ilusão. Triste ilusão. Não só não colou, como o maldito do Milti-

nho decidiu tirar um sarro e saiu espalhando que São Paulo intei-

ra me conhecia por “Barbie da Paulista”. Adivinhe como foi a noi-

te? Exato. Fracasso total. Total. Não, não. Não tem jeito. Quem

dá nosso apelido são os outros. O meu, o seu. O do Charllynho

também. Num dia qualquer, sem querer, alguém perguntou se

o cabelo dele era peruca. Dali a pouco, outro comentou sobre

o “moleque de peruca”. Pronto, o estrago estava feito. Sei que

Peruca não é legal, Charllynho. Muito pelo contrário. Mas repi-

to: ninguém escolhe o próprio apelido. Melhor aceitar. Você é

Charllynho Peruca. Melhor aceitar.

Não que, efetivamente, Charllynho usasse peruca. Não.

Onde já se viu? Um moleque usando peruca? Não. Aquele gran-

de volume encaracolado, subindo num enorme topete, é cabelo

mesmo. Sim, acredite. Cabelo. Medonho, não? Medonho.

Por que ele não corta? Escolhe um penteado mais normal?

Olha, bem que Charllynho queria. Um cabelo curto. Comum. Ah,

se queria… Mas Rose, sua mãe, trabalha como cabelereira. No

Stilus. Conhece? Não? O Stilus. Aquele salão de beleza na São

João. Parede rosa, ao lado da Rudínei Mágicas. É famosa, a Ru-

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colocou o negócio à venda. Charllão apressou-se na oferta. Meta-

de à vista, metade na parcela. E a antiga “Princesa da Aurora” deu

lugar à “Charlly’s Lanches”. Mês seguinte, por conta de um pré-

datado, foi àquele atacadão na Casa Verde tirar satisfação com

o fornecedor de frango. Entrou furioso, pronto para a porrada.

Mas se encantou com a mocinha que ficava no caixa. Esqueceu

cheque, frango ou briga e, em pouco tempo, estavam casados.

Charllynho nasceu seis anos depois. Hoje, moram no andar de

cima. Os três.

Eram quatro. Sim, quatro. Charllynho tem uma irmã, al-

guns anos mais velha. Thanilly. Mas, véspera de Natal retrasa-

da, após um enorme quebra-pau com os pais, ela saiu de casa.

Charllynho nunca mais teve notícias. Até tentou perguntar. Mas,

como Charllão fechava a cara e Rose se desfazia em lágrimas,

achou melhor não tocar mais no assunto. E, hoje, moram no an-

dar de cima. Só os três.

Eu gosto da Charlly’s Lanches, sabe? Gosto. Gosto, sim.

Frequento. Não direto, mas frequento. Afinal, tem coisa melhor

do que petisquinho e bate-papo no fim do trampo? Não tem, não.

Delícia. Mas, para ser sincero, é uma lanchonete como qualquer

outra. Mesmo jeitão. Aliás, pensando bem, talvez tenha sido o

motivo pelo qual Charllão inventou o XisXarllys. Para se diferen-

ciar da concorrência. Quer minha opinião? Sanduíche horrível.

Ora, X-salada com abacaxi? Dá licença… Horrível. Não entendo

como alguém pode comer hambúrguer com abacaxi. Não enten-

do. Mas, pelo visto, sou minoria. Assim que a faixa “experimente

o sensacional XisXarllys” foi colocada sobre o toldo, muita gente

das redondezas começou a ligar para a lanchonete atrás do seu.

Charllão achou que daria conta. Bastava mandar um dos dois

funcionários, Givaldo e Minhoca, levar os pedidos. Mas o que

ficava, invariavelmente, não conseguia dividir a atenção entre

chapa e balcão. Então, cansado de tantos fregueses reclamando e

que só você tem, meu lindo. Só você tem. E sabe por que? Sabe?

— Para ser avacalhado?

— Não, seu tonto! Por que você é especial, Charllynho.

Não é como os outros. Não é qualquer um. É especial — piscava,

cúmplice, sacudindo a toalha que cobria o filho.

E lá seguia Charllynho Peruca, três quarteirões Auro-

ra acima, até a esquina com a rua do Arouche, divertir o pesso-

al da lanchonete com mais um penteado absurdo. No caminho,

esforçava-se para acreditar em sua mãe. “Sou especial”, repetia.

“Único”. Mas, à primeira gargalhada seguida de “Peruca nova,

Charllynho?”, desistia. O que, afinal, a mãe queria dizer com

aquilo? “Especial.” Charllynho não sabia. Vestia o colete verme-

lho e sentava desanimado no degrau da frente, esperando Charl-

lão anunciar a próxima entrega.

Charllão, como você deve imaginar, é o pai de Charllynho.

Os dois, Charllys. Charllys Carvalho Souza e Charllys Carvalho

Souza Junior. Charllynho, claro, é o Junior. Nenhum pai é Junior.

A não ser que seja Junior do avô. Mas, nesse caso, o filho tem que

ser “Junior-Junior”. Ou “Junior 2”. Não conheço nenhum. Junior-

Junior. Você conhece? Também não? Mas deve existir, né? Deve.

Afinal, tem de tudo neste mundo. De tudo. Uma tia do Claudinei,

que trabalha comigo, se chama Gaveta. É mole? Gaveta. Se é so-

brenome? Não, não. É nome. Gaveta. Tia Gaveta. Ora, se existe

uma mulher chamada Gaveta, certamente existe alguém de so-

brenome Junior-Junior. Certamente. Mas, enfim, não é o caso

aqui. Charllys Junior. Só.

Toda tarde, depois da escola, Charllynho batia cartão na

lanchonete. Aos sábados e domingos, expediente completo, nove

às sete. Inicialmente, sem função específica. “Fica aí olhando e

aprende como tocar o comércio”, foram as ordens do pai. Charl-

lão trabalhava lá desde que chegara a São Paulo. Após três anos

no balcão, o antigo dono se meteu num rolo com a ex-mulher e

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bifes queimando, Charllão mudou de ideia. E “promoveu” o filho

a entregador.

Por isso lá está ele. Sentado no degrau da frente. De co-

lete vermelho. Nas costas, “Charlly’s Lanches Sanduíches Por-

ções Almoço Marmitex Fazemos Entregas 3862-5121” bordado

em amarelo. Esperando o próximo pacote, o próximo endere-

ço. É mais um dia de sua vida. Mais um dia da vida sem graça de

Charllynho Peruca.

14 15(foto SP) (foto SP)11 DE MARÇO

16 17Diferente do meio de semana, quando a lanchonete vivia

num frenético entra e sai do pessoal que trabalhava por perto, os

sábados e domingos se arrastavam lentamente. Os mesmos fre-

gueses, debruçados no balcão, horas a fio. Aqueles a quem o fim

de semana esquecera de incluir na sua lista de convidados.

— Caubyyyy!

Charllynho seguia sentado no degrau quando ouviu o gri-

to de um deles. Dona Matilde. Anunciando, com estardalhaço,

sua chegada ao Charlly’s. Como fazia todo sábado, onze e meia

da manhã.

— Caubyyyy! — repetiu, no volume máximo.

Charllynho não deu bola. Afinal, não era com ele. Seu

nome era Charllys Junior. Não Cauby.

— Tá a cara do Cauby, menino! Que penteado lindo! — a

velha parou em frente a Peruca, apertando com força suas boche-

chas — A cara do Cauby!

Era com ele.

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Manfred, ao contrário dos demais, mantinha a boa educa-

ção. Fosse a cantada do dia “Poderoso Thor”, “Deus Nórdico” ou

“Flash Gordon”, sempre retribuía o cumprimento, sorridente.

— Como vai, dona Matilde? Comigo tudo bem, também.

Graças a Deus. Givaldo, por favor, uma água com gás. É, com gás.

Quais marcas você tem?

— Quais marcas?

— Sim, quais marcas de água com gás. San Pellegrino?

Perrier? Vichy?

— Ô alemão, metido à besta. Você tá cansado se saber que

só tem essa aqui, ó. Nada desses nomes, não. Aqui não é lugar de

fresco. Fala para ele, Peruca. Marca de água com gás? Onde já se

viu... — Givaldo gargalhava — Água é água, alemão. Fala para ele,

Peruca. Água é água, ora essa!

Ao contrário do garçom, Charllynho admirava Manfred.

Após vinte e dois anos de fartura, o taxista perdera todo o di-

nheiro com a morte do pai. Como a vida despreocupada não lhe

dera uma profissão, raspou a pequena herança no ponto da Bento

Freitas. Uma década depois, as histórias dos tempos áureos ain-

da eram seu assunto predileto. Contava-as diariamente no táxi,

não importando quem fosse o passageiro. Aos sábados, quando

o movimento caía, narrava-as no Charlly’s. Viagens internacio-

nais, festas sofisticadas e jantares caríssimos. Do que restava na

vida de Manfred, só as lembranças o mantinham de pé.

— Charllynho, meu jovem, não dê ouvidos a esse desclas-

sificado. Ele não entende nada de águas com gás. Nada. Eu, que já

rodei o planeta, conheço mais de cem tipos de sparkling water.

Impressionado, Peruca sentava-se a seu lado para ouvir

histórias que pareciam revelar a existência de um mundo muito

diferente daquele a que estava acostumado.

— Cem tipos? Jura? Onde?

— Em vários lugares. Vários. Punta, Aspen, Genéve… Vá-

— A cara de quem, dona Matilde?

— Do Cauby!

— Quem?

— Não conhece o Cauby? Cauby Peixoto. Cantor.

— Não, não conheço.

— Tá a cara dele, linducho! Dê os parabéns à Rose. Sua

mãe acertou a mão desta vez — e, virando o rosto do menino,

completou — se bem que, aqui atrás, ela inventou, né? O Cauby

não tinha esse raio na nuca, não... Mas, olhando de frente, tá lin-

do! Lindo! Vem cá, Cauby, dá uma beijoca!

Lambuzou Charllynho Peruca de batom vermelho e sen-

tou-se — Givaldinho! Aquela água que passarinho não bebe,

anjo! Capricha, minha tentação morena.

Givaldo enchia o copo sem dar ouvidos à tanto assanha-

mento. Não só ele, aliás. Ninguém se animava com aquela mulher

pra lá dos sessenta, falando alto e bebendo cachaça a tarde inteira

até se levantar, completamente trôpega, no início da noite.

Porque dona Matilde não limitava o desfile de seu duvido-

so charme a um único alvo. Não, não. Atirava para todos os lados.

Até comigo, uma vez, tentou se engraçar, acredita? Sério. Naque-

la época em que, por conta da auditoria, a gente trabalhou alguns

fins de semana. Tentou, sim. Juro. Eu estava com o Claudinei,

tranquilo, quando a velha berrou do outro lado do bar: “Bonitão

de camisa cinza! Já disseram que você parece o Mário Gomes?”

Quequeéisso... Não tive dúvidas: dei um chega pra lá na mangua-

ceira. “Sai fora, tia! Não sou coveiro pra encarar defunto.” De

bate pronto. “Não sou coveiro pra encarar defunto.” Boa, não?

Boa, boa. O Claudinei rachou o bico. Depois, confesso, me vi no

espelho e achei até que ela tinha razão. Eu e Mário Gomes éra-

mos mesmo parecidos. O jeito de olhar, sabe? O jeito de olhar.

— Manfred bonitãão! Dá um oi aqui pra Matildinha, dá?

Meu Poderoso Thor!

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não saber o significado daquelas palavras difíceis, fingia que sim,

assertindo com a cabeça.

— Entendi sim, Manfred. Entendi. E como eu consigo?

— Consegue o que?

— Sonhar isso.

Quando o taxista se preparava para responder, a conversa

foi cortada por Charllão, berrando do caixa:

— Charllynhô! Chega de papo! Hora de trabalhar, mole-

que! Pega com o Minhoca dois XisXarllys e entrega aqui. Aqui.

Toma aqui — e deu ao filho um endereço anotado à mão. — Sabe

onde é, né?

— Sei sim, pai. Floriano. Sei. É pra lá. Pra lá… Ou pra cá?

— Ai, moleque. Preste atenção. Vai reto. Reto. Chegou no

Patriarca, pega a Direita, até o fim.

— Até o fim.

— Até chegar na praça.

— Até chegar na praça. Sei, sei… Peraí, pai… Peraí. Até o

fim? Ou até chegar na praça?

— Filho! O fim é na praça! O fim é na praça! É a mes-

ma coisa! Jesus Maria José!

— Entendi, pai. Entendi. Desculpe. Já estou indo.

rios. Mesmo aqui em São Paulo existem opções. Nos Jardins, na

Vila Nova…

— Aqui? Em São Paulo? Por que meu pai não compra?

— Ah, Charllynho. O público desta área é muito sem clas-

se, sabe? Não conseguiria apreciar.

— Eu conseguiria. Eu conseguiria. Daqui a alguns anos,

quando tiver idade, tiro carta para fazer as entregas de moto,

sabe? Aí posso conhecer esses lugares.

— De moto?

— É, de moto — Charllynho respondia animado — É meu

sonho.

— Não, não, não. Que sonho mais sem classe, menino.

— Sem classe?

— É, Charllynho. Motoboy? Muito sem classe. Preci-

sa ter sonhos maiores.

— Maiores?

— Maiores.

— Hmmm… — Charllynho pensava, tentando descobrir o

que seriam os tais “sonhos maiores” — Acho que entendi, Man-

fred. Então quero ser chapeiro! Isso, chapeiro! Que nem o Mi-

nhoca.

Com as mãos na cabeça, simulando desespero, o taxista o

interrompeu — Não, Charllynho! Não! Chapeiro? Não!

— Não?

— Não! Pense em algo mais sofisticado. Olhe para o Mi-

nhoca, menino! Isso lá é sonho?

Charllynho olhava para o magricela de avental azul, canta-

rolando enquanto preparava os sanduíches. Não lhe parecia tão

ruim assim, para dizer a verdade. Mas Manfred seguia em frente:

— Chef de cuisine, designer, diplomata. Manhattan, Paris,

London. Isso sim, são sonhos com classe. Entendeu?

Não. Charllynho não entendia. Porém, com vergonha por

22 23“Tom Cruise.”

“Malu Mader.”

“Madonna.”

“Minhoca.”

“Não, não é o Minhoca. Como se chama aquele cantor es-

quisitão? Michael Jackson. Isso. Michael Jackson.”

Enquanto os olhos de Charllynho admiravam os rostos

desenhados à lapis, na República, sua mente insistia em quais se-

riam os sonhos maiores que devia querer para si. Os tais sonhos

com classe. Se Manfred tivesse ao menos soletrado aquelas pala-

vras complicadas, ele…

— Quer que eu faça seu retrato?

Charllynho virou-se para o barbudo sentado ao lado dos

desenhos — Meu?

— É. Seu. Tá parado há um tempo aqui. Posso fazer um

igualzinho a este, do Tom Cruise.

— Igual ao Tom Cruise? —empolgou-se o menino.

— Igual, claro. Igual. Quer dizer, igual no sentido de mes-

mo estilo. Porque a cara do Tom Cruise é dele. E a sua é sua.

— Entendi. Sabe, nunca havia reparado que ele era vesgo.

— Vesgo?

— Vesgo. O Tom Cruise. Ele está vesgo no desenho. Olha

só — completou, apontando o dedo para a folha de papel. O ve-

lho hippie se irritou:

— Tá me tirando?

— Eu. Não, não. Desculpe. Pensei que ele fosse mesmo

vesgo e, nos filmes, o pessoal da computação gráfica corrigisse.

Que nem este desenho da Malu Mader. Não sabia que era narigu-

da. Mas a tv engana, né? Ela deve mesmo ser nariguda. Parece até

um travesti, olha só o tamanho do…

— Aê, pivete. Você tá me tirando. Quer tomar um

corretivo?

— Eu? Não, não. Desculpe. Desculpe, desculpe.

— Vai o retrato ou não? Quinze.

— Quinze?

— Quinze. Quinze reais.

— Quinze reais? — Charllynho apalpou os bolsos da calça,

atrás de um dinheiro que sabia não possuir — Não tenho. Não te-

nho quinze reais. Tenho dois. Não, não. Dois e cinquenta. Achei

uma moeda aqui no…

— Sai fora, pivete! Sai fora, que já tô na pilha pra te

socar!

Charllynho Peruca, evidente, disparou. Mesmo porque,

precisava entregar os XisXarllys. Senão esfriam, o freguês re-

clama e sobra pra ele. Sempre sobra pra ele. Cruzando a Barão,

pensava que, se a gorjeta fosse de quinze reais, posaria para um

desenho. Não, não. Nem precisava de quinze. Doze e cinquenta.

Doze reais e cinquenta centavos bastavam. Havia o risco de apa-

nhar do velho, mas valeria a pena. Porque o Tom Cruise, vesgo

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— Tenho dois. Dois e cinquenta, porque achei uma…

— Dááá ele aquiiiii!

— Meu dinheiro?

— Siiiiim!

— Por quê?

— Porque eeesta mããão precisa de dinheeeeiro para

entrar, soziiinha, naqueeele saaaco!

— Hã?

— Siiiim! Dááá aqui os dois e cinqueeeenta! Não tem

maaaais, nããão?

— Não, só… — e, mal Charllynho sacou nota e moeda do

bolso, o gordão tomou-os para si e colocou no saco plástico, vol-

tando-se rapidamente para toda a platéia.

— Agoooora! Vocês vão veeeeer! Eeesta mããão! Ee-

esta mããão fantaaasma vai entrar naqueeele saaaco!

E não é que a mão começou mesmo a andar? Um pulo tor-

to aqui, outro ali e, em menos de um minuto, já estava lá dentro.

Impressionante.

Todos aplaudiram com entusiasmo e voltaram às suas vi-

das. Charllynho continuava parado.

— Que foi? O show acabou. — disse o gordão, desta vez

com voz normal.

— Meu dinheiro.

— Quê?

— Meu dinheiro. Eu dei dois e cinquenta. Para a mão en-

trar no saco.

— Eu sei.

— Então. Cadê?

— Cadê o quê?

— O meu dinheiro.

— Ih. Já era. A mão levou — e desatou a gargalhar, enquan-

to empacotava tudo e ia embora.

ou não, é um astro. Famoso. E deve ser isso o que Manfred quis

dizer. Sobre ter classe. Deve ser isso. Bastava dar sorte na gorjeta,

e pronto. Ele também teria classe.

Alcançou o Patriarca. Próximo à estátua, vinte e poucas

pessoas de aglomeravam em círculo. Ficou curioso e parou para

ver também. Entre um saco plástico e uma mão decepada de bor-

racha, ambos no chão, um gordo cabeludo gesticulava com voz

gutural:

— Eeesta mããão! Eeesta mããão fantaaasma vai en-

trar naqueeele saaaco! Soziiinha! Queeem duvida? Quee-

em duvida?

Todos mantinham silêncio, atentos.

— Queeem duvida? Eeesta mããão! Eeesta mããão

fantaaasma. Vai entrar, soziiinha, naqueeele saaaco! Que-

eem duvida?

Charllynho duvidava. Ora, como uma mão de borracha vai

andar cinco metros até um saco? Impossível. Completamente

impossível.

— Queeem duvida? Estão com meeedo? Vocêêê, me-

nino! Está com meeedo?

— Eu?

— É, vocêêê, do cabelo engraçaaado! Veeenha!

Charllynho foi.

— Vocêêê acredita que eeesta mããão fantaaasma vai

entrar, soziiinha, naqueeele saaaco?

— Eu? Bom, pra ser sincero com o senhor, não acredito,

não. Porque quem anda são as pernas. Ou patas, no caso dos…

— Nããão?

— Não. Quer dizer, se…

— Vocêêê teeem dinheeeiro?

— Dinheiro?

— Dinheeeiro!

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— Querido, sou Rivelino, zelador deste prédio, e es-

tou lhe dizendo: o quarenta e cinco era uma ótica.

Charllynho já não sabia o que responder.

— Mas eu tenho aqui anotado, olhe…

— Tudo bem, garoto. Tudo bem. Sobe lá — e, saindo de

lado, revelou uma escada estreita e mal iluminada —Dois lances,

terceira porta à esquerda. Tem uma placa. Ótica.

Peruca já tinha assistido vários filmes de terror. Vários.

Gênero que eu, particularmente, não curto. Aquele monte de

sangue jorrando, gritaria. Não, não curto. Mês passado o Clau-

dinei agitou com a Michelle, do crédito fácil, um cineminha. Ela

falou que iria levar uma amiga, então fui na cola. Mas a anta do

Claudinei escolheu “O massacre dos zumbis sangrentos”. Anta.

Como achava que eu iria conseguir chegar na gatinha com aquele

monte de tripas voando na tela? Sem condições. Passei mal. Mal

mesmo. Ele? Nem aí. Ficou curtindo o escurinho. Mas eu passei

mal. A amiga nem quis deixar telefone. Comigo, nada de crédito

fácil. Maldito Claudinei.

Mas por que estou contando essa história? Zumbis san-

grentos e meninas do crédito fácil? Não, não. Quero esquecer

aquela tarde. Voltemos ao Charllynho. Como ia dizendo, ele já

tinha assistido vários filmes de terror. Mas, ao subir os degraus

sujos e crepitantes, concluiu que era muito diferente ver pela te-

levisão e sentir-se dentro de um. O corredor? Pior ainda. Parca-

mente iluminado por uma janelinha bem lá no fundo. Deserto e

empoeirado. Morrendo de medo, passou a primeira porta. A se-

gunda. Na terceira, em tinta descascada, “Ótica Lopes — cj.45”.

Tocou a campainha.

Nada.

Tentou de novo, imaginando que, se não houvesse respos-

ta desta vez, voltaria. “Ninguém quis receber, pai.”

Mas a porta se abriu. Pela fresta, uma cigana enorme, ve-

Charllynho? Charllynho mantinha-se imóvel. Fora en-

gambelado. Dera o pouco dinheiro que possuía a um mutreteiro

profissional. Para piorar, os XisXarllys já deviam estar comple-

tamente gelados. Gorjeta boa, nem pensar. Mas engoliu a raiva e

seguiu adiante. Fazer o que?

Em poucos minutos, chegava ao fim da rua Direita. Era ali.

Floriano Peixoto, número doze. Ai, meu Deus. Era ali. Naquele

enorme prédio caindo aos pedaços, com pinta de mal assombra-

do. “Não vou entrar nesse lugar, não” pensou. “Não, não.” En-

saiou voltar. Mas como explicar ao pai? “Desculpe, eu demorei

porque fiquei olhando as banquinhas na República, depois caí

no conto de um trapaceiro e, finalmente, tive medo de entrar no

prédio, por isso não entreguei o lanche.” Era surra na certa. Sinto

parecer repetitivo, Charllynho, mas fazer o que? Seguir adiante.

Seguir adiante.

Ao se aproximar, reparou que um moleque maltrapilho,

parado na esquina, o encarava. “Deve ser viciado”, pensou. “Tem

muito moleque viciado na rua. Por que está me olhando? Será

que planeja me assaltar?”

Faltando pouco para a porta enferrujada, o menino ainda

o fitava. Apreensivo, Charllynho nem notou que um careca de ca-

misa azul clara fechava a entrada do prédio e deu-lhe uma sonora

trombada.

— Desculpe, senhor. Desculpe, eu não vi que…

— Calma, calma. Posso ajudar?

— Vim fazer uma entrega. Conjunto quarenta e cinco. Em

nome de Edileine. Sou da Charlly’s Lanches. Charllys Junior.

— Quarenta e cinco? A antiga ótica.

— Ótica?

— Ótica. O quarenta e cinco era uma óptica.

— Não sei. Tenho aqui anotado Edileine, conjunto qua-

renta e cinco.

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lha e desdentada, encarou Charllynho que, cada vez mais apavo-

rado, mal conseguia abrir a boca.

— E-e-e-e-e...

— Edileine.

— Sim, sim. Lanches. Sanduíche.

— Demorou, hein?

De tão assustado, Peruca não falava coisa com coisa.

— XisXarllys. Mão fantasma. Tom Cruise.

— É louco? Dá aqui a sacola. Toma, toma o dinheiro

— e bateu a porta com força.

Assim, lá vai Charllynho Peruca. Pela segunda vez no mes-

mo capítulo, correndo em disparada pelas ruas.