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Os princpios estruturantes do acordo TRIPs: um contributo para a liberalizao do comrcio mundial.

Os princpios estruturantes do acordo TRIPs: um contributo para a liberalizao do comrcio mundial.*

Por Alberto Francisco Ribeiro de Almeida

Sumrio: 1. Introduo. 2. Origem da OMC. 3. Gnese do acordo TRIPs. 4. Princpios e regras gerais. 5. Princpio do tratamento nacional. 6. Princpio do tratamento da nao mais favorecida. 7. A relevncia da insero destes princpios na propriedade intelectual enquanto elemento de um sistema de comrcio multilateral. 8. Esgotamento dos direitos de propriedade intelectual. 9. Aplicao efectiva. 10. O acordo TRIPs no post Ciclo do Uruguai. 11. Concluso: a exportao de um modelo consequncias econmicas.

1. Introduo. O capitalismo comercial fins do sculo XV at os finais do sculo XVIII (espelho da mentalidade burguesa que rompe com o esprito nobilirquico ou cavalheiresco medieval, que seculariza a actividade material e que se afasta do ideal social da doutrina cannica da Igreja) desenvolve uma poltica mercantilista (que se iniciou, como teoria, nas obras dos chamados bulionistas e que se centrou, fundamentalmente, nas medidas adoptadas por polticos como lord Burghley, Richelieu ou Colbert) de ndole nacionalista-intervencionista, reditcia-acumulativa (mediante o aumento do estoque de metais preciosos com vista ao engrandecimento do Estado) e isolacionistaproteccionista (atravs, designadamente, de elevadas pautas alfandegrias), mas impregnada de um profundo individualismo racionalista (alienado de concepes*

Texto publicado no Boletim de Cincias Econmicas da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2004. Pg.1

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teocntricas e pressupostos metafsico-teolgicos) que vaticina a revoluo industrial e o capitalismo moderno. A viragem para a doutrina do laissez faire, laissez passer, le monde va de luimme (o princpio da liberdade enquadrado numa ordem natural racionalista prestabelecida e em perfeita harmonia a herana do sculo da razo) inicia-se com os fisiocratas franceses (apesar da sua viso estreita da economia e do vnculo com a monarquia absoluta) e desenvolve-se, de forma comprometida com os interesses econmicos ingleses, com a Escola Clssica inglesa ( a poca da liberalismo clssico). Neste perodo (fins do sculo XVIII at 1914) a situao econmica caracterizava-se, genericamente, por uma economia de mercado (livre exerccio dos mecanismos de autoregulamentao do mercado), pelo no intervencionismo do Estado (o livre jogo das foras econmicas privadas assegura a harmonia entre o interesse individual e o interesse colectivo nacional e internacional), pela liberdade de trabalho, de indstria e de comrcio, pela existncia (sintoma mnimo da presena do Estado) de pautas aduaneiras estveis e moderadamente baixas (exaltando-se, assim, o livre cmbio internacional1), e pela ausncia de assuno de obrigaes no plano internacional (salvo acordos bilaterais, mas que pela sua natureza simplesmente bilateral no colocavam restries ao desenvolvimento do comrcio internacional2)3. Contudo, existem dois momentos: a poca capitalista ou da revoluo industrial (at 1870) e a poca do capitalismo financeiro (at 1914). A primeira caracteriza-se por uma economia de liberdade e concorrncia, por um capitalismo de pequenas unidades. A segunda poca1

Sublinhe-se que Frederico List defendia o proteccionismo na fase inicial do desenvolvimento nacional e quando o pas estivesse em condies de competir poderia abrir-se ao intercambismo, tal como o tinha feito o Reino Unido (poltica proteccionista nos sculos XVII e XVIII, livre-cambista no sculo XIX). A teoria de List, principalmente atravs de Henry Charles Carey (discpulo de List), influenciou a poltica comercial dos EUA que, em 1816, estabeleceram legalmente o proteccionismo (que se manteve aps a Guerra de Secesso). 2 Estamos perante tratados de amizade, comrcio e navegao que se irradiaram a partir de 1860 com o tratado entre a Frana (o grande negociante foi Michel Chevalier) e a Inglaterra (o famoso tratado Cobden-Chevalier). Todavia, este tratado tinha a novidade de ter consagrado a clusula da nao mais favorecida. Ora, como os tratados bilaterais posteriores se inspiraram, em regra, naquele, todos contriburam, em virtude da clusula da nao mais favorecida, para o estabelecimento de um comrcio multilateral baseado no livre-cmbio. 3 Como referimos no texto, o liberalismo clssico, principalmente no plano da economia internacional, servia os interesses britnicos em virtude da supremacia indiscutvel da sua economia (o poderia polticomilitar do Reino Unido, o desenvolvimento da sua indstria, a expanso colonial que garantia o fornecimento de matria-prima barata, asseguravam economia britnica uma capacidade de produo e de exportao em todos os sectores comerciais sem qualquer receio de concorrncia). Pg.2

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evidencia uma concorrncia alterada por elementos exgenos, isto , um capitalismo de grandes unidades (concentraes, cartis, trusts, holdings, etc.). Aps a primeira guerra mundial4 (com a morte, j anunciada, do capitalismo clssico de liberdade e concorrncia perfeitas) a que acresce a catstrofe financeira de 1929 (a exigir um forte intervencionismo estatal perante a ineficcia dos mecanismos autoreguladores) as regras do comrcio mundial moldam-se pelo proteccionismo ( a poca do nacionalismo econmico): elevao dos direitos de importao (de que exemplo a pauta Smoot-Hawley dos EUA); restries quantitativas; estmulos exportao (prmios e auxlios pblicos s empresas e incentivos ou imposies constituio de cartis); poltica de dumping; controlo de cmbios (atravs do mecanismo de cmbios mltiplos ou da desvalorizao da moeda nacional); e outros entraves ao comrcio (relevante a adopo pelo Reino Unido em 1932 do sistema de preferncias imperiais).5 O ps-guerra perturbou as trocas mundiais (sem negligenciar a insensatez dos aliados na questo das reparaes e dvidas de guerra) mediante a acentuao de tendncias autrquicas (num obstinado nacionalismo, cada nao decidiu restabelecer a economia por si prpria, ou seja de forma unilateral e discriminatria) e a consequente ausncia de uma normalizao da economia internacional (uma verdadeira guerra comercial externa desenfreada6), num momento em que se exigia cooperao internacional face a novas unidades polticas e potncias econmicas que alteravam o mapa geo-estratgico regional e mundial.

2. Origem da Organizao Mundial do Comrcio (OMC)

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Contudo, antes do fim do sculo XIX, os princpios comerciais proteccionistas j se tinham espalhado por quase todo o mundo. Mesmo a Inglaterra na dcada de 1880-1890 manifestou tendncias proteccionistas. O mecanismo de eleio eram os impostos alfandegrios (dando lugar a guerras aduaneiras), cujo mbito merceolgico variava em funo dos interesses nacionais a proteger. Sobre a evoluo do proteccionismo vide, em especial, Bernard GUILLOCHON, Le protectionnisme, ditions La Dcouverte, Paris (2001), 19, ss. 5 certo que nos anos 30, durante a administrao Roosevelt, adoptado o Reciprocal Trade Agreements Act com um sentido timidamente liberal, consagrando a clusula da nao mais favorecida. Todavia, esta clusula no mereceu, nesse momento, acolhimento, significando para muitos governantes atribuir benefcios a outros. 6 No plano convencional fica prejudicada a clusula da nao mais favorecida constante de acordos comerciais, sendo de realar a exclusiva consagrao de regras que possam ser vantajosas para as partes participantes na conveno (por exemplo, acordos de contingentamento). Pg.3

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Num climate of cultural and linguistic privatization being advanced through outright copyright and trademark harassment. (..) a competitor is anyone doing anything remotely related, because anything remotely related has the potential to be a spin-off at some point in the synergistic future. NAOMI KLEIN, No Logo, New York (2002), 177.

Os erros cometidos aps a I Guerra Mundial constituram uma lio quando a II Guerra Mundial estava a acabar. A conferncia de Bretton Woods (Julho de 1944) tentou antever os problemas do aps guerra mediante a construo de mecanismos que assegurassem a cooperao internacional e a regulao internacional do comrcio, ou seja, o estabelecimento de relaes econmicas multilaterais institucionalizadas com a consequente limitao (de intensidade varivel) estadual da autonomia intervencionista (em especial no plano comercial, monetrio e financeiro) e transferncia (de extenso oscilante) de poderes soberanos para instituies internacionais. Criaram-se dois organismos: o International Bank for Reconstruction and Development Banco Mundial (destinado concesso de crditos a longo prazo para a reconstruo europeia) e o International Monetary Fund (FMI). No domnio da disciplina do comrcio internacional previu-se que no seio da Organizao das Naes Unidas (ONU) existisse um Conselho Econmico e Social com o objectivo de criar um terceiro pilar: uma organizao internacional do comrcio. Esta construo institucional inserida nos objectivos das Naes Unidas deveria contribuir para garantir a paz, a segurana internacional, a melhoria das condies de vida (assegurando o pleno emprego, condies de progresso e desenvolvimento econmico e social, e a colaborao internacional cultural e educativa) e, consequentemente, eliminar as causas de conflitos. A edificao de uma ordem econmica neo-liberal no aps guerra implicava um afastamento quer do liberalismo clssico quer, em especial, do nacionalismo econmico, exigindo, ao invs, a aproximao a um liberalismo organizado, institucionalizado, internacionalizado e garantstico (embora, como veremos e cumprindo a histria, funcionalizado e amplamente merceolgico-mercvel ou tradeoff). Todavia, as dificuldades eram mltiplas: a ausncia de uma regularizao (ou simples cooperao) do comrcio internacional; os problemas econmicos (incluindo a instabilidade monetria) do aps guerra transcendiam os cerrados nacionalismosPg.4

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poltico-econmicos; a reconstruo europeia e a crescente tenso entre a Europa Ocidental e a URSS; e a eliminao dos impedimentos e proteccionismos nacionais (impostos aduaneiros elevados; restries quantitativas e qualitativas; controlo de cmbios; etc.). Dificuldades que constituam desafios para o Conselho Econmico e Social (entre 1946 e 1948) aquando da conferncia de Havana destinada a elaborar uma carta constitutiva de uma organizao internacional do comrcio (Carta de Havana)7. A Carta de Havana era ambiciosa: consagrao de uma gradual liberalizao internacional do comrcio de produtos; regulamentao no domnio das prticas comerciais restritivas e, genericamente, dos obstculos ao comrcio, dos investimentos internacionais, dos servios e dos produtos de base; disciplina no domnio do emprego (designadamente na consecuo de condies justas de trabalho), do desenvolvimento econmico e da reconstruo (promovendo-os); regras sobre a resoluo de diferendos; e a criao de uma Organizao Internacional do Comrcio (OIC) com uma estrutura funcional obediente diviso de poderes, que deveria funcionar como uma agncia especial das Naes Unidas. Todavia, a Carta de Havana nunca entraria em vigor (aps

O processo com vista ao estabelecimento dessa organizao comeou em Fevereiro de 1946 com uma deciso do Conselho Econmico e Social (Resolution calling a United Nations Conference on Trade and Employment for the purpose of promoting the expansion of trade and production, exchange and consumption of goods; palavras inseridas no primeiro pargrafo da acta final da referida conferncia que aprova a Carta de Havana). Um primeiro projecto (baseado numa proposta dos EUA) foi apresentado em Westminster entre Outubro e Novembro de 1946, mas sem sucesso (divergncias surgiram, de modo especial, no domnio da votao, disposies organizacionais e on state trading), tendo sido acordado que se iniciassem negociaes sobre as pautas aduaneiras e o comrcio com vista concluso de um acordo geral. Em Nova Iorque, nos incios de 1947, um Comit especial apresentou um segundo projecto da Carta e um projecto completo do acordo geral. As negociaes continuaram em Genebra (entre Abril e Outubro de 1947), tendo sido apresentado em Setembro um projecto da Carta para ser discutido em Havana e foi adoptado o texto do Acordo Geral sobre Pautas Aduaneiras e o Comrcio (GATT) em 30 de Outubro para entrar em vigor em 1 de Janeiro de 1948 (ano em que teve lugar a primeira reduo das pautas aduaneiras em consequncia deste primeiro ciclo round de negociaes comerciais pautais multilaterais). Finalmente, entre 21 de Novembro de 1947 e 24 de Maro de 1948, teve lugar a conferncia de Havana com a aprovao da Carta. Sobre esta evoluo veja-se Guide to GATT Law and Practice, Analitical Index, WORLD TRADE ORGANIZATION, Volume I, Geneva (1995), 3, ss. Para uma breve anlise histrica vide WOLFGANG FIKENTSCHER, GATT Principles and Intellectual Property Protection, in IIC Studies, 11, GATT or WIPO? New Ways in the International Protection of Intellectual Property, Friedrich-Karl BEIER and Gerhard SCHRICKER (ed.), Published by the Max Plank Institute for Foreign and International Patent, Copyright, and Competition Law, Munich (1989), 101, ss., e Daniel JOUANNEAU, Le GATT et lOrganisation Mondiale du Commerce, Presses Universitaires de France, Paris (1996), 5, ss. Pg.5

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a recusa da sua ratificao por parte do Congresso dos EUA8, apesar deste pas ter sido o seu promotor) e a OIC no chega a nascer. Neste quadro, em Outubro de 1947, 23 Estados (incluindo os EUA, pois o Reciprocal Trade Agreements Act legitimava, em condies de reciprocidade, o presidente a reduzir os direitos aduaneiros9) avanam com o GATT (General Agreement on Tarifs and Trade Acordo Geral sobre as Pautas Aduaneiras e o Comrcio) destacando do projecto da Carta de Havana o captulo IV relativo poltica comercial internacional. Assim, este Acordo Geral muito menos ambicioso que a Carta, pois est muito circunscrito nos seus objectivos e competncias (designadamente est desprovido de todo o contedo programtico da Carta de Havana; contedo que seria, porventura, contraditrio com um simples instrumento de liberalizao progressiva das trocas, modelado e dirigido por uma vontade histrica, poltica e economicamente situada)10. O GATT, tratado multilateral em forma simplificada e no um tratado internacional no sentido formal, mas um simples acordo contratual entre Estados (designados, por isso, como partes contratantes e no membros11), dotado de uma estrutura institucional flexvel (sem funcionrios prprios por incapacidade jurdica do GATT12), entra em

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O Congresso dos EUA era maioritariamente republicano (o presidente, Truman, era democrata) e defensor das novas orientaes isolacionistas. Por outro lado, as relaes entre os EUA e o Reino Unido tinham-se deteriorado em virtude deste pas pretender manter (em derrogao aos princpios da Carta) o sistema de preferncias imperiais no seio da Commomwealth. Por fim, alm de os EUA recearem que a sua liberdade no domnio comercial fosse restringida com uma organizao mundial do comrcio, a guerra-fria orientou as trocas comerciais norte-americanas para os aliados europeus ocidentais, pelo que um dos fundamentos para a constituio da OIC caiu (num mundo dividido em dois, no h lugar a uma organizao internacional). Diz-nos Daniel GERVAIS, The TRIPs Agreement Drafting History and Analysis, Londres (2001), 4: (...) it is fair to say that a preceived loss of sovereignty was a key element of the decision (refere-se deciso do Congresso). Veja-se, ainda, Daniel JOUANNEAU, ob. cit., 19, ss. 9 Na reunio preparatria da conferncia de Havana (que teve lugar em Genebra, como vimos) j os EUA tinham manifestado uma forte vontade de se proceder a negociaes com vista ao abaixamento das robustas barreiras pautais em vigor (... meet to negotiate concrete arrangements for the relaxation of tariffs and trade barriers of all kinds). Vide Guide to GATT Law and Practice, ob. cit., 5. 10 A no entrada em vigor da Carta de Havana e o contedo restrito do GATT, representou uma perda para os pases em vias de desenvolvimento. 11 Alis, e como diremos a seguir, no se criou uma organizao internacional. 12 A gesto do GATT de 1947 era assegurada por uma Comisso Interina da Organizao Internacional do Comrcio (destinada a garantir o funcionamento da OIC), rgo auxiliar do Conselho Econmico e Social das Naes Unidas. Aps a no ratificao da Carta de Havana, aquela Comisso continuou a apoiar, de facto, o funcionamento do GATT. O elemento institucional essencial do GATT a Assembleia das PARTES CONTRATANTES (em letras maisculas significa o conjunto dos Estados agindo como rgo plenrio: artigo XXV, n. 1; em letras minsculas significa os Estados que aplicam provisoriamente o Acordo Geral). Pg.6

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vigor em 1 de Janeiro de 1948 em virtude do Protocolo de aplicao provisria13. Nestes termos, o GATT vincula14 os governos (apesar de, pelo facto de nunca ter entrado formalmente em vigor, as suas normas serem desprovidas de fora obrigatria15), mas no gera efeitos jurdicos para os cidados, no sendo self-executing ou directamente aplicvel no direito interno16. Por fim, brotando de um acidente histrico, aquele Acordo Geral foi at 1994 o nico instrumento multilateral a disciplinar o comrcio mundial17, apesar do seu lacnico contedo, da sua flexvel disciplina e da sua limitadaO Acordo Geral originariamente concebido pelas partes contratantes como um instrumento temporrio: aguardava-se a entrada em vigor da OIC que assumiria, de forma estvel, amplas funes na regulao do comrcio internacional. Com o malogro da OIC existiram, em 1954-55, tentativas de alterar a natureza e a estrutura do GATT (um acordo constitutivo de uma organizao para o comrcio e a cooperao e um protocolo com alteraes organizacionais ao Acordo Geral), mas no houve consenso (sobre estas propostas vide Guide to GATT Law and Practice, ob. cit., II, 1086). Assim, a aplicao provisria do Acordo Geral s terminou com a criao da Organizao Mundial do Comrcio (as partes contratantes decidiram, a 8 de Dezembro de 1994, que os instrumentos legais que legitimaram a aplicao do GATT de 1947 terminariam um ano aps a entrada em vigor do Acordo OMC). 14 Contudo, nos termos do protocolo de aplicao provisria [artigo 1., alnea b)], a Parte II do GATT, que contm as disposies fundamentais correspondentes filosofia do Acordo, s se aplicaria se no fosse incompatvel com a legislao em vigor nas partes contratantes (... to apply... Part II of that Agreement to the fullest extent not inconsistent with existing legislation.). a designada clusula Grandfather, que deveria ter uma natureza provisria (at entrada em vigor da Carta de Havana), mas que permitiu a indefinida manuteno de prticas comerciais contrrias s disposies e aos objectivos do Acordo Geral. Sobre a interpretao e aplicao desta clusula veja-se Guide to GATT Law and Practice, ob. cit., II, 1072, ss. 15 Na verdade, por falta de ratificao (s aderiram plenamente ao GATT a Libria e o Haiti, o que, nos termos do artigo XXVI, n. 6, no suficiente para o Acordo entrar em vigor), o GATT nunca entrou em vigor e apenas subsistiu juridicamente com base no protocolo de aplicao provisria (ou protocolos subsequentes de adeso ao Acordo Geral). Ora, a doutrina dominante qualifica tais acordos de aplicao provisria como acordos jurdicos concludos em forma simplificada, mas cujas disposies no tm fora obrigatria ou vinculativa. Todavia, como nos diz Paolo PICONE e Aldo LIGUSTRO (Diritto dellOrganizzazione Mondiale del Commercio, Padova, 2003, 10) na prtica os Estados no invocaram o regime de aplicao provisria ou a ausncia de ratificao, para se subtrarem ao cumprimento das obrigaes do Acordo ou para justificarem uma eventual violao do mesmo (tanto mais que o regime era muito flexvel, com vastas excepes). 16 Sobre a natureza jurdica do GATT vide WOLFGANG FIKENTSCHER, ob. cit., 108, ss., em especial no que concerne ausncia do carcter self-executing (mesmo ponderando as diversas acepes desta expresso) das regras do GATT ou necessidade de cada membro adoptar normas internas (Anwendungsvorbehalt). 17 Vejamos, de forma enunciativa, os principais princpios e regras do GATT. A) Parte I: princpio (apesar das suas vastas excepes) da nao mais favorecida. B) Parte II (onde encontramos a parte substantiva do GATT, a sua estrutura-base, cuja aplicao no tem sido consensual e, nos termos do protocolo de aplicao provisria, apenas efectiva na medida em que no fosse incompatvel com a legislao em vigor nas partes contratantes, como vimos): princpio do tratamento nacional; regras relativas aos direitos anti-dumping e compensadores; regras sobre marcas de origem; proibio (com a importante excepo dos produtos agrcolas e, pelo menos durante os primeiros anos do GATT, das restries destinadas a assegurar o equilbrio da balana de pagamentos) de estabelecimento ou manuteno de restries quantitativas (quotas, licenas de importao ou exportao ou outras medidas); regras (com excepes) relativas aplicao no discriminatria das restries quantitativas; regras no domnio da poltica cambial (em cooperao com o FMI); disciplina dos subsdios (em geral e Pg.713

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capacidade. Na verdade, se, por um lado, o modo do seu nascimento moldou o seu mbito com vastas ausncias de regulao (por exemplo, no domnio dos produtos agrcolas, das matrias primas, dos servios, dos movimentos internacionais de capitais, dos problemas monetrios, da propriedade intelectual) que permitiram uma grande liberdade de aco aos Estados, por outro lado, as vastas excepes, a clusula Grandfather, as medidas de salvaguarda, etc., permitiram a sobrevivncia de um licitamente fundado sistema paralelo. Acresce, ainda, que o GATT no era um centro autnomo de imputao de direitos e obrigaes, no era uma organizao internacional dotada de personalidade jurdica prpria distinta da dos Estados contratantes. certo, deve sublinhar-se, que ao longo do tempo, se manifestaram desejos de maior capacidade de regulao e disciplina. Mas apenas isso. As insuficincias (no domnio institucional e substantivo) e as contradies (que o decurso do tempo evidenciou) do Acordo Geral (que surge num incidente historicamente situado) foram-se exteriorizando ao longo dos oito ciclos de negociaes comerciais multilaterais quer com a concluso de protocolos pautais ou alfandegrios (que correspondiam aos objectivos iniciais limitados do GATT) quer com a adopo de textos jurdicos destinados a completar aquele Acordo. Contudo, a evoluo normativa do GATT e as alteraes verificadas na comunidade internacional ao longo do tempo exigiram uma mutao profunda no sistema do comrcio internacional. Em funo da ambio (e consequente alargamento da regulao comercial internacional) dos ciclos de negociaes (ou Rounds), podemos classific-los em trs grupos18.

exportao), das empresas comerciais do Estado, das ajudas de Estado em favor do desenvolvimento econmico e das medidas de urgncia relativas importao de certos produtos (estas regras foram objecto de diversas contendas desde logo durante o Ciclo do Uruguai entre os pases industrializados, em especial os EUA, e os pases em desenvolvimento); e regras sobre a resoluo de diferendos (tema central do Ciclo do Uruguai). C) Parte III: preceitos, de carcter fundamental, relativos s unies aduaneiras e zonas de comrcio livre, bem como aos procedimentos no campo das negociaes pautais; normas sobre a aco colectiva (joint action) das partes contratantes, designadamente com vista ao estabelecimento de derrogaes (waivers) s obrigaes do acordo; e disposies operacionais. D) Parte IV: consagra (desde 8 de Fevereiro de 1965) um tratamento diferenciado mais favorvel para os pases em vias de desenvolvimento, aps as crticas que estes efectuaram ao GATT (no diferenciava, por princpio, aqueles pases dos industrializados). 18 Sobre esta classificao vide THIBAUT FLORY, LOrganisation Mondiale du Commerce - Droit institutionnel et substantiel, Bruxelles (1999), 4-5. Sobre estas conferncias vide, igualmente, Daniel JOUANNEAU, ob. cit., 32, ss. Pg.8

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Num primeiro grupo inclumos as conferncias de Genebra (1947), de Annecy (1949), de Torquay (1950-51), de Genebra (1955-56), o Ciclo de Dillon (1961-62) e o Ciclo de Kennedy (1964-67), que se limitaram a negociar o abaixamento dos direitos aduaneiros (embora muito tenham contribudo para a liberalizao do comrcio internacional). Merece especial relevo o Ciclo de Kennedy por quatro razes. Em primeiro lugar, obtiveram-se redues pautais bastante elevadas (muito acima das conseguidas nos outros ciclos, embora abaixo do inicialmente pretendido) no domnio dos produtos industriais. Em segundo lugar, procurou-se alargar o mbito dos produtos abrangidos (pretendendo-se concesses nos produtos no industriais; todavia, os resultados alcanados foram insignificantes), debater os obstculos no pautais (tendose concludo o Cdigo Anti-Dumping de 1967) e melhorar o regime das subvenes pblicas s empresas. Em terceiro lugar, as partes contratantes acordaram, no incio das negociaes, que aos pases em vias de desenvolvimento no seria exigvel o mesmo nvel de contribuio para a liberalizao global do comrcio, designadamente no seria adequado impor o princpio de reciprocidade a estes pases (como acontecia nas negociaes entre pases industrializados) e dever-se-iam ponderar as suas carncias no domnio do comrcio e do desenvolvimento. Por fim, o Ciclo de Kennedy contribuiu decisivamente, embora interessadamente, para combater tendncias proteccionistas. A Comunidade Europeia apresentava-se como um bloco econmico forte (embora longe dos objectivos de hoje) e os EUA receavam que a Comunidade se transformasse numa fortaleza econmica proteccionista face ao exterior. Para evitar a formao de tais blocos, os EUA aprovaram (em Novembro de 1962) o Trade Expansion Act (nova verso do Reciprocal Trade Agreements Act) como um instrumento de liberalizao global das trocas comerciais que poderia permitir, no limite, a eliminao total dos direitos pautais. Num segundo grupo encontramos o Ciclo de Tquio (1973-79) que tentando responder crtica de o GATT ter negligenciado diversas preocupaes directa ou indirectamente relacionadas com o comrcio mundial, e apenas se ter centrado fundamentalmente nos direitos aduaneiros englobou no apenas os aspectos pautais ou alfandegrios, mas tambm os no pautais, a concluso de diversos acordos plurilaterais e a reforma do sistema institucional do GATT (os negociadores norte-americanosPg.9

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tinham mandato para que o GATT se orientasse para um sistema econmico mundial liberal e no discriminatrio). Assim, foi debatido de forma sistemtica o problema das restries quantitativas (consideradas no quadro do GATT como medidas excepcionais, mas usadas como uma forma normal de proteco) e foram negociados diversos Cdigos ou instrumentos multilaterais19. Os resultados do Ciclo de Tquio no corresponderam s preocupaes norte-americanas e, em consequncia, os EUA adoptaram diversas medidas legislativas proteccionistas e retaliadoras (designadamente em relao aos pases que dificultassem o acesso ao mercado ou no protegessem, de forma adequada e eficaz, os direitos de propriedade intelectual). No terceiro grupo inclumos o Ciclo do Uruguai (1986-93) que foi, at data, o mais ambicioso de todos, evidenciando a eroso do GATT e dando origem Organizao Mundial do Comrcio (OMC) que surge quase to acidentalmente quanto o prprio GATT. O desgaste do GATT, demonstrativo da sua incapacidade (originria e evolutiva), resulta da impotncia (a concepo de um certo sistema endgeno) para se adaptar s alteraes poltico-econmicas (um sistema exgeno que absorve e destri o sistema endgeno, gerando, todavia, um outro de natureza diferente: a OMC) verificadas aps 1947 e, em especial, depois de 1960. Na verdade, o GATT foi concebido de e para uma grande potncia, os EUA, e os pases contratantes detinham um desenvolvimento econmico, assente numa economia de mercado, e um modelo poltico muito semelhantes (condies que lhes garantiam, no comrcio internacional evolutivamente liberalizado, uma concorrncia produtiva). Contudo, o surgimento, no mapa econmico internacional, de blocos ou regies economicamente fortes e adeptas

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Acordo relativo aos obstculos tcnicos ao comrcio; Acordo relativo interpretao e aplicao dos artigos VI (direitos anti-dumping e compensadores), XVI (subsdios) e XXIII (proteco das concesses e vantagens); Acordo relativo aos procedimentos em matria de licenas de importao; Acordo relativo execuo do artigo VI (direitos anti-dumping e compensadores, com a concluso de um segundo cdigo anti-dumping); Acordo relativo aos mercados pblicos; e Acordo relativo execuo do artigo VII (valor aduaneiro). Simultaneamente foram adoptados trs cdigos sectoriais relativos ao comrcio de aeronaves civis, aos lacticnios e carne bovina. Salientamos, ainda, a declarao sobre medidas comerciais no mbito da balana de pagamentos, o memorando sobre a resoluo de diferendos e, em relao aos pases em vias de desenvolvimento, so adoptadas duas decises (uma relativa s medidas de salvaguarda e outra sobre o tratamento diferenciado e mais favorvel, reciprocidade e maior participao daqueles pases). Por fim, sob a gide do GATT concludo, em 1974, o Acordo multifibras (substituiu o acordo anterior, da dcada de 60, sobre os txteis). Pg.10

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de medidas proteccionistas (como a Comunidade Econmica Europeia20 ou o Japo), alterou a estabilidade do GATT e provocou a desiluso dos EUA em relao eficcia deste acordo. O GATT demonstrou a sua incapacidade pela ausncia de controlo e regulamentao das novas formas de proteccionismo adoptadas aps o Ciclo de Tquio (apesar das medidas eleitas neste Ciclo). A concorrncia (considerada pelos EUA como desleal) dos novos pases industrializados da sia (colocando em causa o pilar da reciprocidade do GATT) legitimou a adopo de medidas defensivas e unilaterais por parte, em especial, dos EUA e da Comunidade Europeia. Desenvolve-se, na verdade, um neo-proteccionismo multiforme, assente em medidas no pautais, no enquadrveis no sistema do GATT.21 Dois outros elementos vo provocar, ainda mais acentuadamente, desequilbrios naquele Acordo Geral. Por um lado, o carcter interessado do GATT ao servio dos pases industrializados sublinhado pelos (novos) pases em vias de desenvolvimento (resultantes dos processos de descolonizao) que reclamam um tratamento diferente (dando origem embora evidenciando as fraquezas que teimaro em permanecer , nomeadamente, em 1964, Parte IV do GATT e, em 1979, Deciso relativa ao tratamento diferenciado e mais favorvel, reciprocidade e maior participao destes pases). Por outro lado, se durante algum tempo os pases socialistas, de economia planificada, permaneceram fora do GATT, a partir dos finais da dcada de 60 alguns desses pases (por exemplo, a Hungria, a Polnia, a Romnia, e a Jugoslvia)Quando foi criada, a Comunidade tinha um objectivo de abertura em relao ao exterior. Nesse sentido expressamente o consagrava o Tratado de Roma no seu art. 110. (numerao original): ao institurem entre si uma unio aduaneira, os Estados membros propem-se contribuir, no interesse comum, para o desenvolvimento harmonioso do comrcio mundial, para a superao progressiva das restries s trocas internacionais e para a reduo das barreiras alfandegrias. Alis, s assim se dava cumprimento ao art. XXIV do GATT, pois ao permitir unies aduaneiras e zonas de comrcio livre como excepes aplicao da clusula da nao mais favorecida, o objectivo era que tais unies ou zonas constitussem formas provisrias de se caminhar para o comrcio livre mundial. E, na verdade, at aos anos 70 a Comunidade viveu um quadro de abertura em relao ao exterior. Todavia, aps a primeira crise petrolfera (1973) assistimos consagrao de orientaes proteccionistas de que a Poltica Agrcola Comum (PAC) o exemplo mximo de defesa do mercado interno. A mudana da agulha comunitria para o livre-cambismo s se verificar a partir de meados da dcada de 80 (nas vsperas do Ciclo do Uruguai) com uma poltica de reforo das condies de competitividade da Comunidade, designadamente com medidas de coeso econmica e social, de investigao e desenvolvimento tecnolgicos, e com medidas directas de interveno. Todavia, a reforma da PAC reduzindo as medidas proteccionistas e com a clareza de que a evoluo da agricultura depende de uma perspectiva mundial e no apenas europeia apenas ter lugar em 1992. 21 Sobre isto vide Bernard GUILLOCHON, ob. cit., 92, ss. Pg.1120

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comearam a participar no GATT (embora sem se sujeitarem total e incondicionalmente disciplina deste Acordo), o que demonstrou as limitaes normativas e a incapacidade de adaptao (por incompatibilidade) do modelo econmico subjacente quele Acordo. Este quadro de mutao poltico-econmica vai reflectir-se no interior do GATT gerando incongruncias na ordenao normativa e na organizao institucional. O carcter aglutinante (diversificante) do GATT (o nmero de partes contratantes aumenta consideravelmente: 23 no incio, 92 em 1986) implicou um esquartejamento do seu ordenamento jurdico em consequncia da multiplicidade de acordos concludos, geradores de uma diversidade de relaes e regimes jurdicos. Na verdade, estamos perante acordos moldados vontade de alguns (as caractersticas das partes contratantes so, como vimos, muito diferentes) e de adeso voluntria, causando um aproveitamento indevido do princpio da nao mais favorecida22. Diga-se, ainda, que os acordos celebrados eram por vezes contraditrios ou de difcil compatibilidade. Esta contradio ou difcil compatibilidade verificava-se quer entre o Acordo Geral e os acordos autnomos (aquele aplicvel a todos embora permitindo-se diversas derrogaes e regimes excepcionais e estes s aos que voluntariamente aderiam), quer entre os acordos autnomos (muito diferentes nos seus objectivos e regime: por exemplo o acordo sobre as aeronaves civis no correspondia a uma finalidade liberalizadora, antes disciplinadora, e, por isso, era completamente distinto dos acordos sobre os obstculos no pautais). No plano institucional, a tendncia universalista do GATT (pases com nveis de desenvolvimento e economias muito diferentes que exigiu, como verificmos, uma diferenciao de regimes jurdicos) imps a admisso de diversos modos de participao no seu seio. Assim tivemos: a aceitao plena do Acordo mediante ratificao, nos termos do art. XXVI (que, como vimos, foi muito pouco usado); a adeso ao Protocolo de aplicao provisria no caso das partes contratantes originrias; contudo, se se tratavam de adeses aps 30 de Outubro de 1947, celebravam-se22

Diz-nos, a tal propsito, Paolo PICONE e Aldo LIGUSTRO, ob. cit., 18, o seguinte: (...) la clausula della nazione pi favorita prevista dallart. I dellAcordo generale richiedeva lestensione immediata e incondizionata dei benefici derivanti dallapplicazione dei Codici anchi a tutti gli Stati membri. Si veniva cos a porre il problema del cosiddetto free riding: termine (...) con cui si designa la possibilit per le parti contraenti che non li avevano sottoscritti di godere dei vantaggi collegati a tali Codici senza assumersi i correlativi oneri. Pg.12

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protocolos de adeso, de acordo com estipulado no art. XXXIII (mas retomando as disposies do protocolo de aplicao provisria); por fim, no caso dos pases que adquiriram independncia aps um processo de descolonizao, poderiam aderir ao GATT atravs de uma simples declarao de aceitao das obrigaes do Acordo (adeso em forma simplificada), com base no art. XXVI, n. 5, alnea c) (neste caso aplicavam-se as condies e os termos da adeso do pas-me, incluindo o protocolo de aplicao provisria ou os protocolos de adeso). Ou seja, assistimos ao reconhecimento de mltiplas qualidades de parte contratante23. Realce-se, ainda, que as diversas tentativas de substituir a aplicao provisria por uma aplicao definitiva, exigindo-se uma adeso plena, nunca teve lugar, pelo que o temporrio se tornou permanentemente definitivo e uma desejvel aplicao plena se limitou a ser atenuada em virtude da clusula Grandfather. Outra consequncia da evoluo poltico-econmica e da vocao aglutinadora do GATT foi a alterao verificada na sua orgnica. Assiste-se a uma musculao organizativa do GATT (com novos rgos e com competncias alargadas) com vista a dar resposta s referidas transformaes, dando origem a uma estrutura trplice24 prxima de uma organizao internacional. Todavia, a diviso dos poderes entre o

Alm das partes contratantes de pleno direito, diversos pases participavam a ttulo provisrio, ou mediante uma aplicao de facto do Acordo (sobre a aplicao de facto vide Guide to GATT Law and Practice, ob. cit., 921-923), ou na qualidade de associado ou, ainda, como observadores (neste caso incluem-se tambm organizaes). 24 A assembleia das PARTES CONTRATANTES (rgo deliberativo, com competncias gerais e normativas); o Conselho de Representantes (rgo executivo); e o Secretariado (competncias administrativas). Acrescem ainda rgos auxiliares. A assembleia o elemento estrutural do GATT, no qual se adoptam as decises e que reunia (quase sempre a nvel de embaixadores), em regra, uma vez por ano. No intervalo das assembleias, o trabalho era assegurado pelo Conselho de Representantes, rgo permanente que se reunia igualmente, em regra, a nvel de embaixadores. Os poderes do Conselho de Representantes alargaram-se ao longo do tempo; se inicialmente se limitava a preparar as reunies entre as Partes Contratantes, veio, posteriormente, a deter quase as mesmas funes das Partes Contratantes. Quanto ao Secretariado do GATT (cujas funes eram formalmente exercidas no quadro da Comisso Interina da Organizao Internacional do Comrcio), de salientar a deciso de 23 de Maro de 1965 que estabelece que as obrigaes e poderes conferidos ao Secretariado Executivo do GATT sero exercidos by the person holding the position of Director-General, who shall, for this purpose, also hold the position of Executive Secretary. A figura do Director-Geral o representante efectivo do GATT (com funes de depositrio e de custdia dos acordos sob administrao do GATT), tendo desempenhado um importante papel para o progressivo crescimento do sistema jurdico disciplinador das relaes comerciais multilaterais. Por fim, o GATT era ainda dotado de numerosos rgos auxiliares (comits, conselhos, grupos de peritos, etc.). Tiveram um papel relevante os grupos de peritos (panels of experts) na anlise dos diferendos comerciais entre as partes contratantes (que esteve na origem do sistema actual de resoluo de diferendos previsto na OMC). Pg.13

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rgo deliberativo e o executivo no plenamente conseguida (este no mais do que um espelho do primeiro, destinado a dar-lhe continuidade funcional: o rgo executivo est subordinado ao deliberativo; as competncias dos dois rgos coincidem em grande medida; e a composio semelhante) e o GATT continua a configurar-se como um fenmeno sui generis. Esta natureza do GATT marcada desde a origem pela provisoriedade historicamente situada ressalta, em especial, na sua duvidosa subjectividade internacional (mesmo aps as alteraes institucionais que analismos) em virtude de no agir como um centro autnomo de imputao ou emanao de direitos e obrigaes (a assembleia das partes contratantes no gozava de independncia face aos Estados) no tendo capacidade para vincular Estados, organizaes ou outros sujeitos jurdicos. Ou seja, o GATT no detinha autonomia face aos Estados (contratantes), designadamente na interpretao, aplicao ou criao de normas jurdicas. Sintoma desta condio jurdica era a atitude dos Estados na assembleia das partes contratantes que adoptaram o sistema de votao por consenso25 (id est, desde que no existisse oposio expressa) em prejuzo do explicitamente disposto no art. XXV do Acordo (votao por maioria), transformando aquela assembleia (negando-lhe autonomia) numa conferncia de Estados e dificultando a consecuo dos objectivos constitutivos do GATT. Em face do exposto, o tempo era de mudana. Era necessrio superar o modelo de crescimento econmico do ps-guerra (o crescimento estvel tinha j terminado nos anos 60 e a crise surge a partir de 1973) e estender a liberdade de comrcio no plano mundial (at agora praticamente limitada aos produtos industriais) a novos domnios (exemplo de uma era ps-industrial). Novas circunscries que compreendiam, designadamente, os sectores industriais geradores/utilizadores de novas tecnologias, os servios (que comeavam a demonstrar um papel fundamental nas economias modernas), a agricultura (era opinio unnime no necessariamente concretizada nos mesmos termos que a agricultura tinha uma importante funo a desempenhar no desenvolvimento de diversas regies do globo) e a propriedade intelectual (as trocasSobre o sistema de votao vide Guide to GATT Law and Practice, ob. cit., 1108, ss. No que respeita s dificuldades de alterao do Acordo Geral (que promoveu o recurso a acordos autnomos com a dimenso e as consequncias que acima referimos) veja-se o art. XXX e o citado Guide to GATT Law and Practice, 1001, ss. Pg.1425

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comerciais de produtos patenteados, com marca ou objecto de direito de autor, tinhamse incrementado e uma ausncia de disciplina poderia constituir, do ponto de vista de alguns, um obstculo ao comrcio). O Ciclo do Uruguai vai significar a superao do GATT, dos seus limites e das suas lacunas, tendo os EUA (com o apoio dos pases industrializados)26 tomado a iniciativa deste novo ciclo de negociaes multilaterais (a sugesto surge j em 1981)27. Sendo certo que esta iniciativa vai demarcar interessadamente as linhas orientadoras das negociaes, a Conferncia ministerial de Punta del Este (15-19 de Setembro de 1986) no foi pacfica, manifestando-se oposies entre diversas partes contratantes. So de realar dois blocos de oposio. Por um lado, entre os EUA e a Comunidade Europeia (CE) em que as divergncias se relacionavam com a insero da agricultura no sistema comercial multilateral: os EUA e o grupo de Cairns que inclui, nomeadamente, a Austrlia e a Nova-Zelndia, defendiam tal incluso, enquanto que a CE se opunha dada a estrutura da Politica Agrcola Comum, em especial o sistema de subvenes. Por outro lado, entre os pases industrializados (do Norte) e os pases em vias de desenvolvimento (do Sul) em que a discordncia versava sobre o domnio dos txteis (os pases do Sul, ao contrrio dos do Norte, desejavam a sua insero no sistema comercial multilateral) e sobre o alargamento do GATT a novas matrias, em especial os servios e a propriedade intelectual (os pases do Norte, contra a vontade dos do Sul, solicitavam tal extenso). Na declarao de Punta del Este (19 de Setembro de 1986) e aps alguns compromissos, so estabelecidos os seguintes objectivos para as negociaes que ento se iniciavam. Em primeiro lugar, a agricultura e os txteis sero includos nos mecanismos de consecuo de uma progressiva liberalizao multilateral. No plano agrcola os pases industrializados apresentam excedentes agrcolas resultantes de apoios artificiais concedidos a este sector, e os pases em vias de desenvolvimento vivem situaes de penria, seja por razes naturais (conjugadas com um insuficiente poder de compra dos consumidores), seja por incapacidade de concorrncia face aos26

Para uma anlise critica proposta dos EUA bem como insero da propriedade intelectual no GATT vide, entre outros, Hanns ULLRICH, GATT: Industrial Property Protection, Fair Trade and Development, in IIC Studies, ob. cit., 129, ss. 27 Vide Daniel JOUANNEAU, ob. cit., 63, ss. Pg.15

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mecanismos protectores dos pases industrializados (contudo, o Ciclo do Uruguai foi marcado pelos diferendos no mbito agrcola entre a CE e os EUA28). No que concerne aos txteis os pases em vias de desenvolvimento tinham enormes interesses neste sector. Em segundo lugar, prev-se a celebrao de acordos multilaterais em novos domnios: investimentos, servios (resultado de uma tomada de conscincia da importncia deste sector que inclui, por exemplo, as telecomunicaes nas relaes econmicas internacionais, apesar dos interesses opostos entre os EUA e a CE e entre os pases industrializados e os em vias de desenvolvimento) e propriedade intelectual (os pases industrializados tm importantes interesses neste campo, cada vez mais relevante nas trocas internacionais, tendo-se discutido se o GATT era o local adequado para disciplinar este problema no sentido no apenas de que existiam organizaes especializadas nesta matria, mas tambm porque se iria imprimir uma nova filosofia propriedade intelectual). Em terceiro lugar, deseja-se reforar a organizao institucional com vista criao de uma nova organizao internacional do comrcio (sentia-se a necessidade de reforar a disciplina das relaes comerciais internacionais). Tendo sido estes os objectivos fundamentais29, a verdade que muitos outros (sintoma de outros movimentos internacionais) foram adquirindo um relevo crescente30,28

A demora da concluso do Ciclo do Uruguai deveu-se, em parte, questo agrcola. Contudo, deve sublinhar-se que a Comunidade desde, pelo menos, meados da dcada de 80 manteve uma poltica de abertura em relao ao exterior. Mesmo com a crise da dcada de 90 (a que no foi alheio a no concluso, na data prevista, do Ciclo do Uruguai, mas a que deve acrescentar-se, nomeadamente, o processo de integrao dos pases da Europa Central e do Leste) a Comunidade resistiu tentao de adoptar uma atitude proteccionista, continuando a impulsionar o processo de negociao do Ciclo do Uruguai e a professar medidas de melhoria das estruturas produtivas da Comunidade de forma a lhe permitir condies de competitividade no exterior. Por outro lado, as criticas dirigidas PAC como o principal obstculo concluso do Ciclo do Uruguai , merecem duas observaes: pases terceiros (como os EUA) dispunham (e dispem) de fortes mecanismos proteccionistas em diversos sectores, incluindo o agrcola; fazer depender a concluso do Ciclo, como os seus mltiplos acordos (contribuindo de forma significativa para a liberalizao das trocas no plano mundial), de um nico dossier, no deixa de ser censurvel. 29 Para alm de terem sido ponderadas outras matrias, como os efeitos negativos da instabilidade monetria, o crescente endividamento dos pases em vias de desenvolvimento e a consagrao do princpio da integrao graduada (id est, a subordinao s regras do Acordo em funo do desenvolvimento econmico) dos pases em vias de desenvolvimento (apesar de estes terem sempre argumentado durante as negociaes do Ciclo do Uruguai que o GATT estava construdo medida dos interesses dos pases industrializados, designadamente no que respeita interpretao dos arts. XI, XVI, XVIII e XIX) como atenuao ao princpio da no reciprocidade. 30 verdade que o primeiro considerando (ao contrrio dos seguintes que plasmam os objectivos tradicionais) do acordo que cria a OMC faz referncia a propsitos e valores que s no post Ciclo do Uruguai adquiriram (com recuos, incertezas e sempre colocados em segundo plano) uma eficaz relevncia normativa ( caso da utilizao ptima dos recursos naturais, da proteco do ambiente, da melhoria dos Pg.16

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projectando-se nas Conferncias Ministeriais realizadas aps a entrada em vigor do acordo que criou a OMC, como veremos. A multiplicidade dos dossiers em anlise, os ambiciosos objectivos que tinham sido traados e a particular dificuldade de algumas matrias (em especial a agrcola) foram algumas das causas para justificar o fim das negociaes apenas a 15 de Dezembro de 1993 e a assinatura oficial dos acordos que puseram termo ao Ciclo do Uruguai na Conferncia de Marraquexe (a 14-15 de Abril de 1994). Os acordos de Marraquexe entraram em vigor a 1 de Janeiro de 1995 e representaram a concretizao no s do projecto da Carta de Havana (apesar dos EUA apenas terem aceite a criao da OMC cuja proposta coube, na verdade, CE quase no final das negociaes, por continuarem aps mais de quarenta e cinco anos a recear pela sua liberdade em matria comercial31), mas tambm e de forma mais alargada do desejo de uma organizao da economia mundial luz dos ideais neo-liberais de Bretton Woods. A amplitude dos resultados alcanados verifica-se a diversos nveis. Por um lado, a multiplicidade das matrias abrangidas32 (a integrao de sectores delicados como a agricultura ou os txteis, bem como novas matrias, como vimos) garantem efeitos denveis de vida, da realizao do pleno emprego, do aumento dos rendimentos reais, etc.). Alm destes, podemos ainda mencionar o dumping social ou o dumping monetrio. 31 Os EUA reagiram negativamente proposta de criao da inicialmente designada Multilateral Trade Organisation (proposta pela CE e constante do Dunkel Draft) principalmente no que dizia respeito aos mecanismos de voto (previa-se que a regra seria a da maioria e os EUA desejavam o processo de deciso por consenso). A proposta de uma Multilateral Trade Organisation obteve ainda crticas por parte dos ambientalistas. 32 A Acta Final do Ciclo do Uruguai constituda pelo acordo que cria a OMC (um pequeno acordo, tambm designado por Mini-Carta) e pelas Declaraes e Decises Ministeriais. O acordo que cria a OMC abrange os Acordos Multilaterais sobre o Comrcio de Mercadorias (Acordo Geral sobre as Pautas Aduaneiras e o Comrcio de 1994; Acordo sobre a Agricultura; Acordo sobre a Aplicao de Medidas Sanitrias e Fitossanitrias; Acordo sobre os Txteis e o Vesturio; Acordo sobre os Obstculos Tcnicos ao Comrcio; Acordo sobre as Medidas de Investimento Relacionadas com o Comrcio; Acordo sobre a aplicao do Artigo VI do GATT de 1994; Acordo sobre a aplicao do Artigo VII do GATT de 1994; Acordo sobre a Inspeco antes da Expedio; Acordo sobre as Regras de Origem; Acordo sobre os procedimentos em matria de Licenas de Importao; Acordo sobre as Subvenes e as Medidas de Compensao; e o Acordo sobre Medidas de Salvaguarda), o Acordo Geral sobre o Comrcio de Servios (GATS), o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual Relacionados com o Comrcio (TRIP's) incluindo o Comrcio de Mercadorias de Contrafaco, o Memorando de Entendimento sobre as Regras e Processos que regem a Resoluo de Litgios, os Mecanismo de Exame das polticas comerciais e os Acordos Comerciais Plurilaterais. Esta estrutura complexa, algo singular, e a no integrao dos diversos acordos resultou do facto de a criao da OMC s se ter verificado numa fase final das negociaes e ter-se querido evitar uma ulterior reelaborao dos acordos j negociados e encerrados. Pg.17

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liberalizao evolutiva do comrcio mundial nunca vistos (alm de se terem conseguido baixar de forma significativa os direitos aduaneiros e diminuir os obstculos no pautais). Por outro lado, a criao de uma organizao mundial do comrcio (dotada de personalidade jurdica e capacidade jurdica necessrias ao exerccio das suas funes, com vastas competncias33, uma estrutura institucional forte34, munida de mecanismos de resoluo de diferendos que lhe asseguram eficcia35, e verdadeiramente multilateral

Compete OMC a administrao dos acordos de Marraquexe, constituindo o enquadramento institucional para as relaes comerciais entre os membros nas matrias relativas aos acordos, ou seja, apresenta-se como um sistema unificado (em especial no quadro dos acordos comerciais multilaterais) e no fragmentado como acontecia, nos termos que vimos, no GATT (vide o art. II do acordo que cria a OMC). Com o mesmo objectivo, a OMC igualmente o frum para as negociaes entre os membros no que respeita s suas relaes comerciais multilaterais, quer, obrigatoriamente, nas matrias disciplinadas pelos acordos da OMC, quer, se os membros assim o desejarem, em outros domnios (art. III do citado acordo). Por fim, a OMC (de acordo com o art. V) competente para concluir acordos ou outras medidas adequadas com vista a assegurar uma cooperao eficaz (em busca de coerncia na elaborao de polticas econmicas a nvel mundial) com outras organizaes intergovernamentais ou mesmo no governamentais, desde que se ocupem de questes relacionadas com as da OMC. Estamos, nestes termos, perante o terceiro pilar da regulao do comrcio mundial, ao lado do FMI e do Banco Mundial (alis a OMC j celebrou acordos de cooperao com estas organizaes). 34 O rgo mximo da OMC a Conferncia Ministerial, composta por representantes de todos os membros e competente para decidir em todas as matrias reguladas por qualquer dos acordos comerciais multilaterais. No intervalo das Conferncias Ministeriais (que se rene, pelo menos, uma vez de dois em dois anos) as funes deste rgo so exercidas por um Conselho Geral, composto por representantes de todos os membros, que exerce igualmente funes de rgo de Resoluo de Litgios e rgo de Exame das Polticas Comerciais. Foram institudos diversos rgos auxiliares: Conselhos (por exemplo o Conselho TRIPs) e Comits (vide art. IV do acordo OMC). Por fim, foi criado um Secretariado da OMC, dirigido por um Director-Geral. 35 O acordo da OMC inclui um Memorando de Entendimento sobre as regras e processos que regem a Resoluo de Litgios. Deste memorando resulta a consagrao de um sistema nico ou integrado para a resoluo dos diferendos em relao aos acordos multilaterais e plurilaterais concludos em Marraquexe, (sendo certo que consagra procedimentos especiais para os pases membros menos desenvolvidos). Pretendeu-se consagrar um sistema de resoluo de litgios que garantisse segurana, certeza e previsibilidade para o sistema multilateral do comrcio emanado e estabelecido na OMC. Trata-se de um sistema exclusivo, obrigatrio e tendencialmente jurisdicional. Na verdade, a disciplina das relaes comerciais internacionais assegurada atravs do recurso obrigatrio s regras e aos processos do referido memorando (no podem ser os prprios membros a determinar se houve ou no violao de uma norma de algum acordo), ficando proibido tal como era solicitado pela CE o recurso a medidas coercivas unilaterais (o objectivo era, designadamente, pr termo s sanes unilaterais aplicadas pelos EUA ao abrigo da seco 301 do Trade Act, a que nos referiremos mais adiante). O processo de resoluo de diferendos assenta num rgo criado para o efeito: o rgo de Resoluo de Litgios (ORL) composto por representantes de todos os membros da OMC e cujas decises so adoptadas, nos termos do art. 2., n. 4, do memorando, por consenso (trata-se, todavia, da tcnica do consenso negativo, isto , as decises e recomendaes do ORL so adoptadas automaticamente, salvo se por consenso o ORL decidir no as tomar). Se, em certos momentos, o ORL assume uma natureza diplomtica ou negocial, noutros comporta-se como um rgo jurisdicional. Assim, numa primeira fase de resoluo do diferendo (e sem prejuzo de as partes, por comum acordo, decidirem recorrer arbitragem), prevem-se consultas entre os pases membros em causa ( a via diplomtica), mas, em caso de insucesso das negociaes, o pas membro queixoso pode solicitar a constituio de um painel (ou grupo especial) cujos membros, alm de poderem ser impostos s partes, agem de forma independente em relao aos Estados envolvidos (agem Pg.18

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e universal tendo em conta o nmero de pases membros e a rea geogrfica coberta) que garante uma disciplina fortemente regulamentada e simultaneamente coordenada (nunca antes obtida) das relaes comerciais mundiais36. Sublinhe-se que a contradio para os liberais puros ou desatentos entre a progressiva liberalizao das trocas e regulamentao reforada ilusria, pois so concertadas e orientadas num certo sentido (livre-cambista maior abertura; o que significa uma maior exigncia em termos competitivos impondo um reforo da capacidade de produo).

exclusivamente a ttulo individual). O painel elaborar um relatrio que ser adoptado pelo ORL. Da deciso do painel pode haver recurso (quanto s questes de direito) para um rgo de Recurso composto por pessoas que no devero estar ligadas a qualquer governo (art. 17., n. 3 do citado memorando), ou seja, independentes, e que tem uma natureza permanente (n.s 1 e 2 do referido art. 17.). A criao deste rgo de Recurso permanente talha o caminho da jurisdicionalizao da OMC (estamos muito longe do GATT). Uma vez adoptado o relatrio do painel ou do rgo de recurso pelo ORL, este rgo tomar as decises ou recomendaes que o pas membro infractor dever cumprir. Se as recomendaes ou decises no forem executadas num prazo razovel (art. 22., n. 1) sero adoptadas medidas temporrias de compensao e de suspenso de concesses (que podem assumir a natureza de retorses cruzadas). Todavia, se a parte em causa colocar objeces quanto ao nvel ou natureza da suspenso, haver recurso arbitragem ( a terceira etapa). Por fim, o ORL ser informado atempadamente da deciso do rbitro e conceder, mediante pedido, autorizao para suspender as concesses ou outras obrigaes nos casos em que esse pedido seja compatvel com a deciso do rbitro, salvo se o ORL decidir por consenso rejeitar o pedido (art. 22., n. 7). Em Setembro de 2003 o ORL j tinha recebido mais de 300 diferendos, nmero que o GATT no alcanou em quase 50 anos de existncia. Sobre o sistema de resoluo de diferendos da OMC vide Ernst-ULRICH PETERSMANN, The GATT/WTO Dispute Settlement System, International Law, International Organizations and Dispute Settlement, Kluwer Law International, London (1998), e Miguel MOURA e SILVA, Direito Internacional Econmico, Jurisprudncia Relativa ao Sistema GATT/OMC, AAFDL, Lisboa (2002), esp. 119, ss. 36 Convm sublinhar que o acordo da OMC inclui acordos que se impem aos pases que pretendam aderir, constituindo um bloco indivisvel (os acordos multilaterais), sendo apenas de adeso facultativa os acordos plurilaterais (a sua autonomizao deveu-se s particulares dificuldades de negociao verificadas nos domnios muito circunscritos abrangidos por estes acordos). Ou seja, a eficcia (traduzida em estabilidade e assente num compromisso nico sem excepes) da liberalizao mundial das trocas abrangendo diversos sectores e a regulamentao uniforme do comrcio multilateral igualmente assegurada por esta via (que se impe a todos, quer a pases como os EUA que tm de cumprir regras e disciplinas por vezes severas, quer s economias em desenvolvimento ou de nova industrializao que tm de assumir obrigaes de que antes estavam isentas), evitando-se, como acontecia no GATT, a multiplicidade divergente de relaes jurdicas entre os membros (geradora de efeitos perversos para os objectivos do Acordo) e aquilo que Paolo PICONE e Aldo LIGUSTRO, ob. cit., 27, referem, e que acima citmos, como free riding: os Estados no podem apenas aceitar os acordos que lhes sejam mais vantajosos. Por outro lado, estabelece-se (art. XIII do acordo OMC) uma clusula de no aplicao em termos muito rigorosos [que s pode ser aplicada entre membros da OMC para o conjunto dos acordos concludos no mbito daquela Organizao, mas com excepo dos acordos plurilaterais que tm regras prprias e o acordo relativo ao mecanismo de exame das polticas comerciais (aqui no h derrogaes, s importando a anlise da poltica comercial de cada Estado com as regras da OMC e no as relaes inter-estaduais)], no existindo a clusula Grandfather (que no GATT permitiu a subsistncia dos entraves ao comrcio e impediu a realizao dos objectivos desse Acordo Geral) e consagrando-se, expressamente, que os pases membros asseguraro a conformidade do seu ordenamento jurdico com as suas obrigaes resultantes do acordo OMC e acordos anexos (art. XVI, n. 4, do acordo OMC). Pg.19

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neste novo quadro integrado (do ponto de vista institucional e material) de organizao econmica (sublinhando-se o simbolismo da queda do muro de Berlim e uma nova realidade poltico-econmica e militar que gerou) e jurdica (funcionalizandose o jurdico ao econmico e afianando-se a implementao de um certo modelo) das relaes comerciais multilaterais que celebrado o acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comrcio (TRIPs) incluindo o comrcio de mercadorias de contrafaco. Este acordo um exemplo do crescente interrelacionamento e mundializao como veremos no post Ciclo do Uruguai das actividades com algum relevo econmico [sejam de natureza econmico-social (por exemplo, o dumping social ou a proteco do consumidor), de ndole econmico-cultural (por exemplo, a proteco do conhecimento tradicional) ou relevem do sector econmico-jurdico (por exemplo, a propriedade intelectual)] e de natureza essencialmente no comercial (direitos laborais, segurana social, ambiente, sade pblica, etc.), de que a OMC se quer assegurar no apenas um free trade, mas tambm um fair trade37 no se pode alienar (alm de outras com uma clara vertente comercial, como o comrcio electrnico ou a defesa da concorrncia). Estamos perante uma Organizao Mundial do Comrcio que quer ser planetria no plano subjectivo (id est, Estados membros) e no modelo econmico neo-liberal, mas tlo- que ser tambm no plano material, dando cumprimento s exigncias (no altrusticas) de grupos de interesses da sociedade civil.3837

Um comrcio livre deve ser igualmente um comrcio justo, com igualdade de armas. As importaes de pases que no respeitem as regras mnimas no domnio das condies de trabalho ou de respeito do ambiente, alm de prejudicar os produtores e os trabalhadores dos pases como os da Unio Europeia que respeitam tais regras (sendo certo que os beneficirios podero ser os consumidores que podem comprar a preo mais baixo), h uma responsabilidade moral e poltica (dos pases importadores) perante os cidados dos prprios pases terceiros, afectados na sua dignidade e na sua qualidade de vida por no estarem asseguradas as condies mnimas nos domnios indicados Manuel PORTO, Portugal, o Uruguai Round e a Unio Europeia (1994), 36. 38 Sobre o multilateralismo, a internacionalizao e a globalizao vide, entre outros, ULRICH BECK, Qu es la globalizacin? Falcias del globalismo, respuestas a la globalizacin, Paids, Barcelona (2001); ZYGMUNT BAUMAN, Globalization, The Human Consequences, Polity Press, Cambridge (1998); HansPeter MARTIN e HARALD SCHUMANN, A Armadilha da Globalizao, o assalto democracia e ao bemestar social, Terramar, Lisboa (2000); Joseph E. STIGLITZ, Globalization and its Discontents, New York (2003); ZYGMUNT BAUMAN, Postmodernity and its Discontents, Polity Press, Oxford (1998); JGEN HABERMAS, Lespace public, ditions Payot, Paris (1993); JGEN HABERMAS, The Structural Transformation of the Public Sphere, Polity Press, Oxford (2002); Michel BLANGER, Instituies Econmicas Internacionais, A Mundializao Econmica e os seus Limites, Instituto Piaget, Lisboa (1997). Contra o comrcio internacional global vide TIM LANG, COLIN HINES, O Novo Proteccionismo, Pg.20

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3. Gnese do acordo sobre os aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comrcio (TRIPs).authorship generates control, control generates authority, and authority generates power. We should take every step necessary to ensure that the controlling voices of the few but powerful are balanced by the yet-unheard voices of the weaker multitudes. Tyanna K. HERRINGTON, Controlling voices, USA (2001), 154.

A disciplina da propriedade intelectual numa economia globalizada foi adquirindo uma importncia crescente ao longo do Ciclo do Uruguai. Na verdade, desde a dcada de 80 que se assistia a um aumento no nmero de patentes concedidas e de marcas registadas, bem como a um desenvolvimento acentuado no sector do direito de autor. O comrcio internacional de produtos e servios incorporava, de forma crescente, direitos de propriedade intelectual. Hoje, no valor dos produtos (e no apenas os tecnolgicos) pesam, de forma cada vez mais significativa, os esforos de inveno, inovao e investigao39. A esta extenso (merceolgica e de valor econmico) deve-se acrescentar que a prpria noo de propriedade intelectual que se amplifica (extenso jurdica quer no plano da intensidade quer do alargamento a novos objectos)40. O reforo da tutela da propriedade intelectual verifica-se, em primeiro lugar, no plano interno (principalmente nos pases industrializados), de seguida no domnio dos acordos bilaterais e depois nas convenes multilaterais (de que o Ciclo do Uruguai constituiu, at data, o exemplo mais representativo). Gustavo Ghidini claro: () dieProtegendo o Futuro Contra o Comrcio Livre, Instituto Piaget, Lisboa (1994) e, dos mesmos autores, La relocalisation, un nouveau protectionisme, in AA.VV, Le Procs de la Mondialisation, sous la direction de Edward GOLDSMITH et Jerry MANDER, Librairie Arthme Fayard, 2001, 459, ss. Entre a economia de mercado e a regulao leia-se, entre ns, Maria Manuel LEITO MARQUES e Vital MOREIRA, A Mo Invisvel, Mercado e Regulao, Almedina (2003). 39 Vide Margaret BLAIR e Steven WALLMAN, The Growing Intangibles Reporting Discrepancy, in AA.VV., Intangible Assets, Values, Measures, and Risks, Edicted by John HAND and BARUCH LEV, Oxford Management Readers, Oxford University Press, New York (2003), 449, ss. 40 A propriedade intelectual tem-se deparado com crescentes problemas em virtude do quadro societrio dominante ser profundamente comunicativo e simblico. Sobre isto vide, entre muitos, Manuel CASTELLS, A Sociedade em Rede, Editora Paz e Terra, Brasil (2000); deste mesmo autor leia-se O Poder da Identidade, Editora Paz e Terra, Brasil (1999); e Giovanni SARTORI, Homo Videns, televiso e pspensamento, Terramar, Lisboa (2000). Pg.21

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anhaltende und vielfltige Tendenz der Ausweitung der Ausschlielichkeitsrechte sowohl an den Ergebnissen gewerblicher Erfindungen als auch an den Unterscheidungszeichen von Unternehmen und Erzeugnissen.41. Sendo certo que no incio das negociaes do Ciclo do Uruguai havia muita incerteza quanto aos resultados que se poderiam alcanar (os pases em vias de desenvolvimento estavam muito relutantes e questionava-se o papel da Organizao Mundial da Propriedade Intelectual OMPI), a verdade que os EUA estavam empenhados neste dossier (exigindo alteraes face ao quadro jurdico convencional data em vigor em relao a alguns direitos de propriedade intelectual e sublinhando a relevncia de uma tutela eficaz de tais direitos42) e sentia-se que um acordo multilateral era prefervel a sanes unilaterais. A concluso foi o acordo TRIPs, cujo mbito de aplicao (id est, direitos privativos abrangidos), contedo normativo (regime jurdico) e eficcia (aplicao efectiva) ultrapassam as convenes anteriormente celebradas. At data de celebrao deste acordo a propriedade intelectual assentava, no plano internacional, fundamentalmente em convenes administradas pela OMPI. Estamo-nos a referir, em especial, Conveno da Unio de Paris (CUP) de 1883 relativa proteco da propriedade industrial e Conveno de Berna de 1886 para a proteco das obras literrias e artsticas. A CUP constituiu um avano significativo na medida em que a disciplina da propriedade intelectual deixou de assentar exclusivamente no direito nacional e em acordos bilaterais (tratou-se da adopo de uma atitude internacionalista). Por outro lado, esta conveno tem dois princpios estruturantes: o do direito de prioridade e o do tratamento nacional. A Conveno de Berna admite igualmente este princpio do tratamento nacional embora lhe conceda, inclusive, uma maior extenso (que poder ser subordinada ao princpio da reciprocidade). O princpio do tratamento nacional tem uma faceta negativa muito importante: ausncia de discriminao entre nacionais de pases membros da conveno. Mas no impe qualquer contedo mnimo

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Protektionistische Tendenzen im gewerblichen Rechtsschutz, in Gewerblicher Rechtsschutz und Urheberrecht, Internationaler Teil (GRUR Int.), 1997, Heft 10, 773. 42 Sobre a posio da indstria norte-americana que defendia um sistema de propriedade intelectual forte de modo a assegurar a sua competitividade, vide, entre outros, OVE GRANSTRAND, The Economics and Management of Intellectual Property, Towards Intellectual Capitalism, Edward Elgar Publishing Limited, United Kingdom (1999), 39, ss. Aquela atitude da indstria norte-americana veio a ser partilhada pelas multinacionais europeias e japonesas. Pg.22

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de tutela, isto , no exige uma harmonizao mnima dos ordenamentos jurdicos. O tratamento nacional s coisas imateriais estrangeiras pode ser inadequada ou insuficiente quando o ordenamento jurdico em causa no tutela eficazmente os direitos de propriedade intelectual (podendo um pas membro com um menor nvel de proteco da propriedade intelectual em relao a outros comportar-se como um freerider). O acordo TRIPs tentou superar as diversas crticas que eram dirigidas a estas convenes. Em primeiro lugar, a ausncia de sistemas obrigatrios de resoluo de litgios entre Estados ou sistemas sancionatrios em relao aos membros que no cumpram as obrigaes consagradas nas convenes (sublinhe-se que o recurso ao Tribunal Internacional de Justia nos termos do art. 28. da CUP e do art. 33. da Conveno de Berna, tem um carcter voluntrio)43. Em segundo lugar, a inexistncia de regras relativas aplicao efectiva atravs de autoridades judiciais ou administrativas dos direitos privativos. Em terceiro lugar, a no exigncia de uma harmonizao, ainda que mnima (seja no plano do direito substantivo seja no domnio do direito adjectivo), entre os ordenamentos jurdicos (sendo certo que as referidas convenes estabelecem algum contedo mnimo, aos Estados membros deixada grande liberdade de conformao interna, por vezes desajustada aos interesses das empresas multinacionais). Por fim, o comrcio globalizado exigia outras regras actualizadas (as principais convenes, ainda que revistas, datavam de finais do sculo XIX) para a propriedade intelectual. Este sector do direito adquiriu uma relevncia no despicienda no comrcio internacional, desde logo nos domnios da indstria cinematogrfica e farmacutica, da agricultura (em especial no campo agro-alimentar), dos programas de computador, da tecnologia digital e das transferncias de tecnologia. Se as convenes relativas propriedade intelectual de finais do sculo XIX procuraram responder s exigncias da mundializao ou internacionalizao da economia (associada s invenes e inovaes

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Sobre as solues apresentadas ou permitidas, neste domnio, pela CUP, veja-se Hans Peter KUNZHALLSTEIN, The US Proposal for a GATT-Agreement on Intellectual Property and the Paris Convention for the Protection of Industrial Property, in IIC Studies, ob. cit., 87, ss. O autor sublinha que a CUP dispe de mecanismos que garantem um cumprimento efectivo das suas disposies, mas reconhece o seu carcter arcaico. Pg.23

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do tempo), tambm agora, nos finais do sculo XX, era preciso assegurar que a propriedade intelectual respondia aos novos desafios da revoluo tecnolgica e da globalizao econmica. Os esforos da OMPI em modernizar a propriedade intelectual eram inglrios44 (o que ps em causa o seu papel na cena internacional da propriedade intelectual) fora de um sistema de comrcio multilateral submisso a uma lgica amplamente merceolgico-mercvel45 (mas desigual). O GATT, por sua vez, continha poucas regras no domnio da propriedade intelectual. Sem prejuzo de algumas disposies gerais do GATT (por exemplo as relativas a resoluo de diferendos, a restries s importaes ou ao princpio do tratamento nacional) se poderem aplicar propriedade intelectual (mas no vocacionadas para esta matria), encontramos, fundamentalmente, duas normas. O art. IX relativo s marcas de origem e em particular o n. 6 desta disposio, tem alguma relao, ainda que distante (desde logo devido interpretao restritiva de que foi objecto46), com as indicaes geogrficas, e o art. XX, alnea d), permite, observadas certas condies (ausncia de discriminao arbitrria ou restrio dissimulada ao comrcio internacional), que uma parte contratante adopte medidas (contrrias liberdade de comrcio) com vista a proteger patentes, marcas e o direito de autor ou com a finalidade de prevenir prticas enganosas (entendia-se que estavam aqui includas as falsas indicaes geogrficas de origem)47. Todavia, o motivo da consagrao destas regras era assegurar um comrcio mundial sem obstculos e no regular ou proteger direitos de propriedade intelectual. Por outro lado, durante e aps o Ciclo de Tquio o problema do comrcio de produtos contrafeitos ou pirateados foi adquirindo uma relevncia crescente48. Em virtude da insuficiente proteco concedida aos direitos de propriedade intelectual porSobre as dificuldades de reviso da CUP veja-se, entre outros, Michael MCKEE, You Cant Always Get What You Want: Lessons From the Paris Convention Revision Exercise, in AAVV, The Economics of Intellectual Property, Volume IV Competition and International Trade, Edited by Ruth TOWSE e Rudi HOLZHAUER, Published by Edward Elgar Publishing Limited, UK (2002), 391, ss. 45 As dificuldades de avano da propriedade intelectual, designadamente, no quadro da CUP tero justificado a sua deslocao para o GATT. Sobre isto vide Hans Peter KUNZ-HALLSTEIN, ob. cit., 77, ss. 46 Sobre esta questo vide Guide to GATT Law and Practice, ob. cit., 287-291, em especial a queixa da Comunidade Europeia contra o Japo relativa utilizao, em produtos originrios deste pas, de nomes geogrficos europeus. 47 Em relao a este artigo veja-se Guide to GATT Law and Practice, ob. cit., 582-583. 48 Sobre os prejuzos da indstria norte-americana causados pelos produtos contrafeitos ou pirateados vide, entre outros, Michael BLAKENEY, Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights: A Concise Guide to the TRIPs Agreement, Londres (1996), 2. Pg.2444

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parte de alguns pases (designadamente os pases em vias de desenvolvimento que, em alguns casos, no tinham aderido s convenes internacionais relativas propriedade intelectual ou no garantiam a sua eficaz aplicao), tornava-se fundamental, segundo outros pases (os industrializados), reforar e harmonizar ao nvel mundial o regime jurdico desses direitos (harmonizao que se imporia aos ordenamentos jurdicos de cada Estado e que permitiria aos operadores econmicos que operassem em mercados estrangeiros a possibilidade da consecuo de uma tutela eficaz dos seus direitos privativos). Embora at ao Ciclo do Uruguai todos os esforos tenham falhado (desde logo porque se discutia se o GATT era o local apropriado para disciplinar esta questo; os pases em vias de desenvolvimento defendiam que a competncia era da OMPI), existia consenso acerca da necessidade de se encontrarem formas eficazes de eliminar tal comrcio49. Segundo a opinio dos defensores de um sistema harmonizadoE a eliminao desse comrcio de produtos contrafeitos ou pirateados no deveria implicar a adopo de medidas unilaterais j experimentadas no passado. Na verdade, os EUA (seguidos pelo Japo e pela CE) perfilharam medidas comerciais unilaterais de retaliao em relao aos pases que no reprimissem a contrafaco e a pirataria. Estamo-nos a referir emenda introduzida (a pedido da poderosa indstria norte-americana) em 1984 na Section 301 do Trade Act de 1974 dos EUA de modo a incluir a propriedade intelectual e a permitir medidas de retaliao (por exemplo, restries s importaes) em relao aos pases que no protegessem a propriedade intelectual (tais medidas vieram a ser adoptadas em relao Repblica da Coreia e ao Brasil). Estas medidas vieram a ser reforadas em 1988 com a Special 301 em que o United States Trade Representative poderia colocar sob observao (uma watch list ou priority watch list) os pases que no tutelassem eficazmente a propriedade intelectual de modo a serem eventualmente adoptadas medidas de retaliao (dessas listas constaram pases como a ndia, a Tailndia, a China, o Brasil, mas tambm a CE, o Japo ou a Austrlia). Contudo, a apreciao da no proteco da propriedade intelectual era efectuada em funo dos interesses da indstria (farmacutica, cinematogrfica, informtica, etc.) norte-americana. Por outro lado, o recurso ao sistema norte-americano de preferncias comerciais (Generalized System of Preferences) estava circunscrito aos pases que tutelassem os direitos privativos de propriedade intelectual (embora, de incio, o GSP no tivesse como pressuposto a tutela da propriedade intelectual). Por fim, os EUA recorreram a negociaes bilaterais (por exemplo, com Singapura) de modo a exigir de alguns pases modificaes no seu ordenamento jurdico no sentido de uma proteco acrescida da propriedade intelectual. Sobre isto vide Paolo PICONE e Aldo LIGUSTRO, ob. cit., 400, Michael BLAKENEY, ob. cit., 4-6, e ULRICH JOOS e RAINER MOUFANG, Report on the Second Ringberg-Symposium, in IIC Studies, ob. cit., 14. Esta legislao norte-americana constituiu uma estratgia no s ao servio dos interesses da indstria norte-americana (que, diga-se, teve sucesso; diversos pases alteraram a sua legislao interna no sentido de protegerem os direitos de propriedade intelectual), mas tambm para forar as negociaes do Ciclo do Uruguai no domnio da propriedade intelectual. Ou seja, as medidas unilaterais e bilaterais facilitaram as disposies multilaterais consagradas no acordo TRIPs. Mas se muitos pases se vergaram face a esta legislao, outros (como a ndia) s caram com a barganha multilateralista permitida na OMC. Aps a OMC, as atitudes bilaterais dos EUA no terminaram, continuaram com vista consagrao de nveis de tutela ainda mais elevados do que os consagrados no TRIPs. Veja-se, sobre isto, Dominique JAKOB, Die Zukunft USamerikanischer unilateraler Section 301-Manahmen; Zugleich: Bericht ber den Report des WTOStreitschlichtungs-Panels vom 22. Dezember 1999 (WT/DS152/R), in GRUR Int., 2000, Heft 8-9, 715, ss., em que o autor conclui Eines jedenfalls scheint sicher: Der Streit um die Rechtmigkeit amerikanischer 301-Manahmen kann und wird so in einigen Jahren von neuem entbrennen. Pg.2549

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e reforado a nvel planetrio da propriedade intelectual, a ausncia deste sistema poderia constituir um obstculo ao comrcio ou exportao (ou seja, a substituio dos produtos genunos importados por produtos pirateados produzidos localmente)50. A incluso na agenda do Ciclo do Uruguai do tema da propriedade intelectual no foi, como vimos, pacfica: os EUA e o Japo apresentaram propostas que abrangiam todos os direitos de propriedade intelectual e acentuavam a necessidade de uma aplicao efectiva; outros pases (como o Brasil e a Argentina) opunham-se incluso deste tema no Ciclo51. Tendo em conta o texto final do acordo TRIPs, os objectivos traados em Punta del Este para a propriedade intelectual eram muito limitados (salvo a referncia elaborao, em termos apropriados, de novas regras e disciplinas): a regulao da propriedade intelectual tinha por finalidade, apenas, reduzir as distores e obstculos ao comrcio internacional; os negociadores limitar-se-iam a clarificar as disposies j existentes no GATT (que acima vimos); os negociadores deveriam ter especial preocupao pelo comrcio internacional de produtos contrafeitos, tendo em conta o trabalho j efectuado (que era mnimo e no consensual); os esforos a desenvolver no GATT no prejudicariam o trabalho complementar da OMPI; por fim, tratava-se da propriedade intelectual relacionada com o comrcio pretendendo-se incutir que se estava nos domnios tradicionais do GATT. Ou seja, a Declarao Ministerial de Punta del Este no abordava autonomamente a propriedade intelectual, pelo contrrio, inclua-a no comrcio de mercadorias e estava centrada no comrcio de mercadorias contrafeitas. As negociaes progrediram lentamente no s porque se tratava de uma matria nova (em especial pela dimenso que se lhe queria imprimir), mas tambm porque se verificaram divergncias entre os pases industrializados (como os EUA, a CE ou o Japo) que desejavam um acordo muito completo e alm dos objectivos inicialmente fixados, e os pases em vias de desenvolvimento (como o Mxico ou o Brasil) que estavam receosos de um excesso de proteco que gerasse dificuldades no campo das transferncias de tecnologia e implicasse um aumento dos custos nos produtos agrcolas e farmacuticos (a ndia defendia que as regras do GATT s se deveriam aplicar quando50 51

THIBAUT FLORY, ob. cit., 172. Vide Daniel GERVAIS, ob. cit., 10. Pg.26

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se provasse distoro do comrcio)52. Outras dificuldades eram acentuadas: a relao com as principais convenes internacionais relativas propriedade intelectual (em especial as convenes de Berna e de Paris); os princpios do tratamento nacional e da nao mais favorecida estavam associados ao comrcio de mercadorias (no se adequando propriedade intelectual); as licenas obrigatrias de patentes (defendidas pelo Brasil e pela Coreia com a oposio ou pelo menos exigindo restries da ustria e de Hong-Kong); as excepes patenteabilidade ou a no incluso dos segredos comerciais (matrias defendidas pelos pases em vias de desenvolvimento);

Nesta divergncia de posies dos pases industrializados e dos pases em vias de desenvolvimento importa sublinhar que aqueles pases argumentavam que a criatividade e a inovao tinham assumido uma importncia muito relevante no comrcio internacional (e, por isso, as disposies do GATT de 1947 eram insuficientes) em termos de o comrcio de produtos protegidos por marcas, patentes, segredos ou direito de autor ter crescido de forma significativa e que, neste sentido, a elevao dos nveis de proteco da propriedade intelectual no plano mundial constitua um estmulo ao investimento em novas tecnologias. A ausncia ou insuficincia dessa proteco implicaria, ainda segundo os pases industrializados, uma distoro e diminuio do comrcio, prejudicando a produo de produtos legtimos e um menor aproveitamento racional dos recursos com diminuio da riqueza e do investimento (designadamente em projectos de investigao). Falta, todavia, estabelecer o nexo de causalidade entre a proteco da propriedade intelectual e o desenvolvimento econmico (tema a que voltaremos mais adiante). Invocavam, ainda, a proteco do consumidor que seria enganado nos casos de contrafaco e pirataria quanto qualidade dos produtos adquiridos, bem como a eroso da reputao dos produtos (desde logo das marcas de prestgio). A disciplina da propriedade intelectual seria, alis diziam os pases industrializados do interesse dos prprios pases em vias de desenvolvimento, na medida em que lhes assegurava transferncia de tecnologia em condies legtimas. A todos estes argumentos os pases em vias de desenvolvimento respondiam que uma proteco elevada da propriedade intelectual geradora de proteccionismos (protegendo-se, eventualmente, o que no legtimo ou excessivo) que s favorece os pases industrializados, em virtude de limitar o acesso daqueles pases s inovaes e s novas tecnologias (basta pensarmos nas patentes de produtos farmacuticos ou no domnio da biotecnologia a favor dos pases industrializados e as exigncias de sade pblica nos pases em vias de desenvolvimento ou da diversidade de opinies entre estes grupos de pases no que respeita s patentes de material gentico, s variedades vegetais, proteco do conhecimento tradicional e do folclore ou ao nvel de proteco a conceder s indicaes geogrficas). Ou seja, so bem claros os interesses econmicos em jogo. Mas deve acrescentar-se que alguns dos pases em vias de desenvolvimento gozavam de uma crescente capacidade tecnolgica, pelo que no viam com bons olhos um aumento da tutela da propriedade intelectual que os proibiria de reproduzir, a baixo custo, produtos protegidos por direitos privativos propriedade de empresas de pases industrializados. Por fim, haveria ainda a ponderar se as medidas e os procedimentos a adoptar para elevar o nvel de tutela da propriedade intelectual no poderiam constituir um obstculo ao comrcio, uma limitao excessiva da concorrncia ou um impedimento ao investimento (argumentos que destruiriam as razes invocadas pelos pases industrializados no quadro dos objectivos de uma organizao mundial do comrcio). Sobre algumas destas questes vide Pedro LVARES, O GATT, de Punta del Este a Marraquexe, Publicaes EuropaAmrica (1994), 237, ss. Refira-se que a propriedade intelectual vive numa constante dialctica entre a tutela dos interesses dos titulares dos direitos privativos e os interesses colectivos (de uma ampla difuso das inovaes ou de defesa da concorrncia), e o acordo TRIPs um reflexo desta dicotomia e da soluo geralmente conseguida: supremacia do interesse econmico sobre o da colectividade. Pg.27

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por fim, outros pases, como o Chile, continuavam a defender que qualquer acordo neste domnio do direito deveria ser administrado pela OMPI53. A partir de 1990 verifica-se uma evoluo significativa a caminho do acordo TRIPs. A CE apresenta uma proposta em forma de texto de acordo bastante detalhada (aplicao dos princpios do tratamento nacional e da nao mais favorecida propriedade intelectual; regime dos diversos direitos privativos; aquisio e aplicao efectiva destes direitos) que seguida nos seus elementos fundamentais pelos EUA. Alm do Japo, da Sua e da Austrlia (que submeteu um texto exclusivamente dedicado s indicaes geogrficas) terem apresentado as suas propostas (o que gerava, no seio dos pases industrializados, discrepncias) um grupo de pases (no total de 14) em vias de desenvolvimento fizeram ouvir a sua voz atravs de uma proposta que divergia substancialmente da dos pases industrializados. Em face destas propostas o presidente do grupo de trabalho para as questes da propriedade intelectual (criado para o Ciclo do Uruguai) preparou um texto composto (que mantinha as divergncias apesar da estrutura de base ter sido inspirada nas propostas da CE e dos EUA). O prximo passo foi a conferncia Ministerial de Bruxelas (Dezembro de 1990). O Ciclo do Uruguai no terminou aqui devido, fundamentalmente, s questes agrcolas e aos servios, mas na propriedade intelectual tudo estava quase pronto, ou pelo menos as oposies estavam bem identificadas e j no eram inultrapassveis. As questes ainda a negociar eram as seguintes: no domnio do direito de autor subsistia o problema da excluso dos direitos morais, da proteco dos programas de computador, das compilaes de dados e dos direitos conexos; no campo da propriedade industrial discutia-se a patenteabilidade dos produtos farmacuticos (e, em geral, as excepes patenteabilidade) e a proteco das indicaes geogrficas (em que a CE tinha esperanas de colocar termo aos pecados do passado); por fim, era necessrio acertar a natureza e a durao dos perodos transitrios para os pases em vias de desenvolvimento, bem como decidir sobre a incluso do sistema de resoluo de

Sobre a competncia do GATT e as relaes com a OMPI vide, entre outros, ULRICH JOOS e RAINER MOUFANG, ob. cit., 30, ss., Hans Peter KUNZ-HALLSTEIN, ob. cit., 80, ss., e Josef DREXL, Nach GATT und WIPO: Das TRIPs-Abkommen und seine Anwendung in der Europischen Gemeinschaft, in GRUR Int., 1994, Heft 10, 777, ss. (no que respeita relao da OMC com a OMPI o autor responde:Die Antwort lautet damit nicht GATT statt WIPO, sondern GATT und WIPO). Pg.28

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diferendos no GATT (o que estava em cima da mesa era a possibilidade de retaliao cruzada, ou seja, o que todos tinham em mente era a seco 301 do Trade Act dos EUA que consagrava sanes unilaterais). O momento final traduz-se na apresentao pelo Director-Geral Arthur Dunkel de um novo projecto de acordo TRIPs (um projecto integrado e no composto, ou seja sem possibilidades de opo). Esta proposta sofreu muito poucas alteraes54 e tornouse o acordo definitivo. Este acordo s era possvel no quadro do GATT e nunca da OMPI. Na verdade, o modo de negociao do