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CONTRACAMPO REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FOTOGRAFIA, CIÊNCIA E MITO Uma interseção estética Ana Taís Portanova Barros 1 Resumo: Passados mais de 170 anos de sua descoberta, a fotografia ainda assombra ciência e senso comum por sua testemunhabilidade, acenando para uma estética profundamente enraizada no tempo vivido. A ciência e, nesse caso especial, a semiologia, vocacionada à desmitologização, fez da fotografia objeto de estudo sob a égide de sua ontologia sígnica em geral, indicial em particular. Paradoxalmente, as tentativas científicas de separar representação de realidade fazem supor o absoluto da realidade fotográfica, retornando ao tempo total do mito, remitologizando o que se queria desmitologizado. Em vez de indicar um erro no procedimento científico, essa recursividade sinaliza a imperatividade da experiência e a presença do illud tempus mesmo no mais racional dos empreendimentos humanos. Palavras-chave: Fotografia. Ciência. Mito. Abstract: After 170 years of its emergence, photography still astounds science and common sense for its “witnessability”, hinting at some aesthetics that is deeply rooted in the time that has been lived. Science – and more specifically semiology, which is concerned with demythologizing – has turned photography into an object of study that lies under the aegis of its ontology: signic in general terms, indexical in particular terms. Paradoxically, the scientific attempts to dissociate representation from reality have us assume the absolute in the photographic reality, returning to the total time of the myth, remythologizing what should be demythologized. Instead of an error in the scientific procedure, such recursion suggests the paramount importance of the experience and the presence of illud tempus even in the most rational of human endeavors. Keywords: Photography. Science. Myth. Construção dogmática na Fotografia As reflexões sobre a fotografia, desde seu nascimento, parecem esbarrar em dificuldades relacionadas à falta de autonomia disciplinar. Sem saber se é técnica ou arte, a fotografia seguiu pelo século XX procurando legitimações numa e noutra área separadamente. Se, além e/ou aquém da técnica e da arte, considerarmos a fotografia como um campo de conhecimento e a olharmos sob a lente do sociólogo português Boaventura de Souza Santos 1 Professora do departamento de Comunicação da UFRGS, área de Fotografia. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

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Passados mais de 170 anos de sua descoberta, a fotografia aindaassombra ciência e senso comum por sua testemunhabilidade, acenando para uma estética profundamente enraizada no tempo vivido.

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  • CONTRACAMPO REVISTA DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM COMUNICAO - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

    FOTOGRAFIA, CINCIA E MITO

    Uma interseo esttica

    Ana Tas Portanova Barros1

    Resumo: Passados mais de 170 anos de sua descoberta, a fotografia ainda assombra cincia e senso comum por sua testemunhabilidade, acenando para uma esttica profundamente enraizada no tempo vivido. A cincia e, nesse caso especial, a semiologia, vocacionada desmitologizao, fez da fotografia objeto de estudo sob a gide de sua ontologia sgnica em geral, indicial em particular. Paradoxalmente, as tentativas cientficas de separar representao de realidade fazem supor o absoluto da realidade fotogrfica, retornando ao tempo total do mito, remitologizando o que se queria desmitologizado. Em vez de indicar um erro no procedimento cientfico, essa recursividade sinaliza a imperatividade da experincia e a presena do illud tempus mesmo no mais racional dos empreendimentos humanos. Palavras-chave: Fotografia. Cincia. Mito.

    Abstract: After 170 years of its emergence, photography still astounds science and common sense for its witnessability, hinting at some aesthetics that is deeply rooted in the time that has been lived. Science and more specifically semiology, which is concerned with demythologizing has turned photography into an object of study that lies under the aegis of its ontology: signic in general terms, indexical in particular terms. Paradoxically, the scientific attempts to dissociate representation from reality have us assume the absolute in the photographic reality, returning to the total time of the myth, remythologizing what should be demythologized. Instead of an error in the scientific procedure, such recursion suggests the paramount importance of the experience and the presence of illud tempus even in the most rational of human endeavors. Keywords: Photography. Science. Myth.

    Construo dogmtica na Fotografia

    As reflexes sobre a fotografia, desde seu nascimento, parecem esbarrar em

    dificuldades relacionadas falta de autonomia disciplinar. Sem saber se tcnica ou arte, a

    fotografia seguiu pelo sculo XX procurando legitimaes numa e noutra rea separadamente.

    Se, alm e/ou aqum da tcnica e da arte, considerarmos a fotografia como um campo de

    conhecimento e a olharmos sob a lente do socilogo portugus Boaventura de Souza Santos

    1 Professora do departamento de Comunicao da UFRGS, rea de Fotografia. Doutora em Cincias da Comunicao pela ECA/USP.

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    (1989), perceberemos que j temos elementos capazes de situ-la em termos de produo

    cientfica porque ela, apesar de largamente praticada por amadores, sempre tentou se separar

    do senso comum. Esta separao, segundo Santos (1989: p.18), crucial para a produo

    cientfica num primeiro estgio, aquele por ele chamado de construo dogmtica. O segundo

    estgio seria o da desconstruo ou desdogmatizao, hoje conhecido como crise de

    paradigmas. A dogmatizao corresponde crise de crescimento; a desdogmatizao, crise

    de degenerescncia. Na crise de crescimento, o discurso cientfico se separa do senso comum,

    do discurso artstico, do discurso religioso e do mtico. a primeira ruptura epistemolgica.

    Na crise de degenerescncia, as conseqncias sociais e humanas da cincia pedem

    conscincia cientfica uma retomada do dilogo com o saber comum e com os demais saberes.

    Para dirimir alguma dvida sobre o fato de a fotografia pretender se estabelecer como

    cincia ou, pelo menos, como campo de conhecimento, citamos a multiplicao de cursos de

    graduao e ps-graduao em fotografia e o surgimento de peridicos cientficos

    especializados em fotografia. No se trata, agora, de discutir o que cincia e sim de

    constatar, por assim dizer, uma vontade de cincia. Destarte, podemos retomar Santos e

    pensar, com ele, que o paradigma da cincia moderna, da crise de crescimento da cincia se

    constituiu contra o senso comum, recusando-se a se orientar para a vida prtica. O nico

    conhecimento vlido seria o cientfico, por causa da objetividade; e a objetividade alcanada

    atravs da separao entre teoria e prtica, cincia e tica. De modo no mais do que ligeiro,

    podemos verificar essa verdade tambm para a fotografia, sendo facilmente constatvel que os

    grandes fotgrafos no so pensadores da fotografia e os grandes pensadores da fotografia no

    so grandes fotgrafos. O ensasta ingls Geoff Dyer (2008: p. 18) chega mesmo a afirmar

    que no saber fazer fotos condio para se falar de fotografia. (Ele assevera que nem mesmo

    possui uma cmera fotogrfica.)

    Examinando o percurso das reflexes que tomam a fotografia como objeto, se v que

    sua autonomia disciplinar parece ser buscada repetidas vezes por meio de uma definio

    ontolgica, algo capaz de estabelecer um ponto em comum entre todas as fotografias e que,

    uma vez encontrado, a um s tempo permitiu o avano da tomada da fotografia como objeto

    cientfico e a ruptura com o senso comum sobre a fotografia. No final da dcada de 1950,

    Barthes publica seu Mitologias e, na dcada de 1960, A mensagem fotogrfica. No segundo

    texto (1969), Barthes estabelece balizas para a verificao do que havia afirmado no primeiro

    (1999) sobre o carter sgnico da fotografia. Parece que desde ento este carter no foi mais

    questionado; afinal, a fotografia seria sempre a representao de algo, significando sempre

    para algum. Sem grandes polmicas a respeito deste fundamento, a discusso maior se

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    estabeleceu a partir da relao da fotografia com o referente se indicial, icnica ou

    simblica. Mesmo hoje, muitos estudos sobre a fotografia tm sua ontologia sgnica como

    autoevidente, o que reservaria a leitura da imagem fotogrfica semiologia.

    Desmitologizao e remitologizao atravs do ndice

    Estabilizada a ideia da fotografia como sistema de signos, chegou-se anterioridade e

    supremacia do carter indicial da fotografia, nos termos de Peirce, sobre seu possvel carter

    simblico ou icnico. No entanto, esta ideia, sustentada durante muito tempo e por alguns dos

    mais citados estudiosos sobre o tema (KRAUSS, 2002; DUBOIS, 1993; SCHAEFFER, 1996)

    tem sido aos poucos desacreditada, como veremos adiante. Por outro lado, mesmo quando se

    passa ao largo da discusso sobre o pertencimento da fotografia ao reino do ndice, smbolo

    ou cone, deixa-se vazar a pulso fotogrfica da foto-ndice. O apelo de interesse da fotografia

    vem da experincia fsica que a foto como ndice supe. Precisamente neste ponto que

    acontece a formao da imagem, e agora no estamos falando do cone, ndice ou smbolo

    fotogrfico, e sim da imagem como produto principal da imaginao, aquela que resulta da

    juno do ver (a fotografia em si) com o viver. Ou seja, nestes termos, a imagem no est na

    fotografia e fotografia no imagem.

    A fotografia faz uma afirmao de existncia que convoca nossas experincias

    pessoais e d origem imagem. A afirmao de existncia que a foto-ndice faz importa no

    por ser verdadeira, mas por se acreditar nela. Pensar a fotografia a partir da

    inquestionabilidade de seu referente ou seja, do seu carter sgnico -, paradoxalmente

    muito mais um procedimento prprio ao pensamento mtico do que ao cientfico. O mito, j

    nos ensinou Eliade (1994), narra a fundao das coisas, sendo profundamente calcado numa

    verdade primeira qual sempre podemos retornar porque ela est sempre dentro do homem.

    Todos e somente os mitos so verdadeiros; eles sempre falam de realidades absolutas. Se a

    fotografia for entendida como se referindo a alguma coisa que existe indiscutivelmente,

    podemos dizer que ela est sendo tratada como um mito porque, nesse caso, a afirmao de

    existncia feita pela fotografia a mesma que o mito faz.

    J em 1844, Talbot (2007), ao publicar seu livro O lpis da natureza, ressaltava que na

    fotografia a prpria natureza se retratava a si mesma. Passado um sculo, em 1945, Andr

    Bazin (apud MACHADO, 2005), em Ontologia da Imagem Fotogrfica, dizia o mesmo de

    outra forma, com o conceito de gnese automtica, segundo o qual a fotografia registra

    mecanicamente o mundo, sem a interveno direta do homem. Notemos como essas ideias

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    iniciais supem a fotografia como ndice, ligada fisicamente ao que representa, sendo mesmo

    um gesto material do seu referente e constituindo, ento, prova da existncia desse referente.

    O correr dos anos no modifica a ideia da fotografia como signo e, mais

    especificamente, como signo indicial. Dubois lanou em 1983 sua obra O ato fotogrfico e

    Schaeffer, em 1987, A imagem precria. Ambos reafirmam a natureza indicial da fotografia.

    Dubois (1993) explicita que a fotografia, como o ndice, resulta de uma conexo fsica com o

    objeto retratado, j que os raios luminosos que tocam esse objeto so os mesmos que

    sensibilizam a pelcula. Segundo o autor belga, a fotografia partilha com os signos indiciais as

    caractersticas de singularidade (o que a fotografia reproduz ao infinito aconteceu s uma

    vez), atestao (por sua gnese, a fotografia testemunha) e designao (a fotografia aponta

    com o dedo, ali, mas nada afirma). Embora Dubois coloque limites referencialidade da

    fotografia, circunscrevendo-a ao momento do clique, permanece a convico de que uma

    fotografia sempre a imagem de alguma coisa que est no mundo.

    Parece, assim, que, desde seu surgimento, a fotografia considerada um rastro

    incontornvel da realidade, to capaz de atestar a existncia de algo quanto um fragmento

    material do objeto em questo. A essa viso se contrape a de estudiosos como Machado

    (2001), segundo o qual a fotografia raramente um ndice; pode at ser um cone e sempre

    smbolo. Isso se diferencia claramente da argumentao de Dubois, para quem a fotografia

    antes ndice e nunca cone, j que o cone no implica a existncia do referente. Ou seja, a

    experincia referencial da fotografia o ato que a funda (DUBOIS, 1993: p. 53). No entanto,

    Machado sustenta que os raios luminosos que sensibilizam a pelcula no caracterizam uma

    conexo fsica do signo com seu referente a menos que tudo no universo seja tambm

    considerado ndice, j que tudo, de alguma maneira, sofre a ao da luz. Para esse autor

    brasileiro, a fotografia ndice somente no caso dos fotogramas produzidos por contato direto

    entre o objeto retratado e o papel sensibilizado. Nos demais casos, a fotografia pode at ser

    um cone, se guardar uma semelhana com o referente, e sempre ser um smbolo, posto que

    sempre uma interpretao fsico-qumica do referente operada pelo equipamento, pela

    pelcula, pelo processo de revelao.

    [...] a pelcula fotogrfica s pode responder paisagem focalizada com a gama de cores que ela capaz de produzir. A quantidade de verdes que se pode encontrar na natureza possivelmente infinita, porque infinitos so os corpos fsicos com suas diferentes propriedades reflexivas, mas um determinado padro fotogrfico [...] produz uma gama de verdes no apenas finita, como tambm padronizada, regular e fixa (MACHADO, 2001: p. 124).

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    Machado, corroborando o pensamento de Flusser (2002), para quem a fotografia

    traduz teorias cientficas em imagens, afirma, assim, que a fotografia

    [...] antes de qualquer outra coisa, o resultado da aplicao tcnica de conceitos cientficos acumulados ao longo de pelo menos cinco sculos de pesquisas nos campos da tica, da mecnica e da qumica, bem como tambm da evoluo do clculo matemtico e do instrumental para operacionaliz-lo (MACHADO, 2001: p. 129).

    E conclui: A verdadeira funo do aparato fotogrfico no , portanto, registrar um

    trao, mas interpret-lo cientificamente (2001: p. 129).

    Fotografia sem referente

    A liberao da fotografia de seu referente s comea a ser aceita recentemente por

    alguns autores que, no rastro de Fontcuberta (2007), falam na desindexao da fotografia por

    causa da sua digitalizao:

    La fotografa h sufrido en la era electrnica un proceso de desindexilizacin. El nuevo elscenario devuelve a la imagen la linealidad de la escritura. La fotografa se libera de la memoria, el objeto se ausenta, el ndice se desvanece. Todo ello aboca a la fotografa a un nuevo estdio epistemolgico: la cuestin de representar la realidad deja paso a la construccin del sentido (FONTCUBERTA, 2007: p. 12).

    Ora, se a fotografia feita com suporte sensvel luz considerada ndice, no h por

    que considerar a fotografia digital diferente, posto que ainda a luz que, uma vez atingindo o

    sensor da mquina fotogrfica, f-lo carregar-se eletricamente. O sensor na verdade um chip

    que contm um conjunto de dodos de silcio fotossensveis. Cada um dos dodos acumula

    uma carga eltrica de acordo com a quantidade de luz que o atinge, carga essa que vai ser

    processada e apresentada como pixel do mesmo modo que cada gro de prata da pelcula

    atingido pela luz vai se transformar em prata metlica aps o processo de revelao.

    O fato que a fotografia digital chamou a ateno para o grande potencial de

    manipulao de que dotada a imagem fotogrfica. Esse potencial acompanha a fotografia

    desde seu nascimento, mas a digitalizao faz com que essa manipulao possa ser

    imperceptvel e esteja ao alcance de qualquer um. Ao se falar na desindexao da fotografia

    advinda com a sua digitalizao, novamente o raciocnio no parece se fundar em uma

    verdade cientfica, e sim em uma sensao de perda de materialidade, sensao esta que

    igualmente indica uma esttica.

    A conscincia de que todas as imagens so embustes (DEBRAY, 1993: p. 264)

    parece finalmente chegar ao senso comum sem que o fascnio pela fotografia diminua. As

  • Revista CONTRACAMPO Niteri n 21 Agosto de 2010 semestral Pgina 211

    cmeras so cada vez menores, mais leves e com maior qualidade de imagem, embutidas em

    telefones celulares e computadores portteis, sempre disponveis para um clique em meio

    correria do cotidiano. Para acolher o inestimvel nmero de fotografias produzidas todos os

    dias, sites especializados oferecem servios de armazenamento e exibio, gratuitos para

    quem mais moderado em sua produo, pagos para quem deseja depositar um nmero maior

    de fotografias.

    A fotografia, nascida na modernidade, viu surgir o cinema, a televiso, o videotape, a

    imagem digital e chega ps-modernidade perfeitamente integrada s novas estticas:

    assumida em sua impessoalidade, em seu hibridismo, em sua recusa originalidade. Entler

    mapeia trs formas de manifestao da fotografia que tm tido

    [...] forte penetrao nos espaos que se definem como voltados arte contempornea: a) um documentarismo constitudo de poses simples e registros frontais, sem apelos retricos ou, eventualmente, apoiado em modelos bastante assimilados pela tradio da fotografia; b) o resgate de uma plasticidade vulgar ligada a temticas e objetos considerados pelo senso comum como estticos, como a natureza, a paisagem urbana e o corpo; c) o recurso a procedimentos tcnicos pouco elaborados, s vezes levianos, numa aproximao fotografia amadora (ENTLER, 2008: p. 9-10).

    A fotografia passou por momentos em que ser arte significava sua salvao e por isso

    tentou copiar a pintura; quase ao mesmo tempo, outro movimento na fotografia seria no

    sentido de negar-se a copiar a pintura e ir at os limites da tcnica genuinamente fotogrfica,

    assumindo suas caractersticas todas, constituindo sua prpria arte. Chega-se hoje a um

    momento em que a fotografia, enquanto prtica, no se sente no dever de prestar contas a

    ningum, como podemos verificar nas manifestaes detectadas acima por Entler. O interesse

    geral pela fotografia se conservou intacto, no obstante as turbulncias identitrias e

    conceituais por que tem passado. Seja ela praticada com tcnicas fortemente elaboradas ou

    com a simplicidade do aperte o boto e ns fazemos o resto2, h algo que se mantm

    constante na fotografia ao longo do tempo. Donde provm esse enlevo? Ser que seria de seu

    suposto carter sgnico, ou seja, do fato de representar alguma coisa para algum?

    Retomamos a idia anteriormente explicitada da fotografia como imagem mtica e

    postulamos que no a potencialidade de representao e sim de apresentao e at de

    abduo a responsvel por esse fascnio. Quando se est diante de uma fotografia, -se

    introduzido em uma realidade inteira. Uma apresentao com imediata imerso, diferente, 2 Esta frase era o bordo da campanha publicitria da primeira mquina fotogrfica construda especificamente para o pblico amador, a Kodak, em 1888, por George Eastman. A nova cmera permitiu que milhes de pessoas pudessem fazer fotografias, prtica antes cara e complicada, reservada aos profissionais.

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    pois, da apresentao de que Barthes (1969: p. 302) falava ao definir a fotografia como

    mensagem sem cdigo, ou seja, o analogon perfeito. O semilogo estabelecia, no

    entanto, uma distino: a mensagem sem cdigo s o era para o senso comum. Na verdade,

    essa aparente no codificao, que no exigiria, portanto, um esforo para se compreender o

    significado da fotografia, serviria no mais do que como um libi para a outra mensagem,

    aquela que contm a retrica fotogrfica e, sim, fortemente codificada, eivada de processos

    de conotao. Assim, a apresentao de que Barthes fala no seria mais do que um

    acobertamento da verdadeira natureza da fotografia, que de representao.

    Representaes supem sempre uma realidade outra que no aquela que est frente

    do sujeito. Essa realidade em si se manteria intacta enquanto sobre ela se constroem,

    vontade, representaes. Ora, uma representao tal como a efetuada pelo signo, tambm

    chamado por Peirce (1984) de representamen, uma conexo entre dois elementos: o objeto

    por um lado e a idia na mente da pessoa por outro. Fala-se ento de um processo de

    imaginao racional porque raciocinar um jeito de imaginar. No entanto, o encadeamento

    lgico de pensamentos, o processo discursivo que produz e expressa esses pensamentos e que

    define o raciocnio no parece corresponder ao verdadeiro rapto que a imagem fotogrfica em

    geral capaz de promover no sujeito. Diante de uma fotografia, no comum que o

    espectador se detenha a raciocinar, a filosofar; ou invadido pelo pathos, entregando-se

    experincia esttica, ou ento permanece indiferente.

    Tempo primordial

    Wunenburger, ao falar do surgimento da categoria do sublime em Kant, assim

    contextualiza o pahtos:

    Enquanto o belo reenvia a formas finitas, dotadas de propriedades intrinsecamente agradveis ao gosto, o sublime designa o pathos que invade o sujeito assim que ele tocado por formas ou foras infinitas, que excedem toda representao finita. Por esta experincia o esprito humano se encontra diante de um irrepresentvel que confronta a razo com a transcendncia que a ultrapassa e torna sensvel (perceptvel) sua finitude diante do absoluto. assim que Kant abre no sublime um espao para o pensamento simblico, que busca, atravs de um modo no conceitual, satisfazer as aspiraes da incondicionalidade da razo humana (WUNENBURGER, 1998: p. 80, traduo nossa).

    Tal invaso pelo pathos sinaliza, pois, o pensamento simblico, ou seja, o pensamento

    por imagens simblicas. Trata-se de um atalho que atinge o conhecimento de seu objeto sem

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    utilizar os longos percursos do raciocnio. Ao dizermos pensamento simblico no nos

    referimos ao smbolo da teoria dos signos, que junta arbitrariamente duas coisas, constituindo

    talvez o mais racional dos signos. Falamos, isto sim, do smbolo dos estudos do imaginrio,

    aquele levantado por Durand (1997), que no se subordina ao signo, sendo muito mais uma

    espcie de emanao do referente, fuso entre uma imagem mental e um sentido vivido. A

    reivindicao que os estudos do imaginrio fazem de um pensamento por imagens (simblicas

    no sentido que acabamos de descrever) j estava autorizada pela filosofia pelo menos desde o

    sculo 18, quando Kant (1790 apud WUNENBURGER, 1998) chamou a ateno para a

    categoria do sublime, qual a prpria razo se rende quando se descobre incapaz de

    representar o mundo do pathos, como citamos acima.

    A necessidade do pensamento simblico aparece na prpria obra de Barthes. Na fase

    inicial de seu trabalho, Barthes (1999) dizia que a fotografia deve ser dissecada

    semiologicamente, deve ser desmascarada pelo estudioso, que trar luz o que o autor

    chamava de significante pleno, ou seja, resultante da separao entre sentido e forma, de

    modo a se perceber a deformao que um causa no outro. Ora, vinte anos mais tarde o sistema

    de anlise de fotografias que construiu ciosamente no lhe trazia respostas satisfatrias. Como

    bem observa Etienne Samain (1998), o homem de A mensagem fotogrfica (1969) no o

    mesmo de A cmara clara (1984), o que fala do studium, designando o registro feito pela

    cmara, e do punctum, tentando cercear o indefinvel, agarrar o impalpvel, aquilo de que a

    foto no fala. Sobre a organizao dos retratos de sua me, aps a morte dela, disse Barthes:

    "Eu lia minha inexistncia nas roupas que minha me tinha usado antes que eu pudesse me

    lembrar dela" (BARTHES, 1984: p. 97). Ao olhar os retratos da me morta, Barthes no

    conseguiu separar sentido e forma e chegar ao significante pleno. O enquadramento da

    fotografia como um signo decodificvel passa bem longe do punctum, esse sentido obtuso que

    [...] no pertence mais ao domnio da lngua, mas que se confessa na abertura de uma ferida. a ausncia e o silncio de todo sentido que, paradoxalmente, provoca um novo sentido, este grito, ntimo, intenso, necessrio a seres vivos, confrontados naquilo de que sempre a fotografia fala: a vida e a morte, o tempo e a existncia (SAMAIN, 1998: p. 125).

    A fotografia uma imagem mtica, e no sgnica. Ao dizermos mito, no estamos

    falando de falseamento da realidade ou de naturalizao da histria, como Barthes acusava no

    seu Mitologias (1999), em 1957. Usamos a palavra mito na acepo respeitosa e reverente de

    estudiosos do imaginrio como Eliade (1992) e Durand (1997), para os quais mito no s

    uma narrativa exemplar, mas tambm um caminho que nos joga diretamente nos braos do

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    illud tempus, o tempo primordial em que todas as coisas so criadas e que acolhe, portanto,

    todas as possibilidades de que o sujeito precisa para se autorrealizar. O tempo mtico no

    um tempo no qual possamos ingressar usando o raciocnio ou as representaes porque ele ,

    acima de tudo, experincia. No pensamento sobre a fotografia, na recepo de fotografias, o

    pensamento mtico fora passagem e encontra uma brecha na estrutura lgica construda pela

    teoria dos signos, fluindo atravs do carter de experincia que o signo indicial supe. Da a

    sobrevivncia da ideia de ndice na fotografia, por mais que a imaginao racional possa

    atestar o contrrio. Alis, Durand (1997) adverte que o imaginrio no sensvel lgica, e

    isso que explica, por exemplo, certos temores bem reais que cultivamos em relao a coisas

    inofensivas.

    Existe uma familiaridade nas imagens fotogrficas, seno em todas, pelo menos nas

    que se aproximam do estilo figurativo. Essa familiaridade com cenas que j vimos, com

    mundos que nos parecem conhecidos, mas que em verdade so construdos no momento

    mesmo em que entramos em contato com a fotografia conferem a ela poderes demiurgicos, de

    criao. Se no possvel constat-los em si, possvel ver seus efeitos: assim como a

    urbanidade mutante do final do sculo XIX levou fotgrafos documentaristas de ento a

    registrarem abundantemente as cidades antigas que desapareciam cedendo lugar para as

    modernas instalaes de gua, esgoto, eletricidade, gs e para construes que

    superaproveitaram o espao disponvel, assim tambm os fotgrafos contemporneos se

    lanam a registrar um mundo em via de desaparecimento. As imagens so to mais

    abundantes quanto maior o temor profundo pela liquidao desse mundo e to mais

    manipuladas quanto maior o desejo de construo de um outro mundo.

    Eficcia da imagem

    Assim, paradoxalmente, partindo de uma teoria que postula o carter sgnico e,

    pois, representativo da fotografia, chegamos possibilidade de que esse carter representativo

    no passe de uma vestimenta civilizada que fornecemos para uma entidade primitiva e

    incontornvel: o mito. Seno, vejamos: mesmo com todos os argumentos capazes de

    demonstrar que a fotografia no signo indicial, ou seja, no causada pelo objeto,

    facilmente o sujeito se trai e trata a fotografia como fragmento material daquilo que ali

    deveria estar longinquamente representado. Da a olhar para a fotografia do mesmo jeito que

    se abre a janela de casa e se olha para o mundo no temos muita diferena. Eis a fotografia

    como apresentao do mundo, mesmo com todas as precaues da nossa racionalidade. A

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    persistncia do pensamento que situa no signo indicial a caracterstica fundadora da fotografia

    , nesse quadro, dada pela legitimao racional que esse pensamento faz experincia mtica

    proporcionada pela fotografia. por introduzir verdadeiramente o sujeito num mundo que a

    fotografia parece to convincentemente um fragmento material desse mundo.

    A eficcia da imagem atesta sua realidade e se torna to mais perigosa quanto menos

    reconhecida. O no reconhecimento da imagem e do imaginrio como vias de conhecimento

    do mundo flagra-se, por exemplo, na clivagem entre razo e smbolo ao se considerar

    racionalmente a fotografia como representao e simbolicamente (quer dizer, no nvel das

    tripas, no nvel do splacnisomai3, e no no nvel do signo simblico) como apresentao. No

    entanto, diferente quando a razo compreende, como queria Kant (apud WUNENBURGER,

    1998) que h instncias em que ela incompetente, s restando reconhecer um mundo de

    aporias do qual ela no tem a bssola e no qual s circulamos atravs do pensamento

    simblico. Se no existe uma realidade em si, a verdade no indiferente nossa presena e

    tudo que est ao nosso redor constructo, realizao do imaginrio. Tal conscincia dissipa

    todo constrangimento que poderia haver quando trememos diante do retrato de nosso

    ancestral de bigodes e barbas longas, to soberano que nos faz sentir medo. Essa fotografia

    no , ento, um simples pedao de papel que contm um signo histrico e sim portal de

    imediata abduo para o tempo mtico. A outra opo seguir na torturante experincia de

    separao mente-corpo, sujeito-objeto, homem-natureza, experincia-realidade. Como diz

    Feyerabend, necessrio um milagre para eliminar o abismo entre esses termos dicotmicos,

    e a criatividade dever ser esse milagre. E no emblemtico que a supostamente mais

    racional viso do mundo ainda existente s possa funcionar se combinada com os

    acontecimentos mais irracionais que existam, por exemplo, os milagres (FEYERABEND,

    1991: p. 166)? Ou seja, que a cincia no possa prescindir do mito?

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    3 Splacnisomai um vocbulo aramaico, recuperado por Restrepo (1998), que designa a capacidade de, literalmente, sentir com as tripas, traduzindo, por exemplo, o dom que Cristo tinha de sentir no prprio corpo a dor que assolava os enfermos que se lhe apresentavam.

  • Revista CONTRACAMPO Niteri n 21 Agosto de 2010 semestral Pgina 216

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