5. 1 - O filho eterno

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    Cristovo Tezza

    O FILHO ETERNO

    R I O D E J A NE I RO S O P A U LOE D I T O R A R E C O R D

    2 0 0 7

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    Acho que hoje ela disse. Agora completou,

    com a voz mais forte, tocando-lhe o brao, porque ele um

    homem distrado.

    Sim, distrado, quem sabe? Algum provisrio, talvez; al-

    gum que, aos 28 anos, ainda no comeou a viver. A rigor,

    exceto por um leque de ansiedades felizes, ele no tem nada,e no ainda exatamente nada. E essa magreza semovente

    de uma alegria agressiva, s vezes ofensiva, viu-se diante da

    mulher grvida quase como se s agora entendesse a exten-

    so do fato: um filho. Um dia ele chega, ele riu, expansivo.

    Vamos l!

    A mulher que, em todos os sentidos, o sustentava j havia

    quatro anos, agora era sustentada por ele enquanto aguarda-

    vam o elevador, meia-noite. Ela est plida. As contraes.

    A bolsa, ela disse algo assim. Ele no pensava em nada em matria de novidade, amanh ele seria to novo quanto o

    filho. Era preciso brincar, entretanto. Antes de sair, lembrou-

    se de uma garrafinha caubi de usque, que colocou no outro

    bolso; no primeiro estavam os cigarros. Um cartum: a figura

    fuma um cigarro atrs do outro na sala da espera at que a

    enfermeira, o mdico, algum lhe mostra um pacote e lhe diz

    alguma coisa muito engraada, e ns rimos. Sim, h algo de

    engraado nesta espera. um papel que representamos, o pai

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    angustiado, a me feliz, a criana chorando, o mdico sor-

    ridente, o vulto desconhecido que surge do nada e nos d

    parabns, a vertigem de um tempo que, agora, se acelera em

    desespero, tudo girando veloz e inapelavelmente em torno

    de um beb, para s estacionar alguns anos depois s

    vezes nunca. H um cenrio inteiro montado para o papel,e nele deve-se demonstrar felicidade. Orgulho, tambm. Ele

    merecer respeito. H um dicionrio inteiro de frases ade-

    quadas para o nascimento. De certa forma agora ele dava

    partida no fusca amarelo (eles no dizem nada, mas sentem

    uma coisa boa no ar) e cuidou para no raspar o pra-lama

    na coluna, como j aconteceu duas vezes ele tambm esta-

    ria nascendo agora, e gostou desta imagem mais ou menos

    edificante. Embora continuasse no estando onde estava

    essa a sensao permanente, por isso fumava tanto, a mqui-na inesgotvel pedindo gs. um terreno inteiro de idias:

    pisando nele, no temos coisa alguma, s a expectativa de

    um futuro vago e mal desenhado. Mas eu tambm no tenho

    nada ainda, ele diria, numa espcie metafsica de compe-

    tio. Nem casa, nem emprego, nem paz. Bem, um filho

    e, sempre brincando, viu-se barrigudo, severo, trabalhando

    em alguma coisa enfim slida, uma fotografia publicitria da

    famlia congelada na parede. No: ele est em outra esfera

    da vida. Ele um predestinado literatura algum neces-sariamente superior, um ser para o qual as regras do jogo so

    outras. Nada ostensivo: a verdadeira superioridade discre-

    ta, tolerante e sorridente. Ele vive margem: isso tudo. No

    ressentimento, porque ele no est ainda maduro para o

    ressentimento, essa fora que, em algum momento, pode

    nos pr agressivamente em nosso lugar. Talvez o incio des-

    sa contrafora (mas ele seria incapaz de saber, to prximo

    assim do instante presente) seja o fato de que jamais con-

    seguiu viver do seu trabalho. Do seu trabalho verdadeiro.

    Uma tenso que quase sempre escapa pelo riso, a libertao

    que ele tem.

    No balco da maternidade a moa, gentil, pede um che-

    que de garantia, e as coisas se passam rpidas demais, por-

    que algum est levando sua mulher para longe, sim, sim,a bolsa rompeu, ele ouve, enquanto resolve os trmites

    e mais uma vez tem dificuldade de preencher o espao da

    profisso, quase ele diz quem tem profisso a minha mu-

    lher. Eu e ainda encontra tempo de dizer alguma coisa, a

    mulher tambm, mas a afetividade se transforma, sob olhos

    alheios, em solenidade alguma coisa maior, parece, est

    acontecendo, uma espcie de teatro se desenha no ar, somos

    delicados demais para o nascimento e preciso disfarar to-

    dos os perigos desta vida, como se algum (a imagem ab-surda) estivesse levando sua mulher para a morte e houvesse

    nisso uma normalidade completa. Volta-lhe o horror que sen-

    te diante dos hospitais, dos prdios pblicos, das instituies

    solenes, de colunas, halls, guichs, abbadas, filas, da sua

    grantica estupidez a gramtica da burocracia repete-se

    tambm ali, que um espao pequeno e privado. Mais tarde,

    ele se v em alguma sala diante da mulher na maca, que, p-

    lida, sorri para ele, e eles tocam as mos, tmidos, quase como

    quem comete uma transgresso. O lenol azul. H umaassepsia em tudo, uma ausncia bruta de objetos, os passos

    fazem eco como em uma igreja, e de novo ele vive a angstia

    da falsidade, h um erro primeiro em algum lugar, e ele no

    consegue localiz-lo, mas em seguida no pensa mais nisso.

    Os segundos escorrem.

    Dizem alguma coisa que ele no ouve; e na espera, perde

    a noo do tempo que horas so? Noite avanada. Agora

    est sozinho num corredor ao lado de uma rampa vazia e em

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    frente a duas portas basculantes, com um vidro circular no

    centro de cada lmina por onde s vezes ele espia mas nada

    v. Ele no pensa em coisa alguma, mas, se pensasse, talvez

    dissesse: estou como sempre estive sozinho. Acendeu um

    cigarro, feliz: e isso bom. Deu um gole do usque que tirou

    do bolso, vivendo o seu pequeno teatro. Por enquanto as coi-sas vo bem ele no pensava no filho, pensava nele mes-

    mo, e isso inclua a totalidade de sua vida, mulher, filho, li-

    teratura, futuro. Ele sabe que de fato nunca escreveu nada

    realmente bom. Pilhas de maus poemas, dos 13 anos at o

    ms passado: O filho da primavera. A poesia arrasta-o sem

    piedade para o kitsch, puxando-o pelos cabelos, mas preci-

    so dizer alguma coisa sobre o que est acontecendo, e ele no

    sabe exatamente o que est acontecendo. Tem a vaga sensa-

    o de que as coisas vo dar certo, porque so frutos do de-sejo; e quem est margem, arrisca ou estaria encaixado

    na subvida do sistema, essa merda toda, ele quase declama,

    e d outro gole de usque e acende outro cigarro. Aos 28 anos

    no acabou ainda o curso de Letras, que despreza, bebe mui-

    to, d risadas prolongadas e inconvenientes, l caoticamente

    e escreve textos que atafulham a gaveta. Um gancho atvico

    ainda o prende nostalgia de uma comunidade de teatro, que

    freqenta uma vez por ano, numa prolongada dependncia

    ao guru da infncia, uma ginstica interminvel e insolvelpara ajustar o relgio de hoje fantasmagoria de um tempo

    acabado. Filhote retardatrio dos anos 70, impregnado da so-

    berba da periferia da periferia, vai farejando pela intuio al-

    guma sada. difcil renascer, ele dir, alguns anos depois,

    mais frio. Enquanto isso, d aulas particulares de redao e

    revisa compenetrado teses e dissertaes de mestrado sobre

    qualquer tema. A gramtica uma abstrao que aceita tudo.

    Desistiu de ser relojoeiro, ou foi desistido pela profisso, um

    dinossauro medieval. Se ainda tivesse a ddiva do comrcio,

    atrs de um balco. Mas no: escolheu consertar relgios, o

    fascnio infantil dos mecanismos e a delicadeza intil do tra-

    balho manual.

    E no entanto sente-se um otimista ele sorri, vendo-se

    do alto, como no cartum imaginado, agora uma figura real.Sozinho no corredor, d outro gole de usque e comea a ser

    tomado pela euforia do pai nascente. As coisas se encaixam.

    Um cromo publicitrio, e ele ri do paradoxo: quase como se o

    simples fato de ter um filho significasse a definitiva imolao

    ao sistema, mas isso no necessariamente mau, desde que

    estejamos inteiros, sejamos autnticos,verdadeiros

    ainda gostava dessas palavras altissonantes para uso prprio,

    a mitologia dos poderes da pureza natural contra os drages

    do artifcio. Ele j comea a desconfiar dessas totalidades re-tricas, mas falta-lhe a coragem de romper com elas de

    fato, nunca se livrou completamente desse imaginrio, que,

    no fundo da alma, significava manter o p atrs, atento, em

    todos os momentos da vida, para no ser devorado pelo vio-

    lento e inesgotvel poder do lugar-comum e da impessoali-

    dade. Era preciso que a verdade sasse da retrica e se

    transformasse em inquietao permanente, uma breve utopia,

    um brilho nos olhos.

    Como agora: e ele deu outro gole da bebida, quase entran-do no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daque-

    le momento, uma solenidade para uso prprio, ntimo, in-

    transfervel. Como o diretor de uma pea de teatro indicando

    ao ator os pontos da cena: sinta-se assim; mova-se at ali; sor-

    ria. Veja como voc tira o cigarro da carteira, sentado sozinho

    neste banco azul, enquanto aguarda a vinda do seu filho.

    Cruze as pernas. Pense: voc no quis acompanhar o parto.

    Agora comea a ficar moda os pais acompanharem o parto

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    dos filhos uma participao quase religiosa. Tudo parece

    que est virando religio. Mas voc no quis, ele se v dizen-

    do. que o meu mundo mental, talvez ele dissesse, se fos-

    se mais velho. Um filho a idia de um filho; uma mulher a

    idia de uma mulher. s vezes as coisas coincidem com a

    idia que fazemos delas; s vezes no. Quase sempre no,mas a o tempo j passou, e ento nos ocupamos de coisas

    novas, que se encaixam em outra famlia de idias. Ele no

    quis nem mesmo saber se ser um filho ou uma filha: a man-

    cha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se

    projetava numa telinha escura, movendo-se na escurido e no

    calor, no se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos no

    saber, foi o que disseram ao mdico. Tudo est bem, parece,

    o que importa.

    Ali, era enfim a sensao de um tempo parado, suspenso.Naquele silncio iluminado, em que pequenos rudos distan-

    tes passos, uma porta que se fecha, alguma voz baixa

    ganhavam a solenidade de um breve eco, ele imagina a mu-

    dana de sua vida e procura antecipar alguma rotina, para

    que as coisas no mudem muito. Tem energia de sobra para

    ficar dias e dias dormindo mal, bebendo cerveja nos interva-

    los, fumando bastante, dando risadas e contando histrias,

    enquanto a mulher se recupera. Seria agora um pai, o que

    sempre dignifica a biografia. Ser um pai excelente, ele temcerteza: far de seu filho a arena de sua viso de mundo. J

    tem pronta para ele uma cosmogonia inteira. Lembrou de al-

    guns dos versos de O filho da primavera a professora ami-

    ga vai public-los naRevista de Letras. Sim, os versos so bo-

    nitos, ele sonhou. O poeta bom conselheiro. Faa isso, seja

    assim, respire esse ar, olhe o mundo as metforas, uma a

    uma, evocam a bondade humana. Kipling da provncia, ele

    se sente impregnado de humanismo. O filho ser a prova de-

    finitiva das minhas qualidades, quase chega a dizer em voz

    alta, no silncio daquele corredor final, poucos minutos an-

    tes de sua nova vida. Era como se o esprito comunitrio re-

    ligioso que florescia secretamente na alma do pas, todo o

    sonho das utopias naturais concentrando seu suave irracio-

    nalismo, sua transcendncia etrea, a paz celestial dos cor-deiros de Deus revividos agora sem fronteiras, rituais ou li-

    vros-texto vale tudo, Senhor! , encontrasse tambm

    no poeta marginal, talvez principalmente nele, o seu refgio.

    O empreendimento irracional das utopias: cabelos compridos,

    sandlias franciscanas, as portas da percepo, vida natural,

    sexo livre, somos todos autnticos. Sim, era preciso um con-

    trapeso, ou o sistema nos mataria a todos, como vrias vezes

    nos matou. H um descompasso nesse projeto supostamente

    pessoal, mas isso ele ainda no sabe, ao acaso de uma vidarenitentemente provisria; a minha vida no comeou ainda,

    ele gostava de dizer, como quem se defende da prpria in-

    competncia tantos anos dedicados a... a o que mesmo?

    s letras, poesia, vida alternativa, criao, a alguma coi-

    sa maior que ele no sabe o que tantos anos e nenhum

    resultado! Ficar sozinho uma boa defesa. Vivendo numa ci-

    dade com gnios agressivos em cada esquina, ele contempla

    a magreza de seus contos, finalmente publicados, onde en-

    contra defeitos cada vez que abre uma pgina. O romance ju-venil lanado nacionalmente vai se encerrar na primeira edi-

    o, para todo o sempre, depois de uma rusga idiota com o

    editor de So Paulo, daqui a alguns meses. preciso cortar

    esse pargrafo na segunda edio porque as professorinhas

    do interior esto reclamando. Desistiu do livro.

    Ele no sabe ainda, mas j sente que aquilo no a sua

    literatura. Trs meses antes terminou O terrorista lrico, e

    parece que alguma coisa melhor comea ali, ainda informe.

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    Algum se debatendo para se livrar da influncia do guru,

    tentando sair do mundo das mensagens para o mundo da per-

    cepo, sob a frieza da razo. Ele no mais um poeta. Per-

    deu para sempre o sentimento do sublime, que, embora soe

    envelhecido, o combustvel necessrio para escrever poe-

    sia. A idia do sublime no basta, ele comea a vislumbrar com ela, chegamos s ao simulacro. preciso ter fora e

    peito para chamar a si a linguagem do mundo, sem cair no

    ridculo. H algo incompatvel entre mim e a poesia, ele se

    diz, defensivo assumir a poesia, parece, assumir uma re-

    ligio, e ele, desde sempre, algum completamente despro-

    vido de sentimento religioso. Um ser que se move no deser-

    to, ele talvez escrevesse, com alguma pompa, para definir a

    prpria solido. A solido como um projeto, no como uma

    tristeza. Eu ainda no consegui ficar sozinho, conclui, comum fio de angstia e agora (ele olha para a porta bascu-

    lante, sem pensar) nunca mais. Comeou h pouco a escre-

    ver outro romance,Ensaio da Paixo, em que ele imagina

    passar a limpo sua vida. E a dos outros, com a lngua

    da stira. Ningum se salvar. Trs captulos prontos. um

    livro alegre, ele supe. Eu preciso comear, de uma vez por

    todas, ele diz a ele mesmo, e s escrevendo saber quem .

    Assim espera. So coisas demais para organizar, mas talvez

    justo por isso ele se sinta bem, feliz, povoado de planos.Sbito, o mdico por quem nunca sentiu simpatia, e

    portanto nada espera dele abre as portas basculantes, co-

    mo sempre sem sorrir. Nenhuma novidade na ausncia de

    sorriso, da porque, pai moleque, mal ocultando a garrafinha

    de usque, no se perturbou. O homem tirava as luvas verdes

    das mos, como quem encerra uma tarefa desagradvel

    por alguma razo foi essa a imagem absurda, certamente

    falsa, que lhe ficou daquele momento.

    Tudo bem? ele pergunta, por perguntar: a cabea j

    est no ms seguinte, sete meses depois, um ano e trs me-

    ses, cinco anos frente, o filho crescendo, a cara dele.

    um menino. Tambm nenhuma surpresa: eu tinha

    certeza de que seria mesmo o filho da primavera, ele teria dito,

    se falasse. A me est muito bem.E desapareceu por onde veio.