5. 1 - O filho eterno
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Cristovo Tezza
O FILHO ETERNO
R I O D E J A NE I RO S O P A U LOE D I T O R A R E C O R D
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Acho que hoje ela disse. Agora completou,
com a voz mais forte, tocando-lhe o brao, porque ele um
homem distrado.
Sim, distrado, quem sabe? Algum provisrio, talvez; al-
gum que, aos 28 anos, ainda no comeou a viver. A rigor,
exceto por um leque de ansiedades felizes, ele no tem nada,e no ainda exatamente nada. E essa magreza semovente
de uma alegria agressiva, s vezes ofensiva, viu-se diante da
mulher grvida quase como se s agora entendesse a exten-
so do fato: um filho. Um dia ele chega, ele riu, expansivo.
Vamos l!
A mulher que, em todos os sentidos, o sustentava j havia
quatro anos, agora era sustentada por ele enquanto aguarda-
vam o elevador, meia-noite. Ela est plida. As contraes.
A bolsa, ela disse algo assim. Ele no pensava em nada em matria de novidade, amanh ele seria to novo quanto o
filho. Era preciso brincar, entretanto. Antes de sair, lembrou-
se de uma garrafinha caubi de usque, que colocou no outro
bolso; no primeiro estavam os cigarros. Um cartum: a figura
fuma um cigarro atrs do outro na sala da espera at que a
enfermeira, o mdico, algum lhe mostra um pacote e lhe diz
alguma coisa muito engraada, e ns rimos. Sim, h algo de
engraado nesta espera. um papel que representamos, o pai
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angustiado, a me feliz, a criana chorando, o mdico sor-
ridente, o vulto desconhecido que surge do nada e nos d
parabns, a vertigem de um tempo que, agora, se acelera em
desespero, tudo girando veloz e inapelavelmente em torno
de um beb, para s estacionar alguns anos depois s
vezes nunca. H um cenrio inteiro montado para o papel,e nele deve-se demonstrar felicidade. Orgulho, tambm. Ele
merecer respeito. H um dicionrio inteiro de frases ade-
quadas para o nascimento. De certa forma agora ele dava
partida no fusca amarelo (eles no dizem nada, mas sentem
uma coisa boa no ar) e cuidou para no raspar o pra-lama
na coluna, como j aconteceu duas vezes ele tambm esta-
ria nascendo agora, e gostou desta imagem mais ou menos
edificante. Embora continuasse no estando onde estava
essa a sensao permanente, por isso fumava tanto, a mqui-na inesgotvel pedindo gs. um terreno inteiro de idias:
pisando nele, no temos coisa alguma, s a expectativa de
um futuro vago e mal desenhado. Mas eu tambm no tenho
nada ainda, ele diria, numa espcie metafsica de compe-
tio. Nem casa, nem emprego, nem paz. Bem, um filho
e, sempre brincando, viu-se barrigudo, severo, trabalhando
em alguma coisa enfim slida, uma fotografia publicitria da
famlia congelada na parede. No: ele est em outra esfera
da vida. Ele um predestinado literatura algum neces-sariamente superior, um ser para o qual as regras do jogo so
outras. Nada ostensivo: a verdadeira superioridade discre-
ta, tolerante e sorridente. Ele vive margem: isso tudo. No
ressentimento, porque ele no est ainda maduro para o
ressentimento, essa fora que, em algum momento, pode
nos pr agressivamente em nosso lugar. Talvez o incio des-
sa contrafora (mas ele seria incapaz de saber, to prximo
assim do instante presente) seja o fato de que jamais con-
seguiu viver do seu trabalho. Do seu trabalho verdadeiro.
Uma tenso que quase sempre escapa pelo riso, a libertao
que ele tem.
No balco da maternidade a moa, gentil, pede um che-
que de garantia, e as coisas se passam rpidas demais, por-
que algum est levando sua mulher para longe, sim, sim,a bolsa rompeu, ele ouve, enquanto resolve os trmites
e mais uma vez tem dificuldade de preencher o espao da
profisso, quase ele diz quem tem profisso a minha mu-
lher. Eu e ainda encontra tempo de dizer alguma coisa, a
mulher tambm, mas a afetividade se transforma, sob olhos
alheios, em solenidade alguma coisa maior, parece, est
acontecendo, uma espcie de teatro se desenha no ar, somos
delicados demais para o nascimento e preciso disfarar to-
dos os perigos desta vida, como se algum (a imagem ab-surda) estivesse levando sua mulher para a morte e houvesse
nisso uma normalidade completa. Volta-lhe o horror que sen-
te diante dos hospitais, dos prdios pblicos, das instituies
solenes, de colunas, halls, guichs, abbadas, filas, da sua
grantica estupidez a gramtica da burocracia repete-se
tambm ali, que um espao pequeno e privado. Mais tarde,
ele se v em alguma sala diante da mulher na maca, que, p-
lida, sorri para ele, e eles tocam as mos, tmidos, quase como
quem comete uma transgresso. O lenol azul. H umaassepsia em tudo, uma ausncia bruta de objetos, os passos
fazem eco como em uma igreja, e de novo ele vive a angstia
da falsidade, h um erro primeiro em algum lugar, e ele no
consegue localiz-lo, mas em seguida no pensa mais nisso.
Os segundos escorrem.
Dizem alguma coisa que ele no ouve; e na espera, perde
a noo do tempo que horas so? Noite avanada. Agora
est sozinho num corredor ao lado de uma rampa vazia e em
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frente a duas portas basculantes, com um vidro circular no
centro de cada lmina por onde s vezes ele espia mas nada
v. Ele no pensa em coisa alguma, mas, se pensasse, talvez
dissesse: estou como sempre estive sozinho. Acendeu um
cigarro, feliz: e isso bom. Deu um gole do usque que tirou
do bolso, vivendo o seu pequeno teatro. Por enquanto as coi-sas vo bem ele no pensava no filho, pensava nele mes-
mo, e isso inclua a totalidade de sua vida, mulher, filho, li-
teratura, futuro. Ele sabe que de fato nunca escreveu nada
realmente bom. Pilhas de maus poemas, dos 13 anos at o
ms passado: O filho da primavera. A poesia arrasta-o sem
piedade para o kitsch, puxando-o pelos cabelos, mas preci-
so dizer alguma coisa sobre o que est acontecendo, e ele no
sabe exatamente o que est acontecendo. Tem a vaga sensa-
o de que as coisas vo dar certo, porque so frutos do de-sejo; e quem est margem, arrisca ou estaria encaixado
na subvida do sistema, essa merda toda, ele quase declama,
e d outro gole de usque e acende outro cigarro. Aos 28 anos
no acabou ainda o curso de Letras, que despreza, bebe mui-
to, d risadas prolongadas e inconvenientes, l caoticamente
e escreve textos que atafulham a gaveta. Um gancho atvico
ainda o prende nostalgia de uma comunidade de teatro, que
freqenta uma vez por ano, numa prolongada dependncia
ao guru da infncia, uma ginstica interminvel e insolvelpara ajustar o relgio de hoje fantasmagoria de um tempo
acabado. Filhote retardatrio dos anos 70, impregnado da so-
berba da periferia da periferia, vai farejando pela intuio al-
guma sada. difcil renascer, ele dir, alguns anos depois,
mais frio. Enquanto isso, d aulas particulares de redao e
revisa compenetrado teses e dissertaes de mestrado sobre
qualquer tema. A gramtica uma abstrao que aceita tudo.
Desistiu de ser relojoeiro, ou foi desistido pela profisso, um
dinossauro medieval. Se ainda tivesse a ddiva do comrcio,
atrs de um balco. Mas no: escolheu consertar relgios, o
fascnio infantil dos mecanismos e a delicadeza intil do tra-
balho manual.
E no entanto sente-se um otimista ele sorri, vendo-se
do alto, como no cartum imaginado, agora uma figura real.Sozinho no corredor, d outro gole de usque e comea a ser
tomado pela euforia do pai nascente. As coisas se encaixam.
Um cromo publicitrio, e ele ri do paradoxo: quase como se o
simples fato de ter um filho significasse a definitiva imolao
ao sistema, mas isso no necessariamente mau, desde que
estejamos inteiros, sejamos autnticos,verdadeiros
ainda gostava dessas palavras altissonantes para uso prprio,
a mitologia dos poderes da pureza natural contra os drages
do artifcio. Ele j comea a desconfiar dessas totalidades re-tricas, mas falta-lhe a coragem de romper com elas de
fato, nunca se livrou completamente desse imaginrio, que,
no fundo da alma, significava manter o p atrs, atento, em
todos os momentos da vida, para no ser devorado pelo vio-
lento e inesgotvel poder do lugar-comum e da impessoali-
dade. Era preciso que a verdade sasse da retrica e se
transformasse em inquietao permanente, uma breve utopia,
um brilho nos olhos.
Como agora: e ele deu outro gole da bebida, quase entran-do no terreno da euforia. Ele queria criar a solenidade daque-
le momento, uma solenidade para uso prprio, ntimo, in-
transfervel. Como o diretor de uma pea de teatro indicando
ao ator os pontos da cena: sinta-se assim; mova-se at ali; sor-
ria. Veja como voc tira o cigarro da carteira, sentado sozinho
neste banco azul, enquanto aguarda a vinda do seu filho.
Cruze as pernas. Pense: voc no quis acompanhar o parto.
Agora comea a ficar moda os pais acompanharem o parto
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dos filhos uma participao quase religiosa. Tudo parece
que est virando religio. Mas voc no quis, ele se v dizen-
do. que o meu mundo mental, talvez ele dissesse, se fos-
se mais velho. Um filho a idia de um filho; uma mulher a
idia de uma mulher. s vezes as coisas coincidem com a
idia que fazemos delas; s vezes no. Quase sempre no,mas a o tempo j passou, e ento nos ocupamos de coisas
novas, que se encaixam em outra famlia de idias. Ele no
quis nem mesmo saber se ser um filho ou uma filha: a man-
cha pesada da ecografia, aquele fantasma primitivo que se
projetava numa telinha escura, movendo-se na escurido e no
calor, no se traduziu em sexo, apenas em ser. Preferimos no
saber, foi o que disseram ao mdico. Tudo est bem, parece,
o que importa.
Ali, era enfim a sensao de um tempo parado, suspenso.Naquele silncio iluminado, em que pequenos rudos distan-
tes passos, uma porta que se fecha, alguma voz baixa
ganhavam a solenidade de um breve eco, ele imagina a mu-
dana de sua vida e procura antecipar alguma rotina, para
que as coisas no mudem muito. Tem energia de sobra para
ficar dias e dias dormindo mal, bebendo cerveja nos interva-
los, fumando bastante, dando risadas e contando histrias,
enquanto a mulher se recupera. Seria agora um pai, o que
sempre dignifica a biografia. Ser um pai excelente, ele temcerteza: far de seu filho a arena de sua viso de mundo. J
tem pronta para ele uma cosmogonia inteira. Lembrou de al-
guns dos versos de O filho da primavera a professora ami-
ga vai public-los naRevista de Letras. Sim, os versos so bo-
nitos, ele sonhou. O poeta bom conselheiro. Faa isso, seja
assim, respire esse ar, olhe o mundo as metforas, uma a
uma, evocam a bondade humana. Kipling da provncia, ele
se sente impregnado de humanismo. O filho ser a prova de-
finitiva das minhas qualidades, quase chega a dizer em voz
alta, no silncio daquele corredor final, poucos minutos an-
tes de sua nova vida. Era como se o esprito comunitrio re-
ligioso que florescia secretamente na alma do pas, todo o
sonho das utopias naturais concentrando seu suave irracio-
nalismo, sua transcendncia etrea, a paz celestial dos cor-deiros de Deus revividos agora sem fronteiras, rituais ou li-
vros-texto vale tudo, Senhor! , encontrasse tambm
no poeta marginal, talvez principalmente nele, o seu refgio.
O empreendimento irracional das utopias: cabelos compridos,
sandlias franciscanas, as portas da percepo, vida natural,
sexo livre, somos todos autnticos. Sim, era preciso um con-
trapeso, ou o sistema nos mataria a todos, como vrias vezes
nos matou. H um descompasso nesse projeto supostamente
pessoal, mas isso ele ainda no sabe, ao acaso de uma vidarenitentemente provisria; a minha vida no comeou ainda,
ele gostava de dizer, como quem se defende da prpria in-
competncia tantos anos dedicados a... a o que mesmo?
s letras, poesia, vida alternativa, criao, a alguma coi-
sa maior que ele no sabe o que tantos anos e nenhum
resultado! Ficar sozinho uma boa defesa. Vivendo numa ci-
dade com gnios agressivos em cada esquina, ele contempla
a magreza de seus contos, finalmente publicados, onde en-
contra defeitos cada vez que abre uma pgina. O romance ju-venil lanado nacionalmente vai se encerrar na primeira edi-
o, para todo o sempre, depois de uma rusga idiota com o
editor de So Paulo, daqui a alguns meses. preciso cortar
esse pargrafo na segunda edio porque as professorinhas
do interior esto reclamando. Desistiu do livro.
Ele no sabe ainda, mas j sente que aquilo no a sua
literatura. Trs meses antes terminou O terrorista lrico, e
parece que alguma coisa melhor comea ali, ainda informe.
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Algum se debatendo para se livrar da influncia do guru,
tentando sair do mundo das mensagens para o mundo da per-
cepo, sob a frieza da razo. Ele no mais um poeta. Per-
deu para sempre o sentimento do sublime, que, embora soe
envelhecido, o combustvel necessrio para escrever poe-
sia. A idia do sublime no basta, ele comea a vislumbrar com ela, chegamos s ao simulacro. preciso ter fora e
peito para chamar a si a linguagem do mundo, sem cair no
ridculo. H algo incompatvel entre mim e a poesia, ele se
diz, defensivo assumir a poesia, parece, assumir uma re-
ligio, e ele, desde sempre, algum completamente despro-
vido de sentimento religioso. Um ser que se move no deser-
to, ele talvez escrevesse, com alguma pompa, para definir a
prpria solido. A solido como um projeto, no como uma
tristeza. Eu ainda no consegui ficar sozinho, conclui, comum fio de angstia e agora (ele olha para a porta bascu-
lante, sem pensar) nunca mais. Comeou h pouco a escre-
ver outro romance,Ensaio da Paixo, em que ele imagina
passar a limpo sua vida. E a dos outros, com a lngua
da stira. Ningum se salvar. Trs captulos prontos. um
livro alegre, ele supe. Eu preciso comear, de uma vez por
todas, ele diz a ele mesmo, e s escrevendo saber quem .
Assim espera. So coisas demais para organizar, mas talvez
justo por isso ele se sinta bem, feliz, povoado de planos.Sbito, o mdico por quem nunca sentiu simpatia, e
portanto nada espera dele abre as portas basculantes, co-
mo sempre sem sorrir. Nenhuma novidade na ausncia de
sorriso, da porque, pai moleque, mal ocultando a garrafinha
de usque, no se perturbou. O homem tirava as luvas verdes
das mos, como quem encerra uma tarefa desagradvel
por alguma razo foi essa a imagem absurda, certamente
falsa, que lhe ficou daquele momento.
Tudo bem? ele pergunta, por perguntar: a cabea j
est no ms seguinte, sete meses depois, um ano e trs me-
ses, cinco anos frente, o filho crescendo, a cara dele.
um menino. Tambm nenhuma surpresa: eu tinha
certeza de que seria mesmo o filho da primavera, ele teria dito,
se falasse. A me est muito bem.E desapareceu por onde veio.