5o Encontro de Psicólogos Jurídicos do TJRJ - 2004 - comunicações
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8/8/2019 5o Encontro de Psiclogos Jurdicos do TJRJ - 2004 - comunicaes
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FOLHA 1
5ENCONTRO DE PSICLOGOS JURDICOS DO
TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
ORGANIZAO DO V ENCONTRONCLEO DE PSICOLOGIA DA VARA DA INFNCIA E JUVENTUDE E DO
IDOSO DACOMARCA DA CAPITAL
ORGANIZAO DO LIVROSERVIO DE APOIO AOS PSICLOGOS DA CORREGEDORIA GERAL DOTJRJ E PSICLOGOS REPRESENTANTES DOS NCLEOS REGIONAIS DA
CGJ
APOIOTRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL DE JUSTIADO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
ESCOLA DE ADMINISTRAO JUDICIRIA DO TRIBUNAL DE JUSTIADO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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FOLHA 2
5ENCONTRO DE PSICLOGOS JURDICOS DO
TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIROAs Metforas do Poder: entre o pblico e o
privado
Data: 29 e 30 de novembro da 2004Programao
29/11
9h 30min Mesa de Abertura
Coordenao: Dr. Siro Darlan de Oliveira Juiz Titular da 1 Vara da
Infncia e Juventude da Capital
10h Mesa 1
Conferncia do Professor Mrcio Alves da Fonseca
PUC/SP
Coordenao: Eliana Olinda Alves Psicloga do TJRJ
12h - Almoo
13h 30min Mesa 2
Professora Bethnia Assy (UERJ)
Dr. Geraldo Prado (Juiz de Direito da 37 Vara Criminal)
Coordenao: Jos Csar Coimbra Psiclogo do TJRJ
15h 30min Mesa 3
Professora Ana Cristina Figueiredo(UFRJ)
Professor Srgio Carrara(UERJ)
Coordenao: Anna Paula Uziel - Prof. da UERJ
17h Lanamento do Livro do 4 Encontro de Psiclogos do TJRJEncerramento
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30/11 Restrito aos Psiclogos do Quadro da CGJ
FOLHA 3
APRESENTAO
Mais uma vez encontramos a oportunidade de lanar ascomunicaes do Encontro de Psiclogos do TJRJ. Como das vezesanteriores essa oportunidade faz a ponte entre o passado e opresente. As palavras escritas aqui se constituem como a melhorintroduo ao que encontraremos no 6 Encontro.
Momento de (re)descobrir contribuies to significativas: aconferncia do prof. Mrcio Alves da Fonseca com a atualidade daselaboraes de Foucault; o dilogo entre a prof. Bethnia Assy e o
juiz Geraldo Prado sobre a urgncia e os desafios que o ato de julgar
implica; o encontro entre os professores Srgio Carrara e AnaFigueiredo assinalando as contribuies da psicanlise e daantropologia para a nossa reflexo.
Enfim, as discusses sobre as metforas do poder propiciam,neste momento, a todos ns, ferramentas preciosas para fazer frente realidade que a nossa. Sem maniquesmos, vislumbraremos naspginas que se seguem a parte de responsabilidade que cabe a cadaum na transmisso de sentido que as metforas propiciam. Quepossamos acrescentar uma palavra a mais nesse elo interminvel,produzindo significados antes inauditos, talvez seja a grande aposta
que nos anima.
Boa leitura, bom encontro!
Comisso Organizadora
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As Metforas do Poder: entre o pblico e o privado
Mrcio Alves da Fonseca
Considero bastante interessante o tema escolhido para este Encontro:
As metforas do poder entre o pblico e o privado. Isto porque me parece no
apenas recolocar uma questo j tantas vezes tratada a questo do pblico e
do privado mas a recoloca de modo a sugerir que s faz sentido uma reflexosobre o pblico e o privado na medida em que se leva em conta o carter
ambguo da separao aparentemente to bvia entre aquilo que chamamos
de domnio pblico e de domnio privado.
Ao falarmos em metforas do poder entre o pblico e o privado sugere-
se uma idia de transposio de sentido ou de significado de um domnio a
outro. Fazer uma metfora transportar significado de uma coisa para outra,
transportar sentido de uma coisa para outra. Digo isto porque nos parecenatural pensar no tema do pblico e do privado a partir de uma oposio
fundamental. A oposio que coloca, de um lado, o domnio que
corresponderia liberdade e auto-determinao do indivduo, do sujeito; e,
de outro, quase como um domnio independente do primeiro, aquele
correspondente ao controle, invaso da vida privada, exercidos pelas
instituies, pelos governos, pelo Estado, todas estas estruturas que, de algum
modo, identificamos como o domnio pblico.
Sem pretender negar a existncia de uma certa objetividade naquilo que
entendemos ser um domnio prprio do indivduo, o domnio, portanto, da vida
privada e um domnio prprio do coletivo, o domnio pblico, talvez fosse
importante pensar no quanto a separao rigorosa entre estas supostas
esferas independentes ambgua, paradoxal e, num certo sentido, artificial.
Portanto, mais do que pensar na separao entre os domnios pblico e
privado, no sentido de se procurar identificar os limites precisos a cada um
deles e os transbordamentos possveis destes limites, mais do que pensar
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nesta separao, talvez fosse necessrio pensarmos em suas interseces ou,
ainda, nas condies que tornam possveis as metforas entre o que
chamamos de domnios pblico e privado. Assim, mais significativo que
especificar as distines, os transbordamentos dos limites entre o Estado e o
indivduo, entre a esfera pblica e a esfera privada, seria procurar entender e
decifrar seus entrecruzamentos.Nesta perspectiva, no haveria tanto sentido em se perguntar, por
exemplo, de que lado esto a Justia, o Direito, os saberes e prticas como a
medicina, a psiquiatria e a psicologia. No haveria tanto sentido em se
perguntar se elas seriam instncias de afirmao dos indivduos, de proteo
de sua liberdade, de produo de sua autonomia ou se, ao contrrio, se seriam
instncias de controle e dominao. Segundo a perspectiva que se sugere
aqui, um outro tipo de pergunta que faz mais sentido. Trata-se da perguntapelas interseces que estas instncias a Justia, o Direito, a Psicologia
permitem realizar entre o pblico e o privado, entre os indivduos e o Estado,
entre a liberdade e a auto-determinao e as formas de controle e de
conduo. Ento, no lugar de se tentar classificar a Justia, o Direito, os
saberes, as prticas como a psicologia, quer em instncias de auto-
determinao e afirmao da liberdade individual, quer em instncias de
controle e de dominao, parece ser importante considerar seu carter muitas
vezes ambguo pelo qual as interseces entre liberdade e controle, auto-
determinao e dominao, tornam-se possveis e se concretizam.
Este tipo de pergunta carregaria, digamos assim, um duplo significado,
um significado, me parece, ao mesmo tempo histrico e crtico. Significado
histrico porque sugere uma pesquisa acerca da constituio destas instncias
de saber e de prticas, no como instncias que pairam sobre a vida concreta
dos homens, no como instncias independentes das vontades, dos
interesses, das determinaes de carter econmico, poltico, cultural e
simblico, mas como instncias de saberes e de prticas que necessariamente
carregam as marcas de todas estas determinaes.
Ao lado deste significado histrico, estas questes relativas s
interseces tambm apresentariam um carter crtico ou teriam um significado
crtico, porque permitiriam evidenciar as contradies inerentes s mesmas e
seu potencial paradoxal de emancipao e liberao e, ao mesmo tempo, de
dominao, de controle. Pensar nas intersees entre o pblico e o privado,
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entre a sociedade e o indivduo, entre o Estado e a vida privada. Pensar,
igualmente, que papis desempenham em tais intersees instncias como o
Direito, a Justia, saberes como a psiquiatria e a psicologia. Esta parece ser
uma tarefa que se impe a cada um que de algum modo atua nestes campos
delimitados.
Este tipo de reflexo, esta forma de problematizao dos saberes e dasprticas que se preocupa antes com as interseces do que com a suposta
independncia entre o que entendemos por domnio pblico e privado, muito
familiar a alguns trabalhos de Michel Foucault, filsofo francs contemporneo,
cujo aniversrio de vinte anos de morte acontece justamente neste ano de
2004. Neste sentido, talvez seja interessante retomarmos alguns de seus
estudos em que os cruzamentos - e no as separaes - entre domnios sejam
postos em evidncia, domnios estes, por exemplo, como o Direito e aMedicina, a Justia e a Psiquiatria ou mais genericamente as funes Psi;
como Foucault as designa no curso do Collge de France, de 1974.
Nestes estudos, o privilgio conferido trama das interseces permite
que acompanhemos a gnese de algumas figuras que parecem carregar esta
marca emblemtica, o trao peculiar da indistino entre o pblico e o privado,
entre o individual e o coletivo, entre o particular e o comum, o natural e o
artificial. Trata-se de uma srie de estudos de Foucault a que podemos chamar
de genealogia do anormal, figura histrica dotada de uma feio natural que
teria surgido, segundo o filsofo, precisamente no cruzamento, nas
interseces entre os discursos mdico e judicirio, entre os discursos do
Direito, da Justia e da Medicina, mais precisamente da psiquiatria. Tomemos,
ento, alguns momentos desta genealogia do anormal ou da noo de
anormalidade realizada por Foucault como simples ilustrao da hiptese que
procuramos sugerir aqui. Em virtude de tal hiptese faz mais sentido,
relativamente ao tema do pblico e do privado, pensar nas condies que
determinam as interseces e os cruzamentos entre liberdade dos indivduos e
controle exercido pelas instituies, do que pensar numa separao rigorosa,
precisa, de seus domnios e de seus limites.
Foi pesquisando o aparecimento das noes de normal e anormal no
seio da cincia mdica, mais precisamente no seio das prticas da psiquiatria
do final do sculo XVIII e do incio do sculo XIX, que Foucault chega idia
de norma, que ser to importante em seus escritos. A noo de norma, tal
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como aparece em Foucault, no deve ser buscada prioritariamente do lado do
Direito, da lei, mas do lado da medicina, dos saberes e das prticas que atuam
sobre a vida. Particularmente em dois cursos que ministrou no Collge de
France, os cursos dos anos de 1974 e 1975, encontramos uma espcie de
genealogia da figura do anormal realizada pelo autor. Nestes dois cursos nos
limitaremos a tomar apenas algumas passagens que nos permitem reconstituirparcialmente esta genealogia.
Um comentador de Foucault, Frederic Grou, em seu livro Foucault e a
Loucura, aponta para o fato de que no curso de 1974 intitulado O Poder
Psiquitrico, Foucault retoma uma anlise dos arquivos psiquitricos no ponto
em que a havia deixado em seu livro A Histria da Loucura, de 1961. Trata-se
da anlise do tratado mdico-filosfico sobre a alienao mental do Dr. Pinel.
Este texto de Pinel, que serviu para Foucault encerrar seu livro sobre a loucura,ser retomado no curso de 1974 com o interesse de evidenciar algumas cenas
teraputicas ocorridas no interior de uma ordem disciplinar presente na
instituio asilar.
Assim, neste curso, Foucault volta sua ateno aos dispositivos
concretos, aos efeitos arquitetnicos, s tcnicas de interveno do
panoptismo asilar, procurando pesquisar uma ttica geral de poder. E ser
segundo esta nova perspectiva que far a anlise do ato teraputico como uma
espcie de batalha, como o lugar em que se desenrola uma certa luta entre o
louco e o mdico, de modo que a vitria deste ltimo sobre o primeiro
representa a possibilidade de sua cura. Para Foucault, o asilo do final do
sculo XVIII e do incio do sculo XIX ser organizado como um campo de
batalha. A cena que serve para ilustrar o modo de ser do asilo psiquitrico
naquele momento a cena da perda da razo do rei George III, no ano de
1788. Pinel descreve tal cena e Foucault a retoma na segunda aula do curso
de 1974. Trata-se de um monarca, de um rei que perde a razo. O rei
entregue aos cuidados do mdico, que o dirige a partir da. Os elementos da
cena funcionam como uma espcie de cerimnia de destronamento. Separado
de sua famlia e destitudo de sua realeza, o mdico declara que ele, o rei, no
mais o soberano.
A loucura faz com que o rei seja destitudo do poder soberano, mas
tambm o insere em um domnio de um outro tipo de poder, que se ope termo
a termo ao poder da soberania. Trata-se de um poder annimo, sem face, sem
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nome, um poder que se manifesta pela implacabilidade de um regulamento.
Um poder que no tem o carter de se concentrar em algum, mas tem a
funo de produzir efeitos sobre o corpo descoroado do rei. No desenrolar do
tratamento ou da cena do tratamento do rei George III, quando este se revolta
contra o mdico e lana sobre ele as suas imundcies, o rei apanhado com
fora, jogado sobre a cama, tem suas roupas arrancadas e lavado. Aquitambm vemos outro deslocamento da cena do poder em relao cena do
suplcio; nesta cena invertida quem sofre o suplcio agora o rei.
Para Foucault, a reconstituio da cena da loucura do rei George,
descrita no tratado sobre a alienao mental de Pinel, seria bem mais
significativa para expressar o surgimento da psiquiatria ou da protopsiquiatria,
como ele a denomina, do final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, do que o
gesto emblemtico de Pinel libertando os loucos do asilo de Bissec. Naseqncia desta cena da loucura do rei George, segundo este filsofo, poder-
se-ia traar o futuro de outras cenas, como aquela do tratamento moral cujo
principal autor foi o Dr. Lour, no final dos anos de 1870, como tambm as
cenas da descoberta da prtica da hipnose, da constituio da psicanlise e,
enfim, da anti-psiquiatria do sculo XX.
No interior desta histria dos episdios da psiquiatria, histria que
prioriza o aspecto do poder de normalizao nela implicado, que ocorrero as
anlises do autor sobre o surgimento da noo de anomalia. Aps discutir a
emergncia do poder psiquitrico como uma espcie de intensificador da
realidade em relao loucura, um poder em que a cura consistir na
submisso do louco realidade da qual sua loucura o afasta, Foucault ir se
dedicar a estudar a generalizao deste poder psiquitrico para outras
instncias em que necessrio se fazer a realidade funcionar como poder.
Como pde se dar a generalizao do poder psiquitrico para outras
instncias ou instituies? Tal processo parece ter se dado, segundo este
filsofo, sobretudo atravs da psiquiatrizao da infncia, como tambm,
evidentemente, atravs da psiquiatrizao do criminoso. Segundo Foucault,
na juno, no engate hospital escola - instituio sanitria - modelo de sade
sistema de aprendizagem, que se deve procurar o princpio de difuso do
poder psiquitrico. Neste processo a noo de desenvolvimento ser
fundamental. Esta noo permitiu, segundo Foucault, o estabelecimento de
uma certa linha de separao entre vrios tipos de caracteres. Em relao a
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alguns indivduos fala-se, por exemplo, em uma interrupo no
desenvolvimento psicolgico. Em relao a outros no se fala em interrupo,
mas em lentido. Em nenhuma dessas situaes reportam-se propriamente
noo de loucura ou doena mental. A importncia de tal distino est na
idia de que o desenvolvimento no algo de que se dotado ou de que se
privado mas consiste em um processo que afeta toda a vida orgnica epsicolgica do indivduo. Neste sentido, o desenvolvimento comum a todos,
mas comum como uma espcie de otimum, uma regra de sucesso
cronolgica que possui um ponto de chegada determinado.
O desenvolvimento uma espcie de norma em relao a qual nos
situaramos, muito mais do que uma virtualidade que se possui em si mesmo.
Com a noo de desenvolvimento v-se desenhar uma dupla normatividade:
uma normatividade que ser aquela do adulto aqui o adulto aparece comoponto ao mesmo tempo real, ideal, da finalizao do desenvolvimento e, de
outro lado, outra normatividade que corresponde a uma mdia referida
prpria infncia; a mdia da velocidade do desenvolvimento relativamente a
maior parte das crianas.
Com este tipo de anlise vemos aparecer algo que ser a especificao,
no interior da infncia, de um certo nmero de organizaes, de estados e de
comportamentos, que no tm propriamente o carter de doena mas que so
desvios relativamente a duas normatividades: aquelas da criana e do adulto e
que so emblemticas, definitivas. Neste ponto Foucault afirma que vemos
aparecer a algo que precisamente a anomalia. A criana chamada na poca
de idiota ou retardada no desenvolvimento no seria uma criana propriamente
doente nem louca mas uma criana anormal. Deste modo, a categoria da
anomalia no teria se referido primariamente ao adulto mas criana. No
sculo XIX o adulto que podia receber a designao de louco e no se
concebia a possibilidade real de uma criana ser considerada louca. Em
contrapartida, a criana com problemas de desenvolvimento que ir receber a
designao de criana anormal.
Foi atravs dos problemas prticos colocados pela criana com
problemas de desenvolvimento, que a psiquiatria, dir Foucault, est em vias
de se tornar algo que no seria mais o poder que controla e corrige a loucura,
mas algo infinitamente mais geral e perigoso, que o poder sobre o anormal, o
poder de definir aquele que desviante da norma. Progressivamente a
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categoria da anomalia iria recobrir todo o campo dos problemas prticos
daquilo que se constituiu na vasta famlia que vai do mentiroso ao
envenenador, do pederasta ao homicida, do onanista ao incendirio. A
psiquiatria poder, assim, se ligar a toda uma srie de regimes disciplinares
que existiro em torno dela, em funo do princpio de que ela representa ao
mesmo tempo uma cincia e um poder sobre o anormal.Passemos agora a algumas breves passagens de um outro curso, de
1975, intitulado justamente Os Anormais, a fim de recuperarmos mais alguns
fragmentos desta chamada genealogia do anormal, realizada por Foucault.
Tais fragmentos podem contribuir para pensarmos justamente nas interseces
entre os domnios pblico e privado, a partir do exemplo especfico de
cruzamento dos discursos mdicos e judicirio, constitutivos desta figura da
anormalidade. Foucault inicia o curso daquele ano de 1975 fazendo umareferncia a uma srie de laudos psiquitricos em matria penal. Uma das
sries se refere a trs homens que haviam sido acusados de chantagem em
um caso de envolvimento sexual. interessante atentarmos para alguns
extratos destes laudos psiquitricos que instruem o caso em questo. Eu leio
alguns trechos:
X, uma das pessoas envolvidas naquele caso, intelectualmente, sem
ser brilhante, no estpido. Encadeia bem suas idias e tem boa memria.
Moralmente homossexual desde os doze ou treze anos e esse vcio, no
incio, teria sido uma compensao s zombarias de que era vtima quando
criana, por ser criado pela assistncia pblica. Mais adiante, sobre essa
mesma pessoa, ainda se l: X totalmente imoral, cnico, falastro at. H
trs mil anos certamente teria vivido em Sodoma e os fogos do cu com toda a
justia o teriam punido por seu vcio.
Em outro extrato, no mesmo caso, sobre outro dos indivduos
envolvidos, se l o seguinte:
Z um ser deveras medocre, do contra, de boa memria, at encadeia
bem as idias. Moralmente um ser cnico e imoral, mas o trao mais
caracterstico de seu carter parece ser uma preguia, cujo tamanho nenhum
qualificativo conseguiria dar idia. evidentemente menos cansativo trocar
discos e encontrar clientes numa boate do que trabalhar de verdade. Alis, ele
reconhece que se tornou homossexual por necessidade material, por cobia e
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que, tendo tomado gosto pelo dinheiro, persiste nesta maneira de se conduzir.
Concluso: ele particularmente repugnante.
Estes extratos de laudos mdicos so parte das concluses dos exames
mdico-psicolgicos a que foram submetidos trs homossexuais detidos por
furto e chantagem em uma cidade no interior da Frana no ano de 1974.Foucault dir que h muito a ao mesmo tempo muito pouco a ser dito sobre
este gnero de discursos. So discursos que tm o poder de determinar uma
deciso da justia sobre a liberdade ou a deteno de algum. Funcionam
como discursos de verdade no interior da instituio judiciria, discursos de
verdade porque detentores de um status cientfico na medida em que so
pronunciados por pessoas qualificadas para diz-los. Discursos que podem
prender, que podem matar, que fazem rir. Esses discursos cotidianos, deverdade, que matam e que fazem rir, estariam, segundo o filsofo, no centro de
nossa instituio judiciria. Neles, vimos se cruzarem a instituio judiciria e o
saber mdico. Entretanto, quando observamos de perto o seu contedo,
percebemos a curiosa propriedade de serem como que estranhos aos dois,
tanto s regras, mesmo s mais elementares, de formao de um discurso
cientfico, como s regras de Direito, pois dizem coisas que fogem aquilo que
interessa especificamente, formalmente, lei.
Da o nosso estranhamento ao lermos esses discursos a ponto de nos
causar alguns risos. Tal estranhamento se deve ao fato de que tais discursos
no se refiram propriamente a criminosos ou indivduos inocentes, nem a
indivduos doentes ou sos, mas a indivduos que pertencem a outra categoria,
dir Foucault, categoria da anomalia. Os laudos mdico-legais no so
homogneos nem ao Direito nem Medicina, no derivam do Direito nem da
Medicina; endeream-se a um objeto diferente, a uma espcie de terceiro
termo, recoberto, de um lado, pelas noes jurdicas de delinqncia e
reincidncia e, de outro, pelos conceitos mdicos de doena e de sade. Tais
discursos estariam ligados a uma forma de poder, aquela mesma forma de
poder a que submetido o rei George III, destronado, que transforma o poder
judicirio e o saber psiquitrico em instncias de controle da anormalidade. E
no somente em instncias de controle do crime ou instncias de tratamento
da doena, respectivamente.
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No restante deste curso Foucault procura pesquisar como o domnio
compreendido pela categoria da anomalia teria se constitudo historicamente a
partir de trs figuras: a figura do monstro humano, a do onanista, e a figura dos
indivduos a quem seria possvel corrigir, os chamados incorrigveis. Tais
figuras seriam os ancestrais dos anormais. Esses fragmentos tomados de
modo pouco rigoroso, de uma certa genealogia do anormal elaborada porMichel Foucault em dois de seus cursos no Collge de France, certamente tm
o interesse de explorar essa noo de anormalidade que, segundo Foucault,
teria sido constituda historicamente. Esses fragmentos no tm a qualidade de
revelar ou de procurar definir uma verdade histrica da psiquiatria ou mesmo o
verdadeiro papel da justia criminal na formao da noo de anormalidade.
No essa a nossa pretenso nem era a de Foucault. As histrias que esse
autor constri, a partir de fragmentos que recolhe e que intencionalmenteseleciona, tm um sentido propriamente genealgico, que ele chama de
genealogia do anormal. Ou seja, no se trata de pesquisar uma origem
primeira, uma verdade primeira sobre um fato, uma situao. Trata-se, antes,
de reconstituir aspectos de um certo engendramento, de uma certa formao
histrica, com o intuito de problematiz-la.
Neste sentido, uma problematizao importante que esta genealogia da
noo de anormalidade escrita por Foucault possibilita refere-se matizao
dos domnios pblico e privado, permitindo questionar sua distino e seus
domnios precisos. Ao contrrio da separao e da independncia entre uma
esfera de liberdade e auto-determinao do indivduo, de um lado, e um
domnio de controle e conduo por parte das instituies e do Estado, do
outro. Este tipo de pesquisa genealgica permite evidenciar as incontveis
interseces entre estes domnios. Parece-me que esse um dos aspectos
fundamentais a ser levado em conta numa discusso acerca do tema do
pblico e do privado. Penso que a pergunta sobre as interseces entre estes
domnios, e no apenas pela sua distino e seus limites, que permite a
compreenso de algumas das metforas possveis entre os processos de
objetivao e de subjetivao que nos constituem. A esse ttulo, e tambm a
ttulo de concluso dessa fala, permito-me retirar do contexto em que citado
por Foucault e reproduzir aqui um dilogo um pouco longo, citado pelo filsofo
no curso O Poder Psiquitrico, de 1974, entre Laur, um importante mdico
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psiquiatra da poca, e um paciente do asilo de Salpetrire. O dilogo o
seguinte:
- Como a Sra. est se sentindo?
- Minha pessoa no uma senhora. Chame-me de senhorita, por favor.
- No sei seu nome, diga-o, por favor.- Minha pessoa no tem nome. Ela deseja que o senhor escreva.
- Mas eu teria de saber como chamada, ou melhor, como era chamada
antigamente.
- Compreendo o que o senhor que dizer. Era Katarina, mas no se pode mais
falar o que acontecia antes. Minha pessoa perdeu seu nome ou ela deu seu
nome ao entrar nesta instituio.
- Qual a sua idade?- Minha pessoa no tem idade.
- E essa Katarina de que acaba de me falar. Que idade ela tem?
- No sei.
- Se a senhorita no a pessoa de quem fala, no sero ento duas pessoas
numa s?
- No, minha pessoa no conhece a que nasceu em 1979. Talvez seja aquela
senhora que o senhor est vendo ali.
- O que a senhorita fez e o que lhe aconteceu desde que a sua pessoa?
- Minha pessoa residiu na casa de sade, fizeram com ela e continuam fazendo
experincias fsicas e metafsicas. Olha ali uma dessas pessoas invisveis que
desce. Ela quer misturar a voz dela com a minha. Minha pessoa no quer, ela a
manda embora.
- Como so essas pessoas invisveis que a senhora fala?
- So pequenos, impalpveis, pouco formados.
- Como se vestem?
- De avental.
- Que lngua falam?
- Falam francs, se falassem outra lngua minha pessoa no os entenderia.
-Tem certeza de que os v?
- Toda certeza. Minha pessoa os v, mas metafisicamente, na invisibilidade,
nunca materialmente, porque neste caso no seriam mais invisveis.
- A senhorita s vezes sente estes invisveis em seu corpo?
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- Minha pessoa os sente e fica muito aborrecida. Eles me fizeram toda sorte de
incidncias.
- Como a senhorita est sendo tratada aqui, na Salpetrire?
-Minha pessoa est muito bem, tratada com muita bondade. Ela nunca pede
nada s serviais.
- O que acha das senhoras que esto nesta sala, com a senhorita?- Minha pessoa pensa que elas perderam a razo.
Foucault considera este dilogo como uma formidvel descrio da
existncia asilar. Depois que o nome daquela mulher foi dado ao entrar
naquela instituio, uma vez constituda esta individualidade administrativa e
mdica, no resta mais do que esta minha pessoa, que a partir de ento s fala
em terceira pessoa. Ora, me parece que na trama dos processos de nossasobjetivaes e subjetivaes, talvez nosso maior desafio no seja marcar
idealmente os limites entre o pblico e o privado, mas seja antes decifrar
alguns dos cruzamentos, algumas das interseces a partir dos quais ainda
podemos falar em algo como minha pessoa.
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O DO DECLNIOECLNIODODO IIMAGINRIOMAGINRIO PPBLICOBLICO
Bethnia Assy1
A atrofia da capacidade de imaginar aquilo que nos diz respeito somenteem comunidade atingiu um patamar que mencionar sentimentos pblicos j
no faz qualquer sentido, muito menos em se tratando de definir felicidade e
safistao. A propenso de equalizar o imaginrio de aprazimento
exclusivamente s aspiraes e aos xitos pessoais ou ao concomitante
contentamento material nas sociedades de consumo demonstra no s o
empobrecimento do nosso imaginrio pblico, mas o aniquilamento de nossa
capacidade de se comprazer com algo que no traga consigo expectativas einteresses particulares. De fato, a tentativa de escapar inexorabilidade de
eventos histricos irreconciliveis, e ao prprio desnudamento da
vulnerabilidade da condio humana, levaram, segundo Hannah Arendt, as
sociedades contemporneas a um robustecimento da esfera privada. A
sobrevalorizao da experincia interior paulatinamente ocupou a esfera
pblica ao inflacionar o espao coletivo com interesses privados,
idiossincrasias individuais e satisfaes pessoais. O espraiamento dasupervalorao das experincias interiores tem-se mostrado inversamente
proporcional ao desencantamento e extenuao dos espaos potenciais
daquilo que nos diz respeito apenas como membros de uma comunidade, no
tanto do espao objetivo entre homens (objective in-between space),
fabricao, poiesis do mundo, mas sobretudo do espao intersubjetivo, s
aes, a prxis (subjective in-between space), responsvel pela edificao de
1 Doutora em Filosofia pela New School for Social Research New York USA. Professorade Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
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uma espcie de imaginrio da coisa pblica.
Muito embora a preocupao moderna com o self, que se iniciou com
Descartes, adquiriu flego com Kierkegaard e culminou no existencialismo
europeu, j apontasse uma dose considervel da crise de credibilidade com a
promessa e a realidade que o mundo poderia nos oferecer, os catastrficos
adventos polticos de meados do sculo 20, em particular o Holocausto e as
"imagens do inferno na terra"2, como os campos de concentrao eram
metaforizados, selaram o que Hannah Arendt chamou de perigo de
"desmundializao" (worldlessness) da nossa era. O mundo desde ento no
seria mais um lugar seguro, restando, paradoxalmente, como derradeiro confim
de seguridade, a experincia "verdadeira e autntica" do self.
Em A condio humana a autora estabelece um paralelo substancial
entre a conquista do espao em 1957 e um processo de alienao do mundo,
deslocando o ponto arquimediano de nossa confiana e credibilidade para uma
regio ausente de qualquer topos, de qualquer espacialidade, ou seja, para a
interioridade do self. Afinal, o alcance dos objetos fabricados pelos homens
rompera os limites topogrficos "em direo aos primeiros passos para escapar
do aprisionamento dos homens a terra"3. Essa declarao, feita pela impressa
americana da poca, longe de acidental, deflagrava um deslocamento do valor
da experincia humana da perspectiva do mundo para a interioridade nocompartilhada do self Justamente para fazer face a essa tendncia, que o
prlogo de A condio humana notabiliza a conquista do homo faber, o
lanamento do primeiro satlite artificial em tomo da terra fabricado pelo
homem, para introduzir uma obra essencialmente atenta desvalorizao da
atividade de agir conjuntamente. Tanto na preservao e na continuidade
quanto na criao e na espontaneidade, do mundo e dos homens, a autora, ao
descrever as atividades da vita activa, faz uso de expresses que privilegiam alocalizao dos acontecimentos humanos, quais sejam, o espao da aparncia,
os domnios pblico e privado, a teia de relaes, a plis; de modo a tomar a
espacialidade sua dimenso mais profcua: o espao onde o homem trabalha,
fabrica, e age criativamente.
2 Veja-se: ARENDT, Hannah, "The Image of Hell," em Essays in Understanding 1930-1954.New York, San Diego and London: Harcourt Brace & Company, editado por Jerome Kohn,1994, pp.l97 -205.
3
(traduo ligeiramente modificada) ARENDT, A condio humana. Trad. brasileira deRoberto Rapouso, Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1993, p. 1 (The Human Condition.Chicago-London: The University of Chicago Press, 1989, p. 9).
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Ao contrrio da valorizao da imagem corporal, na qual ser e aparecer,
de certa forma, tambm coincidem, o que est por detrs da valorizao
arendtiana do espao pblico da aparncia fornecer um frum para a
liberdade humana entendida no como horizonte das experincias interiores,
mas como um espao do exerccio da virtuosidade pblica.
A fenomenologia arendtiana de "ser-do-mundo"e no meramente "estar-
no mundo" visa uma nova simbologia cultural que leve em conta tambm uma
forma pblica de vida. De tal forma que, ao final, uma parcela considervel das
nossas satisfaes e aprazimentos seria fruto do compromisso com a
comunidade na qual vivemos, por meio do reconhecimento da superioridade do
cuidado com o mundo e com o bem-estar coletivo sob os caprichos e
interesses individuais.
Ao reverso dos que tomam a esttica, juzo de gosto e satisfao, como
alternativa individualista universalidade da razo na tica, Hannah Arendt vai
apropriar a esttica kantiana a fim de saIientar a capacidade humana de sentir
prazer com aquilo que "interessa apenas em sociedade"4, a despeito de
nenhuma retribuio no mbito das sensaes privadas. O resultado de tal
compromisso a realizao de uma forma pblica especfica de felicidade. "A
vida em comum era caracterizada por sua capacidade de proporcionar
'felicidade pblica', quer dizer, uma felicidade que s poderia ser obtida empblico, independente da vida privada. A possibilidade de desfrutar desta
felicidade pblica tem decrescido na vida modema, pois nos dois ltimos
sculos a esfera pblica tem se retrado"5. Para que possamos ser capazes de
desfrutar desta felicidade pblica fundamental o que se pode chamar de
cultivo de sentimentos pblicos, o que em absoluto significa alcanar uma
instncia neutra que equalize os sentidos de sociabilidade com uma
perspectiva geral, nem, muito menos, o mero esforo racional em deliberaracordos e consensos. particularmente no que denomina de sensus
communis, o cultivo de sentimentos comuns aos outros em uma mesma
comunidade, que podemos exercitar a capacidade de sentir satisfao por
4 ARENDT, Hannah. Lies sobre a filosofia de Kant. Trad. de Andr Duarte, Rio de Janeiro:Relume-Dumar, 1993, p. 94 (lectures on Kants Political Philosophy. Edited with nainterpretative essay by Ronald Beiner, Chicago: Ed. The University of Chicago Press, 1982, p.73).
5
ARENDT, Hannah. Public rights and Private Interests: Response to Charles Frankel, emSmall Comforts for hard Times: Himanists on Public Policy, editado por Michael Mooney eFlorian Stuber, New York: Columbia University Press, 1977, p. 104.
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aquilo que "interessa apenas em sociedade"6, ou ao que Hannah Arendt,
fazendo uso de um vocabulrio kantiano, nomeia de "deleite desinteressado",
de natureza pblica, embora nem de carter caritativo ou mesmo altrustico7.
Sociabilidade a "prpria origem, e no meta da humanidade do
homem; ou seja, descobrimos que a sociabilidade a prpria essncia dos
homens na medida em que pertencem apenas a este mundo. Isso um ponto
de partida radical de todas as teorias que enfatizam a interdependncia
humana como dependncia com relao a nossos companheiros tendo em
vista nossas carncias e necessidades"8. A humanidade, quer dizer, a
comunalidade como um atributo que pertence aos seres humanos apenas, o
espao mesmo da gnese dos homens, engendrados sobre sua condio de
mundaneidade. Descrita como estatuto ontolgico dos seres humanos, o
atributo da pluralidade reitera-se com freqncia nos escrito arendtiano. Ainterao a base estrutural da ao humana.
A autora de A condio humana lana mo do vocabulrio
heideggeriano para valorizar precisamente o que Heidegger desvaloriza. Como
bem assinala Benhabib "O espao de aparncia ontologicamente reavaliado
por [Arendt], precisamente porque seres humanos podem agir e falar com os
outros apenas na medida que eles aparecem para os outros"9. Implica em
compartilhar o mundo com os outros por meio de atos e linguagem, isto , servisto e ouvido pelos outros, de forma que, ao julgarmos, o fazemos
necessariamente como membros de uma comunidade10. O sensus communis
certifica tal comunicabilidade, peculiaridade capital em termos de julgamento
efetivo. A experincia do senso de comunalidade no julgamento de gosto
chama ateno para uma forma de existncia comum particularmente humana:
6 ARENDT, Hannah. Critique of Judgment, Seminar Fall 1970, New School for Social
Research, manuscrito indito, Hannah Arendts Papers, The Manuscript Division, Library ofCongress, Washington DC, container 46, p. 032415.7 ARENDT, Hannah. Lies sobre a filosofia de Kant, p. 94 (original, p. 74).8 (trad. Mod.) ARENDT, Hannah. Lies sobre a filosofia de Kant, p. 94-5, original p. 73-4).9 BENHABIB, Seyla. The Reluctant Modernismo f Hannah Arendt. London New Delhi: Sage
Publications, 1996, p. 111. Ao contrrio de Arendt, Heidegger estabelece uma relaosuspeita no que diz respeito aparncia, considerando-a tambm a condio de ocultaoda verdade (aletheia) do ser (Sein), o espao de inautenticidade (Uneigentlichkeit), o estadode queda (Verfallenheit), e o estado de ser lanado (Geworfenheit).
10 Mesmo ao considerar a comunalidade constituio ontolgica do homem, o sensuscommunis, de fato, reflete nossa condio factual concreta, fenomenologicamente verificvel,que opera, simultaneamente, a condio de validade de linguagem, comunicao e
compartilhamento em geral. Veja-se: FORTI, Simona, "Sul 'Giudizio riflettente' Kantiano:Arendt e Lyotard a Confronto," in La Politica tra Natalit e Mortalita - Hannah Arendt. Editedby Eugenia Parise. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1993, p. 124.
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a pluralidade constituda por linguagem e ao. O sensus communis garante a
comunicao. Comunicar-se no se confunde com expressar-se11. Possibilita
que se fale em termos de natureza comum do homem, e por conseqncia, de
comunalidade poltica. Nossa natureza comunal no se deve apenas
necessidade de preservao da espcie e de satisfao do reino das
necessidades, sem dvida melhor realizadas em conjunto. Compartilhamos acapacidade de associao natural com outras espcies, essencial vida
biolgica como um todo (humana e animal), preservao da vida. J a
capacidade de praxis e lexis nos confere uma outra forma de comunalidade,
nos institui uma outra forma de existncia comunal, koinon, a capacidade
humana de se organizar politicamente, a bios politikos.
Hannah Arendt no vaticinou, todavia, que ao invs do cultivo de
sentimentos pblicos, teramos o cultivo de uma felicidade fabricada no corpo.A privatizao do nosso imaginrio s puras satisfaes pessoais nas
sociedades atuais parece encontrar no corpo, justamente o espao menos
compartilhado, que menos diz respeito ao coletivo, a consagrao do nosso
aprazimento. E justamente nele, nos seus prazeres e dores, que a autora vai
localiza a dimenso mais radical da felicidade privada. "Nada, de fato, menos
comum e menos comunicvel - e portanto, mais fortemente protegido contra a
visibilidade e audibilidade da esfera pblica - que o que se passa dentro denosso corpo, seus prazeres e dores. Seu labor e consumo. Por isso mesmo,
nada expele o indivduo mais radicalmente para fora do mundo que a
concentrao exclusiva na vida corporal"12. Uma das formas mais reais e
radicais de felicidade privada se encerra no alivio da dor, incomunicvel para
alm dos limites corporais. "A felicidade alcanada no isolamento do mundo e
usufruda dentro das fronteiras da existncia privada do indivduo jamais pode
ser outra coisa seno a famosa 'ausncia de dor"'13.
Tem-se desta forma, um deslocamento do nosso imaginrio de
felicidade da interioridade do selfpara a visibilidade do corpo. Apesar de j do
domnio da aparncia, a supervalorizao do corpo ainda reproduz a mesma
artimanha que a autora tanto refutou, no s nas atividades da vida do esprito
11 Comunicao, linguagem, depende do sensus communis. A expresso de alegria, ou medo,por exemplo, no depende necessariamente da linguagem. Arendt assinala que o gesto seriasuficiente, ou o som, no caso da distncia tornar o gesto invisvel. Veja-se: ARENDT, Liessobre a filosofia poltica de Kant, p. (original p. 70).
12 ARENDT, Hannah,A condio humana, p. 124 (original p. 112).13 Ibid, p. 125 (original, p. 112).
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quanto na ao: o desencantamento e privatizao do espao pblico. Um
possvel diagnstico seria que passamos por um processo de permuta de um
selfensimesmado para um corpo ensimesmado, cujas conseqncias so: o
confinamento vida corporal do espao derradeiro da felicidade, o
deslocamento de nossa confiana no espao pblico para o interior do corpo, e
a transferncia esfera coletiva da responsabilidade por nossas satisfaesprivadas. A atitude do homo faberde instrumentalizao do mundo desloca-se
ento para a instrumentalizao do prprio corpo. A promessa mais urgente do
mundo tomou-se a busca da felicidade de um paraso fabricado no corpo do
homem. Tem-se um desvio da noo original arendtiana de homo faber. Uma
das peculiaridades do artificialismo e da mecanizao da vida natural do homo
faberse dava na orientao a uma determinada finalidade, a prpria fabricao
dos objetos de consumo. Ao se instrumentalizar o corpo, perde-se a dimensoteleolgica da fabricao, que se encerrava nos objetos produzidos. o corpo
afirmado como o prprio objeto de fabricao, cujo produto final no pode ser
alcanado. Em outras palavras, em vez de consumirmos os objetos, fabricamos
e consumimos nossos prprios corpos.
Deste modo, o que era atividade exclusiva do animal laborans, qual seja,
o exaustivo consumo dos nossos apetites, que alm de ser do domnio da
necessidade se encerrava na prpria atividade em si, se funde com o princpioda fabricao. Uma fabricao sem qualquer vislumbre de telos, pois o
principal critrio de medida deixa de ser o da utilidade, e passa a ser o da
felicidade limitada iluso de um infinito processo de fabricao e consumo do
corpo; mesmo que tal felicidade seja por pouco tempo, o tempo suficiente de
sermos tragados por uma nova possibilidade de consumirmos mais uma nova
fabricao da nossa imagem corporal. A autora de A condio humana afirmou
que a vitria do homo faberse baseava na convico de que "o homem a
medida de todas as coisas"14. Na promessa contempornea de felicidade, o
ponto arquimediano no mais o selfsolipsista, mas o corpo solipsista, que
passa a ser a medida de todas as coisas, o artefato humano por excelncia, a
medida de fabricao da vida. Talvez a traduo consagrada do filme de Frank
Capra continue sendo elucidativa, "a felicidade no se compra", nem mesmo se
fabrica, mesmo que sua matria-prima seja nosso bem mais precioso, nosso
corpo, onde se encerra a vida.
14 Ibid., p. 319 (original, p. 306).
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AASS MMETFORASETFORASDODO PPODERODER:: ENTREENTREOOPBLICOPBLICOEEOOPRIVADOPRIVADO
Geraldo Prado15
Peo desculpas ao pblico pelo atraso. Em alguma medida este atraso explicvel,
embora no se justifique. Ele explicvel na lgica do tema principal do 5 Encontro de
Psiclogos do Tribunal de Justia As metforas do poder: entre o pblico e o privado.
Eu esclareo, ainda antes de prosseguir com os agradecimentos e cumprimentos, que
estava no gabinete do presidente do Tribunal de Justia juntamente com alguns juzes que
integram o movimento da magistratura fluminense pela democracia. Eu estava l com esses
juzes, o movimento na realidade entregando ao Presidente do Tribunal de Justia quatro
projetos de reforma do regimento interno do tribunal e do Cdigo de Organizao Judiciria que
giram em torno de dois temas: a proibio do nepotismo uma luta antiga contra esta prtica e o segundo pelo fim das sesses secretas e pela exigncia, alis constitucional, de
fundamentao das decises administrativas. Alm dos dois projetos que foram entregues ns
comunicamos ao presidente do Tribunal de Justia que no prximo dia 17 de dezembro
estaremos entregando um projeto de resoluo para a criao de reserva de vagas para
afrodescendentes na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro tambm. Ento,
estvamos l vendo, apresentando, colocando as coisas e vendo de que modo a presidncia
do Tribunal vai dar encaminhamento a isso. Eu vou falar mais disso ao longo da minha
exposio, mas o que seria algo meio protocolar demorou um pouco, com isso eu atrasei e
peo desculpas a todos.
Em primeiro lugar, vou me apresentar: eu sou juiz de Direito h 17 anos, fui promotor
de Justia durante trs anos, sou professor de Direito Processual Penal da graduao da UFRJ
(Faculdade Nacional de Direito) e do Programa de Mestrado da Universidade Estcio de S.
Sou Doutor em Direito, sou morador, nascido e criado nessa cidade do Rio de Janeiro, pela
qual sou profundamente apaixonado. Portanto, sendo isso tudo e sendo a contradio que todo
sujeito , penso nessas relaes entre pblico e privado a partir da minha experincia pessoal.
No poderia ser de outra maneira. Minha experincia como juiz, morador de uma cidade
assustada, professor encarregado de pesquisas na rea da criminologia e controle social, todasessas minhas experincias so a base daquilo que eu penso e da minha atuao na
magistratura, nas minhas relaes sociais outras e at mesmo do fato de eu ter, juntamente
com outros grandes companheiros entre os quais eu cito e presto homenagens a Siro Darlan,
Joaquim Domingos, Slvio Teixeira, Andr Trendinique, Andr Nicolite, Cristiane Ferrari, Milene
Massali , formado esse grupo de magistrados pela democracia (Magistratura Fluminense pela
democracia no Rio de Janeiro), cujo compromisso, j de alguns conhecido, no sentido da
radicalizao democrtica, independente do que isso possa vir a nos custar. Portanto, so
todas essas experincias que formam a pessoa que est com vocs hoje e que tem que falar
15 Juiz de Direito da 37. Vara Criminal do TJRJ.
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do pblico e do privado tomando talvez como referncia, como ponto central, o Poder Judicirio
e a minha condio de juiz. H um livro Histrias de violncia: crime e lei no Brasil organizado
pela Elizabeth Canceli e publicado pela UnB , uma coletnea de artigos de muita gente boa.
Entre os excelentes autores que publicam esse trabalho, h uma professora do Rio Grande do
Sul, Ruth Gauer, antroploga. A Ruth apresenta um texto sensacional, Fundamentos do
moderno pensamento jurdico brasileiro e, sobre esse texto da Ruth, a Elizabeth escreveu o
seguinte: o segundo captulo do livro de Ruth Gauer faz um exaustivo exerccio na busca daruptura portuguesa com a herana das estruturas poltico-administrativas da Idade Mdia e do
romantismo, as quais informariam o nosso pas colonial. Encontra, dessa forma, o modelo de
modernidade que seria adotado pelo Brasil no sculo XIX ao mesmo tempo em que vislumbra
afora da tradio, ou seja, o mesmo instante em que as inovaes estariam separando pela
modernidade o pblico do privado, e valorizando a coisa pblica com o paralelo surgimento de
uma sociedade civil, a manuteno da personalizao como a fora da tradio seria a
tentativa de no transformao e a permanncia de regras particulares sobre gerais do
tratamento personalizado.
Isso diz muito da nossa realidade, muita gente j enfrentou essa temtica Roberto Da
Matta, com a sua maneira de ver as coisas; a extraordinria professora da UFF, Gislene Neder,
tambm; Vera Malaguti Batista, que tenho certeza j trocou idias com vocs da questo da
permanncia de prticas de particularizao sobre prticas de generalizao, que so prprias
de uma Repblica. Isso no momento atual quando a gente pensa que est no sculo XXI, em
2004, dezesseis anos depois da edio de uma constituio que deveria produzir, se no
resgate de uma cidadania que nunca existiu, no mnimo as condies elementares para a
configurao de um novo modelo de cidadania a ser realizado diariamente. E no encontramos
isso, muito pelo contrrio, parece que estamos vivendo o mesmo tipo de situao pr-1988, emque a cidadania ainda uma cidadania bem particularizada, ainda uma cidadania de apenas
alguns segmentos sociais. Ento, a coisa se complica e exige de todos ns um esforo de
compreenso para no reproduzirmos, no nosso atuar concreto, o que nos parece que justo.
E todos aqui sabem que no h uma justaposio entre o justo e o legal, pode ser legal e estar
muito distante do justo. Estarmos a a atuar, fazendo justia e na realidade perpetuando
injustias, segmentaes, abismos, diferenciaes sociais.
Como pensar isso? Embora fale para psiclogos, na maioria aqui, falo como juiz. Em
que estgio ns do Direito, ns juzes, nos encontramos? Em primeiro lugar, necessriocompreender que o Poder Judicirio brasileiro nunca foi um poder transformador. Se ns
pudssemos talvez fazer uma anlise histrica da formao do Poder Judicirio da
modernidade, principalmente essa chave que a Revoluo Francesa, que Poder Judicirio
surge com o fim do Antigo Regime? Que Poder Judicirio o que a comunidade espera em
uma Repblica? Se pudermos pensar em Poder Judicirio da modernidade como sendo este
poder transformador, criador, motivador de universalidade dos direitos ou do processo de
universalizao do gozo de direitos fundamentais, evidente que estamos muito distantes
disso na realidade brasileira.
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No h como analisar o Poder Judicirio brasileiro sem analisar a sua funo penal,
sua funo de controle social. O Poder Judicirio brasileiro nasce como um instrumento nas
mos do Executivo para ser realmente uma ferramenta de controle social, de segurana
pblica. O modelo judicirio, digamos liberal, que em alguma medida a constituio do Imprio
trazia j esculpido, referido e que j estava neutralizado pelo prprio poder moderador do
imperador, aquele Poder Judicirio na prtica no tinha absolutamente nada a ver com o
discurso do texto constitucional. As prticas sociais entregaram a juzes, desde o incio dahistria do Poder Judicirio brasileiro, a tarefa de ser instrumento de segurana pblica. Juzes
como intendentes, juzes como policiais ou, em outras palavras, policiais como juzes. A
formao da nossa estrutura judiciria trazia, logo de cara, esta deformao com a atribuio
de funes de segurana pblica a quem deveria ter uma posio imparcial, dentro dos limites
em que a imparcialidade possvel. Ter uma posio imparcial na gesto de conflitos. Em uma
gesto de conflitos que tenderia a diminuir o grau de conflitividade social, reduzir o nvel de
violncia na comunidade. Mas se isso era o modelo ideal do Poder Judicirio da modernidade
no era, por certo, o modelo do Poder Judicirio brasileiro, de uma sociedade escravocrata, de
uma sociedade marcada profundamente pelo tipo de produo que havia escolhido para ser a
sua fora econmica e de uma sociedade que vivia num estado que ainda sequer se conhecia
direito. Todos sabemos que a lngua falada no Brasil no incio do sculo XIX no era o
portugus, era uma lngua geral, era uma combinao do portugus de quem chegava, com as
lnguas trazidas pelos africanos que tambm chegavam, com a lngua dos ndios que j
habitavam esta terra. Era uma lngua absolutamente incompreensvel, por exemplo, para um
sujeito culto vindo de Portugal que no tivesse a experincia de viver no Brasil durante muito
tempo. E o processo de uniformizao lingstica, que essencial na viso de muitos para a
configurao da nacionalidade, de constituio de uma unidade lingstica, se fez dentro do
prprio projeto de integrao territorial brasileira, com o enfrentamento entre o poder central e
as foras provinciais numa luta que era entre conservadores: mais conservadores contra
menos conservadores. Ento, uma luta de imposio da unidade territorial brasileira, a luta de
imposio de um certo modelo econmico. Todas essas lutas foram travadas entre elites
centrais e outras elites, mas seres humanos, negros, camponeses e o pessoal que j
trabalhava nas cidades numa condio infeliz foram, de alguma forma, importantes nestas
batalhas. Eu cito sempre a Balaiada como exemplo disso, porque as pessoas falam da
Balaiada mas no se lembram de que, naquele mesmo perodo, os negros se revoltaram em
quilombos no Maranho, liderados por Cosme, e se no fosse a fora militar dos negros dosquilombos, o Balaio e seu grupo de liberais no tinha conseguido enfrentar o poder central
durante muito tempo. Mas esses todos certamente eram massa de manobra de um mecanismo
complicado que tinha na justia uma das suas principais engrenagens. A justia criminal
brasileira, no perodo da Regncia, foi empregada ao limite para atingir dois objetivos: o
primeiro deles era no permitir que a justia, no seu funcionamento concreto, enunciasse
regras que poderiam ser interpretadas como regras de universalizao de direitos. Tnhamos
um tribunal do jri, nesse perodo da nossa vida no sculo XIX, que no tinha um juiz
profissional como hoje, com a sua predominncia, a sua hegemonia no julgamento. Tinha, sim,
pessoas da comunidade que conduziam todo o julgamento e quando nesses conflitos como a
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Balaiada algum que integrava o grupo revoltoso dos balaios era levado a julgamento,
perante esse tribunal popular, era absolvido com o seguinte argumento: esse sujeito tem que
ser absolvido porque, na realidade, est lutando por nossa liberdade, por direitos da
comunidade do Maranho. Ele est enfrentando o poder central, mas est enfrentando em
busca de algo que o poder central nunca nos oferecer, o poder central nos oferece a
escravido como modo de produo, o poder central nos oferece a aristocracia como modo de
definio de estamentos sociais e aqui, no, os balaios esto querendo coisa diferente, estoquerendo construir uma Repblica em que haja unidade, igualdade, etc. Ento, se esse
camarada matou um soldado, vai ser absolvido porque havia uma justa razo para tal. Quando
os tribunais do jri, em meados do sculo XIX, comeavam a produzir esse tipo de deciso, o
Poder Central se deu conta de como era importante dominar o Poder Judicirio, de como era
importante no permitir que o Poder Judicirio tivesse essa independncia, de como era
importante no permitir, tanto do ponto de vista ideolgico como do poltico, ter um Poder
Judicirio capaz de dizer ao prprio governo central olha, voc est do lado errado, voc no
tem razo. Vivamos uma poca em que no havia o chamado controle de constitucionalidade
das leis, o juiz no podia deixar de aplicar uma lei por entend-la inconstitucional e isso era
muito positivo para as elites, mas ainda assim no era suficiente. No era suficiente porque,
apesar de tudo, era possvel se produzir decises contestando o status quo. Ento, h um
desmonte, o tribunal do jri brasileiro desmontado, e estou citando s um dos inmeros
exemplos que poderia citar aqui. Ele desmontado, desaparecem esses jurados que decidiam
um pouco como decidem os jris americanos que vocs assistem pela televiso: encerrado o
debate, se reuniam, conversavam entre si, trocavam idias e, em seguida, apresentavam o
veredito, que era a posio deles, jurados, a respeito daquele caso. Aquilo desaparece, um juiz
profissional inserido neste processo e esse juiz profissional era absolutamente ligado aos
interesses da Coroa e s permanecia naquela cidade, naquela comarca frente daquele Juzo
enquanto bem servisse Coroa. Seria curiosidade histrica? Seria curiosidade histrica se isso
no representasse a realidade do Poder Judicirio ao longo de toda a nossa histria at bem
recentemente.
Se dermos um salto e chegarmos a dois perodos duros da realidade brasileira, 1937-
1945 e 1964-1985, veremos que o Poder Judicirio no Brasil, salvo rarssimas excees que
podem ser enunciadas nos dedos de uma das mos Vitor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva,
mais dois ou trs ministros do Supremo , em nenhum momento se prestou a contestar os
regimes autoritrios que produziram matana, que produziram extermnio, que produziram
diferenciao social. Portanto, a nossa folha de servios prestados democracia muito
curtinha, muito pequena, medida por decises isoladas de um ou outro juiz, e no consegue
ser vista como sendo a expresso do Judicirio da modernidade, do Judicirio defensor dos
direitos fundamentais, do Judicirio no como obstculo transformao social, mas como um
relevante instrumento desta prpria transformao social. Isso tudo absolutamente cultural.
Um Poder Judicirio que funciona assim independentemente do que a Constituio diga
todos so iguais perante a lei , independentemente do que as leis digam todos tero o
mesmo tipo de tratamento em situaes tais ou quais um Poder Judicirio bastantesensvel a prticas que no combinam, mas misturam o pblico e o privado. H uma
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privatizao no s do pblico, mas tambm do Estado e eu no confundo estatal com
pblico (so dimenses diferentes, uma mais abrangente outra menos abrangente). No se
trata de fazer essa diferena, mas de pensar a coisa de uma forma diversa: um professor e ex-
ministro da Justia, Miguel Reale Jnior, disse o seguinte, que uma frase do rei Lus XIV: o
Estado sou eu; se fosse proferida por um brasileiro, seria diferente: o Estado meu. Essa a
percepo, porque essa configurao do Poder Judicirio servil s tem sentido se ele, ns
juzes, que temos o poder de decidir os casos concretos podemos tirar o filho do pai eentregar me, da me e entregar ao pai ou tirar dos dois; podemos mandar algum para a
cadeia por 20, 30, 40, 100 anos, podemos fazer tanta coisa e no o fazemos porque, de
algum modo, o no fazer objeto de algum tipo de troca. H uma troca nisso, no se trata da
intimidao do Poder Judicirio, muito embora ns saibamos que atitudes hericas em
momentos extremos so exigidas de heris, no necessariamente de pessoas comuns.
Portanto, ter uma atitude herica l no perodo em que a Olga Benrio est sendo embarcada
para ser liquidada pela Alemanha nazista ou uma atitude herica em pleno perodo Mdici no
Brasil, quando se sabia que o sistema penal que valia era o sistema penal subterrneo e no o
sistema penal formal, uma coisa complicada. Mas no se trata aqui de fazer referncias a
atitudes hericas, mas a decises cotidianas que, pelo seu conjunto, so indicativas de uma
maneira de ser que j funciona como uma fora capaz de controlar ou de conter o
autoritarismo, de controlar e de conter as violaes dos direitos fundamentais. Esta fora, que
a soma das prticas concretas de cada juiz no seu dia-a-dia e que no precisa ser
necessariamente herica, no precisa ser alguma coisa que v colocar em risco a vida, a
segurana desse sujeito. Essa fora no se produziu no Brasil exatamente porque a histria do
Poder Judicirio brasileiro era a de ser um locus de relao promscua com o poder. E nas
minhas pesquisas e como professor de processo penal, digo que no adianta a gente pensar o
processo penal sem ver como ele realizado na prtica. No adianta eu dizer para o aluno que
todo sujeito que suspeito da prtica de um crime ser acusado em Juzo quando, na
realidade, dentro da Delegacia de Polcia funcionam mecanismos informais de seleo para
definir quem ser acusado e quem no ser acusado. Aqui vai se dar o mesmo, no adianta eu
dizer para vocs que os mecanismos de seleo dos juzes so perfeitos, so ajustados a
princpios democrticos e republicanos, quando sabemos que, historicamente, at o concurso
pblico esteve e est sob suspeita, de tantas coisas estranhas que acontecem.
E quando comeamos a observar o padro disso na Amrica Latina porque tambm
em outros lugares o fenmeno se d da mesma forma: na Argentina, na Colmbia e em outros
pases , vamos perceber exatamente o que est no fundo disso tudo, ou seja, as grandes
negociaes que so o fator decisivo na seleo de quem vai estar no Poder Judicirio. E se
eu penso em algum que aceita se submeter a um tipo de negociao deste gnero para ser
juiz, porque esta pessoa no vai aceitar outras tantas negociaes para no perturbar o poder,
no incomodar o poder? O que o nepotismo dentro do Poder Judicirio seno mais uma
moeda de troca? O que a sesso secreta do julgamento sem motivao seno a
possibilidade de punir e de calar as vozes dissidentes, divergentes, quer pelos motivos mais
nobres quer apenas porque no tomam parte do banquete.
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O que mais lamento em tudo isso que ns chegamos em 1988 cheios de esperana
de mudana, participamos do processo, no nos damos conta de como esse processo ia se
realizar na prtica. Havia uma utopia to grande, uma vontade to grande de que esse pas
desse certo que nos esquecemos de ver o seguinte: a transio democrtica brasileira foi
talvez uma das mais negociadas transies democrticas de que se tem notcia. Foi uma
transio democrtica em que ficou muito claro para aqueles que estavam deixando o governo
que eles no estavam necessariamente deixando o poder. Quer dizer, todo mundo sabe quemfoi Jos Sarney, quem Jos Sarney, quem foi e quem Antnio Carlos Magalhes. Decerto,
toda transio tecnicamente falando, em termos de cincia poltica pressupe algum nvel
de negociao, mas esse nvel de negociao leva em conta as foras emancipatrias que se
impem naquele momento s reacionrias, que esto sendo vencidas, aquele grupo autoritrio
que est sendo apeado do poder. No caso brasileiro no, no caso brasileiro, por uma questo
de poltica econmica, a transio foi uma negociao em que quem tinha as cartas na mo
era quem estava com o poder e continuou tendo depois e ficamos ns com a migalha, com o
resto e com a utopia, porque sonhar preciso. E ficamos ns com a utopia. Dentro do Poder
Judicirio as coisas continuaram da mesma forma, dentro do Poder Judicirio aquele mesmo
nvel de prticas que conhecamos de antes, prosseguiu. Eu entrei, fui Promotor de Justia de
1985 a 1988. Em 1988, eu ingresso no Poder Judicirio e algumas semanas depois
promulgada a Constituio. Eu entrei numa poca em que juzes no pagavam imposto de
renda, juzes at hoje tm benefcios e beneplcitos que so incompatveis com a regra
primria de que todos so iguais perante a lei. Dizem que eu sou antiptico. Tem um
restaurante no 4 andar que tem uma cerca que separa os homens de bem dos que no so de
bem. Eu fico com os que no so de bem, no tem jeito, dizem mas voc pega nas pequenas
coisas, voc muito chato. Mas as pequenas coisas so signos, falando para psiclogos, as
pequenas coisas emitem fortes sinais de como a gente configura o mundo, que representao
mental temos do mundo, dos nossos semelhantes, se so to semelhantes assim ou no. E a
entra a virtude de tudo, porque se pensarmos que l em 1850 aqueles senhores de escravos
se achavam os reis da cocada preta, isso eterno e esses animais falantes vo nos servir at
o fim dos tempos e hoje ns nos damos conta de que foi possvel em alguma medida mudar
isso e impor goela abaixo: todos somos iguais! Voc pode no gostar do cara, mas vai ter que
aturar o malandro, voc vai ter que viver com ele. Ento, conseguimos transformar uma
diferenciao eterna, mudar alguma coisa, bvio que condenamos os escravos que saram
da senzala, que foram para as periferias, foram sofrer outro tipo de escravido. Mas uma lutaconstante, uma coisa dinmica e essa dinmica da sociedade que nos permite acreditar em
foras transformadoras, que nos permite acreditar que s vezes seis valem mais que
seiscentos e que possvel lutar algumas vezes com as armas que esto nossa disposio e
outras tantas construir armas novas, criativas para mudar a realidade. Dentro do Poder
Judicirio eu creio que as grandes mudanas esto vindo atravs de algo que interessante
que a classe mdia hoje chegando mais ao Poder Judicirio, tendo acesso condio de ser
juzes. No suficiente porque a fora dessa caixa de formao de mentalidade conservadora
que o Poder Judicirio uma fora imensa. Individualmente, o sujeito tem que lutar muito
para no ceder ao gozo de ser chamado de senhor (e tem ao judicial movida por juiz para
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ser chamado de senhor). Olha como isso poderoso, mas voc tem uma juventude que vai
lutando e vai superando isso, que vai tomando conta do espao, que vai se questionando. Se
vocs olharem neste restaurante, tem muito mais juiz do lado de fora daquela cerca do que do
lado de dentro. Do lado de dentro esto os mesmos que sempre estiveram h 10, 20, 30 anos.
Do lado de fora tem toda uma magistratura que olha aquilo e fala mas que coisa absurda, ser
que esses caras se acham melhores que os outros realmente?. No basta isso s, no basta
uma postura individual para resolver, como no basta um para resolver as grandes questes daviolncia da nossa cidade, no bastam apenas as nossas prticas e posturas individuais.
necessrioa uma ao poltica, necessrio ir luta politicamente, recuperar o senso do
sujeito poltico da Grcia Antiga. Entender que tudo aquilo que diz respeito polis diz respeito a
cada um de ns. Sofrer como estamos sofrendo no Rio de Janeiro e no fazer nada um crime
maior com as geraes do futuro. Eu termino a minha fala como eu tenho terminado no ltimo
ms, ando to angustiado, to triste, ao mesmo tempo procurando fora dentro de mim para
continuar com os meus companheiros nessa batalha e essa frase funciona como combustvel
para mim. Os africanos costumam dizer que o mundo no aquele que ns herdamos dos
nossos pais mas aquele que ns tomamos de emprstimo a nossos filhos. Portanto,
obrigao nossa devolver melhor o que a gente pega emprestado. No podemos devolver pior.
Essa a significao, este o sentido do sujeito poltico que cada um de ns tem que ser. Era
a contribuio que eu podia trazer. Muito obrigado!
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A CA CLNICALNICADADA SSUBJETIVIDADEUBJETIVIDADE:: ENTREENTREOOPRIVADOPRIVADOEEOOPBLICOPBLICO
Ana Cristina Figueiredo16
Intitulei minha apresentao de A Clnica da Subjetividade: entre o
privado e o pblico e pretendo e pretendo fazer alguns comentrios, algumas
notas como prembulo sobre essa questo de privado e pblico e falar um
pouco do que estou chamando de a clnica da subjetividade. Eu diria que
mais a clnica do sujeito, mas subjetividade um nome de mais circulao e
tive realmente uma experincia inusitada chegando aqui no Frum, que me fez
pensar o que privado e pblico. Estou h quase 15 minutos tentando achar
esse auditrio porque um excesso de informaes, indicaes e setas e o
excesso de possibilidades e voc se perde completamente. No por falta de
indicao, apesar de eu no ter visto nenhuma placa em que estivesse escrito
Auditrio Antonio Carlos Amorim. Mas eu perguntava s pessoas e cada uma
me mandava para um lado. Fiquei pensando realmente que o auge do privado
o anonimato: voc est perdido em um pblico de massa, annimo, com umaalta incidncia de ternos e gravatas e ningum sabe de voc nem voc sabe de
ningum. Ento, acho que o insuportvel do privado esse anonimato, voc
no nada para ningum e ningum nada para voc, as indicaes no te
levam a lugar algum e o pblico uma massa amorfa. Assim, eu diria que foi
uma experincia chocante.
Acho que essa questo do privado e do pblico muito prpria do
campo da histria e da antropologia e no vou entrar nesse detalhe, mas vou
falar um pouco da experincia do sujeito. Todos sabemos que essa inveno
do privado e do pblico, ou pelo menos a inveno dessa separao, marca a
modernidade. Enfim, historicamente, isso j foi dito exausto: a partir do
sculo XVIII, com certo pice no sculo XIX, a separao entre privado e
pblico, a valorizao da intimidade, do espao privado, a nuclearizao da
famlia, a separao entre o profundo e a superfcie que marcam o chamado
individualismo burgus e nesse campo nascem todas as prticas psi,16 Psicanalista e professora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
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inclusive a psicanlise. Freud falava em psicologia profunda, alguma coisa que
fala do interior, do privado, do ntimo. Esse o retrato, digamos, do sculo XIX
e da passagem ao sculo XX. Eu s queria marcar que tambm socilogos que
esto falando isso no esto trazendo nenhuma novidade quanto a esse
campo contemporneo. Que, ao contrrio do que parece, trata-se de invaso
do pblico pelo privado; no o pblico invadindo a privacidade, no invasoda privacidade como o cinema pode nos vender, com o olhar pelo buraco da
fechadura. No invaso da privacidade, o privado invadindo o pblico. A
intimidade se expe exausto na mdia, nos programas de televiso, e no
limite a gente tem esse fenmeno, nos ltimos 3 ou 4 anos, que o chamado
Big Brother, que um fenmeno mundial de exposio do mais ntimo ao
olhar curioso que tudo quer ver. O privado invade o pblico, o privado se
expe, se apresenta. O privado toma o pblico. A partir disso, como se pensano espao jurdico, que deveria ser o espao pblico propriamente dito, ao
mesmo tempo legislando sobre uma srie de experincias da ordem do
privado? Ento, fiquei pensando em varas de famlia, varas da infncia e da
adolescncia, litgios, confrontos pela posse de crianas, adoo, questes de
tutela, abuso sexual, pequenas infraes... E me perguntei: o privado invade o
pblico em busca de solues? O pblico deve dar respostas ao privado?
Devemos manter esta distino entre privado e pblico? Qual a utilidade dela,
em ltima instncia? Qual o teor dessas respostas que nem sempre esto
escritas nas leis?
No pretendo falar do ofcio de vocs, psiclogos aqui presentes que
trabalham na esfera do judicirio. Acho que so vocs que tm de falar disso e
gostaria mais de ouvir do que falar: saber sobre os casos que aparecem, as
incidncias no sistema jurdico, quais so os maiores problemas que vocs
enfrentam no cotidiano desse trabalho. Mas eu queria ento marcar alguma
coisa para discusso e trazer uma referncia da psicanlise a que se possa
remeter esse trabalho rduo, que toca o impossvel a cada vez. O que vem a
ser essa clnica da subjetividade, do sujeito?
Eu vou marcar trs coisas brevemente, trs tpicos e vamos ver como
que a gente pensa isso. Primeiro, eu queria marcar a diferena do sujeito e do
indivduo. Se o indivduo o produto dessa separao entre privado e pblico,
ele o privado e o pblico o social, o sujeito no exatamente indivduo.Pelo menos o que a psicanlise nos ensina, desde Freud, com certeza, e
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Ele extrado de uma certa falao, da controvrsia, do burburinho da fala
colocado em cena, em pauta, em ato. E a voc tem o sujeito se constituindo
em ato, a partir do seu dizer. Isso fundamental para se fazer laudos, para se
fazer avaliaes e percias de um modo geral, para construir um laudo, por
exemplo, ou decidir coisas, e um ato perante o juiz, inclusive. O Juiz tem uma
funo de acolher esse dizer como um ato.
A terceira coisa que eu queria marcar sobre a questo da
singularidade do sujeito, se isso privado ou pblico, o que sujeito, o que
individual e o que singular. Tem uma certa confuso, um certo rudo nessas
trs coisas e eu diria enfim que preciso a gente trabalhar o termo
singularidade de uma maneira mais desdobrada, a primeira acepo do termo
mais corrente de nico, peculiar, exclusivo, singular. Um dizer, um ato tem
uma dimenso singular, ele nico como ato. Podemos pensar singularidadetambm como um conjunto de fatores num arranjo nico. O que d a
singularidade no a unidade e sim um composto de fatores estruturais
incidentais que constituem um momento e mesmo uma trajetria do sujeito. O
sujeito se apresenta de um modo singular ou naquele momento ou por conta
de uma determinada trajetria e o singular pode se remeter ainda situao
mais do que ao sujeito, sujeito capturado numa situao singular. As situaes
que se apresentam so singulares porque, sendo ou no previsveis, cabe acada um o trabalho de lidar com isso, com um novo sentido, ou simplesmente
suportar seus efeitos. Eu acho que essa idia de singularidade como um
arranjo nico ou uma situao nica mais interessante que a idia da
singularidade como algo essencial, de um ser nico. Queria deixar algumas
indicaes aqui sobre como fazer essa clnica operar, onde voc tem um
sujeito que efeito de linguagem, que se diz num ato e que tem situaes
singulares. A gente tem que julgar, avaliar e analisar caso a caso. O juiz, a meu
ver, faz uma clnica do caso a caso, ele tem que decidir, julgar, caso a caso,
um conjunto de componentes que fazem daquele caso o sujeito singular, com
todas as variveis do caso. Quanto aos profissionais psi, podemos pensar na
situao diagnstica e ento proponho o que a gente prope na clnica da
sade mental de um modo geral, de uma situao que requer a participao de
todos os envolvidos no problema. Mas, para isso, requer a convocao do
sujeito no dizer e o registro dos ditos a partir do dizer. A gente no deve, no
diagnstico da situao, dissociar o dito do dizer. Um segundo item a
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convocao com o sujeito a cada caso compactuando frente ao juiz, ou frente a
uma situao dada, frente sua prpria determinao do sujeito como
convocao, um sujeito de resposta, de responsabilidade pelo que diz e
inclusive sobre o que j fez ou deixou de fazer. E o tempo da resposta; a
relao com o tempo muito importante. preciso aproveitar o tempo do
decurso de um processo jurdico, ou de um tempo que necessrio, morosopara que as coisas aconteam e muitas vezes h uma pressa, uma urgncia de
ter que haver uma resposta. Mas preciso abrir um hiato nesse tempo para
recolher o que for possvel da narrativa dos casos fazendo aparecer com louvor
dentro do dizer, convocando porque muitas vezes, o sujeito no diz, ele se cala
ou ele convocado a dizer alguma coisa que ele no diz, ele resiste s
intervenes. Ento preciso um tempo para convocar esse sujeito do dizer
para que ele possa tomar posio frente a seu prprio destino.
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experts, com os peritos, que na poca no eram psiclogos, eram mdicos,
sobretudo mdicos psiquiatras. Trabalhei com a construo da figura do perito
e explorei um pouco a complexidade dessa relao entre Direito e cincia. Eu
vou me ater a isso, tendo claro que as duas instncias trabalham com a
verdade de modos muito diferentes e, portanto, tem-se um n com possveis e
inmeros conflitos de uma relao que eu acho que no se resolveu at hoje.Vocs que trabalham nessa rea devem muito bem saber que o Direito tem
uma grande dificuldade em trabalhar com tons intermedirios, ou a pessoa
culpada ou ela inocente, ou ela cometeu o crime ou ela no cometeu.
Enquanto que a cincia, nas suas verses menos positivistas, no trabalha
com esse nvel de certeza. Ento, enquanto o Direito trabalha com o certo, a
cincia tende a trabalhar com o provvel e, portanto, as conexes e as
correlaes a so complicadssimas, as brigas de poder so enormes, eu achoque no s no final do sculo XIX, mas ainda hoje, no comeo do sculo XX -
foi esse o perodo que eu trabalhei.
H uma grande discusso, da qual muitos de vocs devem ter
conhecimento, quanto ao fato de a cincia ter invadido o Direito, principalmente
a Medicina e as cincias psi, ou se elas foram convocadas, conjuradas pelo
Direito para resolver problemas que o sistema tinha dificuldade de tratar. Eu
lembro da posio do Robert Castel - que um socilogo francs com livrofamoso Alienismo: a idade de ouro da psiquiatria que, por exemplo, trabalha
com a hiptese de que de fato os juzes chamaram os psiquiatras, os alienistas
no comeo do sculo XIX, para dar conta de casos que a nova lgica liberal de
interpretao das aes humanas no dava conta. Uma lgica baseada no
clculo de interesses, na idia da racionalidade, ento para se julgar um ato
tem que se aceder aos interesses e aos clculos que o indivduo fez para
cometer aquele ato. E, como diz o Castel, em alguns casos essa localizao de
interesses no simples. Casos, por exemplo, de parricdios, como o famoso
caso do Pierre Rivire, tratado por Foucault, que mata a famlia, mata a irm e
ao mesmo tempo explica porque fez, mas uma razo inaceitvel, ele no
consegue ser processado dentro da lgica dos interesses. Portanto, os
mdicos psi, os alienistas eram chamados para dar um destino a essas
pessoas. Ento, h essa dvida em relao origem, se a cincia invade o
Direito ou se o Direito convida a cincia para se pronunciar, para funcionar
dentro do sistema judicirio. Embora eu tenha trabalhado essas questes, eu
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nunca pensei em termos da relao entre o pblico e o privado, ento de fato
para mim esse convite foi tambm um convite para pensar sobre essa questo
sobre a qual nunca tinha me concentrado. Ento, trago para vocs so
reflexes preliminares em cima dessa experincia de alguns anos, bons anos
de trabalho nessa rea, principalmente na rea do Direito Criminal. Frente a
essa minha incerteza em relao contribuio que traria, tive uma conversacom o Eduardo, que um dos organizadores do evento. E o que ficou de mais
consistente foi um desconforto que eu senti, um desconforto em relao
prpria atividade de psiclogo jurdico. E acho um desconforto saudvel
porque, do meu ponto de vista, qualquer atividade cientfica que no for
acompanhada de uma boa dose de autocrtica s pode ser perigosa. Ento, o
que eu sentia era um certo desconforto do prprio psiclogo jurdico quanto
sua atuao. No sei se estou interpretando equivocadamente. O Eduardo memostrou o material do Encontro, com um olho que tem na ilustrao do folder e
disse que tinha um panptico dentro do olho. Eu no consegui enxergar o
panptico dentro do olho, mas eu entendi o que o Eduardo estava falando, pois
quando ele falava me vinham mente duas teses que eu li - uma de uma
psicloga que est aqui do nosso lado, Ana Paula Uziel, e uma outra de uma
antroploga, Adriana Viana, que trabalharam com Direito Civil, com Tribunal da
Infncia e da Adolescncia. A Ana trabalhando com homossexualidade e
adoo e a Adriana trabalhando com processos de guarda. E nesses dois
trabalhos, que eu recomendo para quem no leu, aparecem muito bem
descritas as atividades dos experts judicirios nessa rea, ou seja, que no a
rea criminal, tanto dos psiclogos quanto dos assistentes sociais envoltos nas
suas atividades de fazer laudos, fazer pareceres, acompanhar casos. E no
fica muito claro a espcie de investigao que eles procedem na vida privada
dos candidatos adoo ou guarda. como se aos psiclogos e assistentes
sociais trabalhando nessa rea ficasse reservada a tarefa de julgar as vidas
privadas. Eu fico pensando se a atividade seria diferente dos experts, dos
peritos psiquiatras ou antroplogos criminais do sculo XIX que tambm
invadiam os corpos para, sob a pele, identificarem as tendncias criminosas.
Eu acho que se a gente trabalhar com a perspectiva foucaultiana, a resposta
no. No h uma diferena entre os antigos e modernos psiquiatras forenses e
a atividade dos psiclogos e dos assistentes sociais na rea do Direito de
Famlia.
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Enquanto tcnicos das cincias humanas, queiramos ou no, e eu me
incluo entre esses tcnicos, somos senhores da norma. Para usar as
formulaes de Foucault, uma norma sem a qual o edifcio jurdico que se
constri a partir do sculo XVIII no pode funcionar, norma que funciona sob a
lei, mas que d sentido lei, como o que d sentido mais profundo a essa lei.
Ento, nessa complexa relao com a lei, pergunta-se se o indivduo temdireito adoo. a norma que pergunta: esse indivduo capaz? So
questes completamente distintas que exigem tcnicas totalmente diferentes, e
s tm sentido em determinado contexto histrico, claro. Eu vou voltar aqui a
um ponto da Ana. O sculo XVIII instaura simultaneamente a separao formal
entre o pblico e o privado, onde o privado a esfera do indivduo, do seu
corpo e das extenses desse corpo, da casa, do domiclio, etc., e ao mesmo
tempo instaura a necessidade de controle desse mundo privado. Pensandofoucaultianamente, voc tem esse duplo imperativo, de um lado voc constri o
privado, voc formaliza o mundo privado e ao mesmo tempo voc cria a
necessidade de controle desse mundo privado. E nessa injuno que ns
continuamos vivendo at hoje. Eu fiquei pensando nessas idias e me parece
que Foucault, ao mesmo tempo espelha uma determinada concepo da
relao entre o pblico e o privado, entre o Estado e o indivduoque o que eu
gostaria de trazer para vocs. Essa representao se dilata do meu ponto de
vista de Lombroso, das teorias lombrosianas, passando pelo admirvel mundo
novo. A Ana tambm se refere idia do Big Brother... e vai at a um filme que
eu gostei muito - Minority Report - que eu acho que muitos de vocs devem
ter visto. Embora eu no seja f do Tom Cruise, o filme muito interessante,
baseado num romance de um dos melhores escritores de fico cientfica
americanos. O filme muito interessante porque tudo transparente, as
edificaes, os edifcios so feitos de vidro, voc v imediatamente tudo o que
se passa no interior desses edifcios. Nesse mundo, voc tem trs figuras que
so videntes, espcies de sensitivas que ficam numa sala e elas ficam
recebendo impresses de crimes que vo acontecer e, portanto, no s os
prdios so transparentes mas os indivduos e suas intenes tambm so
transparentes, pelo menos para essas figuras. No momento em que elas
antevem um crime, a polcia entra em ao imediatamente e previne o crime.
Isso para mim a representao dessa concepo da maneira mais acabada,
ou seja, o mundo privado fonte de todos os males. Onde o perigo se constri,
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onde o perigo se gesta. Um mundo totalmente transparente, onde o privado
no existe, um mundo da ordem absoluta, um mundo sem violncia, enfim,
sem nenhum tipo de imprevisibilidade. Bem, ns no estamos longe da idia de
Lombroso - que muita gente deve conhecer - s que quem v no so mais
sensitivos que esto prevendo o futuro, mas o prprio cientista que,
examinando o corpo. diz esse indivduo perigoso e fornece um laudo depericulosidade. Eu imagino que os psiclogos, at onde eu conheo da
literatura, ficam nesse drama: essa famlia uma famlia disfuncional, ela vai
ser o melhor, no vai ser, como saber? Continua nessa atividade um pouco de
vidncia. Portanto, ns voltamos para o desconforto. Ento, eu fiquei
imaginando que talvez para pensar esse desconforto seja necessrio
problematizar essa concepo segundo a qual a tendncia do pblico, a
tendncia do Estado, de, na medida do possvel, invadir o privado, esse odevir do Estado, o privado um problema, que o sonho totalitrio. Eu acho
que a gente tem que problematizar e contextualizar essa concepo para lidar
talvez melhor com a prpria prtica dos tcnicos dentro do sistema judicirio.
No se trata, do meu ponto de vista, de jogar fora a criana com a gua do
banho. No h muitas dvidas quanto ao contnuo e progressivo
esquadrinhamento daquilo que a partir do sculo XVIII chamamos de mundo
privado e a talvez a gente v um pouco em direes contrrias. E isso era feito
atravs dos exames tcnicas, segundo Foucault, por excelncia dos experts -
ou atravs da valorizao pblica do mundo privado. Lembrei, por exemplo, do
trabalho da Marisa Corra sobre assassinato de mulheres: um trabalho antigo
da dcada de 1970, onde ela vai mostrar como de fato nos casos de
assassinatos de mulheres por seus maridos, companheiros, etc., nunca est
em questo o ato; o que se julga a vida da pessoa, a vida da mulher. Assim,
se a mulher tem muitos sapatos, por exemplo, isso vai ter um peso no
julgamento do seu assassino. No caso, se a mulher no decente, ou seja, se
sua vid