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6 O lugar beuys A pergunta pelo destino, pelo desatino, da civilização européia tornou-se uma constante, uma veemente obsessão, desde 1945. A contabilidade inicial do prejuízo do mais grave conflito até hoje registrado constrangeu os estudiosos a revisarem suas anotações, antigas ou recentes, sobre os contumazes embates europeus: por que este destino tanto tempo falhado, por que esta porta aberta a tantas tragédias?, pergunta Lucien Febvre. 1 A tarefa ainda não encontrou termo: ações e especulações sobre o assunto registram um crescimento geométrico. Ainda hoje, praticamente todas as áreas do fazer humano exibem reações, honestas ou cínicas, conscientes ou não. Em um determinado trecho de suas emocionadas conferências proferidas entre os anos de 1944-53, Febvre tentou esclarecer a gravidade da questão: ... o problema da Europa ultrapassa a Europa, o problema da Europa situa-se à escala planetária; o problema da Europa é o problema do mundo. 2 Tal afirmação alertava para a extraordinária dimensão do tema, para a urgência do momento, para o destino da civilização, enfim. E, de certo modo, esta é uma das perguntas incluídas pela tese: quem estava, poderia estar, alheio a um problema de alcance planetário? As palavras de Lucien Febvre ainda são necessárias: ... Portanto, antes do mais, há duas tarefas, dois dados fundamentais: [a primeira é] a política (que arrasta a economia e é arrastada pela economia), [a segunda é] a cultura e a civilização; duas tarefas, e ainda é muito, é mesmo esta dualidade que faz a gravidade do problema. ... Vamos dizendo, nós, homens de boa vontade e belas intenções, vamos desolados com tudo o que se tem passado nestes anos, sangrando de todas as feridas do mundo, esgotados, esvaziados por estas sangrias, vamos dizendo: “Sejamos bons europeus!” Sim, temos toda a razão. Sejamos bons europeus. Mas vejamos as coisas a nu. Quem aproveita com isso? Primeiramente, nós, pessoalmente, individualmente. Nós que assim nos alargamos, que adquirimos maior amplitude, uma maior abertura de ângulo em relação ao todo, grandes alegrias de espírito. E talvez a comunidade receba daí qualquer coisa, por nosso intermédio. Mas...ser um bom europeu não é um fim. É um meio. Ser um bom europeu 1 FEBVRE, Lucien. A Europa. Gênese de uma civilização. p. 91. 2 Idem, p. 322.

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6 O lugar beuys

A pergunta pelo destino, pelo desatino, da civilização européia

tornou-se uma constante, uma veemente obsessão, desde 1945. A

contabilidade inicial do prejuízo do mais grave conflito até hoje registrado

constrangeu os estudiosos a revisarem suas anotações, antigas ou

recentes, sobre os contumazes embates europeus: por que este destino

tanto tempo falhado, por que esta porta aberta a tantas tragédias?,

pergunta Lucien Febvre.1 A tarefa ainda não encontrou termo: ações e

especulações sobre o assunto registram um crescimento geométrico.

Ainda hoje, praticamente todas as áreas do fazer humano exibem

reações, honestas ou cínicas, conscientes ou não.

Em um determinado trecho de suas emocionadas conferências

proferidas entre os anos de 1944-53, Febvre tentou esclarecer a

gravidade da questão: ... o problema da Europa ultrapassa a Europa, o

problema da Europa situa-se à escala planetária; o problema da Europa é

o problema do mundo.2 Tal afirmação alertava para a extraordinária

dimensão do tema, para a urgência do momento, para o destino da

civilização, enfim. E, de certo modo, esta é uma das perguntas incluídas

pela tese: quem estava, poderia estar, alheio a um problema de alcance

planetário? As palavras de Lucien Febvre ainda são necessárias:

... Portanto, antes do mais, há duas tarefas, dois dados fundamentais: [a primeira é] a política (que arrasta a economia e é arrastada pela economia), [a segunda é] a cultura e a civilização; duas tarefas, e ainda é muito, é mesmo esta dualidade que faz a gravidade do problema. ... Vamos dizendo, nós, homens de boa vontade e belas intenções, vamos desolados com tudo o que se tem passado nestes anos, sangrando de todas as feridas do mundo, esgotados, esvaziados por estas sangrias, vamos dizendo: “Sejamos bons europeus!” Sim, temos toda a razão. Sejamos bons europeus. Mas vejamos as coisas a nu. Quem aproveita com isso? Primeiramente, nós, pessoalmente, individualmente. Nós que assim nos alargamos, que adquirimos maior amplitude, uma maior abertura de ângulo em relação ao todo, grandes alegrias de espírito. E talvez a comunidade receba daí qualquer coisa, por nosso intermédio. Mas...ser um bom europeu não é um fim. É um meio. Ser um bom europeu

1 FEBVRE, Lucien. A Europa. Gênese de uma civilização. p. 91. 2 Idem, p. 322.

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quer dizer (se não quer dizer nada) ser um bom portador de um ideal. Sim, mas está lá, o nosso ideal não é necessariamente o dos outros. O nosso ideal de europeus não é de fato o ideal dos não europeus. (...) 3

Mais tarde, distante, um outro importante pensador – Eric Hobsbaum

– menos emocionado, resumiu a questão: Sintomaticamente, o século XX

caracterizou-se por um deslocamento do prestígio da visão racional e

científica para as considerações intuitivas, sobre os descaminhos do

mundo, explicitando o permanente esforço sempre renovado de entendê-

lo.4

6.1 Arte em ação Enquanto no outro lado do Atlântico Jackson Pollock trabalhava na

direção de uma arte essencialmente americana, não muito após o fim da

Segunda Grande Guerra surge numa Europa ainda arrasada o

“fenômeno” Joseph Beuys incluindo-se enfático e fisicamente na

operação artística.

Em 1962, Beuys conhece o coreano Nam June Paik e, em fevereiro

do ano seguinte, já apresentava na Alemanha, junto ao grupo Fluxus – no

Festum, Fluxorum, Fluxus –, o seu primeiro environment: Sibirische

Simphonie, 1ª Satz (Sinfonia siberiana – 1º movimento). O próprio artista5

estimava que tal acontecimento, considerada a sua primeira Aktion

importante, já retinha a essência de suas futuras atividades, ao mesmo

tempo em que alcançava a compreensão ampliada do que o Fluxus

poderia ser. O adjetivo “siberiano” introduziu alguns dos parâmetros

fundamentais na arte de Beuys: espaço, temperatura e questões políticas.

Já se encontravam também presentes três dos elementos para sempre

importantes em sua obra: a lousa, a lebre morta e o piano.

Iniciando com a música do francês Erik Satie – Sonnerie de la Rose

+ Croix – para interligar espiritualmente todos os presentes, a exibição

prossegue com o artista estendendo um linha entre algumas plantas

3 Idem. p. 323. 4 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. O breve século XX. p. 12. 5 Neste capítulo, os termos “artista” e “arte” são especialmente impressos em intálico para obter uma melhor articulação no texto uma vez que Joseph Beuys recusa para si o título de “artista”“ e a definição tradicional de” arte” para suas realizações.

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dispostas sobre a tampa do instrumento e a lebre morta pendurada de

ponta-cabeça na lousa – “energia”. Em seguida, instigando a audiência a

repetir uma série de sentenças escritas na lousa, ao lado do cadáver do

animal – “intuições desaparecidas“ –, o artista arranca-lhe o coração.

Como em todas as ocasiões, Joseph Beuys estava abençoado por seu

chapéu de feltro – confeccionado em lã de cordeiro, bem claro –, e

assessorado por seu casaco de pescador.

O episódio torna-se um pouco mais claro se soubermos que Eurasia

(outro movimento da Sinfonia siberiana) é a pátria mítica do artista: “zona

de trânsito de grandes migrações humanas e animais” – e assinala a

reunião de dois blocos opostos no coração da Alemanha. E ainda, os

animais são seres que podem “ir além”, que mantêm uma estreita

“conexão com o além” (literal e figurativamente), transitam da Europa à

Ásia, ignorando convenções, inconscientes das distâncias. Por fim, a

lousa significa disciplina, e as plantas, a natureza, a lebre morta, o fim de

práticas vitais.

Assim, veremos que o peso existencial exigido pelos compromissos

artísticos de Beuys não se afinava inteiramente com o tipo de arte

requerido por Maciunas. Porém algumas premissas libertárias o

mantinham unido ao grupo. Sua poética move-se desde os fragmentos do

romantismo e do expressionismo, passa pelo construtivismo,

redimensiona o experimentalismo e ultrapassa a arte conceitual, já que o

seu fazer “artístico” não visava tão somente evidenciar conceitos, mas,

acima de tudo, fustigá-los.

Ocupadíssimo durante a Segunda Grande Guerra, Joseph Beuys

anotou em seu Curriculum vitae, Curriculum operis 1964, o clima artístico

imediato à catástrofe: 1945, Cleves, exposição de frio. Não perdera

tempo, no ano seguinte, outra anotação já indicava o hiumor que

governaria sua existência: 1946, Cleves, exposição quente.6 Desta data

em diante será esta a arte7 mais ativa em meio aos escombros do

momento e mesmo durante os próximos anos: a matéria-prima foi

6 BEUYS, Joseph. Centre Georges Pompidou, pp. 249-250. 7 Também o termo “arte” será sempre aqui citado com as mesmas ressalvas feitas para a palavra “artista”, já explicitadas na nota anterior.

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garimpada em sua biografia. Suas peças também assimilaram diversos

elementos do cotidiano e prepararam uma disposição diferenciada de

tratar a arte e a vida via arte-vida. Beuys vai discutir em público o

constrangimento de cada indivíduo, a condição de carrasco e vítima de

todos: sua biografia é especialmente colada à história alemã e, por que

não dizer, à européia.

Auxiliado pelos materiais mais banais, cutucando os valores mais

íntimos, o artista ostentava um comportamento agressivo, até. Para os

incautos, tal modo de agir não passava de um “vale-tudo”, uma farsa

destinada ao entretenimento dos bobos, endereçada aos piegas

romanticistas que pesavam nos ombros daqueles que se esforçavam para

reconstruir a nação. Joseph Beuys foi considerado, é ainda hoje, “mais

um idiota avariado pela guerra exposto ao delírio público, afiançado por

um idêntico lapso esquizóide de alguns fracos sobreviventes”.

Atenta a qualquer postura judiciosa que prejudicasse a reconstrução

de sua imagem e, quem sabe, prenunciando o radical “politicamente-

correto” que vitimaria um pouco mais tarde os EUA, a Alemanha deste

momento se mostrou “condescendente” ao fenômeno Beuys, ao “calo

cultural” produzido pela guerra, a sua própria esquisofrenia? Ora, quem se

arriscaria a condenar uma possível vanguarda após o Reich de Hitler

banir artistas e queimar suas supostas “obras degeneradas”?

Militante por excelência, Beuys foi uma eminência expulsa (com

sucesso poético), em 1972, da Staatliche Kunstakademie von Düsseldorf

– segundo o próprio, uma rede empresarial de cultura – , onde ocupava o

cargo de professor de “escultura monumental” desde 1961. Culpadas

foram as lições que reuniam as suas nada ortodoxas convicções didático-

revolucionárias acerca das afinidades entre criatividade e um

(re)aprendizado sociopolítico. E porque o saber deveria ser democrático,

o número de alunos teria de ser irrestrito – Demokratie ist lustig (A

democracia é engraçada) intitula o registro iconográfico desta Aktion

nacional: a fotografia de seu despejo público em meio à policiais.

Um ano depois, o artista institui a Internationale Freiuniversität

(Universidade Internacional Livre). Em 1967, já havia fundado o Büro für

direkte Demokratie (Organização para a Democracia Direta), advogando a

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tese de que a democracia representativa não democratizava, defendendo

a necessidade de se adotar um sistema no qual os cidadãos pudessem

conduzir a sociedade sem delegar a sua soberania sobre qualquer

assunto, por meio de constantes votações.

6.2 O lugar histórico de beuys A pergunta pelos valores contemporâneos é originária: o homem

moderno fora alijado dos conceitos de verdade, unidade e fim8 que

sustentavam o mundo. A contradição a que se vê lançado – suportar o

que não se pode negar – é a tensão que ambienta as vanguardas do

início do século XX. Ampliada pelo mal-estar da Primeira Grande Guerra,

a agonia intensifica-se com a Segunda, quando o homem perde de todo a

convicção de ser o dono absoluto de seu destino. Aos artistas restou

escolher entre uma resoluta participação política ou a evasão para a

América. Como bom espécime da raça, Joseph Beuys decide-se pela

primeira opção.

Este artista alemão vai refletir sobre a ruptura do homem consigo

mesmo, com a sua dignidade: sua obra é o modo de evidenciar

esteticamente o enfrentamento dessa situação de crise, ausência ou

ainda transposição de valores históricos. Beuys não compactua e, menos

ainda, suporta com indiferença tal condição. Pelo contrário, vê a

necessidade de uma nova orientação, mesmo política, para a arte. Sua

obra, então, confunde-se com o homem/artista, uma vez que é nele, como

homem contemporâneo, que nasce a questão que vai objetivar-se em

Aktionen, em environments que efetivam sua própria vivência estética.

Como um vidente, Beuys parece alertar-nos que quando a vida se torna

de todo consciente, a arte desaparece.

Tal transubstanciação arte-artista resulta de um pleno

entrelaçamento com o mundo, é produto de uma completa adesão às

circunstâncias de sua vida. Beuys trata as contradições e as

ambigüidades da atualidade, por assim dizer, com as mesmas armas do

real, gerando controvérsias de ordem moral quanto às suas condutas. O

8 NIETZSCHE, Friedrich. “Sobre o niilismo”. In Os Pensadores. p. 381.

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que é um paradoxo, considerando-se que o artista/homem prima

justamente pela honesta compatibilidade de suas posturas sociais e

realizações artísticas, tornando impossível distinguir ação e paixão.

A reivindicação de uma nova função para a arte pronunciada por

Beuys tem seu precedente em Marcel Duchamp, para quem arte é antes

uma reflexão, um procedimento conceitual, quase uma ética.9 Paulo

Venâncio Filho reconhece no ready-made do francês o limite da arte,

acrescentando ainda que, além do ready-made, ou tudo se transforma em

arte ou a arte desaparece.10 Ora, o pathos estético beuysiano segue

justamente a direção da união de todas as artes humanas. O

expressionismo gerara, de certo modo, uma continuidade aos ideais

wagnerianos de arte total, levando-se em conta que reunira as mais

variadas realizações artísticas em torno de motivações singulares e,

pode-se dizer que Beuys vai retomá-lo no momento em que suas

operações estéticas tomam um intenso caráter multimídia, dilatando

extremamente seu alcance.

Joseph Beuys não pregava a autonomia da arte, mas insistia

justamente na sua não-diferença com o mundo, demonstrando uma

inteligência atualizada, conhecia a sua materialidade. Também recusara a

definição de arte no seu stricto sensu, posto que isto significaria

praticamente um retorno decadente ao academicismo. O que o artista

desejava era a compreensão de um Conceito ampliado de arte,

distanciado dos critérios e protocolos auto-referentes anteriormente

exigidos.

Há muito que a arte fazia parte dos objetos auto-reflexivos,

autotélicos – uma simples reunião de signos –, significantes e significados

que, não se importando com as relações homem-mundo, era decodificada

apenas pelo próprio métier. E só conheceria outra função com Beuys e

mesmo com o norte-americano Andy Warhol, após o segundo pós-guerra,

quando certas disposições amadureceram. Os impulsos que estavam por

detrás da abstração e da art pour l’art não eram apenas de caráter

estético e a arte teve por vezes de assumir estratégias de sobrevivência.

9 VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. p. 9. 10 Idem. p. 72.

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Mesmo a percepção da realidade há muito deixara de ser apenas um

simples captar para se tornar uma função ativa.

Beuys, um legítimo herdeiro do romantismo e do expressionismo

alemão, instalou um tipo de atividade artística sincrônica com a

(des)ordem vigente, que perguntou pelo (não)significado da existência

contemporânea e por suas seqüelas. Recusou o culto da arte como ofício

sagrado ou destino inspirado do gênio, ou ainda como a atividade de pura

e simplesmente agregação de materiais. Renunciando ainda à categoria

de intelectual, sua obra efetiva tão somente sua experiência de homem

europeu por condição e conseqüência. Doravante, a obra de arte não se

definirá por um estilo mas, acima de tudo, por um modo de enfrentar a

realidade, isto é , por um modo de ser – o artista deve ocupar uma

posição central na sociedade: deve questioná-la.

Evocando mitos apenas a título de análise histórica, Joseph Beuys

assume o papel de vate trazendo tensões primevas para o presente. O

estranhamento violento deste embate não ameniza as exasperações, mas

almeja comover para que tais sofrimentos não se calem. A familiaridade

dos signos mitológicos não consola, pede, isto sim, reação ou

transcendência para a aventura existencial contemporânea, um resgate

espiritual para a miserabilidade humana.

O fato plástico assim engendrado vai vibrar sua instabilidade,

inquietação, e sugere guardar poderes ou atributos paraestéticos a serem

desvendados, não nos poupando de uma grande reflexão.

Problematizando as mais novas questões ou mesmo as antigas, lá estão

estampadas permanentes ameaças de catástrofes, tragédias imanentes,

sugestões por vezes apocalípticas que não permitem contemplação

desinteressada: pedem reconciliação e entendimento. Lá encontramos

também inúmeras perguntas sobre uma série de acontecimentos

ocorridos na pátria de Schelling, Beethoven e Goethe.

A arte de Beuys deve ser constrangedora e chocante para induzir os

observadores a saírem de uma contumaz atitude de total passividade

receptiva, transfigurando-se em um autêntico coro trágico. Suas

realizações apresentam momentos sobre os quais se pode pressupor

uma onipotência de quem atua com a certeza de poder construir um

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mundo melhor, onde a arte e o homem-artista tornar-se-iam parte de um

projeto de civilização. A tripla reivindicação função-crítica-reconstrução

para a arte é tradicionalmente um pedido da angustiada Alemanha desde

a sua unificação e Beuys é alemão par excellence. Com ele vemos o

retorno do anseio romântico de totalidade e a arte voltando a responder

pela cultura.

Joseph Beuys vai, assim, reposicionar a envergonhada Alemanha do

segundo pós-guerra, novamente em evidência no circuito internacional de

arte e cultura, posto ocupado hegemonicamente, desde a ascensão do

nazismo, pelos EUA. Daqui por diante a arte não poderá ser o que foi até

então e muito menos o homem europeu. A atividade artística deverá ser

ordenada, construída de tal forma que seja resposta imediata à dispersão

– objetos ansiosos, problemáticos por excelência.

Tais questões ultrapassaram os limites morais básicos, tais licenças

extrapoéticas encostaram-se aos fundamentos éticos na medida em que

perguntam pelo que será da arte em uma sociedade que permitiu o

genocídio. Outro nó a se resolver será o do fracasso reformista e o dos

ideais social-democratas pretendidos inicialmente pela Bauhaus, que

previam uma sociedade sem classes, não obstante privilegiaram o artista

incumbido da tarefa de projetá-la.

6.3 A crise européia Já nos referimos às semelhanças entre o pensamento de Edmund

Husserl e o de Joseph Beuys – ambos parecem alertar constantemente

sobre a confusão que afeta as relações de método e de conteúdo entre as

ciências da natureza e as do espírito que se tornam insuportáveis. O

fracasso das tentativas de nos aproximarmos do espírito acirra o duro

embate com o real que temos diante dos olhos, desgovernado e

desprovido de sentido: um “irracionalismo” como culto da liberdade do

espírito. A perda da espiritualidade, isto é, da autocompreensão do

espírito, significa a perda da totalidade e uma conseqüente ameaça de

barbárie objetivista.

Conferimos isto com a obra denominada Capri-Batterie (1985), na

qual Beuys coloca lado a lado uma laranja e uma lâmpada, apontando a

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“oposição” “natureza” x “luzes” via semelhança formal. Critica,

simultaneamente, o “esclarecimento” que teria distanciado o homem da

sua própria natureza e afirma a “luminosidade” da fruta. A peça traz a

suspeita do artista de que a alta incidência do mal-estar que caracteriza o

nosso tempo como a Era da Ansiedade seja produto de um possível

fracasso da mitologia e do ritual em funcionar efetivamente em nossa

civilização.11

O experimentalismo de Joseph Beuys vai deixar evidente a sua

ruptura com alguns conceitos do passado – sua obra é “projeto”, e

“futuro”, o alvo do empreendimento. A experimentação visa sempre

verificar a existência – o “ser” da arte. À maneira de Husserl, Beuys não

parte da própria idéia ou conceito de arte para verificá-la, assim como o

pensador não parte da noção de natureza ou de um determinado conceito

de lógica para fazer sua filosofia científica. Beuys procura não somente

“alterar velhos limites”, mas também aponta outros.

Em Difesa della natura, environment de 15/5/1984, Beuys vai

encarnar o pastor, aquele que guiava a tribo de nômades, sempre em

movimento (Bewegung), aqui substituída por homens urbanos, europeus

ou não, incluindo vários artistas, seus contemporâneos, ou alunos como

Anselm Kiefer, Jörg Immendorf, Palermo, A. R. Penck, Georg Baselitz ou

Nam June Paik, entre outros, assim como estudantes e militantes.

A atuação de Beuys lembra a de um xamã, o guardião das tradições

de um povo, uma espécie de sacerdote não entronizado oficialmente e

dotado do poder de comunicação entre as forças superiores e inferiores.

O xamã era o intelectual que tinha o poder de prever situações

ontológicas. As associações que o consideravam guia espiritual não

nutriam a idéia de verdade absoluta, não eram monoteístas, e menos

ainda concebiam um Estado ocidental.

O registro fotográfico da Aktion Kukei, Akopee – Nein! , Braunkreuz,

Fettecken, Modellfettecken (1964) pode esclarecer o curto-circuito

provocado pelo artista: lá está a imagem de um homem de olhar firme –

no “horizonte” –, com a mão direita levantada – “guiando” – e a esquerda

11 Joseph Campbell. As máscaras de Deus. Mitologia primitiva. p. 84.

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empunhando um “amuleto”. O “visionário” sangra pelo nariz como

resultado natural de um grande esforço, da pressão exigida por sua

missão. As questões do artista são, óbvio, mais pertinentes à estética do

que à religião como temos em conta – reverência, temor, adoração e

obediência: a persona, o estado de “transe” é, de fato, mais um recurso

poético beuysiano, um sintoma de quem vive a aventura contemporânea

com uma lucidez aguda.

Cumpre esclarecer que o happening pôs em convulsão os presentes

a tal ponto que Beuys foi agredido, fisicamente inclusive, causando o

sangramento. O episódio foi “aproveitado” pela performance, caindo feito

uma luva no final das contas. Incorporado, como vimos, ao tipo dramático,

também comprovou a eficiência de sua linguagem: o guia espiritual, o

artista, o professor, curiosamente, estava entre estudantes – ensinando a

reagir. Nada escapava a sua arte ampliada: o espaço da apresentação

era o Instituto de Tecnologia, situado em Aachen (ou Aix-la-Chapelle),

cidade de Carlos Magno. E a data da Aktion, 20 de julho de 1964,

marcava os vinte anos do atentado sofrido por Adolf Hitler nesse mesmo

local.

Joseph Beuys assume então o encargo de “educar o povo“. Aliás,

diga-se de passagem, uma atitude tipicamente germânica, a de supor que

pode e deve ensinar o mundo a viver. O que nos reenvia para as lições de

F. Schiller acerca d`A educação estética do homem, que, não por acaso,

encontra eco nas Aktionen de Beuys: Todo homem individual, pode-se

dizer, traz em si, quanto à disposição e destinação, um homem ideal e

puro, e a grande tarefa de sua existência é concordar, em todas as suas

modificações, com sua unidade inalterável.12

A mobilização dos espectadores é ponto positivo. O longo período

de tolerância chegara ao fim. As autoridades passaram a intervir com

truculência. E, foi-se o tempo em que a sociedade desviava sua atenção

dos episódios estranhos, que sopravam um não sei o quê sobre

mesquinharia, soberba, inércia, dentre outras sugestões incômodas. Até

quando seria possível conviver com os flagrantes de Joseph Beuys,

12 SCHILLER, F. A educação estética do homem. p. 32.

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manter o pacto de silêncio na condição de ocorrências próprias a um

neurótico de guerra – e quem não era? Daí o sucesso do esforço e

persistência de Joseph Beuys.

E outra vez cabe aqui recordar Marcel Duchamp em uma declaração

sobre a importância das relações que afetam o espectador e o artista, o

indivíduo e a coletividade: o artista não cumpre sozinho o ato de criação,

porque é o espectador que estabelece o contato da obra com o mundo

exterior decifrando e interpretando suas qualificações profundas e, desse

modo soma sua própria contribuição ao processo criador.13

Beuys vai confrontar natureza, civilização moderna & dinheiro na sua

célebre Aktion denominada I like America and America likes me,

executada em maio de 1974. O artista se fecha durante três dias em uma

galeria de Nova York (René Block) junto a um coiote – animal deificado

pelos índios norte-americanos –, que constantemente urinava em um

exemplar sempre atualizado do Wall Street Journal, publicação

especialmente dirigida ao público que lida com operações financeiras. O

artista vai polemizar com a ciência, a economia e a tecnologia, que, ao

performarem um grande salto qualitativo desde o final do século passado,

somaram-se às oportunidades ofertadas pelas duas grandes guerras e

identificaram-se fortemente com o poder político.

A pedagogia criativa de Beuys, sua eloqüência verbal e artística

colocam-se frontalmente contra o “silêncio” de Marcel Duchamp. O artista

francês é criticado duramente em uma Aktion intitulada Das Schweigen

von Marcel Duchamp wird überwertet (O silêncio de Marcel Duchamp está

sendo superestimado) de 11 de novembro de 1964, na qual o alemão

afirma que o artista francês estancara no exato momento em que estava

por desenvolver uma importante e verdadeira teoria da arte. Discordando

do conceito de “antiarte” desenvolvido por Duchamp, já que o considera

apenas estagnação e não exatamente um conceito, Beuys imagina-se, de

certa forma, continuador de sua obra. Vai concordar, no entanto, no que

tange à contestação da arte reconhecida pela sociedade como digna de

valor, mas, ao contrário do francês que não nutria ambições didáticas,

13 VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. p. 75.

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pretende corrigi-la. À bicicleta de Duchamp – La roue de bicyclette (1913)

–, que não vai a lugar algum, Beuys contrapõe a sua arte-veículo que

pretende a todos alcançar.

As realizações de Beuys constituem formas visíveis desta mesma

filosofia que prega a necessidade de uma radical mudança de condição

social feita à base de transformações espirituais. O ser humano, assim,

seria alavancado a uma etapa superior de vida na qual o talento criativo, a

autodeterminação e a restauração do equilíbrio e da harmonia teriam

papéis fundamentais em uma nova sociedade renascida do caos. O

artista pede a concentração de todos na direção de um estágio espiritual

elevado, tão aguardado para o terceiro milênio, consoante a antroposofia

de Rudolf Steiner. Liberdade e criatividade são noções inseparáveis em

Joseph Beuys:

Quando o homem permite que a sua vida se converta em algo desértico e vazio, por perder sua relação com o supra-sensível, não somente destrói dentro de si mesmo algo cuja morte no final pode levar ao desespero, ou então pela sua própria debilidade chega a ser um estorvo para a evolução de todo o seu entorno.14

O uso recorrente de materiais provenientes das abelhas nas

realizações de Beuys alude a uma sociedade que transforma

coletivamente, através do trabalho organizado e democrático, o caos em

ordem, materiais maleáveis em esculturas funcionais ou em esculturas

cristalinas como as produzidas por aqueles insetos. Outra vez mais

assinala-se a influência do pensamento antroposófico de Steiner. Este,

em artigo intitulado Über Bienen (Sobre abelhas, 1923), descreve a

exemplaridade da sociedade das abelhas, chegando mesmo a propô-la

como modelo a ser empregado pelos homens. O homem deve ser

glorioso no seu poder e beleza, jamais atuando irascivelmente para a sua

autodegeneração.

Em Wie man dem toten Hasen die Bilder erklärt (Como explicar arte

a lebres mortas), Aktion de 1985, Beuys fala da irrelevância da

explanação sobre a arte (os homens sabem mesmo o que é arte?) e,

14 STEINER, Rudolf, citado por SEYMOUR em Beuys, Klein, Rothko. Profecia y transformación. p. 28.

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pedindo uma nova racionalidade advinda das atividades do espírito, elege

o mel e o ouro como elementos que inspiram os sentimentos de

transformação e mistério na sua criação e origem. Imagina que através

deles a inteligência possa ser regenerada.

O emprego de materiais orgânicos como a gordura e o mel deve-se

ao caráter instável dessas substâncias naturalmente caóticas e

indeterminadas. Influenciáveis pelo calor e pelo frio, permanecem em

contínuo processo de transformação. Através delas, o artista sonda o

conceito que produz formas, procurando fazer refletir sobre a matéria

anterior à forma, ou melhor, antes de ser in-formada. A matéria, vista

desta maneira, é pura potencialidade a ser percebida, assim como as

nossas, observadores. A obra visa à pulsação mais íntima do material e

isto fica bem exemplificado em Stuhl mit Fett (Cadeira com gordura,

1963). A cunha decidida pela gordura pressionada contra o ângulo gerado

pelo encontro do encosto com o assento da cadeira designa uma força

que dá forma ao indeterminado, bem como desafia a disciplina imposta

pelo objeto civilizado “cadeira”. O transtorno da matéria exibe a densidade

e a qualidade do que está jogo: a arte agora é meio e fim. Beuys lida com

um tipo de arte que evoca o mito como uma chamada à ordem espiritual:

deseja o espírito tomando consciência de si.

O equilíbrio, segundo Beuys, deve ser conquistado já que inexiste na

realidade: para tanto, sugere o modelo do equilíbrio ecológico. Isto é fazer

o que o artista chamava de “escultura social”, produto de uma forma de

pensamento que privilegia a intuição, dignificando-a como a mais alta

forma da razão – denken ist Plastik (pensar é esculpir) – resumia,

questionando as operações da razão. O modelo de sociedade proposto

por Beuys é uma empresa coletiva/não-coletiva como organismo de uma

humanidade composta de indivíduos que estão relacionados ao mesmo

tempo em que separados, na qual cada um é chefe de si mesmo e,

portanto, de sua liberdade – todo homem tem um sol dentro de si – sem

abrir mão das inter-relações.

Se todo procedimento é formalizador, todos produzimos formas,

portanto somos todos artistas desde sempre. Como Duchamp, Beuys

torna-se um dispositivo artístico e ambos vão concordar uma vez mais

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sobre as inter-relações afetadas pela arte: Todos através de Duchamp

faziam arte. Estavam implícitos em seus procedimentos uma supressão

de si mesmo enquanto indivíduo particular e a manifestação de impulsos

anônimos e coletivos.15 Por sua vez, Beuys afirmava constantemente que

Jede Menschen ist ein Künstler – todo homem é um artista (versão

contemporânea de todo homem é um poeta, de Novalis?).

Há, sem sombra de dúvida, algo do âmbito do incompreensível na

obra de Beuys, uma certa impenetrabilidade, embora o artista apresente

freqüentemente imagens ou relíquias do seu processo de criação – veja-

se as Vitrines. Associados a lembranças autobiográficas, onde o passado

se faz presente pedindo futuro, os materiais recorrentes que emprega

tornam-se autênticos talismãs: vida e obra são ferramentas para a

consagração da existência humana. Lidando com um modo de evidência

estética que rompe com o belo-contemplação e que emancipa o escultor

da forma. Beuys usa materiais miseráveis, banais, e até indignos –

gordura, feltro, cobre, sangue, ossos, enxofre, animais mortos ou vivos,

mel etc, ou seja, não-civilizados. A matéria efêmera, deformante, afronta a

clássica eternidade do mármore – à sua nobreza, afere-se o material de

consumo rápido, refugos da sociedade.

A busca pela alta espiritualidade é característica germânica: um

instrumento constante de sua luta – veja-se Goethe, Grimm,

Schopenhauer e, principalmente, Wagner, que tão bem entendera a

grandeza das formas simbólicas, e ainda toda a exaltação do romantismo

alemão. Beuys fala-nos sobre a capacidade de transformar a vida

cotidiana em espiritualidade através da inteligência transformadora do

homem que tudo pode desenvolver, o Belo e o Bem: transformações que

devem contribuir para a evolução do homem e de sua obra.

Como no antigo paganismo de sua gente, o homem é o verdadeiro

herói e Beuys está interessado na sua soberania: pensar é digno de reis –

ou seja, cada um deve procurar sua própria racionalidade. O animalis

homo foi substituído pelo sapiens e assim pode criar os meios

necessários para gerar limites – a religião, a cultura filosófica e a política,

15 VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. p. 22.

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por exemplo – e assim todos, e não só os mais fortes, garantiriam espaço

de sobrevivência, mas agora é a sua própria racionalidade que demonstra

falência de organização e emprego. Beuys pergunta simultaneamente

pelos condicionadores culturais e pelos valores dispostos para além da

faculdade racional.

A biografia de Beuys é, sem dúvida, fons et origo de seus insights.

Apenas a privação e o sofrimento podem abrir a mente do homem a tudo

que está escondido dos outros.16 O artista, ao participar de uma espécie

de ritual primitivo de “renascimento” junto aos tártaros,17 tem o corpo e a

mente transtornados pela dor, momento que será sempre presentificado

através de adereços, roupas ou pinturas, assemelhando-se ao processo

ritualístico de iniciação xamanística. Em Badewanne (Banheira, 1960),

Beuys exibe simultaneamente seu nascimento e renascimento, as feridas

psíquicas e físicas decorrentes destes fatos, como também alude às

cicatrizes da Alemanha e mesmo da Europa.

O homem que passa pelas provações torna-se, de certa forma,

“mais forte que a morte”, alcançou a “cura” e “poderes” através da arte.

Doravante terá que transmitir a experiência aos seus. Ao evocar e

organizar energias vitais semelhantes àquelas que Beuys necessitou, fez

a arte (re)adquirir, desta maneira, predicados terapêuticos. Assim, é

possível enxergar os seus materiais como puro potencial enérgico em

repouso. É legítimo afirmar que a afinidade de Beuys com o primitivo e

com mítico resulta de um êxtase dionisíaco no qual o religioso é

substituído pelo profético ou mágico, tornando-o intermediário entre

microcosmos e macrocosmos. A mitologia atuaria portanto no registro de

um mesocosmos.

A atividade artística de Beuys é plena de símbolos, porquanto a arte

em “conceito ampliado” tem uma natureza energética em completa inter-

ação com o mundo. Pretendendo a reconquista dos valores históricos, o

artista imagina que a arte possa vir a ser obra da própria verdade,

incorporando-a ele mesmo, Beuys. Suas obras, em essência, submetem- 16 CAMPBELL , Joseph. As máscaras de Deus. Mitologia primitiva. p. 56. 17 Em 1940, Joseph Beuys tornou-se piloto da Luftwaffe. No inverno de 1943, em uma missão na Criméia, sua aeronave foi abatida. Gravemente ferido, foi socorrido pelos tártaros, aliados dos nazistas, que empregaram métodos primitivos na sua recuperação.

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se às suas próprias experiências de mundo. Consoam ao modus

operandis duchampiano, cuja obra máxima Grand verre consiste em um

somatório de experiências de caráter existenciais do próprio artista,18

assemelhando-se a um totem, pois totens são espécies de árvores

genealógicas de parentesco humano e animal, real e mítico.19 Tanto o

francês como o alemão dispõem de uma mitologia individual que servirá

de fundamento a um conhecimento universal.

6. 4 Obra e mitologia O mito, “linguagem genética de um povo”, é carga de vida antes de

se tornar cultura, civilização ou história. A poética do mito faz um povo

distinguir-se da natureza, reverenciando-a. Beuys vai dizer que o mítico

significa o segredo não declarado da vida. Ele é agora o trouvadour que

nos revela o mundo oculto pelo cotidiano e o espetáculo do qual

participamos sem perceber. Ela [a mitologia] nos ilude com a ressonância

de um sentido profundo, sempre escondendo e jamais exprimindo

esclarece Schelling, e acrescenta ainda que o atrativo próprio reside no

fato de ele [o conto] nos simular ou mostrar à distância um sentido que

continuamente se retrai e o qual somos obrigados a confessar sem, no

entanto, poder alcançá-lo.20 Este sentido potencial do mito é semelhante à

verdade; pertence aos hábitos de tempos melhores, livre do terror

religioso, num ateísmo alegre e ingênuo. Os mitos devem pertencer à

ordem natural e não ao sobrenatural como nas Escrituras: as

representações que se associavam à natureza há muito se obscureceram,

tornando-se tão somente religiosas.

O artista não prega uma funcionalidade para o mito, e sim a eficácia

deste estímulo, não permitindo a repressão de seus impulsos. A idéia

encarnada torna-se símbolo. Assim é com os mitos, assim é com a arte

de Beuys – mensagem cifrada de significações abstratas e concretas

simultaneamente próximas e distantes. O artista procura os significados

atemporais que estranhamente vão concordar com o aqui e agora. O

18 VENÂNCIO FILHO, Paulo. Marcel Duchamp. pp. 45-46. 19 Idem. p. 60. 20 SCHELLING F. W. J.. Introdução à filosofia da mitologia. p. 74.

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maravilhoso torna-se natural porque os deuses, intervindo nos assuntos

humanos, pertencem ao mundo real deste tempo e concordam com a

ordem das coisas acreditada, sintonizando-se com as apresentações que

lhe pertencem.21 Através dos mitos, temos a possibilidade de considerar

sobre a existência, suas causas e conseqüências, paradoxos e

ambigüidades, trazendo novas possibilidades para o real. Assim é que o

prazer espiritual, mítico ou religioso, assemelha-se ao prazer estético

desinteressado.

O romantismo há muito havia alterado a visão clássica do

“verdadeiro”, passando a aceitar a noção de “sentido”, incorporando-o aos

conteúdos culturais através da análise simbólica. O pensamento

romântico pretendia compreender a totalidade das significações e os

códigos não apreensíveis pela ratio valorizada pelo classicismo. Para se

dar conta do oculto, o homem do romantismo necessitava de um modelo

transcendental de pensamento – uma espécie de reorganização dos

sinais de estímulos antiqüíssimos.

O símbolo e suas traduções, interpretações ou decodificações,

constituía, então, o método romântico de ver a existência. O arquétipo

ajudará a mentalidade desses homens na análise dos conteúdos

culturais, a sua busca de sentido na mitologia, para a formação de

modelos explicativos históricos. A mitologia, desde o romantismo,

consiste, então, em um conjunto imagético, em um agrupamento de

símbolos concebidos de forma a possibilitar uma leitura transcendente do

sentido da vida: símbolos que devem inter-agir formando incessantemente

conexões para propalar seus efeitos de verdades.

A idéia de totalidade compreendia sujeito e objeto, natureza e

espírito, nada teria sentido isoladamente. A arte para Schelling, por

exemplo, ocupa posição privilegiada uma vez que a inteligência estética é

formalizadora, criadora de mundos. A obra de arte dá acesso ao Absoluto

porque nela se anulam oposições e se exprime a identidade dos

contrários. Na filosofia de Schelling, o sentido do mito não é exterior a ele,

não deve ser procurado fora dele, o registro das decodificações

21 Idem, sobre os contos de Goethe.

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mitológicas é o da tradução ou de desvelamento. Não sendo alegoria,

segundo o próprio pensador, ele é uma tautegoria: A mitologia não é

alegórica: ela é tautegórica. Para ela, os deuses são seres que existem

realmente, que não são uma outra coisa, que não significam outra coisa,

mas que significam somente aquilo que eles são.22

Nos desenhos de Joseph Beuys figuram o oculto, imagens

ostensivamente primitivas, parcela de irracionalidade humana camuflada

pelo racionalismo da era moderna. São projetos para futuras Aktionen

que, por sua vez, são também projetos. Estes papéis resultam de um

processo artístico que são parte da experiência de imprimir exprimindo

transcendentalmente o sagrado e, na seqüência, guardam manchas que

celebram forças primordiais. Trata-se de entidades quase orgânicas,

proteiformes, por vezes indiscerníveis e que têm urgência em reconciliar o

homem com a sua realidade circundante.

O primitivo xamã transfigura-se em artista, no nível mais alto do

desenvolvimento civilizatório: interpenetrando passado e futuro, ambos

cumprem papel pedagógico na sociedade (já foi comentado que as lousas

negras eram os verdadeiros quadros de Beuys), mostrando que tanto a

intuição quanto o conhecimento são dádivas sagradas. Formando

espaços de interesse estético, os desenhos de Beuys constituem

manifestações do espaço mágico divino, convites para que se

experimente a coligação de natureza, arte e vida, como em uma caverna

neolítica.

Observando por este ângulo, o desenho é uma linguagem auxiliar

para o rito vital. As manchas pictóricas, em sua maioria negras ou sépias,

são irredutíveis. Rudimentares, provocam a leitura apoiada nos registros

pré-culturais que não se deixam apreender intelectualmente e que

atingem tão somente a alma desavisada, inspirando os desejos mais

humanitários, atávicos mesmo, familiares à consciência de grupo.

Suprimindo a idéia de individualismo, caracterizam uma sofisticada

sabedoria arcaica. O vocabulário é elementar, com imagens de uma

significação ampliada, abertas ao questionamento constante pelo

22 F. W. J. Schelling. “Introdução”. Os Pensadores. [V. nota 8]

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indivíduo comum: o Leitmotiv é o homem e a sua origem – kosmos, ou

seja, a matéria-prima do mito. São pensamentos, rabiscos que falam ao

homem ainda indistinto do kosmos, participante no seu próprio devir ou

mesmo da sua eterna Gestaltung. Pálidas pistas para antigas e íntimas

expectativas.

As configurações teriomórficas, de extraordinária plasticidade,

surgem carregadas de referências históricas, de significados mitopoéticos

ou puramente autobiográficos. Por vezes parecem autênticos símbolos

existenciais, signos abertos, racionais e sempre relacionais. Podem,

também, apresentar veados, renas, hienas, raposas e ainda o chacal

(cuja índole e forma assemelham-se ao do coiote americano)

provenientes da floresta germânica, imagética de tradição regional.

Surgem figurados em traços rarefeitos que passam a idéia da delicadeza

do sentido buscado, a fragilidade da identidade que se dissolve a todo o

momento para se recompor no instante seguinte. Reúnem imagens

fugidias e esquálidas de uma parte da memória mística do mundo,

existem em algum lugar e aspiram a reatualização de uma experiência

anterior: melancolia e êxtase alternam-se numa única imagem.

A fluidez dos traços e a debilidade dos contornos dos desenhos de

Beuys transmitem tão somente significados – inexistem propriamente

conteúdos –, estrutura primária a ser desvelada pelo espírito desarmado e

somente por este, posto tratar-se apenas de alusões fragmentadas e

difusas. Puros elementos ritualísticos e, por isso mesmo, originários,

guardam o caráter formal da inconsistência racional, são intuições em

estado bruto: material escondido na base do caráter.23 O animal ali

configurado é o alimento. E esta é a forma de manipular os deuses

ocultos nos objetos naturais através de seus símbolos.

A possibilidade de uma interpretação das manchas ou das

anotações aparentemente acidentais de Beuys parece, à primeira vista,

por demais pessoal. Porém a suposta subjetividade do artista se pretende

a mesma do seu povo, povo da terra, das intempéries e lutas ou dos bons

tempos dos anseios românticos. São, ao fim e ao cabo, “idéias étnicas”

23 Götz, Adriani. Drawings, objects and prints. p. 12.

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(Völkergedanke) tangíveis em imagens, reconhecíveis universalmente

porque são manifestações locais das “idéias elementares”

(Elementargedanke) da humanidade,24 nunca vivenciadas em estado

puro.

As suas cores são terra, preta, orgânica, pigmentos primários,

matéria-prima (Urstoff) mesmo de vida, (re)apresentação pura, que não

detém a plasticidade da substância, antes atua antropologicamente para a

afirmação de um espaço real, de caráter fortemente antiurbano,

conjurando o espírito da terra (Erdgeist), sem guardar qualquer

consideração pelo tradicional efeito estético.

O aspecto eternamente provisório e experimental de suas obras

reflete a maleabilidade que Beuys espera e deseja alcançar para uma

estrutura social alternativa –um pedido para que se dê atenção aos sinais

nebulosos enviados pela intuição humana. Sempre aguardando

intercomunicações de energias vitais, apostando no eterno prevalecer

sobre as tendências destruidoras e mortais. O informe e o etéreo parecem

propor o direito à liberdade intuitiva: porém são formas de precisão

apenas impressionistas e, no entanto, extremamente eloqüentes que,

contraditoriamente, prescindem de comentários, já que sempre foram de

alguma forma identificadas, sentidas e até temidas. Estas formas são

apenas indícios de situações. Apelando para o déjà vu da mente, trata-se

de imagens primárias (urtümliches Bild). São conteúdos sem formas fixas,

conservando o aspecto de inacabados, surgem constantemente em

transformação, como o homem e os materiais de suas argumentações

artísticas.

Inexiste qualquer vestígio do Belo mediterrâneo, suas cores ou seu

erotismo, posto que o trabalho de Beuys é um reendereçamento do

Romantismo: são seqüências pictóricas simbólicas ou condensações

sintáticas25 que se remetem sempre à Alemanha em um curioso processo

autogerador do espírito germânico. Temos, isto sim, uma metáfora da

beleza contemporânea que concorda com Kenneth Baker ao descrevê-la 24 CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus. Mitologia primitiva. p. 40, citando Adolph Bastian (1826-1905) que por sua vez foi fonte para Jung no desenvolvimento da idéia dos arquétipos. 25 GÖTZ Adriani. Drawings, objects and prints. p. 35.

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como sendo da ordem de uma beleza latente, isto é, um medo de perder

a realidade crua de nossa existência,26 identificada nos traços robustos

que eventualmente marcam graficamente a presença do homem/artista,

mais um indivíduo privado de sua própria integridade, apenas um

fragmento de realidade não-industrial.

Os objetos de Beuys carregam uma concentração de verdade

interior somente apreensível de maneira sinestésica, uma vez que são

aspectos táteis, sensoriais, de fenômenos que pedem a

transubstancialização da realidade em fé, sem consentir alternativa. É

este complexo energético e pulsante que mostra o indizível e traz à luz a

função simbólica e que, à maneira da mitologia, faz a transmissão das

formas pela qual a Forma-das-formas sem forma pode ser conhecida.27

Paradoxalmente são objetos numênicos que, embora reconhecíveis, não

permitem outra apreensão do seu nexo que não seja através dos

sentidos.

Beuys vai estimular a sensibilidade e a percepção dos homens para

além dos cinco sentidos biologicamente conhecidos, acrescentando a

eles os sentidos vital, o espacial, o temporal, o cinético, o estático e ainda

o térmico. Por exemplo, a obra Das Rudel (O bando, 1969), na qual é

possível verificar que o bando, composto de cerca de 20 trenós-animais,

cada qual carregando um rolo de feltro (para aquecer), gordura (para

alimentar) e uma lanterna (para guiar), está em permanente movimento,

ou seja, parece sair incessantemente do automóvel-ambulância. O artista

dispôs com tamanha precisão os objetos que é constante a impressão de

estarem em permanente movimento: transmitem, assim, o sentido de

urgência, atitude perfeita de um grupo de resgate de emergência, pronto

para intervir, invadir ou escapar.

Também em Pligh (Transe, 1958-85), muito embora o título seja

complementar, como em toda a produção de Beuys, é possível

experimentar, graças à monumentalidade da obra, de proporções

arquiteturais, sensações que vão, contínua e alternadamente, do temor ao

conforto pleno. O feltro enrolado, disposto em colunas, envolvendo

26 BAKER, Kenneth. “Um uso para o belo” in. Revista Gávea nº 2. p. 105. 27 CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus. Mitologia primitiva. p. 57.

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totalmente o ambiente, a sonoridade do instrumento sufocada pelo

mesmo material, admite conotações simultâneas tanto de material de

isolamento (solidão, abandono), como de proteção (calor). A

impossibilidade de apreender o sentido, colocar um conceito final no

logos, é semelhante à realidade, é o arrebatamento da pura experiência

inefável unicamente oferecida pelo sublime contemporâneo, incapacidade

de expressão, perda de si mesmo.

6.5 Logos e diálogos A obra de Beuys é falante, nunca pára de falar, procura uma via de

acesso à verdade, corporificando-a mesmo. Deste modo, seria lícito dizer

que o que Beuys faz é Instalação Verbal, com a qual busca argumentar

sobre o fracasso de um mundo que sobrevive a si próprio. A obra é o

veículo para um diálogo com o homem, para que se efetive o resgate

espiritual por ele aguardado. É sua própria voz que fundamenta espaços,

isto é, in-forma, é abertura de sentido e, portanto, ação/verbo. O espaço e

o espaçar vêm a ser a mesma coisa – possibilidades de sentido que

dizem os aspectos irredutíveis na relação homem/mundo, pois se dão ao

mesmo tempo (não há apropriação de um pelo outro – sujeito x objeto). O

sentido, assim definido, deve ser entendido como origem (possibilidade)

do homem/mundo. Se o espaço é sentido, então ele logos – linguagem –

fenômeno originário do homem de habitar em meio ao sentido. A

linguagem vai sempre se efetivar porque o homem é o ser-sentido – e é

seu originariamente o ser uma provocação (diá-logos).

O que se reivindica para a atividade artística beuysiana como um

todo é que ela seja da ordem de um lugar/espaçar, doação de sentido

para quem a experimenta. Nas sábias palavras de Martin Heidegger:28 o

espaçar instala o livre, que se abre para o homem estabelecer-se e

habitar. A “obra” de Beuys é, portanto, doação de lugares – possibilidade

de sentido.

A criação se dá a partir da palavra, da formulação do nome. O

discurso de Beuys torna-se assim escultura em franca oposição à

tridimensionalidade da escultura clássica. O artista afirmava 28 HEIDEGGER, Martin. “Arte e Espaço”. In Arte e Palavra nº 2. p. 93.

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constantemente que a linguagem é para mim a primeira forma de

escultura, cujos princípios, desde o tempo do Grupo Fluxus, são sociais,

nunca puramente estéticos. Com o grupo, Beuys atuou entre 1962 e 1965

em diversas Aktionen, nas quais os materiais utilizados eram de origem

estritamente existencial, jamais mercadorias consumíveis. Como base de

pensamento, o Fluxus encontra no movimento de Heráclito a sua

motivação, e nos materiais não ortodoxos e até mesmo rejeitados pela

sociedade a simplicidade e a flexibilidade com que pretendiam arquitetar

uma mudança na consciência visando a uma nova engenharia social,

liberta de dogmas ou de cânones preestabelecidos.

Assim como os materiais, rejeitados são os próprios homens, agora

abandonados à própria sorte. Fluxus pensa na arte dialogando com o real

e o espaço não mais como uma entidade geométrica fechada, mas como

dimensão de vida. Arte e artista tornam-se modelos de comportamento

(ou de persuasão?) estético em contraposição às normas de coação: daí

a ostentação pública da operação artística, a improvisação de

acontecimentos espetaculares, a participação física nas Aktionen, e, no

caso muito particular de Beuys, a linguagem tornando-se elemento

fundamental. Acrescentando, pode-se dizer, uma quarta dimensão à

escultura, na qual os gestos são as formas e o comportamento, o

conteúdo. O entusiasmo, a imaginação e sensibilidade são suas

heranças, suficientes e legítimas, legadas pelo romantismo.

Buscando equivalência entre arte e mundo, seu logos é antes

político, que vai se evidenciar plasticamente. O discurso, a palavra, a

linguagem como um todo são partes integrantes e indissociáveis de sua

obra. Como na época das religiões antediluvianas, quando o sacrifício

adquiria condição de linguagem, ou ainda nos tempos da barbárie

teutônica, quando a brutalidade selvagem instauraria o reino dos homens

livres. Para os povos primitivos, a arte não tinha o caráter de atividade

individual, ao contrário, era justamente coletiva, transmissão, irradiação

de cultura e liberação de forças políticas – aproximando-se, desta forma,

do pedido de Beuys no seu “conceito ampliado de arte”. O artista funde

teoria de arte com o próprio fazer, desejando ocupar uma posição central

na sociedade, deixando a arte de ser expressão dela mesma, para atuar

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em um co-pertencimento arte-vida, estendendo suas fronteiras e sua

abrangência, rompendo em definitivo com o projeto do Modernismo.

Ora, forçar os limites da arte é por si só ampliá-la. A emergência de

Beuys como artista se prende justamente ao caráter autêntico da sua

obra, que, ancorada em uma experiência pessoal e intransferível, não é

conscientemente controlável. O mito vai possibilitar a sintonia entre o

pessoal e o universal, na tentativa de estabelecer dia-logos plásticos.

Descrente da arte como objeto, ela se transforma em puro ato poético, a

integridade de suas realizações é a verdade do vivido, verdade biográfica

e geográfica. Crê, isto sim, na sua própria experiência pessoal e no seu

relacionamento com o mundo, como ramificações biomórficas. O artista

chegava mesmo a impregnar de odores suas mãos e suas vestes para

demarcar lugares, à maneira dos animais. A Aktion, como o ritual, é

mitologia vivificada, qualificação de ambiente.

Assim como já o era para Marcel Duchamp no início do século, a

arte não tem mais um fim em si e será Beuys que levará a cabo, mais do

que qualquer outro artista, o processo de desestetização iniciado pelo

francês, colocando-a antes a serviço, para que possa ela mesma dialogar

com a sociedade, usando-a, portanto como linguagem, que comunica,

critica o passado e projeta o futuro. É arte feita “para” e “na” sociedade. A

sua esteticidade será, portanto intrínseca ou não será.

O Belo com Beuys será uma emanação do Ser, a irradiação do

desvelamento do Ser.29 O desvelamento aqui é a persuasão de uma obra

que discursa e, desta forma, remete a arte para uma estrutura

verdadeiramente espiritual. O descompromisso assim gerado é de tal

grandeza que o artista jamais propôs investir contra o sistema artístico

vigente. Não era esta a sua questão central, e sim o homem e a sua ética

do fazer visando a uma possível reconstrução da existência através de

modelos de procedimentos que o valorizem. O homem agora deve ser tal

qual o demiurgo de Platão que não é onipotente: faz o kosmos tão bem

quanto possível e tem de competir com os efeitos contrários da

29 BAKER, Kenneth. “Um uso para o Belo”. In Revista Gávea nº 2. p. 103, citando Martin Heidegger.

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necessidade.30

30 PETERS, F. E, Termos filosóficos gregos. p. 49.

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