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Biblos, Rio Grande, 23 (2): 177-188, 200 177 “ABAIXO A VACINA!” A FUNDAÇÃO DA LIGA DE COMBATE À VACINAÇÃO OBRIGATÓRIA E SUA RELAÇÃO COM A CONSTITUIÇÃO DE 1891 CINTIA LIMA CRESCÊNCIO * RESUMO Este artigo propõe articular a Constituição de 1891 à fundação da Liga contra a Vacinação Obrigatória por ocasião da Revolta da Vacina, em 1904, por meio da reflexão acerca do conteúdo da própria Constituição e do jornal Echo do Sul, folha rio-grandina, que noticiou inúmeros episódios acerca da revolta. Relacionando o conteúdo da Constituição ao conteúdo do jornal sobre a Liga, pretende-se perceber de que forma uma organização subversiva como a Liga fazia uso da própria Constituição para defender seu intento de impedir a lei da vacinação obrigatória. PALAVRAS-CHAVE: história, Revolta da Vacina, imprensa, Echo do Sul A Carta Constituinte de 1891, inauguradora da República Brasileira, fortemente inspirada na Constituição estadunidense, não só deu moldes republicanos e “democráticos” ao antigo império, como também deu margem a contestações. Um exemplo disso foi a fundação de um movimento denominado Liga Contra a Vacinação Obrigatória, presidido, a convite de outros membros, pelo militar e político positivista Lauro Sodré. No intuito de derrubar a obrigatoriedade, considerada tirânica e despótica, pautada na inconstitucionalidade da medida, a Liga organizou-se de forma a fazer uma “revolução”, caso fosse necessário. Com base nesses fatos, pretende-se explorar excertos da folha rio-grandina Echo do Sul e relacioná-los com o teor da Constituição Republicana de 1891, com o objetivo de demonstrar como alguns militares, positivistas e/ou opositores, acabaram fazendo uso da própria Carta que regia a República para fundamentar um levante e assim tentar tomar o poder. Para isso, torna-se relevante um recorte temporal bastante estreito, na medida em que essa organização emerge em meio * Acadêmica do curso de História – Bacharelado – FURG

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    ABAIXO A VACINA! A FUNDAO DA LIGA DE COMBATE VACINAO

    OBRIGATRIA E SUA RELAO COM A CONSTITUIO DE 1891

    CINTIA LIMA CRESCNCIO*

    RESUMO Este artigo prope articular a Constituio de 1891 fundao da Liga contra a Vacinao Obrigatria por ocasio da Revolta da Vacina, em 1904, por meio da reflexo acerca do contedo da prpria Constituio e do jornal Echo do Sul, folha rio-grandina, que noticiou inmeros episdios acerca da revolta. Relacionando o contedo da Constituio ao contedo do jornal sobre a Liga, pretende-se perceber de que forma uma organizao subversiva como a Liga fazia uso da prpria Constituio para defender seu intento de impedir a lei da vacinao obrigatria.

    PALAVRAS-CHAVE: histria, Revolta da Vacina, imprensa, Echo do Sul

    A Carta Constituinte de 1891, inauguradora da Repblica Brasileira, fortemente inspirada na Constituio estadunidense, no s deu moldes republicanos e democrticos ao antigo imprio, como tambm deu margem a contestaes. Um exemplo disso foi a fundao de um movimento denominado Liga Contra a Vacinao Obrigatria, presidido, a convite de outros membros, pelo militar e poltico positivista Lauro Sodr. No intuito de derrubar a obrigatoriedade, considerada tirnica e desptica, pautada na inconstitucionalidade da medida, a Liga organizou-se de forma a fazer uma revoluo, caso fosse necessrio.

    Com base nesses fatos, pretende-se explorar excertos da folha rio-grandina Echo do Sul e relacion-los com o teor da Constituio Republicana de 1891, com o objetivo de demonstrar como alguns militares, positivistas e/ou opositores, acabaram fazendo uso da prpria Carta que regia a Repblica para fundamentar um levante e assim tentar tomar o poder. Para isso, torna-se relevante um recorte temporal bastante estreito, na medida em que essa organizao emerge em meio

    * Acadmica do curso de Histria Bacharelado FURG

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    Revolta da Vacina, evento que teve curtssima durao. Sero analisados trechos de artigos e telegramas publicados

    entre os dias 27 de agosto e 18 de novembro de 1904, momento em que a lei que determinava a obrigatoriedade da vacina j havia sido sancionada pelo ento presidente Rodrigues Alves (1902-1906), o que motivou a organizao da Liga, visto que os intensos debates realizados na Cmara durante a votao do projeto foram inteis para sua revogao. Paralelamente anlise dos trechos do jornal, pretende-se fazer uma reflexo acerca da Constituio de 1891, uma vez que a Liga e os opositores da vacinao obrigatria percebiam a inconstitucionalidade da lei dentro da prpria Carta Constituinte, fundamentando, dessa forma, seu discurso de oposio medida.

    Tendo claro que a Constituio um documento dito oficial, pretende-se entend-lo como um regimento, uma forma escrita de organizar os rumos da nova Repblica, o que no implica consider-lo falso ou meramente discursivo, na medida em que, por menos aplicada que seja essa Constituio, ela ainda anuncia muito sobre a forma como a era republicana apresenta-se para uma nao com razes imperiais. Em se tratando da reflexo sobre a imprensa, no caso, parte dela, ressalta-se que esta tambm fruto de um discurso, de uma determinada poca, de um grupo especfico, assim como a Constituio, e, portanto, ser abordada enquanto tal. A esse respeito, afirma Costa:

    Em vez de se pretender trabalhar os indcios histricos (fontes) com a convico de que estes nos levam reconstruo do acontecimento, tomamo-los como uma construo discursiva. Ou seja, a fonte histrica tambm um acontecimento que deve ser desvendado como construo discursiva, como monumento (1997, p. 190).

    Assim, as fontes, a Constituio Republicana de 1891 e os

    excertos do jornal rio-grandino Echo do Sul, evidenciam o que Costa chama de construes discursivas, entendendo-as como acontecimentos em si. O trabalho do historiador ser, diante desses instrumentos, o de revelar tais construes discursivas. Partindo do princpio de que o jornal Echo do Sul e a Constituio so acontecimentos escritos que permitem uma construo discursiva, conforme aponta a autora, busca-se desvel-los enquanto monumentos da memria.

    A partir disso pretende-se inicialmente abordar alguns escritos historiogrficos que reflitam sobre a Revolta da Vacina, acontecimento que serviu de pano de fundo para a emergncia da Liga Contra a Vacinao Obrigatria, e posteriormente entabular uma reflexo acerca das fontes principais.

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    Conforme Iglesias (1993), a Revolta da Vacina foi uma reao, precedida por outros eventos, tambm de cunho sanitrio:

    Ante as epidemias de febre amarela, to constantes h decnios, o mdico Osvaldo Cruz tenta o saneamento do Rio de Janeiro e o consegue. Tem de enfrentar, no entanto, tambm a peste bubnica e a varola. A vacinao tem de ser obrigatria, e certos polticos, inimigos da situao, denunciam a medida como atentado liberdade. Ademais, os positivistas no acreditavam em micrbios. H uma luta que chega a assumir propores s no Rio de Janeiro, mas abafada (IGLESIAS, 1993, p. 214).

    Para o autor, portanto, as epidemias extrapolam o nvel sanitrio,

    emergindo na cena poltica, visto que a obrigatoriedade da preveno, no caso a vacinao, seria um atentado liberdade. Alm disso, Iglesias demonstra a repulsa dos positivistas em relao vacina, j que sua descrena na existncia de micrbios tornaria toda a ao desnecessria. Note-se que o autor faz apenas essa breve meno Revolta da Vacina, no que a tenha como pouco relevante, mas porque, diante do seu enfoque poltico ao estudar a Histria do Brasil, o levante no se afirma to importante, assim como na obra de Maria do Carmo Campello de Souza (1978), que, em seu vis poltico, simplesmente suprime mais detalhes do governo de Rodrigues Alves, presidente poca em que eclode a revolta.

    Seria basicamente esse o cenrio citado por Iglesias (1993) que comporia o pano de fundo da criao da Liga: contexto de tentativa de saneamento pelo mdico Osvaldo Cruz, que poca ocupava um cargo semelhante ao de ministro da Sade nos dias de hoje; luta para evitar o retorno da febre amarela capital da Repblica; combate varola e peste bubnica. Paralelamente a esse caos sanitrio, polticos de oposio, notadamente os que viriam a compor a Liga, e militares, usam o pretexto da inconstitucionalidade da medida para contestar o governo vigente. Iglesias no chega a fazer meno fundao da Liga, mas a esse respeito podemos citar Lincoln de Abreu Penna, que, apesar de no ceder muito espao Liga, traz algumas informaes a esse respeito.

    De acordo com Penna (1989), o desejo de defender as liberdades individuais era tambm um pretexto poltico de contestao.

    Na verdade, mais do que a recusa obrigatoriedade havia um sentido poltico indiscutvel: os trabalhadores e os setores intermedirios da sociedade carioca organizaram a Liga Contra a vacinao obrigatria presidida pelo senador Lauro Sodr (PENNA, 1989, p. 104).

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    O estudioso reconhece, no texto acima citado, que a fundao da Liga representa o carter poltico da Revolta da Vacina, que notoriamente conhecido e reconhecido pela historiografia como um movimento de cunho exclusivamente popular1

    Como figura central nesses acontecimentos, Lauro Sodr quem presidir a curta existncia da Liga Contra a Vacinao Obrigatria. Reconhecido como clebre positivista (LINS, 1967, p. 251), o senador paraense o principal representante do positivismo na luta contra a vacinao obrigatria, afinal, como afirma Iglesias (1993, p. 214), os positivistas no acreditavam em micrbios e o militar-positivista fez jus s suas crenas. Em concordncia, Carvalho (1989) afirma que os positivistas eram contra a obrigatoriedade por razes cientficas e filosficas e, como agravante, eram contrrios a imposies, sendo defensores das liberdades individuais, tambm previstas pela Constituio, documento usado como argumento para condenar a agressividade da medida.

    . A Liga seria, portanto, a expresso poltica da Revolta, extrapolando seu carter popular. O historiador Jos Murilo de Carvalho (1987) afirma que essa organizao destinada a resistir obrigatoriedade da vacinao de forma legal, o que no impede, como afirmado anteriormente, que faa uso de mtodos violentos.

    Dessa forma, o pensamento positivista foi utilizado para dar vazo a uma revolta, no caso a Revolta da Vacina, e a uma Liga, tambm de cunho violento. Conforme Holanda (1997), no Brasil, com freqncia lanou-se mo do positivismo com objetivos de levante.

    [O] positivismo, no Brasil, ou o que fosse possvel utilizar do positivismo, vai servir principalmente para despertar foras eruptivas, ganhando adeso nas classes onde lavra maior descontentamento com o regime, e que tinham meios de traduzir o descontentamento em atos (HOLANDA, 1997, p. 303).

    Assim, Holanda identifica a incorporao de uma ideologia, neste

    caso o positivismo, como forma de estmulo a foras com tendncia a erupo, o que, vinculado a insatisfaes polticas e sociais, permite que a expresso resulte em atos concretos, isto , uma revolta.

    1 Carvalho (1987) enumera diferentes motivos para explicar a ecloso da revolta: a justificao moral baseada em valores modernos, o descontentamento da massa, o autoritarismo governamental, a reforma urbana. Entretanto, considera-se que o mais forte impulsionador desse evento foi o pretexto dos opositores ao poder, que viam na fragilidade higinica e popular, diante da perda de entes queridos e do medo constante da epidemia, a possibilidade de efetuar uma manobra contra o governo.

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    Diante do exposto, conclui-se que a doutrina positivista serviu de incentivo, de fundamentao terica, filosfica aos militares, principais revoltosos contra a vacinao obrigatria. Munidos do seu descontentamento e ausncia de poder poltico, como bem demonstra a Constituio de 1891, militares vem na fraqueza higinica do pas a oportunidade perfeita para a revolta e para a fundao da Liga um meio evidente de enfraquecer o poder vigente.

    Art. 14. As foras de terra e mar so instituies nacionais permanentes, destinadas defesa da ptria no exterior e manuteno das leis no interior. A fora armada essencialmente obediente, dentro dos limites da lei, aos seus superiores hierrquicos, e obrigada a sustentar as instituies constitucionais (Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil 24 fev. 1891).

    Conforme o artigo 14, portanto, o exrcito e a armada deviam

    submisso ao Estado Federal, o que no lhes daria o direito de contestar uma deciso do Presidente, como ocorre com a sano do projeto de lei de vacinao obrigatria e ainda com a fundao da Liga. Sendo obrigados a sustentar as instituies constitucionais, no seriam autorizados a desobedecer a hierarquia. Ou seja, os militares devem obedincia ao Governo Federal e esta submisso est evidente nos termos da Constituio, como citado acima, vinculada ao positivismo que, conforme Carvalho (1987) estava arraigado nas escolas militares da poca, inclusive a da Praia Vermelha e a do Realengo. Ambas participaram do levante contra o governo na Revolta da Vacina e serviram de fora motora para a fundao da Liga Contra a Vacinao Obrigatria. Assim, opositores da vacinao obrigatria, mais especificamente os militares, tambm tinham representado na Constituio republicana a inconstitucionalidade de sua ao ao fundar tal Liga, na medida em que formalmente no tinham o direito de contestar o governo federal.

    Entretanto, os polticos e/ou militares que tiveram suas falas reproduzidas nas pginas do jornal Echo do Sul preocupavam-se, obviamente, em defender seus ideais e, nesse caso, a Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil servia de instrumento para afirmar que a obrigatoriedade da vacina no obedecia aos direitos garantidos pela prpria Carta, formando, dessa forma, um argumento legal contra a nova lei.

    Conforme o Captulo V, em que so listadas responsabilidades do Presidente da Repblica,

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    Art. 54 So crimes de responsabilidade os atos do Presidente da repblica que atentarem contra: 2) a Constituio e a forma de Governo Federal; [...] 4) o gozo e exerccio legal dos direitos polticos ou individuais (Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil 24 fev. 1891).

    relevante notar que, conforme a Constituio, crime de

    responsabilidade do prprio Presidente a obrigatoriedade da vacinao, visto que ela atenta contra a Constituio e contra os direitos individuais. No se pode esquecer que, ao tornar-se obrigatria a vacinao, o controle seria registrado em uma carteira de vacinao que atestava a imunizao contra a varola. A apresentao desse documento era exigida, por exemplo, para fazer matrcula em escolas, para manter vnculo empregatcio formal.

    J na Seo III Declarao de Direitos, feita a ressalva:

    Art. 72. A Constituio assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no pas a inviolabilidade dos direitos concernentes liberdade, segurana individual e propriedade nos termos seguintes: 1 Ningum pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude da lei (Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil 24 fev. 1891).

    Como demonstra a citao, a Constituio garantia a liberdade

    individual, o que autorizaria a recusa em tomar a vacina contra a varola. No entanto, a obrigao existe apenas em virtude de uma lei, como no caso aqui analisado.

    Notadamente os opositores da vacinao obrigatria no levaram em considerao este porm, salientando principalmente que a Constituio garantia a liberdade individual, isto : por lei, nenhum cidado brasileiro poderia ser obrigado a receber a vacina contra a varola. No entanto, esse trecho da Carta evidencia que os direitos individuais estariam precedidos por lei, ficando a cargo do governo reger o coletivo, como pode ser percebido no caso da vacinao obrigatria, em que um direito individual seria desrespeitado em favor de um bem maior, o coletivo.

    Ignorando tal ressalva, senadores e deputados encabeam na capital da Repblica um conflito discursivo-poltico, que reproduzido pelo jornal Echo do Sul para o conhecimento da populao local.

    Sobre a vacinao obrigatria, um telegrama informa: Rio, 27 O deputado rico Coelho, defendendo um substitutivo sobre a vacina, declarou ser inconstitucional a obrigatoriedade exarada pelo projeto aprovado pelo Senado2

    2 Telegramas. Vacinao obrigatria. Echo do Sul, Rio Grande, 27 ago. 1904.

    . A inconstitucionalidade o principal

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    argumento dos opositores. Ainda so citados fatores de cunho moral, como a exposio de partes do corpo feminino para receber a injeo, mas o ataque s liberdades individuais o principal argumento de condenao medida.

    J em artigo bastante extenso e pseudnimo, o que era comum na poca, um colunista frequente do jornal afirma, sob a assinatura de Malaquias: Pelos meios legais, no ferindo o livre arbtrio do cidado, cuja liberdade de pensar e agir garantida pela Constituio, tudo se conseguir, pois trata-se de um povo inteligente e bem-intencionado3

    Em outro telegrama, um deputado condena a lei: Rio, 2 O deputado Brcio Filho, conquanto admita a necessidade da vacina, para evitar o alastramento da varola, entende que a obrigatoriedade daquela prtica verdadeiramente inconstitucional

    . Apostando na boa vontade popular, o autor desconhecido cr no esclarecimento e na instruo para a implantao da vacina de forma no-abrupta, o que no aconteceu, sendo este tambm um dos motivos citados frequentemente como determinante para a ecloso da Revolta da Vacina.

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    Em discurso inflamado, Barbosa Lima, deputado pelo Rio Grande do Sul, bero do positivismo no Brasil, segundo a folha, no s condena a lei, como d como morta a Constituio da Repblica:

    . Desrespeitadora das liberdades individuais e inconstitucional so adjetivos que povoam os discursos de condenao lei. Apesar de entenderem a vacinao como necessria, visto que a varola espalha-se por todo o pas, inclusive no Rio Grande, local de origem do jornal Echo do Sul, os polticos no aceitam a agressividade da obrigatoriedade da vacina.

    Sr. Presidente, ainda uma vez volto discusso do projeto que se debate. Compreenderia que se pudesse ter condescendncia para com aqueles que o governo quer, ordena, impe a aprovao de semelhante projeto. Mas, queira ou no queira o governo, a responsabilidade absoluta da cmara. (apoiados) Quem vai decretar o despotismo a cmara, quem vai decretar a maior das abjees para o povo, a cmara. (muito bem) E a cmara decreta o despotismo, a tirania, no para ela; a cmara decreta a abjeo, no para a famlia do deputado; a cmara decreta tudo isso para o povo, para o oprimido, para o miservel! (Apoiados, muito bem!) A cmara sabe que a constituio da repblica morreu h muito tempo; decretando isto (eu ia dizendo) que a cmara se suicidava, quando tenho certeza que aos cadveres no se fala esta linguagem!5

    3 Malaquias. As Quintas. Echo do Sul, Rio Grande, 1 set. 1904.

    4 Telegramas. Vacinao obrigatria. Echo do Sul, Rio Grande, 2 set. 1904. 5 No Parlamento. Cmara maldita. Barbosa Lima. A vacinao obrigatria. Echo do Sul, Rio Grande, 10 set. 1904.

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    Barbosa Lima pede ao presidente que se tenha clemncia ao povo que, segundo ele, seria o verdadeiro afetado pela medida, salientando ainda que a Cmara teria a maior responsabilidade sobre a deciso que teria como maior afetado o povo miservel e oprimido. J no se condena mais a obrigatoriedade da vacina, e sim condena-se a inexistncia de respeito Constituio, considerada pelo deputado Barbosa Lima a representante e defensora dos direitos dos cidados. Tomando para si, enquanto deputado, e para a Cmara de maneira geral a responsabilidade de tal medida, o deputado amaldioa a Cmara, o que causa muita discusso por vrios dias nas pginas do jornal aqui analisado.

    A discusso alonga-se, sob argumentos repetidos, polticos e militares condenam a medida e consideram a Repblica desrespeitada, visto que sua Constituio no estaria sendo aplicada ao impor-se a obrigatoriedade da vacinao. No dia 3 de novembro a lei sobe para sano do presidente da Repblica e, assim, passa-se a fazer referncia Liga Contra a Vacinao Obrigatria.

    Rio, 5 O grupo contrrio vacinao obrigatria cogita da fundao, nesta capital, de uma liga contra o mesmo projeto. Haver hoje uma reunio, nesse sentido, devendo falar o Dr. Lauro Sodr. A reunio da Liga contra a vacinao obrigatria ter lugar na sede do Centro das Classes Operrias.6Rio, 7 Realizou-se anteontem a anunciada reunio para a organizao da Liga contra a vacinao obrigatria, sendo aclamados presidente, Lauro Sodr; vice-presidente, Barbosa Lima; segundo vice-presidente, Vicente Souza. O Dr. Lauro Sodr aconselhou o povo a reagir a todo o transe contra a nova lei, que classificou de atentria da liberdade individual. Todo o seu discurso foi violento.

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    A Liga fundada pelo grupo contrrio vacinao obrigatria, notadamente polticos e militares influentes, como demonstra o telegrama citado acima. Desde sua fundao a Liga convoca o povo a reagir, classificando a nova lei de ofensora das liberdades individuais.

    Em um intervalo de apenas dois dias anuncia-se a possibilidade da fundao da Liga e logo em seguida a fundao da organizao, cujos lderes so conhecidos positivistas e militares atuantes na poltica nacional. Nos dias 10, 11 e 12 de novembro, o senador Lauro Sodr ocupa-se em negar que havia incitado o povo revolta, afirmando que apenas sancionava o direito de resistncia. Em 11 de novembro a

    6 Telegramas. Vacinao obrigatria. Echo do Sul, Rio Grande, 5 nov. 1904. 7 Telegramas. Vacinao obrigatria. Echo do Sul, Rio Grande, 7 nov. 1904.

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    revolta tem incio. As pginas do jornal do notcias de ataques violentos e de nimos tensos.

    Notoriamente insatisfeitos com sua pouca participao poltica, os militares logo passam a fazer parte das notcias, envolvidos com a Liga e com o levante.

    Rio, 14 Foram impedidas por ordem superior, as escolas do Realengo e Militar, cujos alunos projetavam comparecer a reunio da Liga contra a vacina, anunciada para ontem.8

    Lideradas por militares positivistas, incluindo o senador Lauro Sodr, as escolas militares so protagonistas do levante, visto que, enquanto o governo convoca a Armada, a Liga tem em seu corpo revoltoso jovens oficiais.

    Especulando que Lauro Sodr queria apenas galgar o poder por meio da Liga e da revolta, parte da imprensa brasileira condena o senador, enquanto outra, como o caso do Echo do Sul, tenta, enquanto possvel, mostrar distanciamento do evento. Ainda no dia 14 de novembro a Liga citada pelo jornal:

    Rio, 14 Teve enorme concorrncia a reunio da liga contra a vacina. Pronunciaram violentssimos discursos os drs. Lauro Sodr, Barbosa Lima e Vicente Souza que foram muito aplaudidos. Findos os discursos a multido acompanhou os oradores, aclamando-os ruidosamente. Ao passar pelo largo de S. Francisco, a polcia argeou contra o povo, que protestou energicamente, repelindo o ataque.9

    J em meio revolta, a Liga organiza reunies com seus principais membros. Quanto participao na Liga, alm de membros ilustres como polticos e militares, a historiografia no faz referncia, o que torna complexo prever o que seria a multido citada pelo jornal e, ainda, quem seria esse povo que protestou energicamente. A reunio teria, ento, como todas as outras, discursos violentos e assistncia de uma multido que, a princpio, poderamos tomar como sinnimo de povo para o telegrama em questo. A polcia, como fora do governo, teria a funo de repelir os subversivos.

    No jornal do dia 16, noticiam-se ainda telegramas do dia 15, em que o foco principal a revelao do plano do senador Lauro Sodr de depor o presidente da Repblica e tomar o poder.

    8 Telegramas. Vacinao obrigatria. Echo do Sul, Rio Grande, 14 nov. 1904. 9 Telegramas. Liga contra a vacina. Echo do Sul, Rio Grande, 14 nov. 1904.

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    Rio, 15 A opinio geral condena a atitude de Barbosa Lima e Lauro Sodr, que, se fracassarem nos seus intentos de rebeldia, arrastaro consigo todo o prestgio do positivismo.10

    complexo afirmar quem seria o detentor dessa opinio geral citada pelo telegrama, no entanto, sendo maiores as foras governamentais no sentido blico e numrico, pode-se entender que mesmo os contrrios nova lei previam a derrota da Liga.

    Poucos dias aps a ecloso da revolta j se anuncia o seu fracasso, visto que o governo reprime com facilidade e rapidamente os revoltosos. Lauro Sodr recebe ordem de priso e os jovens oficiais das escolas militares recuam, visto serem em menor nmero que as tropas do governo. Participao popular na revolta, como Carvalho e parte da historiografia afirmam, se existiu, no foi relatada pelo jornal, que diz: O povo no tomou parte nas arruaas e mostra-se confiante na ao dos poderes constitudos11

    Conforme telegrama de 16 de novembro, o movimento tinha por fim depor o presidente Rodrigues Alves e proclamar a ditadura sob o governo de Lauro Sodr, plano que, se foi real, no chegou ser efetivado, pois o levante fora reprimido com violncia. A folha anuncia a fuga do presidente da Liga, chamando-o ainda de fujo. Com a priso decretada e seu plano arruinado, especula-se que o senador foi ferido, que se escondeu, que foi morto. O fato que, juntamente ao fracasso da revolta, fracassa tambm o intento da Liga, seja ele o anunciado, de combater a vacinao obrigatria, ou o de tomar o poder poltico da Repblica.

    . Isso contesta a viso corrente de que a Revolta da Vacina foi um movimento de cunho exclusivamente popular.

    Em discurso anunciado em 18 de novembro pelo jornal e que se supe ser de data anterior, o senador explica suas aes:

    Revolues, acrescentou, revolues no se fazem quando se quer, revolues no se planejam, no se combinam, no se organizam, revolues so fatos sociais que surgem hora certa no tempo preciso, cabendo apenas aos homens bem-intencionados encaminh-las, delas arrancando a felicidade da comunho. Fora desse gnero, s v a desordem, a bernarda, a mashorca, e a estas nem d responsabilidade de seu nome, nem o ardor das suas convices. Considera a lei da vacinao obrigatria como um sintoma das misrias da hora presente, como uma conseqncia do abastardamento do regime, como uma filha

    10 Telegramas. Revolta no Rio. Srios tiroteios. Mortos e feridos. Insurreio das Escolas Militares. Represso enrgica das arruaas. Fracasso da Revolta. O plano de deposio do presidente da Repblica. Detalhes sensacionais. Echo do Sul, Rio Grande, 16 nov. 1904. 11 Id., ibid.

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    desse produto teratolgico que a est, mentindo aos ideais da propaganda, porque nos d um regime de liberdade onde dominam as mais execrveis tiranias... Republicanos, conhece da mais elevada estirpe, dos que melhor sonharam e propagaram a idia nova, que desiludidos anseiam por um meio de sair disto que a est pela regenerao da repblica ou pela volta monarquia. No aconselho a restaurao, penso que se os governos criminosos nos tm dado uma repblica m, a restaurao nos daria um imprio pior!...12

    Conforme demonstra a citao, Lauro Sodr nega a existncia de um compl contra o governo, mas afirma a ecloso de uma sublevao espontnea e estimulada pelos rumos indesejados da jovem repblica, ecloso que seria encabeada pelos homens de bem, mais especificamente, os positivistas militares. O senador afirma ser a lei a expresso cruel de uma repblica prostituda e execrvel.

    Como um dos ltimos atos da revolta, da Liga, do senador e do prestgio do positivismo, o jornal divulga um discurso de ressentimento com a Repblica e com todas as instituies que a cercam. Negando qualquer inteno de tomada de poder, Lauro Sodr denuncia uma Repblica viciada e incapaz de existir de forma legtima. Chega a rememorar a monarquia em um discurso dramtico e amargurado. Desse ponto em diante o jornal no faz mais referncias ao ocorrido; afirma que a cidade do Rio de Janeiro retoma sua rotina diria sem maiores acontecimentos. Os sediciosos das escolas militares so perdoados, a lei torna-se realidade e Rodrigues Alves continua no poder. Os militares preservam sua participao poltica quase inexistente e ao longo da histria organizam meios de virar essa ordem.

    Assim encerra-se o conflito encenado por militares, polticos e/ou positivistas contra o governo, os quais, fazendo uso do teor da prpria Constituio republicana, contestam a Repblica. A fundao da Liga o reflexo poltico desse movimento. No entanto, maior do que a prpria representao da Liga, que tem curtssima existncia, seu intento, discutido por meses e meses na Cmara e no Senado, o de vetar a lei de obrigatoriedade da vacina, que, sendo ou no um pretexto para a tentativa de tomar o poder, o estopim para um movimento de contestao: contestao da inconstitucionalidade da Constituio, contestao da desigualdade na distribuio do poder poltico efetivo, contestao do prprio conceito de povo. 12 Os sucessos do Rio. O discurso de Lauro Sodr. No senado. Concluso. Echo do Sul, 18 nov. 1904.

  • Biblos, Rio Grande, 23 (2): 177-188, 2009 188

    FONTES: Constituio da Repblica dos Estados Unidos do Brasil, de 24 fev. 1891. Echo do Sul. Rio Grande. 27 set. 1904 18 nov. 1904. REFERNCIAS CARVALHO, Jos Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a Repblica que no foi. So Paulo: Companhia das Letras, 1987. COSTA, Eleonora Z. Sobre o acontecimento discursivo. In: SWAIN, Tnia Navarro. Histria no plural. Braslia: Ed. da UnB, 1999. CRESCNCIO, Cintia. Revolta da Vacina: higiene e sade como instrumentos polticos. Biblos, Rio Grande, Ed. da FURG, v. 22, n. 2, 2008. HOLANDA, Srgio Buarque de. Histria geral da civilizao brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. v. 7. IGLESIAS, Francisco. Trajetria poltica do Brasil: 1500-1964. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. LINS, Ivan. Histria do positivismo no Brasil. So Paulo: Companhia Editora Nacional: 1967. PENNA, Lincoln de Abreu Penna. Uma histria da Repblica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. SOUZA, Maria do Carmo Campelllo de. O Processo poltico-partidrio na Primeira Repblica. In: MOTA, Carlos Guilherme. Brasil em perspectiva. 10. ed. Rio de Janeiro; So Paulo: DIFEL, 1978. p. 162-226.