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43 Revista Trama - Volume 8 - Número 15 - 1º Semestre de 2012 - “UM MOÇO MUITO BRANCO” E AS ANDANÇAS DE UM ALIENÍGENA NO SERTÃO Anderson Teixeira Rolim * RESUMO: Este artigo analisa o conto Um Moço Muito Branco, de Primeiras Estórias (1962), de Guimarães Rosa. Observa os elementos que compõem a passagem deste extraterrestre pelo sertão mineiro. Mais especificamente, verifica a possibilidade de transformação, trazida à tona, para aquela pequena comunidade, através do contato com este moço tão estranho. Assim, confronta os elementos observados com o conceito de unheimlich, segundo Freud, e do fantástico, segundo Todorov. PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa; conto; insólito. ABSTRACT: This article analyses the short story Um Moço Muito Branco, from Primeiras Estórias (1962), by Guimarães Rosa. It observes the elements of the extraterrestrial trip into the far way lands of Minas Gerais. Specifically verifies the possibility of changes that was brought to that community by a strange person. KEYWORDS: Guimarães Rosa; short story; uncanny. “Um moço muito branco” é o décimo quarto conto de Primeiras Estórias, publicado em 1962. O enredo é bastante simples: numa noite, de 1872, um objetivo voador não identificado cruza os céus da comarca de Serro Frio, em Minas Gerais. Em seguida, eventos cataclísmicos assolam a região. E, daquela terra devastada, surge um rapaz mudo, diferente e muito branco. Ele é acolhido pelo fazendeiro Hilário Cordeiro e, nos meses que se seguem, as pessoas e os lugares que têm contato com o moço não se tornam apenas mais prósperos, mas também mais humanos. E, assim como chegou, onze meses depois, ele desaparece sem pistas. A narrativa se destaca na obra rosiana pelo assunto insólito, um alienígena no sertão, assim como, pelas marcações de tempo e espaço feitas com exatidão, fato pouco comum no conjunto das obras publicadas por Guimarães Rosa. A narrativa inicia com uma marcação de tempo e espaço. “Na noite de 11 de novembro de 1872, na comarca de Serro Frio, em Minas Gerais” (ROSA, 2001, p. 149). Na penúltima página, há outra marcação deste tipo: “(...) no dia da missa da dedicação de Nossa Senhora das Neves e vigília da Transfiguração, 5 de agosto, ele veio à Fazenda do Casco” (ROSA, 2001, p. 154). Há ainda outro modo de marcar o tempo no conto, o dia dos santos. * Doutorando. PPGL/UEL. Docente da UNOPAR. p. 27 - 42

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    UM MOO MUITO BRANCOE AS ANDANAS DE UMALIENGENA NO SERTO

    Anderson Teixeira Rolim*

    RESUMO: Este artigo analisa o conto Um Moo Muito Branco, de Primeiras Estrias (1962), deGuimares Rosa. Observa os elementos que compem a passagem deste extraterrestre pelo serto mineiro.Mais especificamente, verifica a possibilidade de transformao, trazida tona, para aquela pequenacomunidade, atravs do contato com este moo to estranho. Assim, confronta os elementos observadoscom o conceito de unheimlich, segundo Freud, e do fantstico, segundo Todorov.

    PALAVRAS-CHAVE: Guimares Rosa; conto; inslito.

    ABSTRACT: This article analyses the short story Um Moo Muito Branco, from Primeiras Estrias(1962), by Guimares Rosa. It observes the elements of the extraterrestrial trip into the far way lands ofMinas Gerais. Specifically verifies the possibility of changes that was brought to that community by astrange person.

    KEYWORDS: Guimares Rosa; short story; uncanny.

    Um moo muito branco o dcimo quarto conto de PrimeirasEstrias, publicado em 1962. O enredo bastante simples: numa noite, de1872, um objetivo voador no identificado cruza os cus da comarca deSerro Frio, em Minas Gerais. Em seguida, eventos cataclsmicos assolama regio. E, daquela terra devastada, surge um rapaz mudo, diferente emuito branco. Ele acolhido pelo fazendeiro Hilrio Cordeiro e, nos mesesque se seguem, as pessoas e os lugares que tm contato com o moo nose tornam apenas mais prsperos, mas tambm mais humanos. E, assimcomo chegou, onze meses depois, ele desaparece sem pistas.

    A narrativa se destaca na obra rosiana pelo assunto inslito, umaliengena no serto, assim como, pelas marcaes de tempo e espao feitascom exatido, fato pouco comum no conjunto das obras publicadas porGuimares Rosa.

    A narrativa inicia com uma marcao de tempo e espao. Na noitede 11 de novembro de 1872, na comarca de Serro Frio, em Minas Gerais(ROSA, 2001, p. 149). Na penltima pgina, h outra marcao deste tipo:(...) no dia da missa da dedicao de Nossa Senhora das Neves e viglia daTransfigurao, 5 de agosto, ele veio Fazenda do Casco (ROSA, 2001, p.154). H ainda outro modo de marcar o tempo no conto, o dia dos santos.

    * Doutorando. PPGL/UEL. Docente da UNOPAR.

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    Alm de Nossa Senhora das Neves, tambm so citados So Flix, o con-fessor e Santa Brgida. A vspera da comemorao desta ltima santa, 07de outubro, a marcao temporal para o desaparecimento do moo. Assim,de novembro at outubro do ano seguinte, somam-se onze meses. Tempopresumvel de convvio dos habitantes de Serro Frio com o aliengena.

    Guimares Rosa, em carta ao seu tradutor alemo, Curt Meyer-Clason, deixou clara sua inteno em relao ao tom que a narrativa deveriater. 99. [149] - UM MOO MUITO BRANCO (NOTA: - Neste conto,o tom de relato real e a linguagem deliberadamente arcaizante. Por istomesmo, acho que talvez a melhor soluo, nele, ser conservarmos osnomes prprios, sem traduzir.) (BUSSOLOTTI, 2003, p. 348)

    Assim, nestes termos, parece tudo muito fcil para um conto rosiano.Apenas parece.

    Esta inteno de relato real est mascarada por uma marcao dotempo cheia de lacunas ou desvios, confuses com datas e nomes santosque negam a exatido do tempo e do espao, como inicialmente se supe.Dois dos santos que tm suas datas de comemorao como marca de tempono conto, So Flix e Santa Brgida, tm homnimos. Disso implica que,cada nome ter duas datas comemorativas. O dia de Santa Brgida de Irlanda celebrado no primeiro de fevereiro, enquanto o de Santa Brgida deSucia comemorado dia oito de outubro. So Flix popularmentecomemorado em dezoito de maio, enquanto So Flix, confessor (ROSA,2001, p. 150), celebrado dia catorze de fevereiro.

    Portanto, apenas possvel presumir um perodo em que o mooesteve naquela comunidade. E, se o calendrio hagiogrfico trabalha com operodo de um ano, presume-se, ento, que a estada do moo sejacompreendida neste mesmo perodo. Ainda assim, no conto, o tempodecorrido entre onze de novembro e o dia de So Flix de Nola, catorzede fevereiro, aparece como o termo de uma semana (ROSA, 2001, p.150). Claramente, h mais de uma semana entre novembro de um ano efevereiro do outro.

    Isto apenas um dos indcios de que os dados apresentados comomarca de tempo e lugar, no conto, no so exatos como pretendem parecer.

    A primeira linha do conto j traz uma informao inverossmil. Em1872, no existia mais a comarca de Serro Frio. A pequena vila foi alada condio de municpio em 1838, muito antes do perodo em que os fatosnarrados supostamente aconteceram.

    Todavia, estas quebras e lacunas no so resultado de uma intenodeliberada do narrador em iludir o leitor/ouvinte ou alterar o enredo quenarra, pois logo aps o incio da enunciao, adverte sobre aquilo est anarrar:

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    Seja que da maneira ainda hoje se conta, mas transtornado incerto,pelo decorrer do tempo, porquanto narrado por filhos ou netos dosque eram rapazes, quer ver que meninos, quando em boa hora oconheceram. (...) consoante o asseverar sobremaravilhado dos coevos(ROSA, 2001, p. 150).

    Logo, percebe-se que os fatos narrados esto bem distantes no tempodo momento em que a histria narrada, pois so narrados pordescendentes daqueles que a testemunharam. Alm disso, o prprionarrador diz que aquilo que narra distorcido tambm pelo transmissooral dos fatos. Por isso, no tem a preocupao de que os dados sejamexatos, mas apenas de que paream verdadeiros. E, ainda que o narradoradvirta sobre a falta de verossimilhana dos dados que ele informa, fazesforo para imprimir este tom de relato real matria narrada, como jficou evidente.

    Este esforo para destacar os detalhes e indic-los no tempo e noespao, a fim de imprimir verossimilhana, tambm pode ser evidenciadona descrio das personagens locais e, sobretudo, na descrio doprotagonista.

    A apresentao do moo bastante extensa se compararmos com otamanho do conto. Ele era To branco; mas no branquicelo, seno quede um branco leve, semidourado de luz: figurando ter por dentro da peleuma segunda claridade (ROSA, 2001, p. 150), Tonto, no era. S aquelainteno sonhosa, o certo cansao do ar. Surpreendente, contudo, o queassaz observava, resguardado, at espreitasse por mido os vezos de coisase pessoas (ROSA, 2001, p. 151), contam que seus olhos eram cor derosa (ROSA, 2001, p. 152), tinha as mos no calejadas, alvas e finas, dehomem-de-palcio. (ROSA, 2001, p. 153), claro como o olho do sol,plcido (ROSA, 2001, p. 155). E, apesar de dar ttulo ao conto, apenaschamado pelo genrico moo. Dado que uma graa j devia de ter, no selhe podia outro nome (ROSA, 2001, p. 151).

    Como um exilado, ele d demonstraes de sentir saudade. Triste,dito, no; mas; como se conseguisse, em si, mais saudade que as demaispessoas, saudade inteirada, a salvo do entendimento, e que por tanto seapurava numa maior alegria corao de co com dono (ROSA, 2001, p.151). De memria estranha, s, pois, a de olhar ele sempre para cima, omesmo para o dia que para a noite espiador de estrelas (ROSA, 2001, p.153).

    Apesar das mos finas, sem as marcas do trabalho pesado comum aosertanejo, era habilidoso em lidar com a tecnologia da poca. Noembargando que grandes partes tivesse, para o que fosse de funes deengenhos, ferramentas e mquinas, ao que se prestava fazendo muitasinvenes e desembaraando as ocasies, ladino, cuidoso e acordado(ROSA, 2001, p. 153).

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    No cabe aqui, tanto pela extenso quanto pela repetio, enumerartodos os trechos em que o protagonista descrito, mas pelos exemplosdados, evidencia-se que ele no era parecido com os moradores do lugar.E a diferena principal, no incio, como se viu, era a cor da sua pele, muitobranca. No entanto, o decorrer da narrativa mostra que ele era diferenteem muitas outras coisas, ao ponto de o padre Bayo afirmar, em carta aocnego Lessa Cadaval, de Mariana, que, Comparados com ele, ns todos,comuns, temos os semblantes duros e o aspecto de m fadiga constante(ROSA, 2001, p. 152).

    Portanto, de acordo com este trecho da carta, todos so comunsse comparados com ele, o incomum. E as descries das outras personagenscomprovam isso. Elas compem um pequeno quadro das relaes sociaisdaquela comunidade e, por isso mesmo, so poucas as personagens quetm destaque no enredo. Hilrio Cordeiro o fazendeiro que acolhe omoo, aps os cataclismos. bom hospedeiro e homem caridoso e sensvel.Seu opositor direto Duarte Dias, alm de maligno e injusto, sobrepotncias: naquele corao no caa nunca uma chuvinha (ROSA, 2001, p.151). Ele pai da moa Viviana, mui bonita, mas que no se divertia igualdas outras (ROSA, 2001, p 154). Dos no abastados, tm destaque JosKakende, escravo meio alforriado, de um msico sem juzo, e ele prpriode ideia conturbada (ROSA, 2001, p. 151) e o cego Nicolau, um tipo demendigo local. Alm desses, aparecem, no conto, apenas o padre e o cnegoj citados, sem descries especficas, e Quincas Medanha, notvel napoltica e provedor da Irmandade (ROSA, 2001, p. 153).

    O conjunto das personagens caracteriza a prpria comunidade. Assim,nesta trama social notam-se algumas caractersticas evidentes do espaoem que o enredo se desenvolve, como a baixa densidade demogrfica e adistncia geogrfica (300 quilmetros de distncia at a S de Mariana).Enfim, se a marcao do tempo pouco comum obra rosiana, o espaoparece ser o mesmo de outros contos, o serto mineiro, povoado porfiguras notrias como os ricos fazendeiros, donos de terras e de homens.Alm disso, este um lugar em que o tempo ainda regulado pelascelebraes religiosas e onde a igreja funciona como espao centralizadordos eventos sociais, das celebraes e das tenses entre seus moradores.

    Neste sentido, o caso de Hilrio Cordeiro e Duarte Dias merecedestaque. Neles, combina apenas o fato de serem fazendeiros abastados. parte disto, eles so o oposto em tudo. Hilrio Cordeiro representa abondade humana, simptico, sensvel, bom, correto e caridoso. DuarteDias, por sua vez, antiptico, xenfobo, aproveitador, mau, bandido emalandro.

    Os dois personagens, no incio do conto, constituem ncleos distintosdo comportamento humano. apenas o contato deles com o aliengenaque transforma esta situao, como se observa no primeiro encontro en-tre o moo e Duarte Dias:

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    Do moo, pois, s no se engraou, antes j de abincio o malquerendo e o reputando por vago e malfeitor a rebuo, digno de, noutrostempos, de degredo em frica e nos ferros de el-rei um chamadoDuarte Dias, pai da mais bela moa, por nome Viviana; e do qual sesabia ser homem de gnio forte, alm de maligno e injusto, sobreprepotncias: naquele corao no caa nunca uma chuvinha. (ROSA,2001, p. 151)

    Como podemos observar neste trecho, Duarte Dias era homemmalvado e que, sem motivo qualquer, repudia o estrangeiro imediatamente.Vai alm, prescrevendo sentena de exlio, com preceitos do tempo doimprio portugus. Assim como na repblica platnica ideal no h lugarpara o estrangeiro, para Duarte Dias no h lugar para o forasteiro naquelapequena comunidade, pois ele seria decisivo para a deteriorao do lugarejocomo tal, o que de fato se verifica no final do conto.

    O que Duarte Dias no esperava era a transformao que acontecerianele mesmo. Nos meses em que o moo viveu naquela localidade, pormuitas vezes, Dias encontrou-se com ele e, pouco a pouco, passou a afeio-lo. Em certo momento, passa a dar indcios da carncia da presena domoo. E, para conseguir seu objetivo, tenta se aproveitar das mais inusitadasbrechas. A primeira delas, na sada da igreja, chega a Hilrio Cordeiro eargumenta que, pela brancura da tez e delicadezas mais, devia ser um dosRezendes, seus parentes, desaparecidos no Condado, no terremoto; e que,pois, at reconhecimento de alguma notcia competia-lhe o ter em custdia,pelo costume (ROSA, 2001, p. 153). E, neste episdio, Dias no desvia desua ideia antes da interveno de Quincas Medanha. J na segundaoportunidade, acusa o moo de infamar a filha e obriga-o a casar com ela.Esse o caso da moa Viviana, do qual trataremos mais tarde. Aqui, bastasaber que ele foi mais uma vez impedido de levar o moo, pois a grita deDuarte Dias s teve termo, quando o padre Bayo, e outros dos maisvelhos, lhe rejeitaram to descabidas frias e insensatez (ROSA, 2001, p.154).

    No tendo mais expedientes que pudesse usar em seu favor, DuarteDias se entrega verdade e declara, num rompante de amor, a necessidadeque ele tem do estrangeiro. Dizia, e desgovernava as palavras, alterado,enquanto que dos olhos lhe corriam bastas lgrimas. Ora, no secompreendendo o descabelo de passo to contrariado: o de um homemque, para manifestar o amor, ainda no dispunha mais que dos arrebatadosmeios e modos da violncia (ROSA, 2001, p. 155).

    Ao contrrio do que ele esperava, o moo quem o leva dali, parasuas prprias terras e l mostra onde existiria um grande tesouro. Noentanto, mais diverso ainda o prprio tesouro. Quando se pode imaginarque a riqueza seria a finalidade maior, para um notrio ganancioso, vem asurpresa: Por arte de qual prodgio, Duarte Dias pensou que ia virar

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    riqussimo, e mudado de fato esteve, da data por diante, em homem sucinto,virtuoso e bondoso (ROSA, 2001, p. 155)

    A transformao de Duarte Dias, de prepotente, injusto e malignoem algum capaz da bondade o maior indcio da grande transformaoque se opera naquela comunidade. Ele transforma-se de tal maneira quemorre, literalmente, de tristeza quando o moo desaparece. Mas esta no a nica transformao grave que se observa no conto, como ainda veremos.

    Noutro sentido, o contato como estrangeiro para Hilrio Cordeirono constitui uma guinada, mas sim, ao contrrio, uma acentuao dosseus prprios atributos. E, todavia, de seu zelo, mais para adiante, HilrioCordeiro, iria ter melhor razo, eis que tudo lhe passou a dar sorte, querna sade e paz, em sua casa, seja no assaz prosperar dos negcios, cabedaise haveres (ROSA, 2001, p. 153)

    Isto indica que no se trata, aqui, portanto, de uma relao a levaraos opostos aqueles que nela engajam. Diferentemente, o contato com oelemento estrangeiro, neste caso, leva unicamente bondade e alegria.Assim, Hilrio Cordeiro e Duarte Dias, apesar das diferenas iniciais,seguem um caminho semelhante de prosperidade, que inicia a partir docontato com o aliengena.

    Ainda vale dizer que a etimologia dos nomes destes personagensindica outro ponto de contato entre eles. Segundo o Dicionrio Aurlio,Hilrio tem origem latina e significa engraado. Cordeiro tem a mesmaorigem e significa manso e/ou inocente. Somados os contedos semnticos,o nome deste personagem indica suas caractersticas mais evidentes eprenuncia seu papel na trama narrativa. Todavia, a partir desta colocao,deve se esperar que a etimologia de Duarte Dias mostre o oposto, masno o que se verifica.

    Duarte tem origem inglesa, variao de Edward, e significa guardioe/ou prspero. Dias indica a medio do tempo segundo a rotao da terrae, por extenso, o prprio tempo ou momento. Ora, prosperidade umdos atributos de Duarte Dias, assim como de Hilrio Cordeiro, aps ocontato com o aliengena. E, o tempo que segue o desenrolar dos fatos natrama no pode ser descrito de outro modo, seno tempos prsperos(Duarte Dias).

    Neste mesmo sentido, importante observar o caso da moa Viviana,filha de Duarte Dias, outra personagem que se transforma, literalmente apartir do contato com o aliengena.

    Antes de contar esse episdio, o narrador adverte que este forasempre mal contado (ROSA, 2001, p. 154). Segundo diz, Viviana semprefoi uma garota triste, e apesar de toda formosura, tinha-se para admirarque a beleza do feitio lhe no servisse para transformar, no interior, aprpria e vagarosa tristeza (ROSA, 2001, p. 154) Mais uma vez, o contatocom o estrangeiro que indica o caminho para a superao da tristeza e que

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    conduz o contatado a uma situao de felicidade. Do mesmo modo queseu pai, ela tambm conduzida, pelo moo, ao destino que no podia serseno o dela, o que se comprova atravs da etimologia do nome Viviana:cheia de vida. E, mesmo aps o estrangeiro desaparecer, ela conservousua alegria (ROSA, 2001, p. 155).

    Portanto, o que se avulta, at aqui, que o estrangeiro exerce talinfluncia sobre essas personagens ao ponto de que no possam mais vivercomo antes viviam, nem Duarte, nem a filha. A maldade e a tristeza nocabem mais nestes personagens aps o contato com o forasteiro. Atransformao ocorrida em Duarte e Viviana prosperidade e vida mostraque o contato com o aliengena serviu, essencialmente, para que elespudessem encontrar seu destino natural, j indicado pelo significado deseus nomes. O que existe, ento, neste ponto que o estrangeiro servecomo guia ou condutor para aqueles que o contatam, conduzindo-os, comofaz com pai e filha, por suas prprias terras, por seus prprios caminhos,por si prprios, de modo que, partindo deste momento, compreendam eaceitem seu verdadeiro lugar no mundo.

    Portanto, no caso de Um moo muito branco, existe um processode (re)construo das identidades/alteridades, a partir do contato com oaliengena que, por sua vez, constitui-se como um tipo de alteridade ex-trema: Comparados com ele, ns todos, comuns (ROSA, 2001, p. 152).Apesar da elipse, claro o sentido da expresso: o moo no tem comquem ou o qu seja comparado. Naquela pequena comunidade, ele instauraum novo padro para o re(conhecimento) autoconhecimento daquelesque nela vivem. Por ser to distinto, por ser to estrangeiro, faz com queas personagens locais tenham uma nova chance de, atravs deste contatoindito, redefinir-se ou estabelecer-se, definitivamente, como seres capazesda bondade e da alegria.

    Neste caso, no se pode dizer que exista, no conto, um processo detrocas entre os elementos culturais autctones e estrangeiros, visto quetudo emana deste forasteiro. As personagens recebem a influncia doestrangeiro, todavia o inverso no ocorre. No existe, em toda a narrativa,uma meno sequer de mudana no aliengena e/ou na sua conduta. Nele,que fazia para si outra raa (ROSA, 2001, p. 150) havia sempre a mesmasaudade, pacincia e brandura. Assim sendo, as transformaes estocircunscritas aos elementos da comunidade, especialmente Duarte eViviana, mas tambm reforado pelo exemplo de Hilrio Cordeiro e outrosque, aps o desaparecimento do moo, diziam experimentar uma saudadee meia-morte (ROSA, 2001, p. 155).

    Destarte. o processo de re(conhecimento) das personagens locais seestende a toda comunidade. Todos singularmente se deploraram, paranunca, mal em pensado. Duvidavam dos ares e montes, da solidez da terra(ROSA, 2001, p. 155). Do mesmo modo, o lamento da comunidade mostra

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    o apreo que o aliengena passou a ter entre eles e a tristeza que a sua faltacausava. Mais ainda, expresso atravs de um conceito paradoxal est arepresentao da unidade local, o Todos singularmente (ROSA, 2001, p.155). O ltimo pargrafo do conto demonstra como o contato com o mooaproxima entre si, em ltima instncia, os moradores e elementos do lugar,Viviana e sua alegria, Kakende e o cego, Hilrio cordeiro e os outros.

    Assim, ao mesmo tempo em que distinto e distante, o moo surgecomo o exemplo necessrio para que aquela comunidade pudesse sereencontrar, ou noutros termos, encontrar sua prpria alegria. Seria umenredo corriqueiro se, no lugar do aliengena, existisse um messias, poisessa , talvez, a nica comparao possvel para ele, de tanto que a suadescrio aponta para, excesso necessrio, sua distinta singularidade e poderem conduzir as pessoas daquele lugar a um caminho de bondade eprosperidade.

    No entanto, nos termos colocados at aqui, pode parecer, ento,que a matria narrada deva transcorrer suavemente, sem maiores tenses,mas no isso que ocorre.

    A funo do moo na narrativa e sua descrio combinam com o queFreud chama de unheimlich estranho; inquietante. Para ele, o inquietante aquela espcie de coisa assustadora que remonta ao que h muitoconhecido, bastante familiar (FREUD, 2010, p. 331).

    Deste modo, apesar de aliengena, no sentido estrito do termo omoo tem feies antropomrficas, evidentes em sua descrio. O que odistingue dos habitantes locais so os detalhes: os modos, a pele, os olhos,a mudez. E a descrio extensa preza por essas mincias, compondo umpersonagem estranho e familiar ao mesmo tempo, pois, embora seja umestranho ao lugar, o moo acolhido como sendo um deles e levado aosritos comuns quela comunidade e participa deles. E assim que,lentamente, vai travando contato com seus habitantes.

    Todavia, o resultado deste contato, para algumas destas personagens,tambm no poderia ser nada alm de inquietante. Um destes casos odo cego Nicolau, como se observa: (...) porta da igreja se achava umcego, Nicolau, pedidor, o qual, o moo em o vendo, olhou-o sem medidae entregadamente contam que seus olhos eram cor-de-rosa! e foi emdireitura a ele, dando-lhe rpida partcula, tirada da algibeira (ROSA, 2001,p. 152).

    O cego imaginou que aquilo era algum tipo diferente de moeda,mas percebeu que no se tratava de qualquer moeda. Ele, ento, pensouser algo comestvel, mas foi advertido pelo menino que lhe servia de guiade que era uma semente.

    Ento, o cego guardou, com irados cimes e por diversos meses, aquelasemente, que s foi plantada aps o remate dos fatos aqui ainda por

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    narrar: e deu um azulado p de flor, da mais rara e inesperada: comentreaspecto de serem vrias flores numa nica, entremeadas demaneira impossvel, num primor confuso, e, as cores, ningum arespeito delas concordou, por desconhecidas no sculo; definhada,com pouco, e secada, sem produzir outras sementes nem mudas, enem os insetos a sabiam procurar (ROSA, 2001, p. 152).

    Assim, a planta se constitui como extenso do aliengena protagonista.Quando tratada em comparao com a flora nativa, tudo nela dspar:espcie azulada, com flores de cores e formas indescritveis, misturadas econfusas.

    Tanto quanto o moo, a planta causa a estranheza daqueles que aveem e, no entanto, ningum duvida de que seja uma planta e nada sobreisto mencionado na trama, apesar de suas caractersticas particulares,como foi descrito, serem extremamente diversas daquilo que conhecidopela botnica.

    Assim como a planta, o moo no deixa traos reconhecveis de suaestada. Impossibilitando, por um lado, a probabilidade de uma comprovaoeficaz e racional de sua diferena para com os demais e, por outro lado,restringindo as consequncias de seu contato a apenas aqueles que foramcontatados.

    Alm do que j foi tratado acerca do inquietante em relao aoprotagonista, aqui que se evidencia, por fim, o unheimlich freudiano.Quando observamos a estrutura narrativa, fica destacado o fato de que,como foi dito, o tempo do enunciado est muito distante do tempo daenunciao e, por isso mesmo, a matria narrada duvidosa. Estando certodisso, o narrador se esfora para imprimir, narrativa, o aspecto de histriareal. neste movimento que o inquietante se manifesta e revela, atravsdo acmulo lexical palavras relacionadas ao espao sideral, luz e sestrelas , a intencionalidade do narrador em fazer com que este sentimentorecaia sobre seus ouvintes/leitores.

    Na sua anlise etimolgica do vocbulo unheimlich, Freud aponta que,para o filsofo alemo Friedrich Schelling, o unheimlich seria tudo o quedeveria ter permanecido secreto, oculto, mas apareceu (FREUD, 2010,p. 338). Assim, o inquietante tambm se relacionaria quela categoria dascoisas no ditas ou secretas, que devem manter-se desconhecidas e, emUm moo muito branco, o enunciado apresentado como umconhecimento antigo, transmitido certamente pela oralidade, que tambmcaracteriza o relato. Para conseguir impressionar o leitor/ouvinte, o narradorusa de artifcios variados, como a suposta exatido do cronotopo e areferncia aos narradores contemporneos ao fato narrado.

    Resulta deste esforo, portanto, uma narrativa artificialmente precisa,mas no acurada. O tom realista que recobre o fato narrado apenas reforao seu aspecto mais inquietante: fazer parecer verdade aquilo que est longe

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    de ser verossmil. Precisamente o mesmo engenho evidenciado por Freudem relao ao Homem de Areia de Hoffman, quando mostra osmecanismos inconscientes que regulam o inquietante na fico, pois, deacordo com o psicanalista (...) para que surja o sentimento inquietante necessrio, como sabemos, um conflito de julgamento sobre a possibilidadede aquilo superado e no mais digno de f ser mesmo real (FREUD,2010, p. 372).

    Deste mesmo modo, pode-se dizer que a suposta revelao de umconhecimento arcaico, capaz de revolucionar as interaes humanaspositivamente, associada ao elemento extico-cientfico, aproxima o contoda fico cientfica e do fantstico, nos termos de Isaac Asimov.

    mister dizer, portanto, que se para Freud o estudo do inquietante,na literatura, est a servio da investigao das causas dos medos e dostraumas, para Todorov, em sentido inverso, a psicanlise serviria comoferramenta til crtica literria.

    Neste sentido, de acordo com Todorov, o estranho seria uma categoriadistinta do fantstico e do maravilhoso, entretanto anloga a elas. Para ele,o estranho instaurado a partir dos mesmos elementos j apontados porFreud, mas necessita de uma concluso racional acerca destes elementos,inclinando o desfecho, forosamente, para uma resoluo, quase acusadora,acerca dos domnios do pensamento. No este o caso do conto rosiano.

    No modelo proposto por Todorov, Um moo muito branco umconto relacionado ao fantstico e no ao estranho, pois no elucida oseventos que descreve luz a razo e do conhecimento humano.

    Chegamos assim ao corao do fantstico. Em um mundo que onosso, que conhecemos, sem diabos, slfides, nem vampiros se produzum acontecimento impossvel de explicar pelas leis desse mesmomundo familiar. Que percebe o acontecimento deve optar por umadas duas solues possveis: ou se trata de uma iluso dos sentidos, deum produto de imaginao, e as leis do mundo seguem sendo o queso, ou o acontecimento se produziu realmente, parte integrante darealidade, e ento esta realidade est regida por leis quedesconhecemos. Ou o diabo uma iluso, um ser imaginrio, ouexiste realmente, como outros seres, com a diferena de que rara vezo encontra. O fantstico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que seescolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno do fantstico paraentrar em um gnero vizinho: o estranho ou o maravilhoso. Ofantstico a vacilao experimentada por um ser que no conhecemais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentementesobrenatural. O conceito de fantstico se define, pois com relao aoreal e imaginrio, (...) (TODOROV, 1975, p. 15).

    Portanto, aqui fica evidente o carter de narrativa fantstica que sedepreende de Um moo muito branco. Ao mesmo tempo em que se

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    pode evidenciar o inquietante freudiano, por meio contato do aliengenacom os nativos, da impresso destes acerca do protagonista e tambmpelos resultados deste encontro, pode-se, alm disso, mais precisamente,associ-lo narrativa fantstica, de acordo com o modelo estabelecido porTzvetan Todorov. No conto, a impresso que as datas exatas e os dias desantos deixam necessariamente de preciso, pois a cronologia seria umalei natural, eficaz para o estabelecimento da ligao do enunciado realidadeque se pretende estabelecer, ao mesmo tempo em que se associam aoprotagonista as catstrofes na poca em ele surge e, principalmente, osadventos no explicados de prosperidade daqueles que a ele se aproximam.

    A narrativa se encerra com a sentena de sua falta, Pois. E maisnada (ROSA, 2001, p. 155). No h justificao lgica para os eventosestranhos que o trouxeram quela comunidade, nem para sua partida ouqualquer outro dos eventos narrados.

    Ademais, apenas a referncia ao fato de que Jos Kakende o ajudaraa acender de secreto, com formato, nove fogueiras; e, mais, o Kakendesoubesse apenas repetir aquelas suas velhas e divagadas vises de nuvem,chamas, rudos, redondos, rodas geringona e entes (ROSA, 2001, p. 155).

    O meio-escravo a nica testemunha da chegada e da partida doextraterrestre. Do mesmo modo que, ao fim, ajuda na partida do forasteiro,j no incio, aps os cataclismos que prenunciam a presena do moo,Kakende tenta advertir a populao da pequena comunidade de quepresenciara portentosa apario (ROSA, 2001, p. 151). No entanto, apesardo que se espera do um contato to ntimo, no h transformaesevidenciveis na conduta de Kakende. Possivelmente, isso acontece porqueKakende j estava completamente no caminho do bem, pois tudo querealiza em favor da comunidade e daqueles que esto prximos a ele,indiscriminadamente.

    Enfim, Um moo muito branco trata da transformao das pessoasatravs do fortuito contato com um ser muito diferente deles mesmos.Reproduz, na sua estrutura profunda, a eterna luta entre o bem e o mal, ecomo possvel, indiscriminadamente, ir de um plo ao outro, atravsdas experincias que o acaso proporciona.

    De fato, admira que Guimares Rosa tenha construdo tal histria,pois quando o conto foi publicado, em 1962, o assunto dos discos voadoresera consideravelmente novo, criado por volta de 1947, na imprensaamericana, a partir de um acidente com um balo metrolgico, em Roswell,Novo Mxico, que ainda hoje chama a ateno e gera muita discusso.Some-se a isto o fato de que, no Brasil, os primeiros relatos de objetosvoadores no identificados datarem da dcada de 1950, conforme osregistros da Fora Area Brasileira. E este fato, por si s, j mostra ointeresse do autor em tratar do assunto inslito/fantstico.

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    Finalmente, alm das evidncias j apontadas acerca do tema, aindamerece ser mencionado o ttulo do conto no ndice grfico em PrimeirasEstrias cada conto tem um desenho que o resume criado para a ediooriginal da obra, por Lus Jardim, a pedido do autor. Neste, o conto descrito pela configurao de seis pessoas, trs de cada lado de uma cadeiade montanhas sobre a qual, no meio do desenho, paira um pequeno discovoador. Abre o ttulo o desenho de uma estrela cadente (ou cometa) efecha-o o smbolo do infinito.

    A imagem mostra como o protagonista aliengena centraliza todosos outros elementos do conto, alm de deixar clara a interpretao de queo moo mesmo oriundo de outro planeta, coisa que no texto literrio dado apenas pelas inferncias possveis a partir de sua descrio to distintae pelo vocabulrio espacial que reveste o conto.

    Guimares Rosa era um artfice da palavra, ao mesmo tempo emque era seu amante. Ao lanar-se sobre o gnero fantstico, propriamentedito, foi capaz de produzir um dos mais interessantes contos da literaturabrasileira, no que tange o assunto ufolgico.

    Alm disso, como ficou notrio, a leitura conto permite que seentrelacem duas vertentes distintas do pensamento acerca do inslito. Numprimeiro momento, na relao das personagens do conto com oprotagonista aliengena, destaca-se o conceito freudiano de unheimlich, e,mais adiante, no que diz respeito aos elementos da narrativa como umtodo, o aspecto modelar proposto por Todorov para o conto fantstico semostra ainda mais eficaz.

    Em ltima instncia, o que ultrapassa a superfcie estrutural etemtica do conto a possibilidade de transformao, qui o desejo maisntimo e inconsciente, de seguir o caminho do bem e do bom, trazida tona, para aquela pequena comunidade, atravs do contato com este mooto estrangeiro.

    REFERNCIAS

    BUSSOLOTTI, Maria Apparecida F. Marcondes (Org.). Joo Guimares Rosa:correspondncia com seu tradutor alemo Curt Meyer-Clason (1958-1967). Rio de Janeiro: NovaFronteira/ABL, 2003.

    FREUD, Sigmund. Histria de uma neurose infantil: (O homem dos lobos): alm do princpiodo prazer e outros textos (1917-1920). So Paulo: Companhia das Letras, 2010.

    ROSA, Joo Guimares. Primeiras estrias. 15 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

    TODOROV, Tzvetan. Introduo literatura fantstica. So Paulo: Perspectiva, 1975.

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