7094 Santos Eduardo

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1 VII Colóquio Internacional Marx Engels GT 2 - Os Marxismos Mesa Redonda: Teorias da ideologia: elementos para uma crítica contemporânea Coordenador: Prof. Dr. Stefan Fornos Klein Apontamentos sobre ideologia em Herbert Marcuse Eduardo Altheman Camargo Santos 1 Resumo Este artigo busca realizar alguns apontamentos teóricos sobre a teoria desenvolvida pelo pensador alemão Herbert Marcuse acerca do conceito marxista de ideologia, tal como Marcuse a desenvolve em suas obras Eros e Civilização (1955) e Ideologia da Sociedade Industrial (1964), em estreito diálogo com a psicanálise freudiana. Palavras-chave: Marcuse; ideologia; marxismo. Abstract This article seeks to discuss the theory regarding the Marxist concept of ideology, as developed by the German thinker Herbert Marcuse, especially in his works Eros and Civilization (1955) and One-dimensional Man (1964), in close relation to Freudian psychoanalysis. Key-words: Marcuse; ideology; Marxism. Introdução 1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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VII Colóquio Internacional Marx Engels

GT 2 - Os Marxismos

Mesa Redonda: Teorias da ideologia: elementos para uma crítica contemporânea

Coordenador: Prof. Dr. Stefan Fornos Klein

Apontamentos sobre ideologia em Herbert Marcuse

Eduardo Altheman Camargo Santos1

Resumo

Este artigo busca realizar alguns apontamentos teóricos sobre a teoria desenvolvida pelo

pensador alemão Herbert Marcuse acerca do conceito marxista de ideologia, tal como Marcuse a

desenvolve em suas obras Eros e Civilização (1955) e Ideologia da Sociedade Industrial (1964),

em estreito diálogo com a psicanálise freudiana.

Palavras-chave: Marcuse; ideologia; marxismo.

Abstract

This article seeks to discuss the theory regarding the Marxist concept of ideology, as developed

by the German thinker Herbert Marcuse, especially in his works Eros and Civilization (1955)

and One-dimensional Man (1964), in close relation to Freudian psychoanalysis.

Key-words: Marcuse; ideology; Marxism.

Introdução

1 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

(FAPESP).

2

Contemporaneamente, como mostram inúmeros autores, tais como Slavoj Žižek, Fredric

Jameson ou Terry Eagleton2, para ficarmos nos mais conhecidos e recentes, assistimos a uma

avalanche de críticas ao marxismo, seja ele compreendido como movimento da práxis

revolucionária, seja enquanto corrente teórica, seja ainda enquanto relação dialética entre teoria e

prática – para retomar as palavras do filósofo húngaro Georg Lukács a respeito do marxismo, “a

teoria que anuncia isso não se vincula à revolução de uma maneira mais ou menos contingente,

por relações interligadas e ‘mal interpretadas’. Ela é essencialmente apenas a expressão pensada

do próprio processo revolucionário” (LUKÁCS, 2003: 66).

A bem dizer, essa avalanche não é “privilégio” nosso; vem desde o nascimento do

marxismo e se estende aos dias de hoje. Do marxismo à sua crise e depois à crise de sua crise3,

em 1983 (e, diga-se, muito antes), alguém como Perry Anderson e outros já nos alertavam para

essa espécie de movimento cíclico pelo qual passa o marxismo.

No entanto, apesar de todas as críticas e de todo esse panorama, assim como os autores

citados acima, creio ser não só possível, como necessário falar em ideologia, caso desejemos de

fato compreender o modo de funcionamento do capitalismo contemporâneo.

Por limitações de tempo e de espaço, me focarei em um autor marxista cuja contribuição

me parece ainda hoje, e em alguns aspectos talvez mais hoje do que antes, essencial para

compreender aspetos fundamentais de nossa sociedade: Herbert Marcuse. Não ousarei nesse

trabalho discutir quais elementos de sua obra ainda são atuais e quais seriam, por assim dizer,

“datados”. Trata-se, antes, de um trabalho de esmiuçar teórico em torno do conceito de ideologia,

tal como o pensador berlinense o desenvolve singularmente, principalmente em suas obras dos

anos 50 e 60 do século passado.

Breve contextualização

2 Cf., por exemplo: Žižek, S. (org.) Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

JAMESON, F. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996.

EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora Boitempo, 1997. 3 Cf. ANDERSON, P. A crise da crise do marxismo - Introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Editora

Brasiliense, 1985. No original: ANDERSON, P. In the Tracks of Historical Materialism. Londres: Verso Editions,

1983.

3

Creio que não é necessário realizar nenhum tipo de introdução biográfica a Marcuse,

afinal, seja em Berlim, sua cidade natal, em Paris em 1968, na Califórnia (onde lecionou em

diversas faculdades, incluindo, por exemplo, Berkeley) ou mesmo no Brasil (onde, em virtude da

censura da ditadura civil-militar no país, a obra conhecida mundialmente como O Homem

Unidimensional, ou One-dimensional man, teve de ser publicada apenas com parte de seu

subtítulo, Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society, em português, simplesmente,

Ideologia da sociedade industrial), Marcuse ficou conhecido como o guru da Nova Esquerda,

como o freudo-marxista capaz de unir psicanálise e teoria social para atacar o Establishment,

como o profeta dos estudantes, o frankfurtiano que nunca apelou à polícia.

Embora sua obra tenha caído em uma espécie de ostracismo intelectual a partir dos anos

de 1990, sendo muito mais discutida sua interpretação de Freud em Eros e Civilização em

círculos psicanalíticos restritos (e geralmente em um tom depreciativo), Marcuse ainda é

relembrado como um dos últimos intelectuais marxistas capazes de contagiar com sua prosa e

idéias radicais4 (embora, muitas vezes, como nos mostra Wolfgang Leo Maar, segundo os

críticos, “[...] sua obra se consumaria ao arrepio do rigor intelectual, seria uma reflexão

instrumentalizada estrategicamente pela ação imediata [...] (MAAR, 1997: 9)).

Apenas a título de contextualização mínima, Marcuse nasceu em Berlim em 1898 e

morreu aos 81 anos em 1979. Realizou seus estudos em Freiburg sob a orientação de Martin

Heidegger, filósofo com o qual travou grande diálogo e, posteriormente, com a adesão de

Heidegger ao regime do Führer, também contundente crítica. Foi membro do Partido Social-

Democrata Alemão entre 1917 e 1918, tendo participado do importante Conselho de Soldados

durante a revolução berlinense de 1919, momento no qual abandona o Partido. Participou da

primeira geração do Instituto de Pesquisas Sociais, junto com nomes como Max Horkheimer,

Theodor W. Adorno e Walter Benjamin. Assim como os demais membros do Instituto,

intelectual, marxista e judeu, se viu obrigado a migrar para Nova Iorque com a ascensão do nazi-

fascismo na Europa. Suas obras mais importantes são as já citadas Eros e Civilização, de 1955, e

Ideologia da Sociedade Industrial, de 1964. No entanto, produziu também outros importantes

estudos, tal como a re-interpretação de Hegel e Marx em Razão e Revolução, de 1941.

4 Vide, por exemplo, menções constantes feitas de sua obra no movimento de Occupy Wall Street:

http://www.youtube.com/watch?v=jfjf-lN2bS8.

4

Passemos, agora, aos precedentes do freudo-marxismo, que gostaria de ressaltar antes de

adentrarmos na obra de Marcuse.

Marxismo e psicanálise

Os precedentes necessários para se compreender a Teoria Crítica posterior envolvem a

análise do movimento freudo-marxista dos anos vinte e trinta5. Tal movimento defrontava-se

com dois acontecimentos políticos de suma importância: em primeiro lugar, a Revolução Russa

de 1917 e, em segundo (mas talvez até mais importante), a ascensão de Hitler. Ambos os

acontecimentos foram marcados por uma enorme imposição subjetiva na história, muito embora

as condições objetivas pudessem barrar ou apontar na direção contrária das tendências que se

deflagraram. No primeiro caso, pois a Rússia era um país industrialmente “atrasado” em muitos

sentidos, com um proletariado ainda não bem definido e, ainda assim, a Revolução foi capaz de

“pular etapas” no processo de se atingir o socialismo. No segundo caso, o que se deu foi, de certa

forma, oposto, afinal, a Alemanha era um país desenvolvido, com uma classe proletária bem

definida, Partido Comunista organizado, e, no entanto, essa mesma classe apoiou a ascensão de

Hitler ao poder. Ora, como explicar esse elemento subjetivo na História? O caminho para a

resposta está justamente no recurso à psicanálise.

Ora, a psicanálise foi bem vista e até incentivada nos primeiros anos de Revolução na

União Soviética. No entanto, com a morte de Lênin, tal quadro se inverte, sendo tal teoria

acusada de idealismo de uma classe burguesa em declínio. Os ideólogos da III Internacional

buscavam aniquilar qualquer teoria subversiva, e nesse bolo estava, também, a psicanálise.

Já na Alemanha, a psicanálise não era vista dessa maneira, uma vez que, era ali, e não na

URSS que ela podia fornecer melhores respostas às indagações políticas: afinal, na URSS o

proletariado “ganhou”, mas, ali, não. Os marxistas alemães não desistiram de um movimento

radical de interpretação psicanalítica, aliada ao marxismo revolucionário, capaz de explicar a

capitulação proletária. Nesse sentido surgem as respostas alemãs às críticas feitas à psicanálise e

5 Aqui sigo o argumento de geral de ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1998.

5

sua tentativa de incluí-la no rol de ciências naturais. Assim, o freudo-marxismo teve seu

conteúdo pautado pela explicação dessa defasagem entre, de um lado, consciência política e, de

outro, condições objetivas, ao mesmo tempo em que sua forma se dava sob a égide do

cientificismo positivista, para evitar qualquer choque mais brusco com a direção da III

Internacional.

Até chegarmos aos nomes mais conhecidos, como Wilhelm Reich, Erich Fromm e o

próprio Marcuse, essa união de teoria social revolucionária e psicanálise passou por nomes como

Siegfried Bernfeld e Otto Fenichel. Muito antes de Marcuse, já havia sido realizada a

historicização das categorias psicanalíticas, afirmada a possibilidade de variação do princípio de

realidade e até proposta uma revolução cultural baseada no primado do princípio de prazer6.

No entanto, também não é possível afirmar que os autores da Escola de Frankfurt não

fizeram senão repetir esses autores anteriores, afinal, estes, em sua busca por historicizar Freud,

acabam por perder de vista justamente seu caráter crítico e dialético, sua negatividade própria,

mostrando-se não tanto marxistas, mas partilhando muito mais do paradigma kantiano iluminista,

para o qual o Aufklärung tem apenas implicações positivas. Caberia, então, à Escola de Frankfurt

essa crítica do freudo-marxismo, que não se apressa em atingir qualquer síntese harmônica.

Marxismo e psicanálise em Marcuse

Marcuse estava, desde o início de sua incursão no campo psicanalítico, seguro de que a

teoria freudiana e a prática terapêutica muitas vezes caminhavam em direções opostas. Enquanto

a primeira não abre mão jamais da força crítica e da negatividade, ao negar a felicidade plena do

indivíduo em nossa civilização, a segunda muitas vezes é nada mais que, nas palavras do próprio

Freud (que, aliás, também estava ciente dos limites da prática psicanalítica), um “curso de

resignação”. Assim, “como instrumento crítico, o freudismo permite a Marcuse explorar os

mecanismos pelos quais a cultura unidimensional se interioriza e se perpetua [...]” (ROUANET,

1998: 199).

6 Embora, seja necessário ressaltar, se atentarmos bem, não é exatamente isso que Marcuse propõe.

6

Segundo Marcuse, toda a situação de Carência (Ananké ou Lebensnot) na qual se baseia a

renúncia do Princípio de Prazer e a instauração do Princípio de Realidade não mais se sustenta: o

capitalismo tardio é a própria pacificação da luta pela existência, é o esplendor da técnica e da

organização. Nesse sentido, devemos distinguir entre um Princípio de Realidade onto e

filogenético e as variações históricas pelas quais passa tal Princípio. Na sociedade

unidimensional, dado que o enorme avanço técnico e racionalidade poderiam facilmente libertar

todos do jugo do trabalho alienado, transformando tal atividade em uma parcela residual da vida

de cada um, reina um Princípio de Realidade específico, responsável justamente por aniquilar as

possibilidades de crítica e de transformação: o Princípio de Desempenho. Tal Princípio é baseado

em uma mais-repressão, necessária justamente para aniquilar a potencialidade que a própria

sociedade unidimensional cria, isto é, a libertação do homem do trabalho heterônomo e alienado.

Dado que a sociedade como um todo aparece como a Razão em pessoa, o ápice de

liberdade e organização, torna-se impossível revoltar-se contra o todo totalitário, contra esse

espécie de “Pai” unidimensional – que, no limite, sequer existe, afinal, a dominação é impessoal,

parte do próprio sistema de gerência e técnica administrativa.

Instrumento de crítica do existente, a psicanálise serve, ao mesmo tempo, como

instrumento para a definição de um projeto utópico: o reino de Eros liberto e incondicional, no

qual o Princípio de Desempenho não dita, totalitário, as vidas individuais.

Ideologia real

Marcuse, junto com sua geração, foi um dos primeiros a postular que a ideologia tornou-

se real. Sem contarmos Marx e Hegel, é claro, para quem a ideologia jamais foi questão de

quimera subjetiva e mentira deslavada, Marcuse mostrou como a ideologia é real em um sentido

muito mais pernicioso.

Segundo Marcuse, a sociedade unidimensional é, claro, ideológica em um sentido mais

corriqueiro do termo, ou seja, por apresentar-se, nas palavras do próprio autor, como a

personificação da Razão e assim excluir qualquer forma de transcendência potencialmente crítica

ou qualquer ligação que permita desfazer o todo harmonioso que se apresenta como progresso e

7

esconde seu caráter opressivo e totalitário. Nesse sentido, a tarefa da teoria crítica da sociedade é

analisar o que foi e o que não foi realizado por determinada sociedade; o que é e o que poderia

ser têm, necessariamente de ser comparados, ou seja, há de se comparar uma sociedade e suas

alternativas históricas, real e potencial. Como afirma Marcuse, “Teoria social é teoria histórica, e

história é a esfera da possibilidade na esfera da necessidade” (MARCUSE, 1967: 15).

No entanto, essa sociedade também é ideológica justamente porque a ideologia, nela,

nunca é esfera apartada do real, mas, ao contrário, diminui sua distância em relação a este para

mostrar que o próprio real é, já em si, ideológico. O aplainamento da contradição é justamente

um dos motivos de Marcuse cunhar o termo unidimensional para descrever tal sociedade. A

sociedade afluente, a sociedade que viveu seus anos dourados é aquela que trouxe riquezas,

progresso técnico e trabalho em um nível nunca antes visto na história da humanidade. E quando

o alto padrão de consumo próprio dessa sociedade consegue ser estendido a todas as classes, a

classe trabalhadora deixa de ser a negação viva do capitalismo, deixa de ser sua antítese

ambulante para tornar-se integrada. E o que antes era típico de uma classe (a classe dominante),

torna-se típico do humano, do Homem em geral, da única alternativa possível. Se voltarmos ao

Manifesto Comunista, de Marx e Engels, é como se uma das afirmações finais do livro perdesse

sua “validade histórica”, por assim dizer, afinal, os trabalhadores não mais têm apenas os

grilhões a perder, eles têm algo mais a perder – de modo contrário, como entender a entrada das

classes trabalhadoras nas novas classes médias estadunidenses?

Há uma integração do trabalhador na sociedade e na empresa que não se expressa apenas

na consciência, mas também nos aspectos materiais. A mecanização torna o trabalhador

dependente da empresa e este começa, então, a interessar-se pelos assuntos concernentes a ela,

começa a tomar parte nos problemas dela. A classe trabalhadora deixa de ser a negação viva da

sociedade capitalista. Concomitantemente, a classe dominante não é mais tomada como inimiga,

não é a ela que se dirige o ódio e a revolta. A classe dominante transforma dominação em

gerência e administração. Sob uma série de obstáculos burocráticos e tecnológicos, não mais se

reconhece um inimigo no patrão.

O governo das sociedades industriais desenvolvidas apenas funciona quando mobiliza

grandes contingentes de pessoas em processos técnico-produtivos acima de qualquer ambição ou

8

desejo individual, ou melhor, tornando esse próprio processo e seus produtos os desejos e

ambições individuais.

Assim, parece tão impossível distinguir entre os interesses individuais e coletivos, tão

difícil distinguir entre felicidade de fato e sua ilusão que Marcuse chega a questionar o conceito

marxista de “alienação”. Afinal, esta deixa de ser algo próprio da consciência para tornar-se

material. O indivíduo é engolfado por sua existência alienada: seu trabalho, suas roupas, seus

carros, seu estilo são as coisas com as quais ele se identifica imediatamente; o indivíduo é seu

carro, ele se enxerga em suas roupas, ele vê sua alma em seu apartamento7. Nesse mesmo

sentido, o autor contesta o conceito psicanalítico de introjeção, já que este pressuporia duas

realidades distintas e até antagônicas, a do Eu e a exterior, o que não mais é observado. Não há

tensão entre desejo e realização, uma vez que a opressão não mais assume a forma da privação,

mas, ao contrário da abundância.

Ora, embora tal teoria pudesse soar como um absurdo na época em que Marcuse

escreveu, tanto interpretativo das ideias de Marx quanto da própria realidade histórica, hoje em

dia talvez encontremos espanto apenas naqueles mais incapazes de serem ortodoxos no sentido

lukácsiano do termo8. Žižek foi um daqueles que, à parte algumas reservas quanto a alguns de

seus escritos ou polêmicas falas, compreendeu que, para que possamos entender de fato o

funcionamento da ideologia, temos de nos desvencilhar das amarras do jogo antitético e polar

Ideologia = mentira, Realidade = verdade:

A lição teórica a ser extraída disso é que o conceito de ideologia deve

ser desvinculado da problemática "representativista": a ideologia nada tem a

ver com a "ilusão", com uma representação equivocada e distorcida de seu

conteúdo social.

Dito em termos sucintos, um ponto de vista político pode ser

perfeitamente correto ("verdadeiro") quanto a seu conteúdo objetivo, mas

7 É importante salientar que, no exato momento em que ele critica Marx, ele não poderia ser mais marxista, já que

não se trata de um questionamento que afirma que a alienação é um conceito ultrapassado ou anacrônico, que não

pode dizer nada sobre a realidade de fato, mas sim um questionamento que busca aprofundar o conceito de

alienação, mostrar como ela se tornou mais perversa ainda, como ela atinge áreas outrora intocadas. 8 Cf. LUKÁCS, Georg. O que é marxismo ortodoxo. In: História e Consciência de Classe – estudos sobre a

dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 63-104.

9

completamente ideológico; e, inversamente, a ideia que uma visão política

fornece de seu conteúdo social pode revelar-se totalmente equivocada, mas

não ter absolutamente nada de "ideológica". (ŽIŽEK, 1996: 12).

Isso posto, é necessário sermos fiéis a Marcuse, uma vez que tal teoria não implica em

abandonarmos a crítica ao capitalismo em nome de um multiculturalismo estéril ou, pior ainda,

adotarmos as reacionárias feições de uma crítica moral ao sistema. Marcuse jamais postulou que

a integração da classe proletária ao sistema imediatamente significa o fim da opressão ou da

dominação; jamais se deslumbrou com as possibilidades abertas pelos tempos hipermodernos ou

pela capacidade de gozo do capital globalizado e fluido. Ao contrário, o autor alemão mantém

viva a esperança da Revolução no conceito de Grande Recusa:

“[...] na realidade, nem a utilização dos controles políticos em vez dos

controles físicos [...], nem a mudança no caráter do trabalho pesado, nem a

assimilação das classes ocupacionais, nem a igualação na esfera do consumo

compensam o fato de as decisões sobre a vida e a morte, sobre a segurança

pessoal e nacional, serem tomadas em lugares sobre os quais os indivíduos

não têm controle algum. Os escravos da civilização industrial desenvolvida

são escravos sublimados, mas são escravos [...]”. (MARCUSE, 1967: 49).

Mesmo o gozo instintivo e imediato sentido realmente em tal quadro de controle e

administração absolutos, em tal quadro de identificação completa e imediata com o sistema, não

pode ser senão passageiros, algo que alguns psicanalistas e psicólogos chamam de feel good

factor, situação na qual o indivíduo está pleno de felicidade e sente-se em paz consigo mesmo e

no momento imediatamente seguinte, e sem razão (aparente), comete suicídio. Trata-se daquilo

que, salvo engano, Žižek quer dizer quando afirma: “a situação é catastrófica, mas não é grave”

9. Ou ainda, nas palavras do próprio Marcuse, “euforia na infelicidade” (MARCUSE, 1967:26).

9 Título de apresentação de palestra de Žižek no Brasil:

http://revolucoes.org.br/v1/sites/default/files/projeto_revolucoes_release_seminario_e_exposicao.pdf

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Referências Bibliográficas

ANDERSON, P. A crise da crise do marxismo - Introdução a um debate contemporâneo. São

Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora Boitempo, 1997.

JAMESON, F. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática,

1996.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe – estudos sobre a dialética marxista. São

Paulo: Martins Fontes, 2003.

MAAR, W. L. Introdução – Marcuse: em busca de uma ética materialista. In: MARCUSE, H.

Cultura e Sociedade – volume I. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1997.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

_________________. Ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e Psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998.

ŽIŽEK, Slavoj. Introdução – o espectro da ideologia. In: ŽIŽEK, Slavoj (org.). Um mapa da

ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, pp. 7-38.