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30 o sentido da visão. Jan Bruegel, °Velho, e Peter Paul Rubens, 1617- 364 lan Brueghel, artista flamengo, viveu no século xvn, período de enriquecimento da burguesia e de mudança de mentalidade. Nessa tela, O sentido da visão, o pintor descreve a riqueza do mundo que nos cerca - objetos e paisagens -, que estimula nosso olhar e chama nossa atenção. O que ocorreu nesse espaço de tempo para mudar o foco do olhar? Na Antiguidade, Aristóteles pretendia mostrar que há vários graus de conhecimento, que começam pelos sentidos, mas a verdadeira ciência é o conhecimento especulativo, não prático, que busca as causas últimas de todas as coisas. No entanto, pela aliança entre ciência e técnica, a revolução científica da Idade Moderna mudou radicalmente o método de investigação da natureza. E logo tomou-se possível e desejável a aplicação prática das descobertas científicas. A ciência deixava de ser uma área da filosofia para seguir seu próprio caminho.

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o sentido da visão. JanBruegel, °Velho, e PeterPaul Rubens, 1617-

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lan Brueghel, artista flamengo, viveu no século xvn, períodode enriquecimento da burguesia e de mudança de mentalidade.Nessa tela, O sentido da visão, o pintor descreve a riqueza domundo que nos cerca - objetos e paisagens -, que estimulanosso olhar e chama nossa atenção.

O que ocorreu nesse espaço de tempo para mudar o foco doolhar? Na Antiguidade, Aristóteles pretendia mostrar que há váriosgraus de conhecimento, que começam pelos sentidos, mas averdadeira ciência é o conhecimento especulativo, não prático,que busca as causas últimas de todas as coisas. No entanto, pelaaliança entre ciência e técnica, a revolução científica da IdadeModerna mudou radicalmente o método de investigação danatureza. E logo tomou-se possível e desejável a aplicação práticadas descobertas científicas. A ciência deixava de ser uma área dafilosofia para seguir seu próprio caminho.

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DUma nova mentalidadeEm seu livro Pensamentos, Pascal diz o seguinte:

o silêncio desses espaços infinitos me apavora.'

Essa frase explicita a angústia para quem, noséculo XVII, vivenciou a substituição da teoriageocêntrica - aceita durante mais de vinte sécu-los - pela teoria heliocêntrica. A nova teoria não ape-nas retirou a Terra do centro do Universo, mas tambémdesintegrou uma construção estética que ordenava osespaços e hierarquizava o "mundo superior dos Céus"e o "mundo inferior e corruptível da Temi'. Galileugeometrizou o Universo, igualando todos os espaços.Ao descobrir a Via Láctea, contrapôs, a um mundofechado e finito, a ideia da infi.nitude do Céu.

mETIMOLOGIAHeliocêntrico. Do grego helios, "Sol".

A questão, no entanto, não é apenas científica. Sefosse, Galileu não teria sido obrigado a retratar-sepublicamente e abjurar sua teoria nem recolhidoa prisão domiciliar. Há algo mais que se quebra,além da ordem cósmica, cujas causas antecedema esse período.

Examinando o contexto histórico em que ocor-reram transformações tão radicais, percebemos queelas não se desligavam de outros acontecimentosigualmente marcantes, que se configuravam desdeo século anterior: surgimento da burguesia; desen-volvimento da economia capitalista; RevoluçãoComercial; renascimento das artes, das letras e dafilosofia. Desse modo, nasce um novo indivíduo, con-fiante na razão e no poder de transformar o mundo.

Uma explicação possível para justificar a mu-dança ocorrida é que a nova classe comerciante,constituída pelos burgueses, impôs-se pela valori-zação do trabalho em oposição ao ócio da aristocra-cia. Além disso, inventos como a bússola, o papel, aimprensa e a máquina a vapor, o aperfeiçoamentodos navios e as descobertas tornavam-se necessá-rios para o comércio e a indústria em expansão.

O renas cimento das ciências no século XVII nãoconstituiu uma simples evolução do pensamentocientífico, mas uma verdadeira ruptura que impli-cou outra concepção de saber, por conta da novi-dade do método instituído.

Gravura de autoria desconhecida mostrando Gutenbergem sua oficina. Sem data. A descoberta dos tiposmóveis possibilitou a Gutenberg criar a imprensa, quedesempenhou um papel fundamental na modernidade,por divulgar mais rapidamente o conhecimento.

fJ Caracteristicas do pensamentomoderno

A partir do Renascimento, a religião, suporte dosaber na Idade Média, sofreu diversos abalos com oquestionamento da autoridade papal, o surgimentodo protestantismo e a consequente destruição daunidade religiosa na Europa Ocidental. Decorrem daías características desse novo momento histórico.

• antropocentrismo: enquanto o pensamentomedieval é predominantemente teocêntrico, oindivíduo moderno coloca a si próprio no cen-tro dos interesses e decisões. Às certezas da fé,contrapõe-se a capacidade de livre exame. Aténa religião os adeptos da Reforma defendem oacesso direto ao texto bíblico, dando a cada umo direito de interpretá-Io.

mETIMOLOGIAAntropocentrismo. Do grego anthropos, "homem";portanto, o homem no centro.Teocentrismo. Do grego theo, "deus", isto é, deus nocentro.

. racionalismo: ao critério da fé e da revelação,opõe-se o poder exclusivo da razão de díscer-nir, distinguir e comparar; a atitude polêmicaperante a tradição recusa o dogmatismo.

I PASCAL, Blaise. Pensamentos, aforismo 206. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 95. (ColeçãoOs Pensadores).

A revolução científica do século XVII Capítulo 30

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. saber ativo: em oposição ao saber contem-plativo, o conhecimento não parte apenas denoções e princípios. mas da própria realidadeobservada e submetida a experimentações;como decorrência. o saber adquirido devido àaliança entre a ciência e a técnica deve voltarà realidade para transformá-Ia .

. método: a busca do método adequado marcao ponto de partida de vários pensadores doséculo XVII. como Descartes. Espinosa e FrancisBacon. Opróprio Galileu, no mesmo século. teo-rizou sobre o método científico. o que represen-tou uma verdadeira revolução: o rompimentoda ciência com a filosofia aristotélico-escolás-tíca, em busca de seu próprio caminho.

D Galileu e as duas novasciências

Em 1638. à revelia da Inquisiçâo, foi publicada naHolanda a obra Discursos e demonstrações matemá-ticas sobre duas novas ciências. quando seu autor,Galileu, já cego. ainda se encontrava em prisãodomiciliar. A partir desse último e importante tra-balho, em que relaciona a hipótese copernicana àsleis da mecânica, ligando a ciência da astronomia àfísica, pode-se dizer que nascia a física moderna euma nova concepção de astronomia.

QUEM É?

Galileu Galilei (1564-1642), ita-liano que lecionou nas univer-sidades de Pisa e de Pádua, foiresponsável pela superação doaristotelismo e pelo advento damoderna concepção de ciên-cia. Empreendeu uma mudançaradical nos campos da ópticageométrica (lentes, reflexãoe refração da luz), termologia(invenção do termômetro), nidrostática, ópticafísica (teoria sobre a natureza da luz) e principal-mente no campo da mecânica, da qual lançou osfundamentos. Escreveu O ensaiador, Diálogo sobreos dois máximos sistemas do mundo, Discursos edemonstrações matemáticas sobre duas novas ciên-cias. Sua vida foi marcada pela perseguição políticae religiosa, por defender a substituição do modeloptolomaico (geocêntrico) pelo modelo copernicano(heliocêntrico). Condenado pela Inquisição, apósser obrigado a abjurar publicamente suas ideias, foiconfinado em prisão domiciliar a partir de 1633-

Galileu Galilei, deJustus Sustermans,c. 1639.

~ PARA SABER MAISEm novembro de 1992, o Vaticano anunciou a reabili-tação oficial de Galileu. Dentre os seis cientistas indi-cados pelo papa João Paulo II para formar a comis-são de estudos da Pontifícia Academia de Ciências,encontrava-se o brasileiro Carlos Chagas Filho.

• A nova físicaA produção teórica e experimental de Galileu só

foi possível porque ele dispunha em sua oficina derecursos como plano inclinado. termômetro. lunetae relógio de água. Embora ainda fossem engenhocasum tanto primitivas. foram suficientes para mostraro valor da observação. o que lhe permitiu abando-nar a ciência especulativa e caminhar em direção àconstrução de uma ciência ativa.

Em oposição ao discurso formal. Galileu solicitao testemunho dos sentidos e o auxílio da técnica.Valoriza os experimentos e. ao contrário da físicaantiga. que buscava explicar o "porquê" do fenô-meno pelas qualidades inerentes aos corpos. Galileuse interessa pelo "como'. o que supõe a descriçãoquantitativa do fenômeno.

Por meio dessa descrição. distingue as qualida-des secundárias (cor. odor. sabor) das qualidadesprimárias (forma. figura. número e movimento). Assecundárias são subjetivas, enquanto as primáriassão objetivas e passíveis de tratamento matemático.o que permite a Galileu assimilar o espaço físico aoespaço geométrico de Euclides.

Assim ele explica:

A filosofia encontra-se escrita nestegrande livro que continuamentese abre perante nossos olhos(isto é, o Universo), que nãose pode compreender antes deentender a língua e conhecer oscaracteres com os quais está escrito.Ele está escrito em língua matemática,os caracteres são triângu los, ci rcu nferênciase outras figuras geométricas, sem cujosmeios é impossível entender humanamenteas palavras: sem eles nós vagamos perdidosdentro de um obscuro labirinto."

Telescópio deGalileu Galilei,século XVII.

2 GALILEI, Galileu. O ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 119. (Coleção Os Pensadores).

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Calileu realizando a experiência do plano inclinado, de Giuseppe Bezzuoli. Afresco da Tribuna de Galileu, MuseuZoológico, Florença. Com o plano inclinado, Galileu introduz a medida e a experimentação na física nascente.

Quanto ao movimento, Galileu recusa a teoriaaristotélica que distingue o movimento qualitativodo movimento quantitativo para considerar todamudança quantitativa. Com isso, estabelece umcorte entre as duas leituras do mundo, pois, ondeAristóteles via qualidades (corpos pesados ou leves),Galileu descobre relações e proporções.

Quando estuda Arquimedes e vê que as leis doequilíbrio dos corpos flutuantes são verdadeiras,destrói a teoria da "gravidade" e "leveza" dos cor-pos. "Subir" e "descer" não atestam mais a ordemimutável do mundo, a essência escondida das coi-sas. Por exemplo: onde está a "gravidade" quandomergulhamos a madeira na água, uma vez que elase torna "leve", a ponto de só poder mover-se parabaixo se for forçada?

Ao explicar "como' os corpos caem (e não "porque" caem), Galileu descobre a relação entre o tempoque um corpo leva para percorrer o plano inclinadoe o espaço percorrido. Repetidas experiências con-firmam as relações constantes e necessárias, dondedecorre a lei da queda dos corpos, traduzida numaforma geométrica.

Não estamos, porém, diante de uma ciência queparte apenas de dados empíricos. O procedimentode Galileu não é sempre indutivo, pois nem todasas vezes parte dos fatos para as leis. Em muitasocasiões realiza "experiências mentais", pelas quaisimagina situações impossíveis de verificar empi-ricamente e tira conclusões desses raciocínios. Oque dá validade científica aos processos intelec-tuais é que os resultados devem ser submetidos àcomprovação.

Uma grande descoberta alcançada com essemétodo foi o princípio da inércia, segundo o qualqualquer objeto não submetido à ação de umaforça permanece indefinidamente em repouso ouem movimento uniforme. Ora, isso não acontece defato, pois não é levado em conta o atrito, mas podeser pensado como se ocorresse.

Galileu é um dos expoentes dos novos tempos:a ciência nascente não resulta de simples desen-volvimento, mas surge de uma ruptura, da adoçãode uma nova linguagem, fruto, portanto, de umarevolução cientifica. Embora Galileu se referisse à"filosofia" (esse saber universal), já começava aí oprocesso de separação entre ciência e reflexão filo-sófica.Método, em grego, significa "caminho'. E essecaminho Galileu encontra na união da experimenta-ção com a matemática.

• A astronomia e a geometrizaçãodo espaçoA teoria geocêntrica encontra-se nas obras

de Aristóteles, posteriormente completadas porPtolomeu (séc. II). Essa concepção, que perduroudurante toda a Antiguidade e a Idade Média, des-creve um Universo finito, esférico, hierarquizado.

O geocentrismo era de certo modo confirmadopelo senso comum: percebemos que a Terra é imó-vel e que o Sol gira à sua volta. No próprio textobíblico lê-se uma passagem em que Deus fez pararo Sol para que o povo eleito continuasse a lutaenquanto ainda houvesse luz, o que sugere o Sol emmovimento e a Terra fixa.

A revolução científica do século XVII Capítulo 30

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Gravura de Joseph Mulder, 1641.Em 1632,Galileu publicouo Diálogo sobre os dois máximos s,i2.temas do mundo:o ptolomaico e o copernicano. No frontispício da ediçãooriginal aparecem Aristóteles, Ptolomeu e Copérnico.

No século XVI,O monge Nicolau Copérnico (1473--1543) publicou Das revoluções dos corpos celestes,obra em que expõe o heliocentrismo. A obra foipraticamente ignorada até o início do século XVII,quando as teorias nela propostas ressurgiram comGalileu e Kepler.

A luneta proporcionou a Galileu descobertasvaliosas: para além das estrelas fixas, haveria aindainfindáveis mundos; a superfície da Lua é rugosa eirregular; o Sol tem manchas; e em torno de ]úpiterexistem quatro luas! Como isso seria possível? Vimosque para os aristotélicos o Universo é finito, a Lua e oSol são compostos de uma substância incorruptível eperfeita e[úpiter, engastado em uma esfera de cristal,não poderia ter luas que a perfurassem.

Os fenômenos da física e da astronomia, antesexplicados de acordo com as diferenças de naturezados corpos perfeitos e imperfeitos, tornam-se homogê-neos, já que não há mais como reconhecer a incorrup-tibilidade do mundo supralunar: desfaz-se, portanto, adiferença entre Terra e Céus. Além disso, à consciênciamedieval de um "mundo fechado" é contraposta a con-cepção moderna do "Universo infinito",

Essas concepções representaram um grandeabalo, pois sempre houve uma mística do lugar.Para os antigos havia lugares privilegiados: Hades(Infernos); Olimpo (lugar dos deuses); o espaçosagrado do templo; o espaço público da ágora(praça pública); o gineceu (lugar da mulher).

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O filósofo contemporâneo Alexandre Koyré, aoexplicar as grandes mudanças que ocorreram noséculo XVII, diz que elas pareciam ser redutíveis aduas ações fundamentais e estreitamente relacio-nadas entre si, que ele caracterizou como a destrui-ção do cosmo e a geometrizaçãa do espaço.

Isso significa que o espaço heterogêneo doslugares naturais tornou-se homogêneo e, despo-jado das qualidades, passou a ser quantitativo e,portanto, mensurável. Podemos dizer que houveuma "democratização" dos espaços, pois todos tor-nam-se equivalentes, nenhum é superior ao outro.Negada a diferença entre a qualidade dos espaçoscelestes e terrestres, é possível admitir que as leisda física aplicam-se igualmente a todos os corposdo Universo.

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o astrônomo. Jan Vermeer, c. 1668. Em pleno século XVII,o pintor flamengo Vermeer revela a importância da ciênciaem algumas de suas obras. Na tela, o estudiosode astronomia observa o globo celeste.

liA sintese newtonianaOs resultados obtidos por Galileu e Descartes na

física e na astronomia, bem como os dados acumu-lados por Tycho Brahe e as leis das órbitas celestesde Kepler, possibilitaram a Newton a elaboração dateoria da gravitação universal. As leis formuladasanteriormente referiam-se apenas a certos fenôme-nos considerados. O sistema newtoniano aplica-sea todos os corpos: queda livre, pêndulo, movimentoplanetário etc. e, portanto, realiza a maior síntesecientífica sobre a natureza do mundo físico .

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Isaac Newton (1642-1727) nasceu no ano em quemorria Galileu. Em 1687, publicou a obra Princípiosmatemáticos de filosofia natural (conhecida comoPrincipia), na qual começa tratando do ramo dafísica denominado mecânica até chegar à demons-tração de todo o sistema solar.

De acordo com a lenda, ao observar a queda deuma maçã, Newton teria intuído a ideia da forçade atração de todos os corpos do Universo, que olevou à elaboração da teoria da gravitação, segundoa qual "a força de atração é proporcional às mas-sas e inversamente proporcional ao quadrado dasdistâncias". Dessa maneira, relaciona a lei da quedados corpos de Galileu e as leis planetárias de Keplersobre o movimento dos astros.

A esse propósito, o escritor francês contemporâ-neo Paul Valéry comenta:

o gênio de Newton consistiu em dizer que a Lua cai,enquanto todos bem veem que ela não cai!3

Ou seja, se a Lua saísse de sua órbita e se aproxi-masse um pouco mais da Terra, certamente cairiasobre ela, tal qual uma maçã atraída pelagravidade da Terra.

Suas teorias estimularam o desen-volvimento da ciência e permane-ceram como parâmetros indiscutí-veis durante duzentos anos, até que,na primeira metade do século XX,a teoria da relatividade e a físicaquântica suplantaram o .Qara-gj,gmã newtoniano.

o artista Louis-FrancoisRobillac esculpiu ~sta

estátua de lsaac Newton,que se encontra no Trinity

College da Universidadede Cambridge, onde

concluiu seus estudos.

3 Citado por: HUISMAN, Denis eVERGEZ, André. Compêndio modernodefilosofia. v. II: O conhecimento.São Paulo: Freitas Bastos. p. 182.

3::1 Novas ciências, novo mundoÉ interessante observar o contraste entre a con-

denação de Galileu, em 1633, e o fato de Newton tersido sagrado cavaleiro pelo governo inglês, em 1705,honraria que nunca tinha sido concedida a um estu-dioso das ciências. Que revolução teria ocorrido emtão pouco tempo para que um cientista fosse exal-tado de tal maneira?

Em primeiro lugar, a visão religiosa do mundoviu-se ameaçada pela nova ciência, na qual nãohavia lugar para a causalidade divina. Ao separarrazão e fé, Galileu buscava a verdade científica inde-pendentemente das verdades reveladas, o que nãosignificava pregar o ateísmo, mas reconhecer que afé não era um elemento a se considerar na ciência.

Outro impacto decorreu da descentralização docosmo. Essa subversão da ordem provocou inevi-tável ansiedade pela transformação da Terra emsimples planeta na imensidade do espaço infinito.Também o lugar do ser humano no mundo estavasendo questionado.

Além disso, a ciência moderna compara a natu-reza e o próprio ser humano a uma máquina, umconjunto de mecanismos cujas leis precisam serdescobertas. Ficam excluídas da ciência todas asconsiderações a respeito do valor, da perfeição, dosentido e do fim. Isto é, as causas formais e finais(ou teleológicas), tão caras à filosofia antiga, não

'\: mais serviam para explicar: apenas as causaseficientes interessam à nova ciência.

No entanto, as inúmeras conquistas efe-tuadas no século XVII,tanto no campo teó-rico de formulação das leis como no desen-

~ volvimento da tecnologia, justificaram osi inte:esses dos governos e dos homens de_ negocio e consolidaram o empenho nass§ pesquisas científicas. Do mesmo modof--

~ que foram criados os observatórios dez~ Greenwich e de Paris no século XVII,comi a intenção prática de ajudar a navegação~ e o comércio ultramarino, proliferaram asg academias de ciências na Itália, Inglaterra,z::> França e Alemanha, voltadas para o estudo~'íi mais desinteressado da ciência.

u.íooã:cc~ouJ

§6oi:~I!

Paradigma. Modelo, padrão; conjunto deteorias, técnicas, valores de uma determi-nada época e que, de tempos em tempos,entram em crise. No contexto, segundo ofilósofo Thomas Kuhn, é a visão de mundoassumida pela comunidade científica emum determinado momento, como vere-mos no próximo capítulo.

A revolução científica do século XVII Capítulo 30

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Leitura complementarA revolução científica

"Admite-se de maneira geral que o século XVII sofreu,e realizou, uma radicalíssima revolução espiritual de quea ciência moderna é ao mesmo tempo a raiz e o fruto.Essa revolução pode ser descrita, e foi, de várias manei-ras diferentes. Assim, por exemplo, alguns historiadoresviram seu aspecto mais característico na secularizaçãoda consciência, seu afastamento de metas transcenden-tes para objetivos imanentes, ou seja, a substituição dapreocupação pelo outro mundo e pela outra vida pelapreocupação com esta vida e este mundo. Para outrosautores, sua característica mais assinalada foi a desco-berta, pela consciência humana, de sua subjetividadeessencial e, por conseguinte, a substituição do objeti-vismo dos medievos e dos antigos pelo subjetivismodos modernos; outros ainda creem que o aspecto maisdestacado daquela revolução terá sido a mudança derelação entre teoria e práxis,' o velho ideal da vita con-templativa cedendo lugar ao da vita activa. Enquanto ohomem medieval e o antigo visavam à pura contempla-ção da natureza e do ser, o moderno deseja a domina-ção e a subjugação.

Tais caracterizações não são de nenhum modofalsas, e certamente destacam alguns aspectos bas-tante importantes da revolução espiritual- ou crise- do século XVII, aspectos que nos são exemplifica-dos e revelados, por exemplo, por Montaigne, Bacon,Descartes ou pela disseminação geral do ceticismo edo livre-pensamento.

Em minha opinião, no entanto, esses aspectos sãoconcomitantes e expressões de um processo mais pro-fundo e mais fundamental, em resultado do qual ohomem, como às vezes se diz, perdeu seu lugar nomundo ou, dito talvez mais corretamente, perdeu opróprio mundo em que vivia e sobre o qual pensava, eteve de transformar e substituir não só seus conceitos

> Questões

e atributos fundamentais, mas até mesmo o quadro dereferência de seu pensamento. '

Pode-se dizer, aproximadamente, que essa revoluçãocientífica e filosófica - é de fato impossível separar oaspecto fi losófico do pu ramente científico desse processo,pois um e outro se mostram interdependentes e estrei-tamente unidos - causou a destruição do Cosmos, ouseja, o desaparecimento dos conceitos válidos, filosófica ecientificamente, da concepção do mundo como um todofinito, fechado e ordenado hierarquicamente (um todo noqual a hierarquia de valor determinava a hierarquia e aestrutura do ser, erguendo-se da terra escura, pesada eimperfeita para a perfeição cada vez mais exaltada dasestrelas e das esferas celestes), e a sua substituição por umUniverso indefinido e até mesmo infinito que é mantidocoeso pela identidade de seus componentes e leis funda-mentais, e no qual todos esses componentes são coloca-dos no mesmo nível de ser. Isto, por seu turno, implica oabandono, pelo pensamento científico, de todas as consi-derações baseadas em conceitos de valor, como perfeição,harmonia, significado e objetivo, e, finalmente, a com-pleta desvalorização do ser, o divórcio do mundo do valore do mundo dos fatos. [...]

No entanto, apesar desse tremendo número de ele-mentos, descobertas, teorias e polêmicas que em suasinterconexões formam os complexos e comoventes ante-cedentes e as sequelas da grande revolução, a linha prin-cipal do grande debate, os principais passos da estradaque leva do mundo fechado para o Universo infinitodestacam-se de modo claro nas obras de alguns grandespensadores que, compreendendo profundamente suaimportância basilar, deram plena atenção ao problemafundamental da estrutura do mundo."

KOYRÉ,Alexandre. 00 mundo fechado ao Universo infinito. Riode Janeiro/São Paulo: Forense Universitária/Edusp, 1979. p. 13-15.

Basilar. Básico,fundamental.11 Explique o que significa dizer que a ciência moderna é ao mesmo tempo a raiz

e o fruto da revolução espiritual ocorrida no século XVII.

IJ Relacione a frase de Pascal do inicio do capitulo com o mal-estar sentido peloser humano no século XVII.

IJ No final do texto, Koyré refere-se ao "divórcio do mundo do valor e do mundodos fatos". Explique como isso representa o nascimento da ciência moderna.

4 No texto de Koyré, os termos teoria epráxis foram grafados em grego.

Leitura complementar Unidade 6

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> Revendo o capitulo

11 Faça um esquema comparativo da física deAristóteles com a física de Galileu.

S Faça um esquema comparativo entre a astronomiade Ptolomeu e a de Galileu.

11 Relacione o surgimento da ciência moderna como fortalecimento da burguesia.

11 O que significa dizer que Galileu abandonou omito do cosmo hierarquizado? O que significa"democratização" do espaço físico? E geometriza-ção do espaço?

> Aplicando os conceitos

IJ Considerando as três características atribuidas ao pen-samento moderno (racionalismo, antropocentrismo esaber ativo), explique como, na-Idade Moderna, elasvalem para a ciência e também para outros setores,como a religião, as artes e a política,

S Em uma carta enviada à madame Crístina de Lorena,Galileu escreve: "Não me sinto na obrigação de acre-ditar que o mesmo Deus que nos dotou de sentidos,razão e intelecto tencionava descartar o uso destes epor algum outro meio nos dar o conhecimento quecom eles podemos obter [...J A intenção do EspíritoSanto é ensinar-nos como se vai para o céu, e nãocomo o céu funciona". (Brody e Brody. As sete maio-res descobertas científicas da história. São Paulo:Companhia das Letras, 1999. p. 64.)

Explique a citação sob dois aspectos:

a) o significado dos sentidos e da razão para anova ciência;

b) a relação entre ciência e fé.

As atividades 7, 8 e 9 estão baseadas na peça Avida de Galileu, de Bertolt Brecht (São Paulo: AbrilCultural, 1977).Atenda às questões.

IJ Em 1968, a peça A vida de Galileu foi apresentadano Teatro Oficina de São Paulo, sob a direção deJosé Celso Martinez e com Claudio Corrêa e Castrono papel principal. Vivia-se o periodo da ditaduramilitar e provo cativam ente o diretor optou por ves-tir os religiosos de verde-olíva, Analise a compara-ção que ele desejou fazer entre esses dois momen-tos da história humana.

S "Terra e Céu, para eles, não existem mais. ATerra, porque é uma estrela no Céu, e o Céu, por-que é composto de terras. Não há mais diferençaentre o alto e o baixo, entre o eterno e o perecivel.Que nós perecemos, sabemos bem. Mas o queeles dizem é que também o Céu perece." (fala doMonge, p. 109.)

a) Qual é o significado de "alto e baixo, eterno eperecivel"?

b) Em que medida a nova astronomia "democra-tiza" o espaço?

IJ Galileu tenta convencer um filósofo a ver pelotelescópio os satélites de lúpiter, cuja constata-ção contraria o sistema ptolomaico, O filósofo res-ponde: "Senhor Galileu, antes de aplicarmos o seufamoso telescópio, gostariamos de ter o prazer deuma disputa. Assunto: é possivel que tais planetasexistam?" (p, 78-79).

a) A que escola deveria pertencer esse filó-sofo, considerando o teor da questão por eleformulada?

b) Em que medida o questionamento do filósofose contrapõe à proposta de Galileu?

> Caiu no vestibular

m (UFMG) Leia este fragmento de poema."E a nova filosofia coloca tudo em dúvida,O Elemento fogo é deixado de lado,O Sol está perdido, e também a Terra,E nenhuma sabedoria humana é capaz de guiar

essa busca.E livremente os homens confessam que este

mundo se esgotou,Quando procuram nos Planetas e no Firmamento

tanta novidadeVeem que tudo está de novo pulverizado em

Átomos,Tudo em pedaços, toda coerência se perdeu."(lohn Donne. An Anatomy of the world, 1611.)

Nesse fragmento, lohn Donne, poeta inglês doséculo XVII, expressa sua inquietação diante dadissolução do cosmos aristotélico por Copémico.Com base na leitura do poema e considerandooutros conhecimentos sobre a revolução científicado século XVII, explique a afirmação: "E a novafilosofia coloca tudo em dúvida ... ''.