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    Rainha nzinga mbandi, imbangalas e

    portugueses: as guerras nos kilombos de Angola

    no sculo XVII

    Mariana Bracks Fonseca1

    Resumo

    No processo de formao da colnia portuguesa Angola, no sculo XVII, muitas guerras

    foram travadas para aumentar os uxos do trco negreiro. Rainha Ginga, Nzinga Mban-

    di, a lder da resistncia do povo do Ndongo, que estava sendo ameaado pelos avanos

    europeus, ao mesmo tempo em que bandos de guerreiros nmades destruam a produo

    tradicional dos Mbundo. Estes bandos eram os Kilombos Imbangalas, os Jagas que as fon-

    tes descreveram como canibais e selvagens. Os Imbangalas desempenharam num papel

    ambguo e central nas guerras angolanas, atuando tanto como mercenrios para a captura

    de escravos, como guerreiros subordinados a Rainha Ginga em sua luta contra a invasoportuguesa. Este projeto de Mestrado est sendo desenvolvido junto ao Departamento de

    Histria Social da USP e recebe os auxlios da FAPESP.

    Palavras-chave:Trco negreiro, resistncia africana, Histria de Angola

    Abstract

    On the formation processo of the poruguese colony Angola, in the 17th century, so many

    wars happened to increase the slave trade. Queen Ginga, Nzinga Mbandi, is the leader of

    the Ndongo people resistance, who was been threatened by europeans headway, and at the

    same time, by warrions bands that destroyed the Mbundo tradicional production. Thesebands were the Kilombos Imbangalas, the Jagas that the sources described as canibals

    and wilds. The Imbangalas had a central and ambiguous role in angolan wars, acting as

    mercenaries to slave imprisonment, as well as warrions subordinates to Queen Ginga in

    her gth against the portuguese invasion. This Mster project have been developed apress

    the Social History Departament of USP and receives FAPESP resources.

    Keywords: Slave trade- african resistance- Angola History

    1 Graduada em Histria pela UFMG. Atua em projetos de pesquisa no Departamento de Histria Social daUSP.

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    A chegada dos portugueses no

    reino do Ndongo

    O Reino do Ndongo centralizou-se

    em torno do soberano Ngola no princpiodo sculo XVI, conquistando paulatina-

    mente independncia perante o Congo e

    soberania sobre os chefes locais, chama-

    dos sobas. Aps duas expedies frustra-

    das para converter o Ngola2, Paulo Dias

    de Novais chega em 1575 com a carta de

    doao3de D. Sebastio, estabelecendo

    a conquista a partir da recm fundadaSo Paulo de Luanda. Inicia-se um com-

    plexo jogo de alianas e avassalamento

    dos sobas que estavam sob o controle po-

    ltico do Ngola ou que lutavam para man-

    ter graus variados de autonomia. No ins-

    tvel cenrio poltico do reino do Ndongo

    foi se formando a colnia portuguesa de

    Angola, nome derivado do ttulo daquelergulo.

    Alternando-se momentos de co-

    existncia pacfica ou de conflitos ar-

    mados entre o Ngola e os portugueses,

    as guerras angolanas se intensificam a

    partir da dcada de 1590 fomentadas

    pelo mito da prata de Cambambe -

    nunca encontrada- e pelo crescente

    mercado escravocrata que surgia no

    Atlntico.

    2 A primeira expedio chegou ao Ndongo em 1520e resultou na priso dos emissrio. Em 1565, a Cia.de Jesus e Paulo Dias de Novais compe a segun-da expedio, este ca refm do Ngola por cincoanos, juntamente com o padre Francisco Gouveia.

    Ver: DELGADO, Ralph.Histria de Angola: 2 edrev. corrig.. - Lobito : Livraria Magalhes, 1961.

    3

    Carta de Doao a Paulo Dias de Novais. FELNER,Luis de Albuquerque.(dir.)Angola no sculo XVI.Documentos. Comentrios de A.L.A. Ferronha.Publicaes Alfa Lisboa, 1989.Doc.6.pp.69-82.

    a busca por escravos que vai de-

    nir a histria de Angola no sculo XVII

    e nos sculos posteriores. As inmeras

    guerras, descritas minuciosamente pelo

    Capito portugus Cardonega4

    , visaramsempre, em ltima instncia, ao lucra-

    tivo comrcio de mo de obra. Tudo era

    motivo para se fazer guerra: a no acei-

    tao da submisso, a interceptao de

    alguma caravana comercial, a rebeldia

    de um soba j avassalado...

    O controle dos sobas garantia a pe-

    netrao no interior e o avano da con-quista e, ao mesmo tempo, fortalecia os

    exrcitos lusitanos, pois os sobas aliados

    tinham obrigao de dar passagem, alo-

    jamento e alimentao as tropas portu-

    guesas, serem amigos dos amigos e ini-

    migos dos inimigos, de ceder pessoas de

    sua jurisdio para compor as tropas da

    conquista, a chamada GUERRA PRE-TA.

    Ao lado dos generais portugueses,

    lutavam africanos designados por seus

    sobas em sinal de obedincia. As guerras

    em Angola no existiriam sem a macia

    participao dos africanos, que atua-

    vam como soldados, carregadores, guias

    na densa mata, coletores de alimentos,

    j que a fome era um grande problema

    dos exrcitos em Angola. Alm do brao

    para a guerra, os africanos combatentes

    utilizavam seus conhecimentos tribais

    na preparao para a luta, as estratgias

    4 CADORNEGA,Histria geral das guerras ango-las.( 1681). 3 vols. Ed. Anot. Cnego Jos Mathias

    Delgado (vols.1 e 2) e Manuel Alves da Cunha(vol.3). Lisboa, 1972.

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    blicas prprias para aquela geograa e

    suas prprias armas ( machadinhas, ar-

    cabuzes, lanas). O uso de armas de fogo

    foi pouco empregado neste primeiro mo-

    mento da conquista.5

    Assim, as guerrasangolanas foram essencialmente guerras

    vividas por africanos dos dois lados.

    A presso sobre o reino do Ndongo

    se intensica no reinado de Ngola Mban-

    di (1617-1623) com a transferncia de um

    presdio portugus para Ambaca, locali-

    dade muito prxima da capital do reino,

    Cabaa, suscitando grandes reaes doschefes locais.

    Rainha Nzinga e a resistncia a

    penetrao portuguesa

    Nzinga Mbandi, irm de Ngola

    Mbandi, vai se destacar nas guerras an-

    golanas como lder do processo de re-sistncia a colonizao portuguesa. Sua

    ao poltica mltipla e por vezes, con-

    siderada ambgua. Em 1623, como em-

    baixadora de Ngola Mbandi nas negocia-

    es com o governador Joo Correia de

    Souza, aceita o batismo cristo e recebe

    o nome de Ana de Sousa. Aps a morte

    do Ngola (1624) assume como regente

    de seu sobrinho, e acusada de mat-lo.

    Nzinga no aceita os avanos portugue-

    ses, recusa abrir os mercados de escravos

    e no permite missionrios em seu ter-

    ritrio.6Em 1626, o governador Ferno

    5 THORNTHON, John. The art of war in Angola

    1575-1680. Comparative Studies in Society andHistory, 1988, vol. 30 (2) pp.360-78.6 BRSIO.Monumenta Missionria Africana.Vol.

    VIII, p.137-138, 158-159.

    de Souza efetiva um golpe poltico, que

    destituiu Nzinga do trono do Ndongo e

    a substitui por um rei fantoche, Hari a

    Kiluanje.

    Nzinga forma uma potente confe-derao de descontentes com a presena

    portuguesa, coligando-se com os chefes

    Ndembus (norte do Ndongo, fronteira

    com o Congo), os sobas da Quissama

    e poderosos ao longo do rio Kwanza. A

    rainha atraiu para seu domnio poltico

    sobas j avassalados pelos portugueses e

    seguia em declarada campanha anti-lusi-tana, impedindo feias e a circulao das

    caravanas comerciais. Aps o golpe po-

    ltico, Nzinga se alia a bandos Imbanga-

    las, incorporando a estrutura blica dos

    Kilombos, assim aumenta maciamente

    seu poder de guerra. Por volta de 1630,

    conquista o reino de Matamba e ganha

    fama de guerreira imortal, conhecedorade feitios capazes de ganhar as guerras.

    Alia-se aos holandeses durante a invaso

    da Angola portuguesa desenvolvendo

    uma rota comercial por Matamba, em

    que armas eram trocadas por escravos.

    Foram mais de quarenta anos de resis-

    tncia aos portugueses, at que no nal

    de sua vida, aps muitas presses e o

    seqestro de sua irm Mocambo, refm

    dos portugueses de 1646 a 1656, Nzinga

    negocia a paz com os lusitanos e retorna

    ao catolicismo atravs de missionrios

    Capuchinhos italianos. Marina de Mello

    e Souza entende o cristianismo como

    um meio de legitimao dos novos ar-

    ranjos de poder na situao de contato

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    entre centro-africanos e portugueses7,

    em que comrcio, religio e poder esto

    intimamente relacionados. O retorno ao

    cristianismo seria assim uma garantia de

    paz para esta guerreira j cansada.Nzinga Mbandi morre aos 80 anos,

    sepultada como catlica e em paz com os

    europeus. Sua vida foi repleta de interes-

    santes episdios e hoje considerada a

    maior personalidade da resistncia ango-

    lana frente a penetrao dos portugueses.

    Para alm da romantizao que se deu em

    torno de sua personalidade, pretendemosentend-la historicamente como lder po-

    ltica e estrategista militar no contexto das

    guerras angolanas.

    No presente artigo, pretende-se fo-

    car na dita aliana com os Imbangalas pela

    importncia que este grupo multitnico

    teve na expanso do trco negreiro. So

    muitas interrogaes que a historiograatem sobre este povo e foram igualmente

    variadas as aes que eles empreenderam

    na conquista de Angola, atuando tanto

    como guerreiros mercenrios para captu-

    ra de escravos, como soldados da Rainha

    Nzinga para combater os portugueses.

    Jagas ou Imbangalas: criao e

    negao da historiograa.

    O nome Jaga aparece na Europa

    pela primeira vez pelos relatos de Lopez,

    7 SOUZA, Marina de Mello e. A rainha Jinha deMatamba e o catolicismo (frica Central, sculoXVII) In: Milln, J. M. e Loureno, M. P. Maral.

    (coords.) Ls relaciones discretas entre las mo-narquias hispana Y portuguesa: Las casas de lasreinas (siglos XV-XIX). Vol.III. Madrid: EdicionesPolifemo, 2008,p. 2109.

    publicados por Pigaffeta em 15918. Aos

    Jagas atribuda a culpa pela grande in-

    vaso que devastou o reino do Congo em

    1568 e expulsou o rei D. lvaro de sua

    capital.So descritos como brbaros, cru-

    is, canibais, um povo que vivia da guer-

    ra, causando destruio das estruturas

    mais civilizadas da frica Central:

    Eles (os Jagas) eram grandes em esta-

    tura, mas de uma proporo doentia,

    e viviam como bestas selvagens, e co-

    miam carne humana. Quando lutavamdemonstravam grande coragem, e usa-

    vam barulhos pavorosos para assustar

    os inimigos.9

    O Capuchinho Cavazzi10, missio-

    nrio nos reinos do Congo, Matamba e

    Angola no sculo XVII, deixou uma des-

    crio quase etnogrca deste grupo,

    registrando seus ritos, juramentos, cren-

    as, formas de moradia e alimentao.

    Com sua funo de enviado do Vaticano

    atravs da Propaganda da FIDE11 para

    combater as heresias e levar a verdadei-

    ra f aos povos gentios, Cavazzi enxer-

    gou nos Jagas o prprio diabo cristo e

    8 LOPEZ, Duarte e PIGAFETTA, Filippo. Relaodo reino do Congo e das terras circunvizinhas.Comentrio e transcrio por Alberto Ferronha.Lisboa: Alfa, 1989. Primeira edio:Relatione delreame di Congo ...Roma.1591.

    9 Idem. Op. Cit. p. 135.10 CAVAZZI. Giovanni Antonio.Descrio histrica

    dos trs reinos do Congo, Matamba e Angola. 2volumes. Lisboa: Junta de Investigaes do Ultra-mar, 1965.

    11 Congregao de Propaganda Fide em 1622 no Va-ticano para dirigir e coordenar toda a atividade

    missionria da Igreja, procurando torn-la inde-pendente da tutela das potncias coloniais cat-licas da poca, em particular Espanha e Portugal.

    Verwww.des.org.

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    suas prticas religiosas foram traduzidas

    como seitas demonacas. Pensamento

    este que acompanhou o trabalho missio-

    nrio na frica por longos sculos.

    As fontes do sculo XVII semprechamam os bandos de guerreiros nma-

    des de Jagas, destacando-se o carter de-

    sumano destas populaes e seus hbitos

    antropofgicos.

    Na dcada de 1960 a historiograa

    passou a discutir a identidade tnica do

    ditos Jagas, relacionando-os aos Imban-

    galas. David Birmingham primeiramenteconsiderou os Imbangalas refugiados

    originrios da Lunda que saram do seu

    pas aps a invaso Luba, formando um

    grupo tnico culturalmente distinto dos

    Jagas, que seria um povo errante12. Em

    outro trabalho publicado no mesmo ano,

    Birmingham diz que o designativo Jaga

    se identicava com o nome pelo qual osPortugueses chamavam habitualmente

    os chefes Imbangala.13Alguns anos mais

    tarde, este mesmo autor admitia a espe-

    cicidade tnica dos Jagas, levantando

    a hiptese de que eles teriam emergido

    diretamente da turbulenta rea dos es-

    tados Luba, e que viajaram para a cos-

    ta atlntica do Congo, enquanto que os

    Imbangalas foram indiretamente postos

    em movimento pelas mesmas mudanas

    quando atingiram Luanda14.

    12 BIRMINGHAM, D. The date and the signicanceof the Imbangala Invasion of Angola. In: Journalof African History. Vol. VI, n2. (1965.) p. 143-152.

    13 BIRMINGHAM, D. The portuguese conquest of

    Angola. Oxford: Oxford University Press, 1965.p. 35.14 BIRMINGHAM, D. The African response to Early

    Portuguese Activities in Angola..In CHILCOTE,

    Jan Vansina diz que os Jagas eram

    originrios da Lunda ou, mais provavel-

    mente, da Luba15. Os Jagas, que sempre

    incorporaram outros povos, no incio

    do sculo XVII, estavam divagandoum pouco por toda parte na regio do

    Alto-Kwango, chamando a si prprios de

    Mbangala ou Mbongola, sendo mais tar-

    de incorporados pelos Kinguri/ Lunda.

    Joseph Miller o primeiro a usar

    o nome Jaga entre aspas, sinalizando

    sua subjetividade16. Segundo este autor,

    o termo Jaga era o nome pelo qual osImbangalas eram equivocadamente co-

    nhecidos. Em seus estudos, arma que

    os Imbangalas eram os descendentes do

    Kinguri/Lunda, que invadiram a regio

    norte do pas Mbundo no sculo XVII

    O mesmo Miller, no ano seguinte,

    escreve um artigo com a declarada inten-

    o de abolir a noo de Jaga da historio-graa da frica Central como sinnimo

    de uma entidade etno-cultural denida.17

    J pelo ttulo do artigo Rquiem for the

    Jaga, Miller sugere a eliminao deste

    grupo da histria da regio, ao armar

    que os Jagas nunca existiram fora da

    imaginao dos missionrios, tracantes

    de escravos ou dos ociais do Governo

    portugus, que criaram estes mticos ca-

    Ronald H. (org.). Protests and Resistnace in An-gola and Brazil: Comprarative studies. Berkeley:University of California Press, 1972.

    15 VANSINA, J.More on the invasion of Kongo andAngola by the Jaga and the Lunda. In: Journal ofAfrican History, vol. VII, n3. 1966. p. 426.

    16 MILLER, Joseph. The Mbangala and the crono-logy of early central african history. In: Journal

    of African History, vol. XIII, n4, 1972. p. 549.17 MILLER, Joseph. Requiem for the Jaga. CahiersdEtudes Africaines,v. 13, n.49. p.121-149, 1973.

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    nibais para justicar suas prprias ativi-

    dades na frica. Os europeus enxerga-

    vam a crueldade, canibalismo e barbrie

    em vrios povos africanos e acabaram

    dando a todos o nome de Jaga, soman-do-se a noes imprecisas da geograa

    africana nos sculos XVI e XVII. Erros

    etimolgicos teriam estimulado a falsa

    associao entre Jaga, Agagi, Galas.

    As caractersticas fsicas dos Jagas e

    seus comportamentos, como foi descrito,

    reverteu todas as coisas que eram familia-

    res aos europeus: eram negros, monstruo-sos, canibais e destruam toda e qualquer

    forma de civilizao, assim desempenha-

    ram a mesma funo que as Amazonas na

    mitologia europia, como uma oposio

    aos valores civilizados. Alguns detalhes

    da aparncia e armamento dos Jagas de-

    rivavam do generalizado estereotipo do

    selvagem africano.O alegado apetite por carne humana

    recebeu especial ateno dos tracantes

    de escravos em Angola. Mercadores priva-

    dos e pblicos os usaram para defender a

    moralidade do trco pois a escravizao

    livraria os povos Mbundo de serem comi-

    dos pelos Jagas. O argumento de que o tr-

    co negreiro era uma beno pois salvava

    os negros do canibalismo e os convertia

    para o seio da Santa Madre Igreja foi dito

    pelo capito Cadornega18 e se manteve na

    historiograa portuguesa pr-colonalista

    at o sculo XX19. Tracantes tambm os

    evocaram para explicar as diferenas entre

    18

    CADORNEGA.Histria Geral das Guerras Afri-canas.Vol I pp.11-14.19 DELGADO, Ralph. Histria de Angola. Lobito,

    1948-1955. Vol. III. pp. 129-130.

    o nmero de prisioneiros feitos no interior

    e o nmero de escravos exportados no li-

    toral. Os escravos faltantes, claro, foram

    exportados ilegalmente, sem pagar os tri-

    butos devidos, mas os tracantes ilcitosexplicaram esta discrepncia alegando que

    teriam sido comidos pelos Jagas. 20

    Miller, ao se aprofundar na histria

    do Congo, conclui que a dita invaso de

    1568 fora uma coliso de descontentes

    internos que assolaram o poder, soma-

    dos a invasores externos de outros reinos

    vizinhos. Para Miller, a criao do mitodos Jagas serviu bem aos propsitos

    portugueses, pois aps o resgate de D.

    lvaro, Portugal passou exigir soberania

    daquele reino.

    John Thornthon21deu continuidade

    ao debate ao ressuscitar os Jagas, ar-

    mando sua existncia histrica. Identi-

    ca-os aos Yakas do Vale do Niari, que defato, invadiram o Congo. Conclui que o

    nome Jaga descreve mais um modo de

    vida do que um grupo tnico especco.

    Em uma anlise mais apurada, percebe-

    se que Thornthon no se afasta muito

    de Miller pois ambos concordam que o

    vocbulo Jaga no deve ser entendido

    como um grupo tnico particular, mas

    sim um conjunto de formaes sociais

    etno-culturalmente heterogneas que,

    em determinados momentos da histria,

    adotaram a instituio do Kilombo.

    20 Relato de Fajardo publicado em CORDEIRO,Luciano. Viagens, exploraes e conquista dos

    Portugueses. Lisboa, 1881, VI, p.23. Citado por

    MILLER, Rquiem for the Jaga.. p.134.21 Thorthon, John. A ressurection for the Jaga .In: Cahiers dtudes Africaines, v.18, n 69, p.223-227. 1978.

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    Franois Bontick22 tambm d sua

    contribuio para o debate, publicado

    na mesma revista, acrescentando da-

    dos mais apurados sobre a geograa do

    Congo para rearmar a existncia destegrupo enquanto agente histrico, mas

    no nos fornece mais informaes sobre

    quem eram os Jagas que aparecem na

    documentao de Angola do sculo XVII.

    Miller realizou uma longa pesquisa

    junto aos descendentes do bando de Kin-

    guri, os Imbangalas do distrito de Malan-

    je. O pesquisador reuniu histrias oraiscontadas por historiadores ociais da

    corte do antigo estado de Kasanje, cha-

    mados ndala kandumbu, e pelos baka

    a musendo, historiadores no ociais,

    mas prossionais.23 Miller percebeu

    como as insgnias de poder das linhagens

    Mbundo foram diludas ou incorporadas

    pelos Kilombos em suas migraes.

    Imbangalas: origens, ritos e mitos

    Lopez-Pigaffeta apresentam a ori-

    gem dos Jagas nas lendrias terras perto

    do lago do Nilo, uma regio conhecida no

    sculo XVI apenas por vagas referncias

    em textos antigos, onde se acreditava es-

    tar na provncia do Imprio Monemu-

    gi. O Mwene Mugi era um reino mtico

    que os gegrafos daquele tempo comu-

    mente localizavam no interior do conti-

    22 BONTINCK, Franois. Un mausole por lesJaga. Cahiers dEtudes Africaines,v 20, n.79. p.387-389.,1980.

    23 MILLER, J.Poder poltico e parentesco: os anti-

    gos estados Mbundu em Angola. Trad. De Mariada Conceio Neto. Luanda: Arquivo HistricoNacional, 1995. Ttulo original: Kings and Kins-men. Prefcio. P. xiii.

    nente. A atribuio desta terra de origem

    ao Jagas revela declaradamente as suas

    qualidades mticas.

    Cavazzi24 relata, segundo as tradi-

    es que ouviu no tempo que viveu emAngola, que os Jagas teriam vindo de

    Serra Leoa. Narra as origens fundado-

    ras deste bando guerreiro em que um

    grande chefe chamado Zimbo percorreu

    vasta rea da frica Central destruindo

    povoaes e conclamando guerreiros

    para o acompanhar. Sua mulher ou -

    lha, chamada Temba Ndumba, a m detornar seus soldados invencveis reali-

    zou um ritual chamado Magi a Samba,

    em que lanou seu lho recm-nascido

    num caldeiro e com um pilo esmagou

    a criana at reduzi-la a uma pasta, a

    qual acrescentou algumas ervas e razes.

    Este ungento foi passado no corpo dos

    guerreiros para lhes dar foras mgi-cas e imortalidade. O bando conclamou

    Temba Ndumba como lder do bando e

    passou a seguir severamente as leis Ki-

    jilas, que signica proibio na lngua

    Kimbundo.

    Os Jagas eram nmades e andavam

    pela frica Central pilhando comuni-

    dades e aprisionando jovens ainda no

    iniciados nos ritos de passagem para a

    vida adulta dos povos Mbundo. Andrew

    Battell, um comerciante ingls que vi-

    veu como refm do bando de Imbe Ka-

    landula durante cerca de 16 meses em

    1600-1601, observou que os Imbangalas

    obtinham novos recrutas quando inva-

    diam uma aldeia e capturavam meninos

    24 CAVAZZI, op. cit.Vol I. p. 34 e seguintes.

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    e meninas entre 13 e 14 anos e os criavam

    como se fossem seus prprios lhos.25

    Viviam em Kilombos, cujo signicado

    aparece nas fontes como acampamento

    militar, estrutura altamente hierarquiza-da e protegida por vrias paliadas, que

    se deslocava conforme as necessidades

    blicas do bando.

    importante ressaltar que os Jagas

    no eram um grupo nico e coeso, no

    formavam um integrado sistema polti-

    co local. Havia vrios bandos de Jagas

    que se movimentavam e agiam separa-damente em diversas rotas, sob o poder

    exclusivo do chefe de cada Kilombo.

    Miller estudou a sociedade Imban-

    gala descendente do bando de Kulaxingo,

    identicado como o poderoso Jaga Ka-

    zanje da documentao do sculo XVII,

    e percebeu que o assassinato de crianas,

    representado pelo ritualMagi a Samba,era uma forma de romper os laos de

    linhagem que dominavam a sociedade

    Mbundo. Da mesma forma, o rapto de jo-

    vens no iniciados servia a este propsito

    de desprender-se das regras e costumes

    do grupo de origem e prestar obedincia

    exclusiva ao chefe do Kilombo e no mais

    aos mais velhos da linhagem e aos deten-

    tores das insgnias de poder onde nasce-

    ram. Assim os Imbangalas conseguiram

    se libertar das linhagens, to importan-

    tes no universo Mbundo daquele tempo,

    e fundar uma nova sociedade com rituais

    25 RAVENSTEIN, E (ORG.) The strange adventures

    of Andrew Battel pf Leigh in Angola and the Ad-joining regions. London: The Hakluyt Society,1901. p. 84-83. Nas pginas 32-33, Battell exten-de a idade dos jovens cativos de 10 a 20 anos.

    prprios de iniciao e de entronizao

    do poder, em que a obedincia ao chefe

    do Kilombo e a guerra eram elementos

    fundamentais.

    Aliana Imbangalas- Portugueses:

    mercenrios para o trco de

    escravos

    Enquanto os bandos Imbangalas

    destruam povoados, desorganizavam

    a produo agrcola, pilhavam os bens

    e seqestravam os membros das comu-nidades, os portugueses prosseguiam

    com a guerra pelo interior de Angola,

    construindo forticaes ao longo do rio

    Kwanza e organizando feiras a m de au-

    mentar o volume do trco de escravos.

    Juntos formaram uma lucrativa e violen-

    ta parceria que provocou grande despo-

    voamento da regio de Angola. Parreiracalculou que, entre os anos 1600-1641,

    em torno de 72.500 escravos foram ex-

    portados de Luanda, com destino priori-

    trio as ndias e a Amrica espanhola.26

    Os escravos eram comprados em feiras,

    pagos pelos sobas vassalos em forma

    de tributos e principalmente obtidos na

    guerra, em que a ao dos Jagas era de-

    cisiva.

    Nos registros de Battell, conta-se

    que em 1600, mercadores vindos de

    Luanda estabeleceram contatos com os

    26 PARREIRA, Adriano. Economia e sociedade napoca da Rainha Jinga (sculo XVII).Lisboa:Editora Estampa, 1997. Parreira se baseou nosdados de JADIN, L. LAncien Congo et lAngola,

    1639-1655, daprs ls Archives Romaines, Por-tugaises, Nerlandaieses et Espagnoles. Vol. I-III. Bruxeles: Institut Historique Belge de Rome,1975.

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    Imbangalas perto do porto de Benguela,

    onde os chamados Jagas haviam destru-

    do grande parte do reino e feito muitos

    cativos, que lotaram os navios portugue-

    ses27

    . Por volta de 1607, o reino de Ben-guela foi efetivamente destrudo pelos

    Imbangalas e as terras do poderoso Ka-

    fuxe foram pilhadas, o que serviu para

    abastecer o recm fundado presdio de

    Cambambe com muitos escravos.

    No princpio do sculo XVII, os go-

    vernadores abandonaram a idia de fa-

    zer de Angola um entreposto comerciale adotaram uma poltica de agresso mi-

    litar contra os centro-africanos. A guer-

    ra foi um investimento muito presente

    no oramento colonial, no obstante a

    orientao do rei Felipe III da Espanha

    (Felipe II de Portugal), que preocupado

    com os altos custos da guerra, mandou

    os governadores no se envolverem ematritos e se focarem mais no comrcio.

    A Coroa acreditava que o controle do co-

    mrcio de escravos, mais do que a guer-

    ra, tornaria a colnia sustentvel e seria a

    razo da colonizao, de carter pacco

    e pagvel.

    O Governador Manuel Pereira For-

    jaz (1607-1611) ilustra bem o descompas-

    so entre ordem metropolitana e poltica

    colonial para o enriquecimento pessoal.

    Forjaz recebeu instrues para imple-

    mentar um governo de paz e justia

    atravs da diplomacia28. Para compensar

    27 RAVENSTEIN. Op. cit.,p.16-21.28 Regimento a Manuel Pereira Forjaz, 26/3/1607.

    BRSIO, Antonio.Monumenta Missionria Afri-cana (MMA). Lisboa: Agncia Geral do Ultramar,1952. Vol. 5: 270. A mesma idia foi repetida nosregimentos passados a governadores posteriores.

    as perdas das guerras, o rei estimulava a

    agricultura comercial como acar ou a

    pesca das conchas nzimbu, usado como

    moeda no Congo. As ordens rgias no

    foram cumpridas, ao contrrio, o gover-nador articulou uma extensa rede co-

    mercial que envolvia a guerra para apri-

    sionamento e venda de escravos, o que

    lhe rendia altos lucros. Pereira Forjaz

    conectou o comrcio de escravos e mar-

    m passando por Mpumbu (nordeste do

    Congo), pelo porto de Mpinda (Loango)

    e por Benguela (ao sul). Fortaleceu Cam-bambe como centro comercial, de onde

    se podia abrir e explorador novas rotas

    comerciais para o leste, at sonhan-

    do em alcanar Moambique na outra

    costa.29 Assim aes militares passam

    a assumir a primeira importncia nos

    planos governamentais. O governo pas-

    sou a incentivar os ataques Imbangalasa povoados, de onde saiam grande parte

    dos homens e mulheres exportados como

    escravos.

    Seu sucessor, Bento Banha Cardo-

    so, assumiu como governador interino

    em 1611 e foi o primeiro a formalizar a

    aliana com os Imbangalas, inaugurando

    uma poltica de guerra. Banha Cardoso

    era um soldado veterano que estava em

    Angola desde 1592 e sua proeminncia

    no campo militar levou a intensicao

    das guerras.

    Regimento de 22/9/1611, que se supes ser dirigi-do a Francisco Correia da Silva, nunca foi a Ango-la, BRSIO 6:21-39; e Regimento a Joo Correiade Soua, 3/9/1616, BRSIO 6:257-9.

    29

    Catlago dos governadores de Angola. Em COR-RA, Elias Alexandre da Silva.Histria de Ango-la. Lisboa: Agncia Geral das Colnias, 1937. 2v.

    Vol I, p. 221.

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    Banha Cardoso atacou o soba Xi-

    longa do Lukala, formalmente vassalo

    dos portugueses, alegando que este se

    tornara desobediente e bloqueara o co-

    mrcio; ergueu forte de Hango nas terrasde Hango a Kikaito, lder da faco nor-

    te do Ndongo; ordenou uma campanha

    ao longo do Kwanza, a leste do forte de

    Cambambe, atacando as terras de Dem-

    bo a Pebo e Pungo a Ndongo na provncia

    do Hari.30

    Banha Cardoso, por descumprir as

    ordens rgias que requeriam governospaccos, teve que justicar seus atos

    blicos perante a Coroa em 1615, quando

    foi deposto do cargo. O governador in-

    terino argumentou que levou a guerra

    a grandes escalas para trazer vassalos

    desobedientes novamente ao contro-

    le portugus e reabrir as rotas para o

    comrcio.

    31

    Alegou que havia trazidomais de 80 sobas para o controle portu-

    gus, garantindo tributos em escravos e

    assim, a continuidade dos mercados. Ele

    assinalou que no apenas adquiriu escra-

    vos pela guerra, mas que tambm imps

    tributos em escravos as novas terras ane-

    xadas. 32

    Devido aos sucessos de suas campa-

    nhas militares, a Coroa fez vistas gros-

    sas as violaes das instrues reais e

    30 Devassa de Bento Banha Cardoso, 21/8/1615 . Ar-quivo Histrico Ultramarino, CX. 1, Doc. 40. Car-tas de Bento Banha Cardoso. 28/6/1614. BRSIO6: 178.

    31 Processos de justicao dos Actos de Bento Ba-nha Cardoso, 31/10/1616. In: FELNER, Angola,

    p.438.32 Processos de justicao dos Actos de Bento Ba-nha Cardoso, 31/10/1616. In: FELNER, Angola,p.438 e CADORNEGA, Vol. I. p.77

    decidiu apoiar as guerras em Angola.

    Banha Cardoso permanece como ho-

    mem de frente das guerras portuguesas

    em Angola nos mandatos seguintes e no

    governo de Ferno de Souza (1624-1630)ocupou o posto de capito-mor.

    A Coroa escolheu o fundador do for-

    te de Cambambe, Manuel Cerveira Perei-

    ra, para governar, dirigindo as guerras

    iniciadas por Banha. Ele foi enviado a

    Benguela para estabelecer ali um novo

    reino e conseguir mais escravos para a

    Coroa.33

    Com a ajuda dos Kilombos Im-

    bangalas, Cerveira Pereira lanou uma

    violenta campanha contra Kakulu Ka

    Hango. Aps esta guerra, suas foras

    dirigiram-se para o nordeste, em direo

    ao valei do Zenza, onde pilharam os che-

    fes independentes Ndembos.34Os lucros

    da venda de escravos obtidos nesta guer-ra aumentaram os cofres para a conquis-

    ta de Benguela e para o prprio enrique-

    cimento do governador.

    Cerveira Pereira, ao se estabelecer

    em Benguela, no conseguiu rmar uma

    aliana com os bandos Imbagalas do sul

    pois, de acordo com os estudos de Mil-

    ler35, a instituio do Kilombo teria sur-

    gido entre os Ovimbundos desta regio,

    e sendo assim, estes povos estavam mais

    estruturados ali e no precisavam bus-

    car aliados externos para enfrentarem a

    populao local, como acontecia na por-

    33 Manuel Cerveira Pereira para o rei. 11/3/1612.BRSIO 6:77-81.

    34

    Catlogo In: CORREA.Historia I: 224. Luis M.de Vasconcelos ao rei. 28/8/1617. BRSIO 6: 238-5.

    35 MILLER, J.Poder poltico e parentesco. p.210.

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    o norte do Ndongo, onde atacavam os

    povos Mbundo36. Os Imbangalas do sul

    recusavam o comrcio com os Portu-

    gueses como o pagamento de tributos.

    Viviam em abrigos rochosos fortica-dos, onde armazenavam gua e comida

    para suportar os cercos.37Os portos de

    Benguela no passavam de pequenos en-

    trepostos engajados no comrcio local de

    comida.

    Aps a partida de Cerveira Perei-

    ra de Benguela em 1617, a Coroa esco-

    lheu Luis Mendes de Vasconcelos parasuced-lo como governador de Angola,

    cumprindo mandato at 1621. Vascon-

    celos foi para Angola com objetivo de re-

    gulamentar o trco negreiro revertendo

    para a Coroa os impostos de exportao,

    porm a necessidade de fortalecer-se mi-

    litarmente para derrotar Ngola Mbandi

    fez com que o governador se aliasse aosImbangalas.

    Antes de sua chegada em Angola,

    Vasconcelos acreditava que escravos po-

    deriam ser gerados por aes militares e

    chegou a escrever:

    o comrcio de escravos, que to im-

    portante para o tesouro de Sua Majes-

    tade, poderia ser escassamente man-tido, porque na ordem do trco ser

    satisfatrio, necessrio ter as armas

    em punho.38

    36 Representao a Manuel Cerveira Pereira.2/7/1618. BRSIO 6: 315-19.

    37 Relao da Costa de Angola e Congo, pelo ex-

    governador Ferno de Souza, 21/2/1632. BRSIO7:129.38 Memorial de Luis Mendes de Vasconcelos, 1616.

    BRSIO 6: 264.

    Em seu plano inicial, Vasconcelos

    propunha o uso das tticas tradicionais

    europias para vencer estas guerras e

    denunciava o uso de Imbangalas, mui-

    to contrrios ao servio de Deus e deSua Majestade, especialmente porque

    eles tinham sido usados como ces fa-

    rejadores para injustamente traze-los

    (as populaes locais) como escravos.

    Ele antevia que a estratgia de usar

    continuamente os Imbangalas em al-

    gum tempo consumiria os nativos des-

    te reino em um caminho que levaria adespovoamento.39

    Inicialmente contrrio aos Imban-

    galas, percebeu que a extraordinria for-

    a militar que eles conseguiam mobilizar

    rapidamente poderia lhe ser til para

    ameaar o Ngola. A tradio oral reco-

    lhida por Miller narra o momento em

    que Kulaxingo, chefe Imbangala chama-do pelos portugueses de Jaga Kasanje,

    se apresenta ao governador Vasconce-

    los oferecendo apoio para lutar contra

    o Ngola: explicou que o rgulo tinha

    construdo uma fortaleza mgica que os

    portugueses eram incapazes de atingir e

    assim o governador precisaria das armas

    mgicas do dito Jaga40. Esta narrativa re-

    fora a crena dos Imbangalas de que a

    sorte na guerra dependia tambm da ma-

    nipulao de apetrechos mgicos.

    Os portugueses tentavam penetrar

    no reino do Ndongo e ampliar as redes

    39 Luiz Mendes de Vasconcelos ao rei. 28/8/1617.BRSIO 6: 283-4.

    40

    Miller. Poder poltico e parentesco. Os antigosEstados Mbundu em Angola. Trad. Maria da Co-neio Neto.Luanda: Arquivo Histrico Nacional.Ministrio da Cultura, 1995.p. 196.

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    do comrcio de escravos. Ao transferir

    o presdio de Hango para Ambaca, re-

    gio muito prxima a Kabaa, capital

    do Ndongo, Vasconcelos iniciou uma

    violenta guerra com Ngola Mbandi, queresultou na priso da mulher e me do

    rei do Ndongo. Ngola Mbandi abando-

    nou Kabaa e se refugiou numa das ilhas

    do rio Kwanza chamada Kindonga, onde

    acabou morrendo. A sada da fortaleza

    de Ambaca vai ser a principal exigncia

    do Ndongo nos acordos subseqentes,

    inclusive o assinado por Nzinga Mbandina ocasio do seu batismo. Para invadir

    o Ndongo, Mendes de Vasconcelos rece-

    beu suporte do soba Mubanga parente

    do rei de Angola que deu um porto e

    entrada para suas terras para a dita

    conquista.41

    A violncia empregada nestas guer-

    ras cou registrada pelo ocial portu-gus, Manuel Severim, que narra o ata-

    que ao Sova Gaita, aliado ao Ngola, feito

    por Joo Mendes de Vasconcelos, lho

    do governador, que mandou degolar 94

    poderosos, com algum escndalo dos

    naturaes.42

    Tanto Miller43 como Heywood-

    Thorton44 acreditam que a chave para

    o sucesso das foras portuguesas foi a

    aliana com os bandos Imbangalas. A

    conquista de Angola no teria se efeti-

    41 CADORNEGA. Op. cit,V.I, p. 86.42 Relao de Manuel de Faria 1 de fevereiro de 1620

    Em: CADORNEGA. Op. cit.,V. I, p. 88.43 MILLER, J.Poder poltico e parentesco. p.197.44 HEYWOOD, Linda M. e THORNTON, John. Cen-

    tral africans, atlantic creoles, and the fondationof the Americas, 1585-1660. Cambridge: Cam-bridge University Press, 2007. p. 114.

    vado sem o apoio destes guerreiros. Os

    governadores lusos exploraram as rivali-

    dades entre faces do norte e do sul no

    Ndongo, para capturar escravos ao lon-

    go dos rios Lukala e Kwanza. No sculoXVII, a tecnologia militar europia no

    representava superioridade, ao contr-

    rio, eram os Imbangalas e a organizao

    em kilombos que eram decisivos para ga-

    rantir a vitria.

    Em tempos paccos, os Imbangalas

    capturavam os agricultores locais para

    serem vendidos como escravos e, emtempos de guerra ocialmente declara-

    da, juntavam-se s expedies portugue-

    sas. Havia uma relao de complemen-

    taridade entre os interesses Imbangalas

    e portugueses: enquanto os Imbangalas

    preferiam guardar os rapazes mais novos

    ainda no submetidos a circunciso das

    linhagens para serem iniciados nos ritu-ais dos Kilombos, os portugueses se inte-

    ressavam por homens e mulheres adul-

    tos para serem escravizados na Amrica.

    Nos dizeres de Miller:

    Os Imbangalas tornaram-se, assim, a

    ambivalente pedra basilar que susten-

    tava os dois braos do duplo sistema co-

    mercial que atingiu a fase de maturida-de durante a primeira parte do sculo

    dezassete.45

    Em conseqncia da parceria econ-

    mico-militar entre portugueses e Imban-

    galas, um grande emprio de escravos se

    desenvolveu nas proximidades do Mdio

    Lukala. Como os Imbangalas conseguiam

    45 MILLER.Poder poltico e parentesco.p. 195.

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    capturar mais escravos do que era absorvi-

    do pelos canais ociais do governo, parale-

    lamente desenvolveu-se um sistema ilegal

    do trco. A aliana entre o governo por-

    tugus e Imbangalas gerou uma contradi-o no sistema colonial, pois muitos sobas

    invadidos pelos bandos guerreiros cavam

    incapacitados de fornecerem o tributo em

    escravos exigidos pela coroa.

    Rebello de Arago, enviado por Fe-

    lipe III em 1618 para avaliar a posio

    de seu exrcito em Angola, deu parecer

    de que, inicialmente, tal aliana foi fun-damental para a colnia e para o esta-

    belecimento do trco negreiro, porm

    os Imbangalas tornaram-se arrogantes

    e comearam a desviar escravos que de-

    veriam ter ido para a alfndega real em

    Luanda. O emissrio atribua a culpa do

    trco ilegal no apenas aos africanos,

    mas tambm aos ociais portuguesesque encorajavam o rapto da populao

    local.46Os reis Imbangalas eram tratados

    com grande dignidade pelos ociais lu-

    sos. A relao de Garcia Mendes Castelo

    Branco argumentava que o rei portugus

    deveria oferecer trs tonis de vinho por

    ano aos Imbangalas para garantir sua

    lealdade e o lucrativo trco de escravos

    que eles proporcionavam. 47

    Contudo, as alianas com os Im-

    bangalas eram sempre utuantes e eram

    guiadas mais por seus interesses que por

    laos de delidades. Em diversos mo-

    46 Rebello de Arago. Relao. In: CORDEIRO, Lu-ciano. Viagens, exploraes e conquistas dos Por-

    tugueses. Colleo de documentos. Lisboa, 1881.47 Relao de Garcia Mendes de Castelo Branco.Ajuda,16 de Janeiro de 1620. In: Brsio. 6:446-452.

    mentos, os mesmos reis Imbangalas que

    serviam aos portugueses os atacavam

    em batalhas posteriores. O prprio Jaga

    Kasanje, que ajudou o ataque ao Ndongo

    em 1617, aps a invaso, se recusa a sairdas terras pleiteadas e passou a ser con-

    siderado um dos principais inimigos dos

    portugueses.

    Cadornega narra episdios em

    que os ditos Jagas acompanhavam os

    exrcitos portugueses. Em sua narrati-

    va cronologicamente confusa, registra

    o momento que os Jagas Caza e Dongaabandonam os portugueses e passam a

    lutar em funo da Rainha Nzinga:

    Nesta ocazio do Cerco da Fortaleza de

    nossa Senhora da Asumo da Embaca

    accompanhou tambem o tenente Gene-

    ral o Jaga Donga com seu Quilombo o

    qual servia debaixo de nossas bandeiras,

    como o fazia tambem como dito he o JagaCaza, o qual, tendo-nos assistido Con-

    quista do Dongo com o Governador e Ca-

    pito geral, se rebellou o que obrigou ao

    Governador estando j de convalescena

    de seus achaques a tornar Conquista a

    dar as ordens necessrias por ser cauza

    de muita importncia o afastarse-nos

    este poderozo Jaga e tambem se havia re-

    belado outro Jaga por nome Caza.48

    Miller acredita que os Imbangalas re-

    jeitaram o papel de mercenrios empre-

    gados exclusivamente pelo governador

    de Angola e tinha voltado ao seu papel

    original, como agentes de comerciantes

    privados.49

    48 CADORNEGA.Histria Geral das Guerras Ango-lanas.Vol. I. p. 90.

    49 MILLER, J.Poder poltico e parentesco. p.196.

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    O Golpe de Ferno de Souza contra

    Nzinga

    A Coroa mandou, em 1624, Ferno

    de Souza para o governo de Angola, cominstrues para estabilizar o pas e rever-

    ter os lucros da colonizao para a Coroa,

    sendo estes, preferencialmente, obtidos

    pelo comrcio e no pela guerra. As ins-

    trues chamavam ateno para uma

    maior sistematizao da taxao dos so-

    bas e dos demais impostos. Seu primeiro

    passo foi estabelecer as feiras em locaisestratgicos em parceria com os sobas.

    As feiras mais importantes estavam lo-

    calizadas em Bumba a Kizanzo, perto de

    Ambaca, em Kakulu Ka Kabasa no Zenza

    e em Mbwila, na fronteira com o Con-

    go, na regio dos Ndembus. Os escravos

    chegavam a Luanda vindos do interior.

    Apesar das suas instrues, Ferno deSouza achou o comrcio pacco menos

    atrativo que a guerra, pois o Ndongo

    atravessava um momento de instabilida-

    de poltica: Ngola Mbandi havia morrido

    em Kindonga e seu lho herdeiro, ainda

    menor, fora conado ao Jaga Caza. Nzin-

    ga Mbandi teria se unido a Caza e mata-

    do o sobrinho para ascender ao trono.

    Heintze encontrou na Biblioteca de

    Ajuda o vasto corpus documental dei-

    xado por Ferno de Souza, entre cartas

    para amigos e parentes, instrues reais,

    relatrios administrativos e publicou

    esta documentao em dois volumes.50

    Entretanto, o acesso a estas publicaes

    50 HEINTZE, Beatrix. Fontes para a Histria deAngola no sculo XVII. Stuttgard: Franz SteinerVerlag Wiesbaden, 1985. 2 volumes.

    ainda limitado, no havendo exempla-

    res disponveis no Brasil. Em seu livro

    Angola nos sculos XVI e XVII51Heintze

    nos repassa os pormenores que as cartas

    de Ferno de Souza revela sobre a suces-so de Ngola Mbandi em 1624, episdio

    ainda obscuro da Histria do Ndongo. As

    primeiras cartas do governador relatam

    que Ngola Mbandi teria se suicidado,

    verso corroborada por Cadornega52.

    Durante o governo de Ferno de

    Souza, Nzinga impede que as feiras de

    escravos ocorram em seu territrio epassa a ser considerada a capital ini-

    miga dos portugueses em Angola53. Por

    isso o governador tenta envenenar sua

    personalidade, armando em cartas sub-

    seqentes, que a morte do Ngola teria

    sido arquitetada por Nzinga como uma

    tentativa ambiciosa de chegar ao poder.

    Os documentos do governador revelamque o assassinato de Ngola Mbandi foi

    uma criao portuguesa para incriminar

    Nzinga e legitimar sua destituio do

    trono. Esta reexo muito nos interessa,

    pois as a historiograa perpetuou a idia

    plantada por Ferno de Souza, de que

    Nzinga teria assassinado seu irmo. E

    a personalidade sanguinria de Nzinga

    que teria justicado o golpe poltico que

    este governador empreitou no reino do

    Ndongo no ano de 1626.

    51 HEINTZE, Beatrix. Angola nos sculos XVI eXVII- estudos sobre fontes, mtodos e histria.Trad. de Marina Santos. Luanda: Editora Kilom-

    belombe, 2007. Parte I. Captulo 2: As fontes es-critas e a Histria de frica: uma defesa das fontes

    primrias. A Coletnea Documental de Ferno deSouza sobre Angola. Pp. 67-94.52 CADORNEGA. Op. cit. p.124.53 CADORNEGA. Op. cit. p. 130.

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    Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.23, n.2, jul./dez. 2010 405

    Desde o incio de seu mandato, Fer-

    no de Souza queria regularizar as rela-

    es portuguesas no Ndongo atravs do

    mercado de Kisala. Nzinga escreve para

    ele como regente do Ndongo, exigindocomo condio para abrir o mercado, a

    transferncia do presdio de Ambaca,

    que j havia sido por duas vezes nego-

    ciado com governadores passados.54 O

    governador aceitou a condio, mas agiu

    em caminho contrrio e ao invs de sair

    de Ambaca, fortaleceu a feira ali existente

    e ainda se recusou a libertar os Kijicos55

    ,condio exigida pela rainha. Ao mesmo

    tempo em que escravos dos portugueses

    fugiam para as leiras de Nzinga, Fer-

    no de Souza ampliava o comrcio em

    Ambaca e exigia que Nzinga devolvesse

    os fugitivos. Estes escravos fugidos, em

    sua maioria, chamadosKimbares, eram

    treinados militarmente e sua fuga repre-sentava grande perda para os exrcitos

    portugueses e incremento do exrcito de

    Nzinga.

    Ferno de Souza usou como pretex-

    to a morte do herdeiro de Ngola Mbandi

    para legitimar o ataque ao Ndongo, re-

    forando militarmente o forte de Ambaca

    e ordenando aos sobas vassalos dos por-

    tugueses a ruptura de todas as relaes

    com Nzinga. Ele ento, persuadiu Hari

    54 Ferno de Souza para o governo, 15/8/1624. InHEINTZE. Fontes para a histria de Angola...

    Vol.2, pp.85. Citado em HEYWOOD e THOR-THON. Central Africans.... p. 128.

    55 Kijicos eram os escravos ociais do Ngola quecompunham a classe administrativa e dessa forma

    no podiam ser vendidos. A devoluo dosKijicoscapturados na guerra movida por Luiz Mendes deVasconcelos era tambm uma exigncia recorren-te nos acordos de paz.

    a Kiluanji, senhor de Ndambi a Hari, na

    provncia de Hari, a visitar Ambaca para

    declar-lo rei do Ndongo em Outubro

    de 1626. 56A escolha de Hari a Kiluanji

    no foi fortuita. Este era descendente degrandes nobres do Ndongo e suas ori-

    gens apontavam para o primeiro Ngola.

    Para Hari a Kiluanji, a aliana com os

    portugueses representava uma oportuni-

    dade de recuperar o trono do Ndongo de

    uma linhagem rival, a de Nzinga Ngola

    Kilombo Kia Kasenda (c.1575-1592), tido

    nas tradies orais como um usurpador,da qual descendia tanto Ngola Mbandi

    como Nzinga Mbandi. Os portugueses

    transferiram o ttulo central para outro

    grupo de linhagens, detentoras do Hari

    a Kiluanje, uma posio ngola senior

    numa linha colateral, uma posio ir-

    mo do ngola a kiluanje.57

    Hari a Kiluanji j havia prometidovassalagem a Mendes de Vasconcelos,

    conrmada no governo de Joo Correia

    de Souza e aparecia como um excelente

    candidato aos planos de Ferno de Sou-

    za para fazer guerra a Nzinga e trazer o

    Ndongo para o controle portugus. O

    sucesso deste plano permitiria estabele-

    cer um governo em que os Portugueses

    poderiam explorar o comrcio, obter re-

    ceitas, difundir o cristianismo e ganhar

    mais apoio militar. 58

    56 Ferno de Souza para seus lhos, c. 1630. InHEINTZE, Fontes para a histria de Angola.

    Vol. I, p. 230. Citado em THORTHON. CentralAfricans...p. 129.

    57 MILLER, J.Poder poltico e parentesco. p. 84.58

    Regimento a Bento Banha Cardoso, Janeiro de1626. In HEINTZE. Op. cit.vol.I. p.204-5. e Re-lao do Dongo. Idem. p. 199-200. Citados emTHORTHON. Central Africans...p. 130.

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    O plano de instalar um rei fanto-

    che j havia sido arquitetado no gover-

    no de Mendes de Vasconcelos, que quis

    instituir Samba Antumba como rei. Sem

    sucesso, pois Ngola Mbandi ainda esta-va vivo e o povo do Ndongo no aceitaria

    um governante que no descendesse dos

    antigos Ngolas.

    Apesar da genealogia dar possvel

    legitimidade a Hari a Kiluanje, os de-

    tentores desta posio nunca exerceram

    inuncias polticas e os Mbundo nun-

    ca os reconheceram como herdeiros dottulo Ngola. Muitos sobas revoltam-se

    com o poder dado a Hari a Kiluanje, visto

    como incapaz de garantir a ordem e de

    fazer chover (proeminncia do Ngola) e

    passam a apoiar Nzinga na luta contra

    Portugal.

    Hari a Kiluanji morreu logo acome-

    tido por bexigas e assumiu o trono seuirmo, Ngola Hari, senhor das Pedras de

    Mapungo, que passou a se chamar Dom

    Felipe, em homenagem ao rei da Unio

    Ibrica. Ngola Hari se comprometeu a

    pagar anualmente cem cabeas de es-

    cravos como tributo a Coroa lusa, que

    em troca prometia defende-lo de seus

    inimigos. Este golpe uma tentativa por-

    tuguesa de alterar as dinmicas polticas

    tradicionais, forjando reis que lhe seriam

    mais favorveis.

    Nzinga, Tembanza do Kilombo

    Nzinga Mbandi jamais aceitou per-

    der o trono do Ndongo e se fortalece mi-

    litarmente para combater os portugueses

    e garantir seus direitos e a soberania de

    seu povo. Para fazer frente ao poder lusi-

    tano, Nzinga mobilizou muitos sobas nas

    adjacncias do rio Kwanza, alguns sobas

    Ndembu, como era o poderoso Mbwila,

    os sobas da Quissama sempre hostis aosportugueses. Foi formada uma forte con-

    federao liderada por Nzinga cujo prin-

    cipal objetivo era minar a presena lusa

    em Angola.

    No se sabe ao certo o momento que

    Nzinga consagrou sua unio com os Im-

    bangalas. Cavazzi diz que, para ter acesso

    a seu sobrinho herdeiro, ngiu amor aoJaga Caza, tutor do menor e com ele se

    casou segundo os ritos daquele povo. De-

    pois do assassinato do sobrinho, Caza fo-

    giu. Seguindo a narrativa, escreve: para

    poder dispor de guerreiros mais aptos

    a to grande empreendimento, abra-

    ou a seita dos Jagas e tornou-se chefe

    da mesma.

    59

    Heywood-Thorthon, combase nos documentos de Ferno de Sou-

    za, arma que ela teria aceito a humi-

    lhante posio de mulher de Kasanje60

    e desta relao teria se tornado uma

    Imbangala engajada em seguir as leis

    deste bando. O ponto passivo que rai-

    nha Nzinga assumiu a liderana de um

    ou mais bandos Imbangalas e passou a

    comanda-los poltica e militarmente na

    luta contra os Portugueses.

    As tradies dos Imbangalas reco-

    lhidas por Miller mostram que o Jaga

    Caza se deslocou para a Baixa do Cas-

    sanje onde desempenhou um impor-

    tante papel na fundao do estado de

    59 CAVAZZI. Op. cit.Vol.II. p. 71-2.60 HEYWOOD,L. e THORTHON, J. Central afri-

    cans. p.133.

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    Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.23, n.2, jul./dez. 2010 407

    Kasanje.61 Nzinga, para complementar

    sua posio de Ngola Kiluanji, teria re-

    alizado um casamento simblico com

    Caza, que lhe deu a posio de Tembanza

    (primeira mulher) do chefe do Kilombo.Trata-se de um papel crucial nos ritos do

    Kilombo, em que a Tembanza a herdei-

    ra das funes de Temba Ndumba, sendo

    responsvel pela preparao do Magi a

    Samba. Nzinga incorpora as leis Kijila

    e torna-se rgida no seu cumprimento,

    proibindo a procriao no interior do seu

    Kilombo e realizando os rituais tpicosdos Imbangalas.

    Com o cargo de Tembanza, Nzinga

    assegurou sua liderana sobre um ex-

    pressivo bando guerreiro, o que restava

    dos Imbangalas do Kulaxingo, aps sua

    disperso cerca de 161962, e tambm lhe

    garantiu inuncia sobre outros bandos

    de Jagas. A aliana com os Imbanga-las servia a um objetivo estratgico pois

    lhe fornecia um refgio seguro prximo

    dos Imbangalas localizados ao sul do

    rio Kwanza. Sempre que a presso por-

    tuguesa aumentava, Nzinga e seus ban-

    dos se escondiam na ilha de Kindonga,

    onde haviam construdo forticaes e

    usavam os braos do rio Kwanza para se

    proteger e movimentar.63

    Foram vrias as batalhas de Nzin-

    ga, na liderana dos Kilombos, contra

    a obstinada perseguio de Ferno de

    Souza, cujo objetivo principal passou a

    ser capturar a rainha. Utilizamos aqui a

    61

    MILLER, J.Poder poltico e parentesco. p.217.62 Idem. p.217.63 CADORNEGA.Histria Geral das Guerras Ango-

    lanas. Lisboa, 1972. Vol.I. p. 130.

    Histria Geral das Guerras Angolanas,

    do capito Cadornega como fonte hist-

    rica privilegiada para os episdios mili-

    tares. Apesar de ter chegado em Angola

    somente em 1640, Cadornega se propea narrar os avanos da conquista lusa e

    registrar os juzos e sentimentos que os

    portugueses tinham dos africanos. Opta-

    mos por preservar as palavras do autor .

    Ainda em 1626, os Portugueses

    apoiado pelas tropas de Hari, tentaram

    invadir a ilha de Kindonga.

    Deste sitio e alojamento marchou o

    Capitao mor em demanda das Ilhas

    de Quindonga onde a Rainha Ginga

    estava forticada, assistida de muitos

    Jagas, como era Caza e Caiete, que

    aquella astucioza Rainha com seus ar-

    dis e industria se havia assenhoreado

    delles e de seus Quilombos.64

    Ataques surpresas s tropas por-

    tuguesas tambm fazia parte do rol de

    estratgias de Nzinga para se defender.

    Em junho de 1626, Banha Cardoso aloja

    seu exercito na outra banda do Kwanza,

    esperando invadir Kindonga e Nzinga,

    vendo que os portugueses se aproxima-

    vam, mandou aos seus melhores capites

    que atravessassem aqueles braos de rioem canoas, balsas e jangadas. Ordenou

    que entrassem a noite nos alojamentos

    portugueses, queimando tudo e despren-

    dendo as lanchas que estavam armadas.

    Quando os portugueses nalmente en-

    traram na ilha de Kindonga, degolando

    e aprisionando muita gente, a rainha

    64 CADORNEGA. Histria Geral das Guerras Ango-lanas. Lisboa, 1972. Vol.I. p. 130.

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    no fora capturada. Ela se movera rapi-

    damente pelas diversas ilhas do Kwan-

    za, enganando os exrcitos lusitanos.

    As vitrias portuguesas no conseguiam

    produzir efeitos duradouros em termosde conquista poltica, mas cada ataque

    resultava em muitos escravos aprisiona-

    dos, produzindo altos lucros no mercado.

    A batalha na ilha de Mapolo, em 12 de

    junho de 1626, revela a astcia da rainha

    Nzinga para se livrar do cerco empreendido

    pelo Capito mor Bento Banha Cardoso:

    veyo s a car por render a Ilha em que

    estava a Rainha Ginga Dona Anna de

    Souza com sua Corte e do melhor que

    possuhia; vendose Ella abarbada man-

    dou seus Embaixadores ao Capito mor,

    pedindo-lhe a no apertasse tanto, que

    bastava o damno e guerra que lhe tinha

    feito nas mais ilhas, queElla queria ser

    flha de Maniputo e sua Vassalla

    que dentro em tres dias viria em pessoacom sua Corte ao Arrayal (...)65

    Maniputo era a forma como os

    Mbundos chamavam o rei de Portugal,

    assim a rainha negociava sua vassalagem

    em troca de sua liberdade. Mas a trgua

    requerida era apenas uma artimanha

    para que Nzinga conseguisse fugir comseus guerreiros:

    Havendo o nosso Conquistador espera-

    do os tres dias aplacados, e vendo no

    vinha a Rainha nem recado seu para a

    mandar passar nas suas embarcao-

    ens, entendeo que fora estrategema a

    tregoa dos tres dias que havia pedido e

    mandado reconhecer a Ilha a acharo

    65 Idem. Vol.I. p. 137. grifo nosso

    dezerta, e a Rainha fugida com um inu-

    mervel gentio que tinha.66

    Cavazzi, provavelmente a partir dos

    relatos de Nzinga na dcada de 1660,

    registrou a consulta que, nesta batalha,

    Nzinga faz o Xinguila de Ngola Mbandi.

    Segundo este autor, Nzinga governava

    assessorada por dois conselhos: um se-

    cular, formado por macotas e outro es-

    piritual, formado por Xinguilas, mdiuns

    que recebiam os espritos de antepassa-

    dos, como era o de Ngola Mbandi. O es-

    prito do irmo a orientava: render-se

    aos portugueses signicaria a perda da

    liberdade. No era indigno dela fugir

    naquela conjuntura, para combater e

    vencer o inimigo em condies mais

    favorveis.67 Nzinga fugiu para a pro-

    vncia de Hango, iludindo os inimigos.

    O governo portugus, ofendido

    pela ao inesperada, mobilizou gran-

    des tropas para ir em busca de Nzinga.

    E nas diversas fugas, foram vrias as

    estratgias utilizadas para evitar seu

    aprisionamento. Na fuga de 28 de maio

    de 1629, a rainha e seu bando foram

    cercados pelo exrcito luso e corriam

    em direo a um desfiladeiro. Vendo-se

    acuada na beira do precipcio, Nzingadesceu pendurada em fortes cips, na

    lngua Kimbundo chamados de En-

    gungo. Este episdio ficou conhecido

    como a fuga da Quina Quineni (grande

    concavidade, em quimbundo). Em ou-

    tros momentos, a rainha ordenou que

    fossem abandonados escravos e prisio-

    66 Idem.Vol.I p. 139.67 CAVAZZI. Vol. II. p. 78.

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    neiros portugueses durante a fuga a fim

    de que as tropas que iam a sua procura

    perdessem tempo resgatando-os.

    Fortalecida pelos exrcitos Imban-

    galas, Nzinga invadiu a provncia doHari, impedindo o avano da conquistas

    e desarticulando as feiras em Pungo a

    Ndongo. O governo portugus nancia-

    va Ngola Hari na luta contra Nzinga para

    mant-la ocupada, enquanto desenvolvia

    o trco em outras partes do territrio.

    Mas Nzinga conseguiu estabelecer suas

    tropas de forma a impedir a comunicaoentre Ngola Hari e o governo portugus

    em Luanda. Este ento tenta novos tra-

    tados de paz, com a promessa de devol-

    ver as provncias injustamente tomadas

    e de ajud-la contra seus inimigos, sob a

    condio de ela reconhecer estes favores

    com um tributo anual. Cavazzi registrou

    o episdio segundo o que a prpria Nzin-ga lhe narrou anos depois:

    Alterou-se extremamente a feroz rai-

    nha com estas propostas, julgando que

    era grave afronta pretender homena-

    gem duma soberana independente e

    absoluta. Respondeu, por conseguinte,

    que tais pretenses deviam ser feitas a

    um vencido desanimado e no a quem

    tinha por si todos os direitos e a cora-

    gem para sustent-los.68

    Juntamente com o Jaga Kasanje,

    marcharam em direo ao norte ao longo

    da costa ocidental do Kongo. Com fora

    militar ampliada pelo bando de Kasanje,

    retomou as ilhas de Kindonga.

    68 CAVAZZI. Op. cit.Vol.II. p. 77.

    Por volta de 1630, Nzinga conquista

    o Reino de Matamba, evocada como ter-

    ras de seus ancestrais, tradicionalmente

    governada por mulheres. Matamba ha-

    via sido dominada pelos portugueses nogoverno de Luis Mendes de Vasconcelos

    (1617 - 1620), que aps quatro anos de

    violentos conitos e de grande resistn-

    cias, submeteram Mulundo Acambolo,

    rainha daquele reino. Nzinga expulsou

    os portugueses de Matamba e se forta-

    leceu ainda mais como grande lder da

    regio central, encabeando dezenas deKilombos. Passa a ser vista como guer-

    reira imortal e hbil feiticeira, capaz de

    manipular foras mgicas nas batalhas.

    Segundo Cavazzi69, o Jaga Kasanje, dian-

    te dos xitos de Nzinga em Matamba,

    tambm invade este reino, inaugurando

    uma guerra contra sua ex-aliada. fcil

    notar a instabilidade das alianas que seformavam em torno mais de interesses

    remotos do que por princpios polticos

    e ideolgicos.

    Rainha Nzinga seguia com ateno

    os costumes Jagas, o que bem represen-

    tado na vitria obtida em 1644, durante

    o governo de Pedro Csar de Menezes.

    O conito se iniciou quando homens do

    Soba Angolomen Acaita zeram assaltos

    aos aliados portugueses na fortaleza de

    Ambaca. Este soba vivia escondido em

    concavidades naturais chamadas Em-

    pures, que lhe serviam de proteo, h

    uma distncia de 4 dias da fortaleza de

    Ambaca. O governador mandou que fos-

    sem em busca deste soba para retali-lo,

    69 Idem. Vol.II. p.79-81.

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    nomeando capites e dois cangoandas70,

    Ambrozio Fernandes e Manoel Alvres Ca-

    sangi, para este ataque, juntamente com

    quilambas71da guerra preta e o Kilombo

    do Jaga Cabucu Candonga, que estava aservio dos portugueses. Em apuros, o

    Soba mandouMucunzes (embaixadores)

    ao Kilombo da Rainha Nzinga que lhe

    pedia como sua Senhora que era os am-

    parasse e socorresse com brevidade72.

    A rainha prontamente mandou os seus

    melhores homens de guerra, acompanha-

    dos pelo seu capito Ginga Amona aosEmpures para socorrer aquele Soba que

    lhe tinha como soberana. Quando estes

    chegaram, a guerra preta e a maior par-

    te do bando de Jaga Cabucu estavam em

    busca de alimento. Os guerreiros da rai-

    nha zeram grande destruio, matan-

    do a Cutello ou Maxadinha, excedendo

    a ordem dada pela rainha que era de seaprisionar vivos o Capito mor e Cabos

    da guerra preta. Levaram a ela o Capito

    dos Crioulos, Ambrozio Fernandes, e

    vendo ella ser de Cres pardo, a que ella

    a todos deste gnero reputava por suas

    peas, dizendo serem lhos de suas Es-

    cravas, lhe mandou acabar a vida, que

    j vinha para isso esvado de sanguedas muitas feridas, mandando-lhe cor-

    tar a Cabea.73

    70 Cangoandas o nome dado aos crioulos, de SoTom e da terra, vestidos Portuguesa que luta-

    vam em favor dos lusitanos. CADORNEGA. Vol. I.p. 346.

    71 Quilambas eram negros treinados militarmente

    que compunham a guerra preta. CADORNEGA.Passim.72 CADORNEGA. Vol. I. p. 349.73 CADORNEGA. Vol.I. p.352.

    A Rainha Nzinga poupou a vida

    do Padre Capelo Jeronimo de Sequei-

    ra, chamado o Pato, e de dois homens

    brancos: um Alferes por nome Jorge de

    Queiroz e outro um Mancebo criado docapito mor, e de mais quatro homens

    pardos soldados.

    Ao Jaga Cabucu com sua mulher, cha-

    mada Coanza, tambm concedeu a vida

    por serem Senhores de Quilombo, e

    haver pacto entre os Jagas darem aos

    dalgos Senhores de Quilombo boa pas-

    sagem e quartel, tendo entre elles sobreisso tomado juramento a seu modo, e

    como ella uzava todos os ritos e Cere-

    monias Jagas e disso muito se prezava,

    observava grandemente os seus costu-

    mes74;

    Alguns Sobas que acompanhavam

    os portugueses tambm foram aprisiona-

    dos e se desculparam alegando que o fa-ziam mais por fora que por vontade.

    Entre eles estava Dom Joo Guterres An-

    gola Canini, Soba da Lotao da capita-

    nia de Ambaca, a quem estava consigna-

    do o servio e a fbrica da Igreja da Nossa

    Senhora de Assumpo daquele Presdio.

    Este dalgo era parente prximo da Rai-

    nha Nzinga, ao qual no princpio se mos-trou spera por ele andar em servio de

    Muene Puto; mas como o Sangue no

    se quer rogado, logo em seguida a rai-

    nha lhe deu o melhor lugar e Cargo de

    sua Corte, o de Muene Lumbo, que o

    guardio da Casa Real e das coisas mais

    preciosas da soberana.

    Esta passagem revela como Nzin-

    74 CADORNEGA. Vol. I. p. 352-353.

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    Cad. Pesq. Cdhis, Uberlndia, v.23, n.2, jul./dez. 2010 411

    ga seguia rmemente os costumes e ju-

    ramentos Jagas. interessante reparar

    o tratamento dado aos prisioneiros de

    guerra, diferente daquele dado pelos

    portugueses. Canini, de traidor da estir-pe real a que pertencia, passa a ocupar

    um dos principais cargos no Kilombo da

    rainha.

    A invaso holandesa em Angola

    (1641-1648) aquece o cenrio de guerra.

    Nzinga apia os amengos para minar

    a presena lusa na regio, desenvolven-

    do uma rota alternativa do comrcio deescravos, passando por Matamba. Nzin-

    ga fornecia peas da ndia em troca de

    armas de fogo europias. Os Estados de

    Matamba e Kasanje vo se destacar na

    dcada de 1640 como grande exporta-

    dores de escravos e juntamente com os

    holandeses vo impedir o abastecimento

    de escravos nas partes controladas pelosportugueses, refugiados no forte de Mas-

    sangano.

    Nzinga Mbandi viveu por muitos

    anos seguindo os ritos e leis Jagas, sen-

    do a inimiga portuguesa mais combativa

    e combatida em Angola. Muitas foram

    tambm as estratgias dos portugueses

    para enfraquec-la, como o seqestro de

    suas irms. Um delas, Kifungi, foi morta

    acusada de espionagem, e a outra, Mo-

    cambo, cou como refm entre 1646 e

    1656 em Luanda. O resgate de Mocambo

    foi usado como arma poltica para nego-

    ciar a paz em Matamba e uma forma dos

    governadores portugueses conseguirem

    mais escravos. O retorno de Nzinga ao

    catolicismo sempre foi colocado como

    uma condio sine qua nonpara a paz.

    Marina de Mello e Souza analisou

    o trabalho dos Capuchinhos italianos na

    reconverso desta soberana, realizada

    pelas mos do padre Gaeta. No enten-

    der desta autora, para os portugueses oretorno ao catolicismo representou mais

    um passo para o controle sobre o comr-

    cio com o interior e sobre os habitantes

    da regio75.

    A consso de Nzinga ao padre Ga-

    eta, foi assim registrada:

    Padre Sacerdote de Deus, sabes que h

    muito tempo que eu desejei viver quieta

    e em paz no meu Reino, mas os portugue-

    ses at agora no me permitiram, porque

    depois de haverem me expulsado do meu

    reino de Angola, e do Dongo, que usur-

    param com a fora, me constrangeram

    a estar sempre em campanha com as ar-

    mas nas mos, para me defender deles, e

    esquecia de ser crist, a retornar por de-

    sespero a indelidade a vida dos Jagas. 76

    Nzinga culpa os portugueses pe-

    las tantas guerras que se envolveu, e no

    nal da vida diz estar arrependida das

    idolatrias praticadas e retorna ao cris-

    tianismo como lha devota, chega at

    a escrever ao Papa Alexandre VII em

    166277

    pedindo indulgncias e um cru-cixo. Promete liberar o nascimento de

    75 SOUZA, Marina de Mello e. A rainha Jinga de Ma-tamba e o catolicismo. frica Central, sculo XVII,emMarlyse Meyer nos caminhos do imaginrio,orgs. PIRES, Jerusa Ferreira e REAS, Vilma. SoPaulo: EDUSP, 2009, pp. 153-182.

    76 GIOIA DA NAPOLI, Frei. La maravigliosa con-versione alla Santa Fede di Cristi della ReginaSina e del suo regno di Matamba (1669). Naples,

    1669.p.100. Traduo nossa.77 Carta da rainha Jinga ao santo padre AlexandreVII. 15/8/1662. In CAVAZZI. Op.cit. Documentoanexo n.59. p. 343.

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    crianas em suas terras e abolir as leis

    dos Jagas.

    A paz com os portugueses foi as-

    sinada em 1656, no governo de Luis

    Martins Chichorro, sob a condio darainha ajudar na conquista da Quissa-

    ma, ser amiga dos amigos portugueses

    e inimiga dos inimigos. Nzinga prome-

    teu tambm entregar o Jaga Kalandu-

    la, que estava como seu prisioneiro. O

    antigo aliado da rainha, que anterior-

    mente servira a Coroa portuguesa, ha-

    via destrudo algumas propriedades deNzinga, que em retaliao, negociou

    sua liberdade. Nzinga jamais aceitou

    ser tributria dos portugueses e man-

    teve a independncia e soberania do

    seu reino. Marina de Mello e Souza

    chama ateno de que o acordo de 1656

    foi muito diferente de um tratado de

    vassalagem, sendo acima de tudo umacordo de paz78.

    Concluses

    A aliana de Nzinga Mbandi com os

    Imbangalas foi fundamental para garan-

    tir a esta rainha o poderio militar na luta

    contra a invaso portuguesa do Ndongo.

    Destituda de seu reino, Nzinga busca

    nos Jagas a fora blica necessria para

    combater seus inimigos. O treinamento

    militar e a disciplina que tinham para

    78 SOUZA, Marina de Mello e. A rainha Jinha deMatamba e o catolicismo (frica Central, sculoXVII) In: Milln, J. M. e Loureno, M.P. Maral.

    (coords.) Ls relaciones discretas entre las mo-narquias hispana Y portuguesa: Las casas de lasreinas (siglos XV-XIX). Vol.III. Madrid: EdicionesPolifemo, 2008.p. 2105.

    com o chefe do Kilombo foram essenciais

    para fortalecer a luta anti-lusitana.

    Ao mesmo tempo, Rainha Nzinga

    consegue imprimir algum tipo de cons-

    cincia poltica aos Jagas. Este povoguerreiro vivia vagando sem se prender a

    origens linhageiras, roubando comidas e

    pessoas, atuando para o aumento do tr-

    co negreiro. Ao colocarem seus Kilom-

    bos, mquinas de guerra79, a dispo-

    sio da Rainha Nzinga, os Imbangalas

    passam a compor a frente de resistncia

    diante da ameaa estrangeira.Atuando como lder Imbangala,

    Nzinga aumenta sua inuncia sobre

    povos de origens variadas. No apenas o

    povo de etnia Mbundo passa a lhe reco-

    nhecer como sua soberana, mas tambm

    todos aqueles que formavam os Kilom-

    bos, de mltiplas etnias, incorporados

    nas invases Jagas.Ao grande nmero de escravos dos

    portugueses que buscaram refgio no Ki-

    lombo de Nzinga foi permitido trocas de

    experincias em vrios campos (lingsti-

    co, tcnicas de guerras, tcnicas agrcolas

    e metalrgicas80), o que permitiu a criao

    de uma nova etnia: os Gingas. No presente

    artigo, no coube analisar as fugas e con-

    uncias no Kilombo de Nzinga, mas um

    interessante tema para estudos futuros.

    Nzinga acumulou durante sua vida

    muitos ttulos: nunca abriu mo de ser

    79 A idia do Kilombo como mquina de guerra apresentada por MILLER, J.Poder poltico e pa-rentesco. Cap. VI.

    80

    HEINTZE. Beatrix. Angola nos sculos XVI eXVII- estudos sobre fontes, mtodos e histria.Trad. de Marina Santos. Luanda: Editora Kilom-

    belombe, 2007. Captulo 7.

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    Ngola Kiluanji, chefe poltico e militar

    do reino do Ndongo; aceitou ser a crist

    Dona Anna de Souza; recebeu o cargo de

    Tembanza, abraando os ritos Jagas. A

    Rainha Nzinga uma soma de tudo isso,incorporou todos estes ttulos em sua

    personalidade e viveu ambiguamente

    com todas estas caractersticas.

    Aps seu retorno ao catolicismo,

    houve um processo de sedentarizao

    dos Imabangalas, tambm chamado de

    ambundizao. Alguma das pessoas

    que viviam sob seu comando nos Kilom-bos retornaram a agricultura e voltaram

    a se xar no territrio, abandonando a

    vida nmade.

    Longe de ser uma governante huma-

    nitria e boazinha, Nzinga tambm con-

    tribuiu para o trco negreiro a partir de

    Matamba, principalmente durante a ocu-

    pao holandesa. Os historiadores atuaisdevem fazer um grande esforo para evi-

    tar romantizar esta personagem, evocada

    como lder proto-nacionalista de Angola.

    Mas sem dvida, Nzinga Mbandi um dos

    melhores exemplos da resistncia africana

    frente ocupao europia. Sua personali-

    dade pe abaixo as teorias da passividade

    autctone frente superioridade da civili-

    zao branca. Nzinga Mbandi, com todas

    suas nuances, representa bem a luta do

    povo de Angola contra as interferncias

    estrangeiras.

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    Submetido em: 14 de Julho de 2010

    Aprovado em: 8 de Setembro, 2010

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