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Prefácio Quando começámos o trabalho, cujas primeiras provas dedicamos a Friedrich Pollock, tínhamos a esperança de poder apresentar o todo concluído por ocasião de seu quinquagésimo aniversário. Mas quanto mais nos aprofundávamos em nossa tarefa, mais claramente percebíamos a desproporção entre ela e nossas forças. O que nos propuséramos era, de facto, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie. Subestimámos as dificuldades da exposição porque ainda tínhamos uma excessiva confiança na consciência do momento presente. Embora tivéssemos observado há muitos anos que, na actividade científica moderna, o preço das grandes invenções é a ruína progressiva da cultura teórica, acreditávamos de qualquer modo que podíamos nos dedicar a ela na medida em que fosse possível limitar nosso desempenho à crítica ou ao desenvolvimento de temáticas especializadas. Nosso desempenho devia restringir-se, pelo menos tematicamente, às disciplinas tradicionais: à sociologia, à psicologia e à teoria do conhecimento. Os fragmentos que aqui reunimos mostram, contudo, que tivemos de abandonar aquela confiança. Se uma parte do conhecimento consiste no cultivo e no exame atentos da tradição científica ( especialmente onde ela se vê entregue ao esquecimento como um lastro inútil pelos expurgadores positivistas), em compensação, no colapso actual da civilização burguesa, o que se torna problemático é não apenas a actividade, mas o sentido da ciência. O que os fascistas ferrenhos elogiam hipocritamente e os dóceis especialistas da humanidade ingenuamente levam a cabo, a infatigável autodestruição do esclarecimento, força o pensamento a recusar o último vestígio de inocência em face dos costumes e das tendências do espírito da época. Se a opinião pública atingiu um estado em que o pensamento inevitavelmente se converte em mercadoria e a linguagem em seu encarecimento, então a tentativa de pôr a nu semelhante depravação tem de recusar lealdade às convenções linguísticas e conceituais em vigor, antes que suas

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Prefcio Quando comemos o trabalho, cujas primeiras provas dedicamos a Friedrich Pollock, tnhamos a esperana de poder apresentar o todo concludo por ocasio de seu quinquagsimo aniversrio. Mas quanto mais nos aprofundvamos em nossa tarefa, mais claramente percebamos a desproporo entre ela e nossas foras. O que nos propusramos era, de facto, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, est se afundando em uma nova espcie de barbrie. Subestimmos as dificuldades da exposio porque ainda tnhamos uma excessiva confiana na conscincia do momento presente. Embora tivssemos observado h muitos anos que, na actividade cientfica moderna, o preo das grandes invenes a runa progressiva da cultura terica, acreditvamos de qualquer modo que podamos nos dedicar a ela na medida em que fosse possvel limitar nosso desempenho crtica ou ao desenvolvimento de temticas especializadas. Nosso desempenho devia restringir-se, pelo menos tematicamente, s disciplinas tradicionais: sociologia, psicologia e teoria do conhecimento. Os fragmentos que aqui reunimos mostram, contudo, que tivemos de abandonar aquela confiana. Se uma parte do conhecimento consiste no cultivo e no exame atentos da tradio cientfica ( especialmente onde ela se v entregue ao esquecimento como um lastro intil pelos expurgadores positivistas), em compensao, no colapso actual da civilizao burguesa, o que se torna problemtico no apenas a actividade, mas o sentido da cincia. O que os fascistas ferrenhos elogiam hipocritamente e os dceis especialistas da humanidade ingenuamente levam a cabo, a infatigvel autodestruio do esclarecimento, fora o pensamento a recusar o ltimo vestgio de inocncia em face dos costumes e das tendncias do esprito da poca. Se a opinio pblica atingiu um estado em que o pensamento inevitavelmente se converte em mercadoria e a linguagem em seu encarecimento, ento a tentativa de pr a nu semelhante depravao tem de recusar lealdade s convenes lingusticas e conceituais em vigor, antes que suas consequncias para a histria universal frustrem completamente essa tentativa. Se se tratasse apenas dos obstculos resultantes da instrumentao desmemoriada da cincia, o pensamento sobre questes sociais poderia, pelo menos, tomar como ponto de partida as tendncias opostas cincia oficial. Mas tambm estas so presas do processo global de produo. Elas no se modificaram menos do que a ideologia qual se referiam. Com elas se passa o que sempre sucedeu ao pensamento triunfante. Se ele sai voluntariamente de seu elemento crtico como um mero instrumento ao servio da ordem existente, ele tende, contra sua prpria vontade, a transformar aquilo que escolheu como positivo em algo de negativo, de destrutivo. A filosofia que, no sculo dezoito, apesar das fogueiras levantadas para os livros e as pessoas, infundia um medo mortal na infmia, (l) sob Bonaparte j passava para o lado desta. Finalmente, a escola apologtica de Comte usurpou a sucesso dos enciclopedistas intransigentes e estendeu a mo a tudo aquilo contra o qual estes se haviam colocado. As metamorfoses da crtica na afirmao tampouco deixam inclume o contedo terico, sua verdade volatiliza-se. Agora, verdade, a histria motorizada toma a dianteira desses desenvolvimentos intelectuais e os porta-vozes oficiais, movidos por outros cuidados, liquidam a teoria que os ajudou a encontrar um lugar ao sol, antes que esta consiga prostituir-se direito. Ao tomar conscincia da sua prpria culpa, o pensamento v-se por isso privado no s do uso afirmativo da linguagem conceptual cientfica e quotidiana, mas igualmente da linguagem da oposio. No h mais nenhuma expresso que no tenda a concordar com as direces dominantes do pensamento, e o que a linguagem desgastada no faz espontaneamente suprido com preciso pelos mecanismos sociais. Aos censores, que as fbricas de filmes mantm voluntariamente por medo de acarretar no final um aumento dos custos, correspondem instncias anlogas em todas as reas. O processo a que se submete um texto literrio, se no na previso automtica do seu produtor, pelo menos pelo corpo de leitores, editores, redactores e ghost-writers dentro e fora do escritrio da editora, muito mais minucioso que qualquer censura. Tornar inteiramente suprfluas suas funes parece ser, apesar de todas as reformas benficas, a ambio do sistema educacional. Na crena de que ficaria excessivamente susceptvel charlatanice e superstio, se no se restringisse constatao de factos e ao clculo de probabilidades, o esprito conhecedor prepara um cho suficientemente ressequido para acolher com avidez a charlatanice e a superstio. Assim como a proibio sempre abriu as portas para um produto mais txico ainda, assim tambm o cerceamento da imaginao terica preparou o caminho para o desvario poltico. E, mesmo quando as pessoas ainda no sucumbiram a ele, elas vem-se privadas dos meios de resistncia pelos mecanismos de censura, tanto os externos quanto os implantados dentro delas prprias. A aporia com que defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objecto a investigar: a autodestruio do esclarecimento. No alimentamos dvida nenhuma - e nisso reside nossa petitio principii - de que a liberdade na sociedade inseparvel do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o prprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas histricas concretas, as instituies da sociedade com as quais est entrelaado, contm o germe para a regresso que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento no acolhe dentro de si a reflexo sobre esse elemento regressivo, ele est selando seu prprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexo sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu carcter superador e, por isso, tambm sua relao com a verdade. A disposio enigmtica das massas educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascnio de um despotismo qualquer, sua afinidade autodestrutiva com a parania racista, todo esse absurdo incompreendido manifesta a fraqueza do poder de compreenso do pensamento terico atual. Acreditamos contribuir com estes fragmentos para essa compreenso, mostrando que a causa da recada do esclarecimento na mitologia no deve ser buscada tanto nas mitologias nacionalistas, pags e em outras mitologias modernas especificamente idealizadas em vista dessa recada, mas no prprio esclarecimento paralisado pelo temor da verdade. Neste respeito, os dois conceitos devem ser compreendidos no apenas como histrico-culturais, mas como reais. Assim como o esclarecimento exprime o movimento real da sociedade burguesa como um todo sob o aspecto da encarnao de sua Ideia em pessoas e instituies, assim tambm a verdade no significa meramente a conscincia racional mas, do mesmo modo, a figura que esta assume na realidade efectiva. O medo que o bom filho da civilizao moderna tem de afastar-se dos factos - factos esses que, no entanto, j esto pr-moldados como clichs na prpria percepo pelas usanas dominantes na cincia, nos negcios e na poltica - exactamente o mesmo medo do desvio social. Essas usanas tambm definem o conceito de clareza na linguagem e no pensamento a que a arte, a literatura e a filosofia devem conformar-se hoje. Ao tachar de complicao obscura e, de preferncia, de aliengena o pensamento que se aplica negativamente aos factos, bem como s formas de pensar dominantes, e ao colocar assim um tabu sobre ele, esse conceito mantm o esprito sob o domnio da mais profunda cegueira. caracterstico de uma situao sem sada que at mesmo o mais honesto dos reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovao, adopta tambm o aparelho categorial inculcado e a m filosofia que se esconde por trs dele, e assim refora o poder da ordem existente que ele gostaria de romper. A falsa clareza apenas uma outra expresso do mito. Este sempre foi obscuro e iluminante ao mesmo tempo. Suas credenciais tm sido desde sempre a familiaridade e o facto de dispensar do trabalho do conceito. A naturalizao dos homens hoje em dia no dissocivel do progresso social. O aumento da produtividade econmica, que por um lado produz as condies para um mundo mais justo, confere por outro lado ao aparelho tcnico e aos grupos sociais que o controlam uma superioridade imensa sobre o resto da populao. O indivduo v-se completamente anulado em face dos poderes econmicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o poder da sociedade sobre a natureza a um nvel jamais imaginado. Desaparecendo diante do aparelho a que serve, o indivduo v-se, ao mesmo tempo, melhor do que nunca provido por ele. Numa situao injusta, a impotncia e a dirigibilidade da massa aumentam com a quantidade de bens a ela destinados. A elevao do padro de vida das classes inferiores, materialmente considervel e socialmente lastimvel, reflecte-se na difuso hipcrita do esprito. Sua verdadeira aspirao a negao da reificao. Mas ele necessariamente se esvai quando se v concretizado em um bem cultural e distribudo para fins de consumo. A enxurrada de informaes precisas e diverses asspticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo tempo. O que est em questo no a cultura como valor, como pensam os crticos da civilizao Huxley, Jaspers, Ortega y Gasset e outros. A questo que o esclarecimento tem que tomar conscincia de si mesmo, se os homens no devem ser completamente trados. No da conservao do passado, mas de resgatar a esperana passada que se trata. Hoje, porm, o passado prolonga-se como destruio do passado. Se a cultura respeitvel constituiu at ao sculo dezanove um privilgio, cujo preo era o aumento do sofrimento dos incultos, no sculo vinte o espao higinico da fbrica teve por preo a fuso de todos os elementos da cultura num cadinho gigantesco. Talvez isso no fosse um preo to alto, como acreditam aqueles defensores da cultura, se a venda em liquidao da cultura no contribusse para a converso das conquistas econmicas em seu contrrio. Nas condies atuais, os prprios bens da fortuna convertem-se em elementos do infortnio. Enquanto no perodo passado a massa desses bens, na falta de um sujeito social, resultava na chamada superproduo, em meio s crises da economia interna, hoje ela produz, com a entronizao dos grupos que detm o poder no lugar desse sujeito social, a ameaa internacional do fascismo: o progresso converte-se em regresso. O facto de que o espao higinico da fbrica e tudo o que acompanha isso, o Volkswagen e o Palcio dos Desportos, levem a uma liquidao estpida da metafsica, ainda seria indiferente, mas que eles prprios se tornem, no interior do todo social, a metafsica, a cortina ideolgica atrs da qual se concentra a desgraa real no indiferente. Eis a o ponto de partida dos nossos fragmentos. O primeiro estudo, o fundamento terico dos seguintes, procura tornar mais inteligvel o entrelaamento da racionalidade e da realidade social, bem como o entrelaamento, inseparvel do primeiro, da natureza e da dominao da natureza. A crtica a feita ao esclarecimento deve preparar um conceito positivo do esclarecimento, que o solte do emaranhado que o prende a uma dominao cega. Em linhas gerais, o primeiro estudo pode ser reduzido em sua parte crtica a duas teses: o mito j esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter mitologia. Nos dois excursos, essas teses so desenvolvidas a propsito de objectos especficos. O primeiro acompanha a dialctica do mito e do esclarecimento na Odisseia como um dos mais precoces e representativos testemunhos da civilizao burguesa ocidental. No centro esto os conceitos de sacrifcio e renncia, nos quais se revelam tanto a diferena quanto a unidade da natureza mtica e do domnio esclarecido da natureza. O segundo excurso ocupa-se de Kant, Sade e Nietzsche, os implacveis realizadores do esclarecimento. Ele mostra como a submisso de tudo aquilo que natural ao sujeito autocrtico culmina exactamente no domnio de uma natureza e uma objectividade cegas. Essa tendncia aplaina todas as antinomias do pensamento burgus, em especial a antinomia do rigor moral e da absoluta amoralidade. O segmento sobre a "indstria cultural" mostra a regresso do esclarecimento ideologia, que encontra no cinema e no rdio sua expresso mais influente. O esclarecimento consiste a, sobretudo, no clculo da eficcia e na tcnica de produo e difuso. Em conformidade com seu verdadeiro contedo, a ideologia se esgota na idolatria daquilo que existe e do poder pelo qual a tcnica controlada. No tratamento dessa contradio, a indstria cultural levada mais a srio do que gostaria. Mas como a invocao de seu prprio carcter comercial, de sua profisso de uma verdade atenuada, h muito se tornou uma evasiva com a qual ela tenta furtar-se responsabilidade pela mentira que difunde, nossa anlise atm-se pretenso, objectivamente inerente aos produtos, de serem obras estticas e, por isso mesmo, uma configurao da verdade. Ela revela, na nulidade dessa pretenso, o carcter maligno do social. O segmento sobre a indstria cultural ainda mais fragmentrio do que os outros. A discusso dos "Elementos do Anti-semitismo" atravs de teses trata do retorno efectivo da civilizao esclarecida barbrie. A tendncia no apenas ideal, mas tambm prtica, autodestruio, caracteriza a racionalidade desde o incio e de modo nenhum apenas a fase em que essa tendncia se evidencia sem disfarces. Neste sentido, esboamos uma pr-histria filosfica do anti-semitismo. Seu "irracionalismo" derivado da essncia da prpria razo dominante e do mundo correspondente a sua imagem. Os "Elementos" esto directamente ligados a pesquisas empricas do Instituto para Pesquisa Social, a fundao instituda e mantida por Felix Weil, sem a qual no teriam sido possveis, no apenas nossos estudos, mas uma boa parte do trabalho terico dos emigrantes alemes, que teve prosseguimento apesar de Hitler . As primeiras trs teses foram escritas juntamente com Leo Lwenthal, com quem desde os primeiros anos de Frankfurt trabalhamos em muitas questes cientficas. Na ltima parte publicam-se notas e esboos que, em parte, pertencem ao horizonte intelectual dos estudos precedentes, sem encontrar a seu lugar, e em parte traam um esboo provisrio de problemas a serem tratados num trabalho futuro. A maioria deles refere-se a uma antropologia dialctica. Los Angeles, Califrnia, Maio, 1944. O livro no contm nenhuma modificao essencial do texto tal como concludo ainda durante a guerra. S a ltima tese dos "Elementos do Anti-semitismo" foi acrescentada ulteriormente.Junho, 1947 Theodor W. AdornoMax Horkheimer (1) Aluso expresso com que Voltaire designava a superstio: "crasez l'infme". (N. T.) O Conceito de Esclarecimento No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objectivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posio de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginao pelo saber . Bacon, "o pai da filosofia experimental", (l) j reunira seus diferentes temas. Ele desprezava os adeptos da tradio, que "primeiro acreditam que os outros sabem o que eles no sabem; e depois que eles prprios sabem o que no sabem. Contudo, a credulidade, a averso dvida, a temeridade no responder, o vangloriar-se com o saber , a timidez no contradizer, o agir por interesse, a preguia nas investigaes pessoais, o fetichismo verbal, o deter-se em conhecimentos parciais: isto e coisas semelhantes impediram um casamento feliz do entendimento humano com a natureza das coisas e o acasalaram, em vez disso, a conceitos vos e experimentos errticos; o fruto e a posteridade de to gloriosa unio pode-se facilmente imaginar. A imprensa no passou de uma inveno grosseira; o canho era uma inveno que j estava praticamente assegurada; a bssola j era, at certo ponto, conhecida. Mas que mudana essas trs invenes produziram - uma na cincia, a outra na guerra, a terceira nas finanas, no comrcio e na navegao! E foi apenas por acaso, digo eu, que a gente tropeou e caiu sobre elas. Portanto, a superioridade do homem est no saber, disso no h dvida. Nele muitas coisas esto guardadas que os reis, com todos os seus tesouros, no podem comprar, sobre as quais sua vontade no impera, das quais seus espias e informantes nenhuma notcia trazem, e que provm de pases que seus navegantes e descobridores no podem alcanar. Hoje, apenas presumimos dominar a natureza, mas, de facto, estamos submetidos sua necessidade; se contudo nos deixssemos guiar por ela na inveno, ns a comandaramos na prtica". (2) Apesar de seu alheamento matemtica, Bacon capturou bem a mentalidade da cincia que se fez depois dele. O casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas que ele tem em mente patriarcal: o entendimento que vence a superstio deve imperar sobre a natureza desencantada. O saber que poder no conhece nenhuma barreira, nem na escravizao da criatura, nem na complacncia em face dos senhores do mundo. Do mesmo modo que est a servio de todos os fins da economia burguesa na fbrica e no campo de batalha, assim tambm est disposio dos empresrios, no importa sua origem. Os reis no controlam a tcnica mais directamente do que os comerciantes: ela to democrtica quanto o sistema econmico com o qual se desenvolve. A tcnica a essncia desse saber, que no visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o mtodo, a utilizao do trabalho de outros, o capital. As mltiplas coisas que, segundo Bacon, ele ainda encerra nada mais so do que instrumentos: o rdio, que a imprensa sublimada; o avio de caa, que uma artilharia mais eficaz; o controle remoto, que uma bssola mais confivel. O que os homens querem aprender da natureza como empreg-la para dominar completamente a ela e aos homens. Nada mais importa. Sem a menor considerao consigo mesmo, o esclarecimento eliminou com seu cautrio o ltimo resto de sua prpria autoconscincia. S o pensamento que se faz violncia a si mesmo suficientemente duro para destruir os mitos. Diante do actual triunfo da mentalidade factual, at mesmo o credo nominalista de Bacon seria suspeito de metafsica e incorreria no veredicto de vacuidade que proferiu contra a escolstica. Poder e conhecimento so sinnimos. (3) Para Bacon, como para Lutero, o estril prazer que o conhecimento proporciona no passa de uma espcie de lascvia. O que importa no aquela satisfao que, para os homens, se chama "verdade", mas a "operation", o procedimento eficaz. Pois no nos "discursos plausveis, capazes de proporcionar deleite, de inspirar respeito ou de impressionar de uma maneira qualquer, nem em quaisquer argumentos verosmeis, mas em obrar e trabalhar e na descoberta de particularidades antes desconhecidas, para melhor prover e auxiliar a vida", que reside "o verdadeiro objectivo e funo da cincia". (4) No deve haver nenhum mistrio, mas tampouco o desejo de sua revelao. Desencantar o mundo destruir o animismo. Xenfanes zombava da multido de deuses, porque eram iguais aos homens, que os produziram, em tudo aquilo que contingente e mau, e a lgica mais recente denuncia as palavras cunhadas pela linguagem como moedas falsas, que ser melhor substituir por fichas neutras. O mundo torna-se o caos, e a sntese, a salvao. Nenhuma distino deve haver entre o animal totmico, os sonhos do visionrio e a Ideia absoluta. No trajecto para a cincia moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituram o conceito pela frmula, a causa pela regra e pela probabilidade. A causa foi apenas o ltimo conceito filosfico que serviu de padro para a crtica cientfica, porque ela era, por assim dizer, dentre todas as ideias antigas, o nico conceito que a ela ainda se apresentava, derradeira secularizao do princpio criador. A filosofia buscou sempre, desde Bacon, uma definio moderna de substncia e qualidade, de aco e paixo, do ser e da existncia, mas a cincia j podia passar sem semelhantes categorias. Essas categorias tinham ficado para trs como idola theatri da antiga metafsica e j eram, em sua poca, monumentos de entidades e potncias de um passado pr-histrico. Para este, a vida e a morte haviam se explicado e entrelaado nos mitos. As categorias, nas quais a filosofia ocidental determinava sua ordem natural eterna, marcavam os lugares outrora ocupados por Ocnos e Persfone, Ariadne e Nereu. As cosmologias pr-socrticas fixam o instante da transio. O hmido, o indiviso, o ar, o fogo, a citados como a matria primordial da natureza, so apenas sedimentos racionalizados da intuio mtica. Assim como as imagens da gerao a partir das guas do rio e da terra se tornaram, entre os gregos, princpios hilozoistas, elementos, assim tambm toda a luxuriante plurivocidade dos demnios mticos espiritualizou-se na forma pura das entidades ontolgicas. Com as Idias de Plato, finalmente, tambm os deuses patriarcais do Olimpo foram capturados pelo logos filosfico. O esclarecimento, porm, reconheceu as antigas potncias no legado platnico e aristotlico da metafsica e instaurou um processo contra a pretenso de verdade dos universais, acusando-a de superstio. Na autoridade dos conceitos universais ele cr enxergar ainda o medo pelos demnios, cujas imagens eram o meio, de que se serviam os homens, no ritual mgico, para tentar influenciar a natureza. Doravante, a matria deve ser dominada sem o recurso ilusrio a foras soberanas ou imanentes, sem a iluso de qualidades ocultas. O que no se submete ao critrio da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento. A partir do momento em que ele pode se desenvolver sem a interferncia da coero externa, nada mais pode segur-lo. Passa-se ento com as suas ideias acerca do direito humano o mesmo que se passou com os universais mais antigos. Cada resistncia espiritual que ele encontra serve apenas para aumentar sua fora. (5) Isso se deve ao facto de que o esclarecimento ainda se reconhece a si mesmo nos prprios mitos. Quaisquer que sejam os mitos de que possa se valer a resistncia, o simples facto de que eles se tornam argumentos por uma tal oposio significa que eles adoptam o princpio da racionalidade corrosiva da qual acusam o esclarecimento. O esclarecimento totalitrio. Para ele, o elemento bsico do mito foi sempre o antropomorfismo, a projeo do subjetivo na natureza. (6) O sobrenatural, o esprito e os demnios seriam as imagens especulares dos homens que se deixam amedrontar pelo natural. Todas as figuras mticas podem se reduzir, segundo o esclarecimento, ao mesmo denominador, a saber, ao sujeito. A resposta de dipo ao enigma da esfinge: " o homem!" a informao estereotipada invariavelmente repetida pelo esclarecimento, no importa se este se confronta com uma parte de um sentido objectivo, o esboo de uma ordem, o medo de potncias malficas ou a esperana da redeno. De antemo, o esclarecimento s reconhece como ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade. Seu ideal o sistema do qual se pode deduzir toda e cada coisa. No nisso que sua verso racionalista se distingue da verso empirista. Embora as diferentes escolas interpretassem de maneira diferente os axiomas, a estrutura da cincia unitria era sempre a mesma. O postulado baconiano da una scientia universalis (7) , apesar de todo o pluralismo das reas de pesquisa, to hostil ao que no pode ser vinculado, quanto a mathesis universalis de Leibniz descontinuidade. A multiplicidade das figuras se reduz posio e ordem, a histria ao facto, as coisas matria. Ainda de acordo com Bacon, entre os primeiros princpios e os enunciados observacionais deve subsistir uma ligao lgica unvoca, medida por graus de universalidade. De Maistre zomba de Bacon por cultivar "une idole d'chelle". (8) A lgica formal era a grande escola da unificao. Ela oferecia aos esclarecedores o esquema da calculabilidade do mundo. O equacionamento mitologizante das Ideias com os nmeros nos ltimos escritos de Plato exprime o anseio de toda desmitologizao: o nmero tomou-se o cnon do esclarecimento. As mesmas equaes dominam a justia burguesa e a troca mercantil. "No a regra: 'se adicionares o desigual ao igual obters algo de desigual' (Si inaequalibus aequalia addas, omnia erunt inaequalia) um princpio tanto da justia quanto da matemtica? E no existe uma verdadeira coincidncia entre a justia cumulativa e distributiva por um lado e as propores geomtricas e aritmticas por outro lado? (9) A sociedade burguesa est dominada pelo equivalente. Ela torna o heterogneo comparvel, reduzindo-o a grandezas abstractas. Para o esclarecimento, aquilo que no se reduz a nmeros e, por fim, ao uno, passa a ser iluso: o positivismo moderno remete-o para a literatura. "Unidade" continua a ser a divisa, de Parmnides a Russell. O que se continua a exigir insistentemente a destruio dos deuses e das qualidades. Mas os mitos que caem vtimas do esclarecimento j eram o produto do prprio esclarecimento. No clculo cientfico dos acontecimentos anula-se a conta que outrora o pensamento dera, nos mitos, dos acontecimentos. O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas tambm expor, fixar, explicar. Com o registo e a coleco dos mitos, essa tendncia reforou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui uma representao dos acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia. Esse elemento terico do ritual tornou-se autnomo nas primeiras epopeias dos povos. Os mitos, como os encontraram os poetas trgicos, j se encontram sob o signo daquela disciplina e poder que Bacon enaltece como o objectivo a se alcanar. O lugar dos espritos e demnios locais foi tomado pelo cu e sua hierarquia; o lugar das prticas de conjurao do feiticeiro e da tribo, pelo sacrifcio bem dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando. As deidades olmpicas no se identificam mais directamente aos elementos, mas passam a signific-los. Em Homero, Zeus preside o cu diurno, Apolo guia o sol, Hlio e o j tendem para o alegrico. Os deuses separam-se dos elementos materiais como sua suprema manifestao. De agora em diante, o ser se resolve no logos - que, com o progresso da filosofia, se reduz mnada, mero ponto de referncia - e na massa de todas as coisas e criaturas exteriores a ele. Uma nica distino, a distino entre a prpria existncia e a realidade, engolfa todas as outras distines. Destrudas as distines, o mundo submetido ao domnio dos homens. Nisso esto de acordo a histria judia da criao e a religio olmpica. " ...e dominaro os peixes do mar e as aves do cu e o gado e a terra inteira e todos os rpteis que se arrastam sobre a terra." (10) "Zeus, nosso pai, sois o senhor dos cus, e a vosso olhar no escapa nenhuma obra humana, sacrlegas ou justas, e nem mesmo a turbulncia dos animais, e estimais a rectido."(11) "E assim se passa que um expia logo, um outro mais tarde. E mesmo que algum escape ao castigo e o fado ameaador dos deuses no o alcance, este acaba sempre por chegar, e so pessoas inocentes - seus filhos ou uma outra gerao - que tero de expiar o crime." (12) Perante os deuses, s consegue se afirmar quem se submete sem restries. O despertar do sujeito tem por preo o reconhecimento do poder como o princpio de todas as relaes. Em face da unidade de tal razo, a separao de Deus e do homem reduz-se quela irrelevncia que, inabalvel, a razo assinalava desde a mais antiga crtica de Homero. Enquanto soberanos da natureza, o deus criador e o esprito ordenador se igualam. A imagem e semelhana divinas do homem consistem na soberania sobre a existncia, no olhar do senhor, no comando. O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objectividade. O preo que os homens pagam pelo aumento de seu poder a alienao daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipul-los. O homem de cincia conhece as coisas na medida em que pode faz-las. assim que seu em-si torna para-ele. Nessa metamorfose, a essncia das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominao. Essa identidade constitui a unidade da natureza. Assim como a unidade do sujeito, ela tampouco constitui um pressuposto da conjurao mgica. Os ritos do xam dirigiam-se ao vento, chuva, serpente l fora ou ao demnio dentro do doente, no a matrias ou exemplares. No era um e o mesmo esprito que se dedicava magia; ele mudava igual s mscaras do culto, que deviam se assemelhar aos mltiplos espritos. A magia a pura e simples inverdade, mas nela a dominao ainda no negada, ao se colocar , transformada na pura verdade, como a base do mundo que a ela sucumbiu. O feiticeiro torna-se semelhante aos demnios; para assust-los ou suaviz-los, ele assume um ar assustadio ou suave. Embora seu ofcio seja a repetio, diferentemente do civilizado - para quem os modestos campos de caa se transformam no cosmo unificado, no conjunto de todas as possibilidades de presas - ele ainda no se declarou imagem e semelhana do poder invisvel. s enquanto tal imagem e semelhana que o homem alcana a identidade do eu que no pode se perder na identificao com o outro, mas toma definitivamente posse de si como mscara impenetrvel. identidade do esprito e a seu correlato, unidade da natureza, que sucumbem as mltiplas qualidades. A natureza desqualificada torna-se a matria catica para uma simples classificao, e o eu todo-poderoso torna-se o mero ter, a identidade abstracta. Na magia existe uma substitutividade especfica. O que acontece lana do inimigo, sua cabeleira, a seu nome, afecta ao mesmo tempo a pessoa; em vez do deus, o animal sacrificial que massacrado. A substituio no sacrifcio assinala um novo passo em direco lgica discursiva. Embora a cerva oferecida em lugar da filha e o cordeiro em lugar do primognito ainda devessem ter qualidades prprias, eles j representavam o gnero e exibiam a indiferena do exemplar. Mas a sacralidade do hic et nunc, a singularidade histrica do escolhido, que recai sobre o elemento substituto, distingue-o radicalmente, torna-o introcvel na troca. a isso que a cincia d fim. Nela no h nenhuma substitutividade especfica: se ainda h animais sacrificiais, no h mais Deus. A substitutividade converte-se na fungibilidade universal. Um tomo desintegrado, no em substituio, mas como um espcime da matria, e a cobaia atravessa, no em substituio, mas desconhecida como um simples exemplar, a paixo do laboratrio. Porque na cincia funcional as distines so to fluidas que tudo desaparece na matria una, o objecto cientfico se petrifica, e o rgido ritual de outrora parece flexvel porquanto substitua a um tambm o outro. O mundo da magia ainda continha distines, cujos vestgios desapareceram at mesmo da forma lingustica. (13) As mltiplas afinidades entre os entes so recalcadas pela nica relao entre o sujeito doador de sentido e o objecto sem sentido, entre o significado racional e o portador ocasional do significado. No estgio mgico, sonho e imagem no eram tidos como meros sinais da coisa, mas como ligados a esta por semelhana ou pelo nome. A relao no a da inteno, mas do parentesco. Como a cincia, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mimese, no pelo distanciamento progressivo em relao ao objecto. Ela no se baseia de modo algum na "omnipotncia dos pensamentos", que o primitivo se atribuiria, segundo se diz, assim como o neurtico. (14) No pode haver uma "superestimao dos processos psquicos por oposio realidade", quando o pensamento e a realidade no esto radicalmente separados. A "confiana inabalvel na possibilidade de dominar o mundo", (15) que Freud anacronicamente atribui magia, s vem corresponder a uma dominao realista do mundo graas a uma cincia mais astuciosa do que a magia. Para substituir as prticas localizadas do curandeiro pela tcnica industrial universal foi preciso, primeiro, que os pensamentos se tornassem autnomos em face dos objectos, como ocorre no ego ajustado realidade. Enquanto totalidade desenvolvida linguisticamente, que desvaloriza, com sua pretenso de verdade, a crena mtica mais antiga: a religio popular, o mito patriarcal solar ele prprio esclarecimento, com o qual o esclarecimento filosfico pode-se medir no mesmo plano. A ele se paga, agora, na mesma moeda. A prpria mitologia desfecha o processo sem fim do esclarecimento, no qual toda concepo terica determinada acaba fatalmente por sucumbir a uma crtica arrasadora, crtica de ser apenas uma crena, at que os prprios conceitos de esprito, de verdade, e at mesmo de esclarecimento tenham-se convertido em magia animista. O princpio da necessidade fatal, que traz a desgraa aos heris mticos e que se desdobra a partir da sentena oracular como uma consequncia lgica, no apenas domina todo sistema racionalista da filosofia ocidental, onde se v depurado at atingir o rigor da lgica formal, mas impera at mesmo sobre a srie dos sistemas, que comea com a hierarquia dos deuses e, num permanente crepsculo dos dolos, transmite sempre o mesmo contedo: a ira pela falta de honestidade. Do mesmo modo que os mitos j levam a cabo o esclarecimento, assim tambm o esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que d, na mitologia. Todo contedo, ele o recebe dos mitos, para destru-los, e ao julg-los, ele cai na rbita do mito. Ele quer se furtar ao processo do destino e da retribuio, fazendo-o pago, ele prprio, uma retribuio. No mito, tudo o que acontece deve expiar uma pena pelo facto de ter acontecido. E assim continua no esclarecimento: o facto torna-se nulo, mal acabou de acontecer. A doutrina da igualdade entre a aco e a reaco afirmava o poder da repetio sobre o que existe muito tempo aps os homens terem renunciado iluso de que pela repetio poderiam se identificar com a realidade repetida e, assim, escapar a seu poder. Mas quanto mais se desvanece a iluso mgica, tanto mais inexoravelmente a repetio, sob o ttulo da submisso lei, prende o homem naquele ciclo que, objectualizado sob a forma da lei natural, parecia garanti-lo como um sujeito livre. O princpio da imanncia, a explicao de todo acontecimento como repetio, que o esclarecimento defende contra a imaginao mtica, o princpio do prprio mito. A insossa sabedoria para a qual no h nada de novo sob o sol, porque todas as cartas do jogo sem-sentido j teriam sido jogadas, porque todos grandes pensamentos j teriam sido pensados, porque as descobertas possveis poderiam ser projectadas de antemo, e os homens estariam forados a assegurar a autoconservao pela adaptao - essa insossa sabedoria reproduz to-somente a sabedoria fantstica que ela rejeita: a ratificao do destino que, pela retribuio, reproduz sem cessar o que j era. O que seria diferente igualado. Esse o veredicto que estabelece criticamente os limites da experincia possvel. O preo que se paga pela identidade de tudo com tudo o facto de que nada, ao mesmo tempo, pode ser idntico consigo mesmo. O esclarecimento corri a injustia da antiga desigualdade, o senhorio no mediatizado; perpetua-o, porm, ao mesmo tempo, na mediao universal, na relao de cada ente com cada ente. Ele faz aquilo que Kirkegaard celebra em sua tica protestante e que se encontra no ciclo pico de Hracles como uma das imagens primordiais do poder mtico: ele elimina o incomensurvel. No apenas so as qualidades dissolvidas no pensamento, mas os homens so forados real conformidade. O preo dessa vantagem, que a indiferena do mercado pela origem das pessoas que nele vm trocar suas mercadorias, pago por elas mesmas ao deixarem que suas possibilidades inatas sejam modeladas pela produo das mercadorias que se podem comprar no mercado. Os homens receberam o seu eu como algo pertencente a cada um, diferente de todos os outros, para que ele possa com tanto maior segurana se tornar igual. Mas, como isso nunca se realizou inteiramente, o esclarecimento sempre simpatizou, mesmo durante o perodo do liberalismo, com a coero social. A unidade da colectividade manipulada consiste na negao de cada indivduo; seria digna de escrnio a sociedade que conseguisse transformar os homens em indivduos. A horda, cujo nome sem dvida est presente na organizao da Juventude Hitleriana, no nenhuma recada na antiga barbrie, mas o triunfo da igualdade repressiva, a realizao pelos iguais da igualdade do direito injustia. O mito de fancaria dos fascistas evidencia-se como o autntico mito da antiguidade, na medida em que o mito autntico conseguiu enxergar a retribuio, enquanto o falso cobrava-a cegamente de suas vtimas. Toda tentativa de romper as imposies da natureza rompendo a natureza, resulta numa submisso ainda mais profunda s imposies da natureza. Tal foi o rumo tomado pela civilizao europeia. A abstraco, que o instrumento do esclarecimento, comporta-se com seus objectos do mesmo modo que o destino, cujo conceito por ele eliminado, ou seja, ela se comporta como um processo de liquidao. Sob o domnio nivelador do abstracto, que transforma todas as coisas na natureza em algo de reproduzvel, e da indstria, para a qual esse domnio do abstracto prepara o reproduzvel, os prprios liberados acabaram por se transformar naquele "destacamento" que Hegel (16) designou como o resultado do esclarecimento. A distncia do sujeito com relao ao objecto, que o pressuposto da abstraco, est fundada na distncia em relao coisa, que o senhor conquista atravs do dominado. Os cantos de Homero e os hinos do Rigveda datam da poca da dominao territorial e dos lugares fortificados, quando uma belicosa nao de senhores se estabeleceu sobre a massa dos autctones vencidos. (17) O deus supremo entre os deuses surgiu com esse mundo civil, onde o rei, como chefe da nobreza armada, mantm os subjugados presos terra, enquanto os mdicos, adivinhos, artesos e comerciantes se ocupam do intercmbio social. Com o fim do nomadismo, a ordem social foi instaurada sobre a base da propriedade fixa. Dominao e trabalho separam-se. Um proprietrio como Ulisses "dirige a distncia um pessoal numeroso, meticulosamente organizado, composto de servidores e pastores de bois, de ovelhas e de porcos. Ao anoitecer, depois de ver de seu palcio a terra iluminada por mil fogueiras, pode entregar-se sossegado ao sono: ele sabe que seus bravos servidores vigiam, para afastar os animais selvagens e expulsar os ladres dos coutos que esto encarregados de guardar". (18) A universalidade dos pensamentos, como a desenvolve a lgica discursiva, a dominao na esfera do conceito, eleva-se fundamentada na dominao do real. a substituio da herana mgica, isto , das antigas representaes difusas, pela unidade conceptual que exprime a nova forma de vida, organizada com base no comando e determinada pelos homens livres. O eu, que aprendeu a ordem e a subordinao com a sujeio do mundo, no demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador, e essa verdade no pode subsistir sem as rgidas diferenciaes daquele pensamento ordenador. Juntamente com a magia mimtica, ele tornou tabu o conhecimento que atinge efectivamente o objecto. Seu dio volta-se contra a imagem do mundo pr-histrico superado e sua felicidade imaginria. Os deuses ctnicos dos habitantes primitivos so banidos para o inferno em que se converte a terra, sob a religio do sol e da luz de Indra e Zeus. O cu e o inferno, porm, esto ligados um ao outro. Assim como, em cultos que no se excluam, o nome de Zeus era dado tanto a um deus subterrneo quanto a um deus da luz, (19) e os deuses olmpicos cultivavam toda espcie de relaes com os ctnicos, assim tambm as potncias do bem e do mal, a graa e a desgraa, no eram claramente separadas. Elas estavam ligadas como o vir-a-ser e o parecer, a vida e a morte, o vero e o inverno. No mundo luminoso da religio grega perdura a obscura indiviso do princpio religioso venerado sob o nome de "mana" nos mais antigos estgios que se conhecem da humanidade. Primrio, indiferenciado, ele tudo o que desconhecido, estranho: aquilo que transcende o mbito da experincia, aquilo que nas coisas mais do que sua realidade j conhecida. O que o primitivo a sente como algo de sobrenatural no nenhuma substncia espiritual oposta substncia material, mas o emaranhado da natureza em face do elemento individual. O grito de terror com que vivido o inslito torna-se seu nome. Ele fixa a transcendncia do desconhecido em face do conhecido e, assim, o horror como sacralidade. A duplicao da natureza como aparncia e essncia, aco e fora, que torna possvel tanto o mito quanto a cincia, provm do medo do homem, cuja expresso se converte na explicao. No a alma que transposta para a natureza, como o psicologismo faz crer. O mana, o esprito que move, no nenhuma projeco, mas o eco da real supremacia da natureza nas almas fracas dos selvagens. A separao do animado e do inanimado, a ocupao de lugares determinados por demnios e divindades, tem origem nesse pr-animismo. Nele j est virtualmente contida at mesmo a separao do sujeito e do objecto. Quando uma rvore considerada no mais simplesmente como rvore, mas como testemunho de uma outra coisa, como sede do mana, a linguagem exprime a contradio de que uma coisa seria ao mesmo tempo ela mesma e outra coisa diferente dela, idntica e no idntica. (20) Atravs da divindade, a linguagem passa da tautologia linguagem. O conceito, que se costuma definir como a unidade caracterstica do que est nele subsumido, j era desde o incio o produto do pensamento dialctico, no qual cada coisa s o que ela tornando-se aquilo que ela no . Eis a a forma primitiva da determinao objectivadora na qual se separavam o conceito e a coisa, determinao essa que j est amplamente desenvolvida na epopeia homrica e que se acelera na cincia positiva moderna. Mas essa dialctica permanece impotente na medida em que se desenvolve a partir do grito de terror que a prpria duplicao, a tautologia do terror. Os deuses no podem livrar os homens do medo, pois so as vozes petrificadas do medo que eles trazem como nome. Do medo o homem presume estar livre quando no h nada mais de desconhecido. isso que determina o trajecto da desmitologizao e do esclarecimento, que identifica o animado ao inanimado, assim como o mito identifica o inanimado ao animado. O esclarecimento a radicalizao da angstia mtica. A pura imanncia do positivismo, seu derradeiro produto, nada mais do que um tabu, por assim dizer, universal. Nada mais pode ficar de fora, porque a simples ideia do "fora" a verdadeira fonte da angstia... Se o primitivo apaziguava, s vezes, seu desejo de vingar o assassinato de um dos seus acolhendo o assassino na prpria famlia, (21) isso significava, tanto quanto a vingana, a infuso do sangue alheio no prprio sangue, a restaurao da imanncia. O dualismo mtico no ultrapassa o mbito da existncia. O mundo totalmente dominado pelo mana, bem como o mundo do mito indiano e grego, so, ao mesmo tempo, sem sada e eternamente iguais. Todo nascimento se paga com a morte, toda ventura com a desventura. Homens e deuses podem tentar, no prazo que lhes cabe, distribuir a sorte de cada um segundo critrios diferentes do curso cego do destino; ao fim e ao cabo, a realidade triunfa sobre eles. At mesmo sua justia, arrancada que foi fatalidade, exibe ainda os seus traos. Ela corresponde ao olhar que os homens, tanto os primitivos quanto os gregos e os brbaros, lanam sobre o mundo a partir de uma sociedade da opresso e da misria. Por isso, tanto a justia mtica como a esclarecida consideram a culpa e a expiao, a ventura e a desventura como os dois lados de uma nica equao. A justia se absorve no direito. O xam esconjura o perigo com a imagem do perigo. A igualdade o seu instrumento. ela que, na civilizao, regula o castigo e o mrito. As representaes mticas tambm podem se reduzir integralmente a relaes naturais. Assim como a constelao dos Gmeos remete, como todos os outros smbolos da dualidade, ao ciclo inescapvel da natureza; assim como este mesmo ciclo tem, no smbolo do ovo, do qual provm os demais, seu smbolo mais remoto; assim tambm a balana nas mos de Zeus, que simboliza a justia de todo o mundo patriarcal, remete mera natureza. A passagem do caos para a civilizao, onde as condies naturais no mais exercem seu poder de maneira imediata, mas atravs da conscincia dos homens, nada modificou no princpio da igualdade. Alis, os homens expiaram essa passagem justamente com a adorao daquilo a que estavam outrora submetidos como as demais criaturas. Antes, os fetiches estavam sob a lei da igualdade. Agora, a prpria igualdade torna-se fetiche. A venda sobre os olhos da Justia no significa apenas que no se deve interferir no direito, mas que ele no nasceu da liberdade. A doutrina dos sacerdotes era simblica no sentido de que nela coincidiam o signo e a imagem. Como atestam os hierglifos, a palavra exerceu originariamente tambm a funo da imagem. Esta funo passou para os mitos. Os mitos, assim como os ritos mgicos, tm em vista a natureza que se repete. Ela o mago do simblico: um ser ou um processo representado como eterno porque deve voltar sempre a ocorrer na efectuao do smbolo. Inexauribilidade, renovao infinita, permanncia do significado no so apenas atributos de todos os smbolos, mas seu verdadeiro contedo. As representaes da criao nas quais o mundo surge da Me primordial, da Vaca ou do Ovo, so, ao contrrio do Gnesis judeu, simblicas. A zombaria com que os antigos ridicularizaram os deuses demasiadamente humanos deixou inclume seu mago. A individualidade no esgota a essncia dos deuses. Eles tinham ainda algo do mana dentro de si; eles personificavam a natureza como um poder universal. Com seus traos pr-animistas, eles se destacam no esclarecimento. Sob o vu pudico da chronique scandaleuse olmpica j se havia formado a doutrina da mistura, da presso e do choque dos elementos, que logo se estabeleceu como cincia e transformou os mitos em obras da fantasia. Com a ntida separao da cincia e da poesia, a diviso de trabalho j efectuada com sua ajuda estende-se linguagem. enquanto signo que a palavra chega cincia. Enquanto som, enquanto imagem, enquanto palavra propriamente dita, ela se v dividida entre as diferentes artes, sem jamais deixar-se reconstituir atravs de sua adio, atravs da sinestesia ou da arte total. Enquanto signo, a linguagem deve resignar-se ao clculo; para conhecer a natureza, deve renunciar pretenso de ser semelhante a ela. Enquanto imagem, deve resignar-se cpia; para ser totalmente natureza, deve renunciar pretenso de conhec-la. Com o progresso do esclarecimento, s as obras de arte autnticas conseguiram escapar mera imitao daquilo que, de um modo qualquer, j . A anttese corrente da arte e da cincia, que as separa como domnios culturais, a fim de torn-las administrveis conjuntamente como domnios culturais, faz com que elas acabem por se confundirem como opostos exactos graas s suas prprias tendncias. A cincia em sua interpretao neopositivista torna-se esteticismo, sistema de signos desligados, destitudos de toda inteno transcendendo o sistema: ela se torna aquele jogo que os matemticos h muito orgulhosamente declararam assunto deles. A arte da copiabilidade integral, porm, entregou-se at mesmo em suas tcnicas cincia positivista. De facto, ela retorna mais uma vez ao mundo, na duplicao ideolgica, na reproduo dcil. A separao do signo e da imagem inevitvel. Contudo, se ela , uma vez mais, hipostasiada numa atitude ao mesmo tempo inconsciente e autocomplacente, ento cada um dos dois princpios isolados tende para a destruio da verdade. O abismo que se abriu com a separao, a filosofia enxergou-o na relao entre a intuio e o conceito e tentou sempre em vo fech-lo de novo: alis, por essa tentativa que ela definida. Na maioria das vezes, porm, ela se colocou do lado do qual recebia o nome. Plato baniu a poesia com o mesmo gesto com que o positivismo baniu a doutrina das Ideias. Com sua arte celebrada, Homero, segundo se diz, no levou a cabo nem reformas pblicas nem privadas, no ganhou nenhuma guerra nem fez nenhuma inveno. No sabemos, diz-se, da existncia de numerosos seguidores que o tenham honrado ou amado. A arte teria, primeiro, que mostrar a sua utilidade. (22) A imitao est proscrita tanto em Homero como entre os judeus. A razo e a religio declaram antema o princpio da magia. Mesmo na distncia renunciadora da vida, enquanto arte, ele permanece desonroso; as pessoas que o praticam tornam-se vagabundos, nmadas sobreviventes que no encontram ptria entre os que se tornaram sedentrios. A natureza no deve mais ser influenciada pela assimilao, mas deve ser dominada pelo trabalho. A obra de arte ainda tem em comum com a magia o facto de estabelecer um domnio prprio, fechado em si mesmo e arrebatado ao contexto da vida profana. Neste domnio imperam leis particulares. Assim como a primeira coisa que o feiticeiro fazia em sua cerimonia era delimitar em face do mundo ambiente o lugar onde as foras sagradas deviam actuar, assim tambm, com cada obra de arte, seu crculo fechado se destaca do real. exactamente a renncia a agir, pela qual a arte se separa da simpatia mgica, que fixa ainda mais profundamente a herana mgica. Esta renncia coloca a imagem pura em oposio realidade mesma, cujos elementos ela supera retendo-os (aufhebt) dentro de si. Pertence ao sentido da obra de arte, da aparncia esttica, ser aquilo em que se converteu, na magia do primitivo, o novo e terrvel: a manifestao do todo no particular . Na obra de arte volta sempre a realizar-se a duplicao pela qual a coisa se manifestava como algo de espiritual, como exteriorizao do mana. isto que constitui sua aura. Enquanto expresso da totalidade, a arte reclama a dignidade do absoluto. Isso, s vezes, levou a filosofia a atribuir-lhe prioridade em face do conhecimento conceptual. Segundo Schelling, a arte entra em aco quando o saber desampara os homens. Para ele, a arte "o modelo da cincia, e aonde est a arte que a cincia deve ainda chegar". (23) Em sua doutrina, a separao da imagem e do signo "totalmente suprimida por cada representao artstica". (24) S muito raramente o mundo burgus esteve aberto a semelhante confiana na arte. Quando ele limitava o saber, isso acontecia via de regra, no para abrir espao para a arte, mas para a f. atravs da f que a religiosidade militante dos novos tempos - Torquemada, Lutero, Maom - pretendia reconciliar o esprito e a vida. Mas a f um conceito privativo: ela se anula com f se no ressalta continuamente sua oposio ao saber ou sua concordncia com ele. Permanecendo dependente da limitao do saber, ela prpria fica limitada. A tentativa da f, empreendida no protestantismo, de encontrar, como outrora, o princpio da verdade que a transcende, e sem a qual no pode existir directamente, na prpria palavra e de restituir a esta a fora simblica - essa tentativa teve como preo a obedincia palavra, alis a uma palavra que no era a sagrada. Permanecendo inevitavelmente presa ao saber como amiga ou inimiga, a f perpetua a separao na luta para super-la: seu fanatismo a marca de sua inverdade, a confisso objectiva de que quem apenas cr por isso mesmo no mais cr. A m conscincia sua segunda natureza. Na secreta conscincia da deficincia que lhe necessariamente inerente, da contradio imanente nela e que consiste em fazer da reconciliao sua vocao, est a razo por que toda a honestidade dos fiis sempre foi irascvel e perigosa. No foi como exagero mas como realizao do prprio princpio da f que se cometeram os horrores do fogo e da espada, da contra-reforma e da reforma. A f no cessa de mostrar que do mesmo jaez que a histria universal, sobre a qual gostaria de imperar; nos tempos modernos, ela at mesmo se converte em seu instrumento preferido, sua astcia particular. No apenas o esclarecimento do sculo dezoito que irresistvel, como atestou Hegel, mas ( e ningum sabia melhor do que ele) o movimento do prprio pensamento. Tanto o mais superficial quanto o mais profundo discernimento j contm o discernimento de sua distncia com relao verdade que faz do apologeta um mentiroso. O paradoxo da f acaba por degenerar no embuste, no mito do sculo vinte, enquanto sua irracionalidade degenera na cerimnia organizada racionalmente sob o controle dos integralmente esclarecidos e que, no entanto, dirigem a sociedade em direco barbrie. Quando a linguagem penetra na histria, seus mestres j so sacerdotes e feiticeiros. Quem viola os smbolos fica sujeito, em nome das potncias supraterrenas, s potncias terrenas, cujos representantes so esses rgos comissionados da sociedade. O que precedeu a isso est envolto em sombras. Onde quer que a etnologia o encontre, o sentimento de horror de que se origina o mana j tinha recebido a sano pelo menos dos mais velhos da tribo. O mana no-idntico e difuso tornado consistente pelos homens e materializado fora. Logo os feiticeiros povoam todo lugar de emanaes e correlacionam a multiplicidade dos ritos sagrados dos domnios sagrados. Eles expandem o mundo dos espritos e suas particularidades e, com ele, seu saber corporativo e seu poder. A essncia sagrada transfere-se para os feiticeiros que lidam com ela. Nas primeiras fases do nomadismo, os membros da tribo tm ainda uma parte autnoma nas aces destinadas a influenciar o curso da natureza. Os homens rastreiam a caa, as mulheres cuidam do trabalho que pode ser feito sem um comando rgido. Quanta violncia foi necessria antes que as pessoas se acostumassem a uma coordenao to simples como essa impossvel determinar. Nela, o mundo j est dividido numa esfera do poder e numa esfera profana. Nela, o curso da natureza enquanto eflvio do mana j est erigido em norma, que exige a submisso. Mas, se o selvagem nmada, apesar de toda a submisso, ainda participava da magia que a limitava e se disfarava no animal caado para surpreend-lo, em perodos posteriores o comrcio com os espritos e a submisso foram divididos pelas diferentes classes da humanidade: o poder est de um lado, a obedincia do outro. Os processos naturais recorrentes e eternamente iguais so inculcados como ritmo do trabalho nos homens submetidos, seja por tribos estrangeiras, seja pelas prprias cliques de governantes, no compasso da maa e do porrete que ecoa em todo tambor brbaro, em todo ritual montono. Os smbolos assumem a expresso do fetiche. A repetio da natureza, que o seu significado, acaba sempre por se mostrar como a permanncia, por eles representada, da coero social. O sentimento de horror materializado numa imagem slida torna-se o sinal da dominao consolidada dos privilegiados. Mas isso o que os conceitos universais continuam a ser mesmo quando se desfizeram de todo aspecto figurativo. A forma dedutiva da cincia reflecte ainda a hierarquia e a coero. Assim como as primeiras categorias representavam a tribo organizada e seu poder sobre os indivduos, assim tambm a ordem lgica em seu conjunto - a dependncia, o encadeamento, a extenso e unio dos conceitos - baseia-se nas relaes correspondentes da realidade social, da diviso do trabalho. (25) S que, verdade, esse carcter social das formas do pensamento no , como ensina Durkheim, expresso da solidariedade social, mas testemunho da unidade impenetrvel da sociedade e da dominao. A dominao confere maior consistncia e fora ao todo social no qual se estabelece. A diviso do trabalho, em que culmina o processo social da dominao, serve autoconservao do todo dominado. Dessa maneira, porm, o todo enquanto todo, a activao da razo a ele imanente, converte-se necessariamente na execuo do particular. A dominao defronta o indivduo como o universal, como a razo na realidade efectiva. O poder de todos os membros da sociedade, que enquanto tais no tm outra sada, acaba sempre, pela diviso do trabalho a eles imposta, por se agregar no sentido justamente da realizao do todo, cuja racionalidade assim mais uma vez multiplicada. Aquilo que acontece a todos por obra e graa de poucos realiza-se sempre como a subjugao dos indivduos por muitos: a opresso da sociedade tem sempre o carcter da opresso por uma colectividade. essa unidade de colectividade e dominao e no a universalidade social imediata, a solidariedade, que se sedimenta nas formas do pensamento. Os conceitos filosficos nos quais Plato e Aristteles expem o mundo, exigiram, com sua pretenso de validade universal, as relaes por eles fundamentadas como a verdadeira e efectiva realidade. Esses conceitos provm, como diz Vico, (26) da praa do mercado de Atenas. Eles reflectiam com a mesma pureza das leis da fsica a igualdade dos cidados plenos e a inferioridade das mulheres, das crianas e dos escravos. A prpria linguagem conferia ao que era dito, isto , s relaes da dominao, aquela universalidade que ela tinha assumido como veculo de uma sociedade civil. A nfase metafsica, a sano atravs de ideias e normas, nada mais era seno a hipostasiao da dureza e da exclusividade que os conceitos tinham que assumir onde quer que a linguagem reunisse a comunidade dos dominantes para o exerccio do comando. Na medida em que constituam semelhante reforo do poder social da linguagem, as ideias se tornavam tanto mais suprfluas quanto mais crescia esse poder, e a linguagem da cincia preparou-lhes o fim. No era justificao consciente que se ligava a sugesto que ainda conserva algo do terror do fetiche. A unidade de colectividade e dominao mostra-se antes de tudo na universalidade que o mau contedo necessariamente assume na linguagem, tanto metafsica quanto cientfica. A apologia metafsica deixava entrever a injustia da ordem existente pelo menos atravs da incongruncia do conceito e da realidade. Na imparcialidade da linguagem cientfica, o impotente perdeu inteiramente a fora para se exprimir, e s o existente encontra a seu signo neutro. Tal neutralidade mais metafsica do que a metafsica. O esclarecimento acabou por consumir no apenas os smbolos mas tambm seus sucessores, os conceitos universais, e da metafsica no deixou nada seno o medo abstracto frente colectividade da qual surgira. Diante do esclarecimento, os conceitos esto na mesma situao que os aposentados diante dos trusts industriais: ningum pode sentir-se seguro. Se o positivismo lgico ainda deu uma chance probabilidade, o positivismo etnolgico equipara-a j essncia. "Nos ides vagues de chance et de quintessence sont de ples survivances de cette notion beaucoup plus riche", (27) a saber da substncia mgica. O esclarecimento nominalista detm-se diante do nomen, o conceito sem extenso, punctual, o nome prprio. A questo se os nomes prprios, como alguns afirmaram, (28) eram originariamente, ao mesmo tempo, nomes genricos, no se pode mais decidir com certeza; contudo os primeiros ainda no partilharam o destino dos ltimos. A substncia do ego negada por Hume e Mach no a mesma que o nome. Na religio judaica, onde a ideia do patriarcado culmina na destruio do mito, o liame entre o nome e o ser permanece reconhecido atravs da proibio de pronunciar o nome de Deus. O mundo desencantado do judasmo reconcilia a magia atravs de sua negao na ideia de Deus. A religio judaica no tolera nenhuma palavra que proporcione consolo ao desespero de qualquer mortal. Ela associa a esperana unicamente proibio de invocar o falso como Deus, o finito como o infinito, a mentira como verdade. O penhor da salvao consiste na recusa de toda f que se substitua a ela, o conhecimento na denncia da iluso. A negao, todavia, no abstracta. A contestao indiferenciada de tudo o que positivo, a frmula estereotipada da nulidade, como a emprega o budismo, passa por cima da proibio de dar nomes ao absoluto, do mesmo modo que seu contrrio, o pantesmo, ou sua caricatura, o cepticismo burgus. As explicaes do mundo como o nada ou o todo so mitologias, e os caminhos garantidos para a redeno, prticas mgicas sublimadas. A autocomplacncia do saber de antemo e a transfigurao da negatividade em redeno so formas falsas da resistncia impostura. O direito da imagem salvo na execuo fiel de sua proibio. Semelhante execuo, "negao determinada", (29) no est imunizada pela soberania do conceito abstracto contra a intuio sedutora, como o est o cepticismo para o qual so nulos tanto o falso quanto o verdadeiro. A negao determinada rejeita as representaes imperfeitas do absoluto, os dolos, mas no como o rigorismo, opondo-lhes a Ideia que elas no podem satisfazer. A dialctica revela, ao contrrio, toda imagem como uma forma de escrita. Ela ensina a ler em seus traos a confisso de sua falsidade, confisso essa que a priva de seu poder e o transfere para a verdade. Desse modo, a linguagem torna-se mais que um simples sistema de signos. Com o conceito da negao determinada, Hegel destacou um elemento que distingue o esclarecimento da desagregao positivista qual ele o atribui. verdade, porm, que ele acabou por fazer um absoluto do resultado sabido do processo total da negao: a totalidade no sistema e na histria, e que, ao fazer isso, infringiu a proibio e sucumbiu ele prprio mitologia. Isso no ocorreu apenas sua filosofia enquanto apoteose do pensamento em progresso, mas ao prprio esclarecimento, entendido como a sobriedade pela qual este acredita distinguir-se de Hegel e da metafsica em geral. Pois o esclarecimento totalitrio como qualquer outro sistema. Sua inverdade no est naquilo que seus inimigos romnticos sempre lhe censuraram: o mtodo analtico, o retorno aos elementos, a decomposio pela reflexo, mas sim no facto de que para ele o processo est decidido de antemo. Quando, no procedimento matemtico, o desconhecido se torna a incgnita de uma equao, ele se v caracterizado por isso mesmo como algo de h muito conhecido, antes mesmo que se introduza qualquer valor. A natureza , antes e depois da teoria quntica, o que deve ser apreendido matematicamente. At mesmo aquilo que no se deixa compreender, a indissolubilidade e a irracionalidade, cercado por teoremas matemticos. Atravs da identificao antecipatria do mundo totalmente matematizado com a verdade, o esclarecimento acredita estar a salvo do retorno do mtico. Ele confunde o pensamento e a matemtica. Desse modo, esta se v por assim dizer solta, transformada na instncia absoluta. "Um mundo infinito, no caso um mundo de idealidades, concebido como um mundo cujos objectos no se tornam acessveis ao nosso conhecimento um por um, de maneira imperfeita e como que por acaso; mas, ao contrrio, um mtodo racional, dotado de uma unidade sistemtica, acaba por alcanar numa progresso infinita - todo o objecto tal como ele em si mesmo. Na matematizao galileana da natureza, a natureza ela prpria agora idealizada sob a gide da nova matemtica, ou, para exprimi-lo de uma maneira moderna, ela se torna ela prpria uma multiplicidade matemtica". (30) O pensar reifica-se num processo automtico e autnomo, emulando a mquina que ele prprio produz para que ela possa finalmente substitu-lo. O esclarecimento (31) ps de lado a exigncia clssica de pensar o pensamento - a filosofia de Fichte o seu desdobramento radical - porque ela desviaria do imperativo de comandar a prxis, que o prprio Fichte no entanto queria obedecer. O procedimento matemtico tornou-se, por assim dizer, o ritual do pensamento. Apesar da autolimitao axiomtica, ele se instaura como necessrio e objectivo: ele transforma o pensamento em coisa, em instrumento, como ele prprio o denomina. Mas, com essa mimese, na qual o pensamento se iguala ao mundo, o factual tornou-se agora a tal ponto a nica referncia, que at mesmo a negao de Deus sucumbe ao juzo sobre a metafsica. Para o positivismo que assumiu a magistratura da razo esclarecida, extravagar em mundos inteligveis no apenas proibido, mas tido como um palavreado sem sentido. Ele no precisa - para sorte sua - ser ateu, porque o pensamento coisificado no pode sequer colocar a questo. De bom grado o censor positivista deixa passar o culto oficial, do mesmo modo que a arte, como um domnio particular da actividade social nada tendo a ver com o conhecimento; mas a negao que se apresenta ela prpria com a pretenso de ser conhecimento, jamais. Para a mentalidade cientfica, o desinteresse do pensamento pela tarefa de preparar o factual, a transgresso da esfera da realidade desvario e autodestruio, do mesmo modo que, para o feiticeiro do mundo primitivo, a transgresso do crculo mgico traado para a invocao, e nos dois casos tomam-se providncias para que a infraco do tabu acabe realmente em desgraa para o sacrlego. A dominao da natureza traa o crculo dentro do qual a Crtica da Razo Pura baniu o pensamento. Kant combinou a doutrina da incessante e laboriosa progresso do pensamento ao infinito com a insistncia em sua insuficincia e eterna limitao. Sua lio um orculo. No h nenhum ser no mundo que a cincia no possa penetrar, mas o que pode ser penetrado pela cincia no o ser. o novo, segundo Kant, que o juzo filosfico visa e, no entanto, ele no conhece nada de novo, porque repete to-somente o que a razo j colocou no objecto. Mas este pensamento, resguardado dos sonhos de um visionrio nas diversas disciplinas da cincia, recebe a conta: a dominao universal da natureza volta-se contra o prprio sujeito pensante; nada sobra dele seno justamente esse eu penso eternamente igual que tem que poder acompanhar todas as minhas representaes. Sujeito e objecto tornam-se ambos nulos. O eu abstracto, o ttulo que d o direito a protocolar e sistematizar, no tem diante de si outra coisa seno o material abstracto, que nenhuma outra propriedade possui alm da de ser um substrato para semelhante posse. A equao do esprito e do mundo acaba por se resolver, mas apenas com a mtua reduo de seus dois lados. Na reduo do pensamento a uma aparelhagem matemtica est implcita a ratificao do mundo como sua prpria medida. O que aparece como triunfo da racionalidade objectiva, a submisso de todo ente ao formalismo lgico, tem por preo a subordinao obediente da razo ao imediatamente dado. Compreender o dado enquanto tal, descobrir nos dados no apenas suas relaes espcio-temporais abstractas, com as quais se possa ento agarr-las, mas ao contrrio pens-las como a superfcie, como aspectos mediatizados do conceito, que s se realizam no desdobramento de seu sentido social, histrico, humano - toda a pretenso do conhecimento abandonada. Ela no consiste no mero perceber, classificar e calcular, mas precisamente na negao determinante de cada dado imediato. Ora, ao invs disso, o formalismo matemtico, cujo instrumento o nmero, a figura mais abstracta do imediato, mantm o pensamento firmemente preso mera imediatidade. O factual tem a ltima palavra, o conhecimento restringe-se sua repetio, o pensamento transforma-se na mera tautologia. Quanto mais a maquinaria do pensamento subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa reproduo. Desse modo, o esclarecimento regride mitologia da qual jamais soube escapar. Pois, em suas figuras, a mitologia reflectira a essncia da ordem existente - o processo cclico, o destino, a dominao do mundo - como a verdade e abdicara da esperana. Na pregnncia da imagem mtica, bem como na clareza da frmula cientfica, a eternidade do factual se v confirmada e a mera existncia expressa como o sentido que ela obstrui. O mundo como um gigantesco juzo analtico, o nico sonho que restou de todos os sonhos da cincia, da mesma espcie que o mito csmico que associava a mudana da primavera e do outono ao rapto da Persfone. A singularidade do evento mtico, que deve legitimar o evento factual, iluso. Originariamente, o rapto da deusa identificava-se imediatamente morte da natureza. Ele se repetia em cada outono, e mesmo a repetio no era uma sequncia de ocorrncias separadas, mas a mesma cada vez. Com o enrijecimento da conscincia do tempo, o evento foi fixado como tendo ocorrido uma nica vez no passado, e tentou-se apaziguar ritualmente o medo da morte em cada novo ciclo das estaes com o recurso a algo ocorrido h muito tempo. Mas a separao impotente. Em virtude da colocao dessa ocorrncia nica do passado, o ciclo assume o carcter do inevitvel, e o medo irradia-se desse acontecimento antigo para todos os demais como sua mera repetio. A subsuno do factual, seja sob a pr-histria lendria, mtica, seja sob o formalismo matemtico, o relacionamento simblico do presente ao evento mtico no rito ou categoria abstracta na cincia, faz com que o novo aparea como algo predeterminado, que assim na verdade o antigo. Quem fica privado da esperana no a existncia, mas o saber que no smbolo figurativo ou matemtico se apropria da existncia enquanto esquema e a perpetua como tal. No mundo esclarecido, a mitologia invadiu a esfera profana. A existncia expurgada dos demnios e de seus descendentes conceituais assume em sua pura naturalidade o carcter numinoso que o mundo de outrora atribua aos demnios. Sob o ttulo dos factos brutos, a injustia social da qual esses provm sacramentada hoje em dia como algo eternamente intangvel e isso com a mesma segurana com que o curandeiro se fazia sacrossanto sob a proteco de seus deuses. O preo da dominao no meramente a alienao dos homens com relao aos objectos dominados; com a coisificao do esprito, as prprias relaes dos homens foram enfeitiadas, inclusive as relaes de cada indivduo consigo mesmo. Ele se reduz a um ponto nodal das reaces e funes convencionais que se esperam dele como algo objectivo. O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas. O aparelho econmico, antes mesmo do planejamento total, j prov espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento dos homens. A partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercmbio, perderam todas suas qualidades econmicas salvo seu carcter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos. As inmeras agncias da produo em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivduo os comportamentos normalizados como os nicos naturais, decentes, racionais. De agora em diante, ele s se determina como coisa, como elemento estatstico, como success or failure. (32) Seu padro a autoconservao, a assemelhao bem ou mal sucedida objectividade da sua funo e aos modelos colocados para ela. Tudo o mais, Ideia e criminalidade, experimenta a fora da colectividade que tudo vigia, da sala de aula ao sindicato. Contudo, mesmo essa colectividade ameaadora pertence to-somente superfcie ilusria, sob a qual se abrigam as potncias que a manipulam como algo de violento. A brutalidade com que enquadra o indivduo to pouco representativa da verdadeira qualidade dos homens quanto o valor o dos objectos de uso. A figura demoniacamente distorcida, que as coisas e os homens assumiram sob a luz do conhecimento isento de preconceitos, remete de volta dominao, ao princpio que j operava a especificao do mana nos espritos e divindades e fascinava o olhar nas fantasmagorias dos feiticeiros e curandeiros. A fatalidade com que os tempos pr-histricos sancionavam a morte ininteligvel passa a caracterizar a realidade integralmente inteligvel. O pnico meridiano com que os homens de repente se deram conta da natureza como totalidade encontrou sua correspondncia no pnico que hoje est pronto a irromper a qualquer instante: os homens aguardam que este mundo sem sada seja incendiado por uma totalidade que eles prprios constituem e sobre a qual nada podem. O horror mtico do esclarecimento tem por objecto o mito. Ele no o descobre meramente em conceitos e palavras no aclarados, como presume a crtica da linguagem, mas em toda manifestao humana que no se situe no quadro teleolgico da autoconservao. A frase de Spinoza: "Conatus sese conservandi primum et unicum virtutis est fundamentum" (33) contm a verdadeira mxima de toda a civilizao ocidental, onde vm se aquietar as diferenas religiosas e filosficas da burguesia. O eu que, aps o extermnio metdico de todos os vestgios naturais como algo de mitolgico, no queria mais ser nem corpo, nem sangue, nem alma e nem mesmo um eu natural, constituiu, sublimado num sujeito transcendental ou lgico, o ponto de referncia da razo, a instncia legisladora da aco. Segundo o juzo do esclarecimento, bem como o do protestantismo, quem se abandona imediatamente vida sem relao racional com a autoconservao regride pr-histria. O instinto enquanto tal seria to mtico quanto a superstio; servir a um Deus no postulado pelo eu, to insano quanto o alcoolismo. O progresso reservou a mesma sorte tanto para a adorao quanto para a queda no ser natural imediato: ele amaldioou do mesmo modo aquele que, esquecido de si, se abandona tanto ao pensamento quanto ao prazer. O trabalho social de todo indivduo est mediatizado pelo princpio do eu na economia burguesa; a um ele deve restituir o capital aumentado, a outro a fora para um excedente de trabalho. Mas quanto mais o processo da autoconservao assegurado pela diviso burguesa do trabalho, tanto mais ele fora a auto-alienao dos indivduos, que tm que se formar no corpo e na alma segundo a aparelhagem tcnica. Mas isso, mais uma vez, levado em conta pelo pensamento esclarecido: aparentemente, o prprio sujeito transcendental do conhecimento acaba por ser suprimido como a ltima reminiscncia da subjectividade e substitudo pelo trabalho tanto mais suave dos mecanismos automticos de controle. A subjectividade volatilizou-se na lgica de regras de jogo pretensamente indeterminadas, a fim de dispor de uma maneira ainda mais desembaraada. O positivismo - que afinal no recuou nem mesmo diante do pensamento, essa quimera tecida pelo crebro no sentido mais liberal do termo (34) - eliminou a ltima instncia intermediria entre a aco individual e a norma social. O processo tcnico, no qual o sujeito se coisificou aps sua eliminao da conscincia, est livre da plurivocidade do pensamento mtico bem como de toda significao em geral, porque a prpria razo se tornou um mero adminculo da aparelhagem econmica que a tudo engloba. Ela usada como um instrumento universal servindo para a fabricao de todos os demais instrumentos. Rigidamente funcionalizada, ela to fatal quanto a manipulao calculada com exactido na produo material e cujos resultados para os homens escapam a todo clculo. Cumpriu-se afinal sua velha ambio de ser um rgo puro dos fins. A exclusividade das leis lgicas tem origem nessa univocidade da funo, em ltima anlise no carcter coercitivo da autoconservao. Esta culmina sempre na escolha entre a sobrevivncia ou a morte, escolha essa na qual se pode perceber ainda um reflexo no princpio de que, entre duas proposies contraditrias, s uma pode ser verdadeira e s uma falsa. O formalismo desse princpio e de toda a lgica, que o modo como ele se estabelece, deriva da opacidade e do entrelaamento de interesses numa sociedade na qual s por acaso coincidem a conservao das formas e a dos indivduos. A expulso do pensamento da lgica ratifica na sala de aula a coisificao do homem na fbrica e no escritrio. Assim, o tabu estende-se ao prprio poder de impor tabus, o esclarecimento ao esprito em que ele prprio consiste. Mas, desse modo, a natureza enquanto verdadeira autoconservao atiada pelo processo que prometia exorciz-la, tanto no indivduo quanto no destino colectivo da crise e da guerra. Se a nica norma que resta para a teoria o ideal da cincia unificada, ento a prxis tem que sucumbir ao processo irreprimvel da histria universal. O eu integralmente capturado pela civilizao se reduz a um elemento dessa inumanidade, qual a civilizao desde o incio procurou escapar. Concretiza-se assim o mais antigo medo, o medo da perda do prprio nome. Para a civilizao, a vida no estado natural puro, a vida animal e vegetativa, constitua o perigo absoluto. Um aps o outro, os comportamentos mimtico, mtico e metafsico foram considerados como eras superadas, de tal sorte que a ideia de recair neles estava associada ao pavor de que o eu revertesse mera natureza, da qual havia se alienado com esforo indizvel e que por isso mesmo infundia nele indizvel terror. A lembrana viva dos tempos pretritos - do nomadismo e, com muito mais razo, dos estgios propriamente pr-patriarcais - fora extirpada da conscincia dos homens ao longo dos milnios com as penas mais terrveis. O esprito esclarecido substituiu a roda e o fogo pelo estigma que imprimiu em toda irracionalidade, j que esta leva runa. O hedonismo era moderado, os extremos no lhe eram menos odiosos do que para Aristteles. O ideal burgus da naturalidade no visa a natureza amorfa, mas a virtude do meio. A promiscuidade e a ascese, a abundncia e a fome so, apesar de opostas, imediatamente idnticas enquanto potncias da dissoluo. Ao subordinar a vida inteira s exigncias de sua conservao, a minoria que detm o poder garante, justamente com sua prpria segurana, a perpetuao do todo. De Homero aos tempos modernos, o esprito dominante quer navegar entre a Cila da regresso simples reproduo e a Caribde da satisfao desenfreada; ele sempre desconfiou de qualquer outra estrela-guia que no fosse a do mal menor. Os neopagos e belicistas alemes querem liberar de novo o prazer. Mas como o prazer, sob a presso milenar do trabalho, aprendeu a se odiar, ele permanece, na emancipao totalitria, vulgar e mutilado, em virtude de seu autodesprezo. Ele permanece preso autoconservao, para a qual o educara a razo entrementes deposta. Nos momentos decisivos da civilizao ocidental, da transio para a religio olmpica ao renascimento, reforma e ao atesmo burgus, todas as vezes que novos povos e camadas sociais recalcavam o mito, de maneira mais decidida, o medo da natureza no compreendida e ameaadora - consequncia da sua prpria materializao e objectivao - era degradado em superstio animista, e a dominao da natureza interna e externa tornava-se o fim absoluto da vida. Quando afinal a autoconservao se automatiza, a razo abandonada por aqueles que assumiram sua herana a ttulo de organizadores da produo e agora a temem nos deserdados. A essncia do esclarecimento a alternativa que torna inevitvel a dominao. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se natureza ou submeter a natureza ao eu. Com a difuso da economia mercantil burguesa, o horizonte sombrio do mito aclarado pelo sol da razo calculadora, sob cujos raios gelados amadurece a sementeira da nova barbrie. Forado pela dominao, o trabalho humano tendeu sempre a afastar-se do mito, voltando a cair sob o seu influxo, levado pela mesma dominao. Esse entrelaamento de mito, dominao e trabalho est conservado em uma das narrativas de Homero. O duodcimo canto da Odisseia relata o encontro com as Sereias. A seduo que exercem a de se deixar perder no que passou. Mas o heri a quem se destina a seduo emancipou-se com o sofrimento. Nos perigos mortais que teve de arrostar, foi dando tmpera unidade de sua prpria vida e identidade da pessoa. Assim como a gua, a terra e o ar, assim tambm separam-se para ele os domnios do tempo. Para ele, a preia-mar do que j foi recuou da rocha do presente, e as nuvens do futuro esto acampadas no horizonte. O que Ulisses deixou para trs entra no mundo das sombras: o eu ainda est to prximo do mito de outrora, de cujo seio se arrancou, que o prprio passado por ele vivido se transforma para ele num outrora mtico. atravs de uma ordenao fixa do tempo que ele procura fazer face a isso. O esquema tripartido deve liberar o instante presente do poder do passado, desterrando-o para trs do limite absoluto do irrecupervel e colocando-o disposio do agora como um saber praticvel. A nsia de salvar o passado como algo de vivo, em vez de utiliz-lo como material para o progresso, s se acalmava na arte, qual pertence a prpria Histria como descrio da vida passada. Enquanto a arte renunciar a ser aceita como conhecimento, isolando-se assim da prxis, ela ser tolerada, como o prazer, pela prxis social. Mas o canto das Sereias ainda no foi reduzido impotncia da arte. Elas sabem "tudo o que jamais ocorreu sobre a terra to frtil", (35) sobretudo os acontecimentos de que participara o prprio Ulisses e "o quanto sofreram os filhos de Argos e os troianos por vontade dos Deuses". (36) Ao conjurar imediatamente o passado recente, elas ameaam com a promessa irresistvel do prazer - que a maneira como seu canto percebido - a ordem patriarcal, que s restitui a vida de cada um em troca de sua plena medida de tempo. Quem se deixa atrair por suas iluses est condenado perdio, quando s uma contnua presena de esprito consegue arrancar um meio de vida natureza. Se as sereias nada ignoram do que aconteceu, o preo que cobram por esse conhecimento o futuro, e a promisso do alegre retorno o embuste com que o passado captura o saudoso. Ulisses foi alertado por Circe, a divindade da reconverso ao estado animal, qual resistira e que, em troca disso, fortaleceu-o para resistir a outras potncias da dissoluo. Mas a seduo das Sereias permanece mais poderosa. Ningum que ouve sua cano pode escapar a ela. A humanidade teve que se submeter a terrveis provaes at que se formasse o eu, o carcter idntico, determinado e viril do homem, e toda infncia ainda de certa forma a repetio disso. O esforo para manter a coeso do ego marca-o em todas as suas fases, e a tentao de perd-lo jamais deixou de acompanhar a determinao cega de conserv-lo. A embriaguez narctica, que expia com um sono parecido morte a euforia na qual o eu est suspenso, uma das mais antigas cerimnias sociais mediadoras entre a autoconservao e a autodestruio, uma tentativa do eu de sobreviver a si mesmo. O medo de perder o eu e o de suprimir com o eu o limite entre si mesmo e a outra vida, o temor da morte e da destruio, est irmanado a uma promessa de felicidade, que ameaava a cada instante a civilizao. O caminho da civilizao era o da obedincia e do trabalho, sobre o qual a satisfao no brilha seno como mera aparncia, como beleza destituda de poder. O pensamento de Ulisses, igualmente hostil sua prpria morte e sua prpria felicidade, sabe disso. Ele conhece apenas duas possibilidades de escapar. Uma a que ele prescreve aos companheiros. Ele tapa seus ouvidos com cera e obriga-os a remar com todas as foras de seus msculos. Quem quiser vencer a provao no deve prestar ouvidos ao chamado sedutor do irrecupervel e s o conseguir se conseguir no ouvi-lo. Disso a civilizao sempre cuidou. Alertas e concentrados, os trabalhadores tm que olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendncia que impele distraco, eles tm que se encarniar em sublim-la num esforo suplementar. assim que se tornam prticos. A outra possibilidade a escolhida pelo prprio Ulisses, o senhor de terras que faz os outros trabalharem para ele. Ele escuta, mas amarrado impotente ao mastro, e quanto maior se torna a seduo, tanto mais fortemente ele se deixa atar, exactamente como, muito depois, os burgueses, que recusavam a si mesmos a felicidade com tanto maior obstinao quanto mais acessvel ela se tornava com o aumento de seu poderio. O que ele escuta no tem consequncias para ele, a nica coisa que consegue fazer acenar com a cabea para que o desatem; mas tarde demais, os companheiros - que nada escutam - s sabem do perigo da cano, no de sua beleza - e o deixam no mastro para salvar a ele e a si mesmos. Eles reproduzem a vida do opressor juntamente com a prpria vida, e aquele no consegue mais escapar a seu papel social. Os laos com que irrevogavelmente se atou prxis mantm ao mesmo tempo as Sereias afastadas da prxis: sua seduo transforma-se, neutralizada num mero objecto da contemplao, em arte. Amarrado, Ulisses assiste a um concerto, a escutar imvel como os futuros frequentadores de concertos, e seu brado de libertao cheio de entusiasmo j ecoa como um aplauso. Assim a fruio artstica e o trabalho manual j se separam na despedida do mundo pr-histrico. A epopeia j contm a teoria correcta. O patrimnio cultural est em exacta correlao com o trabalho comandado, e ambos se baseiam na inescapvel compulso dominao social da natureza. As medidas tomadas por Ulisses quando seu navio se aproxima das Sereias pressagiam alegoricamente a dialctica do esclarecimento. Assim como a substituibilidade a medida da dominao e o mais poderoso aquele que pode se fazer substituir na maioria das funes, assim tambm a substituibilidade o veculo do progresso e, ao mesmo tempo, da regresso. Na situao dada, estar excludo do trabalho tambm significa mutilao, tanto para os desempregados, quanto para os que esto no plo social oposto. Os chefes, que no precisam mais se ocupar da vida, no tm mais outra experincia dela seno como substrato e deixam-se empedernir integralmente no eu que comanda. O primitivo s tinha experincia da coisa natural como objecto fugidio do desejo, "mas o senhor, que interps o servo entre a coisa e ele prprio, s se prende dependncia da coisa e desfruta-a em sua pureza; o aspecto da independncia, porm, abandona-o ao servo que a trabalha". (37) Ulisses substitudo no trabalho. Assim como no pode ceder tentao de se abandonar, assim tambm acaba por renunciar enquanto proprietrio a participar do trabalho e, por fim, at mesmo a dirigi-lo, enquanto os companheiros, apesar de toda proximidade s coisas, no podem desfrutar do trabalho porque este se efectua sob coaco, desesperadamente, com os sentidos fechados fora. O servo permanece subjugado no corpo e na alma, o senhor regride. Nenhuma dominao conseguiu ainda evitar pagar esse preo, e a aparncia cclica da histria em seu progresso tambm se explica por semelhante enfraquecimento, que o equivalente do poderio. A humanidade, cujas habilidades e conhecimentos se diferenciam com a diviso do trabalho, ao mesmo tempo forada a regredir a estgios antropologicamente mais primitivos, pois a persistncia da dominao determina, com a facilitao tcnica da existncia, a fixao do instinto atravs de uma represso mais forte. A fantasia atrofia-se. A desgraa no est em que os indivduos tenham se atrasado relativamente sociedade ou sua produo material. Quando o desenvolvimento da mquina j se converteu em desenvolvimento da maquinaria da dominao - de tal sorte que as tendncias tcnica e social, entrelaadas desde sempre, convergem no apoderamento total dos homens - os atrasados no representam meramente a inverdade. Por outro lado, a adaptao ao poder do progresso envolve o progresso do poder, levando sempre de novo quelas formaes recessivas que mostram que no o malogro do progresso, mas exactamente o progresso bem-sucedido que culpado de seu prprio oposto. A maldio do progresso irrefrevel a irrefrevel regresso. Esta no se limita experincia do mundo sensvel, que est ligada proximidade das coisas mesmas, mas afecta ao mesmo tempo o intelecto autocrtico, que se separa da experincia sensvel para submet-la. A unificao da funo intelectual, graas qual se efectua a dominao dos sentidos, a resignao do pensamento em vista da produo da unanimidade, significa o empobrecimento do pensamento bem como da experincia: a separao dos dois domnios prejudica a ambos. A limitao do pensamento organizao e administrao, praticada pelos governantes desde o astucioso Ulisses at os ingnuos directores-gerais, inclui tambm a limitao que acomete os grandes to logo no se trate mais apenas da manipulao dos pequenos. O esprito torna-se de facto o aparelho da dominao e do autodomnio, como sempre havia suposto erroneamente a filosofia burguesa. Os ouvidos moucos, que o que sobrou aos dceis proletrios desde os tempos mticos, no superam em nada a imobilidade do senhor. da imaturidade dos dominados que se nutre a hipermaturidade da sociedade. Quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econmica e cientfica, para cujo manejo o corpo j h muito foi ajustado pelo sistema de produo, tanto mais empobrecidas as vivncias de que ele capaz. Graas aos modos de trabalho racionalizados, a eliminao das qualidades e sua converso em funes transferem-se da cincia para o mundo da experincia dos povos e tende a assemelh-lo de novo ao mundo dos anfbios. A regresso das massas, de que hoje se fala, nada mais seno a incapacidade de poder ouvir o imediato com os prprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as prprias mos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas mticas superadas. Pela mediao da sociedade total, que engloba todas as relaes e emoes, os homens se reconvertem exactamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princpio do eu: meros seres genricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na colectividade governada pela fora. Os remadores que no podem se falar esto atrelados a um compasso, assim como o trabalhador moderno na fbrica, no cinema e no colectivo. So as condies concretas do trabalho na sociedade que foram o conformismo e no as influncias conscientes, as quais por acrscimo embruteceriam e afastariam da verdade os homens oprimidos. A impotncia dos trabalhadores no mero pretexto dos dominantes, mas a consequncia lgica da sociedade industrial, na qual o fado antigo acabou por se transformar no esforo de a ele escapar. Essa necessidade lgica, porm, no definitiva. Ela permanece presa dominao, como seu reflexo e seu instrumento ao mesmo tempo. Por isso, sua verdade to questionvel quanto sua evidncia inevitvel. verdade que o pensamento sempre bastou para designar concretamente seu prprio carcter questionvel. Ele o servo que o senhor no pode deter a seu bel-prazer. Ao se reificar na lei e na organizao, quando os homens se tornaram sedentrios e, depois, na economia mercantil, a dominao teve que limitar-se. O instrumento ganha autonomia: a instncia mediadora do esprito, independentemente da vontade dos dirigentes, suaviza o carcter imediato da injustia econmica. Os instrumentos da dominao destinados a alcanar a todos - a linguagem, as armas e por fim as mquinas - devem se deixar alcanar por todos. assim que o aspecto da racionalidade se impe na dominao como um aspecto que tambm distinto dela. A objectividade do meio, que o torna universalmente disponvel, sua "objectividade" para todos, j implica a crtica da dominao da qual o pensamento surgiu, como um de seus meios. No trajecto da mitologia logstica, o pensamento perdeu o elemento da reflexo sobre si mesmo, e hoje a maquinaria mutila os homens, mesmo quando os alimenta. Sob a forma das mquinas, porm, a ratio alienada move-se em direco a uma sociedade que reconcilia o pensamento solidificado, enquanto aparelhagem material e aparelhagem intelectual, com o ser vivo liberado e o relaciona com a prpria sociedade como seu sujeito real. A origem particular do pensamento e sua perspectiva univers