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“LA BELLE EPOQUE” EM NATAL : VIDA COTIDIANA E PRÁTICAS SOCIAIS NA CIDADE DE NATAL NA DÉCADA DE VINTE, NUMA PERSPECTIVA DE GÊNERO. Françoise Dominique Valéry Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN Rua Levi Higino Jales, 10 – Qd. 18, Bl. B – Capim Macio – 59078-480 – NATAL - RN E-mail: [email protected] O trabalho visa resgatar alguns aspectos da emergência de práticas sociais no meio urbano, na década de vinte, na cidade de Natal. Para tal, faz uma rápida analise da produção historiográfica sobre a cidade, destacando a variedade de estudos produzidos nos últimos dois anos, tendo em visto os 400 anos da cidade ; situa e analisa as fontes documentais disponíveis, enfatizando os aportes e lacunas das fontes qualitativas e quantitativas. Toma como objeto de referência as mulheres no espaço público e privado, situando a análise documental na perspectiva de gênero, compreendida como a história da construção social das categorias do masculino e feminino, através dos discursos sobre a cidade e das práticas sociais no meio urbano. Justifica a escolha da década de vinte, por representar um momento impar na história da cidade: Natal passa por um processo de intensas alterações na sua configuração espacial, na morfologia de suas residências, graças a modernização de sua infra-estrutura. A cidade e seus habitantes mergulham na modernidade, “la belle époque”. A cidade planejada e transformada propicia às mulheres possibilidades de reconstrução de sua experiência concreta. Portanto, este estudo representa um esforço de apreender a atuação feminina nas suas dimensões formais e informais, visíveis através do enfoque do cotidiano, interpenetrando, num processo dialético, a história das mulheres e a história da cidade. Palavras-chaves: Cotidiano – Relações de gênero – Práticas sociais Este trabalho é fruto de pesquisas realizadas na encruzilhada entre a história das mulheres no Estado do Rio Grande do Norte (Brasil) no início do século XX, e a história da cidade. Visa resgatar alguns aspectos da vida cotidiana e pública, focalizando a emergência de práticas sociais no meio urbano, na década de 20, na cidade de Natal. Deste modo, busca-se reconstruir o cenário de alguns dos acontecimentos mais importantes de nossa história, como quadro que traz luzes sobre as causas e modalidades do pioneirismo da participação da mulher na vida pública num estado que se destacou no Brasil por aceitar o voto feminino em 1928, seis anos antes do resto do Brasil. Este trabalho inscreve-se num claro propósito: resgatar a história de vida das mulheres, enfatizar a necessidade de (re)construir permanentemente a nossa história, pois os manuais e estudos voltados tanto para a história social como para a história da cidade, costumam “esquecer” ou minimizar esses fatos. Portanto escrever mais uma página de nossa história é o desafio que as pesquisadoras do Núcleo Nísia Floresta de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de

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“LA BELLE EPOQUE” EM NATAL : VIDA COTIDIANA E PRÁTICAS SOCIAIS NA

CIDADE DE NATAL NA DÉCADA DE VINTE, NUMA PERSPECTIVA DE GÊNERO.

Françoise Dominique Valéry

Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN

Rua Levi Higino Jales, 10 – Qd. 18, Bl. B – Capim Macio – 59078-480 – NATAL - RN

E-mail: [email protected]

O trabalho visa resgatar alguns aspectos da emergência de práticas sociais no meio urbano, na década de vinte, na cidade de Natal. Para tal, faz uma rápida analise da produção historiográfica sobre a cidade, destacando a variedade de estudos produzidos nos últimos dois anos, tendo em visto os 400 anos da cidade ; situa e analisa as fontes documentais disponíveis, enfatizando os aportes e lacunas das fontes qualitativas e quantitativas. Toma como objeto de referência as mulheres no espaço público e privado, situando a análise documental na perspectiva de gênero, compreendida como a história da construção social das categorias do masculino e feminino, através dos discursos sobre a cidade e das práticas sociais no meio urbano. Justifica a escolha da década de vinte, por representar um momento impar na história da cidade: Natal passa por um processo de intensas alterações na sua configuração espacial, na morfologia de suas residências, graças a modernização de sua infra-estrutura. A cidade e seus habitantes mergulham na modernidade, “la belle époque”. A cidade planejada e transformada propicia às mulheres possibilidades de reconstrução de sua experiência concreta. Portanto, este estudo representa um esforço de apreender a atuação feminina nas suas dimensões formais e informais, visíveis através do enfoque do cotidiano, interpenetrando, num processo dialético, a história das mulheres e a história da cidade. Palavras-chaves: Cotidiano – Relações de gênero – Práticas sociais Este trabalho é fruto de pesquisas realizadas na encruzilhada entre a história das mulheres no

Estado do Rio Grande do Norte (Brasil) no início do século XX, e a história da cidade. Visa

resgatar alguns aspectos da vida cotidiana e pública, focalizando a emergência de práticas sociais

no meio urbano, na década de 20, na cidade de Natal. Deste modo, busca-se reconstruir o cenário

de alguns dos acontecimentos mais importantes de nossa história, como quadro que traz luzes

sobre as causas e modalidades do pioneirismo da participação da mulher na vida pública num

estado que se destacou no Brasil por aceitar o voto feminino em 1928, seis anos antes do resto do

Brasil. Este trabalho inscreve-se num claro propósito: resgatar a história de vida das mulheres,

enfatizar a necessidade de (re)construir permanentemente a nossa história, pois os manuais e

estudos voltados tanto para a história social como para a história da cidade, costumam “esquecer”

ou minimizar esses fatos. Portanto escrever mais uma página de nossa história é o desafio que as

pesquisadoras do Núcleo Nísia Floresta de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e Relações de

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Gênero – NEPAM, criado em 1991 na UFRN como espaço de reflexão acadêmica e produção

científica de caráter interdisciplinar, enfrentam, desenvolvendo um conjunto de investigações

sobre os séculos XIX e XX, enfatizando o papel das mulheres na vida social, cultural e política

deste pequeno estado do Nordeste do Brasil, principalmente em Natal, sua capital, situada no

litoral oriental e objeto de nossas investigações.

O interesse por desenvolver este tipo de investigação faz parte da trajetória de pesquisadoras

que, embora radicadas no Departamento de Arquitetura da UFRN, decidem, no início da década

de 90, criar um centro de estudos interdisciplinares voltado para a geração de conhecimento sobre

as diferentes formas e modalidades de relações sociais de gênero, enfatizando uma dimensão

pouco pesquisada até então, o meio urbano. O Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Mulher e

Relações de Gênero, criado em 1991, define entre seus objetivos: 1) “Resgatar a história da

mulher, principalmente das mulheres norte-riograndenses, e suas lutas e reivindicações por

igualdade de direitos e justiça social” e 2) “Reunir documentação específica sobre Mulher e

Relações sociais de Gênero para subsidiar as atividades de Ensino, Pesquisa e Extensão

Universitária e de divulgação da temática dentro e fora da Universidade”.

A evidente integração entre os objetivos se realizou mediante a montagem e realização de

vários projetos de investigação. O primeiro foi realizado entre 1994 e 1996 e visava analisar as

relações entre Gênero e Políticas Sociais no meio urbano. O segundo intitulado Gênero e

Habitação foi desenvolvido no quadro de estudos pós-doutorais na Escola da Arquitetura de

Marseille Luminy, na França em 1996 e 1997. Visava aprofundar os conhecimentos sobre as

mulheres e suas relações com a casa, a rua, o bairro e a cidade, como resultado de um processo

social e cultural de apropriação do espaço. O terceiro projeto, focalizando A participação das

Mulheres na vida política do Rio Grande do Norte, da década de 20 a década de 90,

desenvolvido desde abril de 1998, está em andamento. Conta com apoio financeiro da Própria

UFRN, do Centro Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento – CNPq (Concessão de bolsas) e

recursos externos (Fundação FORD).

O ponto comum entre essas investigações reside na análise específica do papel

desempenhado pelas mulheres do Rio Grande do Norte, em todas as instâncias da vida pública,

desde o início do século XIX. Não podemos deixar a destacar o nome de Nísia Floresta

Brasileira Augusta, pseudônimo da escritora norte-riograndense Dionísia Gonçalves Pinto,

nascida em 1810 e falecida na França em 1885, cuja vida e obra foram resgatadas por DUARTE

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(1995). Hoje considerada como símbolo da luta feminina em busca de seus direitos, Nísia “uma

das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado e a publicar textos em

jornais (...) e sob forma de crônicas, de contos, de poesias e de ensaios” (DUARTE citado por

AUAD, 1999, p. 333), defendeu ardorosamente os direitos das mulheres, dos índios e dos

escravos, tendo publicado em 1832 o primeiro livro que se tem notícia no Brasil que trata dos

direitos das mulheres à instrução e ao trabalho (Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens).

Graças a pesquisa sobre Nísia Floresta e outras pioneiras que emergem no século XIX, é possível

resgatar o modo pelo qual as mulheres no Brasil, influenciadas pelas feministas européias, como

Mary Wollstoncraft, avançaram na conquista do espaço público.

Nessas investigações sobre a participação das mulheres potiguares na vida pública, as nossas

preocupações nunca foram de isolar as mulheres enquanto objeto de estudo, mas de explicar a sua

emergência no palco da cidade, mostrando os limites dos estudos que salientam o isolamento das

mulheres (...) e o rígido controle que se exercia sobre as mulheres, proibindo-as de sair as ruas,

fechando-as no interior das casas, negando-lhes direitos básicos”(QUINTANEIRO, 1995, p. 37-

38). Ao indagar quais os fatores que explicam a crescente participação das mulheres na cena

pública, que se materializa através da mobilização das sufragistas e a conquista ao direito de voto

por parte das mulheres no RN em 1928, necessário se faz salientar o contexto cultural no qual

viviam as mulheres na primeira metade do século XX no Brasil e especificamente no Rio Grande

do Norte. Pois, sabe-se que as práticas sociais e políticas se inscrevem no espaço físico, o estado

do Rio Grande do Norte situado na região Nordeste do Brasil, com sua capital então em pleno

processo de embelezamento, modernização de sua estrutura, urbanização, introdução de novos

valores culturais associados a vida urbana e a democracia representativa, emergência de novas

classes sociais urbanas como funcionários públicos, comerciantes e operários.

Sabe-se que no período entre o final da Segundo Império e os anos 30, o Brasil passou por

mudanças significativas. Segundo TOSCANO & GOLDENBERG (1992, p. 26)

“a intensificação das relações internacionais, protagonizada pelas camadas de renda mais alta e mais cultas, por meio de viagens ao exterior e troca de correspondência com intelectuais estrangeiros, bem como o grande fluxo de migratório do velho Continente para o Brasil semearam entre nós doutrinas e idéias que, ate então, eram restritas a pequenos grupos de intelectuais. As idéias feministas vieram no bojo de tias mudanças, refletindo os movimentos que eclodiam na Europa, cuja tônica era a luta pela participação maior da mulher na vida política e nos centros de decisão. O cenário estava

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montado. Faltava apenas a personagem disposta a assumir o papel que as circunstâncias exigiam”.

Pois com o movimento abolicionista (1888), importantes contingentes de mão de obra

voltaram-se para os núcleos urbanos que se consolidam como polos de atração econômica: Natal

capital do estado, Mossoró, mas também municípios de porte médio como Caicó ou de pequeno

porte como Areia Branca. A chegada desses contingentes, reforçados pelos imigrantes (de origem

portuguesa) ou pelos estrangeiros (italianos, ingleses responsáveis pelas obras de infra-estrutura

no estado como via férrea, bondes urbanos, obras nos portos e de saneamento) provocaram

mudanças culturais na cidade. Segundo SOARES (1999), na década de 20, a cidade de Natal vem

sofrendo profundas transformações, com a inserção de vários atributos da modernidade no seu

cenário, com reflexos sobre a vida cotidiana.

“Natal recebe influências do exterior e de centros urbanos mais desenvolvidos do país, representadas pelo modo de ser europeu, principalmente no vestuário, nas ‘boas maneiras’, nos costumes, na instrução, nos usos e valores em geral, que contribuem para o estabelecimento de uma precoce ‘cultura urbana’ na cidade, ainda não compatível com seu porte e estrutura econômica existente” (SOARES, 1999 : 12).

Na primeira parte deste trabalho, cabe salientar que a nossa proposta de resgate da

visibilidade das mulheres na construção e gestão dos espaços públicos e privados se inscreve

numa perspectiva teórica e empírica que, até o presente momento, somente tornou-se objeto de

estudo num círculo privilegiado da pesquisa acadêmica : os núcleos de estudos e pesquisas

voltados para a apreensão e discussão da problemática feminina e feminista. Portanto, um dos

objetivos desta comunicação é passar esses conhecimentos para outras áreas disciplinares, tais

como arquitetura e planejamento urbano, áreas onde se notam grandes dificuldades de integração

da perspectiva de gênero aos estudos sobre a cidade.

A metodologia utilizada para realização deste trabalho tem como premissa uma (re)leitura

de estudos voltados para história urbana no Brasil e em Natal. Com base na pesquisa

bibliográfíca e documental realizada, foi possível evidenciar que a construção da cidade moderna

é o resultado de um processo sócio-histórico onde homens e mulheres foram ativos, sendo que a

presença das mulheres sempre se apresentada resgatada de modo bastante diferenciado da dos

homens. Concordamos neste sentido com autoras como Michelle PERROT e Hannah ARENDT

(COLIN, 1986) quando afirmam que, na construção da cidade, a participação das mulheres

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sempre encontra-se menosprezada, quando não voluntariamente oculta : “as mulheres são as

esquecidas da História!”.

Ao consultar as fontes documentais e bibliográficas, nota-se que poucas são as pesquisas

que, no Brasil, procuram identificar e avaliar de que maneira as relações sociais de gênero podem

explicar as mudanças que se constatam no processo de urbanização e no cotidiano das condições

de vida no meio urbano. Importante se faz notar que a reflexão sobre a cidade não foi campo

exclusivo dos teóricos das ciências sociais e humanas voltados para a problemática urbana.

Paralelamente vinha se desenvolvendo um outro aporte teórico que podemos sistematizar como

problemática de gênero, a saber a construção epistemológica de novas categorias de analise da

realidade social. A partir dos anos 70 ampliaram-se os debates relativos à condição feminina, a

saber a participação das mulheres na sociedade e a re-leitura e interpretação desta participação da

história como um todo. A história social ficou completamente revirada por estudiosos e

pesquisadoras que tentaram tornar visível o papel das mulheres em todos os momentos da vida

social. Discussão que a partir do início da década de 80, procura tornar visíveis as relações

sociais de gênero.

As teorias feministas, que hoje comportam uma grande diversidade de aportes teóricos,

concordam em privilegiar um aspecto essencial das relações humanas como ponto de partida para

a análise histórica, social, política, etc. Trata-se das relações entre homens e mulheres, entre

sexos, tais como são estruturadas em nossa sociedade e em todas as sociedades. Apesar de

oferecer modalidades diferentes em função do quadro histórico, social, geográfico ou cultural, as

relações entre homens e mulheres são regidas pelas relações de poder, de dominação de um sexo

(masculino) sobre o outro (feminino), relações que definem os papeis que homens e mulheres

desempenham em cada sociedade e as representações que cada sexo tem de si e do outro.

Trata-se portanto de um amplo movimento de reflexão crítica e política sobre a natureza

das relações sociais entre homens e mulheres. Assim sendo, a formulação da problemática de

gênero parte de dois aportes substanciais : de um lado a escola francesa que trabalha a construção

social dos sexos (“rapports sociaux de sexe”) e de outro a escola anglo-saxônica que trabalha a

construção social de gênero (“gender”). Ambas mostram que essa construção social de gênero é

amplamente uma produção histórica, uma construção e reconstrução permanente desses papeis e

representações, motivo pelo qual esses papeis e representações evoluem e não podem ser

considerados como “verdadeiros” : duas posições teóricas foram formuladas a partir deste

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pressuposto. Uma corrente chamada “essencialista” que postula a existência de uma figura

essencial (“a mulher” , “a mãe” etc) que deve ser desvendada ao estudar as diversas formulações

históricas e sociais. Outra chama “humanista” que postula que não existe “a mulher” mas sim

mulheres e homens, seres diferentes na sua concepção biológica mas idênticos nos seus direitos,

cujas relações resultam de um processo de dominação e subjugação que reveste características

peculiares em momentos históricos bem delimitados. Assim sendo, o que este trabalho se propõe

a fazer é relacionar duas problemáticas que são geralmente abordadas separadamente, de um lado

uma reflexão epistemológica sobre o conceito de espaço público e do outro uma reflexão teórica

sobre as relações sociais de gênero.

Ao abordar a emergência das mulheres no espaço público, nesta segunda parte do

trabalho, vale a pena salientar uma grande parte da reflexão feminista sobre a questão do espaço

pretende discutir a existência, manutenção, reprodução ou transformação, de espaços sexuados.

O fato de cada sociedade definir papeis e atribuições específicas aos homens e às mulheres, tem

sem dúvida um impacto profundo sobre a estruturação do espaço residencial, ao nível da casa, a

definição e imposição de normas de uso do espaço público, ao nível da rua, do quarteirão e do

bairro, sobre a evolução das áreas residênciais, a oferta de equipamentos coletivos. A perpetuação

de modelos de comportamentos e valores em função da manutenção desses papeis sociais e

familiares, traz consigo a definição de espaços masculinos e femininos. Assim sendo, a definição

do espaço público como tradicionalmente masculino (o espaço dos homens é a rua e a cidade) e

do espaço privado e doméstico como tradicionalmente feminino (o espaço das mulheres é a casa

e seu entorno natural, o jardim) leva a uma dicotomização dos espaços, vistos como antagônicos.

A constituição do modelo social e do mito da “dona de casa, rainha do lar” é vista pelas

historiadoras feministas como uma construção social e ideológica típica da sociedade burguesa

ocidental contemporânea e pelas feministas analistas das relações de gênero como uma estratégia

deliberada de evicção das mulheres do espaço público, paralelamente a sua marginalização

política e a sua subjugação também no espaço doméstico, sob a tutela do pai, do marido e de

patrão.

O espaço doméstico é certamente um produto histórico e social complexo, onde se

entrelaçam vários elementos e estratégias de controle social que dizem respeito às mulheres.

FOUCAULT sublinhou nos seus estudos a concomitância entre as estratégias de repressão do

corpo (principalmente feminino) e de fechamento do espaço doméstico. As relações de gênero

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são antes de tudo relações de poder, mascaradas por uma construção ideológica da sociedade

burguesa ocidental, que se materializa nos espaços público e privado entre o final do século

XVIII e o início do século XX, como mostra PARAVICINI no seu amplo estudo sobre os

espaços domésticos modernos (“L´ Habitat au féminin”). Em função do modelo familiar burguês

com sua tradicional repartição de papeis, ao homem é atribuído o espaço da produção, às

mulheres o espaço da reprodução. Este esquema foi reproduzido em ampla escala adaptando-se

aos postulados do movimento modernista, refletindo no desenvolvimento de projetos de

conjuntos habitacionais meramente residenciais, na realização de cidades-jardins com seu lado

bucólico levando à alienação das mulheres, ao seu confinamento em determinados espaços e a

sua evicção da vida social no meio urbano. Fica proibida à “mulher honesta” freqüentar a maioria

dos espaços públicos sem a proteção masculina, criando-se o mito da “cidade dos homens”

portanto proibida e perigosa. Paralelamente à mulher cabia a organização do espaço domestico,

espaço intimo e de representação social. O controle do espaço feminino dedicado às atividades

“desonestas” (o cabaré, a zona de baixo meretriz, etc) fica acentuado por uma série de leis e

regulamentos que visam o controle sanitário e realizam na verdade um controle dos “territórios”

masculino e feminino.

As análises realizadas sobre os espaços internos da casa mostram que tais divisões de

espaços segundo o gênero se mantêm vivas, observando-se nos projetos o desenho de espaços

destinados ao gênero masculino (o gabinete do inicio do século, o escritório de hoje, a biblioteca

e fumodromo do passado, a garagem e o atelier de hoje) e outros visivelmente destinados às

atividades domésticas (área de serviço, cozinha e copa, sala de costura ou atelier) portanto

sempre atribuídas ao gênero feminino (dona da casa, empregada domestica). É interessante notar

o papel dos espaços de transição entre mundo masculino e feminino, espaços onde a mulher pode

desenvolver um conjunto de atividades sociais, religiosas, beneficentes etc. Na habitação

burguesa do século XIX observa-se a multiplicação de espaços de transição, sinal de importante

relacionamento com o mundo exterior. Hoje os projetos limitam-se a definir pequenos espaços

tais como varandas, balcões, sendo transferida função de transição ao nível da área de entrada do

edifício. Vários espaços são concebidos como semi-públicos e semi-privados, numa tentativa de

evidenciar o novo papel da mulher, sua investida no espaço público, no mundo do trabalho, da

rua e dos espaços de lazer e comerciais.

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Na terceira parte deste trabalho, abordaremos as transformações no cenário urbano de

Natal e como as mulheres se fazem presentes na cidade. Como coloca SOARES (1999), a

consulta aos documentos da época (principalmente jomais, como a República, fotografias e

arquivos públicos) só permite uma reconstituição fragmentada da cidade nos seus diversos

aspectos. O primeiro elemento que vale ressaltar é as inúmeras referências nos jornais da época a

percepção amplamente socializada que Natal vive “outra época, outros costumes” O artigo do

jornal A República, datado de 21/02/1923, citado por SOARES destaca as mudanças decorrentes

da modernidade:

“as modas indiscretas, as danças ousadas, as músicas frívolas, as canções triviaes (...) Desapareceu dos salões aquele nota de alta distinção que constituía a cavalheiresca amabilidade de outrora (...) a pesada candeia de cobre desapareceu, veio o lustre e já foi substituído pelo moderno bico de luz (...) o telephone encurta as distâncias à voz, o automóvel, à presença ; o correio e o telegrapho, às notícias” (SOARES; 1999, p. 20-21)

O segundo elemento que se destaca é a importância do processo de desenvolvimento econômico

social e urbano, vivenciado pela cidade desde o início do século, quando graças a modernização

dos costumes e da vida cotidiana, Natal como o resto do Brasil estaria experimentando a sua

Belle Epoque, com a intensificação da influência européia presente nas idéias dos urbanistas, nos

projetos de intervenção, na figura emblemática de Francisco Saturnino de Brito.

O terceiro elemento está expresso nas transformações espaciais que ocorrem na cidade, com as

construções do Mercado Público na Cidade Alta, da Estação Ferroviária da Ribeira, na abertura

da Avenida Junqueira Aires, elo de ligação entre as duas partes centrais da cidade. A década de

vinte representa o momento da renovação urbana de Natal, quando o nova ordem urbana se

reflete nas novas residências construídas pela elite local, nos cinemas, nos teatros, nas ruas

iluminadas, nos bondes circulando, nos passeios diários nas ruas pavimentadas e arborizadas.

Deste modo, a “Cidade nova”, criada no início do século, vinha crescendo ao lado do antigo

núcleo urbano, formatada num traçado em forma de tabuleiro de xadrez, com suas praças e

avenidas.

Neste espaço reconfigurado, as fotografias da época mostram claramente que as mulheres estão

presentes. A modernidade permite sem dúvida às mulheres de se fazer presentes, investir o

espaço público, sair e até se exibir. Não somente as mulheres das classes populares urbanas

(lavadeiras, doceiras, empregadas do comércio, etc) mas as que pertencem as classes médias

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(professoras principalmente) e altas (moças e senhoras). Para tal concorrem as melhorias urbanas:

a iluminação pública graças à construção e inauguração da usina elétrica de Oitizeiro (em 1911),

a circulação regular de bondes elétricos nas principais ruas e avenidas da Ribeira, Cidade Alta e

Cidade Nova, Tirol e Petrópolis, o acesso mais fácil ao Teatro Carlos Gomes, a construção de

praças, jardins e passeios, etc.

“Durante o período, a cidade fora revestida de elementos emblemáticos da modernidade européia (...) com ruas amplas e arborizadas, prédios suntuosos, energia elétrica e sistema de transportes. Ao mesmo tempo, os modos d vida, comportamentos e hábitos da elite local foram recorbertos por um verniz civilizatório” (OLIVEIRA, 1997, p. 159-160).

Essas mudanças acentuaram-se mais ainda coma a abertura de uma grande escola, a Escola

Doméstica de Natal, fruto de um arrojado projeto do educador Henrique Castriciano, fortemente

influenciado pela educação suíça. Nesta escola aberta em 1919, cuja clientela era formado por

filhas das famílias das classes dominantes locais e regionais, havia uma proposta de instrução e

educação das mulheres, embora com sentido nitidamente conservador. Já havia em Natal o

Colégio Imaculada Conceição, fundado pelas Irmãs Dorotéias em 1902, mas o projeto da Liga de

Ensino não visava “pregar a emancipação da mulher nem encaminhá-la para a solução do que

se convencionou apelidar de feminismo, consistente na aquisição de certos direitos políticos.

Bem longe disso. O principal objetiva da Liga pode ser resumido em quatro palavras:

aperfeiçoar a educação doméstica” (discurso de Henrique Castriciano citado por PEREIRA,

1999, p. 33-34). Embora a Escola não tenha contribuido para fazer das mulheres um elemento de

progresso, criou-se um mito sobre ela e seu papel na educação das moças, aparecendo como

contraponto às propostas emancipadoras de Nísia Floresta, expressas no século anterior.

Interessante-se se faz notar a influência dos debates sobre educação das mulheres como elemento

constitutivo dos discursos sobre modernidade.

Quais as modalidades de organização social e política que propiciaram a emergência de

mulheres políticas em Natal e também nas pequenas cidades do interior do estado, tais como

Alzira Soriano, primeira mulher prefeita da América Latina, símbolo (da participação das

mulheres na vida política do RN) que ainda hoje se reproduz e perpetua no imaginário coletivo

local e nacional? Para responder a essas perguntas, é necessário mostrar que as mulheres

investiram os espaços onde podiam se expressar e ingressar na vida pública. Neste processo, a

participação de Bertha Lutz foi muito importante pois a sua personalidade tende a ofuscar os

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demais nomes de mulheres importantes naquela época. A maioria dos livros e estudos que tratam

da emancipação feminina nesta época tendem a ter como único marco de referência Bertha Lutz,

desmerecendo as demais mulheres que apontam como decisivas para o avanço da luta sufragista

nos estados do Norte e Nordeste. Pois no intervalo entre as duas guerras mundiais, o Brasil foi

marcado por um intenso intercâmbio de idéias, pela criação do Partido Comunista (1922), pela

Semana de Arte Moderna (1922), pelo Tenentismo (1922-1924) e pela Coluna Prestes (1924-

1927). Num Brasil sacudido do Norte ao Sul por transformações de ordem política, econômica e

social, grande foi o papel de Bertha Lutz, que criou em 1919, a Liga pela Emancipação Feminina,

transformado em 1922 em Federação Brasileira para o Progresso Feminino, embora não possa ser

isolado dos demais.

Através dos documentos coletados (Correspondência da FBPF, Cartas particulares e

Artigos de Jornais) e das entrevistas realizadas com mulheres que vivenciaram essa época, ou

seus familiares, é possível mostrar o papel de Bertha Lutz no Rio Grande do Norte, influenciando

os políticos locais, principalmente quando da escolha de Alzira Soriano para candidata à Prefeita,

no município de Lajes. Segundo SOUZA (1993, p. 13),

“Num estado rico em mulheres vanguardistas, Celina Guimarães foi a primeira eleitora, Maria do Céu Fernandes a primeira Deputada, a primeira prefeita foi aquela mulher de quem mesmo os adversários políticos tinham respeito, uma mulher que na década de 20 conversava sexo com as filhas, uma mulher que ao morrer o marido, com 22 anos e três bebês para criar, ao invés de vestir luto, voltar para a casa do pai e ir para a cozinha, lugar naturalmente reservado às mulheres de sua época, preferiu ir à luta pela sobrevivência” .

Resgatar a figura das mulheres que se dedicaram a vida política no Rio Grande do Norte

nas décadas de 20 e 30, não constitui tarefa fácil. Os trabalhos de investigação foram norteados

pelo resgate de fontes documentais primárias (documentos em cartórios, fotografias, arquivos

privados) e secundárias (coleta e análise de artigos de jornais e publicações locais), pela análise

da bibliografia existente, pela consulta em vários arquivos nacionais, dados que foram

completados pela realização de entrevistas com familiares destas mulheres e demais testemunhos

da época.

O caso de Alzira Soriano destaca-se como exemplar. Pois nascida em 1897 em Jardim de

Angicos, então sede de município e prospero centro comercial no sertão do Rio Grande do Norte,

filha de um coronel muito influente na região, maior comerciante da cidade, que se beneficiava

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das “novidades” trazidas pela passagem constante de viajantes, casou-se aos 17 anos com o

promotor Thomaz Soriano, de tradicional família pernambucana. Viuva aos 22 anos, voltou a

Angicos onde torna-se o braço direito do pai na gestão da fazenda. São bastante conhecidas a

circunstâncias que levaram Alzira Soriano a aceitar disputar o cargo de prefeita, num cenário

onde misturam-se a vinda de Bertha Lutz ao Rio Grande do Norte e a presença no poder do então

Governador Juvenal Lamartine. Como Senador, aproveitando-se da elaboração da Lei eleitoral

que precisava ser adaptada à Constituição estadual, influenciou a redação da Lei n. 660, de 25 de

outubro de 1927, que dizia: “No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem

distinção de sexo, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas pela Lei”. Assim

nasceu o sufrágio feminino no Rio Grande do Norte. Cabe ressaltar que tão logo a lei 660 foi

publicada, as eleitoras começaram a se inscrever em todo o estado. Registros em cartórios

confirmam a presença de mulheres de todas as camadas sociais, principalmente urbanas. Coube a

mossoroense Celina Guimarães Vianna, o primeiro título eleitoral expedido no estado e no país.

Na eleição seguinte, ainda em 1927, dezenas de mulheres votaram pela primeira vez, elegendo

candidatos a cargos estaduais e federais. José Augusto de Medeiros, ex-governador, foi o

primeiro senador federal sufragado por votos femininos. Proclamado, eleito e empossado pela

Comissão de Poderes do Senado Federal, teve porém depurados os votos das mulheres, que ainda

não haviam sido reconhecidos oficialmente a nível nacional.

As sufragistas brasileiras, lideradas por Bertha Lutz, protestaram veemente contra a

decisão do Congresso Nacional, lançando a Declaração dos Direitos da Mulher e através de

mandados judiciais, acabaram forçando outros estados a aceitar a inscrição de mulheres em suas

folhas eleitorais. No entanto, para obter êxito, era necessário que “um presidente de Estado

furasse a cerca para que os outros fossem atrás” (SOUZA, 1993, p. 25). De novo recaiu sobre o

Estado do Rio Grande do Norte, o pioneirismo do ato político pois foi o então eleito governador

do Estado, Juvenal Lamartine, que havia incluído em sua plataforma de campanha o direito ao

voto feminino e que escolheu Alzira Soriano, para a campanha de Lages. Segundo os

testemunhos da época, Bertha Lutz se surpreendeu com a determinação da jovem Alzira, então

com 31 anos, chegando a declarar a Juvenal Lamartine:

“Esta é a mulher que estamos procurando (...) Convide-a a disputar a Prefeitura

do Município e teremos a primeira empossada num cargo eletivo no país” (citado

por SOUZA, 1993, p. 29).

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Retratar as vozes do passado significa recriar falas e discursos, tempos e ausências,

preenchendo as lacunas que existem na tessitura de nossa história social e política, embora

sabendo-se que estamos os dotando de significados alinhados com as nossas percepções de

investigadoras. Pois o trabalho intelectual nada mais é do que apreender e dar significado a esses

momentos em que a história foi construída e pensada.

É importante salientar que a maioria dos estudos históricos em nosso Estado ainda

focalizam uma abordagem da história tradicional, que oferece uma visão macro, concentrando-se

na análise dos feitos dos grandes homens, dos grandes estadistas. A história cultural por sua vez

desloca sua atenção para a história das pessoas comuns, de homens e mulheres comuns,

preocupando-se com as suas práticas culturais, suas experiências da mudança social. Nesta visão

da história cultural, todos os eventos e fatos relacionados as atividades humanas são considerados

relevantes, resgatando-se diversos tipos de práticas culturais a fim que não sejam perdidas para a

história, Segundo MORAIS (1996), é possível detectar na segunda metade do século XIX a

emergência de um conjunto de práticas articuladas (políticas sociais e discursivas) que dão

sentido ao fenômeno que pretendemos focalizar e explicar, a saber a emergência de mulheres

ansiosas em afirmar sua identidade social, criar seus próprios espaços, entender as mudanças que

afetavam o mundo a sua volta, ter um papel de destaque nesse quadro. Pois o que interessa aqui é

destacar como o substrato cultural, o acesso a livros e jornais, permitiram a mulheres se

afirmarem no cenário local e nacional.

No Rio Grande do Norte as mulheres tinham condição de se apropriar dos impressos que

circulavam nos livros e jornais, pois multiplicaram-se as livrarias, os jornais. A emergência dos

primeiros jornais femininos mostram a importância de se dominar a palavra, a escrita, se lutar

contra a dimensão estigmatizante e excludente da política local. As mulheres também eram

presentes nos salões, espaços de convivência entre os sexos, locais não somente de festas e

atividades elegantes mas também de acirradas discussões e conchavos políticos. Foi num desses

salões que Bertha Lutz foi recebida e onde se articulou a candidatura dela a Prefeitura de Lages.

Alias, no seu livro, CERTEAU destaca a importância da invenção desses espaços sociais e

culturais, propícios a reuniões mundanas, atividades culturais e assuntos políticos.

Analisando o material coletado, nota-se a dificuldade de construir e reconstruir a nossa

história, tendo como objetivo o resgate das vozes do passado. Vasculhar documentos em busca de

indícios das práticas políticas das mulheres nas décadas de 20 e 30 permitiu confirmar algumas

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de nossas hipóteses de trabalho e fornecer pistas de investigação novas. Por exemplo, pesquisas

realizadas sobre jornais, jornalistas e escritoras do Rio Grande do Norte na secunda metade do

século XIX e primeira metade do século XX (GOMES, 1999) permitem mostrar a importância

dos jornais como formadores de opinião, principalmente junto ao público feminino a quem

estavam destinados. Pois os jornais femininos não serviram somente como canal de expressão das

vocações literárias das mulheres mas também de porta voz de suas aspirações e reivindicações.

Através desses jornais publicados nas várias cidades do país, mas também em cidades pequenas

do interior de cada estado, a luta pela educação das mulheres assume posição de destaque.

Exemplos dessas posições assumidas por mulheres encontram-se nos artigos do Jornal “A

Esperança” , estudando de modo aprofundado por GOMES (1999): foi editado por um grupo de

mulheres liderado pelas jovens Izaura Carrilho e Dolores Cavalcanti, na cidade de Ceará-Mirim,

no estado do Rio Grande do Norte. No entanto, não era uma exceção pois haviam muitas folhas,

muitos jornais femininos circulando não somente em Natal, sob a responsabilidade de Carolina

“Mariquinha” Wanderley e Palmyra Wanderley, mas em cidades importantes do interior, como

Assu, terra das professoras Alice e Maria Carolina “Sinhazinha” Wanderley, Macau, terra de

Dulce Avelino e Olda Avelino, Mossoró, terra de Maria Sylvia Regina, Caicó, cidade de

Georgina Pires e Dolores Diniz. Embora, como diz BUITONI, “no espelho da imprensa

feminina, as imagens e as verdades são muitas” (1981, p. 19), todos esses documentos mostram

como a luta pela educação das mulheres tornou-se um terreno fértil para o movimento de

emancipação das mulheres no Rio Grande do Norte. Citando edição de 15 de abril de 1909, as

editoras do Jornal “A esperança” incentivavam a mulher a

“cultivar a espírito como o coração . Inimigos do progresso e da virtude são os que entendem que só assim ela se dedica a família (...) Propague-se a idéia luminosa da educação intelectual da mulher, rasgue-se o véu da ignorância, não para desviá-la da virtude mas para que ela seja útil à Pátria, à sociedade e à família”(Citado por GOMES, 1999, p. 12).

A maioria dos jornais femininos assumia pois uma posição de vanguarda na processo de

mudança do quadro político no brasil, no intuito de “fazer curvar a fronte daqueles que

pretendem negar a mulher as mesmas faculdades intelectuais que possui o homem; não somente

apta para ser mãe e para cozinha (...) aqueles que rebaixam o sexo feminino (...) considerando a

mulher um autômato incapaz de pensar, criar e decidir” (citado por MORAIS; 1996, p. 131). No

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Rio Grande do Norte, o primeiro periódico feminino impresso é o “Jornal das Moças” que

circulou de 1926 a 1932. Editado por Georgina Pires e gerenciado por Dolores Diniz, este jornal

tipo tablóide foi impresso em papel jornal com folhas soltas dobradas em formas de caderno,

tinha um projeto gráfico definido e mantinha uma redação permanente, sendo a distribuição

assegurada por assinatura e venda avulsa.

Durante a coleta de dados bibliográficos, registrou-se a escassez de livros específicos

sobre a participação das mulheres na vida pública do Rio Grande do Norte. Alguns estudos mais

significativos sobre a mulher brasileira foram feitos de modo tradicional, salientando a

participação feminina no seu contexto de exceção no Brasil (HAHNER, 1981) ou numa visão

assume o papel do “grande homem”, isto é seu papel não era colocado numa ótica de gênero. É o

caso do estudo de RODRIGUES, (1981). Este autor trouxe uma contribuição para a história das

mulheres nas décadas de 20 e 30, mostrando detalhadamente a visão da história oficial,

beneficiando as personalidades masculinas envolvidas no processo, ocultando as mulheres, numa

produção onde impera o fenômeno de “gender blind” (cegueira de gênero).

A equipe de pesquisadoras procurou suprir as lacunas existentes no levantamento

bibliográfico, através de coleta sistemática de documentos, monografias, teses e artigos, nos

acervos das bibliotecas ou departamentos principalmente de História mas não exclusivamente) da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte, situada em Natal, capital do Estado do Rio

Grande do Norte e maior cidade do estado, na costa Leste, e da Universidade Estadual do Rio

Grande do Norte, com sede em Mossoró, segunda cidade do Estado e capital da região Oeste.

Esse levantamento mostrou que a participação da mulher na vida pública ainda é tema

pouco pesquisado, devido a restrições dos historiadores locais em enveredar pelo estudo de uma

História das Mulheres nos moldes preconizados por DUBY (1991) ou PERROT (1988). Do

mesmo modo, a história social e cultural ainda é pouco prestigiada nos departamentos das

Universidades visitadas, enquanto se dá preferência a história econômica ou de fatos analisados

de modo tradicional. O que faz deste trabalho da equipe de pesquisadores e pesquisadoras do

NEPAM um trabalho pioneiro ao mesmo tempo que abre um espaço na academia em favor de

novas modalidades de escrita da história (BURKE, 1992 ; CHARTIER, 1990), mas também das

ciências humanas e sociais. A busca dos arquivos não acabou. Ainda precisam ser vasculhados

arquivos privados e acervos de bibliotecas particulares que só muito recentemente foram abertas

a consultas. Alguns destes acervos ainda não estão organizados, dificultando a apreensão do

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caminho a trilhar para dar continuidade a essa linha de pesquisa, que trata do resgate das

mulheres na vida pública do Rio Grande do Norte, no século XX, o que leva a questionar as

relações tumultuadas e até conflitantes entre a necessidade epistemológica de construção do

conhecimento, o papel da memória e a história da cidade.

Bibliografia citada

AUAUD, Sylvia Maria V. Venturoli. Mulher: cinco séculos de desenvolvimento na América – capítulo Brasil. Belo Horizonte : Federação Internacional de Mulheres de Carreira Jurídica, 1999. BUITONI, Dulcília Helena S. Mulher de papel. A representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo : Loyola, 1981. BURKE, Peter. (Org). A escrita da história. Sâo Paulo : UNESP, 1992. CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro : Vozes, 1982. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro : Bertrand do Brasil, 1990. DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta: vida e obra. Natal: EDUFRN/NEPAM, 1995. DUBY, Georges. PERROT, Michelle (Org). História das mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1991. GOMES, Otêmia Porpino. Imprensa feminina: o Jornal “a Esperança” 1903 – 1909. Dissertação (Mestrado em Educação). Natal : UFRN, 1999. HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850 – 1937. São Paulo : Brasiliense, 1981. MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. Leituras femininas no século XIX (1850-1900). Tese de Doutorado. Faculdade de Educação. Campinas (SP) : UNICAMP, 1996. OLIVEIRA, Giovan A Paiva de. A elite política e as transformações no espaço urbano: Natal 1889-1913. Dissertação (mestrado em Ciências Sociais). Natal : UFRN, 1997. PEREIRA, Nilo. A mulher segundo Henrique Castriciano. In: Folhas de Relva. Revista da Escola Doméstica, ano 2, n.2, set. 1999. PERROT, Michelle. Os excluídos da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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______. Mulheres públicas. São Paulo: UNESP, 1998. QUINTANEIRO, Tânia. Retratos de mulher: o cotidiano feminino no Brasil sob o olhar de viageiros do século XIX. Petrópolis: Vozes, 1995. RODRIGUES, João Batista Cascudo. A mulher brasileira: direitos políticos e civis. Brasília: Senado Federal, 1981. SOARES, Jamilson Azevedo. Fragmentos do passado: uma (re)leitura do urbano em Natal na década de 20. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Natal : UFRN, 1999. SOUZA, Heloísa Maria G.P. Luisa Alzira Teixeira de Vasconcelos : primeira mulher eleita prefeita na América do Sul, Natal : EDUFRN, 1993. TOSCANO, Moema. GOLDENBERG, Mirian. A revolução das mulheres: um balanço do feminismo no Brasil. Rio de Janeiro : Revan, 1992.