882799_Limites Da Linguagem - Eliane Brum

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    Limites da linguagemUma história em que faltam cada vez mais palavras

     A entrevista estava marcada na casa dele, numa das favelas mais pobres deFortaleza. Era o dia do jogo do Brasil contra o México, e o menino com nomede poeta fazia parte de uma seleço !ue jogou a "opa do Mundo dos Meninosde #ua. $e man% bem cedo, eu e o fot&grafo esper'vamos, na porta de uma()* ainda fec%ada, o educador !ue nos levaria até a!uele emaran%ado deendereços desencontrados, um territ&rio dividido por duas !uadril%as rivais dotr'fico de drogas. ( menino apareceu de repente, vestido com uma camisetado Brasil. +em ol%ar para mim, ele disse -)a min%a casa, no. )o dizia opor!u/. Apenas sacudia a cabeça em sinal de negativa expl0cita. Ele erape!ueno para os seus 12 anos, mas o seu -no era enorme.

     A porta da ()* abriu, e ele entrou. +entou3se na cadeira da recepço e tentouligar o computador. Me agac%ei ao lado dele e arris!uei algumas perguntas. Eles& me atirava monoss0labos. 4assou3se muito tempo, talvez !uase uma %orade sil/ncios entre n&s, interrompidos por uma ou outra palavra !ue servia aomenino apenas como demarcaço do territ&rio. ( territ&rio !ue ele no !ueria!ue eu alcançasse, as palavras curtas marcando !ue no %averia palavraslongas. Eu no sabia se tin%a o direito de continuar ali, talvez nunca saiba. Masele também no ia embora. Ficamos os dois, eu tentando entrar, ele seesforçando para !ue eu no entrasse, o !ue era uma forma de conexo, j' !uenos mantin%a ambos ali.

    Ento a cozin%a da ()* abriu. E, de um salto, ele j' estava l'. "omo se eufosse um vira3lata es!uecido, me c%amou com displic/ncia. Mas continuavasem me ol%ar. +entei3me diante dele e o vi devorar um po em menos de umminuto. )o segundo po, ele me enxergou pela primeira vez. Me ofereceu umpedaço. A certa altura, parecendo com pena de mim, disse3 5oc/ entende s& um pouco de portugu/s, né6

    ( menino tin%a razo. Eu no falava o portugu/s dele, como conto nareportagem !ue escrevi. )o alcançava a ri!ueza da sua l0ngua portuguesa,!ue dava conta de um Brasil diverso, com palavras nascidas ali mesmo.Express7es gestadas na necessidade de dar conta de uma realidade na !ualera necess'rio, por exemplo, nomear o momento3limite em !ue o gatil%o daarma é acionado, mas a bala no sai.

    Mas era mais do !ue isso. Eu demorei a l/3lo. Eu era analfabeta dele. ( seu-no da altura de um edif0cio, a postura do seu corpo, entre acuada e prontapara saltar no meu pescoço, o seu medo de mim, !ue 8s vezes beirava a raiva,era fome. Algumas vezes me deparei com essa fome, a fome !ue é umsubstantivo sem adjetivo poss0vel. E em todas elas foi dif0cil para mimrecon%ec/3la, por!ue esse alfabeto, irredut0vel e irrepresent'vel, me éinacess0vel.

    http://www1.folha.uol.com.br/esporte/folhanacopa/2014/06/1471524-vinicius-atleta-da-selecao-de-meninos-de-rua-salta-para-escapar-da-morte.shtmlhttp://www1.folha.uol.com.br/esporte/folhanacopa/2014/06/1471524-vinicius-atleta-da-selecao-de-meninos-de-rua-salta-para-escapar-da-morte.shtmlhttp://www1.folha.uol.com.br/esporte/folhanacopa/2014/06/1471524-vinicius-atleta-da-selecao-de-meninos-de-rua-salta-para-escapar-da-morte.shtml

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    ( menino me leu muito antes de eu a ele. 4ercebeu !ue eu era estrangeira aoseu Brasil. Estran%ou a cor da min%a pele, a tonalidade do meu cabelo, a formae o som das min%as palavras. Estran%ou !ue eu precisasse de traduço paraalgumas de suas frases. Estran%ou por!ue %avia !ue estran%ar."ontei essa %ist&ria, na verso resumida de um par'grafo, em min%a

    participaço na F9:4 ;Festa 9iter'ria de 4arat

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    )um desses dias abri um livro de (ctavio 4az. A ep0grafe é um texto do poetaespan%ol Antonio Mac%ado. Evoca a resist/ncia do -outro diante das tentativasde torn'3lo o -mesmo.

    -( outro no existe essa é a fé racional, a crença incur'vel da razo %umana.:dentidadeDrealidade, como se, afinal de contas, tudo tivesse !ue ser, absolutae necessariamente um e sempre o mesmo. Mas o outro no se deixa eliminarsubsiste, persiste é o osso duro de roer no !ual a razo %umana perde osdentes.

    m livro é como o m&vel3geladeira do menino com nome de 4oeta !ue metratou como 4essoa. +e abrir, o risco é seu. E é para sempre.

    Eliane Brum é escritora, rep&rter e documentarista. Autora dos livros de no ficço ColunaPrestes - o Avesso da Lend a, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada,

    Meus esa!onte!imentos e do romance "ma uas. +ite elianebrum.com Emailelianebrum.colunaGgmail.com HIitter Gbrumelianebrum

    mailto:[email protected]:[email protected]://twitter.com/brumelianebrummailto:[email protected]://twitter.com/brumelianebrum