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2 A revolução, 1917-1921 Nenhum acontecimento desde a Revolução Francesa ocasionou tama- nha efusão de estudos históricos e tanto debate apaixonado como a Revo- lução Russa. O interesse e o empenho são compreensíveis, porque as questões são complexas e a parada elevada. A revolução não foi apenas um acontecimento importante na história da Rússia, transformando uma sociedade antiquada e alterando o modo de vida de milhões de pessoas, foi também um catalizador no desenvolvimento do nosso mundo. Para o bem ou para o mal, a interpretação da revolução não ficou confinada aos historiadores; pessoas de todos os segmentos do espectro político sempre tiveram consciência da importância política da historiografia. Todos os aspectos da revolução já foram bem analisados pelos histo- riadores, mas nenhum recebeu tanta atenção como a história do movi- mento revolucionário. Isso é compreensível: os revolucionários que lutaram contra o repressivo regime czarista mostraram-se com frequência dispostos a sacrificar a vida por uma causa em que acreditavam profunda- mente. Muitos foram homens e mulheres extraordinários, e as suas histó- rias são fascinantes. No entanto, talvez seja um erro procurar uma expli- cação para a revolução no trabalho de subversivos clandestinos; porque nem o governo czarista nem o governo provisório foram derrubados 29

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A revolução, 1917-1921

Nenhum acontecimento desde a Revolução Francesa ocasionou tama-nha efusão de estudos históricos e tanto debate apaixonado como a Revo-lução Russa. O interesse e o empenho são compreensíveis, porque asquestões são complexas e a parada elevada. A revolução não foi apenasum acontecimento importante na história da Rússia, transformando umasociedade antiquada e alterando o modo de vida de milhões de pessoas,foi também um catalizador no desenvolvimento do nosso mundo. Para obem ou para o mal, a interpretação da revolução não ficou confinada aoshistoriadores; pessoas de todos os segmentos do espectro político sempretiveram consciência da importância política da historiografia.

Todos os aspectos da revolução já foram bem analisados pelos histo-riadores, mas nenhum recebeu tanta atenção como a história do movi-mento revolucionário. Isso é compreensível: os revolucionários quelutaram contra o repressivo regime czarista mostraram-se com frequênciadispostos a sacrificar a vida por uma causa em que acreditavam profunda-mente. Muitos foram homens e mulheres extraordinários, e as suas histó-rias são fascinantes. No entanto, talvez seja um erro procurar uma expli-cação para a revolução no trabalho de subversivos clandestinos; porquenem o governo czarista nem o governo provisório foram derrubados

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por revolucionários, nem mesmo por operários e camponeses insa-tisfeitos.

Talvez seja mais útil pensar nos acontecimentos de 1917 como ocolapso de dois sistemas de governo diferentes, primeiro o autocrático edepois o liberal. As questões decisivas não eram saber por que razão ostrabalhadores estavam descontentes e exactamente o que queriam, mascomo e por que razão diferentes formas de governo se desintegraram.Segundo esta perspectiva os acontecimentos revolucionários foram amanifestação de uma crise de autoridade. A questão fundamental erapolítica: de que forma podia a Rússia ser governada? Conclui-se destainterpretação da revolução que o sucesso bolchevique em Outubro não foinem o apogeu nem o termo da revolução, mas o ponto mais baixo da crise.A questão de se saber que forma de governo era necessária para a Rússiaem circunstâncias excepcionalmente difíceis só seria verdadeiramenteresolvida pela guerra civil.

A REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO

Os acontecimentos que vieram a ser chamados «revolução de Feve-reiro» podem ser brevemente resumidos. A 23 de Fevereiro de 1917 – DiaInternacional da Mulher – os operários das fábricas de têxteis, na suamaioria mulheres, entraram em greve e fizeram uma manifestação exi-gindo pão. Eles sabiam que a cidade tinha uma reserva de farinha queduraria apenas dez dias. Aos primeiros manifestantes depressa se junta-ram os trabalhadores das metalurgias, incluindo os das enormes oficinasde Putilov, a mais importante fábrica de armamento de Petrogrado. Nadahavia de particularmente novo ou extraordinário nas greves e mani-festações, que eram cada vez mais frequentes; e a princípio as autoridadesnão se mostraram excessivamente preocupadas. Acreditavam que osdistúrbios tinham sido causados apenas por preocupações relativamenteao fornecimento de víveres e que seriam capazes de reprimir qualquerpossível sublevação. As manifestações, contudo, não só continuaramcomo atraíram cada vez mais participantes, e os seus slogans adquiriramum cunho cada vez mais político.

A 24 de Fevereiro, segundo os registos policiais, existiam entre150.000 e 200.000 manifestantes, a maior acção do género na cidade

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desde o início da guerra. No dia seguinte havia ainda mais gente nas ruas,e os observadores notaram uma relutância crescente entre os cossacos,defensores tradicionais da autocracia, em dispersar as multidões. Então asautoridades ficaram alarmadas. O czar, do quartel-general do seu exércitoem Mogilev, telegrafou ao infeliz comandante militar da cidade, o generalSergei Khabalov, ordenando-o «a pôr fim às desordens a partir deamanhã».

O dia 26 de Fevereiro, um domingo, foi o momento decisivo: ossoldados, que durante dias se haviam misturado livremente com asmultidões, tinham agora ordens para atirar a matar. Embora dezenas delíderes dos trabalhadores fossem presos e, pelo menos durante um breveperíodo, a cidade ficasse mais calma, sobreveio uma quebra fatal na von-tade dos soldados de obedecer à ordem do czar. Durante os dias seguintesPetrogrado mergulhou na anarquia. Um número ainda maior de soldadosjuntou-se aos revolucionários e em dois dias quase nada restava daguarnição militar da cidade. A ausência de autoridade levou a tiroteios ematanças indiscriminadas.

A 27 de Fevereiro, o último governo czarista, chefiado pelo príncipeNikolai Golitsyn, demitiu-se. No dia seguinte o czar demitiu o generalKhabalov, que perdera o sangue-frio e não fora capaz de pacificar acidade, e nomeou um general idoso, Nikolai Ivanov, ditador militar daPetrogrado. Mas era obviamente demasiado tarde: Ivanov não tinha quais-quer forças leais à sua disposição, e o destino da ordem czarista estavatraçado. Ao perceber que não podia esperar qualquer apoio do exército,Nicolau abdicou a 2 de Março a favor do seu irmão Miguel, que, temendopela vida, não aceitou. No dia 3 de Março, o domínio de três séculos dadinastia Romanov chegava ao fim.

O descontentamento que culminou em greves e manifestações não foiinesperado. Afinal, a Rússia já conhecera uma vaga revolucionária entre1905 e 1907, e os outros países beligerantes também sofriam as conse-quências do conflito civil, à medida que o custo da guerra se tornava cadavez mais evidente. No entanto, o momento e a facilidade com que o sis-tema imperial se desmoronou foram surpreendentes. Leon Trotsky, exce-lente cronista da revolução, colocou a questão, «Quem chefiou a revolu-ção?». Concluiu que um punhado de bolcheviques lhe haviam fornecidoo necessário espírito orientador. Na sua versão da história, os trabalhado-res anónimos que tinham saído para as ruas agiam em nome dos bolche-viques. Mesmo um exame superficial mostra que esta ideia é insusten-

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tável, pois seria absurdo supor que os trabalhadores precisassem dosbolcheviques para lhes dizer que estavam com fome e cansados da guerra.Não existem quaisquer provas que demonstrem que revolucionários comconsciência de classe tivessem desempenhado um papel importantedurante aqueles dias caóticos. Mas mesmo que concedêssemos esse pontoa Trotsky, pouca diferença faria. O acontecimento importante em Feve-reiro não foi a manifestação dos trabalhadores; foi a recusa dos soldadosde obedecer às ordens. Quando a cadeia de comando e os vínculos deautoridade se quebraram, a ordem imperial desmoronou-se com uma velo-cidade espantosa.

Os soldados desafiaram os seus oficiais devido a ódios pessoais, a umsentimento de opressão e ao descontentamento com a condução da guerra.Aos seus olhos, os oficiais, o exército e, no fundo, todo o sistema czarista,tinham perdido prestígio em consequência da péssima gestão da guerra.Os regimentos mais desmoralizados tinham sido colocados na capital, eesses soldados eram os que mais animosidade sentiam contra os seus ofi-ciais. Esses regimentos, o elo fraco no exército, foram compreensivel-mente os primeiros a revoltar-se.

É mais fácil perceber o comportamento dos soldados do que o dosoficiais. A facilidade com que também estes abandonaram o seu monarcaé impressionante. O general Mikhail Alekseev, chefe do Estado-maior doczar e comandante de facto dos exércitos russos, ajudou a convencer o seusoberano a abdicar; e os generais mais poderosos, os comandantes dascinco «frentes», todos manifestaram o seu apoio aos argumentos deAlekseev. Entre as dezenas de milhar de oficiais, apenas dois comandan-tes ofereceram os seus serviços ao czar, e apenas dois homens preferiramdemitir-se a jurar lealdade ao governo provisório. Este comportamentoprecisa de uma explicação. Com toda a certeza, a maioria dos oficiais, setivesse opinião política, era monárquica. Na Primavera de 1917, contudo,pareceu-lhes que ir em auxílio do czar conduziria à guerra civil, e que issocomprometeria seriamente o esforço nacional para resistir ao inimigoestrangeiro. A guerra afigurava-se decisivamente importante para os ofi-ciais. Afinal, em três anos de combates tinham sacrificado milhões dosseus compatriotas – tinham de acreditar na importância daquela guerrapara preservar a sua sanidade mental.

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O DUPLO PODER

Os Russos receberam o fim do czarismo com entusiasmo. Embora arevolução não resolvesse os problemas controversos que a nação enfren-tava, pelo menos durante algum tempo ela criou uma aparência deunidade. Grupos diferentes podiam interpretar os acontecimentos à suamaneira e, por um tempo, expectativas e objectivos contraditóriospuderam coexistir pacificamente: alguns esperavam que a revoluçãoapressasse o fim da guerra; outros tinham a esperança de que um exército«democrático» combatesse melhor.

O governo do czar enfrentara dois inimigos: os operários e os sol-dados – camponeses de uniforme – revoltando-se contra a opressão, e osliberais, que tinham perdido a confiança na capacidade do governo paradefender os interesses da nação. Os que queriam uma revolução social eaqueles cujos objectivos se circunscreviam à reforma política tinhamcolaborado durante algum tempo numa aliança difícil. Com o desapareci-mento do czarismo, estas duas forças sociais, socialistas e liberais, esta-beleceram instituições independentes.

A Duma, o parlamento russo, tinha sido eleita pela última vez em1912 com base num sufrágio restritivo. Embora os seus membros repre-sentassem quase exclusivamente a Rússia privilegiada, a Duma tornou-seapesar disso o melhor fórum para criticar as políticas do czar e do seugoverno. Eminentes políticos tinham exigido repetidas vezes um governoresponsável perante a assembleia e uma democratização geral (emboralimitada) do sistema político. Antes de se demitir, o último governoczarista interrompeu os trabalhos parlamentares, e os deputados não seopuseram às autoridades. Uma assembleia não oficial de deputados reali-zou-se a 27 de Fevereiro, na qual os representantes da direita se recusarama participar. Esta assembleia elegeu uma comissão provisória que viria adar origem ao futuro governo provisório. Criou-se assim uma situaçãoparadoxal: a burguesia liberal, cujo ponto de vista estava representado nonovo governo, não só não fez a revolução, como na verdade temia-a. Amaioria dos políticos liberais esperava que a monarquia pudesse serpoupada, de uma maneira ou de outra. Como cidadãos respeitáveis, nãotoleravam a revolução social, nessa altura uma ameaça cada vez maispalpável.

Contrariamente ao desejo da maioria dos liberais, o czar abdicou a 2de Março, e a comissão provisória constituiu-se em governo para impedir

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a anarquia. Os liberais consideravam-se sucessores naturais do defuntogoverno, e esperavam permanecer no poder até que uma AssembleiaConstituinte pudesse ser convocada. Uma vez que a assembleia que ele-gera a comissão provisória não tinha sido oficial, e os ministros se haviammais ou menos nomeado a si mesmos, a legitimidade do governo provi-sório era posta em causa. Para os políticos liberais, que acreditavam nodomínio da lei, isso era uma desvantagem significativa.

O novo governo da Rússia era dominado por pessoas que tinhamcriado as suas reputações na Duma durante e antes da guerra, exigindoreformas liberais. Os políticos dos dois principais partidos liberais, osKadets e os Outubristas, que se situavam um tanto à direita, receberam aspastas mais importantes. O príncipe Georgi Lvov, político independentealgo apagado e ex-presidente da União de Zemstva, tornou-se primeiro--ministro; como outubrista, Aleksandr Guchkov, o principal porta-voz naDuma de assuntos de defesa, tornou-se ministro da Defesa; e PavelMiliukov, eminente historiador e líder dos Kadets, assumiu a pasta dosNegócios Estrangeiros.

O outro centro de poder que viria a dominar a paisagem políticadurante os meses seguintes era o Soviete dos Deputados dos Trabalha-dores de Petrogrado. O soviete foi constituído quase ao mesmo tempo quea comissão provisória da Duma. Embora no início, em 1905, os sovietes,incluindo o mais importante em Sampetersburgo, fossem organizaçõesgenuinamente operárias, os intelectuais socialistas radicais tinham aospoucos vindo a desempenhar um papel dominante nas mesmas. O mesmofenómeno ocorreu em 1917. A princípio, os líderes Socialistas Revolucio-nários e Mencheviques eram os mais influentes. A importância do Sovietede Petrogrado era desproporcional ao número de soldados e operários querepresentava, porque tinha a capacidade de fazer pressão sobre o governo.Era uma organização livre, que a dada altura tivera mais de 3500 repre-sentantes. A sua actuação era fortuita. Devido ao grande número de dele-gados e aos procedimentos desorganizados, o comité executivo adquiriuuma influência preponderante. Mas dentro de pouco tempo até mesmoeste comité atingiu um tamanho incomportável de mais de 50 pessoas. Eraatravés do comité executivo que os políticos socialistas exerciam a suainfluência sobre os genuínos representantes dos operários e dos soldados.

Aleksandr Kerenski, político Socialista Revolucionário moderado edeputado da Duma, foi eleito um dos dois vice-presidentes do Soviete dePetrogrado. Sem autorização explícita do Soviete, aceitou também a pasta

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da justiça no governo, tornando-se assim a única pessoa com um pé emambos os campos, facto que o levou a adquirir importância e poderdurante os meses seguintes. Kerenski, orador competente e carismático,conquistou rapidamente um séquito de seguidores nas circunstânciasrevolucionárias.

No dia 1 de Março, o Soviete de Petrogrado emitiu a sua famosa«Ordem n.º 1», segundo Trotsky, o documento mais valioso da revoluçãode Fevereiro. Embora a ordem se dirigisse apenas à guarnição militar dePetrogrado, o seu impacto depressa se fez sentir no exército inteiro.Apelava aos soldados para formar sovietes em todas as unidades militaresaté ao nível das companhias; pedia aos soldados para obedecer às ordensda Comissão Militar da Duma (o governo provisório ainda não tinha sidoconstituído) apenas se as mesmas não contrariassem as ordens do Sovietede Petrogrado; aboliu as antigas formas de tratamento dos oficiais; econferiu aos soldados todos os direitos de cidadania, incluindo a partici-pação plena na política, quando não estavam de serviço.

Embora esta ordem tivesse sido sem dúvida redigida num espíritohostil aos oficiais; o seu alcance não deve ser exagerado. Exprimia a hos-tilidade que os soldados sentiam, não a criou. Em Fevereiro de 1917, osoficiais perderam o domínio dos seus soldados, e nunca conseguiramrestabelecer a sua autoridade. A maioria dos oficiais acreditava que tinhasido a Ordem n.º 1 a maior responsável pela destruição da capacidade decombate do exército. Em vez de avaliarem a situação com realismo, pre-feriram culpar os socialistas pelas suas frustrações.

Assim, da revolução de Fevereiro surgiu uma singular ordem cons-titucional. O país tinha agora um governo que foi rápida e entusiastica-mente reconhecido por todas as potências aliadas estrangeiras. Essegoverno tomou conta da velha máquina administrativa do Estado czaristasem dificuldade e tinha, pelo menos por enquanto, o apoio do altocomando do exército. O governo, contudo, tinha menos poder efectivo doque o Soviete dos Deputados dos Trabalhadores e Soldados de Petro-grado. Embora os políticos socialistas do soviete não dirigissem de modonenhum a revolução, ainda assim a maior parte dos trabalhadores e solda-dos de Petrogrado, e pouco depois o país inteiro, reconhecia aquela insti-tuição como sua. O soviete de Petrogrado, ao contrário do governo provi-sório, podia apelar aos trabalhadores e soldados para se manifestarem elevaram a cabo acções revolucionárias. Os ministros compreendiam bemque detinham os seus cargos com a tolerância dos socialistas do soviete.

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A questão põe-se: porque é que os socialistas moderados não toma-ram todo o poder quando os seus opositores não se encontravam em boascondições de resistir? Lenine tinha sem dúvida razão quando poucodepois os acusou de timidez. Os socialistas, muitos acabados de sair daprisão, tinham dificuldade em imaginar-se como ministros; para elesparecia natural que se devesse confiar o poder aos liberais. Faltava-lhesaquele desejo de poder que Lenine tão claramente possuía. Além disso, osmencheviques, pelo menos, eram influenciados por crenças marxistasfortemente arraigadas, segundo as quais a Rússia estava pronta para selibertar dos restos do feudalismo e tomar o caminho do desenvolvimentocapitalista mas não ainda para uma revolução socialista.

A discórdia não podia deixar de surgir entre os que detinham autori-dade mas nenhum poder, enquanto os que podiam comandar os operáriose os soldados mas não tinham qualquer responsabilidade formal.

OS PROBLEMAS DO GOVERNO PROVISÓRIO

Os liberais encontraram-se numa situação irónica: as forças que oscolocaram no poder acabaram por os destruir. O governo czarista falhouporque a Rússia não podia ser governada durante uma guerra modernacom base nos princípios em que a elite czarista acreditava. No entanto, em1917, era também impossível criar instituições governamentais com baseem princípios liberais. Os problemas que o país enfrentava eram dema-siado grandes, e não havia qualquer consenso sobre como abordá-los; aexperiência liberal estava por isso condenada ao fracasso. Embora osmembros do governo provisório possam ser criticados por cometer errose hostilizar desnecessariamente vários grupos políticos importantes, éimpossível imaginar, mesmo retrospectivamente, que políticas, coerentescom as suas crenças profundas, lhes teriam permitido conservar o poder.O governo provisório caiu porque foi incapaz de resolver as questõesurgentes do momento; a guerra, a reforma agrária e a autonomia para asminorias nacionais.

De entre estas questões, a da participação na guerra era a mais ime-diata e difícil. As classes instruídas e privilegiadas da Rússia e as grandesmassas tinham conceitos diferentes de patriotismo. Os soldados campo-neses estavam cansados de combater numa guerra que se arrastava havia

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três anos, sem fim à vista. A ideia do interesse nacional, cara aos coraçõesdos liberais, fazia pouco sentido para os soldados. Eles pouco se inte-ressavam em tornar Constantinopla russa, ou no carácter sagrado dos tra-tados internacionais. Por outro lado, os membros do governo provisório,que representavam as classes privilegiadas, acreditavam firmemente quea Rússia tinha de permanecer fiel aos seus aliados. Os oficiais no exércitoe os políticos não foram capazes de perceber o grau de descontentamentoentre os soldados camponeses, como antes o governo czarista não foracapaz de reconhecer o estado de espírito do povo.

Durante 1917 as crises políticas sucederam-se umas às outras, e emtodas a questão fundamental era o esforço de guerra da nação. Os mem-bros do primeiro governo provisório estavam tão decididos quanto ogoverno czarista a levar a guerra a uma conclusão vitoriosa. Entre aposição dos soldados e trabalhadores cansados da guerra e a do governoprovisório encontrava-se o Soviete de Petrogrado. As principais figurasdo soviete reconheciam que a guerra não podia acabar com o abandonopuro e simples do campo de batalha por parte dos soldados Russos. Elesassumiam uma posição «defensiva»: concordavam com a continuação daguerra enquanto o solo russo estivesse ocupado, mas opunham-se a umapolítica de anexar territórios estrangeiros e exigir indemnizações aosderrotados.

O governo provisório e os líderes soviéticos têm sido responsabiliza-dos pelos historiadores por não terem posto fim à guerra. É verdade quetodos os políticos liberais e muitos socialistas acreditavam na importânciada guerra e nada fizeram para acabar com ela. Por outro lado, mesmo quequisessem, é muito pouco provável que o tivessem conseguido. Comodemonstrou a experiência dos bolcheviques em 1917, os Russos nãopoderiam ter obtido dos Alemães condições de paz aceitáveis para os poli-ticamente poderosos. Os Alemães julgavam-se vitoriosos e não estavamdispostos a negociar.

A primeira crise política surgiu em Abril. O ministro dos NegóciosEstrangeiros, Miliukov, escreveu aos governos aliados informando-lhesque a Rússia cumpriria todos os seus compromissos e lutaria até uma«vitória decisiva». A publicação desta nota nos jornais provocou umaonda de indignação. A política do governo contradizia os princípios anun-ciados pelos líderes do soviete, que consideraram a publicação da notauma provocação. Os manifestantes nas ruas e o Soviete de Petrogradoobrigaram Miliukov a demitir-se, e o ministro da Defesa, Guchkov,

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seguiu-o pouco depois. Um novo governo de coligação teve de ser for-mado, com uma composição diferente: incluía seis membros socialistas,entre eles Kerenski, que passou a assumir a importante pasta da Defesa.Os acontecimentos de Abril mostraram que o governo provisório nãopodia agir sem o apoio explícito do Soviete de Petrogrado.

A crise seguinte ocorreu em Junho, quando Kerenski deu início a umagrande e precipitada ofensiva. Ele tinha dois móbeis: em primeiro lugar,o Alto Comando russo antes da revolução de Fevereiro prometera aosaliados que empreenderia operações militares activas para facilitar umavanço há muito esperado na frente Ocidental. Em segundo lugar,Kerenski evocou a experiência da Revolução Francesa, quando as tropasda França democrática combateram com êxito a coligação de Estadosautocráticos; ele acreditava que uma ofensiva bem sucedida contribuiriapara reacender o espírito de combate no exército. A ofensiva redundounum desastre. Após alguns êxitos iniciais e locais dos Russos, os Ale-mães, que tinham sido avisados, fizeram recuar os atacantes com facili-dade, infligindo-lhes pesadas baixas. Manifestamente, as desmoralizadastropas russas não estavam em condições de levar a cabo operaçõesofensivas com sucesso. Kerenski, que esperara colher vantagens políticasdo êxito militar, teve na realidade de pagar um elevado preço pelofracasso.

No início de Julho ocorreram graves distúrbios em Petrogrado. Pelaprimeira vez, os soldados e os trabalhadores da cidade revelaram-se maisradicais do que a chefia socialista do Soviete. Os problemas começaramquando um regimento, temendo ser enviado para a frente, se amotinou.Depressa os trabalhadores se juntaram aos soldados, e durante algumtempo a sobrevivência de todo o duplo sistema de governo esteve emdúvida. O governo, apoiado pela liderança do soviete, conseguiu enviartropas frescas para Petrogrado e restabelecer a ordem. Em consequênciadeste incidente, o príncipe Lvov demitiu-se e Kerenski tornou-se final-mente primeiro-ministro.

Algumas semanas depois foi a vez da direita tentar alterar a ordempolítica vigente na Rússia através da força. Em Julho, Kerenski nomeouLavr Kornilov comandante-chefe das forças armadas russas, em grandeparte porque o general prometeu restabelecer a ordem entre as tropas des-moralizadas. Os militares estavam cada vez mais descontentes com orumo dos acontecimentos. Acusavam o governo de não ter tomado medi-das enérgicas contra os «agitadores» e suspeitavam de traição entre os

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líderes do soviete. O novo comandante-chefe decidiu resolver pessoal-mente o assunto. Enviou tropas para Petrogrado para dispersar o soviete.Quando o primeiro-ministro lhe pediu para renunciar ao comando, elerecusou-se. O erro do general Kornilov não foi só amotinar-se – pior doque isso, ele geriu mal a sua revolta. Sobrestimou as suas forças; não con-duziu pessoalmente as tropas e não se preparou devidamente assegurandoo apoio dos grupos conservadores. O fracasso da sua empresa foi rápido ecompleto: os soldados não obedeceram às ordens e os trabalhadores doscaminhos-de-ferro impediram os comboios de transportar as suas tropaspara a capital. Kornilov e os seus colegas amotinados foram presos.

O resultado conjunto das «jornadas de Julho» em Petrogrado e docaso Kornilov foi desastroso para o governo provisório. Os liberais e ossocialistas moderados desagradaram primeiro à esquerda e depois àdireita. Numa altura em que era evidente a ameaça de ambos os extremospolíticos, a tentativa do governo de se interpor entre forças cada vez maishostis estava condenada. A direita achava que o governo existente não eracapaz de prosseguir com êxito a guerra, e a esquerda percebeu que omesmo não conseguia ou não queria pôr fim aos combates.

Embora a incapacidade dos políticos de resolver o problema dareforma agrária não tivesse provocado crises tão espectaculares como aquestão da participação na guerra, ainda assim prejudicou a capacidade deactuação do governo. É muito mais difícil descrever a agitação camponesade 1917 do que o movimento dos operários e soldados revolucionários,porque os camponeses não possuíam uma liderança nacional que arti-culasse os seus objectivos e coordenasse acções revolucionárias. Noentanto, o papel dos camponeses em impedir a consolidação do domínioliberal foi tão importante como o dos operários.

Os camponeses há muito que se preocupavam com o desejo de terras.Quando os servos foram alforriados em 1861, receberam aproximada-mente metade da terra que tinham cultivado antes; mas esse foi um arranjoque a maioria considerou injusto – eles queriam tudo. À medida que apopulação crescia nas décadas anteriores à I Guerra Mundial, a procura deterra aumentava. Em 1917, quando a autoridade central se desmoronou, oscamponeses quiseram fazer a sua própria revolução, o que para eles signi-ficava sobretudo uma redistribuição das terras. Poucos compreendiam quemesmo a ocupação de todas as terras da nobreza não era uma solução delongo prazo: considerando os métodos de cultivo na Rússia, não haviasimplesmente terra suficiente para toda a gente que desejava cultivá-la. Os

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membros do governo, evidentemente, tinham plena consciência da impor-tância da questão da reforma agrária, e em princípio não se opunham àideia. Na prática, contudo, nada fizeram. Em primeiro lugar, levar a caboa reforma agrária em tempo de guerra, quando milhões de camponesesintegravam o exército, teria acabado com a eficiência das tropas. Os sol-dados camponeses teriam abandonado os seus regimentos para voltar àssuas aldeias e reclamar a sua parte. Em segundo lugar, o governo nãopossuía os mecanismos para empreender um processo inevitavelmentecomplexo. Em terceiro lugar, os ministros liberais partiam do princípioque os latifundiários tinham de ser compensados pela sua propriedade.Em 1917, o governo carecia obviamente dos recursos necessários paraindemnizar os que seriam expropriados. Dadas estas dificuldades, ogoverno foi defendendo que a resolução da questão agrária tinha deesperar pela convocação da Assembleia Constituinte.

Por causa desta falta de acção os camponeses voltaram-se decidida eprogressivamente contra o governo provisório. A posição do governo nasaldeias nunca tinha sido forte, mesmo no início. No tempo dos czares, osprincipais representantes do poder governamental eram os supervisores deterras – funcionários públicos nomeados que controlavam as estruturasjudiciais e policiais. Os supervisores tinham sido impopulares, e ogoverno provisório abolira o cargo. Segundo o plano de reformas, asfunções dos supervisores passariam a ser desempenhadas por comitésregionais eleitos. Estes comités, e a antiga comuna, tornaram-se os verda-deiros governantes da aldeia. Os camponeses passaram a deter um grau deautonomia sem precedentes. Infelizmente para o governo, a autonomiacamponesa não se revelou um bastião de estabilidade. Pelo contrário, asinstituições camponesas foram utilizadas para atacar a propriedadeprivada.

Existe alguma ironia em tudo isto. Durante décadas o governo czaristatinha apoiado as comunas dos camponeses na esperança de que elasfomentassem a estabilidade. Na altura da revolução, contudo, foram preci-samente as comunas camponesas que organizaram violentas ocupações deterras. As comunas eram os equivalentes dos sovietes nas cidades; semelas a revolução camponesa não teria sido bem sucedida. Antes da revo-lução, os intelectuais socialistas e liberais achavam que a comuna era umremanescente do passado em vias de extinção. Mas agora que os campo-neses detinham algum poder sobre as suas próprias vidas, estas institui-ções ganhavam um novo alento. A confiscação das terras dos grandes

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proprietários não foi feita por indivíduos, mas pelas comunas de cam-poneses, que depois dividia a terra entre os seus membros. As confisca-ções ilícitas de terras e os assaltos às propriedades dos latifundiárioscomeçaram em Maio e tornaram-se cada vez mais ameaçadoras durante oVerão. O governo não conseguia satisfazer os camponeses nem conter assuas acções revolucionárias. Não conseguia conquistar nem a fidelidadenem o respeito dos camponeses.

A terceira fonte de conflito durante o período do governo provisóriofoi o crescente desejo de autonomia das minorias nacionais. A Rússia temsido um Estado multi-étnico desde a sua fundação. As minorias, que cons-tituíam metade da população do império, eram muito diferentes entre si noque dizia respeito ao desenvolvimento económico e cultural e ao grau deconsciência nacional. Enquanto o império fosse forte, o nacionalismo dasminorias não ameaçava a estabilidade do Estado. Com a excepção dosPolacos e talvez dos Finlandeses, as aspirações nacionalistas circunscre-viam-se a pequenos grupos de pessoas interessadas sobretudo em auto-nomia cultural. Em 1917, a questão das nacionalidades ainda não tinha amesma importância urgente que as questões da paz e da terra; no entanto,prefigurava já uma grande fonte de instabilidade durante a guerra civil. Ogoverno provisório não conseguia satisfazer as crescentes aspiraçõesnacionalistas de um grande número de pessoas, nem podia reprimi-las. ARússia imperial era um domínio multinacional; os Russos constituíamapenas metade da população. Quando o Estado era forte, o desejo deautonomia das minorias raramente era ouvido. Apenas os Polacos, quetinham uma longa história de independência nacional, foram um incó-modo permanente para o governo russófilo do regime imperial. Quando oEstado começou a desintegrar-se a seguir à revolução de Fevereiro, deu-se rapidamente um aumento da consciência nacional. A maior parte daPolónia estava ocupada pelos Alemães no Verão de 1917, e por isso osPolacos não constituíam para o governo um problema imediato. Em 1917,o desafio mais difícil vinha dos Ucranianos.

Os Ucranianos criaram o seu próprio parlamento, o Rada. Os mem-bros socialistas do governo provisório mostravam-se dispostos a outorgarautonomia efectiva à Ucrânia, mas os Kadets no seio da coligação opu-nham-se, acreditando que ceder aos Ucranianos seria o primeiro passopara a desintegração do império. Foi esta divergência que levou à quedado governo de Lvov mesmo antes das jornadas de Julho, e à ascensão deKerenski ao cargo de primeiro-ministro. A questão do lugar da Ucrânia no

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espaço do futuro Estado russo democrático estava longe de se encontrarresolvida quando o governo provisório deixou de existir.

OS BOLCHEVIQUES E OS OPERÁRIOS

Em Fevereiro de 1917 existiam menos de 25 000 bolcheviques nopaís inteiro; apenas cerca de 3000 actuavam na capital. Os líderes maisimportantes encontravam-se no exílio. Os bolcheviques, obedecendo aLenine, haviam-se oposto à participação da Rússia na I Guerra Mundial,denunciando-a como imperialista. Eles apelavam à transformação doconflito internacional numa guerra civil, incitando os explorados de todoo mundo a voltar as suas armas contra os exploradores. Nessas circuns-tâncias, é compreensível que o governo czarista os tivesse perseguido deforma mais resoluta do que aos outros socialistas.

Na altura da revolução de Fevereiro, Lenine estava exilado na Suíça.Iosif Estaline e Lev Kamenev foram os primeiros líderes a regressar aPetrogrado do seu exílio siberiano e a dirigir a política do Partido. A suaorientação era moderada. Reconhecendo a fraqueza da sua posição, nãoviram outra alternativa senão trabalhar com os mencheviques e os socia-listas revolucionários no Soviete de Petrogrado e desse modo aceitarimplicitamente colaborar com o governo provisório.

Essa orientação era impensável para Lenine. Nem por um momentoele se deixou seduzir pela ideia da unidade socialista. Aceitou a ofertaalemã de o ajudar a regressar ao seu país através de território alemão,apesar de saber que essa aparente colaboração com o inimigo em tempode guerra implicava riscos políticos. Os Alemães deixaram-no regressar acasa, acreditando que a presença dele na Rússia contribuiria para adesintegração do governo. O partido de Lenine receberia mais tarde apoiofinanceiro da Alemanha. Os antibolcheviques da altura e desde entãoatribuíram grande importância a esse facto, chegando mesmo a descrevera revolução como produto da subversão estrangeira. Estas acusações nãotêm fundamento. O facto de os interesses dos bolcheviques e dos Alemãesterem coincidido temporariamente não transformou nenhuma das partesem fantoche da outra. Em primeiro lugar, a quantia de dinheiro que osleninistas receberam não podia fazer grande diferença. No que diz res-peito a recursos financeiros, os bolcheviques estavam muito pior do que

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os seus inimigos. Em todo o caso, os revolucionários acreditavam que oimpério alemão se desmoronaria dentro de pouco tempo em consequênciada vitória da revolução mundial. Os leninistas não se preocupavam com amoralidade de aceitar dinheiro dos inimigos do seu país. Acreditavam queos interesses da revolução social se sobrepunham aos interesses nacionais,e que nessas circunstâncias pouco importava qual dos campos imperia-listas beneficiaria a curto prazo das acções bolcheviques. Ironicamente,muitas das pessoas que mais clamorosamente denunciaram Lenine comotraidor não hesitaram em aceitar a ajuda dos Alemães depois da revoluçãobolchevique, comprovando desse modo a ideia: os interesses da luta declasses em certas circunstâncias sobrepõem-se aos interesses da lutanacional.

Na singular carreira de Lenine um dos momentos mais extraordiná-rios foi o seu regresso a Petrogrado após anos de exílio. Ele não se deixoucontagiar pelo entusiasmo generalizado criado pela vitória sobre oczarismo. Não estava disposto a parar, mas ansioso por seguir em frente.Logo na estação de comboio anunciou as suas famosas Teses de Abril. Oessencial era que os bolcheviques não deviam apoiar a ordem políticaexistente, mas começar imediatamente a trabalhar para derrubar ogoverno, que Lenine considerava porta-voz da burguesia. Todas as suasexigências concretas – todo o poder aos sovietes, a nacionalização daterra, o controlo operário da indústria, o fim imediato da guerra – basea-vam-se no pressuposto de que, contrariamente à análise marxista, o paísnão precisava de um período prolongado de desenvolvimento capi-talista mas que estava pronto para passar imediatamente à revoluçãosocialista.

Em Abril de 1917, o radicalismo deste programa era assombroso. Ossovietes, aos quais Lenine queria dar o poder, pertenciam aos seus inimi-gos políticos: os bolcheviques constituíam apenas pequenas minorias nosimportantes sovietes do país. No que dizia respeito à guerra, embora aideia da continuação dos combates fosse cada vez mais impopular, épouco provável que a maioria estivesse disposta a aceitar a paz a qualquerpreço. A animosidade contra os Alemães era ainda profunda. Não obs-tante, em poucas semanas Lenine conseguiu ganhar o apoio do seu par-tido. No final de Abril, o Comité Central aprovou uma série de resoluçõesno espírito do seu novo radicalismo. A seguir, Lenine conquistou o apoiode importantes líderes socialistas até então não identificados com osbolcheviques. Entre estes, o mais importante era Leon Trotsky, que aca-

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bara também de regressar do exílio. No final de Maio, a política leninistajá conquistara também o importante apoio da classe operária.

Os bolcheviques exprimiram as opiniões e sentimentos dos operáriose camponeses revolucionários, agindo no interesse destes, ou, pelocontrário, manipularam-nos para seu próprio benefício político? De entretodos os aspectos da história da revolução, o papel dos bolcheviques, ocarácter do seu partido e a sua relação com os trabalhadores, são os maiscontroversos. Durante os primeiros tempos da guerra-fria a maioria doshistoriadores ocidentais descrevia os bolcheviques como um grupo muitounido e bem organizado que durante a desordem da revolução logrouimpor a sua vontade aos trabalhadores. Segundo esta interpretação, opartido de Lenine foi essencialmente uma organização manipuladora querealizou um golpe de Estado em Outubro, sem o apoio da maioria do povorusso ou dos trabalhadores. Os historiadores Russos pós-soviéticos tam-bém se inclinam para este ponto de vista (1).

Outros estudiosos mais recentes, muitos inspirados pela teoria mar-xista, adoptaram uma abordagem diferente. Eles salientam o radicalismoinato das classes trabalhadoras. Segundo a sua opinião, durante o combaterevolucionário os trabalhadores adquiriram consciência de classe epassaram a apoiar o Partido Bolchevique porque este representava os seusinteresses. Os acontecimentos de Outubro, portanto, devem ser vistoscomo uma genuína revolução proletária (2).

É evidente que durante 1917 as classes trabalhadoras se radicaliza-ram. Esta radicalização ocorreu em grande parte devido à deterioração daeconomia. Os trabalhadores começaram a perceber, com cada vez maisclareza, que o governo provisório não os podia ajudar nem resolver osproblemas do país. Achando que o governo existente não defenderia osseus interesses, começaram a procurar orientação nas suas próprias orga-nizações e nos bolcheviques, que haviam sempre representado o ponto devista mais radical. As organizações de trabalhadores mais importanteseram os comités de fábrica estabelecidos pouco depois da revolução deFevereiro. Os comités eram mais populares e poderosos do que os sind-catos porque representavam um tipo de democracia directa que se ade-quava às circunstâncias caóticas. Podiam rapidamente mudar de políticaao sabor das circunstâncias. Quando Lenine falava da necessidade de osoperários assumirem a direcção das indústrias, estava a pensar no comitéde fábrica como instrumento dessa direcção. Na verdade, os comitéstinham começado a intervir em todos os aspectos da gestão das fábricas

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muito antes da revolução de Outubro. Na época do governo provisório, osbolcheviques já tinham assumido o comando desses comités.

Os historiadores soviéticos encontraram a explicação para o êxito deLenine na sua «consistente análise de classes». Mas é possível que Leninetivesse apenas sorte. Ele opusera-se à guerra por razões de princípio.Ansiava pela revolução e insistia numa política radical em grande partepor uma questão de temperamento. Entretanto o povo russo, sobretudo osoperários e os soldados dos escalões mais baixos, chegava a posiçõesideológicas que Lenine já havia defendido. Faz pouco sentido achar queos trabalhadores tivessem aderido à política leninista graças a uma inteli-gente propaganda bolchevique. Na realidade, os partidos não-socialistastinham muito mais meios do que os socialistas, e os bolcheviques estavamem desvantagem mesmo no seio do campo socialista. É evidente que osbolcheviques não se esquivaram à demagogia, como aliás os seus adver-sários. Os antibolcheviques usaram também todos os meios ao seualcance. Por exemplo, foram bastante bem sucedidos em manter os jornaisbolcheviques fora das unidades militares. Manifestamente, o apelobolchevique triunfou porque havia um público ansioso por posiçõesradicais. Não existem motivos para supor que no que diz respeito à técnicapropagandista os bolcheviques fossem superiores.

O apoio às posições bolcheviques cresceu regularmente durante 1917,excepto durante um curto período a seguir às jornadas de Julho, em queos radicais sofreram um pequeno revés. Embora muitos bolcheviques dasbases estivessem decerto envolvidos em organizar manifestações e criar adesordem, os principais chefes do partido, incluindo Lenine, não acredita-vam que uma tomada de controlo bolchevique pudesse ser bem sucedidanaquela altura. Por outro lado, uma vez iniciados os distúrbios e após amorte de várias pessoas, os bolcheviques não podiam abandonar os mani-festantes sem sofrer grandes prejuízos políticos. Quando o governo conse-guiu restabelecer a ordem, prendeu alguns dos dirigentes bolcheviques.Lenine e o seu camarada próximo, Grigori Zinoviev, foram obrigados aesconder-se, e um grupo de soldados destruiu a redacção do Pravda, ojornal do partido. Parecia que Lenine tinha sofrido uma séria derrota.

Os bolcheviques foram também prejudicados pela publicação dedocumentos destinados a mostrar que Lenine e os seus camaradas eramagentes Alemães. Embora os documentos fossem falsos, a alegação debase de que os leninistas tinham recebido ajuda da Alemanha era verda-deira. Os soldados e os operários podiam estar cansados da guerra, mas

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semelhante acusação tinha ainda um peso político considerável, e comcerteza fez diminuir o apoio aos bolcheviques nas fábricas e nos regi-mentos. O revés, contudo, foi apenas temporário. A anarquia – que afinalera a principal fonte da força bolchevique – continuou a alastrar-se. Oacontecimento que mais ajudou os bolcheviques foi a malfadada revoltade Kornilov. O incidente vinha aparentemente comprovar que a direitapolítica ameaçava a revolução, como haviam sempre defendido os bolche-viques, e que os leninistas eram os únicos não comprometidos pela cola-boração com a burguesia. Eles tinham apelado aos trabalhadores e aossoldados para tomar o poder e, durante a revolta de Kornilov, os trabalha-dores e os soldados mostraram que tinham de facto uma força consi-derável. O apoio aos bolcheviques aumentou repentinamente. Pelaprimeira vez conseguiram maiorias nos sovietes de Petrogrado eMoscovo. Estas vitórias tiveram uma importância decisiva para o futurodo governo provisório. Os bolcheviques e os trabalhadores radicaishaviam censurado o Soviete de Petrogrado por não ter ousado conquistaro poder. Agora que os bolcheviques dominavam os sovietes, a decisão dequando atacar estava nas suas mãos.

A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO

Os historiadores interrogam-se se a tomada de poder bolchevique emOutubro de 1917 foi um golpe de Estado, levada a cabo pelos impetuososbolcheviques, ou uma verdadeira revolução, obra dos operários e soldadosradicais de Petrogrado. Mas talvez o aspecto mais notável dos aconte-cimentos não fosse nem a ousadia dos bolcheviques, nem o comporta-mento dos trabalhadores, mas a completa desintegração da autoridadegovernamental.

Lenine instou resolutamente os seus apoiantes a agir, alegando queesperar podia ser fatal. Conseguiu por fim conquistar o apoio do ComitéCentral do partido, com a excepção de dois importantes dissidentes,Zinoviev e Kamenev. Os antigos camaradas de Lenine opunham-se de talmaneira ao que lhes parecia uma decisão precipitada que decidiram publi-car a data da planeada insurreição num jornal não-comunista. Escolheramo Novyi Mir, jornal dirigido por Máximo Gorki, o célebre escritor extre-mista. Nessa altura o governo provisório já havia perdido todo o poder e

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autoridade: todas as pessoas politicamente conscientes de Petrogradosabiam que os bolcheviques estavam prestes a agir, mas o governo não eracapaz de se defender. Nestas circunstâncias, dificilmente se pode falar deum golpe de Estado, e muito menos de uma conspiração. Os bolcheviquestomaram o poder porque o país se encontrava à beira da anarquia.

A revolução bolchevique é um momento tão importante na história domundo que o estudioso olhando para trás sente-se muitas vezes surpreen-dido e até mesmo decepcionado ao descobrir que os acontecimentos de24-25 de Outubro de 1917 não foram afinal especialmente dramáticos. Osrestaurantes e os teatros estiveram abertos nessa noite. Na perspectiva dosestafados habitantes da altura, o país passava apenas por outra crise. Osbolcheviques, que dominavam então o Soviete de Petrogrado, usaram oseu comité revolucionário militar para organizar e levar a cabo uma acçãorevolucionária. Ocuparam os edifícios públicos mais importantes, asredacções dos principais jornais e as estações de caminho-de-ferro. Oúltimo reduto era o Palácio de Inverno, onde estava reunido o governoprovisório – sem Kerenski, que tinha conseguido fugir da cidade. Oassalto ao Palácio de Inverno, tão conhecido da posteridade através dofilme Outubro de Eisenstein, não ocorreu como retratado pelo granderealizador. Os assaltantes eram poucos e desorganizados, mas isso poucoimportava, uma vez que o governo nos últimos minutos da sua existêncianão podia contar com praticamente nenhum apoio armado. Os bolche-viques programaram o momento da sua acção para coincidir com o II Congresso dos Sovietes. Ao alegar que estavam a agir em nome dossovietes, esperavam conseguir um certo grau de legitimidade. Na verdade,apresentaram ao Congresso um facto consumado. Embora alguns líderessocialistas moderados tivessem abandonado a reunião em sinal de pro-testo, a maioria bolchevique aprovou uma resolução confirmando asmedidas revolucionárias.

Foram as questões da terra e da paz que derrubaram o governo pro-visório, e Lenine estava decidido a resolvê-las tão decisiva e rapidamentequanto possível. Um dia após a vitória, apresentou os seus decretos da paze da terra ao Congresso dos Sovietes. O primeiro desses decretos era umapelo a todos os países beligerantes para encetar negociações para umapaz justa e democrática sem indemnizações nem anexações. O segundodeclarava a terra propriedade nacional, permitindo no entanto os cam-poneses a cultivá-la como sua. Na prática isso significava que os bolche-viques reconheciam oficialmente as confiscações de terras levadas a cabo

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pelos camponeses. A criação de uma classe de camponeses com terrasparecia colidir com a imagem marxista do futuro defendida pelos bolche-viques. Como marxistas, eles acreditavam que a posse de terras pelagrande maioria do povo russo tornaria mais difícil a construção de umasociedade socialista. Lenine, contudo, percebeu que era essencial deixaros camponeses concluir a sua revolução para conquistar o seu apoio, oupelo menos torná-los neutros. Depois de Outubro a principal tarefa dosagitadores bolcheviques nas aldeias foi divulgar o decreto da terra: era oprincipal argumento dos agitadores na sua tentativa de convencer oscamponeses de que os bolcheviques estavam do seu lado.

O novo governo, chamado Conselho dos Comissários do Povo echefiado por Lenine, era um órgão exclusivamente bolchevista. A listados comissários foi uma desilusão para a maioria dos soldados e operáriosextremistas que havia ajudado os bolcheviques a chegar ao poder, porquetinha esperado um governo de coligação de socialistas. Uma parte bas-tante significativa dos principais dirigentes do partido teria tambémpreferido uma coligação. Alguns dos líderes que defendiam a coligaçãopreferiram mesmo demitir-se a participar num governo de partido único,

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V. I. Lenine

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mas Lenine e Trotsky mostraram-se inflexíveis. A sua concepção do novoregime não permitia cedências aos que se haviam oposto à tomada depoder. Um mês depois os bolcheviques admitiram de facto alguns socia-listas revolucionários de esquerda no seu governo. No entanto, os novoscomissários aceitaram as pastas nas condições dos bolcheviques, e comonão tinham uma base de poder organizada não podiam combater eficaz-mente as políticas dos bolcheviques. De qualquer maneira, os socialistasrevolucionários de esquerda permaneceram no governo durante apenasum breve período. Abandonaram o governo em protesto contra a decisãode Lenine de fazer a paz com os Alemães em Março de 1918.

Tendo em conta a violência da guerra civil que começaria poucosmeses depois, impõe-se a pergunta: que estavam os futuros e fervorososinimigos dos bolcheviques a fazer nos momentos decisivos? Porquedeixaram os seus adversários tomar o poder tão facilmente? Como jávimos, os bolcheviques não os surpreenderam: todas as pessoas politica-mente conscientes da Rússia sabiam das intenções bem anunciadas dosrevolucionários.

A paralisia teve vários motivos. Os militares, apoiantes de Kornilovque pouco depois viriam a constituir o comando do movimento Brancoantibolchevique, tinham sido derrotados havia pouco tempo e sentiam-sedesiludidos com o povo russo. Por um lado, odiavam o regime liberal deKerenski com tanto fervor que não o defenderiam em circunstânciaalguma. Por outro, subestimaram os bolcheviques. Não imaginavam queum bando de extremistas com ideias extravagantes pudesse ter êxito noque os ministros czaristas e estadistas instruídos e experientes tinhamfalhado: isto é, em governar o país. Além disso, estavam tão preocupadoscom a necessidade de lutar contra o inimigo estrangeiro que se recusarama abandonar as suas posições na frente. Entraram em oposição abertaapenas quando se lhes tornou impossível continuar a combater osAlemães.

Os mencheviques e os socialistas revolucionários não agiram porquesubestimaram as divergências entre eles próprios e o novo governo. Aosseus olhos os bolcheviques eram camaradas socialistas. O país preparara--se para as eleições para a Assembleia Constituinte, e os socialistas mode-rados temiam comprometer a sua posição junto dos eleitores. O facto deos bolcheviques terem conseguido manter uma aparência de legitimidadeao conquistar o apoio da maioria do II Congresso dos Sovietes também osajudou consideravelmente. Em certo sentido, os antibolcheviques tinham

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razão: a conquista do poder era uma questão relativamente menor. Atarefa verdadeiramente difícil, dar ao país um governo eficiente e vencera anarquia, estava ainda pela frente.

Os bolcheviques chegaram ao poder com um programa extraordina-riamente ambicioso que visava não só reorganizar a sociedade e a política,mas também reformar a humanidade. O seu programa baseava-se emprincípios abstractos derivados da sua leitura de Marx. Inevitavelmente,os preceitos da teoria e as necessidades concretas do momento colidiramquase imediatamente, e os bolcheviques foram obrigados a improvisar.Nesse processo de improvisação tornaram-se os grandes inovadores dapolítica do século XX. Criaram instituições, métodos de mobilização e atémesmo um vocabulário que seria não só imitado mas repetidamenteredescoberto. O jogo entre as exigências criadas por uma inesperada edifícil realidade e uma ideologia com a qual os revolucionários estavamprofundamente comprometidos é um assunto complexo e fascinante.

Seria um erro imaginar que todos os aspectos pouco atraentes daspolíticas bolchevistas foram consequência das exigências cruéis e ines-peradas da época. Os bolcheviques não eram democratas ou liberais con-vertidos a um método político diferente pelo seu desejo de sobrevivência.Traziam obviamente em si as atitudes mentais que lhes permitiram trans-formar-se rapidamente de revolucionários em administradores, de com-batentes da liberdade em opressores.

Chegaram ao poder em circunstâncias totalmente imprevistas pela suaideologia. Em vez de uma sociedade industrial completamente desenvol-vida, a sua herança foi o analfabetismo, a anarquia, a ruína industrial e afome. Em vez de participarem numa revolução internacional, após a qualpoderiam ter beneficiado da ajuda de nações mais avançadas, tiveram deenfrentar mais ataques do poderoso exército alemão. Os Alemães pare-ciam imparáveis porque o exército russo tinha perdido a sua capacidadede resistir – pelo menos em parte devido à anterior propaganda antiguerrados bolcheviques.

O internacionalismo estava profundamente arraigado na mentalidadedos bolcheviques, que se consideravam um regimento avançado doexército proletário internacional. Inquietava-os o facto de, contrariamenteà teoria marxista, a revolução não ter primeiro ocorrido nos países econo-micamente mais avançados. Explicavam essa anomalia alegando que oproletariado russo estava em condições de quebrar a corrente do capita-lismo mundial no seu elo mais fraco. Segundo este raciocínio, o objectivo

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principal da revolução russa era quebrar essa corrente e assim iniciar arevolução mundial. Na sua perspectiva, a revolução russa só poderia terêxito a longo prazo se fosse ajudada por nações solidárias, mais avançadase, sobretudo, socialistas. A expectativa de uma revolução socialista aseguir à insana devastação da I Guerra Mundial não era de modo nenhumabsurda. Hoje sabemos que a revolução não ocorreu, que a velha ordemvoltou a afirmar-se. Na altura, porém, toda a gente, amigos e inimigos,esperavam ou temiam essa transformação cataclísmica.

Esta expectativa de uma revolução mundial não era uma questãoteórica para os leninistas, mas matéria que afectava o seu comportamentoquotidiano. Os bolcheviques vitoriosos enfrentavam uma falange degovernos hostis. Essa hostilidade era esperada e até mesmo necessáriapara os bolcheviques. Os que acreditavam no internacionalismo do prole-tariado também tinham de acreditar no internacionalismo do capital. Osbolcheviques esperavam que as potências capitalistas, percebendo que osseus inimigos mais perigosos não eram outros capitalistas mas os socia-listas, se esqueceriam da guerra e se uniriam contra os revolucionários.Esse desenvolvimento, na visão dos bolcheviques, muito provavelmenteconduziria à revolta de todos os povos explorados, e talvez fosse por issodesejável.

O problema imediato, contudo, não era uma coligação hostil mas oexército alemão. Os bolcheviques encetaram negociações de paz com oinimigo e acabaram por aceitar as condições severas dos Alemães. A 3 deMarço, assinaram o Tratado de Brest-Litovsk. A aceitação das condiçõesdesse tratado gerou o primeiro grande debate da história soviética, quasedividindo o partido.

A negociação com um inimigo imperialista podia ser considerada oponto de partida da política externa soviética. Quando assumiram o poder, os bolcheviques acreditavam que o seu regime não precisava deuma política externa. Os governos do mundo seriam implacavel-mente hostis mas o proletariado mundial estaria do seu lado; as rela-ções externas podiam ser reduzidas a apelos revolucionários. Os bolche-viques viam a solução para as suas dificuldades na iminente revoluçãomundial. O facto de essa revolução nunca ter ocorrido foi a sua maiordecepção.

Um segmento considerável e influente da chefia do partido conti-nuava a achar que era um erro firmar qualquer tratado ou mesmo manterrelações diplomáticas com as potências capitalistas. Estas pessoas, lidera-

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das por Nikolai Bukarine e apelidadas comunistas de esquerda, queriamcontinuar a guerra não tanto para defender os interesses nacionais daRússia mas porque acreditavam que os soldados Alemães se recusariam alutar contra os seus camaradas Russos e que essa recusa despoletaria amuito esperada revolução alemã. Se entretanto o novo regime soviéticofosse eliminado, isso, na opinião dos comunistas de esquerda, seria umpreço que valeria a pena pagar pelo avanço da causa internacional. Esteargumento era convincente para aqueles que tinham a certeza de que onovo regime revolucionário não poderia sobreviver durante muito temposem a ajuda do proletariado mundial.

Lenine, o grande realista, não se deixava seduzir por sonhos revolu-cionários. Com uma energia, determinação e perspicácia espantosas eleimpôs os seus pontos de vista aos seus colegas recalcitrantes. Ao assinaro Tratado de Brest-Litovsk assegurou a sobrevivência imediata do seuregime; afinal, os Alemães podiam facilmente ter vencido os bolchevi-ques, que não possuíam uma grande força militar. Os Alemães travaram oseu avanço porque perceberam que qualquer regime que impusessem aosRussos derrotados exigiria um investimento considerável de tropasalemãs; preferiam usar os seus soldados na frente ocidental.

A segunda grande decepção para os bolcheviques foi o comporta-mento do povo russo. Segundo o seu raciocínio, o partido dirigia a revolu-ção das classes trabalhadoras. Essa revolução era levada a cabo parabeneficiar a grande maioria do povo russo, os operários e os camponeses.Durante 1917 falou-se muito da convocação da Assembleia Constituinte,que iria resolver os principais problemas nacionais. As eleições para aAssembleia tinham sido marcadas para Novembro, antes de ocorrer arevolução de Outubro, e os bolcheviques decidiram realizá-las. Não é detodo claro o que os bolcheviques esperavam, porque os resultados nãoforam surpreendentes. Os Socialistas Revolucionários, que tinham apoionas zonas rurais, conseguiram eleger a maioria dos deputados, enquantoos bolcheviques puderam contar com cerca de um quarto dos represen-tantes.

A Assembleia reuniu-se na altura devida em Janeiro de 1918,expressou sentimentos antibolcheviques e depois foi dissolvida pelosbolcheviques. Foi uma medida radical, porque ao desrespeitar a vontadeclaramente expressa do eleitorado os bolcheviques repudiavam de umavez por todas qualquer pretensão de agir com base nos princípios dademocracia «burguesa». A sua legitimidade não se basearia na soberania

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popular, mas na convicção de que compreendiam o movimento dahistória. Eles defendiam um futuro melhor e socialista para toda a huma-nidade. É difícil ver, contudo, como os bolcheviques poderiam ter agidode outra forma, uma vez que aceitar a autoridade da Assembleia Cons-tituinte teria implicado invalidar a revolução de Outubro. Ao contrário dasnegociações de Brest-Litovsk, que tinham provocado uma grande crise noseio do Partido, desta vez não houve divergências de opinião entre oslíderes. Tudo na sua experiência e concepção teórica dispunha os leninis-tas para tomar precisamente essas medidas.

Se a rejeição da democracia eleitoral não lhes provocou grandes pro-blemas de consciência, a suspensão da liberdade de expressão conduziuefectivamente a acesos debates entre os bolcheviques. A 4 de Novembro,no comité executivo central dos sovietes, alguns eminentes líderes bolche-viques defenderam com eloquência a liberdade de imprensa. Eles acre-ditavam confiadamente – embora decerto erradamente – que se o povorusso fosse presenteado com diferentes pontos de vista, seria capaz deperceber a correcção da posição bolchevique. Lenine opunha-se veemen-temente a esta teoria e falava com desdém do princípio da liberdade deimprensa. Mais uma vez, ele levou a melhor. Os novos governantes nãopodiam eliminar imediatamente todas as publicações não-bolcheviques.No entanto, nos primeiros oito meses do seu governo, foi precisamenteisso que fizeram. Quando a guerra civil começou e os revolucionáriosacharam necessário empregar métodos cada vez mais duros, todos osjornais não-bolcheviques desapareceram dos territórios sob o seucontrolo.

A suspensão da liberdade de imprensa vinha a par com a suspensãoda liberdade de associação: nas zonas sob o seu domínio os bolcheviquesproibiram primeiro os partidos não-socialistas e depois todos os partidos.Para fazer cumprir essas políticas, os novos governantes precisavam deuma força coerciva. Os que haviam sofrido às mãos da polícia políticaczarista, a Okhrana, pouco depois da sua vitória criaram a sua própriapolícia política, a Comissão Extraordinária de toda a Rússia para o Com-bate à Contra-Revolução, Sabotagem e Especulação, conhecida simples-mente por Cheka (abreviatura russa para comissão extraordinária).

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O RUMO DA GUERRA CIVIL

A velha ordem deixara de funcionar e o país enfrentava problemasextraordinários. Os socialistas e os não-socialistas tinham divergênciasprofundas sobre como resolver esses problemas. No entanto, passadopouco tempo, das dezenas de pontos de vista concorrentes, apenas dois – o dos bolcheviques e o dos contra-revolucionários – continuaram sériosadversários. Os Socialistas Revolucionários, que gozavam sem dúvida doapoio da maioria do povo russo, nunca tiveram uma oportunidade. Ospolíticos socialistas moderados não tinham forma de transformar o apoioeleitoral em regimentos. Não possuíam uma ideologia, nem uma menta-lidade, que lhes permitisse tomar as necessárias medidas rigorosas pararesolver a crise nacional.

A guerra civil, por consequência, depressa se viu reduzida a um con-flito entre Brancos e Vermelhos. De um lado estavam os intelectuais esemi-intelectuais revolucionários, reprimidos durante o regime czarista eempenhados na mudança com base nas suas profundas crenças marxistas.Eram uma nova classe de políticos, que percebia claramente a necessidadeda mobilização de massas e da propaganda. Do outro lado, o comando eracomposto exclusivamente por oficiais do exército, homens que se haviamsentido perfeitamente à vontade na Rússia czarista, que desprezavam apolítica, e que propunham soluções militares para a maioria dos proble-mas. Não tinham qualquer visão para o futuro da Rússia mas sentiam queera necessário combater os bolcheviques, porque acreditavam que o domí-nio comunista só poderia trazer a desgraça à pátria. Por mais diferentesque fossem os dois grupos, enfrentavam os mesmos problemas: comoprover o país de uma administração eficiente, fornecer alimentos aosfamintos, pôr os caminhos-de-ferro a funcionar; em suma, como vencer aanarquia.

Os antibolcheviques demoraram muito tempo a organizar-se. Os anti-gos líderes da revolta Kornilov, que subsequentemente tinham sidopresos, aproveitaram a confusão gerada pela insurreição bolchevique parafugir da sua reclusão e refugiar-se na província cossaca do Don. A elesdepressa se juntou o general Alekseev, antigo chefe do Estado-maior doczar. Este pequeno grupo de oficiais incluía muitos, mas não todos, dosmais eminentes chefes das forças russas durante a guerra. Juntaram-se naprovíncia cossaca do Don porque não havia outra região na Rússia ondepudessem encontrar segurança. No início do século XX, os cossacos,

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descendentes de piratas, já se haviam tornado lavradores ricos; recebiamdireitos de tributação e propriedade do governo czarista em troca de obri-gações militares mais pesadas. Ao contrário de outros camponesesRussos, tinham uma tradição de autonomia. Agora viam os seus privilé-gios ameaçados pelos habitantes menos afortunados das suas regiões, oscamponeses Russos. Estes eram muito mais pobres e possuíam muitomenos terras, que com frequência tinham de tomar de arrendamento doscossacos. Desprezavam os seus exploradores cossacos e eram ouvintessolícitos dos apelos dos bolcheviques. As províncias do Don e de Kubanestavam a iniciar a sua própria guerra civil, uma luta pelo poder que coin-cidia em parte com o conflito nacional. Os cossacos viriam a desempenharum papel decisivamente importante no movimento Branco, em grandeparte porque os generais Brancos não tinham outra força a que recorrer;nunca conseguiram conquistar a simpatia da maioria do povo russo, oscamponeses.

Durante os primeiros meses de 1918, os generais atraíram apenas umnúmero lastimavelmente pequeno de seguidores. Após vários meses deorganização, a incipiente força militar do movimento Branco, o exércitovoluntário, tinha apenas uns 3000 combatentes, na sua maioria oficiais. Ofacto de o novo governo bolchevique não ter tido sequer a força paradispersar um exército tão minúsculo, reflecte a sua fraqueza; uma guerracivil é sempre uma luta entre o fraco e o mais fraco. Mais tarde, durantea Primavera, foram os Alemães, ironicamente, que permitiram aosBrancos sobreviver. A política alemã era apoiar os antibolcheviques nasperiferias do país e tolerar os bolcheviques no centro. Um país divididopela guerra civil servia melhor os interesses alemães. Uma das consequên-cias desta política foi o apoio que deram a um governo cossaco conser-vador no Don. Assim, os generais Brancos, que pouco antes haviamdenunciado os bolcheviques como agentes Alemães e jurado fidelidadeaos seus aliados, tornaram-se os principais beneficiários da política dosinimigos da sua pátria.

Um dos momentos decisivos na história da guerra civil, e segura-mente um dos seus episódios mais curiosos, foi a rebelião das tropaschecas. A monarquia dos Habsburgos, inimiga da Rússia na I GuerraMundial, era, como a Rússia czarista, um império multinacional. A grandeminoria eslava no seu seio sentia-se oprimida e, na altura da guerra,mostrou pouca lealdade aos Habsburgos. Um grande número de soldadoschecos, por exemplo, deixou-se facilmente capturar pelos Russos. O

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governo czarista hesitou em jogar a cartada das nacionalidades. Recusou--se a formar um exército com esses prisioneiros de guerra e permitir-lhesque combatessem do seu lado. A situação alterou-se em 1917: Kerenskinão tinha quaisquer escrúpulos a esse respeito e incentivou os checos aformar um corpo independente e a combater os Alemães. Os checos eramsoldados entusiásticos, pois acreditavam e com razão que apenas a derrotadas potências centrais, a Alemanha e a monarquia austro-húngara, lhespermitiria formar um Estado independente. Quando o exército russo sedesintegrou, só esta pequena força queria continuar a combater, mas otratado de Brest-Litovsk impedia-a de prosseguir. Após longas negocia-ções com o governo soviético, foi decidido autorizá-los a viajar para afrente ocidental através da Sibéria, do Pacífico e dos Estados Unidos. Oschecos, porém, nunca chegaram ao seu destino, porque enquanto viaja-vam pela Sibéria começaram a combater os bolcheviques. Em Maio de1918, o domínio bolchevique na Sibéria era ainda tão fraco que cinquentamil checos puderam vencê-lo. Este acontecimento totalmente inesperadopermitiu aos antibolcheviques estabelecerem-se e organizarem-se. Apósmuita discussão, os Brancos instauraram um regime liberal em que osSocialistas Revolucionários desempenhavam um importante papel. Noentanto, este governo durou pouco tempo. Em Novembro de 1918, osmilitares derrubaram o governo socialista e nomearam o almiranteAleksandr Kolchak, antigo comandante da esquadra do Mar Negro, chefesupremo.

O fim da guerra na Europa teve consequências de grande alcance parao rumo da guerra civil na Rússia. Enquanto combatiam entre si, os aliadose as potências centrais consideravam o seu envolvimento na Rússia muitomenos importante. Embora os governos aliados encarassem os bolchevi-ques e tudo o que eles representavam com receio e aversão, se estestivessem continuado a guerra contra os Alemães, podiam ter recebido oapoio dos aliados. Os aliados começaram por ajudar os Brancos na espe-rança ilusória de que a frente antigermânica pudesse ser reconstruída. OsBritânicos e os Americanos, que no início de 1918 enviaram pequenosdestacamentos para Murmansk e Archangel, no Extremo Norte, e paraVladivostok, no Extremo Oriente, justificaram a sua ingerência nos assun-tos russos em termos da sua necessidade de combater os Alemães.

Com o fim da Guerra Mundial desaparecia qualquer fundamentaçãológica para a intervenção, ao passo que as oportunidades para uma ajudaprática aos antibolcheviques aumentavam consideravelmente. Imediata-

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mente a seguir à derrota dos Alemães, tropas francesas aterraram emOdessa, e pouco depois na Crimeia. Os Britânicos enviaram pequenosdestacamentos para o Cáucaso e para a Ásia Central, e pouco depoisiniciou-se a distribuição de valioso equipamento militar a Kolchak eAnton Denikin, comandante do exército voluntário.

Os bolcheviques, evidentemente, nessa altura e desde então, tinhamgrandes motivos para acreditar, ou pelo menos fingir acreditar, que esta-vam a combater não inimigos internos mas as forças conjuntas do impe-rialismo mundial. Tornou-se ponto de doutrina da historiografia soviéticaque o jovem Estado soviético lutou contra as forças conjuntas do imperia-lismo mundial. Na verdade, a contribuição dos estrangeiros para o resul-tado da guerra civil foi insignificante. Os governos estrangeiros tinhamapenas uma vaga percepção dos assuntos russos; baseavam as suas políti-cas e opiniões em falsas premissas. Mas por mais que os aliados tivessemquerido derrubar os bolcheviques, dada a política da Europa do pós-guerranão estavam em condições de o fazer. As tropas francesas foram as únicas que efectivamente entraram em combate, e o seu desempenho foilamentável. Em vez de ajudar, prejudicaram a causa dos Brancos. A ajudamilitar britânica, e em menor grau a americana, foi certamente útil para Denikin e Kolchak; mas esse tipo de ajuda só podia prolongar aguerra.

A retirada alemã alargou o âmbito dos combates. Os bolcheviques eos antibolcheviques precipitaram-se para o vazio, esperando aproveitar aoportunidade. A maior ameaça ao governo bolchevique nos primeirosmeses de 1919 veio do Oriente. À medida que Kolchak avançava para oOcidente, tornava-se cada vez mais claro que ele talvez pudesse unir-se aDenikin no Sul. O exército Vermelho conseguiu inverter a situação nafrente oriental em Junho de 1919, mas os bolcheviques ainda assim nãopuderam descansar. Nesse Verão, Denikin ocupou a Ucrânia, e em Outu-bro chegou a Orel, a cerca de 400 quilómetros de Moscovo. Ao mesmotempo o regime de Lenine enfrentava um novo perigo. O general NikolaiIudenitch tinha organizado mais um exército antibolchevique na Estóniaque ameaçava então Petrogrado. O mês de Outubro de 1919 foi ummomento decisivo na guerra civil. Os Vermelhos, nessa altura crítica, con-seguiram mobilizar novas forças e travar tanto Iudenitch como Denikin.As linhas de Denikin haviam-se dispersado demais e foram implacavel-mente perseguidas por guerrilheiros anarquistas ucranianos, em especialNestor Makhno.

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Em 1920 era já quase certo que os Vermelhos acabariam por ganhar.Na Primavera de 1920, Denikin estava de novo confinado ao Kuban. Eleconseguiu fazer chegar as suas tropas à Crimeia, mas depois foi para oexílio. Petr Wrangel, o último comandante, figura competente e caris-mática, só podia contar com as circunstâncias externas. A Polónia, que setornou um Estado independente no final da guerra, tinha grandes ambi-ções territoriais à custa da Rússia. O líder polaco, Joseph Pilsudski,achando que conseguiria obter um melhor acordo dos bolcheviques doque dos Brancos vitoriosos, esperou até à derrota das principais forçasBrancas para começar a sua campanha. A guerra russo-polaca, que esti-mulou paixões nacionalistas de ambos os lados, assistiu a várias revira-voltas militares; a determinada altura, o vitorioso exército Vermelho che-gou a ameaçar a capital polaca. A guerra terminou com o acordo de pazde Riga em Março de 1921. A seguir à fase decisiva da campanha polaca,o exército Vermelho derrotou Wrangel e obrigou-o e ao que restava do seuexército a ir para o exílio. No final de 1920, os bolcheviques tinham jávencido todos os seus inimigos, com a excepção de alguns bandos disper-sos de camponeses.

AS RAZÕES DA VITÓRIA BOLCHEVIQUE

Embora os bolcheviques acabassem por ganhar a guerra civil, no iní-cio a sua vitória não estava de modo nenhum assegurada, nem mesmo aosolhos cansados dos seus contemporâneos. A sobrevivência do governorevolucionário esteve várias vezes em causa. Na Primavera de 1918, porexemplo, o regime foi quase derrubado pela pura anarquia; na Primaveraseguinte, Kolchak parecia imparável; e no Outono de 1919, as forças con-juntas de Denikin e Iudenitch representavam tamanha ameaça militar quemuitos esperavam que o regime de Lenine caísse pouco depois.

Os Brancos gozavam de muitas e significativas vantagens. Tinham oapoio da igreja, os seus exércitos eram quase sempre melhor comandados,e não receavam a traição dos seus oficiais. Nas circunstâncias vigentes,em que a linha da frente se deslocava rapidamente, a cavalaria cossaca erauma força extremamente valiosa. Os Brancos ocupavam as terras agrí-colas mais férteis, as populações que tinham de alimentar eram de cidadesmenores. Estes factores, juntamente com a ajuda dos aliados, tornavam

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superiores as condições de vida nos territórios ocupados pelos Brancos.Quando os Brancos ocupavam uma cidade, o preço do pão quase sempredescia. Naturalmente, numa época de fome, os preços de alimentos maisbaixos tinham grande significado político.

Não obstante, os bolcheviques ganharam pelo menos em parte devido àfraqueza dos seus inimigos. Os Brancos não tinham uma ideologia atraentenem o estado de espírito certo para levar a cabo a sua mais importante tarefa:impor a ordem a uma população relutante. Como consideravam a sua tarefaessencialmente militar, não fizeram qualquer esforço sério para conquistar oapoio da população com uma atraente visão do futuro. Na verdade, elespróprios careciam dessa visão. Os generais tinham vivido confortavelmentena Rússia imperial, e embora os mais esclarecidos tivessem consciência deque algumas reformas seriam necessárias, desejavam todos ardentementeque as revoluções de 1917 nunca tivessem ocorrido.

Quando eram obrigados a explicar os seus objectivos, os Brancostinham de recorrer a um sentido de nacionalismo recentemente formado eexagerado. Afirmavam estar a lutar pela «Rússia». O problema era quesemelhante ideologia pouco comovia os que politicamente mais impor-tavam, os camponeses. Talvez pior do que isso, desagradava fatalmente àsminorias nacionais, que se poderiam ter tornado aliados úteis numacruzada antibolchevique. Como os Brancos combatiam forçosamente emzonas habitadas em grande parte por não-russos, a hostilidade das mino-rias tinha consequências fatais.

A desintegração do império outrora poderoso e a manifesta fraquezadas autoridades centrais resultaram num aumento extraordinariamenterápido da consciência nacional entre as minorias. Políticos que se haviamdeclarado internacionalistas e socialistas assumiam então o poder emEstados independentes e passavam a adoptar a causa nacionalista compaixão. Os bolcheviques e os antibolcheviques adoptaram políticas dife-rentes para os novos Estados nas periferias. A atitude bolchevique foimuito mais inteligente: enquanto não tivessem poder para impedir o esta-belecimento desses Estados, não se lhes opunham abertamente. Davam aentender ter aceite o princípio da auto-determinação, acrescentandoporém que isso se aplicava desde que servisse o interesse do proletariado.Os Brancos não fariam semelhante concessão.

Os camponeses Russos não se deixavam convencer por uma ideologianacionalista; estavam mais interessados em ficar com as terras dosgrandes proprietários. Os políticos Brancos esforçaram-se durante meses

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por engendrar um plano de reforma agrária. Levaram muito tempo, poisnão compreendiam plenamente a importância política de ganhar o apoiodos camponeses ávidos de terras. Quando publicaram um projecto dereforma agrária, no Verão de 1920, era já demasiado tarde. Mas mesmoesse plano oferecia muito pouco. Afinal, os Brancos iam buscar o seuapoio social à direita, e não podiam desagradar aos seus apoiantes. Oscamponeses perceberam que na esteira dos exércitos Brancos voltariam aaparecer os grandes proprietários rurais e os oficiais ex-czaristas paraexigir a restituição da sua riqueza e do seu poder. Dissessem o quedissessem os políticos Brancos nos seus manifestos, os camponeses per-cebiam muito bem que os Brancos defendiam a restauração.

Mas os bolcheviques não ganharam a guerra civil só por causa dafraqueza e dos erros dos seus adversários. A sua percepção das necessi-dades do momento e os princípios de política revolucionária também osajudaram. O programa político com que haviam chegado ao poder nãopodia ser cumprido, e por isso os revolucionários tiveram de improvisarconstantemente. Mas, felizmente para eles, a sua formação e ideologiapermitiram-lhes improvisar com êxito.

Os bolcheviques, como marxistas-leninistas, percebiam instintivamentea importância da organização e da mobilização de massas. Esforçaram-seincansável e incessantemente por levar o seu programa aos trabalhadores eaos camponeses e por criar formas de organização que pudessem restaurara ordem. A vitória na guerra civil deveu-se em grande parte ao partido. Aprincípio uma organização de revolucionários, transformou-se rapidamentenum instrumento de governo. Nas circunstâncias existentes, seria erradoimaginar o partido como uma organização muito unida, disciplinada ehierárquica. Os principais líderes discutiam frequentemente, e o podercentral muitas vezes tinha apenas um controlo nominal sobre as cidadesdistantes. No entanto, como base organizacional, conferia aos bolcheviquesuma vantagem incalculável. O partido interferia em todos os aspectos davida nacional: era responsável por desenvolver uma estratégia para ganhara guerra; era uma agência de recrutamento que apresentava quadroscompetentes e ambiciosos; era o principal órgão de doutrinação; nosterritórios ocupados pelo inimigo organizava movimentos clandestinos deresistência; e, talvez mais importante do que tudo, tentava fiscalizar otrabalho de outras instituições sociais e governamentais.

As capacidades e princípios de organização dos bolcheviques mani-festaram-se exemplarmente na criação e construção do Exército Ver-

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melho, a grande proeza de Trotsky. Tanto Trotsky como Lenine depressaperceberam que, contrariamente às noções utópicas em que eles próprioshaviam acreditado, os serviços de especialistas eram essenciais para gerirum Estado moderno. No caso das forças militares, isso significava que ojovem Estado soviético precisava dos conhecimentos dos oficiais doantigo exército imperial. Estes homens tinham de ser obrigados ou con-vencidos a servir uma ideologia que em quase todos os aspectos achavamdesagradável. Além disso, essa política implicava riscos: gerava indigna-ção entre alguns velhos comunistas, e os oficiais não eram de modonenhum de confiança. A traição era um perigo constante. No entanto,Trotsky tinha razão: só uma força disciplinada, comandada por profissio-nais, podia derrotar o inimigo.

No final da guerra civil, os bolcheviques, através de uma vasta pro-paganda, além do recrutamento, tinham já construído um exército de cincomilhões – incomparavelmente maior do que as forças conjuntas dos seusinimigos. Apenas uma pequena percentagem deste exército participava noscombates; a maioria fornecia apoio e serviços administrativos. Numa épocade anarquia, o novo Estado precisava de todo o apoio que podia obter.

A Cheka também contribuiu para a vitória bolchevique. O terror foiigualmente sanguinário de ambos os lados; tanto os Vermelhos como osBrancos praticaram actos de extraordinária brutalidade. No entanto, arepressão política exercida pelos dois lados tinha um carácter diferente.Os Brancos, cujas opiniões eram mais adequadas ao século XIX do que aoséculo XX, tinham pouca percepção do papel das ideias na política etoleravam uma maior diversidade de pontos de vista políticos. A Cheka,pelo contrário, admitia apenas uma organização política e um ponto devista político, o dos leninistas.

Os bolcheviques moldaram com êxito as suas políticas sociais e eco-nómicas à necessidade de ganhar a guerra. Lenine apresentou o seufamoso decreto da terra no dia seguinte ao da sua vitória. Como cedênciaaos camponeses, o decreto legalizava anteriores ocupações de terras e per-mitia aos camponeses cultivar como suas as antigas terras dos latifundiá-rios. Lenine, o grande realista, percebeu claramente as vantagens destapolítica. Contudo, apesar de os Vermelhos lhes terem dado terras e osBrancos nada, os bolcheviques só conseguiram ganhar um pequenonúmero de partidários activos entre os camponeses. A grande fragilidadeda posição dos bolcheviques era que eles precisavam de alimentar ascidades mas nada tinham para dar aos camponeses em troca dos cereais.

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Nessas circunstâncias, os princípios do mercado livre não podiam obvia-mente funcionar, e os bolcheviques impunham o fornecimento de cereaispela força. Esta política acabaria por afastar os camponeses, mas é difícilimaginar que mais os revolucionários poderiam ter feito.

As políticas económicas introduzidas pelos bolcheviques em meadosde 1918, sobretudo a suspensão do mecanismo de mercado para oscereais, foram designadas «comunismo de guerra». Este sistema mobili-zava a economia através da coacção com o fim de ganhar a guerra. Osbolcheviques nacionalizaram o comércio e a indústria. Embora estasmedidas fossem claramente resultado da improvisação, na altura osteóricos afirmavam ver no desaparecimento da iniciativa privada e atémesmo do dinheiro um avanço em direcção à sociedade comunista. Osistema provocou muito sofrimento e privações à população e a longoprazo conduziu à dilapidação da economia nacional. No entanto, a curtoprazo foi eficaz: as fábricas produziram efectivamente armas suficientespara combater o inimigo, e as pessoas das cidades foram alimentadas,mesmo que de modo insuficiente.

A revolução bolchevique, como todas as grandes revoluções, foi tra-vada pela igualdade social. Os revolucionários fizeram um grande esforçopara recrutar uma nova elite política. Camponeses e operários jovens eambiciosos, através de uma mistura de convicção e arrivismo, dedicaram-seà causa dos bolcheviques. Conseguiram aproximar-se dos seus camaradasoperários e camponeses com muito mais sucesso do que qualquer propa-gandista Branco. Ao mobilizar esta fonte de talento até então inexplorada,os bolcheviques ganharam muito. As conscientes políticas bolcheviques,assim como a miséria imposta pela guerra e pelo comunismo de guerra,contribuiriam de facto para uma grande diminuição das desigualdades.

CAPÍTULO 2: A REVOLUÇÃO, 1917-1921

(1) Por exemplo, D. Volkogonov, Lenin: A New Biography (Nova Iorque,1994).

(2) Entre o primeiro grupo de historiadores, os mais conhecidos são GeorgeKatkov, Russia, 1917: The Kornilov Affair (Londres, 1980); Leonard Schapiro,The Communist Party of the Soviet Union (Nova Iorque, 1960); e Richard Pipes,A Concise History of the Russian Revolution (Nova Iorque, 1995). Representantetípico do segundo grupo é o estudo de William G. Rosenberg e Dianne Koenker,Strikes and Revolutions in Russia, 1917 (Princeton, 1989).

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